superendividamento bancário e o princípio da dignidade da pessoa humana
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS NO ENSINO DO DIREITO
PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
ARTIGO CIENTÍFICO
SUPERENDIVIDAMENTO BANCÁRIO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Filipe Schitino Silva de Mello
Nova Friburgo/RJ
2010
1
SUPERENDIVIDAMENTO BANCÁRIO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Filipe Schitino Silva de Mello1
1. Introdução. 2. A teoria do mínimo existencial como elemento de
revisão dos contratos bancários. 3. Fundamentos teóricos do
princípio da dignidade da pessoa humana em tema de
superendividamento bancário. 4. Autonomia da Vontade x
Dirigismo Contratual. 5. Função econômica dos bancos x Função
social dos contratos. 6. Superendividamento bancário e sua
interpretação jurisprudencial. 7. Conclusão.
RESUMO
O presente artigo busca a análise deste fenômeno jurídico ensejador de
revisão dos contratos bancários com base na lesão ao princípio da dignidade da pessoa
humana, consagrado na Carta Política de 1988. A jurisprudência brasileira começa
timidamente a quebrar o dogma do princípio da autonomia da vontade contratual,
impedindo-se descontos superiores a 30% dos rendimentos de correntistas, tomadores
de empréstimos e usuários de cartão de crédito, assegurando seus alimentos,
imprescindíveis a existência do indivíduo.
1. INTRODUÇÃO
Mergulhado em sucessivas e tenebrosas crises econômicas, o Brasil
ansiava por mudanças objetivando o efetivo controle da recessão e inflação galopante
que alimentava, todavia, uma ciranda de estagnação financeira e desemprego recorde,
que foi possível graças ao processo de fortalecimento da economia brasileira no começo
dos anos 90, após inúmeras tentativas frustradas, conduzidas por planos econômicos
fracassados de atingir a tão sonhada estabilidade da moeda, bem como o combate a
inflação. O Plano Real instituído pela Lei n° 9.069, de 29 de junho de 1995 inaugurou
uma nova etapa no país de estabilidade econômica da moeda, trazendo a esperança de
alívio a milhões de cidadãos brasileiros.
1 Artigo científico apresentado no curso de Pós-Graduação em Direito Civil Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Nova Friburgo – RJ, exigido como trabalho de avaliação.
2
A partir da desindexação da economia, a busca do equilíbrio fiscal, a
abertura econômica, a manutenção do câmbio valorizado e o aumento da taxa básica de
juros, com a proposta de financiamento dos gastos de governo e redução da política de
financiamentos internacionais do Fundo Monetário Internacional, fato que, por sua vez,
gerava um aumento significativo na inflação, introduzindo um recolhimento
compulsório de valores ao Banco Central, reduzindo, no começo, a disponibilidade de
dinheiro para empréstimos e financiamentos entre os bancos, as instituições bancárias
do país cresceram num patamar jamais visto na história econômica brasileira,
aumentando, de forma significativa, seu lucro líquido, ao adotar uma política agressiva
de captação de correntistas, espalhando pelo território nacional milhares de agências
bancárias em busca do crédito a todo custo.
Com os primeiros sinais de melhoria da economia brasileira na
apresentação do quadro de estabilização da nova moeda, despertou-se, todavia, um
espírito consumista na população, forçando a classe média a aquisição de bens de valor
elevado, ao financiar compra de veículos e imóveis, utilizando como instrumento, o
saque dos valores depositados nas cadernetas de poupança e no Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), trazendo um estado de ânimo exacerbado com o controle da
inflação e a falsa impressão de que não era necessário a outrora preocupação com este
fantasma que assolou o país por décadas e governos.
No fim dos anos 90 e início dos anos 2000, os bancos popularizaram o
fornecimento de crédito, abrindo-se a possibilidade de celebração de contratos bancários
por parte das classes menos favorecidas (C e D), com a finalidade de aumentar ainda
mais a captação de recursos monetários, enfatizando-se a complexa operação do spread
bancário, conforme aduz o economista Bacha:
“Os bancos comerciais são intermediários financeiros que captam
recursos monetários de certos agentes econômicos e emprestam esses
recursos a outros agentes econômicos. Esses agentes econômicos são
indivíduos, empresas, governos e setor externo. Nessas operações, duas
categorias de taxas de juros nominais surgem: taxa de juros de captação
por parte dos bancos e a taxa de juros de empréstimos. Entre a taxa de
juros de captação e a de empréstimo surge o spread bancário. Esse spread
3
é um percentual que os intermediários financeiros adicionam ao custo de
captação do dinheiro de modo a cobrir suas despesas administrativas, os
impostos, ter provisão para o risco de inadimplência e obter o lucro.2
Este fenômeno de popularização do crédito ora disponibilizado pelas
instituições financeiras, trouxe problemas significativos, mormente, à população
brasileira de baixa renda, público alvo dos bancos a qual se imprimiu pesadas
estratégias de marketing no mercado para conquistar clientes, eis que esta parcela estava
desacostumada a efetuar operações de financiamentos, cartões de crédito e de cheque
especial, não se importando ou demonstrando ignorância com os elevados juros ora
avençados, acarretando um estado de vulnerabilidade econômica ao indivíduo,
acompanhada de negativações nos órgãos protetivos de crédito, descontos drásticos e
automáticos em contas salário ou corrente, ajuizamento de ações de cobrança,
monitórias e execuções, com perdas de bens e comprometimento dos alimentos dos
endividados.
Sensibilizada com tais desequilíbrios impostos pelos bancos aos clientes,
a jurisprudência pátria começou a mitigar o princípio da autonomia da vontade nas
relações contratuais, não permitindo descontos em conta corrente de forma ilimitada e
sem observância ao mínimo existencial para resguardar, dignamente seu sustento, sob
pena de violação aos princípios fundamentais do sistema jurídico, especialmente, o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Considerando que o salário do indivíduo é fonte mantenedora destes
preceitos, tem o Juiz, o poder-dever de intervir na presente relação contratual de modo a
restabelecer o equilíbrio entre as partes, modificando-se as cláusulas nos termos do
Código de Defesa do Consumidor, impondo a jurisprudência, o não comprometimento
do limite superior a trinta por cento do salário ora percebido, conforme disposto no
artigo 1° e 2°, § 2° inciso I da Lei n° 10.820/2003.
2 BACHA, Carlos José Caetano. Macroeconomia Aplicada à Análise da Economia Brasileira, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, pág. 116. Disponível na Biblioteca Eletrônica <http://books.google.com.br/> Acesso em 29 de setembro de 2010.
4
2. A TEORIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL COMO ELEMENTO DE REVISÃO DOS CONTRATOS BANCÁRIOS
É preciso não perder de vista - além da Teoria do Mínimo Existencial
como elemento de revisão dos contratos bancários objetivando seu equilíbrio - a
importância da Teoria do Dirigismo Contratual concernente a hodierna intervenção do
Estado nas relações jurídico-contratuais, resguardando-se, todavia, os preceitos
protetivos dos interesses coletivos, protegendo o mais fraco do império do mais forte e
poderoso, minimizando-se as desigualdades entre as partes a fim de garantir à efetiva
alteração contratual na hipótese de onerosidade excessiva sobrepondo-se a Teoria da
Autonomia da Vontade.
Paralelo a tais conceitos, conjuga-se a Teoria do Dirigismo Contratual
com a Teoria do Mínimo Existencial, a qual se garante, com arrimo no princípio da
dignidade da pessoa humana, um direito ao mínimo de existência a ser tutelado pelo
Poder Judiciário, assegurando suas necessidades básicas de cunho pessoal.
Há de convir que a celebração de um contrato bancário abusivo, com a
implementação de cláusulas leoninas e juros exorbitantes, negando vigência de forma
corriqueira ao direito à informação (arts. 6°, III e 54 § 3° e 4° do CDC) acerca das
cláusulas padrão dos contratos de adesão depositados em cartório de registro de títulos e
documentos, coloca o cidadão hipossuficiente em posição difícil, sem o devido
atendimento, apto a resguardar seu sustento, correspondendo este conceito, um
fracionamento da dignidade da pessoa humana.
Para Carlos Roberto “constata-se, então, que o Poder Judiciário deve
garantir as condições materiais básicas de existência de toda e qualquer pessoa,
porquanto estas estão ligadas à fração nuclear da dignidade da pessoa humana, um dos
princípios fundamentais da República Federativa do Brasil”3, garantindo-se o bem estar
e a Justiça Social.
3 BARROS, Carlos Roberto Galvão. A eficácia dos direitos sociais e a nova hermenêutica constitucional, São Paulo: Editora Biblioteca 24x7, Seven System Internacional, 2010, pág. 207. Disponível na Biblioteca Eletrônica <http://books.google.com.br/> Acesso em 2 de outubro de 2010.
5
3. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM TEMA DE SUPERENDIVIDAMENTO BANCÁRIO
Princípio imprescindível a existência humana, traduz-se na consciência
de máxima proteção dos indivíduos, ganhando-se contorno através da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada no dia 26 de agosto de 1789.
Este diploma legal serviu como inspiração para elaboração da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, emanada na Convenção Européia de Proteção dos
Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem.
Não constitui demasia afirmar que tal princípio expresso no artigo 1°, III
da Constituição Federal, construído com a finalidade de introduzir no ordenamento,
instrumentos de coibição de barbáries aos indivíduos ocorridas, todavia, em conflitos
mundiais, mostrou-se importante na repressão de imoralidades econômicas, atentatórias
a sua existência e bem estar praticadas por instituições financeiras.
Com efeito, assevera Alexandra Cristina, citando o mestre Vieira de
Andrade que hoje é “entendimento comum que os direitos fundamentais são os
pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, tanto para o indivíduo
como para a comunidade: o indivíduo só é livre e digno numa comunidade livre; a
comunidade só é livre se for composta por homens livres e dignos.”4
Com este fundamento, o caput do artigo 170 da Constituição Federal
assevera que o desenvolvimento de qualquer atividade econômica deve, via de regra,
observar os preceitos da existência digna, como postulado do Estado Democrático de
Direito, inserindo-se todavia, a defesa do consumidor na proteção ao disposto no artigo
1°, III, atingindo-se a Justiça Social, diante das lições doutrinárias em questão, citando o
nobre ensinamento da professora Maria Celina Bodin de Moraes acerca do princípio
constitucional em exame:
4 PEZZI, Alexandra Cristiana Giacomet. Dignidade da Pessoa Humana: mínimo existencial e limites à tributação no estado democrático de direito, Curitiba: Editora Juruá, 2008, pág. 28. Disponível na Biblioteca Eletrônica <http://books.google.com.br/> Acesso em 3 de outubro de 2010
6
“O princípio constitucional visa garantir o respeito e a proteção da
dignidade humana não apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não
degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de garantias à integridade física
do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que
contém os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a
completa transformação do direito civil, de um direito que não mais encontra nos
valores individualistas de outrora o seu fundamento axiológico.”5
Nesse sentido, posiciona-se a doutrina em estudo sobre a vulnerabilidade
humana nas relações consumeristas, especialmente em matéria econômica a qual o
poder constituinte originário se refere, verbis:
“Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade humana será
tutelada prioritariamente, onde quer que ela se manifeste. De modo que terão
precedência os direitos e prerrogativas de determinados grupos considerados, de
uma maneira ou de outra, frágeis e que estão a exigir, por conseguinte, a
especial proteção da lei. Nestes casos estão as crianças, os adolescentes, os
idosos, os portadores de deficiências físicas e mentais, os não-proprietários, os
consumidores, os contratantes em situação de inferioridade, as vítimas de
acidentes anônimos e de atentados a direitos da personalidade, os membros da
família, os membros de minorias, dentre outros.”6
Em que pese à escolha do legislador constituinte originário pela adoção
do princípio da livre iniciativa, base do capitalismo mundial – liberdade de produção de
bens e serviços com assunção de riscos por parte do empresário – este não pode
sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana em sede de contratos bancários,
exigindo-se do intérprete a devida aplicação razoável, sob a ótica da hermenêutica,
compelindo a busca desenfreada de lucro e benefício pessoal daquele que exerce
atividade econômica.
Não obstante o consagrado Código de Defesa do Consumidor,
instrumento importantíssimo de tutela jurídica contra as arbitrariedades perpetradas aos
5 ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso de Direito do Consumidor, Barueri, SP: Manole, 2006, pág. 3. Disponível na Biblioteca Eletrônica <http://books.google.com.br/> Acesso em 4 de outubro de 2010. 6 Idem.
7
hipossuficientes, o país não dispõe de uma norma jurídica disciplinadora da matéria
(superendividamento bancário), ficando o consumidor de boa-fé ora prejudicado a
mercê da interpretação das normas por parte dos tribunais, a qual se garante, em grande
parte dos casos, o básico para sobrevivência digna em face do direito de crédito das
instituições financeiras.
O Direito começa a enxergar tal problema aplicando-se a contestada
regra do ativismo judicial, enfatizando-se, todavia, aspectos sociológicos,
comportamentais, ideológicos e políticos, numa visão progressista e de razoabilidade e
sem dogmatismos.
4. AUTONOMIA DA VONTADE X DIRIGISMO CONTRATUAL
É cediço que o contrato se expressa no mundo jurídico como declaração
de vontade, possuindo força obrigatória, mediante o consentimento das partes ora
contratantes, consumando-se os ideais de liberdade de contratar, criando-se regras e
vinculando-as.
A doutrina ressalta que a norma jurídica não funciona como instrumento
impositivo as partes, compelindo-as a contratar, salvo em condições excepcionais
escolhidas pelo legislador (ex: serviços públicos concedidos), conforme os doutos
ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira, analisando o princípio da liberdade de
contratar:
“A liberdade de contratar espelha o poder de fixar o conteúdo do contrato,
redigidas as suas cláusulas ao sabor do livre jogo das conveniências dos
contratantes. De regra, estes lhe imprimem a modalidade peculiar ao seu
negócio e atribuem ao contrato redação própria, estipulando condições, fixando
obrigações.”7
O contrato traduz-se em elemento de vontade, conforme os ditames da
norma, sendo inadmissível sua não observância, sob pena de imposição de gravosas
penalidades contratuais, pelo simples fato de que o contrato está ligado à autonomia da
vontade, ordem pública e os bons costumes, fortalecendo-se com o individualismo do
7 In Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro, RJ: Forense, 2000. p. 10.
8
século XIX, a qual se sustenta que a mais ampla liberdade de contrato advém deste
princípio (autonomia da vontade), conferindo aos indivíduos o devido ajuste de
cláusulas nas relações jurídico-contratuais, firmando-se o preceito de que o juiz não
poderia interferir na presente avença, tendo em vista a incompatibilidade com o referido
princípio.
O processo evolutivo do capitalismo trouxe distorções, impondo-se
imoralidades econômicas, desvantagens e desproporcionalidades exageradas e
defasagens entre os contratantes em divergência, neste caso, com o postulado da
dignidade da pessoa humana e da Justiça Social, bem como situações de imprevisão que
possam ocorrer no curso da avença.
O direito moderno começou a construir uma concepção, a partir de tais
distorções, de que o Estado poderia intervir nas relações jurídico-contratuais nos caos de
desvantagem exagerada e onerosidade excessiva, criando-se a Teoria do Dirigismo
Contratual ou da intervenção do Estado na vida do contrato a qual não se admite a
execução do contrato na hipótese de dano a parte prejudicada, objetivando seu
equilíbrio, conforme disposto nos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil.8
Caio Mario relata este importante momento que revolucionou a ótica dos
contratos em detrimento a vetusta teoria da autonomia da vontade:
“Este movimento intervencionista ganha corpo, na medida em que
aumentam a extensão e a intensidade das normas de ordem pública e
chega a inspirar em juristas apegados às noções tradicionais a crença no
desprestígio ou mesmo na morte contrato (André Toullemon, Gaston
Morin, Barreyre), por não admitirem uma vontade contratual que não
8 Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002: “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.”
9
seja filha da plena liberdade. Há, porém, um desvio de perspectiva. Não é
o fim do contrato, porém um capítulo novo de sua evolução, já que,
através de sua longa vida, tem ele passado por numerosas vicissitudes.
Esta a fase atual. Outras ainda hão de vir, sem que o jurista de hoje possa
indicar o seu rumo ou a sua tônica, se o dirigismo exacerbar-se-á mais
ainda, ou se o princípio da autonomia da vontade, como que num
movimento pendular, retomará posição antiga, reconquistando terreno
perdido.”9
Forçoso reconhecer que esta teoria, sob a luz do superendividamento
bancário, ratifica o hodierno e inegável fenômeno de publicitação do contrato,
mitigando-se o princípio da autonomia da vontade em nome da ordem pública, com
escopo de coibição de condutas abusivas e desleais, a qual se insere o consagrado
Código de Defesa do Consumidor.
5. FUNÇÃO ECONÔMICA DOS BANCOS X FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
Em que pese a importância e a força do instituto em estudo, o
superendividamento bancário como causa de revisão de contratos no âmbito das
instituições financeiras, ainda encontra óbice na jurisprudência quanto a sua
aplicabilidade, com a devida vênia, diante das posições ortodoxas e frias acerca da
conflituosidade com o princípio constitucional da livre iniciativa (art. 170 caput da
CF/88)10, limitadoras da interpretação quanto a aceitação da função social dos contratos
na atividade econômica dos bancos em prol do sistema financeiro.
9 Idem – pág. 13. 10 CF/88: (...) Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; (...)
10
Podemos citar a decisão prolatada pela 5ª. Turma do Egrégio Tribunal
Regional Federal da 1° Região, ainda inserida nesta dogmática da imutabilidade dos
contratos bancários em razão do princípio constitucional da livre iniciativa e liberdade
econômica, transferindo o ônus para o consumidor no sentido de buscar outras
instituições financeiras com juros menores segundo as regras do Banco Central do
Brasil (BACEN):
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGALIDADE DE ALTERAÇÃO UNILATERAL DE TARIFAS BANCÁRIAS - CEF . 1. A União é parte ilegítima para discutir a legalidade de reajuste de tarifas bancárias aplicadas pela CEF. 2. A Resolução 2303/96 do BACEN não determinou o reajuste de tarifas, mas apenas autorizou que as instituições financeiras as reajustassem livremente, sem embargo das normas e princípio regentes dos contratos . 3. O reajuste de tarifas é feito a partir de cláusula contratual que expressamente prevê a aceitação de valores variáveis de acordo com custos flutuantes, nada havendo de irrazoável ou ofensivo ao consumidor. 4. Todo reajuste de tarifa, pelos termos da própria resolução, precisa ser comunicado com 30 dias de antecedência ao consumidor, o que lhe dá tempo mais que suficiente para manter sua adesão ao contrato ou buscar outra instituição com custos menores. 5. Seria descabido o Judiciário proibir o reajuste de tarifas, recriando o tabelamento econômico que não é aceitável em vista do princípio de livre iniciativa e da própria liberdade econômica que caracterizam nosso sistema . 6. Os consumidores de serviço bancário não são desprovidos de raciocínio, pelo contrário, em sua maioria são pessoas de mediano conhecimento e que, por isso mesmo, sabem muito bem da existência de tarifas bancárias que são eventualmente reajustadas, em todos os bancos, o que leva à conclusão de não poderem dizer que foram enganados ou lesados pela CEF. 7. Só não se admite que as tarifas sejam reajustadas de forma abusiva e injustificada, mas é exatamente para isso que a resolução do BACEN determina sua afixação em quadro, publicidade e, na hipótese de reajuste, conhecimento prévio de 30 dias, o que dá a chance ao consumidor de discutir judicialmente o reajuste de cada tarifa, que se mostre particular e especificamente ilegal ou excessivamente oneroso, sem embargo de poder simplesmente mudar para um banco com serviços mais baratos. 8. Apelação improvida (AC - APELAÇÃO CIVEL – 200101000431328 - Relator(a) JUIZ FEDERAL CESAR AUGUSTO BEARSI (CONV.) - TRF1 - Órgão julgador - QUINTA TURMA - DJ DATA:08/03/2007 PAGINA:101).
Ora, os princípios constitucionais da livre iniciativa e da liberdade
econômica estabelecidos no artigo 170 da Carta Política não podem servir para legitimar
condutas desarrazoadas e desvantagens exageradas em face do consumidor, eis que o
mesmo disposto constitucional erige como postulado da ordem econômica, a defesa do
consumidor, destacando-se o artigo 6°, V do Código de Defesa do Consumidor a qual se
garante a este a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas, lesivas aos princípios consumeristas da transparência – a
11
parte tem o dever de informação das questões importantes dentro do contrato a partir da
celebração até a execução – e justiça contratual – relação de igualdade nas relações
contratuais, com objetivo de sanar eventuais injustiças, trazendo equilíbrio ao contrato
na distribuição equânime dos riscos e ônus da avença.
Ademais, a Resolução n° 2.303/1996 – citada na jurisprudência em
destaque - autorizativa de livre reajuste de tarifas da lavra do Banco Central do Brasil
(BACEN) não tem o condão, ainda assim, de impor tal ônus ao consumidor, pelo
simples fato de grande parte das instituições financeiras, descumprirem o princípio da
informação, consagrado no Código de Defesa do Consumidor (art. 6°, III), não afixando
em local visível nas agências bancárias e com letra legível a tabela de tarifas, conforme
disposto na Resolução n° 3.518/2007 editada, no entanto, pelo mesmo BACEN (art. 9° e
incisos), ficando o usuário, desprotegido em face de tamanha abusividade, a ser
comprovada, a posteriori, com a chegada dos extratos e boletos bancários nas suas
respectivas residências.
Os bancos são empresas comerciais com escopo de mobilização do
crédito, recebendo por modalidade de depósito, movimentando capital e realizando
empréstimos de valores, obedecendo-se as regras preestabelecidas pelo BACEN, órgão
gestor do Sistema Financeiro Nacional (art. 192 da CF/88).
Impende ressaltar que os bancos também exercem uma função
econômica e social, promovendo-se a circulação da riqueza, o desenvolvimento
equilibrado do sistema financeiro e do país, transcendendo as relações de caráter
privado, utilizando-se o crédito em benefício das empresas e comércios, a qual se
permite, todavia, a utilização de capital, comprometendo-se ao pagamento futuro.
Paralelo a este sistema, temos a função social dos contratos que opera
como um instrumento de controle, com grande influência na teoria da autonomia da
vontade contratual e da força obrigatória, traduzindo-se na preocupação do contrato com
o meio econômico social a qual esteja inserido, mitigando o princípio do pacta sunt
servanda.
12
Neste sentido é magistral a lição de Rodrigo Mazzei sustentando que “o
princípio da função social tem por objetivo proteger a sociedade, de forma
indeterminada, das conseqüências prejudiciais que a relação negocial possa causar (...)
Assim sendo, o contrato está comprometido com a sua funcionalização, ou seja, deverá
cumprir o seu objetivo próprio de circulação de riquezas (função), tendo em vista a
coletividade e a promoção do bem comum (social).”11, contrapondo-se ao
individualismo contratual sem consideração ao conteúdo e a máxima proteção ao
privado.
Após a promulgação da Constituição de 1988, mostra-se descabida
quaisquer interpretações em prol do conceito individualista do contrato, ratificadora das
práticas abusivas por parte dos bancos, acarretando superendividamento ao usuário dos
serviços em flagrante ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em
vista a evolução do sistema jurídico a qual não se permite a prevalência do privado,
sobrepondo, via de regra, a função social dos contratos, pois segundo Paulo Nalin,
insigne mestre estudioso da escola de Pietro Perlingieri:
“O intérprete deve, inicialmente, indagar se o contrato celebrado resguarda tais
valores existenciais, para, em seguida, decidir sobre sua eficácia patrimonialista.
O tema enseja considerações de maior fôlego, não somente no sentido da
despatrimonialização do Direito Civil, mas sobretudo, quanto a uma nova
concepção estrutural e conceitual dos direitos e deveres existentes entre credor e
devedor. (...) Todavia, é oportuno frisar, neste momento inicial, que ler o
Código Civil, à luz da Constituição, encarta a função, aqui empregada de atual
paradigma do contrato. Implica o distanciamento do individualismo e da
patrimonialidade contratual, justificada no Código Civil e que avança, não em
sentido de “revogar” tal opção ideológica do legislador da época, mas no de
recolocá-lo na moldura dos direitos fundamentais”12
Esta teoria critica o posicionamento em primeiro plano das leis
infraconstitucionais, deixando a interpretação da Constituição para segundo plano, tais
11 MAZZEI, Rodrigo. Questões processuais do novo código civil, Barueri – SP: Manole, 2006, p. 319. Disponível na Biblioteca Eletrônica <http://books.google.com.br/> Acesso em 11 de outubro de 2010. 12 NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional, Curitiba – PR: Juruá, 2006, pág. 36 Disponível na Biblioteca Eletrônica <http://books.google.com.br/> Acesso em 12 de outubro de 2010.
13
como dignidade da pessoa humana e justiça social, ficando o intérprete ainda preso,
com perdão da redundância ao dogmatismo, fomentando-se em muitos casos, a
desigualdade ao negar na interpretação do contrato a devida adequação aos preceitos
constitucionais.
6. SUPERENDIVIDAMENTO BANCÁRIO E SUA INTERPRETÇÃO JURISPRUDÊNCIAL
O fenômeno do superendividamento bancário começou a ganhar
importância no mundo jurídico a partir dos inúmeros casos de grave inadimplência por
parte dos correntistas, comprometedora das necessidades básicas do indivíduo,
ofendendo-se o princípio da dignidade da pessoa humana.
Todavia, o usuário/correntista chega a situação desesperadora de possuir
débitos superiores as suas receitas para tentar quitar suas dívidas, tendo como premissa
os débitos vencidos e vincendos em razão de redução drástica dos recursos financeiros
por fatos imprevisíveis alheios a sua vontade ou acúmulo incomum de dívidas,
colocando em risco seus alimentos.
Exige-se para caracterização do superendividamento do consumidor
junto as instituições bancárias, o princípio da boa-fé objetiva, ou seja, o agir de forma
honesta, correta e leal, adotando-se uma interpretação razoável para o contrato,
limitador do princípio da autonomia da vontade, força obrigatória dos contratos,
compelindo-se o abuso de direito.
Assevera Marcio Mello Casado no artigo de sua autoria publicado na
Revista de Direito do Consumidor n° 55, ano 14, RT, 2005, intitulado “Os princípios
fundamentais como ponto de partida para uma análise do sobreendividamento no
Brasil”, sobre o instituto em estudo em relação à teoria contratual da boa-fé, citado por
Flávia Franco do Prado Carvalho no artigo “A co-responsabilidade do fornecedor de
crédito diante do superendividamento do consumidor”, publicado na Biblioteca Digital
Jurídica do Superior Tribunal de Justiça que “desde já é necessário estabelecer que o
sobreendividado é aquele que assume compromissos de boa-fé, objetivamente
considerada, sempre contando que poderá adimplir as obrigações. Ele não consegue ou
14
não pode mais, cumprir com determinados compromissos assumidos em face de
elementos fáticos sobre os quais não tem controle (...) é um fenômeno decorrente da
sociedade de massas, onde o consumo é cada vez mais incentivado, através de
publicidades agressivas, geradoras de falsas necessidades.”13
O ponto central da presente discussão reside no princípio magno da
equidade em favor do consumidor, conforme aduz o artigo 4° do CDC, impondo a
norma jurídica em exame, o máximo equilíbrio nas relações jurídicas entre consumidor
e fornecedor de forma cogente, afastando-se somente o desequilíbrio contratual,
independente de ato reprovável e abuso de poder econômico por parte do fornecedor de
serviço.
Em que pese à adesão do usuário/correntista ao presente contrato lesivo,
exige-se neste caso uma lesão efetiva a ordem pública, caracterizando-se onerosidade
excessiva e abusiva na qual não se compadece com o Código de Defesa do Consumidor,
não prevalecendo o princípio da autonomia da vontade, pois os contratos, à luz do
conceito hodierno, passaram a atender os interesses coletivos em relação à função
meramente privatística dos contratos.
Não obstante os freqüentes abusos contratuais na imposição de
obrigações iníquas, acarretando sério desequilíbrio, interferindo na questão social e
coletiva, imperando-se, em muitos casos, as pretensões do mais forte sobre o mais fraco,
a jurisprudência pátria começou a adotar poscionamento menos privatista, legitimador
do princípio da autonomia da vontade, fixando um patamar não superior a 30% (trinta
por cento) para efetuar descontos de valores nos contratos de conta corrente dos
usuários/correntistas em decorrência de mútuos bancários (empréstimo pessoal), em
respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
A dificuldade para resolução deste imbróglio reside no fato de ainda
inexistir um regramento específico para disciplinar o superendividamento bancário,
desafiando todo ordenamento jurídico, uma interpretação analógica e extensiva,
13 CARVALHO, Flávia Franco do Prado. A co-responsabilidade do fornecedor de crédito diante do superendividamento do consumidor. Biblioteca Digital Jurídica, 2008. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/> . Acesso em: 14 de outubro de 2010.
15
compatibilizando a hermenêutica com os demais dispositivos e institutos do direito
consumerista, nos termos do artigo 4° e 5° da Lei de Introdução ao Código Civil14,
amenizando as conseqüências danosas ao consumidor que se vê atingido por dívidas
impagáveis atentatórias às necessidades básicas, possibilitando o aumento do consumo,
imprescindível para o crescimento da atividade econômica.
É preciso esclarecer que o eminente Procurador da República, Dr.
Marcelo Ribeiro de Oliveira, lavrou, nos autos do Procedimento Administrativo Cível
n° 1.22.002.00341/2008-16, em tramitação no Ministério Público Federal no município
de Uberlândia – MG, recomendação endereçada a CREDIMED e a Universidade
Federal do Triangulo Mineiro (UFTM), entendendo que a não observância do patamar
de 30% (trinta por cento) para desconto dos valores dos servidores, atinentes a
empréstimo pessoal ora avençado, configura abusividade na relação de consumo,
violando-se o disposto no artigo 6°, VI, 39, inciso V e 51, inciso IV da Lei n°
8.078/1990, por desvantagem exagerada e desequilíbrio contratual.15
A jurisprudência, fonte do Direito, segundo Miguel Reale, apresenta-se
como “forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição
em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais” a qual “os juízes são
chamados a aplicar o Direito aos casos concretos, a dirimir conflitos que surgem entre
indivíduos e grupos”, concluindo-se que “o juiz deve, evidentemente, realizar um
trabalho prévio de interpretação das normas jurídicas, que nem sempre são suscetíveis
de uma única apreensão intelectual.”16
14 Decreto-Lei n° 4.657/1942: “Art. 4° Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Art. 5° Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum.” 15 O ilustre Procurador da República defendeu a legitimidade do Ministério Público Federal para atuar em matérias atinentes ao Sistema Financeiro Nacional na forma do artigo 5°, inciso II, alínea “c” da Lei Complementar n° 75/93 e direito do consumidor conforme disposto no artigo 6°, inciso VII do Código de Defesa do Consumidor, chegando-se a conclusão que os contratos de financiamento celebrados entre CREDIMED e os servidores da Universidade Federal do Triangulo Mineiro (UFTM) não atendem o postulado consagrado na legislação consumerista, caracterizando-se superendividamento bancário, os descontos efetuados na ordem superior a 30% dos vencimentos dos servidores. Disponível em: <http://ccr3.pgr.mpf.gov.br/atuacao_mpf/recomendacoes/recomendacoes_2009/Recomendacao%2004%20-%20PRM-Uberaba.pdf> Acesso em: 18 de outubro de 2010. 16 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Saraiva, 1998, pág. 167.
16
Os tribunais pátrios encontraram uma solução de limitação não superior a
30% dos descontos a serem efetuados nas contas correntes dos consumidores em
matéria de mútuo (empréstimo pessoal), entendendo o Poder Judiciário que assim
pudesse solucionar o problema do fenômeno social da inadimplência.
O excelente aresto prolatado pela Egrégia 2ª. Turma Recursal dos
Juizados Especiais Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, entendeu que os
juros fixados de forma desproporcional acima dos limites toleráveis, configurou-se
manifesto intuito de lucro em detrimento ao consumidor hipossuficiente, chamando a
atenção sobre a possibilidade do Poder Judiciário de efetuar a competente revisão
contratual nos termos do artigo 6°, inciso VI do Código de Defesa do Consumidor e
abordando com maestria a possibilidade do magistrado invocar, como mecanismo de
controle dos contratos, os preceitos da boa-fé objetiva, restabelecendo o equilíbrio
contratual.17
As cláusulas extorsivas e abusivas colocadas a frente dos
correntistas/usuários, não conferem a possibilidade de discussão, operando-se, o pacta
sunt servanda na sua essência, absolutamente ultrapassado sob o prisma da novel
17
JUROS. PRESTAÇÕES DESPROPORCIONAIS ACIMA DA TOLERÂNCIA. FALTA DE EQUIVALÊNCIA OBJETIVA ENTRE PRESTAÇÕES E ENCARGOS, LUCRO E PROVEITO DO CRÉDITO PELO CONSUMIDOR. RELATIVIZAÇÃO DA FORÇA OBRIGATÓRIA DO CONTRATO QUE SE IMPÕE PELO INTERVENCIONISMO ESTATAL JUDICIAL. IMPROCEDÊNCIA DA ADIn 2591 PONTENCIALIZA A APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR A TODAS AS OPERAÇÕES BANCÁRIAS. REVISÃO CONTRATUAL com base no art. 6, inciso V e 51, inciso IV do CDC C.C. ARTIGO 462 DO CC 2002, CONTRATO PRELIMINAR QUE PODERIA AFASTAR O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR. ONEROSIDADE EXCESSIVA COMPROVADA. TEORIA DA LESÃO ENORME COMO CAUSA DA PROCEDÊNCIA DA REVISÃO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. DECRETO 22.626/33, ART. 11, NULIDADE DA CLAUSULA ONEROSA E DESVANTAJOSA. JUROS ESTIPULAÇÃO USURÁRIA PECUNIÁRIA OU REAL. USURA PECUNIÁRIA CARACTERIZADA. LEI 1.521/51, ART. 4º. MANUTENÇÃO DA RAZOABILIDADE E LIMITAÇÃO DE PRÁTICA DE JUROS PELOS ARTIGOS 161 DO CTN COMBINANDO COM 406 E 591 DO CC 2002. “A cláusula geral da boa-fé está presente tanto no Código de Defesa do Consumidor (arts. 4°, III, e 51, IV, e § 1°, do CDC) como no Código Civil de 2002 (arts 113, 187 e 422, do CC/2002), que devem atuar em diálogo (diálogo das fontes, na expressão de Erik Jayme) e sob a luz da Constituição e dos direitos fundamentais para proteger os direitos dos consumidores (art. 7° do CDC). Relembre-se, aqui, portanto, do Enunciado de n. 25 da Jornada de Direito Civil, organizada pelo STJ em 2002, que afirma: ‘A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao Juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como exigência de comportamento legal dos contratantes.’ E sobre os deveres anexos de informação, de cooperação e de segurança ou cuidado com o nome, patrimônio e imagem do outro afirma em outro enunciado: ‘Em virtude do princípio da boa-fé, positivada no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa’. revisada para impor juros nos moldes dos artigos 406 e 591 do Código. (Processo n° 76420-5/2005 – 2ª. Turma Recursal Cível – Relator: Juíza Nicia Olga Andrade de Souza Dantas).
17
legislação consumerista, não observando a cláusula geral de tutela da personalidade,
construindo-se o princípio da dignidade da pessoa humana, pois, segundo Cezar Fiuza:
“A diferença entre o tratamento monista e uma cláusula geral de tutela da
personalidade como fonte de um direito geral e originário de personalidade
é fundamental. A teoria monista considera a personalidade como fonte de
um direito geral e originário de personalidade. Quando este direito for
violado em alguma situação existencial, como, por exemplo, um contrato
desequilibrado ou uma prisão injusta. Para os adeptos da cláusula geral de
tutela da personalidade, a personalidade seria um valor, ou o valor
supremo de uma sociedade democrática, do qual decorreria não só a
proteção a dignidade humana, mas também a promoção do ser humano.”18
Nesse sentido, a constitucionalização do direito civil tem papel
importantíssimo quanto à aplicabilidade do instituto, com a finalidade de atenuação do
caráter eminentemente privado dos contratos bancários, não podendo olvidar que este
fenômeno estuda a tutela das situações jurídicas existenciais como um valor inerente ao
homem, assegurando sua dignidade, erigindo-a como célula mater do direito civil.
A título de exemplo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
adotando este mecanismo de tutela das situações jurídico-existenciais do individuo,
prevalecendo sobre o princípio da autonomia da vontade e da força obrigatória
contratual, consagrou precedente importante contra as práticas abusivas dos bancos,
impedindo-se a retenção de salários e vencimentos – medida usual e comum praticada
pelas instituições financeiras – para quitação dos débitos em virtude da utilização de
cheque especial – espécie de contrato de empréstimo entre o correntista e o banco –
aplicando o disposto no artigo 649, inciso IV do Código de Processo Civil,
considerando-os imprescindíveis a existência do devedor e de sua família.19 20 21 22
18 FIUZA, Cezar. Direito Civil: Curso Completo. 11. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 175 Disponível na Biblioteca Eletrônica <http://books.google.com.br/> Acesso em 18 de outubro de 2010. 19
DANO MORAL. RETENÇÃO DE SALÁRIO PARA PAGAMENTO DE CHEQUE ESPECIAL VENCIDO. ILICITUDE. - Mesmo com cláusula contratual permissiva, a apropriação do salário do correntista pelo banco-credor para pagamento de cheque especial é ilícita e dá margem a reparação por dano moral. - Recurso não conhecido. (REsp 507044/AC, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/03/2004, DJ 03/05/2004, p. 150)
18
De fato, a teoria do mínimo existencial começou a estar presente na
jurisprudência como instrumento de tutela ao abuso de direito nas relações bancárias,
através da aplicação analógica da Lei n° 10.820/2003 (art. 6°, § 5°) – preocupada com
as estratégias agressivas de marketing implementadas pelos bancos ao prometer crédito
fácil ao consumidor de boa-fé, acarretando grave comprometimento de suas parcas
finanças, impulsionado por uma sociedade tipicamente consumista – dispondo acerca da
autorização para desconto de prestações em folha de pagamento para os empregados
regidos pela CLT – Consolidação das Leis do Trabalho.
Por isto, a interpretação analógica da norma em estudo, reforçou a
aplicação do artigo 649, inciso IV do Código de Processo Civil em face da
inadmissibilidade de retenção integral do salário por parte dos bancos, tendo em vista os
valores inadimplidos pelos correntistas, lecionando o preclaro jurista Marcelo Vicente
que “o método de interpretação analógica consiste na busca do sistema normativo, de
normas previstas e aplicáveis a casos assemelhados ou a matérias análogas, em razão da
ausência de regra precisa que regule a espécie sob análise. É a aplicação a um
determinado caso ou a uma determinada situação de normas inicialmente destinadas a
outras situações, mas que, por identidade de elementos, torna-se aplicável também a
estes. 23.
20 "Civil e processual. Ação de indenização. Danos morais. Apropriação, pelo Banco depositário, de salário de correntista, a título de compensação de dívida. Impossibilidade. CPC, art. 649, IV. Recurso especial. Matéria de fato e interpretação de contrato de empréstimo. Súmulas ns. 05 e 07 - STJ.(...) II. Não pode o banco se valer da apropriação de salário do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de compensar-se da dívida deste em face de contrato de empréstimo inadimplido, eis que a remuneração, por ter caráter alimentar, é imune a constrições dessa espécie, ao teor do disposto no art. 649, IV, da lei adjetiva civil, por analogia corretamente aplicado à espécie pelo Tribunal a quo. III. Agravo improvido" (AGA 353.291⁄PASSARINHO); 21 "Conta corrente. Apropriação do saldo pelo banco credor. Numerário destinado ao pagamento de salários. Abuso de direito. Boa-fé. Age com abuso de direito e viola a boa-fé o banco que, invocando cláusula contratual constante do contrato de financiamento, cobra-se lançando mão do numerário depositado pela correntista em conta destinada ao pagamento dos salários de seus empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao BNDES. A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no momento por ele escolhidos. Recurso conhecido e provido." (REsp 250.523⁄ROSADO); 22 "BANCO. Cobrança. Apropriação de depósitos do devedor. O banco não pode apropriar-se da integralidade dos depósitos feitos a título de salários, na conta do seu cliente, para cobrar-se de débito decorrente de contrato bancário, ainda que para isso haja cláusula permissiva no contrato de adesão. Recurso conhecido e provido." (REsp 492.777⁄ROSADO). 23 PIMENTA, Marcelo Vicente de Alkmim. Teoria da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 175. Disponível na Biblioteca Eletrônica <http://books.google.com.br/> Acesso em 19 de outubro de 2010.
19
A presente norma jurídica vem se notabilizando como um importante
instrumento de coibição as obrigações desproporcionais, irrazoáveis e abusivas,
operando-se a efetiva revisão dos contratos bancários em favor do consumidor.24
Registre-se, por oportuno, que a jurisprudência não reconhece a
legalidade da acumulação da comissão de permanência (mecanismo de correção
monetária do débito em atraso, semelhante à correção monetária) e correção monetária
propriamente dita (recomposição do crédito em decorrência da inflação). O
ordenamento jurídico determina nestes casos a revisão contratual, adotando-se o
disposto no artigo 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor, incluso no
microssistema de defesa contra o poder dos bancos.25
É preciso não perder de vista que as partes podem pactuar livremente os
termos da avença, em especial, as taxas de juros, ficando certo, desde já, que tais
cláusulas não podem apresentar ônus excessivos aos correntistas/usuários. Cabe ao
Poder Judiciário proceder à competente limitação das taxas de juros praticadas pelas
instituições financeiras, restabelecendo o equilíbrio contratual entre as partes. Pode-se
verificar então, que a douta jurisprudência brasileira mantém a aplicabilidade da teoria
da autonomia da vontade, de forma mitigada com os preceitos constitucionais atinentes
a defesa do consumidor, expressos no artigo 170, inciso V da Constituição, eis que
mesmo nos países que se adotou uma legislação protetiva ao superendividamento
bancário do correntista de boa-fé, não enseja, por si só, a nulidade de todo o contrato.
24 Lei n° 10.820/2003: “Art. 6o Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social poderão autorizar o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS a proceder aos descontos referidos no art. 1o desta Lei, bem como autorizar, de forma irrevogável e irretratável, que a instituição financeira na qual recebam seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos, quando previstos em contrato, nas condições estabelecidas em regulamento, observadas as normas editadas pelo INSS. (Redação dada pela Lei nº 10.953, de 2004) (...) 5o Os descontos e as retenções mencionados no caput deste artigo não poderão ultrapassar o limite de 30% (trinta por cento) do valor dos benefícios. (Incluído pela Lei nº 10.953, de 2004)” 25 Lei n° 8.078/1990: “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
20
A França enfrentou o problema do superendividamento bancário
instituindo a Lei n° 89/1010 de 31 de dezembro de 1989, com a finalidade de
equacionar os débitos dos consumidores, conferindo a estes a possibilidade de
apresentação de plano de recuperação, implementando adiamentos e escalonamento de
pagamento dos respectivos valores devidos, estipulando-se um prazo determinado para
redução ou abatimento das taxas de juros e remissão de valores. O sistema francês
instituiu uma comissão de superendividamento do consumidor inadimplente,
estimulando a composição amigável dos litígios, fixando o prazo de 60 dias para saldar
as dívidas, sob pena de insolvência.
Verifica-se nestes casos, em face da ausência de uma regulamentação
específica acerca do superendividamento bancário em flagrante ofensa ao princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, a efetiva aplicação do princípio da
razoabilidade, como mecanismo de coibição, inclusive, aos refinanciamentos
(empréstimos que oferecem vantagens falaciosas ao consumidor), bem como as
cláusulas autorizativas de desconto direto em conta corrente e folha de pagamento,
limitando-os em patamar não superior a 30%, reconhecendo-se a aplicação analógica do
artigo 11 caput do Decreto Federal 3.297/199926, regulamentador do artigo 45 da Lei n°
8.112/199027.
7. CONCLUSÃO
Não obstante o já consagrado Código de Defesa e Proteção ao
Consumidor, sustento neste artigo que os legisladores precisam pensar, com urgência,
uma legislação específica e protetiva aos males do superendividamento bancário,
comprometedores da vivificação do princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana, previsto no artigo 1°, inciso III da Carta Política.
26 Decreto Federal n° 3.297/1999: “...Art. 11. A soma mensal das consignações facultativas de cada servidor não pode exceder ao valor equivalente a trinta por cento da soma dos vencimentos com os adicionais de caráter individual e demais vantagens, nestas compreendidas as relativas à natureza ou ao local de trabalho e a vantagem pessoal, nominalmente identificada, de que trata o art. 15, § 1o, da Lei no 9.527, de 10 de dezembro de 1997, ou outra paga sob o mesmo fundamento...” 27Lei n° 8112/1990: “...Art. 45. (...) Parágrafo único. Mediante autorização do servidor, poderá haver consignação em folha de pagamento a favor de terceiros, a critério da administração e com reposição de custos, na forma definida em regulamento...”
21
O superendividamento bancário põe em risco, a consecução do mínimo
existencial como subprincípio da dignidade da pessoa humana, ligado a ótica do Estado
Social, a qual se assegura o mínimo das necessidades básicas inerentes ao ser humano,
impondo-se a possibilidade de implantação de mecanismos jurídicos para disciplina dos
consumidores endividados junto às instituições financeiras, a semelhança do arcabouço
jurídico regulatório das sociedades empresárias (Lei n° 11.101/2005) – recuperação
judicial e extrajudicial das empresas e falência – assegurando ao inadimplente a
possibilidade de apresentação de plano de recuperação e escalonamento de pagamento,
fixando um prazo para saldar as dividas sob pena de insolvência.
O consumidor endividado, a partir da apresentação do plano de
recuperação e de pagamento dos débitos pendentes ao Juiz, seria beneficiado pela
imediata exclusão do seu nome dos cadastros restritivos de crédito (SPC e SERASA),
bem como a suspensão das ações judiciais de cobrança da dívida em questão, podendo,
no entanto, restabelecer seu crédito e parte do seu salário anteriormente comprometido
com a dívida, para efetuar as despesas básicas (alimentação, saúde, educação, lazer,
aluguel, tarifas de água e energia elétrica e etc.), sendo vedado a assunção de dívidas de
caráter supérfluo dentro da esfera de subjetividade de cada individuo ou família,
analisada sobre o conceito social.
O Juiz analisaria, em princípio, o que seriam as despesas supérfluas
daquele individuo gravemente endividado e de sua família, levando em consideração o
tal conceito social daquela célula, fixando impedimento para assunção dessas dívidas,
comunicando aos órgãos de proteção ao crédito que ficariam incumbidos de informar ao
comércio as restrições impostas na decisão judicial. Os princípios da autonomia da
vontade contratual, da força obrigatória dos contratos, da livre iniciativa e liberdade
econômica, consagrados no artigo 170 da Constituição Federal não têm o condão de
legitimar condutas desarrazoadas, exigindo-se do intérprete a devida aplicação do
principio da razoabilidade, erigindo o artigo 6°, inciso V do Código de Defesa do
Consumidor, a modificação de cláusulas abusivas em razão de fatos de natureza
superveniente que as tornem excessivamente onerosas.
22
Em que pese à falta de uma regulamentação específica em matéria de
superendividamento bancário, a jurisprudência começou a suprir esta lacuna, aplicando-
se a interpretação analógica dos artigos 6°, § 1° da Lei n° 10.820/2003 e 11 do Decreto
Federal n° 3.297/1999, regulamentador do artigo 45, § único da Lei n° 8.112/90
(Estatuto do Servidor Público da União), compelindo descontos efetuados em
empréstimos consignados e pessoais superiores a 30 % dos rendimentos dos
correntistas, mitigando-se o vetusto princípio do pacta sunt servanda dos contratos em
favor do indivíduo endividado, como forma de harmonização dos tradicionais institutos
do direito civil com os princípios constitucionais vigentes e situações jurídico-
existenciais.
BIBLIOGRAFIA
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23
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