dissertação de mestrado_controladas e coligadas
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ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
ROBERTO CODORNIZ LEITE PEREIRA
O REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS POR
CONTROLADAS E COLIGADAS NO EXTERIOR:
Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2012
ROBERTO CODORNIZ LEITE PEREIRA
O REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS POR
CONTROLADAS E COLIGADAS NO EXTERIOR:
Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio
Vargas como requisito parcial para a obtenção de
título de MESTRE no Programa de Mestrado
Acadêmico em Direito e Desenvolvimento.
Professor Orientador: Eurico Marcos Diniz de Santi
Linha de pesquisa: Direito e Desenvolvimento
Econômico e Social
São Paulo
2012
PEREIRA, Roberto Codorniz Leite.
O Regime Brasileiro de Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e
Coligadas no Exterior: Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos / Roberto
Codorniz Leite Pereira. - 2012 fls. 257
Orientador: Eurico Marcos Diniz de Santi.
Dissertação (mestrado) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas.
1. Direito tributário - Brasil. 2. Direito internacional privado - Impostos. 3. Política
tributária - Brasil. 4. Concorrência. I. SANTI, Eurico Marcos Diniz de. II. Dissertação
(mestrado) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. III. O
Regime Brasileiro de Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e Coligadas
no Exterior: Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos
CDU 34::336.2(81)
ROBERTO CODORNIZ LEITE PEREIRA
O REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS POR
CONTROLADAS E COLIGADAS NO EXTERIOR:
Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio
Vargas como requisito parcial para a obtenção de
título de MESTRE no Programa de Mestrado
Acadêmico em Direito e Desenvolvimento.
Professor-orientador: Eurico Marcos Diniz de Santi
Linha de pesquisa: Direito e Desenvolvimento
Econômico e Social
O presente trabalho foi realizado com o apoio da
Fundação Getulio Vargas, por meio da bolsa Mário
Henrique Simonsen de ensino e pesquisa.
Data da aprovação: ___/___/___
Banca examinadora:
Prof. Dr. Eurico Marcos Diniz de Santi
(Orientador)
Prof. Dr. Carlos Ari Sundfeld
Prof. Dr. Luis Eduardo Schoueri
São Paulo
2012
Aos meus avós (Marina, Mário, Lorena e Tarquínio)
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, ao Professor Eurico Marcos Diniz de Santi, orientador deste
trabalho, por todos os conselhos e pelo direcionamento dado por ele à presente pesquisa.
Certamente, o seu papel foi fundamental para que eu pudesse mergulhar no universo empírico
no qual se respalda esta pesquisa. Nunca me esquecerei das suas lições, sobretudo, a mais
importante delas: Mudar o Brasil! Sim, nós podemos!
Agradeço aos meus queridos pais, Rosana e Roberto, que sempre me apoiaram e
acreditaram no meu sucesso profissional e acadêmico. Aos meus irmãos, Christian, Tiago e
Isabella, que eu tanto amo, sem dúvida o seu apoio foi fundamental. Aos meus amados avós,
aos quais dedico este trabalho, que sempre me trataram como um filho. Aos meus tios, em
especial Carmen e Adão, e aos meus primos.
Agradeço a todos os meus amigos com quem discuti este trabalho e que certamente me
ajudaram em muito na sua elaboração dando as suas ideias e sugestões de discussões. André
Janjácomo Rosilho, obrigado pela revisão, dicas e amizade de quase 17 anos. Os
pesquisadores do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF-FGV),
Frederico Bastos, Basile Christopoulos, Mariana Pimentel, Guilherme Bandeira, Daniel
Zugman, Eduarda Monteiro, Vanessa Rahal e Isaias Coelho (nosso amado profeta), do qual
tenho a honra de fazer parte, em especial, muito me auxiliaram. Devo fazer um agradecimento
em especial ao meu amigo, companheiro de mestrado, pesquisador do NEF e coordenador,
juntamente comigo, do Grupo de Estudos de Tributação Internacional do NEF-FGV, Dalton
Yoshio Hirata que muito me ajudou com as suas opiniões e a sua tranquilidade inabalável.
Agradeço a todos os meus colegas de mestrado, por toda a força, pelo espírito de
equipe e pela amizade que jamais será esquecida por mim.
O Professor Carlos Ari merece também os meus mais sinceros agradecimentos, não
apenas por compor a minha banca, mas, sobretudo, por ter sido um grande mestre na minha
vida, desde a graduação até as aulas do mestrado. Já se passaram 7 anos desde a sua primeira
aula na graduação da Direito GV. Espero, sinceramente, continuar aprendendo com as suas
lições.
O Professor Luis Eduardo Schoueri que, não apenas me acolheu em suas aulas na
FDUSP, mas também contribuiu em muito para o direcionamento dado ao presente trabalho,
merece, também, os meus agradecimentos.
Agradeço, também, ao Professor Marco Aurélio Greco pelas conversas, dicas e pela
entrevista. Em relação às entrevistas que me foram concedidas para a elaboração deste
trabalho, merecem o meu agradecimento todos os entrevistados, em especial Everardo Maciel,
Simone Dias Musa e Marcos Vinícius Néder.
Agradeço aos Professores Ronaldo Porto Macedo Jr., Salem Hikmat Nasser, Maíra
Machado, Oscar Vilhena Vieira, Bruno Salama, José Girardi Garcez, Luciana Gross e todos
os outros professores da Direito GV pelas aulas, ensinamentos e pela dedicação à nossa
escola.
Por fim, um agradecimento especial à minha namorada, Andressa, por todo apoio,
carinho e amor.
RESUMO
O presente trabalho é o resultado de uma pesquisa empírica que buscou reconstruir toda a
trajetória percorrida pela política pública que orienta o atual regime de tributação de lucros
auferidos no exterior por controladas e coligadas de empresas brasileiras com o objetivo de
compreender as razões que levaram o Brasil a adotar uma norma de antidiferimento
demasiadamente ampla, quando comparada às normas de natureza similar adotadas na
experiência internacional. Além disso, buscamos identificar a real extensão dos efeitos
econômicos ensejados pelo regime brasileiro, em especial, frente ao processo de
internacionalização produtiva que vem se fazendo cada vez mais presente na realidade de
diversas empresas de capital nacional. Partimos da hipótese de que o regime vigente afeta
negativamente às empresas que buscam internacionalizar parte da sua atividade produtiva. Os
resultados da pesquisa são de grande importância e nos ajudaram a compreender melhor as
causas de muitas das questões jurídicas que atualmente ocupam grande parte do debate
acadêmico no direito tributário brasileiro. Defendemos a ideia de que, se os efeitos do regime
brasileiro afetam negativamente a internacionalização produtiva, o regime poderá afrontar a
Ordem Econômica Constitucional.
Palavras-chave: Transparência Fiscal Internacional, Tributação do Lucro de Coligadas e
Controladas no Exterior, Política Tributária, OCDE, Concorrência, Concorrência Fiscal
Danosa, Desenvolvimento.
ABSTRACT
This thesis presents the conclusions of an empirical legal research that remade the path
followed by the public policy adopted by Brazilian government to tax corporate foreign
income in order to understand precisely the reasons that led Brazil to adopt an antideferral
rule that is broader that the Controlled Foreign Company (CFC) rules adopted world wide.
Besides, our objective was also to identify the economic effects on Brazilian transnational
companies arising from Brazilian CFC rules, regarding the increasing internationalization
process that Brazilian firms are making through in the past decade. We adopted the hypothesis
that Brazilian tax regime affects negatively transnational companies that aim to
internationalize part of their production. The outcomes of the present research are of a great
value to achieve a better understanding about the causes of many legal questions that are
currently being discussed among legal practitioners and scholars and faced by courts. Our
opinion is that, if the economic effects arising from Brazilian tax regime affects the
internationalization process of Brazilian firms, that may go against, in certain cases, the
economic order settled by our Constitution.
Key-words: CFC rules, Taxation, Corporate Foreign Income, Subsidiaries, Tax Policy,
Competition, Harmful Tax Competition, OECD, Development.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
I. Delimitação temática da pesquisa 13
II. Premissas metodológicas 17
III. Estrutura do trabalho 22
CAPÍTULO 1: TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO
REGIME DE TRANSPARÊNCIA FISCAL INTERNACIONAL 25
1.1. Notas introdutórias 25
1.2. A globalização e a mudança de concepção do Estado 26
1.3. O debate norte-americano: as origens históricas das CFC rules 30
1.3.1. Primeiras tentativas e alterações legislativas pré-1962 31
1.3.2. A alteração legislativa de 1962 (subpart f) 33
1.3.3. Subpart f: tendências posteriores a 1962 39
1.3.4. As exceções criadas às Foreign Sales Corporations (FSC) 41
1.4. O debate internacional: a concorrência fiscal danosa e as CFC rules 44
1.4.1. O projeto da OCDE sobre concorrência fiscal danosa 45
1.4.2. A concorrência fiscal danosa no direito comunitário europeu 55
1.5. Bases conceituais e teóricas do regime de transparência fiscal internacional 62
1.6. Conclusões da trajetória da evolução histórica do regime de transparência
fiscal internacional 66
CAPÍTULO 2: TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO NORMATIVA
DO REGIME DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS
NO EXTERIOR NO DIREITO BRASILEIRO 69
2.1. Notas introdutórias 69
2.2. A evolução do regime de tributação de lucros auferidos no exterior no
direito brasileiro 70
2.2.1. 1º Momento: territorialidade 70
2.2.2. 2º Momento: a Lei nº 9.249 72
2.2.2.1. O processo legislativo 72
2.2.2.2. Conclusões parciais – Lei nº 9.249/95 81
2.2.3. 3º Momento: a IN SRF nº 38/1996 82
2.2.4. 4º Momento: a Lei nº 9.532/1997 84
2.2.4.1. O processo legislativo 84
2.2.4.2. Conclusões parciais – Lei nº 9.532/97 90
2.2.5. 5º Momento: a Lei Complementar nº 104/2001 92
2.2.5.1. O processo legislativo 92
2.2.5.2. Conclusões parciais – Lei Complementar nº 104/2001 97
2.2.6. 6º Momento: a Medida Provisória nº 2.158-35/2001 98
2.2.6.1. O processo legislativo 98
2.2.6.2. Conclusões parciais – Medida Provisória nº 2.158-35/2001 101
2.2.7. 7º Momento: a IN SRF nº 213/2002 102
2.3. Quadro-resumo dos 7 momentos 103
2.4. Afinal, por que o regime brasileiro é diferente? 105
2.4.1. A primeira hipótese 106
2.4.2. A segunda hipótese 108
2.4.3. Conclusões parciais das duas hipóteses 109
2.5. Participação dos grupos de interesse na formulação da política tributária 111
2.6. Conclusões da trajetória da evolução normativa do regime de tributação de
lucros auferidos no exterior no direito brasileiro 112
CAPÍTULO 3: OS EFEITOS DO REGIME DE TRIBUTAÇÃO DE
LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR NA INTERNACIONALIZAÇÃO
PRODUTIVA DAS EMPRESAS DE CAPITAL NACIONAL 114
3.1. Notas introdutórias 114
3.2. Premissas conceituais do fenômeno da internacionalização 115
3.3. Internacionalização produtiva e desenvolvimento nacional 122
3.4. O diagnóstico da internacionalização produtiva no Brasil 126
3.5. A internacionalização é um objetivo buscado pelo Estado? 131
3.5.1. A internacionalização nas políticas industriais brasileiras 131
3.5.2. O papel do BNDES no financiamento da internacionalização produtiva 134
3.5.3. Conclusões parciais da internacionalização nas políticas de governo 136
3.6. A pesquisa empírica: os efeitos do regime vistos da perspectiva dos
contribuintes e do fisco 137
3.6.1. Notas metodológicas 137
3.6.2. Resultados da pesquisa 140
3.6.2.1. Importância e motivações da internacionalização produtiva 140
3.6.2.2. Efeitos econômicos do regime brasileiro de tributação de lucros
auferidos no exterior 141
3.6.2.2.1. Perspectiva dos contribuintes 141
3.6.2.2.2. Perspectiva do fisco 147
3.7. Conclusões dos efeitos do regime de tributação de lucros auferidos no
exterior na internacionalização produtiva das empresas de capital nacional:
o regime visto em dois contextos distintos 151
CAPÍTULO 4: ANÁLISE JURÍDICA CRÍTICA DO REGIME DE
TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR 153
4.1. Notas introdutórias 153
4.2. Uma questão preliminar 153
4.2.1. A primeira linha doutrinária: O regime brasileiro não é de transparência fiscal
internacional 154
4.2.2. A segunda linha doutrinária: O regime brasileiro é de transparência fiscal
internacional 158
4.2.3. Observações críticas sobre as duas linhas doutrinárias 161
4.3. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e o direito interno 162
4.3.1. 1º momento de debate da validade jurídica do regime: a questão
da disponibilidade dos lucros e o conceito constitucional de renda 162
4.3.1.1. A ADI nº 2.588 162
4.3.1.2. As posições doutrinárias 166
4.3.1.3. Os efeitos fiscais do Método da Equivalência Patrimonial (MEP) 171
4.3.1.4. Demais questões jurídicas presentes no 1º momento de debate 175
4.3.1.4.1. A questão da compensação dos prejuízos incorridos no exterior
com os resultados positivos apurados no Brasil 175
4.3.1.4.2. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e as
regras de preços de transferência 177
4.3.2. 2º momento de debate da constitucionalidade do regime:
a Ordem Econômica Constitucional e a internacionalização empresarial 179
4.3.2.1.Constituição, ordem econômica e desenvolvimento nacional 180
4.3.2.2. Internacionalização empresarial e a Ordem Econômica Constitucional:
Quais são os limites jurídicos que o Estado deve observar ao criar uma
política industrial de internacionalização produtiva? 184
4.3.2.3. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e a Ordem
Econômica Constitucional 186
4.4. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e o direito
internacional 189
4.4.1. A compatibilidade das normas de transparência fiscal internacional
com os tratados celebrados pelos países para evitar a dupla
tributação segundo a OCDE 192
4.4.2. A compatibilidade do regime brasileiro de tributação de lucros
auferidos no exterior com os tratados celebrados pelo Brasil
para evitar a dupla tributação 199
4.5. Conclusões da análise jurídica crítica do regime brasileiro de tributação
de lucros auferidos no exterior 207
CAPÍTULO 5: CONCLUSÕES FINAIS 210
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 222
APÊNDICE A 231
ANEXO A 253
13
INTRODUÇÃO
I. Delimitação temática da pesquisa
As questões de direito tributário internacional vêm ocupando posição central nos
debates entre tributaristas, economistas, formuladores de políticas públicas e acadêmicos
especialmente em um contexto em que o Brasil vem sofisticando, progressivamente, a sua
legislação fiscal de modo a criar instrumentos jurídicos, cada vez mais eficazes, para proteger
– e, em certos casos, reforçar – a sua arrecadação tributária nacional. Soma-se a este cenário o
fato de o Brasil ter celebrado diversos tratados destinados a evitar a dupla tributação e a
promover a maior troca de informações com diferentes jurisdições fiscais ao redor do mundo.
Este diagnóstico está intimamente relacionado ao fenômeno da internacionalização da
economia brasileira que não é apenas um reflexo de um fenômeno econômico mais amplo – a
globalização –, mas, sobretudo, uma consequência advinda da adoção de uma política
econômica mais aberta, através da qual o Brasil deixou de se pautar pela estratégia de
substituição de importações e passou a firmar a sua presença no mercado internacional de
forma mais expressiva, desde o governo Collor e, principalmente, com o sucesso do Plano
Real1.
Dentre os diversos instrumentos jurídico-tributários adotados pelo Brasil para se
deparar com esta nova realidade econômica, está o regime de tributação de lucros, ganhos de
capital e rendimentos auferidos no exterior por sociedades controladas, coligadas, filiais e
sucursais de pessoas jurídicas residentes no Brasil. Trata-se do regime brasileiro de tributação
das pessoas jurídicas em bases universais – ou mundiais – no direito tributário brasileiro.
De fato, as pessoas físicas já vinham sendo tributadas pela universalidade dos seus
rendimentos auferidos tanto no Brasil quanto no exterior à época em que foi introduzido
semelhante regime para as pessoas jurídicas. É importante esclarecer, no entanto, que este
trabalho tratou apenas incidentalmente do regime de tributação aplicável às pessoas físicas, de
modo que o seu foco foi a tributação das pessoas jurídicas. É claro que, ao se fazer menção ao
1 Este diagnóstico de alteração da política econômica brasileira, que caracterizou a Nova República, pode ser
obtido a partir da análise da obra de FISHLOW, Albert. O novo Brasil: as conquistas políticas, econômicas,
sociais e nas relações internacionais. São Paulo: Saint Paul, 2011, p. 53- 86 e 165-200.
14
regime jurídico como de “tributação de lucros auferidos no exterior”, o presente estudo está se
referindo não apenas ao lucro, mas, igualmente, à integralidade dos rendimentos e ganhos de
capital auferidos pelas empresas residentes no Brasil através das suas coligadas, controladas,
filiais e sucursais residentes no exterior.
Quando o Brasil introduziu o regime de tributação de lucros auferidos no exterior no
seu ordenamento jurídico, ele passou a determinar que todos os lucros, rendimentos e ganhos
de capital auferidos no exterior passariam a ser imputados automaticamente – i.e.
independentemente da sua efetiva disponibilização jurídica ou econômica – na base de cálculo
da sua controladora ou coligada residente no Brasil. A evolução normativa do regime
brasileiro foi caracterizada por constantes mudanças no seu desenho, ora permitindo o
diferimento da tributação nacional, ora reprimindo-o, mas, ao final, prevaleceu um desenho
normativo semelhante ao inicialmente concebido (regra de antidiferimento ampla).
À época em que o Brasil introduziu tais regras no seu ordenamento jurídico, diversos
países já haviam adotado semelhante regime de tributação sob a orientação da OCDE
(Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico) e com base na experiência
bem sucedida de outros países pioneiros na sua adoção (e.g. EUA)2. Na experiência
internacional, as regras que permitem a tributação em bases mundiais dos rendimentos
auferidos por pessoas jurídicas independentemente da sua efetiva disponibilização econômica
ou jurídica são denominadas de CFC rules (Controlled Foreign Corporation rules) ou de
regime de transparência fiscal internacional.
A discussão sobre se as normas brasileiras são propriamente as CFC rules consagradas
pela experiência jurídica internacional será abordada em momento oportuno do presente
trabalho. Por ora, é importante chamar atenção para o fato de que o Brasil optou por um
regime de tributação de lucros auferidos no exterior que difere da experiência internacional.
No plano internacional, a utilização do regime de transparência fiscal internacional está
orientada para combater práticas abusivas de elisão fiscal internacional, denotando-lhe nítida
natureza antiabuso ou antielisiva. No Brasil, o regime de tributação de lucros auferidos no
exterior aparentemente não possui natureza antielisiva na medida em que se aplica de forma
irrestrita a qualquer tipo de rendimento oriundo de qualquer jurisdição fiscal do mundo.
2 Analisaremos, no capítulo 1 deste trabalho, o debate legislativo norte-americano, que antecedeu a adoção das
suas normas CFC, bem como o debate patrocinado no âmbito da OCDE.
15
O regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior foi inicialmente
introduzido no ordenamento jurídico pelos artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95, tendo-se
seguido diversas alterações legislativas (IN SRF nº 38/96, Lei nº 9.532/97 e LC nº 104/2001)
até que o regime atual estivesse finalmente consagrado através do artigo 74 da MP 2.158-
35/2001 e da IN SRF nº 213/2002 que o regulamentou.
Na sequência da publicação da medida provisória e da sua regulamentação, surgiram
diversos questionamentos quanto à validade jurídica do critério de disponibilização
automática – também denominado de “disponibilização ficta” –, previsto no artigo 74 da MP,
frente ao disposto no caput do artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) e ao conceito
constitucional de renda que, segundo argumentou-se, dependia da efetiva disponibilização
jurídica ou econômica da renda para que sobre ela houvesse incidência tributária.
A segunda questão que foi levantada diz respeito à adequação do regime brasileiro
com os tratados celebrados pelo Brasil com outros países para evitar a dupla tributação
internacional da renda. Vale ressaltar que o Brasil seguiu em grande medida a convenção
modelo da OCDE. Esta é uma questão ainda mais complexa e que requer uma análise muito
mais cuidadosa porque as consequências do posicionamento que o Brasil vier a adotar
referente à temática poderão repercutir nas relações mantidas pelo Brasil no plano
internacional. De fato, este tema é muito controvertido não apenas no Brasil, como também
em outros países, tendo a OCDE, conforme demonstraremos neste trabalho, adotado distintos
posicionamentos ao longo do tempo.
Há, ainda, outras questões secundárias, mas que não deixam de possuir a sua
importância no debate atual, tais como os limites legais impostos à compensação de prejuízos
incorridos no exterior com os lucros auferidos no Brasil e a potencial sobreposição das
normas de preços de transferência brasileiras com o regime de tributação de lucros auferidos
no exterior.
O debate, como se viu, já está posto e muitos autores têm se empenhado em formular
interpretações jurídicas – muitas delas muito coerentes outras nem tanto – para se posicionar
neste debate que divide opiniões e interesses em dois polos distintos: fisco e contribuintes.
O objetivo que pretendemos alcançar no presente trabalho foi, no entanto, realizar uma
pesquisa empírica que nos permitisse compreender profundamente as origens dos problemas
jurídicos apontados. Para que pudéssemos compreender porque este tema se tornou alvo de
tantas críticas jurídicas foi preciso compreender a política tributária que orientou o regime
16
brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior. Além disso, identificamos os efeitos
econômicos do regime sobre um fenômeno econômico maior que é a internacionalização
produtiva3 das empresas de capital nacional
4 para que pudéssemos, na sequência, fazer o juízo
de adequação do regime com a Ordem Econômica Constitucional, com precisão e fundamento
empírico.
Através do recurso à pesquisa empírica5, procuramos identificar, por um lado, quais
são as causas, o momento histórico e os interesses que estavam envolvidos no debate
legislativo que orientaram o desenho do regime brasileiro, e, por outro lado, os efeitos que o
regime provoca no processo de internacionalização produtiva das empresas brasileiras,
sobretudo no momento da decisão de constituir unidades produtivas no exterior e na
competitividade das suas unidades no exterior com os seus competidores locais.
Assim, a compreensão mais profunda do tema, através do recurso a fontes empíricas e
não apenas à literatura especializada, nos permitiu chegar a um posicionamento qualificado
sobre as causas que levaram aos debates atuais, os interesses em jogo, os efeitos do regime e
como tais efeitos podem ter repercussões jurídicas. Com isso, pretendemos abrir novas frentes
de discussão jurídica sobre o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior
que vão além daquelas já existentes.
3 Conforme será demonstrado em maiores detalhes adiante neste trabalho, há diversas formas distintas de
internacionalização empresarial. Optou-se, no entanto, por analisar as repercussões econômicas sob a óptica da
internacionalização produtiva por razões que serão demonstradas adiante. 4 Entende-se, para os propósitos do referido trabalho, que “empresa de capital nacional” seja a sociedade
empresária cujo acionista com maior capital votante seja, direta ou indiretamente, pessoa física ou jurídica
domiciliada no Brasil. 5
Tanto a literatura nacional quanto a literatura internacional apontam para o fato de que as pesquisas empíricas
(pesquisas de campo) são pouco usuais na ciência jurídica. Internacionalmente, as pesquisas empíricas
empreendidas na ciência do direito têm gerado ganhos significativos, inclusive para a formulação de políticas
públicas. Há países, como os EUA e o Reino Unido, onde a pesquisa empírica no direito possui muito maior
evidência e importância do que no Brasil. Ainda assim, há autores que apontam para a necessidade de expansão
da pesquisa empírica do direito para outras áreas, além daquelas tradicionalmente feitas tais como a
administração da justiça, como, por exemplo, setores do direito ligados ao comércio e a economia. Em relação a
este breve diagnóstico, veja-se: BARRAL, Welber Oliveira. Metodologia da pesquisa jurídica. Belo Horizonte:
Del Rey, 2010, p. 94; BITTAR, Eduardo C. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia
para os cursos de direito. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 35, 36 e 205; PARTINGTON, Martin. Empirical Legal
Resarch and Policy-Making. In: CANE, Peter e KRITZER, Herbert M. (org). The Oxford Handbook of
Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 1.003-1.022.
17
II. Premissas metodológicas
Conforme mencionamos no tópico anterior, este estudo se propôs a analisar dois
problemas relativos ao regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior. O
primeiro deles possui natureza conceitual6 e diz respeito à identificação dos interesses, razões
e condicionantes históricos que determinaram a política tributária que estabeleceu o desenho
normativo do regime jurídico objeto do presente estudo. Buscamos compreender porque o
Brasil optou por um modelo diverso do modelo consagrado pala experiência internacional. O
segundo deles possui natureza prática7 e refere-se à investigação dos eventuais efeitos
econômicos deste regime no processo de internacionalização produtiva das empresas
nacionais e, principalmente, na sua competitividade em mercados externos.
Consideramos que esta abordagem do tema do regime de tributação em bases
universais é relevante para os propósitos de uma pesquisa jurídica e merece uma investigação
empírica minuciosa, pois, conforme sustentamos no tópico anterior, procuramos compreender
de forma aprofundada as razões que teriam levado às críticas e ao debate que se tem hoje
sobre o tema. Uma compreensão mais aprofundada sobre o tema, respaldada em fontes
empíricas, nos permite não apenas identificar corretamente as linhas que estão sendo
defendidas como também os interesses que estão por trás delas.
Por um lado, diante do diagnóstico de que o regime brasileiro destoa sensivelmente
dos modelos de tributação em bases universais adotados pela maioria dos países, torna-se
relevante um estudo que se destine a compreender porque as normas brasileiras são diferentes.
Compreender o porquê da diferença de orientações implica investigar quais foram os
condicionantes que determinaram a política tributária que orientou a criação do regime
brasileiro em todas as suas distintas etapas: (i) desde a sua proposição inicial no interior do
Poder Executivo, (ii) passando pelas alterações propostas pelo Poder Legislativo, (iii) até a
atribuição dos seus últimos condicionantes impostos pelo controle judicial ou por influência
de outros órgãos regulatórios. Este é o caminho percorrido pelas políticas públicas desde a sua
propositura até a sua aplicação no campo prático no Brasil. Reconstruir este percurso
6 Cf. BOOTH, Wayne, COLOMB, Gregory G. e WILLIAMS, Joseph. The Craft of Research. 3ª Edição
Chicago: The University of Chicago Press, p. 53-59. 7 Ibid., p. 53-59.
18
legislativo, contextualizando-o e trazendo à baila os interesses envolvidos, consiste em um
trabalho de “engenharia normativa”.
Por outro lado, identificar quais são os impactos do referido regime na realidade
prática, sobretudo do ponto de vista do processo de internacionalização produtiva das
empresas de capital nacional, é importante diante da constatação de que as empresas
brasileiras estão em um processo crescente de internacionalização produtiva, conforme será
devidamente demonstrado no decorrer deste trabalho. Trata-se de um diagnóstico que não
deixa de possuir repercussões importantes do ponto de vista do desenvolvimento econômico
brasileiro. Analisar, portanto, se as normas possuem consequências sobre este fenômeno, bem
como sobre a competitividade das empresas nacionais no mercado internacional, foi relevante
para determinar, com precisão, os suas efeitos econômicos8. O resultado deste diagnóstico nos
permitiu ponderar em que medida os efeitos advindos do regime brasileiro possuem
repercussões jurídicas, indo ou não de encontro à Ordem Econômica Constitucional.
Os dois problemas, embora em um primeiro momento pareçam independentes entre si,
estão, na verdade, interligados. Isso porque um dos objetivos da identificação da política
tributária que orientou a criação do regime atual de tributação de lucros auferidos no exterior
foi observar, até que ponto, houve a devida ponderação dos seus impactos sobre a atividade
econômica das empresas nacionais em fase de internacionalização produtiva. Assim, foi
possível identificar em que medida a internacionalização produtiva e a competitividade das
empresas nacionais nos mercados internacionais foram uma condicionante sopesada pelo
formulador de políticas públicas na engenharia normativa do regime tributário estudado.
Em relação ao primeiro problema, as questões centrais que nos serviram de guia de
pesquisa foram: Qual foi a política tributária que orientou a criação do regime de tributação
universal da pessoa jurídica no direito brasileiro? Quais razões poderiam justificar a opção
brasileira por um regime diverso da prática mundial? Há, em relação a este tema, questões
secundárias: Quais foram os debates e interesses em cada um dos momentos da evolução
normativa do tema? Como o setor privado e a Administração Pública fazendária se
8 Em relação ao segundo problema, foi preciso recorrer a um estudo que, até certo ponto, ultrapassou as
fronteiras do direito – sendo, portanto, interdisciplinar – e que envolveu a articulação de conhecimentos da
ciência econômica juntamente com a ciência jurídica. Apesar desse desafio, entendemos que esta abordagem do
tema tinha um potencial enorme de enriquecer a discussão atual sobre o regime de tributação de lucros auferidos
no exterior desde que seja respeitada a autonomia sistêmica das duas ciências, requisito fundamental de um
estudo interdisciplinar no direito. Em relação ao tema da pesquisa interdisciplinar no direito, confira-se: NEVES,
Marcelo. Pesquisa Interdisciplinar no Brasil: O Paradoxo da Interdisciplinaridade. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, 2005, p. 207-214.
19
articularam no Congresso Nacional para fazerem valer seus interesses? Qual era o contexto
histórico envolvido em cada debate? Em que medida as justificativas apresentadas estão em
consonância com o desenho da norma? Caso negativo, quais razões poderiam justificar tais
idiossincrasias?
Quanto ao segundo problema, as questões centrais orientadoras foram: O regime
jurídico brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior interfere no processo de
internacionalização produtiva das empresas brasileiras? Há impactos do regime na
competitividade das empresas nacionais no mercado internacional? Caso positivo, eles se
operam na prática? Em que medida, os eventuais impactos advindos do regime no processo de
internacionalização produtiva afrontam a Constituição Federal (em especial a Ordem
Econômica Constitucional)?
Houve, ainda, uma questão que estabeleceu a conexão entre os dois problemas
tratados nesta pesquisa: Ao longo da evolução da disciplina normativa do regime de
tributação de lucros auferidos no exterior, foram ponderados os seus possíveis efeitos sobre a
atividade industrial brasileira, sobretudo do ponto de vista da internacionalização produtiva
das empresas de capital nacional?
Nesta pesquisa, testamos três hipóteses centrais. A primeira delas consiste na ideia de
que, ao longo da evolução normativa do regime de tributação em bases universais, não houve
a ponderação adequada dos seus possíveis efeitos sobre o processo de internacionalização
produtiva das empresas de capital nacional. Assim, segundo esta hipótese, a política tributária
que resultou da evolução legislativa do regime no tempo levaria a crer que esta questão teria
sido pouco relevante, ou mesmo, menosprezada. A segunda hipótese é de que o regime
brasileiro difere da prática internacional, pois as autoridades fazendárias estavam, desde o
início, muito mais preocupadas com o aumento da arrecadação federal do que com a
dissuasão de práticas de elisão fiscal internacional. A terceira hipótese parte da ideia de que o
regime brasileiro não interfere no processo de internacionalização produtiva de empresas de
capital nacional, mas o seu desenho relativamente amplo possui efeitos econômicos no
processo de conquista de novos mercados. Com isso, adotamos também a hipótese de que o
regime pode afrontar a Ordem Econômica Constitucional.
Feitos estes comentários preliminares, serão detalhados os aspectos relativos à
estratégia metodológica utilizada nesta pesquisa. A pesquisa empírica compreendeu três
técnicas de coletas de dados: (i) entrevistas com autoridades públicas de escalões variados,
20
que pertencessem a órgãos da administração fazendária e que tivessem participado no
processo de formulação do regime de tributação de lucros auferidos no exterior ou, ainda, que
atuassem diretamente com o mesmo; (ii) entrevistas com empresas brasileiras que já tivessem
internacionalizado parte da sua atividade produtiva; e (iii) o processo legislativo9 referente a
todos os diplomas legais que caracterizaram a evolução normativa do regime (Lei nº 9.249/95,
Lei nº 9.532/97, Lei Complementar nº 104/2001 e Medida Provisória nº 2.158-35/2001).
Nesta pesquisa, tivemos a pretensão de responder às perguntas relativas ao primeiro
problema (política tributária) através da análise do processo legislativo e por meio de
entrevistas com autoridades públicas pertencentes à Administração Pública que tiveram
participação na concepção inicial do regime. As perguntas que dizem respeito ao segundo
problema (internacionalização produtiva e competitividade no mercado internacional) foram
respondidas através dos resultados das entrevistas realizadas com administradores,
economistas, diretores e consultores tributários de grandes empresas de capital nacional que já
tivessem internacionalizado parte da sua atividade produtiva e das entrevistas feitas com
autoridades fiscais de modo geral.
As estratégias de coleta de dados definidas acima foram escolhidas a partir da natureza
das questões propostas10
. Optou-se, portanto, por uma estratégia de levantamento de dados
empiricamente obtidos11
submetidos, posteriormente, a uma análise qualitativa de conteúdo.
As entrevistas foram guiadas através de roteiros com perguntas amplas e abertas.
Neste sentido, optamos por não se utilizar questionários nas entrevistas, mas sim perguntas
abertas que tinham como objetivo central captar as percepções e a experiência pessoal dos
entrevistados sobre o tema tratado12
. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na sua
íntegra, ressalvado o direito de sigilo da identidade dos entrevistados. A maior parte das
entrevistas foi realizada de forma presencial tendo algumas delas sido feitas, no entanto, por
9 Em relação à pesquisa realizada a partir do processo legislativo, esclarecemos que os autos referentes a cada
um dos diplomas normativos indicados foram obtidos junto ao Departamento de Processo Legislativo da
Secretaria de Assuntos Legislativo do Ministério da Justiça. Eles foram analisados na sua íntegra. 10
Cf. WEBLEY, Lisa. Qualitative approaches to empirical legal research. In: CANE, Peter e KRITZER,
Herbert M. (org). The Oxford Handbook of Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 932- 936. 11
Cf. YIN, Robert K. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Tradução: Daniela Grassi. Porto Alegre:
Bookman, 2005, p. 19-38. 12
Há diversos autores que sugerem a utilização de roteiros com questões abertas em pesquisas empíricas sujeitas
à análise qualitativa de conteúdo. Neste sentido, vejam-se: BOOTH, Wayne, COLOMB, Gregory G. e
WILLIAMS, Joseph. The Craft of Research. 3ª Edição Chicago: The University of Chicago Press, p. 82; e
WEBLEY, Lisa. Qualitative approaches to empirical legal research. In: CANE, Peter e KRITZER, Herbert M.
(org). The Oxford Handbook of Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 937.
21
telefone ou videoconferência. No momento oportuno deste trabalho daremos maiores detalhes
metodológicos relativos às entrevistas.
Alertamos que esta pesquisa não teve a intenção de criar uma amostra representativa
de entrevistas com empresas de capital nacional já que este não é o propósito de uma pesquisa
cuja estratégia de análise de dados é qualitativa que, por sua vez, atribui maior importância ao
conteúdo de cada um dos relatos do que à sua representatividade amostral. As pesquisas
qualitativas são pautadas na qualidade dos relatos e na capacidade de interpretação do
pesquisador que, a partir daí, poderá obter conclusões satisfatórias13
. Com isso, enfatizamos
que o nosso objetivo foi, tão somente, colher percepções e impressões que nos foram
transmitidas pelos entrevistados para, a partir delas, construir, com o devido cuidado,
informações e fatos relevantes para a presente pesquisa14
.
Apesar desta pesquisa ser em grande medida empírica, em momento algum deixamos
de analisar a literatura jurídica (e econômica) especializada. Neste diapasão, a literatura
teórica – fonte secundária de coleta de dados – teve a importante função de complementar a
pesquisa empírica – fonte primária de coleta de dados – e de reconstruir os debates jurídicos
aos quais nos reportamos anteriormente. Reconstruímos os debates para não apenas chamar
atenção para os problemas jurídicos ensejados pelo regime, como também para chamar
atenção para os interesses envolvidos nos debates jurídicos.
Ao final deste trabalho, esperamos poder contribuir para o debate acadêmico atual
sobre o regime de tributação de lucros auferidos no exterior através da demonstração de como
a política tributária modulou o regime de tributação de lucros auferidos no exterior, bem como
quais são os seus efeitos sobre o setor privado, sobretudo diante do fenômeno da
internacionalização produtiva das empresas nacionais e como tais efeitos podem afrontar a
constituição federal. Toda a presente investigação científica foi guiada pela esperança de que
os resultados desta pesquisa empírica possam sensibilizar formuladores de políticas públicas
para a futura elaboração de políticas tributárias.
13
Trata-se do enfoque epistemológico interpretativista que é geralmente associado às pesquisas submetidas à
análise qualitativa. O enfoque interpretativista afasta a pretensão de pura objetividade que alguns autores
atribuem à análise quantitativa, valorizando-se a capacidade de o pesquisador obter resultados válidos através da
sua interpretação dos dados obtidos. Em relação a esta abordagem, veja-se: WEBLEY, Lisa. Qualitative
approaches to empirical legal research. In: CANE, Peter e KRITZER, Herbert M. (org). The Oxford Handbook
of Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 929-931. 14
Informamos que nós tomamos os devidos cuidados no sentido de afastar eventuais interesses e outros
elementos externos que poderiam enviesar a opinião dos entrevistados, de modo a obter, de cada relato, a
informação mais neutra e objetiva possível.
22
A pesquisa empírica no direito tem muito a contribuir para a formulação de políticas
públicas especialmente porque, de acordo com a literatura especializada, os resultados
empíricos podem revelar “brechas” na lei ou fraquezas na forma como a norma funciona,
apontando para desafios futuros que deverão ser levados em consideração na formulação de
novas políticas15
. No entanto, a grande contribuição da pesquisa empírica no direito é
justamente demonstrar que o direito visto a partir do ordenamento jurídico (perspectiva
estática) difere sensivelmente do direito observado a partir da sua aplicação prática
(perspectiva dinâmica) 16
. O que se precisa é, tão somente, facilitar os canais de acesso entre o
cientista do direito e o formulador de políticas públicas para que a pesquisa empírica passe a
representar um verdadeiro referencial de formulação – e reformulação – de políticas. Esta é a
função deste estudo.
Fica claro, portanto, que o presente estudo também está alinhado com o estudo do
“direito e desenvolvimento” o qual busca compreender a relação causal que existe entre a
engenharia do sistema jurídico e o fenômeno do desenvolvimento17
. Neste sentido, possuímos
a esperança de que os resultados obtidos a partir do presente estudo possam servir de
inspiração para um regime de tributação de lucros auferidos no exterior que favoreça o
desenvolvimento brasileiro e que seja benéfico tanto para o fisco quanto para o contribuinte.
III. Estrutura do trabalho
Delimitado o tema e estabelecidos os pressupostos metodológicos, detalhamos, abaixo,
o que trata cada uma dos capítulos que compõem o presente trabalho de forma a demonstrar
qual foi a abordagem adotada em cada um deles, a sua importância (ou função) no contexto
do trabalho e a natureza das fontes utilizadas. Este trabalho está dividido em cinco capítulos.
15
Cf. PARTINGTON, Martin. Empirical Legal Resarch and Policy-Making. In: CANE, Peter e KRITZER,
Herbert M. (org). The Oxford Handbook of Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 1.003. 16
Ibid., p. 1.021-1.022. 17
Em relação a este tema, vale chamar atenção para a tese elucidativa defendida por David Trubek e Álvaro
Santos no sentido de que, em qualquer momento no tempo, o estudo do direito e desenvolvimento pode ser visto
como sendo definido pela intersecção de três esferas distintas: (i) teoria econômica; (ii) políticas e práticas
institucionais; e (iii) o direito. Nota-se que, de acordo com os referidos autores, ao mesmo tempo em que o
estudo do direito e desenvolvimento é definido pela intersecção das três esferas, ele as influencia mutuamente.
Neste sentido, confira-se: TRUBEK, David M. e SANTOS, Alvaro. Introduction: the third moment in Law and
Development theory and the emergence of a new critical practice. In: TRUBEK, David e SANTOS, Alvaro
(org.). The new law and economic development: a critical appraisal. Cambridge: Cambridge University Press,
2006, p. 04.
23
O capítulo 1 analisa a trajetória da evolução histórica do regime transparência fiscal
internacional (CFC rules) no mundo. O foco do capítulo foi a reconstrução do caminho
percorrido pelo instituto ao longo do tempo bem como as razões que foram determinantes no
seu desenvolvimento e adoção em escala mundial. Atribuímos especial relevância ao papel
dos EUA como país pioneiro na implantação de CFC rules e ao papel da OCDE e da
Comunidade Europeia no período pós-segunda guerra mundial no debate referente ao
combate às práticas de concorrência fiscal danosa18
. As fontes pesquisadas compreendem
desde a literatura teórica até artigos e livros publicados pela OCDE e por instituições
pertencentes à Comunidade Europeia.
O capítulo 2 enfrenta o primeiro problema indicado na seção anterior (identificação da
política tributária). Nele, reconstruímos a trajetória da evolução normativa do regime de
tributação de lucros auferidos no exterior, sob a perspectiva de um estudo empírico, de forma
a abordar cada um dos sete momentos que caracterizaram a sua evolução normativa.
Este capítulo abrange a reconstrução do contexto histórico presente à época, os debates
legislativos, os interesses em jogo e as razões que foram determinantes no desenho do regime
jurídico em estudo. Para tanto, utilizamos as seguintes fontes de pesquisa: o processo
legislativo relativo à Lei nº 9.249/95, Lei nº 9.532/97, LC nº 104/2001 e MP nº 2.158-
35/2001, os diplomas normativos legais e infralegais que caracterizaram cada um dos
momentos de legalidade do regime de tributação em análise (além dos diplomas já
mencionados, a IN SRF nº 36/98 e a IN SRF nº 213/2002); entrevistas com autoridades
públicas que participaram no seu processo de formulação; e material explicativo de fonte
governamental em que foram detalhados os objetivos buscados com a instituição do regime.
Como se vê, neste capítulo, a pesquisa se concentrou em material fundamentalmente
empírico.
O capítulo 3 enfrenta o segundo problema exposto no tópico anterior desta Introdução
– internacionalização produtiva e competitividade no mercado internacional – a partir dos
resultados das entrevistas feitas com administradores, economistas, diretores e consultores
tributários de grandes empresas de capital nacional que já tenham internacionalizado parte da
sua atividade produtiva. O foco, neste tópico, foi a análise dos efeitos econômicos gerados
pela aplicação do regime no plano prático. Expusemos alguns postulados teóricos da
18
Este trabalho abordará o tema da concorrência internacional em dois sentidos distintos. O primeiro deles
refere-se à concorrência entre jurisdições fiscais para atrair investimento através do oferecimento de certas
condições tributárias favoráveis, abordagem que será feita no capítulo 2. O segundo sentido diz respeito à
competitividade das empresas nos seus respectivos mercados locais, abordagem que será feita no capítulo 5.
24
internacionalização produtiva, bem como o diagnóstico do recente movimento de
internacionalização produtiva das empresas de capital nacional com dados econômicos e
empíricos. Posteriormente, as entrevistas foram analisadas qualitativamente para que fossem
identificados os efeitos econômicos ensejados pela aplicação do regime.
O capítulo 4 se debruça sobre as repercussões jurídicas ensejadas pelo desenho
normativo do regime de tributação de lucros auferidos no exterior no direito tributário
brasileiro. Foram feitos breves comentários sobre alguns aspectos teóricos e práticos da sua
aplicação – entre eles, discutimos como poderiam ser conceituadas as normas adotadas pelo
Brasil (e.g. se teriam a mesma natureza do instituto da transparência fiscal internacional) –
seguidos da exposição dos problemas que a aplicação do regime jurídico enseja no direito
brasileiro. Entre os problemas, abordamos, em especial, a discussão sobre a validade jurídica
do regime, patrocinada nos autos da ADI 2.588, a questão da sua compatibilidade com os
tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla tributação, a atribuição de efeitos fiscais ao
Método da Equivalência Patrimonial (MEP), os limites legais impostos à compensação de
prejuízos incorridos no exterior com os lucros auferidos no Brasil e a potencial sobreposição
das normas de preços de transferência brasileiras com o regime de tributação de lucros
auferidos no exterior. Esta análise não teve a pretensão de ser exaustiva, mas sim de apontar
os problemas jurídicos ensejados pelo desenho normativo do regime brasileiro.
Defendemos, neste capítulo, que o debate relativo à validade jurídica do regime deverá
assumir novas frentes futuramente. A principal delas diz respeito ao confrontamento dos
efeitos econômicos advindos do regime brasileiro com a Ordem Econômica Constitucional.
Neste sentido, ao confrontar os efeitos econômicos regime brasileiro de tributação de lucros
auferidos no exterior – identificados em nossa pesquisa empírica – com a Ordem Econômica
Constitucional, restou comprovado que, em determinadas circunstâncias, o regime brasileiro
será inconstitucional por desincentivar a internacionalização produtiva. Em outras, será
constitucional. Este debate não exclui, no entanto, o debate quanto à disponibilização
automática e do conceito de renda, mas vem a se somar a ele, conforme demonstraremos.
Por fim, o capítulo 5 se ocupará das conclusões finais da pesquisa. Ademais, é
importante esclarecer que a maior parte dos capítulos possui um tópico destinado à realização
de considerações parciais relativas àquele capítulo específico. Não obstante os referidos
tópicos consolidem muitas das conclusões a que chegamos em cada um dos capítulos, eles
terão um objetivo nitidamente reflexivo. A consolidação de todas as conclusões a que
chegamos em cada um dos capítulos será feita, em maiores detalhes, no capítulo 5.
25
1. TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO REGIME DE
TRANSPARÊNCIA FISCAL INTERNACIONAL
1.1. Notas introdutórias
O presente capítulo tem como objetivo central identificar, através de uma perspectiva
internacional, as origens históricas e interesses envolvidos na criação do regime de
transparência fiscal internacional – também denominado, internacionalmente, como CFC
rules (Controlled Foreign Corporation rules) – ao mesmo tempo em que busca conectar tais
origens com os temas que ensejam grandes debates atuais, como é o caso da concorrência
fiscal danosa e da elisão fiscal internacional.
A importância que os temas mencionados adquiriram ao longo do tempo legitimou a
atuação de órgãos internacionais e supranacionais – tais como a OCDE e a Comissão
Europeia – no combate às práticas da concorrência fiscal danosa incorridas por diversas
jurisdições fiscais no mundo. Estes problemas encontram as suas raízes em um cenário de
integração econômica e do fenômeno da globalização que caracterizou parte significativa do
século XX, em especial, as suas últimas décadas.
O debate sobre a função e a importância das CFC rules passou por uma evolução
desde a sua positivação no direito norte-americano, em 1962, até a sua utilização atual
patrocinada pela Comissão Europeia, no âmbito do direito comunitário da União Europeia, e
pela OCDE, na esfera internacional.
Este capítulo identificará os interesses envolvidos em cada um dos momentos
mencionados e os motivos que levaram o debate a assumir os seus contornos atuais. Serão
identificadas também as teorias que respaldam a aplicação do regime de transparência fiscal
internacional. Antes disso, no entanto, é importante estabelecer o pano de fundo no qual toda
esta discussão se insere, o qual é marcado pelo fenômeno da globalização e da mudança de
concepção de Estado.
26
1.2. A globalização e a mudança de concepção do Estado
O direito vem passando, desde as últimas décadas do século XX, por um processo de
transformação no qual a norma jurídica, muito embora continue sendo aplicada a um território
específico onde o respectivo ordenamento jurídico possui jurisdição, conforme prevê a maior
parte dos ordenamentos jurídicos, não restringe mais os seus efeitos aos seus limites
territoriais. Cada vez mais, as normas aplicadas por uma determinada jurisdição possuem
repercussões não apenas no plano interno, como também no plano global, de modo a afetar o
comportamento de outras jurisdições, alterando expectativas normativas e ensejando reações
no plano do direito.
Este diagnóstico pode ser observado com facilidade no âmbito do direito tributário
quando se constata que a aplicação de algumas das suas normas possui repercussão
internacional, seja no comportamento de operadores privados no exterior, seja no
comportamento de outras jurisdições fiscais. Alguns autores conceituam este fenômeno como
sendo a “extraterritorialidade” da lei tributária19
.
No entanto, a razão para esta transformação do direito está intimamente relacionada ao
fenômeno da globalização que, por sua vez, deve ser compreendido em uma moldura
conceitual ampla como um fenômeno que diz respeito não apenas à esfera econômica, mas
também à política, cultural, social, jurídica, entre inúmeras outras.
Do ponto de vista econômico e político, no final da década de 1990, houve um
processo de integração de mercados motivado por esforços de diversas instituições
internacionais no sentido de promover a liberalização dos mercados. Assim, surgiu uma
economia global que, de acordo com Manuel Castells, consiste em “uma economia cujos
componentes centrais têm a capacidade institucional, organizacional e tecnológica de
trabalhar em unidade e em tempo real, ou em tempo encolhido, em escala planetária”20
.
Segundo o referido autor, a economia global não foi criada pelos mercados, mas pela
interação entre mercados, governos e instituições financeiras agindo em nome dos mercados
19
Entre eles: HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas internacionais do planejamento tributário. São
Paulo: Saraiva, 1997, p. 228. 20
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo:
Paz e Terra, 2011, Volume I, p. 143.
27
ou de sua ideia do que devem ser os mercados21
. Dentre as estratégias usadas pelas empresas
para aumentar a sua produtividade, chama atenção a estratégia de internacionalização da sua
produção. A internacionalização produtiva, por sua vez, depende de três aspectos centrais: (i)
o aumento de investimento estrangeiro direto (Foreign Direct Investment – FDI); (ii) o papel
decisivo dos grupos empresariais multinacionais como produtores na economia global; e (iii)
a formação de redes internacionais de produção22
.
Quanto à formação das redes internacionais de produção, esclarecemos que elas são
compostas por empresas transnacionais que se combinam de forma estratégica com empresas
de menor porte, incluindo, ainda que de forma limitada, redes de produção de empresas de
países em desenvolvimento. Castells afirma que essas redes produtivas transnacionais,
“ancoradas pelas empresas multinacionais, distribuídas pelo planeta de maneira desigual, dão
forma ao padrão de produção global e, por fim, ao padrão de comércio internacional”23
.
Do ponto de vista geopolítico, a globalização alterou a concepção de Estado que era
reconhecida até então; o Estado-nação. Esta transição do modelo de Estado-nação para o
modelo de Estado-transnacional foi abordada por Marco Aurélio Greco24
ao analisar, entre
outros autores, Ulrich Beck. A transição dos modelos consiste, sobretudo, na redefinição do
próprio conceito de soberania política, econômica e fiscal que se tinha no passado.
De acordo com a referida abordagem, o Estado-nação – visão da figura do Estado
adotada durante séculos – era visto como uma entidade independente em que o exercício da
sua soberania era concebido como o exercício de um poder independente sobre o povo de um
determinado território. Os ordenamentos jurídicos se contrapunham em algumas relações
internacionais e, por vezes, entravam em conflito. Tratava-se do exercício de uma soberania
exclusiva25
. Na esfera do exercício do poder de tributar, os elementos de conexão utilizados
pelos sistemas tributários se fixavam em elementos clássicos da soberania, tais como o povo e
o território.
A crise da visão do Estado-nação ocorreu a partir da segunda metade do século XX na
medida em que a globalização avançou e as relações econômicas passaram a ocorrer em
21
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo:
Paz e Terra, 2011, Volume I, p. 176. 22
Ibid., p. 158. 23
Ibid., p. 164. 24
GRECO, Marco Aurélio. Globalização e tributação da renda mundial. Revista Fórum de Direito Tributário
(RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 1, nº 2, 2003, p. 75-90. 25
Cf. BECK, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 230 e ss apud GRECO, Op. Cit., p.
77.
28
caráter transnacional – e não mais limitadas ao um único território – na figura da economia
global definida por Castells anteriormente. As tecnologias da informação e a sociedade
conectada em rede acentuaram a crise deste modelo de estado, transnacionalizando as relações
interpessoais e, em especial, as relações econômicas.
Diante deste novo contexto, os Estados não mais poderiam formular as suas políticas
públicas sem se atentarem para as suas repercussões no comportamento e nas expectativas de
outros Estados. A própria noção de soberania foi recontextualizada pela globalização,
acenando com modelos democráticos que prenunciavam um novo equilíbrio de forças26
. O
processo de compreensão do direito passou por uma profunda alteração. De acordo com
Marco Aurélio Greco, neste novo contexto, “compreender a legislação interna não é apenas
verificar a sua adequação formal ou material a uma norma superior, mas também verificar a
sua adequação funcional ao contexto ‘glocal’ (global/local) que visa regular”27
.
No que diz respeito à esfera do direito tributário, a emergência de um Estado-
transnacional impôs desafios significativos ao alcance da capacidade contributiva e aos
elementos de conexão usados até então. Com mercados liberalizados e com recursos
tecnológicos de ponta, o capital ganhou mobilidade expressiva. Passou a ser muito fácil alocar
rendimentos – em especial os rendimentos passivos - em outras jurisdições fiscais que se
apresentavam de forma mais vantajosa, principalmente do ponto de vista tributário.
Tornou-se mais difícil, portanto, alcançar a capacidade contributiva na medida em que
as operações econômicas transnacionais facilitavam o esvaziamento das bases imponíveis em
nível local. O desenvolvimento de novas tecnologias apenas acentuou este efeito perverso;
afinal, com novos meios de pagamentos e de transferência de capitais através de sistemas
eletrônicos, o capital ganha mais mobilidade e o seu controle se torna ainda mais difícil pelas
autoridades monetárias e fiscais. Este fenômeno pode ser denominado de “volatilização dos
elementos da hipótese de incidência tributária”28
.
O mundo começou a se deparar com questões, tais como a concorrência fiscal danosa
(ou lesiva) propiciada pela existência dos paraísos fiscais e de regimes fiscais privilegiados,
que passaram a demandar soluções globais advindas da cooperação de diversos países. No
26
Cf. HELD, David. Democracy and global order: from the modern state to cosmopolitan governance. Stanford:
Stanford University Press, 1995, p. 80 e ss. 27
GRECO, Marco Aurélio. Globalização e tributação da renda mundial. Revista Fórum de Direito Tributário
(RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 1, nº 2, 2003, p. 80. 28
Cf. ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da renda empresarial: uma proposta de
sistematização e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 79.
29
mesmo sentido do cenário descrito até o presente momento, Maria Eduarda Azevedo aponta
também, com precisão, para a transição do papel das políticas tributárias do passado para o
presente:
No passado, a política tributária respondia a preocupações nacionais e tinha
repercussões que só escassamente ultrapassavam o âmbito doméstico, acabando os
aspectos internacionais, conquanto presentes, por não serem os mais relevantes.
Todavia, na actualidade, não obstante a política fiscal dos Estados continuar a ser
moldada por objetivos tradicionais, a crescente mobilidade de pessoas e capitais, que
conduz à globalização da economia potenciada pelas novas tecnologias, faz com que
a política fiscal de um país tenha repercussões inevitáveis nos demais parceiros.
Deste modo, qualquer medida tomada por uma jurisdição fiscal no sentido de
diminuir a tributação é susceptível de justificar que outra reaja, promovendo uma
igual baixa de impostos a fim de não perder vantagens competitivas e assim
sucessivamente. 29
Este cenário impôs forte pressão sobre os elementos de conexão tradicionalmente
utilizados o que culminou na sua sofisticação e adequação a esta nova concepção de Estado –
o Estado-transnacional –, pois, somente dessa forma, é possível garantir eficácia à legislação
tributária local frente ao ambiente internacional. Assim, os elementos de conexão,
reformulados em vista desta nova realidade, passaram a ser vistos como protetores da
arrecadação tributária nacional.
Diante da necessidade de garantia de eficácia às leis tributárias nacionais, não é
incomum a adoção de normas que, embora aplicadas em bases territoriais, irradiam os seus
efeitos no ambiente global. Este é o pano de fundo no qual se insere toda a evolução histórica
das normas de direito tributário internacional, em especial, do regime de transparência fiscal
no mundo. Não é por acaso que, embora as suas raízes datem do início do século XX, o
referido regime tributário tenha assumido especial importância a partir da segunda metade do
século, em especial, nas duas últimas décadas. A seguir, serão descritas as suas origens no
direito norte-americano.
29
AZEVEDO, Maria Eduarda. A concorrência fiscal prejudicial. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT),
Belo Horizonte: Fórum, ano 8, nº 48, 2010, p. 37.
30
1.3. O debate norte-americano: as origens históricas das CFC rules
Os EUA foi o país que concebeu originalmente o regime de transparência fiscal
internacional – ou CFC rules, conforme a doutrina norte-americana convencionou chamar –
através do qual os rendimentos auferidos em bases universais seriam submetidos à tributação
no país de residência do investidor (empresa controladora) ainda que os referidos rendimentos
não tivessem sido econômica ou juridicamente disponibilizados (disponibilização automática)
pela pessoa jurídica residente no exterior (empresa controlada ou coligada).
Seguindo-se a lógica da tributação em bases universais (princípio da universalidade), o
regime tributário que permite a tributação dos rendimentos auferidos no exterior apenas no
momento em que jurídica ou economicamente disponibilizados pode ser denominado de
regime de diferimento (tax defferal regime) da tributação devida sobre eles no país de
residência da sociedade investidora. Por outro lado, o regime tributário que sujeita os
rendimentos à tributação independentemente de sua efetiva disponibilização – através da sua
disponibilização automática – pode ser denominado de regime antidiferimento (tax
antidefferal regime). Nestes casos, os elementos de conexão tradicionalmente utilizados são a
residência ou a nacionalidade do contribuinte submetendo todos os rendimentos por ele
auferidos à tributação nacional independentemente do local da sua fonte produtora (elemento
de conexão subjetivo).
O regime de tributação em bases territoriais (princípio da territorialidade), em
contraposição ao regime de tributação em bases universais, exclui do campo de incidência da
norma tributária todo rendimento auferido fora de um determinado território, pois o elemento
de conexão usado é a fonte de produção dos rendimentos e não a residência ou nacionalidade
da sociedade investidora (elemento de conexão objetivo).
A evolução do tema no direito norte-americano data de tentativas iniciais de instituir
as CFC rules ocorridas em 1913 até as últimas alterações substanciais sofridas pelo instituto
na década de 1990 e nos anos 2000. Abaixo, fizemos a separação de cada um dos momentos
que caracterizou a evolução legislativa do instituto apenas para facilitar a sua análise.
31
1.3.1. Primeiras tentativas e alterações legislativas pré 1962
No início do século XX, logo nos primeiros anos de vigência do Internal Revenue
Code (código do imposto de renda norte-americano), o investidor norte-americano que
desejasse investir no exterior através da internacionalização dos seus fatores de produção
dispunha, do ponto de vista societário, de duas estratégias (vigentes até os dias de hoje) que
consistiam na constituição de: (i) filial ou sucursal desprovida de personalidade jurídica
(foreign branch); ou (ii) subsidiárias com personalidade jurídica própria (foreign subsidiary).
Até 1913, vigia no direito americano o princípio da territorialidade da tributação, segundo o
qual os EUA não poderiam tributar rendas, rendimentos e ganhos de capital auferidos fora do
seu território, ainda que através de uma subsidiária ou filial de uma empresa norte-americana.
Em 1913, o Governo norte-americano instituiu o regime de tributação em bases
universais, permitindo, no entanto, o diferimento da tributação norte-americana na medida em
que submetia os rendimentos auferidos por subsidiárias residentes no exterior à tributação
apenas no momento em que os mesmos fossem repatriados (disponibilizados jurídica ou
economicamente), ficando resguardado o direito de crédito relativo ao imposto pago no
exterior para compensação com o imposto devido nos EUA.
O regime de tributação em bases universais com permissão para o diferimento do
imposto norte-americano ensejou diversas estratégias de planejamento tributário nos EUA
cujo objetivo central era elidir30
o fisco norte-americano. Entre elas, estava a tradicional forma
de elisão fiscal internacional que ocorria através da criação de subsidiárias – verdadeiras
30
A elisão fiscal consiste, fundamentalmente, em subtrair o ato praticado ou o conjunto de atos praticados do
âmbito de aplicação da norma tributária. A prática de um ato elisivo está dentro da esfera da licitude uma vez
que ela precede ao momento da ocorrência do fato gerador - fato que, uma vez ocorrido, enseja a incidência da
norma tributária a qual constitui a obrigação tributária - estando, neste sentido, dentro da esfera de liberdade
negocial do contribuinte. A evasão fiscal, em oposição à elisão, pressupõe a prática de um ato ilícito em que,
uma vez ocorrido o fato gerador e caracterizada a obrigação tributária, o contribuinte se utiliza de recursos
desonestos e ardilosos para se evadir ao seu cumprimento. Como se vê, o critério temporal é importante na
qualificação de um ato como elisivo ou evasivo, mas não se mostra satisfatório para, sozinho, fazê-lo. Na lógica
do direito interno, as condutas elisivas repreensíveis pelo ordenamento jurídico ocorrem, fundamentalmente,
através das figuras do abuso de direito, da simulação relativa, do negócio indireto e da fraude à lei que, uma vez
presentes, tornam a conduta ilícita. Na lógica do direito internacional, a elisão ocorre através da manipulação dos
elementos de conexão que permitem a tributação de fatos geradores ocorridos no exterior, podendo ela ser
passível de reação pelo ordenamento jurídico a depender das condições estabelecidas pela legislação interna (e.g.
deslocamento de ativos para paraísos fiscais). Este aspecto será abordado, em maiores detalhes, adiante neste
trabalho. Em relação ao conceito de elisão e evasão fiscal e aos critérios que levam à sua caracterização, confira
maiores detalhes em: HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas internacionais do planejamento tributário.
São Paulo: Saraiva, 1997, p. 15-52; XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva.
São Paulo: Dialética, 2002, p. 87-88.
32
sociedades holdings31
– em paraísos fiscais com a subseqüente transferência de ações e
valores mobiliários que, por sua vez, produziam rendimentos passivos que permaneciam ali
por prazo indeterminado, evitando-se a tributação norte-americana (foreign subsidiaries as
incoporated pocketbooks)32
.
Como reação a esta modalidade de elisão fiscal internacional, o Congresso norte-
americano aprovou, em 1934, um regime jurídico especial aplicável às companhias holding
residentes no exterior denominado de Foreign Personal Holding Company regime o qual
determinava que houvesse a desconsideração da personalidade jurídica, para fins
exclusivamente fiscais, das subsidiárias norte-americanas no exterior que se qualificassem
como foreign personal holding companies.
Apesar dos esforços para coibir a prática de elisão fiscal internacional, o regime não
logrou êxito na coação da maior parte das práticas já que o seu campo de aplicação era
relativamente restrito. O regime só se reputava aplicável com o preenchimento de dois
requisitos: (i) o capital social da subsidiária residente no exterior deveria ser detido por até 5
pessoas norte-americanas; e (ii) até 60% dos rendimentos brutos da subsidiária deveriam
corresponder a certas classes de rendimentos passivos.
Conforme aponta Keith Engel, o condicionamento de aplicação deste regime ao fato
de a subsidiária ser controlada por até 5 pessoas norte-americanas limitava o campo de
aplicação da norma, excluindo-a de quase todas as empresas com capital aberto nas bolsas de
valores norte-americanas ou que auferissem, preponderantemente, rendimentos ativos33
.
Alberto Xavier sustenta que esta tentativa norte-americana caracterizou um
movimento de combate unilateral à prática de acumulação de rendimentos em paraísos
fiscais34
. Neste sentido, as medidas adotadas, já neste momento inicial, podiam ser
caracterizadas como:
As medidas adotadas traduzem-se essencialmente em, por ficção legal,
“desconsiderar” a personalidade jurídica das sociedades cuja constituição ou
funcionamento tenha sido ou seja inspirada predominantemente por razões de ordem
fiscal, considerada transparente (pass-throught entity) em termos de permitir a
31
Trata-se de sociedades empresariais cujo objeto social é deter participação societária de outras sociedades
empresariais. 32
Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle
with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.532. 33
Ibid., 2001, p.1.534. 34
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 285.
33
tributação dos respectivos sócios, como se tivessem auferido diretamente os lucros,
sem aguardar pelo momento da distribuição dos lucros entretanto acumulados.35
O mecanismo descrito acima promovia a transparência fiscal das subsidiárias norte-
americanas residentes no exterior de modo a permitir a tributação dos rendimentos nelas
acumulados independentemente da sua efetiva disponibilização. Este foi o primeiro regime
antidiferimento criado no mundo. Embora o seu campo de aplicação tivesse suas limitações, o
mecanismo foi posteriormente aperfeiçoado de modo a ampliar, sensivelmente, o seu campo
de incidência. Este passo fundamental foi dado, posteriormente, em 1962.
1.3.2. A alteração legislativa de 1962 (Subpart F)
O contexto histórico que antecedeu à introdução do regime de transparência fiscal
internacional nos EUA, vigente até os dias de hoje com algumas alterações que serão tratadas
mais adiante, era um contexto de grande déficit fiscal no qual o ritmo de crescimento da
economia norte-americana havia diminuído sensivelmente. Muitos estudiosos e funcionários
da administração fiscal norte-americana acreditavam que os investimentos em subsidiárias no
exterior – especialmente nos casos em que o regime de antidiferimento introduzido em 1934
não era aplicável – contribuía para o déficit fiscal constatado e que a sua tributação poderia
gerar receitas suficientes para equilibrar novamente as contas públicas36
.
Diante deste contexto, a Administração Kennedy propôs, em 1961, a larga eliminação
do regime anterior que permitia o diferimento de parte dos rendimentos auferidos no exterior.
Sob a égide do novo regime proposto, a regra geral passaria a ser o antidiferimento para a
maior parte dos investimentos feitos pelas companhias americanas no exterior, o que se
traduziria pela aplicação, quase que irrestrita, do regime de transparência fiscal internacional.
Este regime foi visto como uma alternativa normativa que favoreceria o maior ganho possível
de arrecadação ao fisco norte-americano.
Visto sob outra perspectiva, o que a Administração Kennedy pretendia era a promoção
da neutralidade na exportação de capitais, muito embora ela não estivesse disposta a restituir a
35
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 285. 36
Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle
with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.538.
34
eventual diferença positiva entre o imposto pago no exterior e o imposto devido nos EUA
(nos casos em que o imposto cobrado pelo país de fonte fosse superior ao norte-americano), o
que, teoricamente, impediria que fosse plenamente atingida a neutralidade na exportação de
capitais.
Antes mesmo de prosseguir ao debate legislativo que culminou na inserção da subpart
f ao Internal Revenue Code, é importante tecer uma breve explicação sobre o conceito de
neutralidade na exportação de capitais e sobre a concepção que lhe contrapõe, da neutralidade
da importação de capitais.
A neutralidade na exportação de capitais – Capital Export Neutrality (CEN) – é
alcançada na medida em que a carga tributária não afete a decisão do investidor nacional entre
investir dentro das fronteiras nacionais ou no exterior. O CEN parte, portanto, da ideia de
isonomia de tratamento tributário entre os investimentos feitos dentro e fora das fronteiras
nacionais. Desse modo, a decisão entre investir dentro ou fora das fronteiras nacionais se
torna neutra do ponto de vista fiscal. Este método está geralmente associado à concessão de
créditos relativos ao valor dos impostos pagos no exterior como medida destinada a atenuar a
dupla tributação e a equalizar o retorno líquido (retorno pós-impostos) dos investidores
nacionais e estrangeiros37
. Dessa forma, a premissa adotada é de que a carga tributária
efetivamente arcada pelo investidor residente nos EUA corresponda à carga do seu país (país
de residência do investidor) e não à tributação devida no país de residência da sociedade
investida (país da fonte produtora).
O modelo que mais favorece a neutralidade na exportação de capitais – tendo sido
inclusive vislumbrado como o tipo ideal pela Administração Kennedy – é o regime de
tributação em bases universais associado à regra geral de antidiferimento uma vez que este
desenho normativo é capaz de impedir a postergação indefinida no tempo da tributação do
país de residência da sociedade investidora. Assim, o regime de transparência fiscal, através
do qual todos os rendimentos são tributados independentemente da sua efetiva
disponibilização, favorece o CEN. O elemento de conexão que será utilizado para determinar
a competência tributária será a residência ou a nacionalidade do contribuinte (elemento de
conexão subjetivo), submetendo o residente ou o nacional à tributação universal de todos os
seus rendimentos independentemente do local da sua fonte de produção.
37
Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the Welfare State.
Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.607.
35
A neutralidade na importação de capitais – Capital Import Neutrality (CIN) – é
alcançada na medida em que tanto os investidores estrangeiros quanto os investidores
nacionais arquem com a mesma carga tributária incidente sobre os rendimentos obtidos em
seus respectivos investimentos. Assim, não importa onde o investidor seja residente fiscal, ele
estará submetido à carga tributária incidente apenas no país onde o seu investimento estiver
localizado (país da fonte de produção)38
. Desta forma, o país de residência do investidor
deverá assegurar isenção aos rendimentos auferidos no exterior, não se aplicando a lógica da
concessão de créditos para coibir a dupla tributação internacional39
. Diferentemente do CEN,
o CIN não está ancorado na ideia de isonomia de tratamento tributário entre investimentos
feitos no exterior e dentro das fronteiras nacionais. A decisão de onde investir não é, por sua
vez, neutra.
No entanto, o debate norte-americano revela que este regime favorece a
competitividade das empresas no mercado internacional uma vez que elas estarão sujeitas à
mesma carga tributária arcada pelas suas concorrentes. O elemento de conexão adotado será a
fonte de produção dos rendimentos, independentemente do local de residência ou da
nacionalidade do contribuinte (elemento de conexão objetivo), de modo que o modelo de
tributação que mais favorece a CIN é o regime de tributação em bases territoriais40
.
Em ambos os casos há de se ter um critério de isonomia. No primeiro, a isonomia se
dá no tratamento dos investidores. No segundo, a isonomia se dá no tratamento dos
investimentos.
Os modelos teóricos tratados acima não são excludentes entre si. Seria possível, em
teoria, alcançar, ao mesmo tempo, tanto a neutralidade na exportação de capitais quanto a
neutralidade na importação de capitais. Bastaria que, em um mundo hipotético onde só
38
Cf. CHORVAT, Terrence R. Taxing International Corporate Income Efficiently. NYU Tax Law Review, New
York, v. 53, 2000, p. 227 e ss. 39
Como medida destinada à eliminar a dupla tributação internacional, são celebrados tratados entre duas
jurisdições fiscais por meio do qual se pode escolher entre os dois métodos tradicionais de eliminação da dupla
tributação: (i) método crédito; e (ii) método da isenção. O primeiro método, conforme mencionado, implica a
concessão de créditos, no país de residência da pessoa investidora, de créditos correspondentes ao valor do
imposto pago no exterior. Algumas jurisdições fiscais, tais como a brasileira, limitam o valor do crédito ao
montante da tributação devida no Brasil por aquele rendimento auferido no exterior. O segundo método implica
o reconhecimento de que apenas um país possui jurisdição para tributar determinado rendimento, afastando a
jurisdição fiscal do outro país. O primeiro método permite que se evite a dupla tributação no âmbito da CEN. O
segundo permite que a concretização da CIN. 40
Cf. CHORVAT, op. cit., p. 227.
36
existem duas jurisdições fiscais, ambas fizessem incidir a mesma carga tributária41
sobre os
rendimentos oriundos da atividade econômica42
.
A separação conceitual entre CEN e CIN parte do pressuposto de que a tributação
sobre a renda pode afetar a decisão de investimento. Isso ocorre não apenas quanto à decisão
de internacionalizar a atividade econômica, mas, sobretudo, no tocante à competitividade das
subsidiárias frente a outras empresas que se aproveitam de carga tributária menor, ainda que
temporariamente, em virtude da possibilidade de diferimento da sua tributação até o momento
em que os seus lucros forem disponibilizados econômica ou juridicamente.
Como então escolher entre os dois modelos teóricos? Qual deles será mais eficiente do
ponto de vista econômico? A literatura especializada defende que ambos os modelos poderão
gerar o mesmo nível de eficiência, dependendo da elasticidade da demanda e da oferta de
capital. A CEN será preferida nas situações em que a oferta de capital for fixa e a sua
demanda for elástica. Por outro lado, a CIN será preferida nas hipóteses em que a oferta por
capital for elástica e a sua demanda for fixa43
.
A Neutralidade Nacional – National Neutrality (NN) – é um modelo teórico que visa
romper com a oposição clássica entre CEN e CIN, na medida em que coloca a maximização
do bem estar nacional como prioridade central44
. Feitos estes breves esclarecimentos,
prosseguiremos com a análise do debate legislativo norte-americano.
41
O termo “identidade de carga tributária” deve ser entendido como “identidade de todos os aspectos
quantitativos da regra matriz de incidência tributária dos impostos incidentes sobre a atividade empresarial”. 42
Em relação ao tema, é interessante notar que a comissão “Ruding” (Ruding Comission) chegou a apontar para
a harmonização da carga tributária entre todos os estados-membros da União Europeia como forma de se atingir
tanto a CEN quanto a CIN e de reduzir distorções no mercado interno europeu. Neste sentido, veja-se o disposto
no Capítulo 10 das Conclusions and recommendations of the Committes of Independent Experts on Company
Taxation – Ruding Tax Comission of European Comunities. Luxembourg, 1992. 43
Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the Welfare State.
Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.606. 44
Daniel Shaviro – Professor da Universidade de Nova Iorque – defende a adoção de um sistema pautado na
isenção dos rendimentos auferidos por subsidiárias no exterior o que implicaria, na prática, a adoção do princípio
da tributação em bases territoriais. Primeiramente, o referido acadêmico parte da ideia de que não faz sentido
pensarmos em um sistema de tributação em bases universais, que se utilize do método do crédito, que preze por
um bem-estar global, pois, com isso, se opera uma verdadeira transferência de dinheiro para o exterior, o que
leva à qualificação do imposto pago no exterior (sobre o qual se calculou o valor do crédito) como sendo uma
verdadeira despesa no país do investidor. Esta é a concepção orientadora da neutralidade nacional (National
Neutrality - NN) que se contrapõem amplamente à neutralidade da exportação de capitais (CEN), aceita por
longo período de tempo como diretriz de formulação de políticas tributárias, respaldando-se em um sistema de
tributação em bases mundiais atrelado à concessão de créditos sobre impostos pagos no exterior como medida
destinada a evitar a dupla tributação internacional. Do ponto de vista da CEN, a concessão de créditos relativos a
impostos pagos no exterior é visto, no país de residência do investidor, como sendo uma transferência – ao
contrário do NN que o vê como uma despesa – denotando nítida preocupação com o bem-estar global e não com
o bem-estar nacional. Segundo o autor, a concessão de créditos tributários sobre o imposto pago no exterior custa
ao país de residência do investidor a renda pós-imposto estrangeiro e elimina o incentivo das suas empresas em
37
A Administração Kennedy propôs a criação de um modelo que favoreceria a
neutralidade na exportação de capitais, colocando, portanto, fim ao diferimento da tributação
norte-americana incidente sobre rendimentos auferidos no exterior. Não obstante a sua
coerência lógica, a proposta de regime de transparência fiscal internacional apresentada pela
da Administração Kennedy sofreu forte oposição no Congresso norte-americano.
A crítica feita, à época, dizia respeito a dois aspectos centrais da proposta: (i) possível
inconstitucionalidade do regime de transparência fiscal; e (ii) potenciais impactos ensejados
pelo regime na competitividade das subsidiárias americanas no exterior45
. Tratou-se, de fato,
da organização de lobbies por empresários norte-americanos junto aos grupos de interesse
organizados no Congresso norte-americano que efetivamente conseguiram barrar a proposta
feita pelo Governo.
Em relação ao argumento da competitividade nos mercados internacionais, note-se que
a comunidade empresarial alegou, na época, que se os seus concorrentes internacionais
poupar impostos estrangeiros (afinal é garantido o direito ao crédito desde que limitado ao valor do imposto
devido no Brasil). Além disso, há dificuldades práticas de se alcançar um padrão de plena reciprocidade na
concessão de créditos tributários quando se pensa em escala global, o que coloca em xeque a sua eficiência e
desequilibra o jogo que deveria ser “de soma zero” que ocorreria se duas nações idênticas adotassem políticas
fiscais idênticas com a cobrança e a concessão mútua de impostos. Pelas razões expostas acima, o autor defende
que a perspectiva mais adequada quando se pensa uma política tributária seria prezar pela maximização do bem-
estar nacional, a despeito do global. O sistema que maximiza o bem-estar nacional é adequadamente
representado pela NN, que tradicionalmente, segundo o autor, partia de dois pressupostos fundamentais: em
primeiro lugar, o sistema tributário deve abranger a renda dos seus contribuintes auferida em bases universais, ao
invés de territorialmente, pois assim ele evitará que haja perdas de receitas fiscais na medida em que, caso
houvesse a previsão de um sistema de isenção (territorialidade), o investimento exterior seria feito às custas do
investimento interno; em segundo lugar, os impostos estrangeiros devem ser dedutíveis na medida em que, do
ponto de vista do bem-estar nacional, eles não passam de meras despesas. O autor aponta, no entanto, que o
primeiro pressuposto foi significativamente enfraquecido ou refutado na medida em que estudos empíricos
comprovaram que o investimento externo dos países não se dava às custas do investimento interno. Assim,
rejeitada a primeira premissa, a segunda – a qual preza pela maximização do bem-estar nacional – pode ser
alcançada por um sistema de tributação que isente os lucros auferidos no exterior da tributação no Estado de
residência do sócio investidor uma vez que a isenção corresponde, implicitamente, a um sistema de dedução do
imposto pago no exterior. O pressuposto não apenas de que a NN é desejável como também que ela pode ser
alcançada mediante a tributação dos rendimentos de origem estrangeira dos residentes à alíquota tributária
geralmente aplicável aos demais rendimentos, com a possibilidade de dedução dos impostos estrangeiros já havia
sido estabelecido, desde 1963, por Peggy Richman Musgrave. A ideia, portanto, não é nova. O que é novo é a
visão de que um sistema de tributação em bases territoriais – ou seja, que isente os rendimentos auferidos em
bases universais – é um sistema implícito de dedução e que ele corrobora com a maximização do bem-estar
nacional, favorecendo, portanto, a NN (uma vez derrubada a sua primeira premissa). O autor aponta ainda que
muito do fascínio das pessoas pelo direito ao crédito no valor do imposto pago no exterior é o seu papel de evitar
a dupla tributação. A atenção não deveria, no entanto, estar focada na dupla tributação jurídica, mas sim na
econômica e na neutralidade fiscal geral do sistema. O sistema de créditos é, neste sentido, apenas uma das
formas de se resolver o problema da dupla tributação. Outra alternativa igualmente plausível seria simplesmente
diminuir a alíquota do imposto incidente sobre lucros auferidos no exterior que, no limite, cairia para zero,
tornando-se um sistema que se respalda na isenção (ou territorialidade). Vejam-se maiores detalhes em:
SHAVIRO, Daniel. Repensando o crédito tributário estrangeiro. Revista Tributária das Américas, São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 2, 2011. 45
Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle
with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.539.
38
pudessem continuar se utilizando de paraísos fiscais para reduzir a sua carga tributária,
principalmente através da possibilidade de diferimento da tributação nos seus respectivos
países de residência, eles perderiam competitividade caso não pudessem fazer o mesmo já que
não poderiam igualar os seus preços aos dos seus concorrentes. Veja-se, neste sentido, o
trecho abaixo:
Similarmente, testemunhas da comunidade empresarial norte-americana levantaram
a bandeira da competitividade em oposição às propostas feitas pelo Governo. Apesar
de concordarem que a maior parte dos seus competidores provinha de nações
industrializadas de elevada carga tributária, essas testemunhas argumentavam que os
seus competidores internacionais estavam se utilizando, igualmente, de
planejamentos tributários envolvendo paraísos fiscais para reduzir a sua carga
tributária. Portanto, caso a Administração acabasse com o regime de diferimento,
conforme proposto, os empresários norte-americanos não seriam capazes de
competir com os seus competidores estrangeiros que iriam continuar reduzindo a sua
carga tributária global através do recurso aos paraísos fiscais.46
(Tradução livre)
Em resposta ao argumento trazido pelos empresários norte-americanos, a
Administração alegou que as preocupações relativas à competitividade internacional das
subsidiárias norte-americanas, apesar de coerentes em tese, não se verificavam de fato. Neste
sentido, defendia a Administração que, muito embora alguns competidores internacionais
estivessem se utilizando de paraísos fiscais para reduzir a sua carga tributária, os
competidores estrangeiros recorriam a esta prática muito menos do que os empresários norte-
americanos47
. De fato, a Administração Kennedy estava comprometida em combater o recurso
aos planejamentos tributários envolvendo paraísos fiscais.
No entanto, ao apreciar o projeto apresentado pelo Poder Executivo, o Congresso
houve por bem limitar a proposta de combater todas as formas de diferimento do imposto
sobre a renda corporativa norte-americano, fundamentalmente, porque ele havia sido
convencido, pelo empresariado, de que muitas subsidiárias, que desempenhavam atividades
econômicas substanciais e que produziam rendimentos ativos no exterior, poderiam ter a sua
competitividade onerada por este regime tributário.
46
ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle
with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p 1.540. No original: “Similarly, witnesses from U.S.
international business community raised the banner of competitiveness in opposition to the Proposals. While
conceding that most of their competitors were from high-tax industrialized nations, these witnesses argued that
these foreign competitors were similarly using tax-haven devices to reduce their own foreign tax burdens.
Therefore, if the Administration ended deferral as proposed, U.S. business would be unable to compete with
their foreign counterparts who would continue to reduce their global tax burdens through the tax-heaven device.” 47
Ibid., p. 1.540.
39
O regime que prevaleceu ao final deste embate previu a regra de antidiferimento
parcial que se aplicava tão somente em relação a: (i) rendimentos passivos em geral (foreign
personal holding company income); (ii) ganhos de capital auferidos sob condições especiais
(foreign base company sales income) e; (iii) rendimentos oriundos de serviços prestados sob
determinadas condições (foreign base company services income) 48
. O Congresso entendeu
que não havia razões para que os rendimentos passivos fossem excluídos do regime de
antidiferimento já que eles não suscitavam as mesmas questões concorrenciais que os
rendimentos ativos por não serem o fruto da atividade econômica efetivamente produtiva no
exterior (industrial, comercial ou agrícola).
Ao final do debate, prevaleceu um regime tributário híbrido que proibiu o diferimento
do pagamento do imposto norte-americano apenas em relação aos rendimentos mencionados
acima que, em sua maioria, são de natureza passiva. Neste sentido, de acordo com João
Francisco Bianco, a postura do Congresso norte-americano, quando da votação da proposta
apresentada pelo Governo, foi no sentido de distinguir entre duas formas de diferimento: (i)
diferimento lícito (rendimentos ativos); e (ii) diferimento ilícito (rendimentos passivos) 49
.
1.3.3. Subpart f: Tendências posteriores a 1962
Entre o período de 1962 e o começo da década de 1990, o regime de tributação de
lucros auferidos no exterior sofreu alterações legislativas que, embora não tivessem alterado
os aspectos centrais do regime aprovado em 1962, aumentaram as hipóteses normativas de
incidência do regime de antidiferimento (regime de transparência fiscal internacional). Neste
sentido, houve um claro movimento legislativo de restrição ao diferimento no direito norte-
americano até o início da década de 199050
.
48
A subpart f do Internal Revenue Code americano possui algumas hipóteses de exclusão (safe harbors) da
aplicação do regime antidiferimento norte-americano. Sem pretender descer aos detalhes da legislação dos EUA,
as hipóteses de exclusão do regime de transparência fiscal são representadas pelas situações em que a principal
motivação que orientou a constituição de uma subsidiária no exterior não foi fiscal e por determinadas transações
que visam facilitar as exportações norte-americanas. 49
BIANCO, João Francisco. Transparência fiscal internacional. São Paulo: Dialética. 2007, p. 28-29. 50
Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle
with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.549.
40
Desde 1962, o Congresso norte-americano expandiu as categorias de rendimentos
sujeitas à aplicação do regime antidiferimento, denominadas subpart f income categories.
Houve a inclusão de novas categorias de rendimentos passivos sujeitos ao regime. Além
disso, os rendimentos auferidos por subsidiárias estrangeiras de companhias de navegação e
empresas petrolíferas também foram incluídos no seu campo de incidência. As alterações que
foram feitas na legislação norte-americana tiveram como objetivo central adaptar o regime,
concebido e aprovado em 1962, às formas desenvolvidas ao longo do tempo de geração ou
disfarce de rendimentos passivos.
O mais emblemático esforço norte-americano no sentido de enrijecer o regime
antidiferimento consistiu na aprovação do Passive Foreign Investment Company regime
(PFIC) e das CFC Excess Passive Asset rules51
. Ambos tiveram como objetivo central acabar
com o diferimento da tributação de subsidiárias de companhias norte-americanas que
possuíssem excesso de ativos que gerassem, tão somente, rendimentos passivos.
Antes da aprovação desses dois regimes, havia uma hipótese de exclusão na legislação
norte-americana aplicável a todas as pessoas jurídicas que detivessem até 10% de participação
societária em subsidiárias no exterior, mesmo que elas produzissem rendimentos que
estivessem, em princípio, sujeitos à aplicação do regime antidiferimento (subpart f income).
Assim, o PFIC veio como um regime complementar às CFC rules. O PFIC é mais flexível do
que as CFC rules – não exige, por exemplo, participação societária mínima para ser aplicável
– e possibilitou o combate a abusos que estas últimas não conseguiam coibir. O regime PFIC
norte-americano chegou a inspirar normas de semelhante natureza que passaram a ser
defendidas por organizações como a OCDE, como técnica de combate à concorrência fiscal
danosa, conforme trataremos no próximo tópico.
Por fim, vale mencionar que, a partir da década de 1990, houve intensas pressões
políticas no Congresso norte-americano demandando maior flexibilidade do regime de
antidiferimento para que as subsidiárias de companhias dos EUA pudessem ter melhores
condições de competitividade no mercado internacional. Neste contexto, houve um
relaxamento do regime especialmente em relação à acumulação de ativos em subsidiárias no
exterior que só produzissem rendimentos passivos – as CFC Excess Passive Asset rules foram
revogadas – e aos rendimentos ativos auferidos por subsidiárias de bancos.
51
Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle
with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.550.
41
A tendência, após a metade da década de 1990, foi a criação das “check the box”
regulations através das quais uma entidade estrangeira poderia ser qualificada como uma
entidade jurídica autônoma para fins de tributários do país onde ela reside e, ao mesmo tempo,
como filial (i.e. sem personalidade jurídica) para fins de incidência do imposto norte-
americano. O objetivo era evitar que subsidiárias híbridas fizessem transações intragrupo para
transferir renda de países de elevada tributação para paraísos fiscais, evitando-se a aplicação
da subpart f52
.
Conforme visto, o debate norte-americano, embora preocupado com o combate à
prática do uso de paraísos fiscais (hipótese de diferimento ilícito), está muito mais voltado
para a batalha de grupos de interesses junto ao Congresso norte-americano no sentido de
excluir determinados rendimentos do regime antidiferimento da subpart f em nome da
competitividade das suas subsidiárias no mercado internacional53
, do que com o debate sobre
competição fiscal danosa promovida pela OCDE e pela União Europeia. Este debate será
visto nos próximos tópicos, sendo ele igualmente importante para que se possa compreender a
trajetória histórica do instituto da transparência fiscal internacional no direito tributário
internacional.
1.3.4. As exceções criadas às Foreign Sales Corporations (FSC)
É interessante observar que, se por um lado a Administração Kennedy objetivou
combater estratégias elisivas voltadas à transferência de capital de países de elevada carga
tributária para países de tributação favorecida, submetendo determinados tipos de rendimentos
(denominados subpart f income) à tributação através das suas CFC rules, por outro lado o
Congresso norte-americano entendeu que as empresas exportadoras deveriam ter o benefício
tributário do diferimento da tributação norte-americana incidente sobre as receitas de
exportações auferidas por subsidiárias residentes no exterior que fossem qualificadas como
export trade corporations.
52
Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle
with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.552. 53
Observa-se que a questão da competitividade esteve presente desde o debate legislativo de 1962 até hoje nos
EUA, favorecendo um modelo de diferimento parcial ou, em alguns casos, até mesmo a adoção do CIN. Neste
sentido, confira-se: AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the
Welfare State. Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.610.
42
A principal razão que motivou o Congresso a criar um regime especial para as
exportações dizia respeito à concorrência comercial oferecida pelos europeus. Acreditava-se,
na época, que os sistemas de tributação em bases territoriais adotados pela grande parte dos
países da Comunidade Europeia poderiam gerar uma desvantagem concorrencial para as
exportações norte-americanas que, ainda que não estivessem sujeitas às suas CFC rules,
estariam sujeitas à tributação em bases mundiais54
. A verdade era, no entanto, que os EUA
queriam incentivar as suas exportações através da concessão de um regime tributário mais
benéfico.
O regime vigente desde 1971, denominado Domestic International Sales Corporation
(DISC regime), consistia, fundamentalmente, em um regime que permitia o diferimento da
tributação norte-americana incidente sobre receitas de exportação de subsidiárias residentes
no exterior qualificadas como DISC. Na prática, uma parte das receitas de exportação era
isenta da tributação norte-americana e a outra parta era diferida indefinidamente no tempo55
.
O regime da DISC foi objeto de disputa internacional por ser acusado de violar o
Acordo GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), tendo o conselho decidido que o
regime norte-americano era um subsídio proibido às exportações norte-americanas, bem como
uma verdadeira isenção e não mero diferimento da tributação56
. A Comunidade Europeia,
particularmente, além de acusar os EUA de conceder subsídio proibido às suas exportações,
fez fortes pressões para que o conselho autorizasse o uso de medidas compensatórias contra o
comércio norte-americano. Diante da possibilidade de sofrer medidas compensatórias, no ano
de 1984, o Congresso norte-americano substituiu o DISC regime pelo FSC regime (Foreign
Sales Corporation regime), em uma tentativa de se adequar à decisão proferida pelo conselho
do GATT57
.
No regime das FSC, as receitas decorrentes de exportação das sociedades qualificadas
como FSC estavam sujeitas à tributação em bases territoriais pelo país da fonte produtora, ou
seja, não estavam sujeitas à tributação nos EUA, tampouco à aplicação das suas CFC rules,
ainda que tais sociedades fossem residentes em países de tributação favorecida. Alguns
autores questionam se a adoção do regime das FSC não seria uma reação contra o sistema de
54
Em relação a questão concorrencial advinda da tributação em bases territoriais dos países da Comunidade
Europeia, confira-se: JELSMA, Phillip L. The making of a subsidy, 1984: The tax and international trade
implicatios of the Foreign Sales Corporation legislation. Stanford Law Review, v. 38, n. 5, 1986, p. 1.327-1.362. 55
Ibid., p. 1.333-1.334. 56
Ibid., p. 1.334. 57
Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle
with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.547-1.548; e JELSMA, Phillip L. Op. Cit., p. 1.334.
43
tributação em bases territoriais adotado pela Comunidade Europeia bem como contra os
benefícios fiscais dados no âmbito dos seus tributos indiretos (sobretudo o Imposto sobre o
Valor Agregado - IVA)58
.
No entanto, o FSC regime foi questionado junto à OMC (Organização Mundial do
Comércio), da mesma forma que ocorreu com o seu antecessor. Em 2000, a referida
organização proferiu decisão, em sede de recurso (Appellate Body), reconhecendo que o
regime norte-americano violava o Acordo GATT, mais precisamente o Acordo sobre
Subsídios e Medidas Compensatórias (art. 3.1, a) que o integra. O referido dispositivo faz
menção ao Anexo I do acordo em que constam exemplos do que se entende por subsídios
concedidos às exportações, sendo que a nota de rodapé nº 59 resguardava o direito de o país
adotar medidas destinadas a evitar a dupla tributação internacional, desde que em respeito ao
princípio arm’s length.
Sem querer entrar muito nas suas minúcias, vale ressaltar que a discussão central que
foi levada à OMC era, fundamentalmente, se o FSC regime, enquanto medida destinada a
evitar a dupla tributação, poderia ser excluído do conceito de subsídio proibido às
exportações. Na ocasião, os EUA argumentaram que a parte final da nota de rodapé tornava
possível essa interpretação, ao passo em que a Comunidade Europeia defendeu que o
dispositivo não permitia que os países signatários adotassem métodos destinados a evitar a
dupla tributação – tais como a isenção completa – de receitas estrangeiras oriundas de
operações de exportações diferentes do método geral adotado pelo país em relação às demais
receitas, que, no caso dos EUA, é o método do crédito. Prevaleceu, ao final, a visão defendida
pelos europeus59
.
A crítica que se pode fazer à decisão da OMC é que, não obstante ela tenha
determinado que os EUA extinguissem o seu regime tributário aplicável às FSC, a decisão
não impediu que o país viesse a adotar medidas futuras que tivessem efeitos similares
(beneficiar as exportações), desde que precedida do devido cuidado para que tais medidas não
violassem os acordos celebrados pelo país60
.
58
Entre eles: JELSMA, Phillip L. The making of a subsidy, 1984: The tax and international trade implicatios of
the Foreign Sales Corporation legislation. Stanford Law Review, v. 38, n. 5, 1986. p. 1.353-1.355. 59
Cf. LANGBEIN, Stanley I. Tax treatment for “foreign sales corporations” – WTO Doc. WT/DS108/AB/R.
The American Journal of International Law, American Society of International Law, v. 94, n. 3, 2000, p. 546-
555. 60
Ibid., p. 553.
44
Ademais, notamos que o embate entre os EUA e a Comunidade Europeia esteve
presente tanto na ocasião em que se discutiu o regime das DISC com o Acordo GATT, quanto
em momento posterior, quando se questionou a adequação do regime das FSC com o referido
acordo. Tal embate no âmbito do Acordo GATT é, acima de tudo, um reflexo de uma disputa
comercial acirrada entre os EUA e a Europa, bem como uma consequência da tentativa de se
comparar sistemas tributários com composição completamente distinta; enquanto o sistema
europeu se respalda muito mais na tributação incidente sobre o consumo (e.g. IVA) do que na
tributação direta (e.g. IR), o sistema tributário norte-americano, que pouco tributa o consumo,
está mais ancorado na tributação incidente sobre a renda corporativa e das pessoas físicas.
1.4. O debate internacional: a concorrência fiscal danosa e as CFC rules
O debate norte-americano posterior à introdução das CFC rules no Internal Revenue
Code (subpart f regime) foi acompanhado por um debate internacional patrocinado por
organizações internacionais e supracinacionais – fundamentalmente a OCDE e a Comissão da
Comunidade Europeia (atual União Europeia) – cujo objetivo central era combater as práticas
de concorrência tributária danosa entre os países, principalmente no que tange à existência de
países de tributação favorecida (paraísos fiscais) e regimes fiscais privilegiados.
A preocupação dos impactos arrecadatórios causados por práticas de elisão e evasão
fiscal internacional, favorecidas pela existência de regimes de menor pressão fiscal, na
arrecadação tributária global de países de tributação regular, levou diversos países membros
da OCDE e da Comunidade Europeia a solicitar a realização de estudos que demonstrassem
os potenciais efeitos negativos advindos da concorrência fiscal e a formulação de
recomendações de política tributária destinadas à proteção das suas bases imponíveis.
Tanto no debate norte-americano, quando no debate internacional patrocinado pela
OCDE e pela Comissão Europeia, que será analisado a seguir, o objetivo que foi atribuído ao
regime de transparência fiscal internacional – ou CFC rules conforme internacionalmente
conhecidas – é antielisivo, ou seja, por meio da sua aplicação, busca-se desconsiderar uma
conduta voluntária do contribuinte que tem por motivo exclusivo ou preponderante evitar a
incidência da norma que prescreve a hipótese de incidência tributária. Os pressupostos
normativos e as teorias que respaldam a aplicação do regime de transparência fiscal serão
45
analisados adiante neste capítulo. Por ora, analisaremos a relação entre a função antielisiva do
regime de transparência fiscal e do debate internacional sobre a concorrência fiscal danosa.
1.4.1. O projeto da OCDE sobre a concorrência fiscal danosa
O debate patrocinado no âmbito da OCDE culminou na publicação, em 1998, de um
relatório denominado Harmful Tax Competition: an Emerging Global Issue. Antes disso,
outros estudos já haviam sido feitos pela OCDE sobre a problemática da concorrência fiscal
internacional e dos paraísos fiscais61
. No entanto, o relatório publicado em 1998 foi um
importante marco no entendimento da organização sobre o tema já que ela expôs as
conseqüências advindas da concorrência fiscal, estabeleceu critérios para a identificação de
países de tributação favorecida e regimes fiscais privilegiados e fez recomendações para a
proteção da arrecadação tributária dos seus países membros.
De acordo com o relatório, a concorrência fiscal internacional foi vista pela OCDE
como uma das conseqüências advindas do fenômeno da globalização, no qual as políticas
tributárias praticadas individualmente pelos países passaram a ter implicações que não mais se
restringiam à condução das suas políticas internas, passando a surtir efeitos também em outras
jurisdições fiscais62
. Este diagnóstico está relacionado à formação de uma economia global
pautada pela elevada mobilidade do capital e pela consequente facilidade com a qual
contribuintes nacionais passaram a transferir os seus capitais de jurisdições de maior pressão
fiscal para jurisdições de menor pressão, motivados pelo objetivo de aumentar o seu lucro
pós-tributário.
Diversas jurisdições fiscais passaram a oferecer regimes tributários mais vantajosos
destinados, fundamentalmente, a atrair capitais com elevada mobilidade orientados por razões
preponderantes de economia fiscal. Esta prática ficou sendo conhecida como concorrência
fiscal danosa – harmful tax competition – e se opõe à concorrência fiscal justa – fair tax
competition. A diferença entre as duas espécies é que, apesar de em ambos os casos a
jurisdição fiscal apresentar carga tributária relativamente baixa, no primeiro caso ela se
61
Veja-se, neste sentido: OCDE, L’evasion et la fraude fiscales internationales. Paris, 1987; e OECD,
Controlled Foreign Company Legislation. In: Studies in Taxation of Foreign Source Income. Paris, 1996. 62
OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 14.
46
apresenta e é percebida como uma alternativa oferecida ao não residente destinada a evitar a
incidência da tributação devida no seu país de residência, sendo ela, na maioria dos casos, não
transparente no sentido de não disponibilizar informações relativas ao seu sistema tributário
ou de dados dos próprios contribuintes para fins de controle fiscal63
. De fato, a prática de
concorrência fiscal danosa está diretamente ligada tanto à elisão quanto à evasão fiscal
internacional64
.
De acordo com Alberto Xavier, a elisão fiscal internacional praticada pelo contribuinte
consiste em se evitar a aplicação de certa norma ou conjunto de normas através de atos ou
conjunto de atos que visem impedir a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária em
certa ordem jurídica (menos favorável) ou produzam a ocorrência desse fato em outra ordem
jurídica (mais favorável)65
.
A característica que diferencia a elisão fiscal aplicada ao direito interno daquela
aplicada ao direito internacional é justamente o fato de que, nesta segunda categoria, o que se
busca é manipular os elementos de conexão66
entre o contribuinte e determinada jurisdição
fiscal, enquanto que, na primeira, a elisão fiscal se opera tão somente através da manipulação
das formas negociais previstas no direito privado, das quais dispõe o contribuinte para
organizar a sua atividade econômica sem, no entanto, que elementos de conexão sejam
manipulados. Neste sentido, a elisão fiscal internacional depende de dois pressupostos: (i) da
existência de dois ou mais ordenamentos tributários em que, ao menos um deles, ofereça
vantagens de natureza fiscal; e (ii) da faculdade de o contribuinte aproveitar os benefícios de
natureza tributária oferecidos.
O que caracterizará a elisão fiscal internacional como sendo passível de repreensão
unilateral ou de forma coordenada, seguindo a linha de raciocínio do relatório da OCDE, será
a constatação de prática de concorrência fiscal danosa. Por outro lado, a elisão fiscal
internacional lícita, que não enseja repreensão por parte dos países, está inserida no campo da
concorrência fiscal justa.
63
Cf. OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 21. 64
É importante esclarecer, no entanto, que o foco do presente tópico será a elisão fiscal internacional, devido à
sua relação com as CFC rules, razão pela qual não analisaremos a questão da evasão fiscal internacional com a
mesma profundidade. 65
Cf. XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 235. 66
Os elementos de conexão são os critérios que permitem delimitar a competência tributária internacional ou, em
outros termos, representam as bases para atribuição de jurisdição tributária.
47
Há, segundo Alberto Xavier, duas modalidades de elisão fiscal internacional: (i) a
subjetiva; e (ii) a objetiva67
. Na primeira modalidade, há manipulação do elemento de
conexão subjetivo, tal como o domicílio ou a residência da pessoa, para que ela passe a se
aproveitar de um regime fiscal mais vantajoso. É o que ocorre, por exemplo, quando uma
pessoa física transfere o seu domicílio fiscal para outro país com regime fiscal mais vantajoso
(expatriação fiscal) e com isso deixa de estar submetida à jurisdição tributária de maior
pressão fiscal. Na segunda modalidade, há manipulação do elemento de conexão objetivo, tal
como a fonte de produção ou de pagamento dos rendimentos. A manipulação do elemento de
conexão objetivo pode ocorrer, mais precisamente, através da divisão, acumulação e
transferência de rendimentos, tal como ocorre com a criação de controladas, coligadas, filiais
e sucursais em países de baixa tributação para que os lucros ali produzidos possam ser
acumulados por prazo indefinido.
Tulio Rosembuj defende, sob outra perspectiva, que a elisão fiscal não se opera apenas
no plano de ações positivas do particular, mas, sobretudo, do ponto de vista do Estado. Assim,
o conceito de elusión de Estado apresentado pelo autor consiste, fundamentalmente, no
oferecimento de regimes tributários favoráveis que buscam atrair capitais de elevada
mobilidade orientados por interesses de natureza exclusiva ou preponderantemente tributária.
Trata-se de um conceito muito próximo ao conceito de concorrência fiscal danosa proposto
pela OCDE, mas que com ele não se confunde já que não contêm em si as hipóteses de
cooperação com o particular para a ocultação de renda ou riqueza, condutas que estão situadas
no campo da evasão fiscal. Confira-se neste sentido:
A elisão de Estado se manifesta através do estabelecimento de regimes fiscais
favorecidos, especiais ou excepcionais, para favorecer a transferência de
investimentos entre Estados motivada por considerações exclusivamente fiscais, o
qual não apenas altera a alocação de recursos econômicos, como também,
principalmente, compromete o interesse fiscal dos Estados que os têm.
A elisão objetiva de Estado é um dos suportes, juntamente com a evasão, da
concorrência fiscal danosa entre os Estados.68
(Tradução nossa)
67
XAVIER, Alberto, 2010, op. cit., p. 236 e 237. 68
ROSEMBUJ, Tulio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 211-212. No original: “La
elusión de Estado se manifesta en el establecimiento de regímenes fiscales preferentes, especiales o
excepcionales, para favorecer el desplazamiento de inversiones entre Estados motivado por consideraciones
exclusivamente fiscales, lo cual no solo falsifica la asignación de recursos económicos, sino, y más destacado,
compromete el interés fiscal de los Estados que la padecen. La elusión objetiva de Estado es uno de los soportes,
junto con el de evasión, de la competencia fiscal lesiva o dañosa entre Estados.”
48
O referido autor reconhece, no entanto, que é possível postular a existência de um
princípio geral antielisão fiscal entre Estados no sentido de que toda lei tributária editada por
uma jurisdição fiscal que infrinja os interesses legítimos de outra jurisdição fiscal será
passível de uma reação por sua parte em virtude do exercício do seu direito de autotutela69
. O
exercício do direito de autotutela implica reconhecer que os Estados estão legitimados a
adotar diversas medidas unilaterais de combate, tais como as medidas propostas pela OCDE
em 1998.
A concorrência fiscal danosa, aos olhos da OCDE, é promovida através de regimes
fiscais vantajosos oferecidos por países ou dependências de tributação favorecida e regimes
fiscais privilegiados. O relatório indicou critérios para a identificação de cada um deles.
Os países ou dependências de tributação favorecida (paraísos fiscais) podem ser
identificados pela combinação de alguns critérios. O primeiro critério, que é imprescindível à
sua caracterização, é a imposição carga tributária real baixa ou nula aliada ao fato de que a
jurisdição fiscal se apresente e seja percebida como um local destinado ao uso de não
residentes que queiram elidir as normas tributárias do seu país de residência. Em adição ao
primeiro critério, a constatação de ao menos uma das características abaixo leva à
confirmação definitiva da qualificação do país como paraíso fiscal: (i) falta de efetiva troca de
informações com outras jurisdições fiscais relativas aos contribuintes beneficiários; (ii) falta
de transparência das práticas e leis tributárias; e (iii) inexistência de qualquer norma que exija
que a atividade conduzida sob a sua jurisdição fiscal possua substância econômica70
.
Os regimes fiscais privilegiados também podem ser caracterizados a partir do
preenchimento de alguns requisitos enumerados pela OCDE. O primeiro critério apontado
pela OCDE para a sua caracterização é – assim como em relação aos paraísos fiscais – a
imposição carga tributária real baixa ou nula. Este primeiro critério deverá ser combinado
com ao menos um dos seguintes critérios: (i) o regime deverá ser ring-fencing no sentido de
possuir elementos que protejam o mercado interno do país que o adota evitando-se, com isso,
que os efeitos perversos do regime fiscal privilegiado gerem efeitos concorrenciais negativos
aos residentes daquele país (o acesso ao regime privilegiado é geralmente restrito aos não
residentes ou possui mecanismos que proíbam os seus beneficiários de atuar no mercado
local); (ii) falta de transparência quanto ao modo pelo qual o regime se opera; e (iii) falta de
69
ROSEMBUJ, Tulio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 212. 70
OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 21-25.
49
efetiva troca de informações com outras jurisdições fiscais relativas aos contribuintes
beneficiários71
.
No entanto, a própria OCDE reconheceu haver limitações dos critérios elencados em
face da pluralidade de formas possíveis de criação de regimes fiscais privilegiados. Assim, há
outras características discriminadas no próprio relatório que qualificam um regime como
favorecido, tais como a definição artificial da base de cálculo dos seus impostos, a adoção do
regime territorial “puro”, a possibilidade de negociação da base de cálculo e da alíquota
aplicável, entre outras.
Neste contexto, o tratamento favorecido concedido por paraísos fiscais e regimes
fiscais privilegiados geralmente atrai rendimentos passivos com elevada mobilidade que são
transferidos através da criação em seus territórios de empresas off-shore, sociedades cativas,
sociedades de seguro cativas (captive off-shore insurance companies), sociedades de
faturação (invoicing companies), sociedades holding, sociedades-base (headquarters regime),
sociedades de artistas (rent a star companies) entre diversas outras formas de estruturação
societária72
. Dentre as alternativas apontadas, as sociedades-base e as sociedades holding são
especialmente utilizadas para diferir a tributação no país de residência do seu investidor.
A preocupação da OCDE estava centrada, naquele momento, fundamentalmente, nos
potenciais efeitos dos referidos regimes favorecidos sobre a arrecadação tributária dos demais
países do mundo de tributação “regular” – desenvolvidos e com elevada carga tributária em
sua esmagadora maioria –, em especial dos seus Estados membros. As conseqüências da
concorrência fiscal danosa são diversas: (i) distorção de fluxos de investimentos financeiros e
imobiliários; (ii) degeneração da integridade e da equidade das estruturas tributárias; (iii)
desencorajamento do cumprimento das leis das demais jurisdições fiscais; (iv) distorção do
desenho dos sistemas tributários, da arrecadação total, da participação de cada espécie
tributária na sua composição e do padrão de gastos incorridos no fornecimento de bens
públicos; (v) alteração da composição da base de arrecadação tributária para materialidades
com menor mobilidade, tal como a tributação incidente sobre a folha de salários (o que acaba
aumentando os custos do emprego formal); e (vi) aumento dos custos administrativos para
assegurar o respeito dos contribuintes à legislação interna dos países73
.
71
Cf. OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 25-34. 72
Cf. XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 264-274. 73
Cf. OECD, 1998, Op. Cit., p. 16.
50
Diante deste cenário, a OCDE houve por bem recomendar a adoção de medidas
unilaterais de combate, ressaltando que o ideal seria alcançar a cooperação em escala global,
objetivo em relação ao qual a OCDE também apresentou recomendações, muito embora a
própria organização tenha reconhecido as inúmeras dificuldades de se chegar à plena
cooperação mundial. O relatório também apresentou recomendações relativas aos tratados
internacionais celebrados74
.
No tocante às recomendações de práticas unilaterais, há de se ressaltar a recomendação
referente à adoção do regime de transparência fiscal (CFC rules). De acordo com o relatório
da OCDE, as CFC rules deveriam ser utilizadas como técnica de combate à concorrência
fiscal danosa através da eliminação do benefício do diferimento da tributação devida no país
de residência do investidor, em relação aos investimentos localizados em paraísos fiscais ou
que se beneficiassem de regimes fiscais privilegiados75
.
O próprio relatório reconheceu, no entanto, que há necessidade de se alcançar uma
coordenação maior entre os países de modo que o desenho das CFC rules adotadas por cada
um deles possua padrões mínimos de harmonização e estejam voltados para o cumprimento
dos objetivos previstos no relatório (combater a concorrência fiscal danosa) 76
.
A recomendação tratada acima está alinhada com a recomendação feita pela OCDE
relativa às participations exeptions no contexto da concorrência fiscal danosa. De acordo com
esta recomendação, os países que se utilizam do método de isenção para evitar a dupla
tributação – método que implica, na prática, a adoção do princípio da territorialidade –,
deveriam deixar de aplicá-lo em relação a determinados rendimentos (rendimentos passivos)
auferidos em países de tributação favorecida e regimes fiscais privilegiados77
. Tais
rendimentos deveriam ser tributados através de um regime de tributação em bases universais
com regra de antidiferimento que impedisse, dessa forma, o diferimento da tributação no país
de residência do investidor.
O relatório também recomendou o uso de foreign investment fund rules cuja função é
eliminar o diferimento da tributação devida no país de residência do investidor incidente sobre
rendimentos auferidos através de fundos de investimento estrangeiros que tenham sido
74
Vale ressaltar que todas as recomendações feitas pela OCDE não possuem natureza vinculativa de modo que
os países membros não se encontram obrigados a adotá-las. Trata-se de um instrumento de soft law no direito
internacional público. 75
OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 41. 76
Ibid., p. 42. 77
Ibid., p. 43.
51
excluídos do campo de aplicação das CFC rules em virtude do critério de participação
societária mínima78
. Sua aplicação é complementar às CFC rules na medida em que visa
cobrir as brechas deixadas por elas. Trata-se de um regime semelhante ao Passive Foreign
Investment Company regime (PFIC) adotado pela legislação norte-americana do qual
tratamos anteriormente.
Conforme vimos, as CFC rules foram vistas pela OCDE como técnica de combate às
práticas internacionais de concorrência fiscal danosa. Assim, do ponto de vista do debate
internacional, as CFC rules possuem natureza claramente sancionatória não sendo, portanto,
uma técnica voltada, tão somente, para fins arrecadatórios, já que a sua aplicação seletiva a
transforma em um forte instrumento de combate unilateral de estratégias abusivas de elisão
fiscal internacional.
Ficou muito clara, portanto, em 1998, a postura assumida pela OCDE no sentido de
definir os critérios que levariam à caracterização dos países ou dependências que estivessem
praticando a concorrência fiscal danosa e de recomendar a adoção de medidas unilaterais –
entre elas as CFC rules – como estratégia de proteção da arrecadação dos seus países
membros, em sua esmagadora maioria desenvolvidos. Na época em que o relatório foi
elaborado, a OCDE estava cumprindo um mandato do G7 – grupo das sete economias mais
desenvolvidas do mundo – que estava preocupado com os efeitos de determinadas estratégias
de elisão e evasão fiscal internacional na arrecadação tributária dos seus países membros.
Posteriormente, a OCDE recebeu críticas em relação aos critérios elencados para a
discriminação de países ou dependências como sendo de tributação favorecida. Já em 2001,
com a publicação de um novo relatório sobre o tema, pudemos identificar críticas apontadas
por países, em sua maioria subdesenvolvidos, ao critério elencado no relatório de 1998 de que
a prática de concorrência fiscal lesiva estaria atrelada ao oferecimento de baixa carga
tributária. Assim, alegou-se em defesa dos países em desenvolvimento que o fato de
possuírem baixa carga tributária apenas significava que o custo da sua máquina pública era
baixo, já que tais países não dispunham de elevada infraestrutura e os seus custos eram,
portanto, reduzidos. Deste modo, os países em desenvolvimento defenderam que não estavam
praticando concorrência fiscal danosa. Criticou-se, também, o critério da falta de atividade
substancial como forma de determinação de um paraíso fiscal. Ademais, a OCDE foi acusada
78
Cf. OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 42-43.
52
de não combater a concorrência fiscal danosa patrocinada pelos regimes fiscais favorecidos
dos seus próprios países membros79
.
Em virtude das pressões feitas, a OCDE mudou de posicionamento e o critério
determinante da concorrência fiscal lesiva passou a ser a ponderação do quão transparentes as
jurisdições fiscais são e em que medida elas estão dispostas a promover a efetiva troca de
informações fiscais caso requisitas por outras jurisdições.
De fato, no ano de 2000, o Fórum Global da OCDE de Transparência e Intercâmbio de
Informações para Assuntos Tributários (OECD’s Global Forum on Transparency and
Exchange of Information for Tax Purposes) havia sido criado e já estava em operação. O
objetivo central do Fórum Global é “assegurar que padrões elevados de transparência e de
troca de informações sejam implementados de uma forma justa, igualitária e que permita a
concorrência justa entre todos os países, pequenos ou grandes, membros ou não da OCDE” 80
.
A primeira iniciativa importante do Fórum Global foi a criação, em 2002, do modelo
de acordo de intercâmbio de informações em matéria fiscal (model agreement on exchange of
information on tax matters) 81
. Este modelo de acordo internacional é especificamente voltado
para a promoção da troca de informações entre os países juntamente com as convenções
celebradas entre eles para evitar a dupla tributação que já possuíam uma cláusula de
intercâmbio de informações (art. 26 da convenção modelo da OCDE). Com isso, as duas
modalidades de convenções fiscais passaram a ser usadas para promover maior troca de
informações entre jurisdições fiscais.
O modelo de acordo de intercâmbio de informações passou a ser apoiado,
principalmente, pelo G2082
que, desde a sua criação, assumiu uma posição cada vez mais forte
no Fórum Global chegando a substituir o papel que o G7 possuía até então na OCDE83
.
79
Cf. OECD. The OECD’s project on harmful tax practices: The 2001 progress report. Paris, 2001. 80
Cf. OECD. Tax Co-operation: towards a level playing field – Assessment by the Global Forum on Taxation,
2006, p. 7. No original: “The Global Forum seeks to ensure the implementation of high standards of
transparency and information exchange in a way that is fair, equitable and permits fair competition between all
countries, large and small, OECD and non-OECD.” 81
Ibid., p. 7. 82
O G20 é um grupo de países composto pelas 19 maiores economias do mundo, abarcando países
desenvolvidos e emergentes, e pela União Europeia (20º membro) como um bloco único. Ele foi criado no final
da década de 1990, em meio a sucessivas crises econômicas, com o objetivo de abarcar novos países de grande
peso econômico, porém emergentes, ao debate que antes era patrocinado pelo G7. 83
A inserção do G20 fica muito evidente no comunicado feito pelo órgão, em 2004, na reunião dos ministros de
finanças e dos presidentes dos bancos centrais de diversos países em Berlim (Alemanha), situação na qual a
cúpula do G20 fez o seguinte pronunciamento: O G20 apoia os esforços do Fórum Global da OCDE na
promoção de padrões elevados de transparência e troca de informações para propósitos fiscais e de promover um
fórum cooperativo no qual todos os países podem trabalhar para o estabelecimento de um cenário pautado por
53
Em 2004, a OCDE decidiu fazer uma revisão das regras jurídicas e das práticas
administrativas e fiscais dos países membros, bem como dos não membros, mas que sejam
participantes do Fórum Global, para identificar até que ponto eles são efetivamente
transparentes e promovem a troca de informações. Houve, também, o objetivo de aumentar o
número de países pertencentes ao Fórum Global para que o projeto fosse o mais inclusivo
possível, o que só veio a fortalecer a sua legitimidade.
Para proceder a revisão pretendida, a OCDE elencou os três princípios fundamentais
necessários para que se possa atingir o padrão internacional de transparência e de troca de
informações almejado. Os três princípios estabelecem que as jurisdições fiscais devem: (i) ter
a disponibilidade de informações contábeis, bancárias e de titularidade de participação
societária dos seus contribuintes; (ii) ter poder de acesso às informações fiscais dos seus
contribuintes, desconsiderando o seu sigilo bancários e retirando quaisquer obstáculos que
poderiam atrasar ou inviabilizar o acesso às suas informações fiscais; e (iii) possuir
mecanismos que promovam a efetiva troca de informações tais como os acordos de
intercâmbio de informações em matéria fiscal, convenções celebradas entre os países para
evitar a dupla tributação ou, mesmo, dispositivos normativos de direito interno84
.
Com o objetivo de tornar a análise mais objetiva, a OCDE elencou, pontualmente, 10
elementos que compõem os três princípios tratados acima.
Em relação ao primeiro princípio (disponibilidade de informações), as jurisdições
fiscais devem assegurar que: (i) informações relativas à identidade dos contribuintes e à
titularidade de todas as entidades relevantes estejam disponíveis para as autoridades
administrativas competentes; (ii) as demonstrações financeiras das empresas sob a sua
jurisdição contenham informações confiáveis e sejam arquivadas por prazo adequado para
fins de consulta; (iii) as informações bancárias de todos os titulares de contas sob a sua
jurisdição estejam disponíveis para eventual consulta.
Quanto ao segundo princípio (acesso a informações fiscais), as jurisdições fiscais
devem: (iv) ter o poder de obter acesso às informações que sejam requisitadas em acordo de
intercâmbio de informações fiscais de qualquer pessoa que as detenha e que esteja sob a sua
esses padrões. No original: “The G20 therefore strongly support the efforts of the OECD Global Forum on
/Taxa/tion to promote high standards of transparency and exchange of information for tax purposes and to
provide a cooperative forum in which all countries can work towards the establishment of a level playing field
based on these standards.” Veja-se, neste sentido: <www.oecd.org/document/39/0,3746,en_2649_37427_
45602343_1_1_1_1,00.html>. Acesso em: 20/07/2012. 84
Cf. OECD. Tax Co-operation: towards a level playing field – Assessment by the Global Forum on Taxation,
2006, p. 9; e OECD. Progress report to G20. 2012.
54
jurisdição fiscal; e (v) aplicar os direitos e salvaguardas das pessoas de acordo com as
convenções firmadas para a troca de informações fiscais.
Por fim, no tocante ao terceiro princípio (mecanismos de troca de informações): (vi) os
mecanismos de troca de informações devem promover o efetivo intercâmbio de informações
entre as jurisdições fiscais; (vii) os instrumentos firmados pelos países devem abranger todos
os parceiros relevantes; (viii) as jurisdições devem adotar medidas especiais que assegurem a
confidencialidade das informações trocadas e que elas sejam utilizadas unicamente para o fim
que deu causa à sua solicitação; (ix) a aplicação dos mecanismos deve ser feita com o devido
respeito aos direitos dos contribuintes e de terceiros; e (x) as informações requisitadas pelas
outras jurisdições devem ser transmitidas em tempo adequado85
.
A revisão das normas legais e práticas administrativas é feita através de relatórios
específicos de acompanhamento de cada um dos países – chamados de peer reviews – através
dos quais a OCDE deve verificar, em uma primeira fase, se os 10 elementos considerados
centrais para atingir o padrão internacional de transparência e troca de informações estão
presentes no ordenamento jurídico dos países, e, em uma segunda fase, a sua aplicação no
plano prático (eficácia). Não pode passar para a segunda etapa o país que não tiver previsão
dos 10 elementos em seu ordenamento jurídico. Na primeira etapa, caso os elementos
precisem ser aperfeiçoados, a OCDE pode fazer recomendações aos países. Atualmente, os
trabalhos do Fórum Global se encontram justamente na transição entre a primeira e a segunda
fase.
O relatório com a demonstração dos resultados alcançados até o final de 2011 e o
relatório feito pela OCDE ao G20 demonstram, ainda, que o órgão irá prestar assistência
técnica aos países que necessitem de auxílio para implementar o padrão internacional de
transparência e de troca de informações fiscais, tais como Gana e Quênia, que já
manifestaram o seu interesse em obter a referida assistência86
.
A presença do G20 nas discussões da OCDE sobre transparência e intercâmbio de
informações demarca uma preocupação da organização menos focada nos interesses dos
países desenvolvidos – como era visível no relatório de 1998 –, levando-se em conta, também,
as preocupações manifestadas pelos países em desenvolvimento que estão, cada vez mais,
preocupados com o risco de erosão da sua arrecadação tributária advindos de práticas lesivas
85
Cf. OECD. Progress report to G20. 2012, (Anexo IV) p. 27. 86
Ibid., p. 15.
55
de concorrência fiscal87
. Não apenas o G20 é composto por países desenvolvidos e economias
emergentes, como a OCDE logrou êxito em incluir um número progressivamente maior de
participantes (em especial países em desenvolvimento) ao Fórum Global de modo que, em
junho de 2012, o número de países participantes somava 10988
. Esta nova postura traz mais
legitimidade ao papel desempenhado pelo órgão e evita que críticas, tais como aquela feita à
OCDE em virtude do relatório de 1998, se repitam, embora, a nosso ver, não impeça que o
órgão seja eventualmente capturado pelos interesses das economias mais robustas.
1.4.2. A concorrência fiscal danosa no direito comunitário europeu
Paralelamente ao debate realizado no âmbito da OCDE, estava sendo promovido um
debate na então Comunidade Europeia sobre o tema. Na Europa, não apenas o fenômeno da
globalização como também a garantia da liberdade de circulação de mercadorias, serviços,
pessoas e capitais – princípios basilares do mercado comum europeu –, aliadas às medidas
que estavam sendo tomadas para a consolidação da União Monetária, trouxeram grande
mobilidade ao fluxo de capitais no interior do mercado comum europeu o que ensejou
preocupações com as práticas de concorrência fiscal danosa.
Além disso, a existência de práticas de concorrência fiscal danosa passou a ser vista,
não apenas como lesiva às políticas tributárias e orçamentárias dos países, como também um
possível entrave à manutenção do mercado comum e à consolidação de uma união monetária.
Havia, portanto, importantes interesses comunitários em jogo que não estavam
necessariamente presentes nos estudos feitos pela OCDE.
A partir da década de 1980, houve uma tendência acentuada de os Estados membros
criarem regimes fiscais privilegiados e, por esta razão, as preocupações dos órgãos
supranacionais da União Europeia estavam muito mais voltadas para os referidos regimes do
que para os paraísos fiscais tradicionalmente conhecidos89
.
87
Cf. OECD. Progress report to G20. 2012, (Anexo IV) p. 15-16. 88
Veja-se, neste sentido, a página eletrônica do Fórum Global da OCDE: <eoi-tax.org/>. 89
Cf. PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista
Fórum de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 51.
56
Os primeiros estudos feitos em nível comunitário que apontaram para a existência de
práticas de concorrência fiscal danosa, através da criação dos referidos regimes, foram feitos
pela Comissão Europeia, em 1992, através da criação de um Comitê de Experts em tributação
empresarial. O objetivo do Comitê era analisar três questões centrais: (i) A existência de
diferenças nas cargas tributárias dos Estados membros gera distorções no mercado interno
quanto à decisão de investimento? (ii) Se houver distorções, é provável que elas sejam
eliminadas apenas pela interação das forças de mercado e da concorrência tributária entre os
Estados membros, ou há necessidade de ação comunitária? e (iii) Quais medidas específicas
devem ser adotadas pela comunidade para remover ou mitigar essas distorções?90
Para responder as questões formuladas, o Comitê fez um estudo comparativo das
regras tributárias dos países – especialmente no tocante à tributação sobre renda da pessoa
jurídica – através do qual ele identificou uma tendência de convergência dos sistemas
tributários, mas também identificou diferenças significativas entre os sistemas adotados pelos
países membros, inclusive no tocante à sua carga tributária real. Nas conclusões do estudo, o
Comitê demonstrou “a tendência de estados membros a introduzir esquemas tributários
específicos desenhados para atrair negócios internacionais com elevada mobilidade,
principalmente no setor financeiro” 91
.
A preocupação central do Comitê era a eliminação de entraves tributários – tais como
a tributação de determinadas remessas intracomunitárias (e.g. dividendos remetidos da
controladora para a controlada em outro estado-membro) – que pudessem impedir o livre
fluxo de capitais no âmbito do mercado comunitário. Neste sentido, o caminho que o Comitê
escolheu para eliminar as distorções tributárias advindas das diferenças entre os sistemas
tributários foi a defesa de um critério de harmonização mínima da legislação que deveria ser
seguido pelos países em três etapas distintas. Embora tendo reconhecido que a harmonização
plena não seria necessária no curto prazo e que os países membros deveriam manter a sua
liberdade na determinação dos seus sistemas tributários, o Comitê fez uma clara
recomendação no sentido de que uma harmonização maior seria desejável no longo prazo.
Assim, foi reconhecida a importância da questão da concorrência fiscal danosa, mas a solução
adotada pela Comunidade Europeia, neste primeiro momento, foi a harmonização das
90
Cf. Conclusions and recommendations of the Committees of Independent Experts on Company Taxation:
Ruding Tax Commission of European Communities. Luxembourg. 1992, p. 9. 91
Ibid., p. 11.
57
legislações fiscais e não a adoção de medidas unilaterais de combate entre os estados
membros.
Em março de 1996, foi feita uma reunião do Conselho ECOFIN da União Europeia
que resultou em um documento denominado “A fiscalidade na União Europeia” por meio do
qual se decidiu continuar com o debate sobre a concorrência fiscal danosa através da criação
de um Grupo de Alto Nível criado e coordenado pelo Executivo comunitário. Em setembro do
mesmo ano, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de pacote fiscal cujo foco era
justamente o combate à concorrência fiscal danosa. O Conselho da União Europeia aprovou o
pacote em dezembro de 1997 na forma de uma resolução.
Esta resolução teve um escopo muito maior do que o relatório da OCDE já que
abrangia três questões importantes – tributação da renda das pessoas jurídicas (empresas),
tributação das poupanças e tributação de remessas intracomunitárias de juros e royalties –
enquanto que o relatório da OCDE limitou-se à tributação da renda das empresas e, em
especial, à problemática dos paraísos fiscais92
.
A partir da Resolução, foi criado um código de conduta que, apesar de não ser um
instrumento jurídico vinculativo dos Estados membros93
, possui elevada importância no plano
político o que, segundo Maria Eduarda Azevedo, asseguraria a eficácia das suas disposições
no seio da União Europeia94
. Clotilde Celorico Palma também entende que a natureza do
código de conduta – natureza de mero compromisso político ou de declaração geral de
intenções – não implica, necessariamente, a diminuição da eficácia das suas disposições95
.
O campo de incidência do código é um pouco limitado uma vez que se aplica
unicamente aos países membros da União Europeia. Há, no entanto, a previsão de que o
código seja adotado também pelos países membros em seus territórios dependentes ou
associados (e.g. possessões e territórios da Inglaterra, França e Holanda no Caribe, América
do Sul e na Oceania) e que seja encorajada a sua adoção em países não pertencentes ao bloco
comunitário. O relatório da OCDE, em comparação, abrange um número maior de países.
92
Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the Welfare State.
Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.658. 93
É um instrumento de soft law, assim como o relatório da OCDE. 94
AZEVEDO, Maria Eduarda. A concorrência fiscal prejudicial. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT).
Belo Horizonte: Fórum, ano 8, nº 48, 2010, p. 51. 95
PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista Fórum
de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 54-55.
58
O código de conduta restringe o seu campo regulatório à tributação direta incidente
sobre as empresas sem definir, no entanto, quais são as espécies tributárias abrangidas. O
código abrange todas as medidas que afetem, ou possam vir a afetar, de forma significativa a
localização de atividades econômicas na União Europeia. Neste sentido, o seu foco recai
sobre a concessão de ajudas de estado96
e sobre as práticas de concorrência fiscal danosa. Os
critérios elencados para a sua identificação são, entretanto, muito semelhantes aos critérios
elencados no relatório da OCDE para a identificação dos regimes fiscais privilegiados97
. Ao
serem detectadas as condutas passíveis de enquadramento como práticas de concorrência
fiscal danosa, elas devem ser imediatamente congelas (standstill) e desmanteladas (roll-over)
pelo país membro concedente. O Grupo de Alto Nível, de acordo com o ponto H do código de
conduta, é a instituição responsável pela avaliação das medidas potencialmente prejudiciais e
pela supervisão do fornecimento de informações pelos Estados membros para que a avaliação
seja feita.
O código de conduta acabou sendo uma alternativa politicamente viável na União
Europeia para promover coordenação de políticas fiscais entre os Estados-membros uma vez
que as políticas fiscais necessitam de unanimidade de aprovação para serem implementadas
na esfera comunitária, o que se torna politicamente muito custoso em vista do número de
membros que integram o bloco comunitário. Além disso, a União Europeia adota o princípio
da subsidiariedade, segundo o qual só em casos de necessidade absoluta é que a competência
nacional cede às competências de natureza comunitária98
.
É interessante observar que, após a publicação da Resolução, outras propostas
passaram a ser pensadas, na União Europeia, visando promover uma reforma que permitiria
96
O conceito de ajuda de estado não se confunde com o conceito de concorrência fiscal danosa. As ajudas de
estado podem ou não ter natureza tributária. O que caracteriza a lesividade das ajudas de estado frente à
concorrência empresarial é a seletividade setorial ou individual da sua concessão. Ademais, as ajudas de estado
possuem o seu regime jurídico previsto no ponto J do código de conduta e nos artigos 87 a 89 do Tratado da
União Europeia. Cabe à Comissão Europeia analisar a priori os seus impactos concorrenciais, a posteriori no
caso de denúncias de concessão ilegal de denúncias e proceder à revisão das ajudas já existentes. Apesar das
diferenças entre os dois conceitos, não se pode excluir a possibilidade de sobreposição de ambos quando da sua
aplicabilidade na realidade prática. 97
Dentre eles, destaca-se o critério “ring-fencing” segundo o qual o tratamento privilegiado é atribuído somente
a não residentes, excluindo-se os residentes do seu aproveitamento, além de serem previstas medidas que
asseguram o isolamento dos seus efeitos concorrenciais perversos do mercado local. Neste sentido, por exemplo,
regimes fiscais que apliquem tributação baixa ou nula em caráter geral não são passíveis de enquadramento
como de tratamento privilegiado e, portanto, não estarão submetidos à disciplina do código de conduta. 98
PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista Fórum
de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 50.
59
atingir um padrão de harmonização maior na legislação europeia relativa à tributação direta
incidente sobre a atividade empresarial99
.
Em relação às formas de combate às práticas de concorrência fiscal danosa e de elisão
fiscal internacional, observamos que as alternativas pensadas pela União Europeia não estão
pautadas na adoção de medidas unilaterais de combate – tais como a adoção de CFC rules –
mas sim em medidas coordenadas de identificação, congelamento e desmantelamento de tais
práticas. No caso do debate europeu, a obediência dos países membros da União Europeia ao
código de conduta é mais provável do que no caso do relatório da OCDE devido à sua força
política, que é inerente ao fato dele ter sido criado em âmbito comunitário.
Em relação a países terceiros, os países-membros da União Europeia podem aplicar
livremente as recomendações feitas pela OCDE, mas, no tocante aos países-membros do
bloco comunitário, as medidas unilaterais recomendadas sofrem algumas restrições. Tais
restrições se mostram evidentes, especialmente, no caso da aplicação das CFC rules.
Bernard Castagnède expõe que a aplicação das CFC rules foi considerada
incompatível com o direito comunitário pela jurisprudência da Corte de Justiça da
Comunidade Europeia (CJCE) sob o argumento de que a luta de um Estado membro contra a
fraude ou a evasão fiscal internacional não pode constituir um obstáculo ao princípio da
liberdade de estabelecimento previsto no artigo 43 do Tratado da Comunidade Europeia100
.
Segundo o entendimento da CJCE, as CFC rules constituem não apenas uma restrição à
entrada de capitais no território de um determinado Estado membro como também um entrave
à saída101
.
Um caso emblemático na jurisprudência da CJCE é o caso Cadbury Schweppes102
. Na
ocasião, a aplicação do regime de transparência fiscal internacional do Reino Unido a
rendimentos auferidos em outros Estados membros da União Europeia foi considerada como
99
Michael Devereux, Rachel Griffith e Alexander Klemm assinalam que uma das propostas em discussão visa
instituir um único conjunto de regras, ao qual estarão submetidas todas as empresas da União Europeia, para a
apuração da base de cálculo dos impostos incidentes sobre a renda da atividade empresarial. Os autores
assinalam ainda que, segundo a proposta, os grupos empresariais (inclusive controladas e coligadas) deveriam
apurar o seu lucro de forma consolidada e depois os resultados seriam apropriados para cada um dos países.
Trata-se da aplicação da lógica da tributação unitária na União Europeia. Há, também, alternativas que estão
sendo atualmente pensadas para promover maior harmonização no domínio da tributação direta. envolvidos
segundo fórmulas pré-estabelecidas (formulary apportionment method). Confira-se maiores detalhes em:
DEVEREUX, Michael, GRIFFITH, Rachel, KLEMM, Alexander. Corporate income tax reforms and
international tax competition. Economic Policy, v. 17, nº 35, 2002, p. 475-476. 100
CASTAGNÈDE, Bernard. Précis de fiscalité internationale. Paris: Presses Universitaires de France (PUF),
2010, p. 146. 101
Ibid., p. 146. 102
Trata-se do processo nº 196/04 da Corte de Justiça da Comunidade Europeia de 12 de setembro de 2006.
60
contrária à liberdade de estabelecimento empresarial. De acordo com a decisão proferida, a
regra de antidiferimento do regime de transparência fiscal só pode ser aplicada em âmbito
comunitário quando houver a caracterização de uma montagem artificial destinada puramente
a elidir o fato gerador previsto na legislação interna de um dos seus Estados membros.
Neste sentido, o próprio regime francês de transparência fiscal internacional –
denominado Régime des Sociétés Étrangères Contrêlées (SEC) –, vigente anteriormente ao
ano de 2005, foi considerado excessivo quando confrontado com a jurisprudência firmada
pela CJCE, pois ele estabelecia uma presunção geral de evasão nas hipóteses em que filiais,
sucursais, controladas e coligadas fossem estabelecidas em paraísos fiscais ou se
beneficiassem de regimes fiscais privilegiados.
Assim, o regime atualmente vigente das SEC, conforme consta do artigo 209-B do
Côde Général des Impôts (CGI), estabelece a presunção geral de evasão em relação aos
regimes fiscais privilegiados tipificados no artigo 238-A do mesmo código, salvo se ele
pertencer a um dos países membros da União Europeia (art. 209-B, II), hipótese em que o
regime somente se aplica caso se trate de uma montagem artificial cujo objetivo seja driblar a
legislação tributária francesa103
. Nestas situações, o regime deixa de ser aplicável caso o
contribuinte comprove que as instalações são reais e que há o exercício de uma atividade
econômica substancial ainda que o empreendimento seja beneficiário de um regime fiscal
privilegiado. Tais critérios foram chancelados pela jurisprudência da CJCE.
Vale lembrar que o regime francês somente se aplica a rendimentos passivos (revenu
de capitaux mobiliers) e que o critério de participação societária é preenchido uma vez que se
constate haver poder de controle, através da titularidade de mais de 50% de ações, direitos de
votos ou direitos patrimoniais sobre a sociedade estrangeira104
.
Em 2010, o Conselho dos Ministros de Finanças da União Europeia – Conselho
ECOFIN – se reuniu para deliberar sobre novos princípios orientadores da aplicação do
regime de transparência fiscal internacional aplicável às transações intracomunitárias e com
103
CASTAGNÈDE, Bernard. Précis de fiscalité internationale. Paris: Presses Universitaires de France (PUF),
2010, p. 147. 104
Vale ressaltar que a legislação francesa (SEC) deixa de ser aplicável – hipótese de exclusão do regime (safe
harbor) – caso se comprove que mais de 50% das receitas das controladas residentes em paraísos fiscais ou em
países que lhe concedam um regime fiscal privilegiado provêm de atividades efetivamente comerciais ou
industriais que não sejam necessariamente pertencentes à União Europeia. Pode-se perceber, no entanto, que os
critérios de exclusão do regime em relação a controladas residentes em países da União Europeia são, em geral,
mais brandos do que os critérios aplicados em relação a países terceiros. Vejam-se maiores detalhes em:
MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007, p. 50.
61
países terceiros não pertencentes ao mercado comum. Considerando a necessidade de
caracterização da uma montagem artificial abusiva para que a o regime de transparência fiscal
seja aplicado em relação às operações intracomunitárias, o Conselho ECOFIN propôs, através
da resolução nº 10.689/2010, novos critérios – em adição aos critérios anteriormente adotados
pelo Conselho e pela jurisprudência da CJCE – que levam à qualificação de uma determinada
transação como uma montagem artificial e abusiva em uma tentativa de aumentar o número
de hipóteses em que o regime se repute aplicável.
Para Jose Manuel Calderón Carrero, esta é uma tentativa de minimização dos
princípios estabelecidos pela CJCE – inclusive no caso Cadbury Schweppes – e de
maximização dos interesses fiscais dos Estados membros que contraria o entendimento da
referida corte na medida em que “a presença de um benefício fiscal não é suficiente para
estabelecer a existência de abuso, exigindo-se, no entanto, que a sociedade controlada
estrangeira não realize qualquer atividade econômica efetiva” 105
. Assim, Carrero defende que
as regras de transparência fiscal internacional não sejam adotadas sem que haja um safe
harbor à sua aplicação, que preveja a aplicação de um teste de propósito negocial que
possibilite à administração tributária saber qual foi a real motivação que levou o contribuinte
a deslocar parte dos seus ativos para outra jurisdição fiscal; o desempenho de uma atividade
econômica industrial ou comercial efetiva ou, tão somente, a vantagem advinda do
diferimento da tributação devida no Estado de residência da sociedade controladora
(investidora).
Ademais, observamos que o exemplo francês demonstra convergência com as
recomendações da OCDE no sentido de que o regime possui natureza sancionatória sendo,
portanto, utilizado como técnica de combate às formas de elisão e evasão fiscal propiciadas
pela prática de concorrência fiscal danosa, não obstante o fato dele prever tratamento especial
em relação aos países membros da União Europeia. As bases teóricas e conceituais que
resultaram de toda a trajetória da evolução histórica do regime de transparência fiscal
internacional serão tratadas, em maiores detalhes, no próximo tópico.
105
CARRERO, Jose Manuel Calderón. La coordinación europea de las normas de transparencia fiscal
internacional y de subcapitalización. Revista de Direito Tributário Internacional (RDTI), São Paulo: Quartier
Latin, n. 15, 2010, p. 244-245. No original: “(...) la presencia de un motivo fiscal no es suficiente para establecer
la existencia de un abuso requiriéndose además que la SEC no realice una actividad económica en el territorio de
tal Estado atraves de medios humanos y materiales.”
62
1.5. Bases conceituais e teóricas das CFC rules
O presente tópico abordará algumas teorias que foram sendo desenvolvidas ao longo
da evolução histórica dos regimes de transparência fiscal no mundo e que explicam não
apenas a sua aplicação e funcionamento como também o seu desenho normativo.
O regime de transparência fiscal internacional, conforme restou evidenciado na
descrição da evolução do regime no direito norte-americano, se opera através da qualificação
das sociedades residentes no exterior como “sociedades transparentes” submetendo-as a uma
disciplina fiscal específica. A teoria da transparência fiscal (pass-through entity) muito se
assemelha, embora não se confunda, com a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica106
. Uma análise mais aprofundada sobre o tema revela que são diversas as
características que diferenciam as duas teorias, sendo relevante, para os propósitos do
presente trabalho, chamar atenção para o fato de que na transparência fiscal tanto a finalidade
quanto os fundamentos da desconsideração possuem natureza exclusivamente fiscal107
.
Desse modo, há transparência da pessoa jurídica residente no exterior na medida em
que os rendimentos por ela auferidos sejam alcançados para fins de incidência tributária pelo
país de residência da sociedade investidora, independentemente da sua efetiva
disponibilização jurídica ou econômica, desconsiderando-se, apenas para fins tributários, a
autonomia patrimonial das duas pessoas jurídicas distintas. Devem ser respeitados, no
entanto, a autonomia das entidades no tocante aos demais atributos da personalidade jurídica.
106
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica – originada a partir da doutrina do direito inglês
denominada disregard of the legal entity - é reconhecida no direito privado, por sua vez, como técnica destinada
a desconsiderar a separação patrimonial existente entre a pessoa do sócio e da sociedade com o objetivo
específico de coibir a prática de fraude à lei. Através da referida técnica, o aplicador do direito pode
responsabilizar os sócios ou administradores da sociedade empresária personificada pelas obrigações assumidas
pela sociedade que resultem em fraude à lei. Observa-se, portanto, que a regra no direito privado é o respeito à
separação dos patrimônios dos sócios e da pessoa jurídica empresária enquanto que a exceção é a
desconsideração da personalidade jurídica uma vez que ela só pode ser autorizada com o preenchimento de
alguns requisitos legais. No Brasil, o Juiz poderá declarar a desconsideração da personalidade jurídica, conforme
consta do artigo 50 do Código Civil, se houver abuso de personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de
finalidade ou pela confusão patrimonial. 107
Vejam-se, neste sentido: SCHOUERI, Luis Eduardo. Imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 7,
2003, p. 308 a 310; TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação Internacional sobre as Rendas das Empresas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 205-209; e ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da
renda empresarial: uma proposta de sistematização e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008,
p. 149.
63
Na ausência de transparência fiscal da sociedade residente no exterior e em respeito à
autonomia das duas personalidades jurídicas distintas, a disponibilização dos rendimentos,
lucros e ganhos de capital auferidos no exterior depende de um ato formal da sociedade
controlada estrangeira, pois, até então, eles pertencem à sua esfera patrimonial e não ao
patrimônio da sociedade controladora. Do ponto de vista societário, a disponibilização dos
rendimentos auferidos no exterior só ocorre após convocada uma assembleia dos sócios para
deliberar sobre a distribuição de dividendos ou, então, através de cláusula prevista no contrato
ou estatuto social da sociedade controlada que fixe o momento da distribuição do lucro
apurado. Estes atos formais são necessários para se opere a passagem da titularidade dos
rendimentos da esfera patrimonial da pessoa jurídica da sociedade controlada para a esfera
patrimonial da pessoa jurídica da sociedade controladora.
Tulio Rosembuj108
e João Francisco Bianco109
também entendem que a aplicação do
regime de transparência fiscal implica a desconsideração da personalidade jurídica da
sociedade controlada residente no exterior exclusivamente para fins fiscais. Segundo
Rosembuj, a aplicação do regime de transparência significa desconhecer que a entidade que
auferiu os rendimentos no exterior – fato gerador da obrigação tributária – é distinta da pessoa
dos seus sócios e está sujeita a outra jurisdição fiscal110
.
No regime de transparência fiscal, não há incidência tributária sobre a variação
patrimonial positiva da sociedade controladora, mas sim sobre os rendimentos, lucros e
ganhos de capital auferidos pela sociedade controlada no exterior, através da ficção ou
presunção jurídica de disponibilização pela fonte pagadora. A transparência fiscal é uma
técnica por meio da qual se permite alcançar a capacidade contributiva manifestada pela
sociedade controlada no exterior, afastando-se a sua personalidade jurídica para este fim
exclusivo. Neste sentido, a aplicação do regime de transparência fiscal a essas pessoas
jurídicas implica a sua equiparação a estabelecimento permanente, ou seja, desprovido de
personalidade jurídica, para fins de enquadramento no regime tributário aplicável. Daí o
reconhecimento de que as sociedades controladas no exterior são transparentes para fins
fiscais.
No direito tributário internacional, uma sociedade pode ser considerada transparente
tanto em virtude da sua natureza societária – e.g. estabelecimentos permanentes, sucursais e
108
ROSEMBUJ, Tulio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 176-193. 109
BIANCO, João Francisco. Transparência Fiscal Internacional. São Paulo: Editora Dialética. 2007, p. 117-
124. 110
ROSEMBUJ, Op. Cit., p. 177.
64
filiais desprovidos de personalidade jurídica – quanto em virtude da caracterização de evasão
ou elisão fiscal repreensíveis pelo ordenamento jurídico para o caso de controladas e
coligadas (dotadas de personalidade jurídica)111
.
Seguindo-se a linha de raciocínio de Tulio Rosembuj, a aplicação extraterritorial da
legislação interna – denominada pelo autor de ultraterritorialidad ofensiva – é uma medida
destinada à manutenção das bases de arrecadação tributária quando se está diante de países de
tributação favorecida e consiste no “exercício da soberania fiscal sobre bens ou pessoas que se
encontram em estados ou territórios estrangeiros”112
. O caráter ofensivo atribuído pelo autor
decorre de a aplicação da lei interna desconsiderar o fato de que a sociedade controlada está
sujeita a outro ordenamento jurídico para alcançar os rendimentos ali auferidos e submetê-los
à incidência tributária. Na ausência de prática de concorrência fiscal danosa que justificasse a
aplicação extraterritorial da lei interna, caberia ao Estado o dever de autolimitação da sua
jurisdição tributária, não podendo ele alcançar os rendimentos auferidos fora da sua jurisdição
antes do momento da sua disponibilização. É com base nesta última finalidade que a OCDE
defendeu a aplicação do regime de transparência fiscal internacional como técnica
exclusivamente voltada ao combate da concorrência fiscal danosa realizada por paraísos
fiscais e regimes fiscais privilegiados.
Em conformidade com as características descritas acima, o regime de transparência
fiscal internacional possui natureza de norma antielisiva posto que a sua utilização tem
finalidade defensiva na medida em que visa sancionar determinadas práticas abusivas de
elisão fiscal internacional. Dentre os diversos tipos de normas antielisivas existentes, o regime
de transparência fiscal se enquadra mais adequadamente na categoria das regras especiais
antielisivas – Special Anti Avoidance Rules (SAAR) – uma vez que, conforme aponta Alberto
Xavier, é através delas que “certos atos ou negócios passam a ficar incluídos no tipo legal por
via de lei, socorrendo-se da técnica da ficção ou da presunção legal” 113
para fazer incidir a
norma tributária interna. É exatamente o que ocorre com o regime de transparência fiscal.
Há, fundamentalmente, dois critérios que podem ser utilizados pelo formulador de
políticas tributárias na definição do desenho normativo do regime de transparência fiscal
internacional: (i) jurisdictional approach; e (ii) transactional approach.
111
SCHOUERI, Luis Eduardo. Imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de
Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 7, 2003, p. 309. 112
Ibid., p. 203 a 205. 113
XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2002, p.
85-97.
65
Do ponto de vista do jurisdictional approach, o desenho das CFC rules levará à sua
aplicação às sociedades residentes em determinados territórios que, na maioria dos casos, são
jurisdições de tributação favorecida ou concedem regimes fiscais privilegiados geralmente
discriminados em listas (black list, grey list ou white list) ou através do estabelecimento de
uma alíquota mínima de tributação114
.
Do ponto de vista do transactional approach, o desenho das CFC rules orientará a sua
aplicação para tipos específicos de renda juridicamente determinados. Em geral, os países
optam por tributar rendas passivas, devido à sua maior mobilidade, e a excluir rendas ativas,
com menor mobilidade e decorrentes de atividades industriais, comerciais e agrícolas. Os
conceitos de rendas passivas e rendas ativas poderão variar a depender da legislação tributária
considerada. Alguns países optam por tributar qualquer tipo de rendimento e admitem certas
exclusões da base imponível enquanto outros optam por excluir, em princípio, todos os
rendimentos da base imponível e adicionar somente alguns tipos. Os critérios de adição à base
imponível variam de acordo com o país considerado.
Na prática, conforme esclarece Alberto Xavier, são raros os ordenamentos jurídicos
que escolhem por um critério “puro” para orientar a aplicação das suas CFC rules de modo
que ambos os modelos acabam sendo utilizados pelo formulador de políticas tributárias ao
definir o desenho do regime de transparência fiscal internacional115
. Conforme aponta Taísa
Oliveira Maciel em um importante estudo que contemplou uma análise em direito comparado
sobre as CFC rules, apenas o Canadá adota um modelo de regime pautado em um único
critério que, no caso, é o transactional approach116
. Até mesmo os EUA, cujo modelo é muito
próximo ao critério do transactional approach, conforme observado anteriormente, possui
influências do jurisdictional approach¸ já que o regime possui uma hipótese de exclusão da
sua aplicação caso o país onde tiver sido auferido o rendimento possuir carga tributária
correspondente ao menos a 90% da carga tributária norte-americana incidente sobre os lucros
da atividade empresarial117
.
114
O Brasil adota ambos os critérios para a qualificação do regime favorecido de uma determinada jurisdição
fiscal. A lei nº 9.430/96 define, em seus artigos 24 e 24-A, os critérios para a qualificação de uma jurisdição
fiscal como, respectivamente, país ou dependências de tributação favorecida ou concedente de regimes fiscais
privilegiados. Além disso, o Poder Executivo houve por bem detalhar quais são as referidas jurisdições na
Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.037/2010. A adoção de ambos os critérios pelo Brasil leva
a discussões acadêmicas quanto à natureza taxativa ou exemplificativa da referida lista. 115
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 287. 116
MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007, p. 28. 117
Ibid., p. 28.
66
Além disso, desde o modelo adotado inicialmente pelos EUA, a grande maioria das
CFC rules adotadas internacionalmente dependem de um teste de percentual mínimo de
participação societária. As legislações dos países geralmente exigem que seja caracterizado o
controle societário, seja por meio da propriedade direta de participação societária que permita
o seu exercício, seja por meio de acordo de acionista que garanta preponderância nas decisões
societárias ou mesmo influência significativa na sua administração. A ideia subjacente à
caracterização de controle societário é que a pessoa que o exerça tenha condições de
determinar o momento da distribuição de dividendos118
. No entanto, os critérios variam de
acordo com o país sendo certo que outros países não exigem a caracterização de controle, mas
tão somente a qualificação de participação social que seja minimamente relevante.
A partir da análise da evolução histórica do regime de transparência fiscal
internacional, concluimos que a sua aplicação ocorre de forma seletiva, seja em virtude da
natureza do rendimento (transactional approach), seja em virtude da natureza da jurisdição
onde os mesmos foram auferidos (jurisdictional approach), seja, até mesmo, de uma
combinação de ambos. O fato é que a aplicação do regime de transparência fiscal
internacional assumiu caráter de exceção à regra de autonomia da personalidade jurídica da
sociedade estrangeira tendo, o regime, adquirido nítidos contornos de regra antiabuso pela
maior parte dos países que o adotaram em seus ordenamentos jurídicos pátrios.
1.6. Conclusões sobre a trajetória da evolução histórica do regime de transparência
fiscal internacional
O estudo da trajetória histórica do regime de transparência fiscal internacional no
mundo permitiu que nós chegássemos à conclusão preliminar de que ele surgiu como uma
reação unilateral dos países contra a perda das suas bases arrecadatórias advinda de práticas
de elisão fiscal envolvendo paraísos fiscais e regimes fiscais privilegiados. No entanto, é
interessante observar que essas práticas são uma decorrência de um fenômeno maior – a
globalização – que levou ao surgimento de um mercado global todo interligado por redes
tecnológicas que permitiu mobilidade e livre fluxo de capitais ao redor do mundo.
118
MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007, p. 32.
67
Operou-se, neste contexto, a transformação da visão de Estado que se tinha até então –
do Estado-nação para o Estado-transnacional – juntamente com o surgimento de uma nova
percepção das repercussões das suas políticas públicas. As políticas tributárias implementadas
pelos Estados passaram a gerar reações de outros Estados diretamente afetados neste ambiente
global. Na medida em que o capital se tornava móvel, aumentava a concorrência fiscal entre
os países pela sua atração. As vantagens tributárias oferecidas por alguns países para atrair
capital com elevada mobilidade começou a repercutir negativamente em outros países.
A primeira reação unilateral partiu da iniciativa dos EUA, já na década de 1930, de
implementar um regime de transparência que foi, posteriormente, aprimorado pela
Administração Kennedy e finalmente aprovado, após algumas alterações feitas pelo
Congresso norte-americano, em 1962. Na medida em que o problema foi assumindo
proporções globais, os países se organizaram através de instituições internacionais e
supranacionais para obter recomendações de políticas tributárias e, até mesmo, buscar a
cooperação em escala internacional.
É importante esclarecer que os debates realizados pelos EUA, OCDE e União
Europeia, embora convergentes em diversos pontos, apresentam particularidades próprias. O
debate norte-americano demonstra uma luta entre grupos de interesses distintos. Por um lado,
a Administração Kennedy buscava eliminar por completo o diferimento do imposto norte-
americano, promovendo-se a neutralidade na exportação de capitais, o que terminaria por
afetar todos os investimentos que estivessem em jurisdições de tributação inferior à norte-
americana, fossem elas paraísos fiscais ou não. Por outro lado, o empresariado norte-
americano se articulou no Congresso e conseguiu, em nome da competitividade das suas
subsidiárias no exterior, a aprovação de um regime de antidiferimento apenas parcial. Os
movimentos posteriores demonstram uma forte luta de interesses determinando ora o
abrandamento do regime ora o seu enrijecimento.
Os debates patrocinados pela OCDE e pela União Europeia estavam mais preocupados
com a prática da concorrência fiscal danosa – uma prática específica de concorrência fiscal –
e as suas conseqüências sobre as bases arrecadatórias dos seus países membros. A questão da
competitividade não esteve presente nesses debates.
Apesar de os debates apresentarem grande semelhança entre si, os interesses
envolvidos eram claramente distintos. A União Europeia possuía um interesse em particular
que não estava presente nos debates promovidos pela OCDE; ela estava mais preocupada com
68
a consolidação de um mercado comum e com a criação de uma união monetária e, neste
contexto, a concorrência fiscal danosa se apresentou como uma possível ameaça à sua
concretização e não apenas às bases arrecadatórias e às políticas tributárias dos seus Estados
membros. Devido às diferenças de interesses envolvidos, as soluções encontradas por ambas
as instituições foram diferentes. A União Europeia pautou-se muito mais em medidas
coordenadas enquanto a OCDE, descrente da possibilidade de atuação coordenada em escala
global no curto prazo, defendeu o uso de medidas unilaterais.
A experiência internacional tem demonstrado que, na ausência de uma política de ação
coordenada, as medidas unilaterais de proteção das bases arrecadatórias têm sido amplamente
utilizadas, dentre elas, o regime de transparência fiscal internacional. O desenho que foi
atribuído a estes regimes impõe a sua aplicação seletiva seja em função do tipo de rendimento
(transactional approach) seja em função da sua origem (jurisdictional approach), seja, ainda,
em função da combinação dos dois critérios. O fato é que a seletividade da aplicação do
regime – constatada nos diferentes momentos da sua evolução histórica – demonstra a sua
natureza antielisiva, destinada a coibir práticas abusivas de elisão e evasão fiscal
internacional.
69
2. TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO NORMATIVA DO REGIME DE
TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR NO DIREITO
BRASILEIRO
2.1. Notas introdutórias
O cenário exposto no capítulo precedente demonstrou quais foram os interesses e as
preocupações condicionantes do regime de transparência fiscal internacional desde a sua
propositura inicial, no direito norte-americano, até a sua evolução mais recente no âmbito da
OCDE. Observou-se que ao regime foi atribuída uma função antiabusiva, característica que
não se faz presente no regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior devido à
ausência da sua aplicação seletiva. Diante desta constatação, este capítulo se dedicará a
identificar quais foram as razões, os interesses e o contexto histórico que estavam em jogo na
formulação da política tributária e que justificam os contornos que foram dados ao regime
brasileiro.
Para tanto, reconstruiremos todas as etapas da política tributária que foi inicialmente
concebida no Poder Executivo e posteriormente submetida à aprovação pelo Poder
Legislativo. Os debates no Poder Executivo serão reconstruídos através de entrevistas feitas
com autoridades públicas que tenham participado da formulação do regime jurídico e nas suas
subseqüentes alterações legislativas. Os debates no Poder Legislativo serão reconstruídos
através da análise do processo legislativo das Leis nº 9.249/95, 9.532/97, Lei Complementar
nº 104/2001 e Medida Provisória nº 2.158-35/2001119
. Conforme salientado na introdução do
presente trabalho, reconstruir este percurso legislativo do regime de tributação de lucros
auferidos no exterior, contextualizando-o e trazendo à baila os interesses envolvidos, consiste
em um trabalho de “engenharia normativa”.
É através deste trabalho de engenharia normativa que se pretende chegar às respostas
para as questões relativas ao primeiro problema que motivou este trabalho.
119
A Medida Provisória nº 2.158-35/2001 não foi convertida em lei pelo Congresso Nacional tendo a sua
vigência sido prorrogada por força do artigo 2º da Emenda Constitucional nº 32/2001. Entretanto, foi possível ter
acesso a documentos que emitidos e encaminhados internamente dentro do próprio Poder Executivo e que
poderão auxiliar na presente pesquisa.
70
2.2. A evolução do regime de tributação de lucros auferidos no exterior no direito
brasileiro
2.2.1. 1º Momento: territorialidade
Até o ano de 1995, não havia previsão legal no direito brasileiro para a tributação de
lucros, ganhos de capital e rendimentos auferidos no exterior por sociedades controladas e
coligadas de empresas residentes no Brasil. O Brasil adotava o princípio da territorialidade,
segundo o qual somente os rendimentos auferidos em território nacional poderiam ser
submetidos à tributação. Não havia, neste sentido, nenhum elemento de conexão previsto na
legislação tributária brasileira que possibilitasse a tributação de lucros auferidos fora do
território brasileiro. O princípio da territorialidade podia ser abstraído a partir do disposto nos
artigos 157, parágrafo único, e 268 do Regulamento de Imposto de Renda (RIR) de 1980 (art.
337 do RIR/94) 120
.
No entanto, o contexto econômico do ano de 1995 foi caracterizado por importantes
transformações que estavam em curso. Graças ao sucesso do Plano Real a economia já não
sofria com a hiperinflação que havia dominado o cenário macroeconômico desde a transição
do governo militar ao governo civil, possibilitando maior estabilidade econômica. Ao mesmo
tempo, todos os esforços promovidos inicialmente pelo Governo Collor e posteriormente
pelos seus sucessores na promoção de abertura comercial como alternativa à política de
120
Em 1987, ocorreu a primeira modificação legislativa destinada a abolir o princípio da territorialidade da
tributação da renda. A modificação, à época, foi feita em duas etapas. A primeira modificação foi introduzida
através da publicação do Decreto-lei nº 2.397 (art. 7º) o qual dispunha que os lucros auferidos no exterior através
de filiais, sucursais, agências ou representações passariam a ser tributados pelo imposto de renda brasileiro. A
segunda modificação foi veiculada através do Decreto-lei nº 2.413 (art. 8º e 15) e caracterizou a ampliação do
regime de tributação universal introduzido pelo Decreto-lei nº 2.397 de modo que o regime passou a abranger
não apenas entidades despersonalizadas como também entidades dotadas de personalidade jurídica própria
residentes no exterior, tais como as sociedades controladas e coligadas. Estranhamente, pouco tempo depois da
publicação dos dois decretos-lei que haviam instituído o regime de tributação em bases universais, o Decreto-lei
nº 2.429 (art. 11) revogou os dispositivos relativos à matéria previstos nos diplomas normativos anteriormente
publicados, o que caracterizou a volta ao princípio da territorialidade ao direito brasileiro até a posterior
alteração feita em 1995 através da Lei nº 9.249.
71
substituição de importações, bem como na privatização de empresas públicas, demarcavam
uma nova conjuntura econômica121
.
Neste novo cenário, a economia brasileira começou a se internacionalizar e as
empresas de capital nacional começavam a se aventurar no mercado internacional. Os bancos
brasileiros, em especial, já apresentavam grau de internacionalização mais avançado naquela
época, com subsidiárias localizadas principalmente em paraísos fiscais, com o objetivo de
possibilitar que muitos contribuintes nacionais remetessem rendimentos, em sua maioria
passivos, a essas localidades para gerar mais divisas aproveitando-se de um regime tributário
mais favorável122
. Paralelamente a este diagnóstico, havia um movimento muito forte de luta
contra a concorrência fiscal danosa patrocinada, especialmente, por organizações
internacionais, tais como a OCDE, conforme descrevemos no capítulo anterior.
O diagnóstico de internacionalização das empresas de capital nacional e da possível
transferência das suas operações para “paraísos fiscais” sensibilizou a Secretaria da Receita
Federal que chegou a expor a problemática da seguinte forma123
:
A internacionalização também gera impactos sobre o setor público na medida em
que a capacidade das empresas operarem em bases mundiais tem incentivado a
proliferação de paraísos fiscais. É justamente a possibilidade de as empresas
transferirem suas operações entre jurisdições fiscais distintas que gera o incentivo a
que determinados países optem por isentar ou reduzir sua carga tributária de modo a
atrair o fluxo de capital internacional. Essa estratégia é conhecida como ‘competição
tributária internacional’ e tem sido um tema amplamente discutido, nos últimos
anos, por diversos governos e organizações internacionais, já que o ganho dos
paraísos fiscais pode significar, para outros países, redução de base tributária e
arrecadação.
Por todos esses fatores, a questão internacional tem se tornado um aspecto relevante
da política tributária nacional.
Este movimento internacional – liderado pela OCDE – juntamente com a conjuntura
econômica nacional levou o Ministério da Fazenda a formular uma nova política tributária em
relação aos lucros auferidos no exterior pelas empresas controladas e coligadas de empresas
121
Para ter maiores detalhes sobre a conjuntura econômica da época, confiram-se detalhes em: FISHLOW,
Albert. O novo Brasil: as conquistas políticas, econômicas, sociais e nas relações internacionais. São Paulo:
Saint Paul, 2011. 122
Não é por acaso que, em julho de 2012, houve um levantamento feito pelo “Tax Justice Network” apontando
que os bancos são os principais meios pelos quais se opera a evasão de divisas de países de tributação regular
para paraísos fiscais. Segundo o levantamento feito, o Brasil está em 4º lugar, no mundo, no ranking dos países
que mais possuem dinheiro em offshores localizadas em paraísos fiscais. Vejam-se detalhes em:
<www.taxjustice.net/cms/upload/pdf/Price_of_Offshore_Revisited_120722.pdf>. Acesso em: 08/08/2012. 123
BRASIL. Ministério da Fazenda – Secretaria da Receita Federal. Tributação da Renda no Brasil Pós-Real.
2001, p. 86.
72
residentes no Brasil. O passo seguinte foi a previsão legal de elementos de conexão que
possibilitaria ao fisco brasileiro tributar os referidos lucros. Trata-se da Lei nº 9.249/95.
2.2.2. 2º Momento: a Lei nº 9.249/95
2.2.2.1. O processo legislativo
A Lei nº 9.249/95 foi fruto da conversão do Projeto de Lei nº 913 encaminhado à
Câmara dos Deputados pelo então Ministro da Fazenda Pedro Malan. O projeto foi proposto
em um contexto histórico no qual a economia brasileira havia respondido de forma muito
positiva ao Plano de Estabilização Econômica proposto pelo Governo Itamar Franco – sob a
coordenação do seu Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso – por meio do qual se
buscou estabilizar a economia brasileira que sofria, desde meados da década de 1980, com
índices elevados de inflação. O projeto de lei refletia o momento histórico posterior ao
sucesso do plano econômico em que havia a necessidade de se adequar a legislação tributária
a esta nova realidade econômica.
O projeto previa diversas alterações na legislação tributária vigente à época relativa à
tributação sobre a renda, em especial, das pessoas jurídicas (Imposto de Renda da Pessoa
Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e propunha uma reforma tributária que
possuía, segundo a Exposição de Motivos nº 325 do Ministério da Fazenda, os seguintes
objetivos centrais:
A reforma objetiva simplificar a apuração do imposto, reduzindo as vias de
planejamento fiscal, uniformizar o tratamento tributário dos diversos tipos de rendas,
integrando a tributação das pessoas físicas e jurídicas, ampliar o campo de
incidência do tributo, com vistas a alcançar os rendimentos auferidos no exterior por
contribuintes estabelecidos no País e, finalmente, articular a tributação das empresas
com o Plano de Estabilização Econômica.
No mesmo sentido do trecho descrito acima no qual o então Ministro da Fazenda,
Pedro Malan, explicita os objetivos visados pela reforma promovida pelo Projeto de Lei nº
913, o Deputado Antônio Kandir, relator do parecer da Comissão de Finanças e Tributação,
73
ao apreciar o projeto de lei juntamente com as emendas propostas pelos deputados federais,
proferiu a sua percepção geral sobre o referido projeto com o seguinte teor:
(...) Numa análise geral, cabe salientar, de início, que o projeto apresenta várias
qualidades. Contêm medidas simplificadoras, medidas destinadas a dificultar
práticas de evasão fiscal, medidas orientadas para tratar de forma isonômica
situações idênticas que hoje recebem tratamentos desiguais, medidas incentivadoras
do investimento produtivo. Merece destaque as medidas destinadas a promover a
integração da tributação entre pessoa jurídica e pessoas físicas, que se manifestam na
isenção da distribuição de dividendos, com repercussão especial na tributação do
lucro presumido em que se eleva de maneira considerável a faixa de retiradas
isentas. Mesmo que alguns pontos do projeto possam ser aperfeiçoados, ressaltamos
que, no contexto geral, ele se mostra positivo.
Outro aspecto que merece destaque especial nesse voto, até mesmo pelo fato de não
ter sido suficientemente explorado pela Imprensa quando da divulgação do projeto,
consiste na ousada decisão tomada pelo Governo de reduzir as alíquotas do imposto
de renda das pessoas jurídicas. Fato que, no contexto atual de inflação reduzida e
controlada, representa para as empresas que cumprem com regularidade suas
obrigações tributárias redução significativa da carga tributária.
Mesmo assim, o Governo teve segurança firme para manifestar a convicção de que
as mudanças deverão gerar aumento da arrecadação, confiante no fato de que a
redução das alíquotas associadas à notável simplificação da legislação do imposto
induzirá grande parte de contribuintes ao cumprimento espontâneo das obrigações
tributárias.
A partir do contexto descrito acima tanto pelo Ministério da Fazenda, na exposição de
motivos, quanto pelo pronunciamento da Comissão de Finanças e Tributação, constata-se que
o projeto de lei buscava promover importantes ajustes no sistema tributário o qual não
apresentava, por sua vez, plena compatibilidade com a realidade econômica e social da época.
Dentre os tipos de alterações propostas pelo projeto, ressaltamos, de acordo com o
pronunciamento transcrito acima, quatro espécies fundamentais de alterações: (i) medidas
simplicadoras; (ii) medidas inibidoras; (iii) medidas de isonomia; e (iv) medidas
incentivadoras.
Em breve resumo – e sem querer ser exaustivo – a referida lei promoveu alterações
consideradas importantes na época, tais como: (i) redução da alíquota do IRPJ e do adicional;
(ii) disciplina ao lucro inflacionário e à correção monetária das demonstrações financeiras;
(iii) disciplina, em parte, da tributação incidente sobre o mercado financeiro; (iv) a isenção
tributária da distribuição de lucros e dividendos; (v) previsão da dedutibilidade de despesas de
juros sobre o capital próprio (JCP) pagos aos sócios ainda que limitada à aplicação da
variação, pro rata dia, da TJLP sobre o patrimônio líquido da empresa124
; (vi) ajuste na
124
Sem falar na condicionante de que existam lucros apurados no período ou acumulados em conta de reserva no
valor mínimo de duas vezes o valor dos juros pagos, conforme dispõe o §1º do artigo 9º da Lei nº 9.249/95 o
qual foi incluído pelo artigo 78 da Lei nº 9.430/96.
74
disciplina normativa das empresas optantes pelo lucro presumido e arbitrado; (vii) limitação
da dedutibilidade de determinadas despesas sujeitas a elevada manipulação – os chamados
fringe benefits – na apuração do lucro real; e, por fim, (viii) instituição do regime de
tributação em bases universais (com regra de antidiferimento ampla).
Todas as alterações propostas visavam, aos olhos dos formuladores de políticas
públicas, racionalizar alguns aspectos da tributação sobre a renda no Brasil, na medida em que
adequavam o sistema tributário nacional à realidade macroeconômica do Brasil pós-Real,
reduziam a tributação incidente sobre a renda das pessoas jurídicas e buscavam aprimorar os
mecanismos normativos existentes para combater práticas de elisão fiscal. É justamente em
relação a este último objetivo em que se insere o regime de tributação de lucros auferidos no
exterior (tributação em bases universais) com regra de antidiferimento. Veja-se, neste sentido,
a Exposição de Motivos nº 325 do Ministério da Fazenda:
As regras de tributação dos rendimentos auferidos fora do País constam dos arts. 25
a 27. O Projeto alcança unicamente os lucros, permitindo a compensação do imposto
de renda que sobre eles houver incidido no exterior, e determinando a
obrigatoriedade de apuração do imposto com base no lucro real, para as pessoas
jurídicas que obtiverem lucros no exterior.
Adota-se, com a tributação de renda auferida fora do País, medida tendente a
combater a elisão e o planejamento fiscais, uma vez que o sistema atual – baseado
na territorialidade da renda – propicia que as empresas passem a alocar lucros em
filiais ou subsidiárias situadas em “paraísos fiscais”. Intenta-se, ainda, harmonizar o
tratamento tributário dos rendimentos, equalizando a tributação das pessoas jurídicas
à das pessoas físicas, cujos rendimentos externos já estão sujeitos ao imposto de
renda na forma da legislação em vigor. 125
A partir deste marco legislativo, o regime de tributação aplicado até então somente às
pessoas físicas, segundo o qual todos os rendimentos auferidos por pessoas físicas residentes
estavam sujeitos à tributação independentemente da localização da fonte geradora desses
recursos, passou a ser aplicado também às pessoas jurídicas residentes que, até aquele
momento, adotavam exclusivamente o princípio da tributação exclusiva no país da fonte
produtora. Em razão disso, pode-se afirmar que a lei visava equalizar o tratamento tributário
das pessoas físicas e das jurídicas.
125
Confira, também, o trecho do relatório do Dep. Antônio Kandir (relator do projeto de lei) sobre o regime de
tributação em bases universais: “Pelas alterações propostas, adota-se o critério de tributar as pessoas jurídicas
pelos resultados obtidos em bases mundiais, à semelhança do critério adotado para as pessoas físicas, e não
apenas em base territorial brasileira. O regime proposto revela preocupação das autoridades fiscais com o
incremento de dependências de empresas brasileiras em locais conhecidos como ‘paraísos fiscais’, para as quais
podem ser transferidos lucros através de práticas de subfaturamento ou de superfaturamento. Lucros esses que
eventualmente seriam repatriados, sem tributação, pela avaliação do investimento segundo o método da
equivalência patrimonial”.
75
É interessante notar que o objetivo do Governo, ao apresentar a proposta legislativa de
tributação de lucros auferidos no exterior, foi coibir mecanismos de planejamento tributário
internacional através do represamento de lucros em subsidiárias localizadas em paraísos
fiscais e regimes fiscais privilegiados. No entanto, a opção do Governo federal do desenho
normativo do regime de tributação em bases mundiais leva à aplicação indiscriminada da sua
regra de antidiferimento – operacionalizada através da disponibilização automática dos
rendimentos ao final de um período-base (ano-calendário) – em relação a todos os países
(tributação favorecida ou não) e a todos os tipos de rendimentos (rendimentos ativos ou
passivos), o que coloca em dúvida a natureza antielisiva do regime brasileiro.
Tal fato causa estranheza, pois vai à contramão da experiência internacional que,
conforme restou evidenciado no capítulo precedente, optou por combater o diferimento
apenas dos rendimentos passivos auferidos por subsidiárias residentes em paraísos fiscais,
mantendo a regra de permissão do diferimento da tributação nacional aos rendimentos ativos
auferidos por subsidiárias residentes em países de tributação regular.
Apesar de destoante da prática internacional, o Governo Federal parecia estar
convencido de que, ao adotar o regime de tributação em bases mundiais com regra
antidiferimento “abrangente”, conforme previsto nos artigos 24 a 27 do Projeto de Lei nº 913
– posteriormente convertido na Lei nº 9.249/95 (arts. 25 a 27) –, estava, na verdade, se
alinhando à prática internacional. Veja-se, neste sentido, os comentários feitos pela equipe da
Secretaria da Receita Federal que concebeu o regime de tributação universal:
A Lei nº 9.249/95 supriu uma das grandes lacunas existentes na legislação brasileira
até aquele momento e instituiu o regime de tributação mundial da renda, iniciando o
processo de adequação do imposto de renda brasileiro ao aumento e à diversificação
das transações entre residentes e não-residentes. Dessa forma, a lei determinou que
os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior fossem computados
na determinação do lucro real das pessoas jurídicas, sendo que a empresa tem o
direto de compensar o imposto pago, no exterior, sobre seus resultados até o limite
do imposto de renda incidente no Brasil. Isto é, o Brasil passou a tributar suas
empresas, inclusive filiais, sucursais e controladas, pelos seus lucros mundialmente
computados, alinhando-se à maioria dos sistemas tributários internacionais.126
A despeito do comentário transcrito acima, o fato era que o Brasil não estava
plenamente alinhado às práticas internacionais já que a sua regra de disponibilização
automática de lucros auferidos no exterior era demasiadamente ampla. Não obstante as
126
BRASIL. Ministério da Fazenda – Secretaria da Receita Federal. Tributação da Renda no Brasil Pós-Real.
2001, p. 87.
76
críticas referentes à amplitude da regra antidiferimento adotada, não se pode negar que o
formulador de política tributária teve o mérito de integrar pessoa física e jurídica, do ponto de
vista do seu tratamento tributário, na medida em que os lucros apurados passariam a ser
tributados apenas no âmbito da pessoa jurídica, sendo isento tanto no pagamento (e.g. IRRF),
quanto na pessoa física que os recebe sob a forma de dividendos ou lucros distribuídos (regra
de isenção de dividendos).
Assim que proposto, o Projeto de Lei nº 913 foi objeto de 95 emendas parlamentares
que visavam suprimir alguns artigos, alterar a sua redação ou mesmo incluir novos
dispositivos. De forma geral, as matérias que mais geraram repercussões entre os diferentes
segmentos políticos na Câmara dos Deputados foram: (i) a restrição imposta à dedutibilidade
de despesas na apuração do lucro real; (ii) a abolição da correção monetária das
demonstrações financeiras; e (iii) as alterações legislativas relativas à tributação do mercado
financeiro.
No tocante às normas que propunham a instituição da tributação em bases universais
de lucros auferidos no exterior (arts. 24 a 27 do Projeto de Lei), poucas emendas foram
apresentadas; somente 4 (emendas nº 10, 27, 36 e 85). Das 4 emendas apresentadas, 2 delas
(emendas nº 10 e 27) visavam suprimir o §1º do art. 24 do projeto de lei - o qual dispunha
que os prejuízos decorrentes das operações referidas neste artigo [operações no exterior]
não serão compensados com lucros auferidos no Brasil – sob a justificativa de que seria um
contrassenso pretender tributar os lucros auferidos no exterior sem permitir a dedutibilidade
dos prejuízos e perdas incorridos em operações no exterior com lucros apurados no Brasil
pois tal medida resultaria em afronta à isonomia de tratamento que deve ser dada aos lucros e
prejuízos obtidos no exterior127
.
As propostas de supressão da norma prevista no §1º do artigo 24 do projeto de lei –
que impedia a compensação dos prejuízos obtidos no exterior com os lucros obtidos no Brasil
– foram rejeitadas pelo Dep. Antônio Kandir, na Comissão de Finanças e Tributação, sob a
justificativa de que o dispositivo não cometia qualquer injustiça já que permitia a
127
Veja-se, neste sentido, a transcrição de um trecho da justificativa apresentada pelo Deputado Sandro Mabel à
emenda supressiva nº 27: “Não se pode compreender a tributação de operações efetuadas no exterior sem que se
permita a respectiva compensação dos eventuais prejuízos. Se o objetivo da emenda é impedir que através de
prejuízos forjados se diminua o lucro tributável no Brasil, está claro que o que se busca é impedir fraudes, ao
invés de adotar-se uma postura adequada a uma legislação tributária, tendo como base os contribuintes que se
comportam corretamente. Mais uma vez, penalizam-se os bons contribuintes através de um tratamento injusto às
suas atividades. A tributação integrada, ou consolidada, como agora se pretende, implica um tratamento que não
deixa de se observar a lógica jurídica. Daí, a necessidade de suprimir-se o dispositivo em questão, por ser
contrário a esse pressuposto.”
77
compensação de prejuízos obtidos no exterior com lucros auferidos também no exterior, além
de ter como objetivo evitar operações de planejamento tributário envolvendo paraísos fiscais.
Talvez o Dep. Antônio Kandir, ao mencionar o objetivo de “evitar possíveis planejamentos
fiscais envolvendo empresas localizadas em paraísos fiscais” referindo-se ao §1º do artigo 24
do projeto de lei, estivesse se referindo às possíveis técnicas de “geração” de prejuízos no
exterior que poderiam ensejar prejuízos ao Erário Público brasileiro caso tais prejuízos ditos
“artificiais” pudessem ser compensados com o lucro real apurado no Brasil. Esta questão dos
prejuízos será aprofundada no capítulo 4 do presente trabalho.
Em relação às emendas 36 e 85, o seu objetivo era tão somente promover alterações
pontuais no texto dos artigos 24 a 27 do projeto de lei no sentido de aumentar a sua precisão
conceitual, sem, no entanto, que houvesse qualquer alteração relevante do ponto de vista do
comando jurídico-normativo dos referidos dispositivos. Tais emendas foram parcialmente
aceitas pelo Dep. Antônio Kandir.
Após a apresentação das emendas parlamentares e do parecer da Comissão de
Finanças e Tributação, o projeto de lei foi levado para discussão em turno único na Câmara
dos Deputados. Nesta ocasião, houve diversas discussões importantes que foram travadas
entre Governo e Oposição.
A primeira grande crítica ao projeto de lei como um todo foi, fundamentalmente, a
ausência de comprovação, por parte do Governo Federal, de que a redução da progressividade
do IRPJ – segundo a qual o IRPJ devido pelas empresas deixaria de ser de 25% de imposto e
15% de adicional (40%) e passaria a ser de 15% de imposto e 10% de adicional do imposto
devido (25%) – possuiria uma contrapartida financeira para equilibrar as contas públicas.
Aliada a esta crítica, a Oposição também se opôs à proposta de se colocar um fim à correção
monetária das demonstrações financeiras alegando que ela prejudicaria as pequenas e médias
empresas que não mais poderiam corrigir os seus balanços patrimoniais e que, neste sentido,
beneficiaria somente as grandes empresas em relação às quais a correção continuaria sendo
permitida nos termos da Lei das S.A. Veja-se o trecho do pronunciamento da Dep. Conceição
Tavares (PT – RJ) em plenário relatando as críticas ora analisadas:
Há o problema de se baixar a alíquota. Imaginam, ‘a la Reagan’s Economics’, que
baixando a alíquota os empresários rigorosamente pagariam o imposto. Duvidoso. A
única vez em que isso aconteceu foi nos Estados Unidos, e, quando baixaram a
alíquota, a arrecadação caiu.
A outra hipótese é de que se essa alíquota for baixa e o Governo tirar a correção
monetária, as grandes empresas, que são as mais capitalizadas e que em geral
78
descontam mais a correção monetária, pagariam mais. Essa é uma maneira não
explicativa de torná-lo progressivo. Naturalmente, o Governo apresenta aqui uma
contradição, razão pela qual – a meu ver – a Receita não fez estimativas. As grandes
empresas, cujos lucros ultrapassam 750 mil reais, pagavam 25% mais 15%, isto é,
40%. Agora, passarão a pagar 15% mais 10%. O Governo só arrecadará mais se a
inflação for superior a 15% ao ano; do contrário arrecadará menos. Como não pode
fazer uma simulação superior ao referido índice, devido ao plano de estabilização –
que deveria baixar a inflação para um dígito – pela primeira vez na história da
legislação do imposto de renda um projeto como esse, que foi aprovado muito
rapidamente, em urgência urgentíssima, não contará com simulação alguma.
Das duas, uma: ou o Governo assume que a inflação ficará acima de 15%, e, neste
caso, vai arrecadar mais das grandes empresas, ou assume - como está previsto no
seu programa de estabilização – que ele cairá e, neste caso, perderá receita. As
pequenas e médias empresas literalmente vão para o espaço. Como não há mais
correção monetária no balanço e elas passam de 25% para 15%, a menos que este
Governo consiga atingir uma inflação européia de 4% ou 5% ao ano, não ganharão
renda alguma. Esse projeto trata mal as pequenas e médias empresas. As grandes,
tratará mal, sempre que elas não puderem corrigir o seu balanço – o que elas podem
fazer, pela Lei das S.A. – ou bem, se a inflação ficar um pouco abaixo de 15%.
(...)
Fazer uma reforma para diminuir a arrecadação do imposto de Renda das pessoas
jurídicas, sem nenhum benefício social, parece-me um completo despropósito.
De acordo com o pronunciamento transcrito acima, fica nítido um ceticismo em
relação à capacidade de o Governo Federal equilibrar as suas finanças e não prejudicar as
pequenas e médias empresas diante das propostas de alteração da legislação tributária
apresentadas para votação. O ceticismo da Oposição abrangia, sobretudo, a capacidade de o
Governo Federal manter taxas de inflação inferiores a 15%, já que, aos olhos da Oposição,
somente seria possível compensar a queda na arrecadação tributária – decorrente da redução
da progressividade do IRPJ – caso a inflação se mantivesse em patamares superiores à taxa
anual de 15%.
As críticas apresentadas pela Dep. Conceição Tavares são uma boa síntese das críticas
apresentadas por outros segmentos da Oposição. Havia, de fato, uma pressão muito forte da
Oposição para que os deputados da base aliada ao Governo Federal demonstrassem,
satisfatoriamente, como a queda de arrecadação federal seria compensada para que as contas
públicas permanecessem equilibradas.
Não houve nenhum debate crítico em relação às normas de tributação de lucros
auferidos no exterior, sobretudo, quanto à sua adequação com uma possível política industrial
e de internacionalização produtiva de empresas brasileiras mais ampla, o que incluiria
importantes variáveis tais como renda nacional, presença do Brasil no exterior, emprego,
arrecadação, entre outras questões conexas ao tema. As referidas normas foram consideradas,
em todos os pronunciamentos, como sendo parte de um pacote de medidas que visavam
combater práticas elisivas através do uso de paraísos fiscais e, mais do que isso, como
79
benéficas, pois através delas o Governo Federal estaria igualando o tratamento dado aos
lucros auferidos tanto no Brasil quanto no exterior (neutralidade na exportação de capitais).
Em resposta às críticas apresentadas pela Oposição, o Dep. Antônio Kandir – relator
do projeto de lei e aliado do Governo no Congresso – fez um pronunciamento final sobre a
matéria discutida, ocasião na qual foi explicada qual seria a estratégia do Governo Federal
para compensar a queda na arrecadação federal advinda da redução da progressividade do
IRPJ. Veja-se, abaixo, um trecho elucidativo do referido pronunciamento:
Agora qual é a mágica? De onde vêm as condições para a redução da carga tributária
de quem paga?
Vêm daquilo que todos nós, na Subcomissão, e depois na Comissão, sempre vimos
como mais importante: tapar os ralos jurídicos que permitem o planejamento
tributário.
Certamente, a maior contribuição deste projeto, na minha opinião, é o fato de
colocar um fim à farra dos paraísos fiscais, pois nele estamos transformando o
Imposto de Renda, que deixa de ter bases territoriais para ser de bases globais. Isso
que dizer o seguinte: uma empresa, que por subfaturamento ou superfaturamento
exporta lucro para um paraíso fiscal, hoje não paga imposto do lucro lá e não paga
imposto do lucro pequeno que fica aqui. Agora não: na verdade, se agregará o lucro
das filiais com o da matriz e apurar-se-á o lucro total, e do imposto sobre ele será
deduzido aquele pago lá fora. Se está num paraíso fiscal, paga todos os impostos
aqui.
(...)
Estamos finalmente fazendo aquilo que todos nós queríamos: quem paga imposto
agora vai pagar menos, e a vida daquele que dribla impostos agora vai ficar um
pouco mais complicada, devido ao fechamento das brechas que permitem o
planejamento fraudulento.
A partir do trecho transcrito acima, elucidou-se a estratégia que seria adotada pelo
Governo Federal para compensar a redução na tributação federal; o combate à elisão fiscal
internacional. Assim, as normas de tributação de lucros auferidos no exterior, aliadas às
demais medidas inibidoras de elisão e evasão fiscal, forneceriam, segundo a lógica do
Governo Federal, as receitas federais necessárias para compensar a queda na arrecadação
tributária decorrente da diminuição da progressividade do IRPJ. A partir deste episódio,
conforme demonstraremos adiante, o Governo Federal teve a tendência cada vez maior de se
utilizar de normas de natureza antielisiva como estratégia voltada à obtenção de volumes
maiores de receitas tributárias, destinadas, por vezes, a financiar políticas públicas específicas.
Após a discussão em turno único no Congresso Nacional, o projeto de lei foi enviado
ao Senado Federal onde outros aspectos foram discutidos, mas que, por não guardarem
relação direta ou indireta com a presente temática, não serão abordados.
80
O texto final dos dispositivos que tratavam do regime de tributação de lucros auferidos
no exterior (artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95) foi aprovado pelas duas casas do Poder
Legislativo sem sofrer alterações relevantes e de forma a manter a regra jurídica proposta pelo
Poder Executivo segundo a qual os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos por
filiais, sucursais, controladas e coligadas residentes no exterior deveriam ser computados na
determinação do lucro real das pessoas jurídicas residentes no Brasil, correspondente ao
balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano, no valor proporcional à sua participação
societária no capital social da sociedade residente no exterior128
.
Os referidos dispositivos não condicionaram a inclusão dos referidos lucros,
rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior na base de cálculo da investidora
brasileira à sua efetiva disponibilização econômica e jurídica, conforme exigia o enunciado
normativo do artigo 43 do Código Tributário Nacional vigente à época. Ademais, a regra de
inclusão e submissão à tributação brasileira ao final de cada ano-calendário (31 de dezembro)
demonstra a adoção de uma regra de antidiferimento ampla e irrestrita, a nosso ver,
descalibrada.
Tampouco foram acolhidas as reivindicações de alguns deputados federais no sentido
de possibilitar a compensação de prejuízos incorridos no exterior na apuração do lucro real da
empresa residente no Brasil – de modo a conferir tratamento tributário isonômico entre lucros
e prejuízos incorridos no exterior –, conforme se conclui a partir da leitura do enunciado
normativo final do §5º do artigo 25 da Lei nº 9.249/95. A Lei nº 9.249/95 permitiu que o
imposto pago no exterior fosse compensado com o devido no Brasil como medida destinada a
evitar a bitributação dos lucros, rendimentos ou ganhos de capital (art. 26).
A pretensão inicial da lei em estabelecer um critério de “disponibilização automática”,
em desrespeito ao artigo 43 do CTN, levou ao questionamento quanto à sua
constitucionalidade, fato que tentou ser contornado através da publicação da Instrução
Normativa SRF nº 38/1996. Esta Instrução Normativa será tratada a seguir.
128
Vale ressaltar que todas as pessoas jurídicas que auferem lucros, rendimentos ou ganhos de capital no
exterior, estão obrigadas a apurar Lucro Real, não sendo possível a opção pelo lucro presumido ou pelo
SIMPLES nacional, conforme dispõe o artigo 27 da Lei nº 9.249/95.
81
2.2.2.2. Conclusões Parciais – Lei nº 9.249/95
Em relação às normas de tributação em bases universais, a análise do processo
legislativo da Lei nº 9.249/95 permite chegar às seguintes conclusões parciais:
Primeira: Não houve resistência política à aprovação dos dispositivos que instituíram o
regime de tributação de lucros auferidos no exterior, nem qualquer tipo de ponderação quanto
aos seus possíveis efeitos econômicos do ponto de vista de uma política industrial ou de uma
política de internacionalização produtiva de empresas de capital nacional. Tal fato demonstra
a pouca articulação política dos setores privados no Congresso Nacional no sentido de barrar
as referidas normas ou alterá-las o que, por um lado, pode ser um reflexo da realidade
econômica da época (poucas empresas tinham a sua produção internacionalizada) e, portanto,
da ausência de interesse em se opor às normas tratadas ou, por outro lado, pode significar que
as empresas afetadas pelo regime aprovado possuíam baixa representatividade política no
Congresso Nacional.
Segunda: A justificativa apresentada para a criação do regime de tributação de lucros
auferidos no exterior foi o combate às práticas de elisão fiscal internacional abusivas
(ilegítimas), realizadas através de planejamentos tributários que visassem transferir ativos e
lucros para paraísos fiscais. No entanto, o regime contrariou a prática internacional na medida
em que a sua regra de antidiferimento era ampla demais, ou seja, não havia sido arquitetada
para ser aplicada de forma seletiva, considerando-se o tipo de rendimento (transactional
approach) e a sua origem (jurisdictional approach). O regime se aplica, em princípio, a todas
as pessoas jurídicas residentes no Brasil que possuem participação societária em empresas
residentes no exterior (coligadas e controladas) e a todas as filiais e sucursais sem distinguir o
tipo de rendimento auferido por elas. Assim, devido à ausência de um desenho antielisivo, ou
antiabusivo, o regime brasileiro se mostrava em descompasso com a justificativa apresentada
para a sua criação.
Terceira: A redução da arrecadação tributária advinda da redução da progressividade
do IRPJ devido pelas empresas brasileiras foi compensada, em grande parte, através da
introdução no ordenamento jurídico brasileiro do regime de tributação de lucros auferidos no
exterior. Assim, havia interesses arrecadatórios envolvidos na aprovação do regime de
tributação em bases universais uma vez que ele foi visto, à época, como uma estratégia
voltada ao equilíbrio das contas públicas.
82
2.2.3. 3º Momento: a Instrução Normativa SRF nº 38/1996
De acordo com o disposto no caput do artigo 25 da Lei nº 9.249/95, os lucros,
rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior deveriam ser incluídos na base de
cálculo da sociedade residente no Brasil – para fins de apuração do lucro real – até o dia 31 de
dezembro de cada ano independentemente de a sociedade controlada ou coligada no exterior
tê-los disponibilizado econômica ou juridicamente. Havia elevado risco, à época da aprovação
da Lei nº 9.249/95, de que o referido critério normativo fosse declarado inconstitucional
devido à inevitável afronta ao disposto no caput do artigo 43 do CTN.
Em virtude do risco de invalidade jurídica do referido critério legal, a Secretaria da
Receita Federal regulamentou a aplicação dos artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95 de forma a
“adequá-los” ao ordenamento jurídico vigente e a contornar o risco de inconstitucionalidade.
Foi justamente com esta preocupação em mente que foi publicada a Instrução
Normativa SRF nº 38/1996 que estabeleceu, logo em seu artigo 2º, que a inclusão dos lucros,
rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior na determinação do lucro real da
sociedade controladora ou coligada residente no Brasil estava condicionada à sua efetiva
disponibilização econômica ou jurídica. O administrador público tomou, inclusive, o cuidado
de conceituar, nos §§1º e 2º do artigo 2º, quais seriam as hipóteses de disponibilização que
seriam consideradas para fins de inclusão dos lucros, rendimentos e ganhos de capital na
determinação do lucro real.
A Instrução Normativa manteve a regra que possibilitava a compensação do imposto
pago no exterior pela controlada ou coligada com o imposto devido no Brasil pela
controladora ou coligada sem impor qualquer exigência adicional (art. 13). Ademais, a
referida Instrução Normativa deixou expressa a regra já prevista na Lei nº 9.249/95 segundo a
qual a contrapartida do ajuste do valor do investimento da empresa residente no Brasil no
exterior seria neutra para fins fiscais, ou seja, as contrapartidas em conta de resultado do
ajuste do valor do investimento contabilizado segundo o método de equivalência patrimonial
seriam neutras para fins de apuração do lucro real (art. 11) – e, posteriormente, da base de
cálculo da CSLL –, conforme já previa a legislação societária vigente.
Apesar de o administrador público, através do seu poder regulamentar, ter
“contornado” a possível inconstitucionalidade do regime vigente, nos moldes previstos pelos
83
artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95, ele criou novas hipóteses de disponibilização automática
através da previsão de hipóteses de equiparação à disponibilização129
na IN SRF nº 38/96. As
hipóteses foram previstas nos parágrafos do artigo 2º da referida IN e podem ser sintetizadas
da seguinte forma: (i) extinção de empresa brasileira e consequente transmissão do patrimônio
da sociedade estrangeira (art. 2º, §4º); (ii) encerramento das atividades da controlada ou
coligada no exterior (art. 2º, §5º); (iii) absorção do patrimônio da sociedade estrangeira por
sociedades brasileiras em virtude de incorporação, fusão ou cisão (art. 2º, §7º); (iv) absorção
do patrimônio da controlada ou coligada por empresa sediada no exterior (art. 2º, §8º); e (v)
alienação de participação societária em controlada ou coligada no exterior (art. 2º, §9º).
É bem verdade que as alterações na legislação tributária promovidas pela instrução
normativa no sentido de “contornar” a possível inconstitucionalidade incorrida pelo artigo 25
da Lei nº 9.249/95 foram absolutamente inválidas já que, a despeito de serem mais favoráveis
aos contribuintes, as alterações não poderiam ter sido feitas através de instrução normativa,
cujo poder é, tão somente, regulamentar, devendo o regulamento se ater aos limites
estabelecidos pela lei regulamentada, sem inovar na ordem jurídica a ponto de alterar o
critério de tributação antes previsto em lei. Esta conclusão decorre do fato de ser o
regulamento (instrução normativa), norma hierarquicamente inferior à lei. A nosso ver, a
alteração do critério normativo temporal da hipótese de incidência tributária, bem como a
previsão de novas hipóteses de disponibilização, promovidas pela IN SRF nº 38/1996 foram
inválidas por veicularem inovação jurídica para além do que permitia a lei (Lei nº
9.249/95)130
. Tal alteração só poderia ser feita por meio de lei em vista da regra constitucional
de reserva específica de lei aplicável ao sistema tributário nacional.
129
Nomenclatura utilizada por Alberto Xavier em: XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do
Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 392- 394. 130
A razão pela qual defendemos que a administração tributária não poderia ter inovado através de regulamento
é respaldada no pressuposto de que, no direito tributário, as alterações nos critérios normativos que compõem a
hipótese de incidência tributária se submetem à reserva específica de lei (cf. art. 150, I, C.F.). Não estamos
defendendo a ideia de que o administrador público nunca pode inovar no desempenho da sua função
administrativa. Muito pelo contrário. Ele pode e deve inovar, quando a lei estabelecer princípios e limites gerais
dentro dos quais é atribuída ao administrador plena liberdade regulamentar. O administrador público não pode
ser visto com desconfiança pelo legislador nem mesmo ser tratado como mero “braço mecânico” da vontade da
lei. Ocorre que, para que isso seja possível, a lei não apenas deve delegar o poder normativo ao regulamento –
prevendo, no entanto, princípios e diretivas que devem orientar o poder regulamentar do administrador – como
também deve a matéria da qual versa estar sujeita à mera primazia da lei ou à genérica dependência de lei. Isso
não ocorre, no entanto, quando o tema é de natureza tributária, em que o princípio da legalidade impõe uma
verdadeira reserva específica de lei ao formulador de políticas tributárias. Além de estar sujeita à reserva
específica de lei, os artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95 não delegaram poder ao regulamento, o que torna ilegal a
alteração do critério temporal da hipótese de incidência da norma tributária pretendida pela instrução normativa.
Neste sentido, confira-se: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 132-181 (Capítulo 6 – Administrar é criar?).
84
Apesar da crítica à pretensão de se corrigir uma potencial invalidade da lei através do
regulamento, o fato era que a Administração Tributária havia, ainda que pela via errada,
evitado questionamentos maiores quanto à constitucionalidade do critério normativo de
tributação. Restava, no entanto, atribuir “status legal” às alterações promovidas pela via do
regulamento. Tais alterações foram feitas pela Lei nº 9.532/97, conforme será analisado na
sequência.
2.2.4. 4º Momento: a Lei nº 9.532/97
2.2.4.1. O processo legislativo
A Lei nº 9.532/97 foi fruto do projeto de conversão em lei da Medida Provisória nº
1.602/97. A referida medida provisória foi editada e publicada em um contexto histórico em
que o Estado passava por uma série de reformas por meio das quais se buscava manter a
estabilidade da moeda, o equilíbrio fiscal, a modernização do Estado e a implementação de
programas de privatização de empresas públicas. O objetivo das referidas reformas era
agregar solidez às bases fundamentais da economia ao passo em que havia um esforço para
tornar o Estado mais eficiente mediante a privatização de empresas públicas que, por sua vez,
levaria a lógica da concorrência de mercado a setores antes monopolizados pelo Estado.
Do ponto de vista macroeconômico, o Brasil passava por um momento de dificuldades
devido à crise asiática de 1997. A situação chegou a se complicar, em agosto de 1998, quando
a Rússia decretou moratória. O Brasil estava na iminência de adotar um câmbio flutuante
frente ao dólar. O Banco Central havia elevado a taxa Selic, no período, para mais de 50% ao
ano como forma de compensar a redução nas reservas cambiais brasileiras ocasionada em
vista da ação de especuladores contra o Real, fato que levou à fuga de capitais investidos no
Brasil131
. O então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) chegou a negociar um novo
acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) às vésperas da sua reeleição.
131
Cf. FISHLOW, Albert. O novo Brasil: as conquistas políticas, econômicas, sociais e nas relações
internacionais. São Paulo: Saint Paul, 2011, p. 141- 165.
85
Tal conjuntura macroeconômica levou o Governo Federal a focar todos os seus
esforços em amenizar os efeitos da crise iminente através da proposta de uma série de
medidas de austeridade fiscal voltadas a reduzir despesas públicas e a aumentar a arrecadação
federal para os anos de 1998 e 1999. De fato, entre os anos de 1997 e 2002, a arrecadação
tributária havia sido elevada de 27,4% para 32,8% do PIB132
. Ao mesmo tempo, o Governo
Federal procurou dar continuidade às reformas pontuais que já vinham sendo feitas através de
leis anteriores – tais como a Lei nº 9.249/95 – cujo objetivo era adaptar a legislação tributária
à nova realidade econômica pós-Real, sobretudo, através da sofisticação dos mecanismos de
combate à elisão fiscal como meio de fortalecimento das bases arrecadatórias do Estado.
Ainda em relação ao contexto geral macroeconômico em que se inseriu a publicação
da MP 1.602/97, confira-se o excerto transcrito abaixo extraído da Exposição de Motivos do
Ministério da Fazenda nº 644:
Nesse sentido, o Projeto, ao mesmo tempo em que estabelece formas para prevenir a
evasão de receita tributária e reduzir a renúncia fiscal decorrente de todos os
incentivos fiscais, atualmente, em vigor, cria mecanismos que estimulam a atividade
produtora e viabilizam operações entre empresas nacionais e o exterior.
A partir da análise do trecho transcrito acima, fica clara a preocupação do Governo
Federal em reduzir as despesas públicas para equilibrar o orçamento público em face da queda
da arrecadação federal que havia sido a conseqüência dos reflexos da crise asiática de 1997 na
economia brasileira133
. De fato, foram várias as alterações promovidas pela MP e que tinham
como objetivo fundamental aumentar a arrecadação tributária. A reforma pontual promovida
pela MP tinha como alicerces fundamentais o corte de diversos benefícios fiscais, a disciplina
de isenções e imunidades e o aumento da tributação incidente sobre a renda das pessoas
físicas.
De forma geral, as principais alterações da legislação tributária federal propostas pela
referida MP eram: (i) a redução de benefícios fiscais, principalmente, aqueles destinados para
132
Cf. FISHLOW, Albert. O novo Brasil: as conquistas políticas, econômicas, sociais e nas relações
internacionais. São Paulo: Saint Paul, 2011, p. 180. 133
Tal preocupação fica ainda mais evidente no trecho em destaque do parecer da Comissão de Finanças e
Tributação, cujo relator era o Deputado Roberto Brandt: “A medida provisória sob exame foi editada no contexto
das medidas destinadas à redução do déficit público, dos exercícios de 1998 e 1999, para proceder às alterações
da legislação tributária consideradas aptas a proporcionar o aumento da arrecadação comprometido pelo
Governo no processo de equilíbrio das contas públicas. Esse aumento, segundo a medida provisória, advirá da
redução de incentivos fiscais, da redução de deduções na determinação da base de cálculo do imposto de renda
das pessoas físicas, do adicional a ser calculado sobre o valor do imposto de renda das pessoas físicas, do
aumento do IPI.”
86
as áreas da Sudam, Sudene, Zona Franca de Manaus (ZFM), Programa de Alimentação do
Trabalhador (PAT), Programa de Desenvolvimento Tecnológico Industrial (PDTI), entre
outros; (ii) a limitação as despesas dedutíveis na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de
Renda das Pessoas Físicas (IRPF); (iii) a criação de um adicional para o IRPF; (iv) a
disciplina da amortização do ágio/deságio na incorporação ou fusão societária (objetivo de
incentivar privatizações); (v) a previsão de requisitos para que instituições de educação e de
assistência social pudessem usufruir da imunidade constitucional prevista no art. 150, inciso
VI, alínea c; (vi) a regulamentação da isenção de IR concedida às instituições de caráter
filantrópico; (vii) a criação de regras mais rígidas para a concessão de isenção de imposto de
renda sobre rendimentos oriundos de Fundos de Investimento Imobiliário (FII); (viii) a
majoração da alíquota de IPI incidente sobre algumas mercadorias; (ix) a criação e o
aperfeiçoamento de medidas destinadas à proteção do crédito tributário; e, por fim, (x) a
disciplina do regime de tributação de lucros auferidos no exterior.
As medidas fiscais propostas pelo Governo Federal buscavam diminuir benefícios
fiscais, aumentar fontes de arrecadação de receitas tributárias e proteger o crédito tributário
desde o seu lançamento até a sua cobrança. Tais medidas se mostravam plenamente coerentes
com a política de austeridade fiscal anunciada tanto pelo Ministério da Fazenda quanto pelas
bases aliadas ao Governo Federal no Congresso Nacional.
Não obstante a lógica das medidas fiscais propostas pela MP nº 1.603/97 ter seguido
uma política de forte austeridade fiscal dado o contexto macroeconômico da época, o
Governo Federal demonstrou um aparente “arrependimento” no seu objetivo inicial de
instituir o regime de tributação em bases universais da pessoa jurídica juntamente uma regra
geral de antidiferimento da tributação brasileira (critério de disponibilização automática da
renda ao final do período-base no qual o lucro foi apurado).
Com efeito, o Governo Federal já havia demonstrado arrependimento quando, poucos
meses após a publicação da Lei nº 9.249/95, publicou a Instrução Normativa SRF nº 38/1996
a qual, apesar de ter mantido o regime de tributação em bases universais, disciplinou o
momento em que ocorreria a disponibilização dos referidos lucros (momento do pagamento
ou crédito em conta representativa de obrigação da empresa, conforme dispunha o artigo 2º da
referida instrução). Ao aparente “arrependimento” quanto à adoção da regra antidiferimento
ampla podem ser apresentadas diversas justificativas, mas é certo que, a despeito da coerência
de muitas delas, o regime proposto pelo Governo Federal, conforme disposto nos artigos 25 a
27 da Lei nº 9.249/95, corria grande risco de ser considerado inconstitucional em eventual
87
ação judicial apreciada pelo Poder Judiciário. Dessa forma, o artigo 1º da MP nº 1.603/97 –
posteriormente convertida na Lei nº 9.532/95 – atribuiu status legal à alteração promovida
pelo artigo 2º da IN SRF nº 38/1996. De fato, tanto a redação do artigo 1º da MP nº 1.603/97
quanto do artigo 2º da IN SRF nº 38/1996 eram muito semelhantes, salvo pela omissão do
artigo 1º da medida provisória em tratar das hipóteses de equiparação à disponibilização
tratados na instrução normativa, o que levou, a nosso ver, à sua revogação tácita.
A análise do processo legislativo revela que, a despeito da substancial alteração
promovida na disciplina do regime de tributação em bases universais, pouco se discutiu sobre
o artigo 1º da MP nº 1.603/97, tendo as discussões se concentrado muito mais na diminuição
dos benefícios fiscais, na disciplina das isenções e imunidades e, principalmente, no aumento
da tributação da renda das pessoas físicas134
.
Observa-se que, não obstante o Governo Federal tivesse dado “um passo para trás” em
relação ao seu objetivo de instituir a regra geral de antidiferimento da tributação nacional, foi
inserido no artigo 1º da MP 1.603/97 o §4º que condicionava o direito ao crédito do imposto
pago no exterior para compensação com o imposto devido no Brasil à repatriação dos lucros
no prazo máximo de 2 anos; passado este prazo, o contribuinte seria bitributado (na ausência
de tratado para evitar bitributação), devendo ele arcar tanto com o imposto devido no exterior
quanto com a integralidade da tributação devida no Brasil.
Havia, neste sentido, uma forte crença de que o §4º do artigo 1º, ao condicionar o
direito à compensação do imposto pago no exterior com o imposto devido no Brasil,
estimularia o repatriamento de lucros no curto prazo (até 2 anos) gerando, dessa forma,
resultados arrecadatórios análogos ao pretendido com a sistemática vigente anteriormente. Em
relação a este ponto específico, veja-se, também, o trecho do relatório proferido pelo Dep.
Roberto Brandt na Comissão de Finanças e Tributação:
O dispositivo [art. 1º] estabelece a incidência tributária sobre lucros auferidos de
coligadas e controladas situadas no exterior para o ano-calendário em que tais lucros
134
A Exposição de Motivos nº 644 do Ministério da Fazenda é pouco elucidativa sobre a alteração promovida no
regime tributação de lucros auferidos no exterior, conforme se pode observar a partir da leitura do trecho ora
transcrito: “O artigo 1º do Projeto refere-se às hipóteses em que os lucros auferidos por filiais, sucursais,
controladas e coligadas de empresas brasileiras no exterior são considerados disponíveis para a investidora no
Brasil. Esta definição é importante do ponto de vista tributário, tendo em vista que o fato gerador do imposto de
renda, na hipótese desses rendimentos, ocorre com a disponibilização dos lucros auferidos no exterior. Além
dessas definições, o §4º do referido artigo estabelece um prazo máximo de dois anos para o aproveitamento do
crédito do imposto pago no exterior sobre os referidos rendimentos, o que, acredita-se, irá incentivar a
disponibilização desses resultados, produzindo efeitos benéficos tanto do ponto de vista tributário quanto
cambial”.
88
sejam colocados à disposição da pessoa jurídica sediada no País. Com o propósito de
induzir à aceleração da disponibilização de tais lucros à empresa sediada no País, a
medida provisória condiciona a compensação do imposto de renda pago no exterior
com o imposto de renda devido no Brasil, a que tais lucros sejam postos à disposição
da empresa sediada no País no prazo de até dois anos. Vencido esse prazo, mantém-
se a incidência tributária, mas extingue-se a possibilidade de compensação do
imposto pago no exterior.
Após a submissão do projeto de conversão em lei da medida provisória à análise
parlamentar, é interessante observar que foram apresentadas 319 emendas parlamentares no
total o que indica, em princípio, forte oposição de parte considerável dos membros do
Congresso Nacional ao projeto de lei de conversão. As emendas se opuseram,
fundamentalmente: ao corte de benefícios fiscais, principalmente aqueles destinados à Sudam,
Sudene e ZFM, às limitações à dedutibilidade fiscal de IRPF nas Declarações de Ajuste
Anual, à proposta de criação de um adicional do IRPF e à imposição de requisitos para o
reconhecimento de imunidade (instituições de educação ou de assistência social) e de isenções
(instituições de caráter filantrópico).
A análise das referidas emendas parlamentares permite afirmar que houve uma grande
articulação política dos parlamentares ligados a grupos de interesses das regiões Norte e
Nordeste uma vez que os cortes de benefícios fiscais destinados às regiões da Sudam, Sudene
e ZFM foram amplamente questionadas pelos parlamentares que visavam, senão suprimir os
dispositivos legais da MP 1.603/97 que tratavam do assunto, atenuar a redução dos benefícios
fiscais pretendida pelos setores aliados ao Governo Federal.
É interessante observar que apenas 1 emenda foi proposta visando alterar o artigo 1º
da Lei nº 9.532/97 com o objetivo de compatibilizar a disciplina da tributação de lucros
auferidos no exterior com o disposto nos tratados destinados a evitar a bitributação135
.
Devido à articulação de diferentes segmentos políticos para barrar muitas das
alterações da legislação tributária propostas pelo Governo Federal com o objetivo de reduzir
benefícios fiscais e aumentar a tributação incidente sobre a renda das pessoas físicas, a base
aliada ao Governo Federal na Câmara dos Deputados se viu diante de um impasse político que
poderia impedir a aprovação do projeto de conversão de lei. Neste sentido, a base aliada
135
A referida emenda foi, no entanto, rejeitada pela Comissão de Finanças e Tributação sob a justificativa de
que, “em matéria tributária, já está ressalvado no Código Tributário Nacional que os tratados e convenções
internacionais prevalecem sobre as leis do País”. Por esta razão, a redação final do artigo 1º da Lei nº 9.532/97
permaneceu igual à redação do artigo 1º da Medida Provisória nº 1.603/97. O irônico é que um dos grandes
problemas atuais do regime de tributação universal é justamente a sua compatibilidade com os tratados, questão
esta que parece não ter recebida a atenção merecida pela Comissão de Finanças e Tributação.
89
procurou solucionar o impasse político através da inclusão de novos dispositivos ao projeto de
lei de conversão cujo objetivo era atenuar as medidas inicialmente propostas pelo Poder
Executivo através do aumento da tributação incidente sobre outras materialidades que não
tivessem um “custo político” direto tão elevado, tais como o mercado financeiro.
O “redirecionamento” de parte das medidas propostas pelo Governo Federal cuja
finalidade era permitir a aprovação do projeto de conversão de lei no Congresso Nacional
pôde ser identificado no processo legislativo através da análise de parte do relatório da
Comissão de Finanças e Tributação em que o Dep. Roberto Brant (PSDB-MG) afirma, com
clareza, que a inserção de novos dispositivos no projeto de conversão tinha em vista a
finalidade apontada. Neste sentido, confira-se:
MATÉRIA INCLUÍDA NO PROJETO DE CONVERSÃO
Concluída a análise dos dispositivos constantes da Medida Provisória e concluída
também a análise das emendas apresentadas, reportamo-nos, a seguir, sobre a
matéria nova incluída no projeto de conversão.
Incluímos os artigos 28 a 35, que aumentam a alíquota incidente sobre rendimentos
de renda fixa, de 15% para 20%. Incluímos, também, o artigo 36, que passa a
tributar os rendimentos obtidos nas operações de swap como rendimentos de renda
fixa, sujeitos, portanto, à alíquota de 20%, a partir de 1998. O aumento da tributação
dos rendimentos de renda fixa, inclusive quando obtidos através dos fundos de
aplicação coletiva, permitiram abrandar a redução dos incentivos fiscais no FINOR,
FINAM e FUNRES, bem como dos demais benefícios fiscais concedidos para
empreendimentos nas áreas de atuação da SUDAM e SUDENE. Permitiram,
também, eliminar a incidência do adicional do imposto de renda sobre os
rendimentos da pessoa física, que atualmente são tributados à alíquota de 15%.
Depois de feitas as alterações indicadas acima, o projeto de conversão de lei foi
encaminhado para discussão em turno único no Congresso Nacional. Nesta ocasião, a
Oposição apresentou diversas críticas à Medida Provisória editada pelo Governo Federal. A
principal crítica diz respeito à opção do Governo Federal em onerar, em tempos de crise,
diretamente o contribuinte brasileiro (pessoa física) ao invés de aumentar a tributação
incidente sobre operações de renda fixa e variável do mercado financeiro, opção que
implicaria a alocação do ônus tributário na pessoa do investidor estrangeiro. A réplica do
Governo Federal foi no sentido de ressaltar que opções deveriam ser feitas para preparar as
finanças públicas para a crise que estava na iminência de afetar o Brasil, bem como na
ausência de apresentação de qualquer contraproposta sólida pela Oposição.
Há, no entanto, uma crítica em especial que foi apresentada ao Governo Federal e que
merece o devido destaque. Trata-se da acusação de que o Governo Federal sempre se recusou
a discutir política industrial junto ao Congresso Nacional. Tal crítica pode estar relacionada ao
90
fato de que – após a análise das Leis nº 9.249/95 e 9.732/97 – não identificamos qualquer
ponderação relativa ao alinhamento das normas de tributação de lucros auferidos no exterior
com uma política industrial de incentivo ou desincentivo à internacionalização produtiva das
empresas de capital nacional. Nem mesmo houve a ponderação dos seus possíveis efeitos
sobre a atividade produtiva, tendo o Governo Federal se limitado a alegar que as referidas
normas seriam parte de um pacote de medidas destinadas ao combate à elisão fiscal. Veja-se a
referida crítica no trecho do pronunciamento do Deputado José Machado (PT-SP) abaixo
transcrito:
Afirmamos aos Parlamentares brasileiros que esse pacote – aproveito a imagem que
um colega, com muita felicidade, usou – é apenas para “enxugar o gelo”. Estamos,
na verdade, empurrando a crise com a barriga. Ela é por demais grave e não é um
problema exclusivamente internacional; diz respeito a uma opção do Governo
brasileiro, de uma forma irresponsável, vem fazendo, colocando o nosso País na rota
da desagregação econômico-social. É disso que se trata, Srs. Parlamentares, porque
o Governo sempre se recusou a discutir política industrial; o Governo sempre se
recusou a discutir política agrícola; o Governo escancarou o nosso País para as
importações.
É evidente que se deve ter o cuidado de analisar o pronunciamento do deputado da
Oposição ao Governo Federal considerando o contexto de forte embate político no Congresso
Nacional. Não obstante a necessidade de se tomar o referido cuidado, o trecho acima
transcrito leva a crer que havia uma dificuldade em discutir uma política industrial para o
Brasil entre os diversos setores políticos do Poder Executivo e Legislativo. Talvez a falta de
uma política industrial amplamente discutida tenha impedido que ponderações dessa natureza
tivessem sido feitas em relação às normas de tributação de lucros auferidos no exterior.
2.2.4.2. Conclusões Parciais – Lei nº 9.532/97
Em relação às normas de tributação de lucros auferidos no exterior, a análise do
processo legislativo da Lei nº 9.532/97 permite chegar a quatro conclusões parciais.
Primeira: O foco da preocupação política, no Congresso Nacional, foi o corte de
benefícios fiscais, principalmente, aqueles destinados à Sudam, Sudene e ZFM, as limitações
à dedutibilidade fiscal de IRPF nas Declarações de Ajuste Anual, a proposta de criação de um
adicional do IRPF e a imposição de requisitos para o reconhecimento de imunidade
91
(instituições de educação ou de assistência social) e de isenções (instituições de caráter
filantrópico).
Segunda: A alteração na sistemática de lucros auferidos no exterior passou de modo
despercebido no processo legislativo de votação do projeto de conversão em lei da Medida
Provisória nº 1.603/97.
Terceira: Além disso, chama a atenção o descompasso entre o artigo 1º da Lei nº
9.532/97 – que deu caracterizou o “arrependimento” do Governo Federal em instituir o
regime de tributação em bases universais na medida em que se condicionou a tributação dos
lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior à sua efetiva disponibilização
econômica ou jurídica (e não automática), o que certamente impactou negativamente na
arrecadação federal – e o restante dos dispositivos da lei que previam medidas cujo principal
objetivo era o aumento da arrecadação federal. Conforme observado, o objetivo das propostas
de alteração legislativa do Governo Federal era reduzir as despesas e aumentar o ingresso de
receitas no tesouro federal para enfrentar a crise econômica que estava na iminência de
ocorrer à época, ao passo em que a alteração promovida pelo artigo 1º da lei levaria à redução
da arrecadação federal, ao menos até que os lucros auferidos no exterior fossem
disponibilizados ao sócio brasileiro, devido à substituição da regra geral de antidiferimento
por uma regra de diferimento da tributação nacional.
Quarta: Por outro lado, havia a forte crença de que a limitação temporal do direito de
crédito do imposto pago no exterior estimularia a repatriação de lucros no curto prazo.
Tratava-se, portanto, de uma norma indutora que buscava amenizar os efeitos arrecadatórios
advindos da previsão de um regime de tributação universal com regra geral de diferimento da
tributação nacional para as pessoas jurídicas (art. 1º da Lei nº 9.532/97).
No próximo tópico a análise terá como foco as alterações feitas pela Lei
Complementar nº 104/2001 em diversos dispositivos do CTN. A principal delas, tendo-se em
vista os propósitos do presente trabalho, caracterizou uma inversão na evolução das normas
de tributação de lucros auferidos no exterior, permitindo-se que o objetivo inicialmente
previsto pelo Governo Federal fosse atingido, qual seja, a previsão de uma regra geral de
antidiferimento da tributação brasileira, a despeito da sua questionável juridicidade.
92
2.2.5. 5º Momento: a Lei Complementar nº 104/2001
2.2.5.1. O processo legislativo
A Lei Complementar nº 104/2001 foi fruto da conversão do Projeto de Lei
Complementar nº 77/99 encaminhado à Câmara dos Deputados pelo Ministro da Fazenda
Pedro Malan. O projeto de lei complementar estava inserido em um contexto em que o
Governo Federal pretendia instrumentalizar a Secretaria da Receita Federal do Brasil com
medidas que lhe possibilitassem aumentar a arrecadação tributária, através de técnicas mais
sofisticadas de fiscalização e controle das quais se destaca o combate a planejamentos
tributários (práticas de elisão fiscal), entre outras medidas.
De forma geral, o projeto de lei complementar abrangia quatro pontos centrais. O
primeiro deles dizia respeito à disciplina dos requisitos para o gozo de imunidades pelas
entidades de assistência social, das entidades beneficentes e filantrópicas. É interessante notar
que este tema já vinha sendo discutido quando da votação dos projetos que originaram as leis
nº 9.249/95 e 9.532/97, ocasião em que a disciplina fiscal proposta pelo Governo Federal
enfrentou considerável oposição por diversos segmentos políticos. Pois bem, o tema estava
novamente na pauta para discussão política. O segundo ponto consistia na modificação do
critério quantitativo da hipótese de incidência do imposto de renda. O terceiro ponto tratava
da previsão de normas antielisivas no Código Tributário Nacional. O quarto, por sua vez,
tratava de medidas judiciais em matéria tributária.
De forma mais detalhada, as alterações que o projeto de lei complementar visava
implementar eram: (i) ampliação do campo de incidência do imposto de renda que passaria a
incidir sobre “receitas” para permitir a criação de um “imposto de renda mínimo”; (ii)
disciplina, no plano da legislação complementar, dos requisitos para o reconhecimento de
imunidades das entidades presentes no artigo 150, inciso VI, alínea c, da C.F.; (iii)
aperfeiçoamento das medidas administrativas e, sobretudo, judiciais de proteção ao crédito
tributário; (iv) previsão legal da norma geral antielisiva (combate a planejamentos tributários);
e, por fim, (v) a criação de dispositivo legal que permitiria que, em relação aos lucros
auferidos no exterior, a lei estabelecesse as condições e o momento em que se daria a sua
disponibilidade, para fins de incidência do imposto de renda (inserção do §2º ao artigo 43 do
93
CTN). É importante ressaltar que este último dispositivo foi visto, pelo relator do projeto de
lei complementar – Dep. Antônio Cambraia (PSDB – CE) –, como uma norma antielisão
fiscal, de modo que, sempre que for feita menção a “normas antielisivas”, o presente trabalho
estará se referindo não apenas ao parágrafo único do artigo 116 do CTN como também ao §2º
do artigo 43.
A expectativa que se tinha em relação à aprovação do Projeto de Lei Complementar
nº 77/99 era o aumento indireto da arrecadação tributária através do aperfeiçoamento dos
meios de controle e de fiscalização da Secretaria da Receita Federal do Brasil sobre os fatos
geradores e os sujeitos passivos. O objetivo era coibir técnicas de elisão fiscal envolvendo
planejamentos tributários por meio das quais o sujeito passivo adotava estratégias negociais
voltadas unicamente a evitar total ou parcialmente a ocorrência do fato gerador. Daí a
centralidade das normas antielisivas para esta reforma do Código Tributário Nacional. Em
relação a este tema específico, confira-se, abaixo, um trecho do pronunciamento do Dep.
Antônio Cambraia no relatório da Comissão de Finanças e Tributação sobre o projeto de lei
complementar ora tratado:
O projeto em análise, por tratar de normas gerais do Direito Tributário, não trará
diretamente aumento ou diminuição da receita pública, mas, indiretamente, deverá
produzir crescimento na arrecadação tributária em decorrência de aperfeiçoamentos
e acréscimos propostos, que deverão provocar redução da evasão fiscal, atualmente
existente, tanto sob a forma de elisão, quanto de sonegação de tributos. 136
Em relação à importância da temática da elisão fiscal para o momento histórico no
qual foi encaminhado o projeto de lei complementar pela Presidência da República para
deliberação pelo Congresso Nacional, havia uma clara percepção de que o CTN não estava
suficientemente instrumentalizado para o seu combate. Veja-se o trecho abaixo do Parecer nº
1.257 da Comissão de Assuntos Econômicos cujo relator era o Senador Romero Jucá:
136 É curioso notar que muitos dos deputados que se pronunciaram sobre a temática da elisão fiscal, tanto no
presente projeto de lei complementar quanto nos projetos de lei anteriormente analisados que deram origem às
Leis nº 9.249/95 e 9.532/97, cometeram a imprecisão conceitual de tratar a elisão fiscal ora como subespécie de
evasão fiscal ora como conceito idêntico. Talvez não fosse de se esperar elevada precisão conceitual dos nossos
congressistas, mas o fato é que a elisão fiscal era vista como uma forma de prática do ilícito penal e tributário da
evasão fiscal. Tal “confusão” não estava livre de consequências na medida em que se tornava um forte elemento
de convencimento contra o planejamento tributário e inibia que questões mais profundas relativas à matéria (e.g.
liberdade do contribuinte na condução dos seus negócios) fossem devidamente discutidas.
94
Sucede que o Código Tributário Nacional, ainda que seja um fruto das melhores
cabeças de então representa um inestimável progresso em relação à situação
anterior, foi elaborado em um contexto econômico, jurídico e constitucional bastante
distinto do que temos hoje. Seria inevitável que alguns desses dispositivos se
tornassem ultrapassados, reclamando atualização não apenas formal para a letra da
Constituição vigente, mas também substancial para equiparar-se às condições
criadas pela evolução, significativa nas últimas décadas, das práticas e do Direito
Comercial, Financeiro e Internacional.
(...)
Aperfeiçoamento dos mais importantes é o introduzido no artigo 116, que permite à
autoridade fiscal trazer para as malhas da tributação as operações efetuadas com
vício de simulação. Trata-se, no caso, de coibir o que em direito se denomina de
abuso de forma jurídica.
Após a submissão do projeto de lei complementar à análise do Congresso Nacional,
foram apresentadas 18 emendas que questionaram diversos dispositivos do projeto, de modo
que apenas 2 delas (Emendas nº 8 e 9) questionaram a nova redação que se desejava dar ao
caput artigo 43 do CTN – segundo a qual o fato gerador do imposto de renda passaria a ser a
aquisição de disponibilidade de receita e não de renda ou provento de qualquer natureza –
alegando a sua incontestável inconstitucionalidade.
Note-se que não foi proposta nenhuma emenda que questionasse os novos parágrafos
que seriam incluídos no artigo 43. Não se discutiu, neste sentido, se o objetivo da inserção do
§2º ao artigo 43 seria possibilitar o critério de disponibilização automática dos lucros
auferidos no exterior, bem como do próprio regime de tributação em bases universais,
tampouco se tal fato seria desejável do ponto de vista econômico ou político. A inclusão do
§2º ao artigo 43 passou despercebida no processo legislativo e foi tratada como norma
pertencente ao “pacote” destinado ao combate à elisão fiscal, conforme demonstra o trecho do
relatório do Dep. Antônio Cambraia, exposto na discussão em turno único do projeto na
Câmara dos Deputados:
Observe-se, porém, que a proposição acrescenta dois parágrafos, no art. 43, que
talvez mereça acolhida. Os dois parágrafos objetivariam assumir o papel de norma
antielisiva, ou seja, normas genéricas que pretendem evitar que o contribuinte com
capacidade econômica de pagar o seu imposto dele escape mediante fórmulas
engenhosas de fugir à caracterização do fato gerador do imposto.
A maior parte das emendas foi acatada de forma a amenizar as medidas propostas pelo
Governo Federal e a corrigir inconstitucionalidades “evidentes” do projeto de lei
complementar. Neste sentido, não houve grande embate político para a aprovação do projeto e
para convertê-lo em lei complementar.
95
A partir da analise do processo legislativo, em especial da discussão em turno único do
projeto na Câmara dos Deputados, é possível encontrar o porquê de o projeto ter sido
aprovado com 98% de apoio na Câmara dos Deputados e 100% no Senado Federal. Tratava-
se de um contexto em que houve uma grande articulação de diversos segmentos políticos para
que o salário mínimo pudesse ser aumentado, à época, para R$ 180,00, acréscimo este
considerado significativo. Os recursos que seriam utilizados para financiar o aumento do
salário mínimo seriam provenientes do ganho de receitas tributárias advindas da sofisticação
das técnicas de fiscalização e de controle de práticas de planejamento tributário as quais
passariam a ser fortemente combatidas pelas autoridades fazendárias. Este movimento de
combate é atualmente constatado a partir da análise da evolução recente da jurisprudência das
cortes administrativas – em especial do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF)
– no sentido de desconsiderar diversas operações estruturadas cuja motivação central advém
de razões puras ou preponderantes de economia fiscal. Veja-se, neste sentido, parte da fala do
Dep. Eduardo Paes (PTB-RJ) na discussão do projeto em turno único na Câmara dos
Deputados:
Parece-me que o Deputado Antônio Cambraia, em seu substitutivo, trata da questão
mais relevante deste projeto, questão que faz parte de um acordo de honra nesta
Casa: a norma que busca viabilizar o aumento do salário mínimo para 180 reais.
O que estamos tentando fazer neste momento, ao aprovarmos o substitutivo do
referido Deputado, é permitir que esta luta, iniciada por diversos partidos, por
diversos parlamentares no início deste ano, possa se concretizar agora. Estaremos
aprovando a norma antielisiva e criando dispositivos que serão regulados por lei –
talvez seja essa a única pequena modificação que faria no substitutivo aprovado pelo
Deputado Antônio Cambraia –, para que, ao instrumentalizar a Receita Federal, a
tentativa de se anular atos ou negócios jurídicos que busquem dissimular o
conhecimento do fato gerador possa ser feita com critério, garantindo os direitos dos
contribuintes. Esta é uma questão básica no País, que já sofre com uma carga
tributária abusiva, com uma carga tributária que inviabiliza boa parte das empresas e
com um processo político que, infelizmente, ainda não nos permitiu a realização da
reforma tributária.
Estamos dando um grande passo para a justiça social, com o aumento do salário
mínimo, instrumentalizando a Receita Federal para acabar com esse absurdo do
planejamento tributário abusivo no País.
Neste contexto, certamente a previsão do §2º ao artigo 43 do CTN – visto, conforme
ressaltamos anteriormente, como norma destinada a combater à elisão fiscal – estava alinhada
com o objetivo de fortalecer as bases arrecadatórias do Governo Federal para permitir o
aumento do salário mínimo. Deve-se esclarecer, no entanto, que não estamos defendendo que
o Governo Federal não deveria reprimir práticas de elisão fiscal. De fato, elas merecem ser
repreendidas quando consideradas abusivas. O fato é que o objetivo do Governo Federal não
96
era repreender práticas abusivas de planejamento tributário apenas pela questão de justiça
fiscal, mas, principalmente, porque assim seria possível obter o aumento de arrecadação
necessário para financiar o aumento do salário mínimo vigente à época.
Fica claro, portanto, que a inclusão do dispositivo ora tratado ao CTN tinha como
objetivo central possibilitar que o Governo Federal voltasse à sua intenção inicial de instituir
o regime de tributação em bases universais com regra geral de antidiferimento sem incorrer,
segundo o seu ponto de vista, em inconstitucionalidade. Assim, aos olhos da Secretaria da
Receita Federal do Brasil, o §2º do artigo 43 do CTN teria excepcionado a norma prevista no
caput do referido artigo 43, ao permitir que a lei estabelecesse o momento em que ocorreria a
disponibilização jurídica e econômica da renda auferida no exterior, ainda que fictamente.
Em entrevista concedida pelo Ex-secretário da Secretaria da Receita Federal do Brasil
que não apenas concebeu o regime brasileiro de tributação em bases universais como também
acompanhou os distintos momentos da sua evolução normativa – Everardo Maciel137
– a
conclusão mencionada acima fica bastante clara. Veja-se, neste sentido um trecho da referida
entrevista:
Nós considerávamos que para poder fazer isto [tributar através do critério da
disponibilização automática] seria necessária uma mudança no Código Tributário
Nacional. Então foi um recuo estratégico. Então nós cuidamos de fazer essa
alteração no CTN para só depois trazer essa norma de volta ao direito positivo.
(...)
Quando nós regressamos à questão da disponibilidade é porque nós observamos que
era necessária a alteração do CTN. Fizemos a alteração e depois voltamos porque
observamos que faltava amparo legal ao critério da disponibilização automática. Foi
um “zig-zag” decorrente de uma revisão porque achávamos que faltava amparo legal
em relação a este ponto.
Como se pode observar a partir da leitura do trecho reproduzido acima, a volta à regra
de diferimento foi um “recuo estratégico” por parte do Poder Executivo que estava receoso
quanto à validade jurídica do regime proposto nos moldes previstos pela Lei nº 9.249/95 sem
que houvesse uma alteração legislativa no CTN. Por esta razão, o Poder Executivo tinha a
forte crença de que a alteração feita no artigo 43 do CTN teria criado as condições jurídicas
necessárias para acolher o regime inicialmente proposto no direito positivo, permitindo-se que
a lei estabelecesse livremente o momento em que ocorreria a disponibilidade quando se
137
Entrevista realizada com Everardo Maciel, através de contato telefônico, no dia 13/12/2011. O entrevistado
autorizou a utilização da entrevista para os fins da presente pesquisa e permitiu a menção ao seu nome.
97
tratasse de lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior, sem incorrer em
inconstitucionalidade.
Ademais, a análise do processo legislativo demonstra que a sofisticação das técnicas
de combate à elisão fiscal representou uma alternativa para aumentar a arrecadação tributária
sem que, para tanto, se incorresse no mesmo custo político da previsão legislativa de novos
tributos ou da majoração da sua base de cálculo ou alíquota (elementos quantitativos da
hipótese de incidência). Esta é uma tendência que pode ser observada desde o final da década
de 1990 até os dias atuais. O aumento da arrecadação tributária passou a ser pautada muito
mais no sucesso da fiscalização e do controle das autoridades fiscais do que na criação de
novos tributos ou na sua majoração.
2.2.5.2. Conclusões Parciais – Lei Complementar nº 104/2001
Em relação às normas de tributação de lucros auferidos no exterior, a análise do
processo legislativo da Lei Complementar nº 104/2001 permite chegar a duas importantes
conclusões parciais:
Primeira: O grande objetivo buscado pela Lei Complementar nº 104/2001 foi a
introdução das normas antielisivas (art. 43, §2º e art. 116, parágrafo único) com a finalidade
de desconsiderar atos praticados pelos contribuintes que tivessem como finalidade única ou
preponderante a economia tributária (planejamentos fiscais).
Segunda: O Poder Executivo, em especial a Secretaria da Receita Federal do Brasil,
tinha a forte crença de que a inclusão do §2º ao artigo 43 do CTN criaria o suporte jurídico
necessário para que a regra geral de antidiferimento aplicável à tributação em bases universais
das pessoas jurídicas, nos moldes inicialmente propostos pelos artigos 25 a 27 da Lei nº
9.249/95, fosse validamente reintroduzida no ordenamento jurídico nacional. Assim, aos
olhos das autoridades fiscais, o §2º do artigo 43 deveria ser interpretado como uma “exceção”
à regra de disponibilização econômica ou jurídica prevista no seu caput e não de forma
condicionada ao seu mandamento normativo.
Terceira: O objetivo da alteração do CTN foi fortalecer as bases de arrecadação
tributária indiretamente – ou seja, não diretamente através da majoração de tributos vigentes
98
ou da criação de novas espécies tributárias – para que políticas públicas específicas e
imediatas fossem concretizadas (aumento do salário mínimo).
A seguir, será analisada a Medida Provisória nº 2.158-35/2001 que alterou
sensivelmente o regime jurídico em vigor desde a vigência da Lei nº 9.532/97, demarcando a
retomada da intenção governamental em instituir um regime de tributação universal nos
moldes inicialmente propostos pela Lei nº 9.249/95.
2.2.6. 6º Momento: a Medida Provisória nº 2.158-35/2001
2.2.6.1. O processo legislativo
A Medida Provisória nº 2.158-35/2001, juntamente com a Instrução Normativa SRF nº
213/2002 que a regulamentou, marcaram o último marco legislativo na trajetória da evolução
normativa da sistemática brasileira de tributação de lucros auferidos no exterior. A referida
versão da medida provisória é fruto da sua última reedição, tendo a sua vigência sido
prorrogada até que medida provisória ulterior venha a revogá-la expressamente ou até
deliberação definitiva do Congresso Nacional, nos termos previstos pelo artigo 2º da Emenda
Constitucional nº 32, o que, até hoje, não aconteceu.
As versões anteriores da medida provisória vinham promovendo alterações gerais em
matéria tributária federal com uma ênfase maior na legislação de PIS e COFINS na
sistemática cumulativa (Lei nº 9.718/98).
A retomada do objetivo do Governo Federal em instituir o regime de tributação
universal com base em um critério de disponibilização ficta (automática), nos moldes
previstos inicialmente pela Lei nº 9.249/95, foi atingido através da inserção do artigo 74 da
MP nº 2.158-35/2001 (art. 73 conforme consta da edição anteriormente publicada da MP)
cujo texto legal dispôs que os lucros auferidos no exterior seriam considerados
disponibilizados na data do balanço em que tivessem sido apurados (31 de dezembro de cada
ano) para a controladora ou coligada no Brasil. Além disso, em seu parágrafo único, previu o
dispositivo que os lucros apurados até 31 de dezembro de 2001 seriam considerados
99
disponibilizados em 31 de dezembro de 2002. Confira-se o artigo 74 da Medida Provisória nº
2.158-35/2001 cuja redação transcrevemos abaixo:
Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da
CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art.
21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no
exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no
Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.
Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31
de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de
2002, salvo se ocorrida, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização
previstas na legislação em vigor.
Após a publicação da Medida Provisória, foram apresentados diversos
questionamentos quanto à validade jurídica tanto do critério de disponibilização adotado pelo
caput do artigo 74 quanto do critério adotado pelo seu parágrafo único. Tais questionamentos
foram levantados – e levados ao Poder Judiciário para discussão – por contribuintes cujo
interesse principal era diferir a tributação brasileira incidente sobre rendas auferidas no
exterior até o momento em que eles fossem efetivamente disponibilizados. Estes
questionamentos demarcam o início de uma luta de interesses entre fisco e contribuintes que
está sendo travada no Poder Judiciário até o presente momento.
Essa luta de interesses ensejou o surgimento de linhas de entendimento acadêmico
opostas das quais trataremos no capítulo 4. Por ora, adiantamos que o argumento apresentado
pelos contribuintes a favor da inconstitucionalidade do art. 74 da MP nº 2.158-35/2001 é no
sentido de que tanto o seu caput quanto o seu parágrafo único haviam se respaldado em
critérios de disponibilização por ficção legal, o que não corresponde à efetiva disponibilização
econômica ou jurídica da renda, conforme exige o caput do artigo 43 do CTN.
Vale ressaltar que a afronta à Constituição Federal se dá na medida em que a própria
carta de direitos delegou à lei complementar a atribuição de “estabelecer normas gerais em
matéria de legislação tributária, em especial, a definição de tributos e de suas espécies, bem
como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos
geradores, bases de cálculo e contribuintes”. Esta tarefa havia sido cumprida pelo CTN – lei
formalmente ordinária que foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 como sendo
materialmente lei complementar – por delegação constitucional. Neste sentido, a afronta ao
CTN implica não apenas o desrespeito à norma prevista em lei complementar como,
sobretudo, a afronta ao conteúdo nuclear mínimo de renda previsto na Constituição Federal
(art. 153, inciso III). Segundo esta linha, o §2º do artigo 43 não teria legitimado que a lei
100
previsse o momento da disponibilização em etapa anterior à sua efetiva disponibilização
jurídica ou econômica, tão somente em etapa posterior, o que resultaria na sua interpretação
harmoniosa com o disposto no caput. Neste sentido, o artigo 74 da MP 2.158-35/2001 seria
inconstitucional e ao §2º do artigo 43 do CTN deveria ser dada uma leitura conforme a
Constituição Federal.
Outro aspecto importante da referida medida provisória é que ela previu, através do
artigo 21, a hipótese de incidência de CSLL sobre o lucro apurado no exterior bem como
possibilitou a compensação do crédito relativo ao imposto pago no exterior com o saldo a
pagar da CSLL devida caso o referido crédito ultrapassasse o valor do débito de IRPJ devido
no Brasil. É bem verdade que a hipótese de incidência da CSLL e o referido direito à
compensação já se encontravam previstos no ordenamento jurídico desde a publicação da MP
nº 1.858-6 (art. 19), não se podendo cogitar da sua incidência antes da vigência da referida
medida provisória por ausência de previsão legal para tanto. Abaixo, encontra-se reproduzido
o teor do artigo 21 da MP 2.158-35/2001:
Art. 21. Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior sujeitam-
se à incidência da CSLL, observadas as normas de tributação universal de que
tratam os arts. 25 a 27 da Lei nº 9.249, de 1995, os arts. 15 a 17 da Lei nº 9.430, de
1996, e o art. 1o da Lei nº 9.532, de 1997.
Parágrafo único. O saldo do imposto de renda pago no exterior, que exceder o valor
compensável com o imposto de renda devido no Brasil, poderá ser compensado com
a CSLL devida em virtude da adição, à sua base de cálculo, dos lucros oriundos do
exterior, até o limite acrescido em decorrência dessa adição.
Em relação ao diploma legal ora analisado, não há um processo legislativo
formalizado justamente por se tratar de uma medida provisória e, portanto, por não ter sido
objeto de apreciação pelo Congresso Nacional. Tal fato dificulta uma análise com o mesmo
grau de profundidade como aquela adotada em relação aos diplomas legais tratados
anteriormente. A única justificativa formal encontrada para a “retomada” do objetivo de se
coibir o diferimento na sistemática de tributação em bases universais da pessoa jurídica,
conforme originalmente previsto na Lei nº 9.249/95, foi localizada em um comunicado do
Ministro da Fazenda Pedro Malan ao Presidente da República Fernando Henrique Cardoso
que justificou as alterações feitas na legislação tributária. Abaixo, por oportuno,
transcrevemos um trecho do comunicado explicativo referente às alterações propostas para o
regime de tributação em bases universais:
101
A lei complementar nº 104, de 2001, alterou também o art. 43 do CTN, o qual, em
seu §2º, estabelece que, na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do
exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará a sua
disponibilidade, para fins de incidência do imposto de renda. Assim, o art. 73 [art.
74 na redação da última versão da MP nº 2.158-35/2001] estabelece que a
disponibilização dos lucros auferidos por controladas ou coligadas no exterior dar-
se-á, para fins de incidência do imposto de renda e da contribuição social sobre o
lucro líquido na controladora ou coligada no País, na data do balanço em que haja
sido apurado.
Confirma-se, a partir da análise do trecho reproduzido acima, a crença do Governo
Federal de que a introdução do §2º ao artigo 43 do CTN teria criado as condições jurídicas
necessárias para a válida previsão legal do regime de tributação em bases universais com uma
regra geral de antidiferimento, nos moldes inicialmente propostos pelos artigos 25 a 27 da Lei
nº 9.249/95.
Posteriormente à edição da medida provisória, a Instrução Normativa SRF nº 213/2002
disciplinou a sistemática de tributação universal em cumprimento à determinação normativa
prevista no artigo 74 da MP 2.158-35/2001 que delegou ao regulamento a tarefa de disciplinar
a forma e o momento em que se daria a inclusão dos lucros, rendimentos e ganhos de capital
auferidos no exterior na determinação do lucro real apurado no Brasil. A referida Instrução
Normativa permanece em vigor até os dias de hoje. A seguir, analisaremos algumas das suas
características mais importantes tendo-se em vista os propósitos centrais deste trabalho.
2.2.6.2. Conclusões Parciais – Medida Provisória nº 2.158-35/2001
A única conclusão que se pode extrair a partir da análise do escasso material relativo à
Medida Provisória nº 2.158-35/2001 é que a norma disposta no artigo 74 segue a tendência
evidenciada na Lei Complementar nº 104/2001 de ampliação da arrecadação tributária através
de normas de natureza antielisiva.
No caso, há fortes indícios de que a Lei Complementar nº 104, ao inserir o §2º ao artigo
43 do CTN, buscou criar as condições jurídicas necessárias à retomada da sistemática de
tributação universal com base em uma regra de antidiferimento ampla, conforme prevista
originalmente pela Lei nº 9.249/95, de modo a evitar questionamentos futuros quanto à sua
102
constitucionalidade. Não obstante o esforço legislativo, atualmente a constitucionalidade do
artigo 74 da MP está sendo questionada junto ao STF.
2.2.7. 7º Momento: a Instrução Normativa SRF nº 213/2002
Há alguns aspectos que merecem atenção em relação à Instrução Normativa nº
213/2002 que regulamentou o regime jurídico de tributação em bases universais, em
cumprimento à determinação normativa prevista expressamente no artigo 74 da MP nº 2.158-
35/2001.
O primeiro aspecto diz respeito ao momento no qual os lucros, rendimentos e ganhos
de capital auferidos no exterior são considerados disponibilizados para fins de tributários.
Seguindo a norma disposta no artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001, o artigo 2º da Instrução
Normativa previu que os referidos lucros, rendimentos e ganhos de capital deveriam ser
incluídos na base de cálculo do IRPJ (lucro real) e da CSLL no balanço levantado em 31 de
dezembro do ano que tiverem sido apurados.
Em contraste com o tratamento atribuído pela Instrução Normativa nº 38/1996, a
presente instrução não condicionou a sua inclusão à efetiva disponibilização econômica ou
jurídica da renda. No entanto, as autoridades fazendárias tinham a forte crença de que o
regime de tributação de lucros auferidos no exterior inaugurado pelo artigo 74 da MP nº
2.158-35/2001 possuía a sua validade fortemente respaldada pelo §2º do artigo 43 do CTN.
Tal fato justifica a mudança de orientação adotada pelas autoridades fazendárias quanto à
possibilidade de a lei vir a estabelecer o momento em que haveria a disponibilização para fins
de incidência do IRPJ e da CSLL.
O segundo aspecto importante se refere à manutenção da mesma orientação que havia
prevalecido desde a votação da Lei nº 9.249/95 relativa à impossibilidade de compensação
dos prejuízos incorridos no exterior com os lucros apurados pela sociedade controladora ou
coligada residente no Brasil. O artigo 4º da instrução normativa ora tratada manteve esta
regra.
O terceiro aspecto é a alteração da regra que havia sido adotada pela Instrução
Normativa nº 38/1996 segundo a qual os ajustes no valor contábil do investimento detido pela
pessoa jurídica no Brasil no exterior – através de sociedades coligadas ou controladas –
103
deveriam receber tratamento fiscal neutro. Com efeito, o artigo 7º da Instrução Normativa nº
213/2002 rompeu a regra de neutralidade fiscal da contrapartida em conta de resulta dos
ajustes em conta de ativo (ajuste da conta “investimentos”) decorrentes da avaliação dos
investimentos segundo o Método da Equivalência Patrimonial (MEP).
Além disso, não se pode cogitar a aplicação do regime de tributação de lucros
auferidos no exterior com a regra geral de antidiferimento – nos moldes previstos pelos
artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95, artigo 74 da MP 2.158-35 e pela IN SRF nº 213/2002 – às
pessoas jurídicas que não estejam obrigadas a apurar o valor dos seus investimentos pelo
MEP. Aqueles que não estiverem sujeitos à avaliação dos seus investimentos através do
método da equivalência patrimonial devem pagar o imposto sobre os lucros auferidos no
exterior somente no momento em que eles forem disponibilizados (regime de tributação de
lucros auferidos no exterior com a regra geral de diferimento). O capítulo 4 analisará o MEP
em maior profundidade.
Por fim, o quarto aspecto diz respeito à reintrodução no ordenamento jurídico das
mesmas hipóteses de equiparação à disponibilização previstas anteriormente na IN SRF nº
38/1996 e que, a nosso ver, haviam sido tacitamente revogadas pelo artigo 1º da Lei nº
9.532/97. As referidas hipóteses encontram-se previstas nos §§ 1º, 2º, 3º, 5º e 6º do artigo 2º
da instrução normativa ora comentada.
A Instrução Normativa nº 213/2002 representou a concretização da intenção
inicialmente pretendida pelas autoridades fazendárias desde a publicação da Lei nº 9.249/95.
A referida instrução permanece em plena vigência até os dias de hoje.
2.3. Quadro-resumo dos 7 momentos
Com o objetivo de sintetizar o percurso normativo narrado até o presente momento,
optamos por elaborar um quadro-resumo em que cada momento que caracterizou a evolução
do regime jurídico de tributação em bases universais da pessoa jurídica (i) está relacionado ao
diploma normativo correspondente (ii), aos critérios normativos da hipótese de incidência
tributária contida na regra matriz (iii) e à conseqüência prática decorrente da sua aplicação
(iv).
104
Momento
(i)
Diploma
Normativo (ii) Critério Normativo (iii) Consequência (iv)
1º
Territorialidade
(sem diploma
específico)
Não há critérios normativos que possibilitem a
tributação da renda da pessoa jurídica em bases
universais
Tributação em bases
territoriais
2º Lei nº 9.249/1995
CM: auferir lucro, rendimento e ganho de
capital por coligada ou controlada no exterior
CP: sociedade controladora/coligada residente
no Brasil
CT: em 31 de dezembro de cada ano
CE: Exterior
Tributação em bases
universais com
disponibilização
automática
(regra de
antidiferimento)
3º IN SRF nº
38/1996
CM: auferir lucro, rendimento e ganho de
capital por coligada ou controlada no exterior
CP: sociedade controladora/coligada residente
no Brasil
CT: em 31 de dezembro do ano em que houver
a disponibilização econômica ou jurídica dos
lucros, rendimentos e ganhos de capital
CE: Exterior
Tributação em bases
universais condicionada
à disponibilização
econômica ou jurídica
(regra de diferimento)
4º Lei nº 9.532/1997
CM: auferir lucro, rendimento e ganho de
capital por coligada ou controlada no exterior
CP: sociedade controladora/coligada residente
no Brasil
CT: em 31 de dezembro do ano em que houver
a disponibilização econômica ou jurídica dos
lucros, rendimentos e ganhos de capital
CE: Exterior
Tributação em bases
universais condicionada
à disponibilização
econômica ou jurídica
(regra de diferimento)
5º LC nº 104/2001
CM: auferir lucro, rendimento e ganho de
capital por coligada ou controlada no exterior
CP: sociedade controladora/coligada residente
no Brasil
CT: momento em que a lei dispuser que se dará
a disponibilidade daquela renda
CE: Exterior
Introdução do §2º ao
artigo 43 do CTN
intenção de atribuir
validade jurídica ao
critério normativo
vigente no 2º momento
6º MP nº 2.158-
35/2001
CM: auferir lucro, rendimento e ganho de
capital por coligada ou controlada no exterior
nos termos do artigo 25 da Lei nº 9.249/95
CP: sociedade controladora/coligada residente
no Brasil
CT¹: data do balanço na qual os lucros,
rendimentos e ganhos de capital tiverem sido
apurados, na forma do regulamento
CT²: para os lucros apurados até 31 de
dezembro de 2001, os lucros serão considerados
disponibilizados até 31 de dezembro de 2002,
salvo se houver qualquer hipótese de
disponibilização anteriormente.
CE: Exterior
Tributação em bases
universais com
disponibilização
automática
(regra de
antidiferimento)
7º IN SRF nº
213/2002
CM: auferir lucro, rendimento e ganho de
capital por coligada ou controlada no exterior
CP: sociedade controladora/coligada residente
no Brasil
CT¹: data do balanço na qual os lucros,
rendimentos e ganhos de capital tiverem sido
apurados
CT²: para os lucros apurados até 31 de
dezembro de 2001, os lucros serão considerados
Tributação em bases
universais com
disponibilização
automática
(regra de
antidiferimento)
105
disponibilizados até 31 de dezembro de 2002,
salvo se houver qualquer hipótese de
disponibilização anteriormente.
CE: Exterior
Item (iii): CT é o critério temporal, CM é critério material, CP é o critério pessoal e CE é o critério espacial.
Note-se que a primeira alteração, que ocorreu no decorrer da evolução da sistemática
da tributação de lucros auferidos no exterior, recaiu sobre o critério espacial que passou da
territorialidade para a universalidade dos rendimentos auferidos por contribuintes residentes
no Brasil – o elemento de conexão passou a ser a residência e não mais, tão somente, a fonte
produtora – do primeiro momento para o segundo momento.
A partir do segundo momento, o principal critério normativo que passou a ser alterado
foi o critério temporal e é em torno dele que estão posicionadas todas as críticas atuais quanto
à constitucionalidade do regime. O critério temporal é também determinante na qualificação
do regime como de diferimento da tributação ou de antidiferimento da tributação da jurisdição
fiscal em que reside a pessoa jurídica investidora (no caso, o Brasil).
2.4. Afinal, por que o regime brasileiro é diferente?
Em vários momentos do presente trabalho, afirmou-se que o regime brasileiro se
distancia do modelo de regime de transparência fiscal internacional adotado
internacionalmente que oscila entre uma abordagem mais transacional (seletiva em função do
tipo de rendimento) e uma abordagem mais jurisdicional (seletiva em função da origem do
rendimento).
Apesar de a análise do processo legislativo ter demonstrado idiossincrasias existentes
entre as justificativas que foram apresentadas como motivação para a criação do regime de
tributação em bases universais no direito brasileiro – veja-se, por exemplo, a exposição de
motivos da Lei nº 9.249/95 – e o desenho do regime que resultou após a sua aprovação final
pela MP nº 2.158-35/2001, as razões identificadas no processo legislativo para justificá-las
foram, tão somente, de natureza arrecadatória (compensação da redução da alíquota do IRPJ e
financiamento do aumento do salário mínimo). Diante deste diagnóstico, é de fundamental
106
importância que se faça uma investigação empírica mais profunda sobre o tema. A questão
que se coloca aqui é: Por que o regime brasileiro é diferente da prática mundial?
Para responder esta pergunta, utilizamos entrevistas feitas com autoridades públicas
que ocupavam cargos elevados na Secretaria da Receita Federal do Brasil na época da criação
do regime e que tiveram participação na concepção e na delimitação dos contornos do regime
tributário. Abaixo serão expostas as duas hipóteses centrais que foram obtidas ao longo das
entrevistas realizadas para o presente trabalho138
.
2.4.1. A primeira hipótese
A primeira hipótese de resposta para a pergunta proposta surgiu a partir da entrevista
concedida por Everardo Maciel – secretário da Secretaria da Receita Federal do Brasil que
concebeu o regime de tributação em bases universais das pessoas jurídicas e acompanhou
cada um dos momentos da sua evolução normativa, conforme dito anteriormente – quando
questionado sobre as razões que o teriam levado a propor um regime de tributação com uma
regra de antidiferimento tão abrangente ao invés de seguir o modelo adotado pela maior parte
dos países. Veja-se, abaixo, o trecho da entrevista relativo a este questionamento:
Entrevistador: Mas Sr. Everardo, a maior parte dos países que optam por se utilizar
do critério da disponibilização automática, ao tributar a renda mundial, o aplicam
apenas em relação a rendimentos passivos em paraísos fiscais, excluindo do seu
escopo de incidência os rendimentos ativos que denotam nítido propósito negocial.
Há um descompasso do Brasil em relação a estes países. Quais razões justificariam
tal descompasso?
Entrevistado: Veja bem, vamos colocar isso no tempo. As discussões sobre elisão
fiscal vieram bem depois, com a Lei Complementar nº 104/2001, com o parágrafo
único do artigo 116 do CTN que, sendo uma norma de eficácia limitada, ficou
pendente de disciplinamento por uma norma concreta. Fui eu quem introduziu esta
norma e fui eu que tentei disciplinar através da MP nº 66 de agosto de 2002
estabelecendo como uma das hipóteses de caracterização da elisão fiscal a falta de
propósito negocial. Entretanto, era final de Governo e as pessoas não entenderam
direito, dava muito trabalho para conversar, não foi a frente e o dispositivo da MP
não foi aprovado pelo Congresso Nacional, o que gera hoje uma situação de zona
cinzenta. Portanto, vamos colocar as coisas no tempo. Não tributar enquanto não
forem disponibilizados os lucros, desde que haja propósito negocial, só pode ser
visto no contexto de elisão e esse nós não tínhamos ainda.
(...)
138
Ressalte-se, no entanto, que as hipóteses que serão elencadas não excluem que outras, tão ou mais plausíveis,
sejam apresentadas em resposta à pergunta proposta. As duas hipóteses expostas trabalhadas neste estudo foram
identificadas dentro do universo de entrevistas realizadas pelo autor.
107
Olhe as datas que você verá isso. Foi havendo um amadurecimento dentro da
Receita Federal sobre essas matérias. Infelizmente, depois que eu sai, não avançou.
Fui secretário da RFB durante oito anos. Já fui Ministro da Fazenda também,
momentos em que tive a oportunidade de entrar mais no assunto. Trata-se, portanto,
de uma questão de escalonamento do tempo. Agora, o disciplinamento de vincular a
aplicação da norma antielisiva a institutos tais como a falta de propósito negocial aí
sim permite rediscutir o outro.139
Segundo o trecho da entrevista transcrito acima, a razão que teria determinado o
desenho amplo da regra de antidiferimento do regime de tributação em bases universais teria
sido a sua introdução no direito brasileiro em período anterior aos debates sobre elisão fiscal e
normas antielisivas. Conforme foi demonstrado anteriormente, o regime de transparência
fiscal internacional adotado pela maioria dos países possui natureza antiabuso, sendo uma
norma antielisiva especial (special anti avoidance rule – SAAR). Assim, de acordo com
Everardo Maciel, não havia suficiente maturação do debate brasileiro sobre elisão fiscal razão
pela qual o regime de tributação de lucros auferidos no exterior deixou de assumir contornos
antielisivos o que resultou na aplicação de forma ampla da sua regra antidiferimento, ou seja,
sem seletividade alguma. Veja-se outro trecho da entrevista em que esta conclusão fica muito
clara:
Quando nós regressamos à questão da disponibilidade é porque nós observamos que
era necessária a alteração do CTN. Fizemos a alteração e depois voltamos porque
observamos que faltava amparo legal ao critério da disponibilização automática. Foi
um “zig-zag” decorrente de uma revisão porque achávamos que faltava amparo legal
em relação a este ponto. Muito bem. Mas quando nós estávamos discutindo tudo
isso foi anteriormente às discussões sobre elisão fiscal.
Historicamente, segundo a presente hipótese, os temas foram discutidos em ordem
inversa no Brasil na medida em que a regra de antidiferimento do regime de tributação em
bases universais acabou sendo demasiadamente abrangente porque o próprio debate sobre a
elisão fiscal e as normas antielisivas, que lhe deveria preceder, ocorreu somente em momento
posterior. Em outras palavras, a Secretaria da Receita Federal do Brasil – órgão que concebeu
originalmente o desenho normativo do regime de tributação em bases universais – não se
atentou para o fato de que a função da regra de antidiferimento, inspirado na bem sucedida
139
A Medida Provisória nº 66/2002 visava promover alterações em diversas matérias da legislação tributária
federal (em especial na sistemática da cobrança não cumulativa da contribuição ao PIS e da COFINS). Dentre as
matérias que se buscava alterar, destaca-se a propositura de normas destinadas a regulamentar a aplicação da
norma geral antielisiva prevista no parágrafo único do art. 116 do CTN. Apesar dos esforços do Poder Executivo
em regulamentar a aplicação da norma geral antielisiva através dos artigos 13 a 19 da medida provisória, tais
dispositivos regulamentadores não estavam presentes na Lei nº 10.637/2002, objeto da conversão da MP nº
66/2002. Vale lembrar que muitos segmentos da doutrina sustentam – e com razão a nosso ver – que a norma
geral antielisiva tem a sua eficácia contida uma vez que precisa de lei ordinária que regulamente a sua aplicação,
não sendo possível, portanto, a sua incidência imediata.
108
experiência internacional do regime de transparência fiscal internacional, deveria ter função
antiabusiva e não puramente arrecadatória.
2.4.2. A segunda hipótese
A segunda hipótese de resposta para a pergunta proposta surgiu a partir da entrevista
que foi concedida para este estudo pelo Marcos Vinícius Neder140
– ex-subsecretário da
Secretaria da Receita Federal do Brasil e ex-coordenador geral de fiscalização – quando lhe
foi pedido para expor o contexto presente no momento em que o regime de tributação em
bases universais foi inicialmente proposto e a sua percepção sobre o regime. Veja-se, no
trecho reproduzido abaixo, o seu depoimento:
Houve no início uma tentativa de se passar para um regime de tributação universal
da renda. O Brasil não tinha muita experiência nisso e fez um sistema parecido, em
alguns aspectos, com o sistema internacional que permitia o diferimento do
reconhecimento da receita, ou seja, só havia tributação no momento em que
efetivamente distribuídos. Isso vigorou por muito tempo, mas o Fisco começou a
perceber que quando se tem o sistema de diferimento com crédito, muitas vezes o
dinheiro acabava não sendo repatriado ou acabava demorando muito.
O sistema ao qual o entrevistado faz menção como sendo “parecido com o sistema
internacional” era o regime sob a égide da Lei nº 9.532/97 que permitia o diferimento da
tributação brasileira até que os lucros, rendimentos e ganhos de capital fossem efetivamente
disponibilizados pela fonte pagadora.
A segunda hipótese, ora tratada, é de que o Brasil adotou uma regra geral ampla que
coibia o diferimento da tributação nacional, não apenas pela relativa “falta de experiência no
assunto” – conforme menciona o entrevistado – como também pelo fato de o sistema de
diferimento estar sujeito à sua ineficácia uma vez que o contribuinte não teria um estímulo
para repatriar os seus lucros se fosse submetê-los à tributação brasileira. Sob o regime de
diferimento, de acordo com o entrevistado, os lucros acabavam ficando alocados no exterior
por um prazo indefinido de tempo, ainda que medidas, como o condicionamento do direito de
compensação do imposto pago no exterior com o imposto devido no Brasil à disponibilização
140
Entrevista realizada com o Sr. Marcos Vinícius Neder, presencialmente em seu escritório em São Paulo, em
02/12/2011. O entrevistado autorizou a utilização da entrevista para os fins da presente pesquisa e permitiu a
menção ao seu nome.
109
dos lucros no prazo inferior a dois anos, tivessem sido adotadas durante o período em que
vigorou o regime de diferimento (cf. artigo 1º, §4º da Lei nº 9.532/97).
Neste contexto, a passagem do regime de antidiferimento (Lei nº 9.249/95) para o de
diferimento (Lei nº 9.532/97) foi apenas estratégica para que se pudessem evitar eventuais
críticas quanto à validade jurídica do regime. Posteriormente, a volta ao regime de
antidiferimento (MP nº 2.158-35/2001) – cuja validade estava respaldada, aos olhos das
autoridades públicas, na alteração promovida pela Lei Complementar nº 104/2001 no artigo
43 do CTN – representou, sobretudo, o desenho mais eficiente do ponto de vista da
arrecadação tributária, permitindo que os lucros não ficassem alocados no exterior de forma
indefinida no tempo.
2.4.3. Conclusões parciais das duas hipóteses
Observa-se que as duas hipóteses apresentadas acima não são excludentes entre si.
Elas são, na verdade, complementares. Ambas estavam presentes e determinaram o desenho
do regime de tributação em bases universais que se tem hoje.
A partir delas, pode-se chegar a duas conclusões parciais.
Primeira: O debate brasileiro sobre o tema da elisão fiscal e, principalmente, das
normas antielisivas especiais aplicáveis ao direito tributário internacional não estava
suficientemente amadurecido entre os segmentos da Administração Pública – berço da
política tributária –quando o regime brasileiro foi inicialmente concebido. Assim, a falta de
experiência brasileira relativa ao tema pode ter influenciado na adoção de uma regra geral de
antidiferimento demasiadamente ampla quando comparada à experiência de outros países com
regimes de transparência fiscal internacional.
Segunda: O regime de antidiferimento foi uma alternativa mais eficiente do ponto de
vista da arrecadação tributária haja vista o fato de que, durante o período em que prevaleceu o
regime de diferimento, os contribuintes não tinham incentivos suficientes para repatriar os
seus lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior e submetê-los à tributação
brasileira.
110
2.5. Participação dos grupos de interesse na formulação da política tributária
Além das críticas que já foram apresentadas à formulação da política tributária que
culminou no regime brasileiro de tributação em bases universais das pessoas jurídicas, há uma
crítica adicional que merece especial destaque. Trata-se da ausência de participação dos
principais grupos de interesse afetados no processo de formulação da política tributária, em
especial os contribuintes. Este diagnóstico pode ser obtido através do trecho reproduzido
abaixo da entrevista concedida por Everardo Maciel quando questionado sobre a participação
dos contribuintes no processo de formulação da política tributária ora em análise:
Entrevistador: Sr. Everardo, eu gostaria de lhe fazer uma última pergunta: quando
esta norma foi criada – e mesmo ao longo da sua evolução legislativa – foi
estabelecido algum canal de diálogo com o contribuinte? Ele expressou a sua
opinião?
Entrevistado: Não, isso não é da tradição brasileira. Não é assim que as coisas
acontecem. Agora, seja lá como for, assuntos dessa natureza eram sempre
precedidas de discussões com tributaristas. Inúmeros tributaristas. Todos que você
possa imaginar que eram importantes. Com isso, colhíamos muitas ideias
interessantes. A construção abstrata de uma norma é matéria de criatividade.
A participação dos diversos segmentos interessados poderia enriquecer o debate que
antecedeu a formulação da política tributária através da ponderação dos seus possíveis efeitos
e das metas buscadas pelo Governo Federal no longo prazo. Com isso, o Governo Federal
garantiria, sobretudo, um padrão mais elevado de participação democrática no processo de
formulação de políticas, ganhando, com isso, maior legitimidade. Esta é a razão que orienta a
convocação de audiências públicas antes da formulação de políticas públicas que culminam
em grandes marcos legislativos relativos a diferentes áreas do direito.
Esta é, portanto, uma crítica que se pode fazer ao processo de formulação da política
tributária, relativa ao regime tributário discutido, adotada pelo Brasil. Quanto mais uma
proposta é submetida à análise crítica de grupos de interesse distintos antes da sua aprovação,
maior será a capacidade do formulador de políticas de antecipar possíveis pontos fracos e
críticas que poderiam ser apresentadas. Assim, através deste expediente democrático de
discussão pública ex ante, pode-se evitar, também, um contencioso tributário ex post – como o
que se tem hoje em relação à possível inconstitucionalidade do regime de tributação de lucros
auferidos no exterior – que se arraste durante longos anos e que implique elevados custos
tanto para o Estado quanto para o particular.
111
2.6. Conclusões da trajetória da evolução normativa do regime de tributação de
lucros auferidos no exterior no direito brasileiro
Desde o momento em que foi apresentado o Projeto de Lei de conversão nº 913 à
Câmara dos Deputados, o Ministério da Fazenda já havia declarado a sua intenção em instituir
um regime jurídico de tributação que fosse capaz de alcançar os lucros auferidos fora das
fronteiras nacionais. Duas razões teriam motivado tal objetivo: (i) a nova conjuntura
macroeconômica interna do Brasil pós-Real; e (ii) a existência de uma orientação
internacional recomendando o uso da transparência fiscal internacional como forma de
proteção da arrecadação tributária interna frente ao fenômeno da competição tributária danosa
no qual os países ou dependências de tributação favorecida e os regimes fiscais privilegiados
assumiram posição central.
O Brasil parece ter seguido o movimento de adoção de normas de transparência fiscal
internacional. No entanto, o desenho do regime brasileiro diferiu sensivelmente da prática
internacional e da própria recomendação do modelo da OCDE na medida em que a sua regra
antidiferimento – operacionalizada através do critério de disponibilização automática dos
lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior – não discriminou o rendimento
nem pela sua natureza (ativo ou passivo), nem pela sua origem (regime fiscal favorecido ou
não). Assim, a regra antidiferimento brasileira desconsidera tanto o transactional approach
quanto o jurisdictional approach que, tradicionalmente, definiu contornos ao regime de
transparência fiscal internacional adotado ao redor do globo.
A possível inadequação do regime inicialmente formulado pelos artigos 25 a 27 da Lei
nº 9.249/95 representou um risco que precisava ser contornado no curto prazo, o que veio a
ocorrer através da publicação da IN SRF nº 38/1996 e da Lei nº 9.532/97. Posteriormente,
com a alteração introduzida pela Lei Complementar nº 104/2001 no artigo 43 do CTN, o
Governo Federal entendeu estarem satisfeitas as condições jurídicas necessárias para a
previsão de uma regra de antidiferimento ampla e irrestrita. Tal intenção veio a ser
concretizada através do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 e com a IN SRF nº 213/2002 que o
regulamentou.
É notável o fato de que houve um aumento significativo da arrecadação tributária no
contexto pós-Real. Esta tendência foi motivada por diferentes fatores políticos e econômicos;
ora buscava-se amenizar a perda de arrecadação federal advinda de crises econômicas, ora
112
procurava-se arrecadar recursos necessários ao financiamento de políticas específicas de
governo. Em todas essas situações, observa-se que tanto a criação de novas espécies
tributárias quanto a majoração da alíquota das espécies já existentes representavam estratégias
com custo político muito elevado.
Neste sentido, a alternativa política mais viável para aumentar a arrecadação tributária
parece ter sido a instrumentalização das autoridades fiscais com medidas mais sofisticadas de
controle e fiscalização do contribuinte destinada, principalmente, ao combate à prática do
planejamento tributário. Não foi por acaso que o discurso político acabou sendo muito
direcionado no sentido de que seria necessária uma nova postura de combate a tais práticas.
Tal postura estava, por sua vez, muito mais preocupada com o ganho de arrecadação que
adviria do combate à elisão fiscal do que com a dissuasão da prática em si.
Aliada a esta constatação, está a ideia de que o Brasil não possuía longa experiência no
debate sobre elisão fiscal e, principalmente, em normas antielisivas especiais aplicáveis ao
direito tributário internacional quando o regime brasileiro foi inicialmente concebido.
Ademais, uma regra geral de antidiferimento foi uma alternativa mais eficiente e menos
custosa, para o Governo Federal, do ponto de vista da arrecadação tributária.
Apesar do discurso político presente em diversos momentos do processo legislativo
analisado expressar a intenção do Governo Federal de combater práticas de competição
tributária danosa – patrocinada por países ou dependências de tributação favorecida e regimes
fiscais privilegiados – através da adoção do regime de tributação em bases universais, o fato é
que o objetivo buscado era aumentar as bases de arrecadação federal para a concretização de
políticas específicas, do mesmo modo que ocorreu com a introdução da norma geral
antielisiva (parágrafo único do artigo 116 do CTN) no ordenamento jurídico brasileiro.
A regra antidiferimento do regime brasileiro de tributação em bases universais não
possui natureza antielisiva no sentido de coibir apenas o abuso das práticas de elisão fiscal
internacional. De fato, ela coíbe tanto as situações abusivas quanto as não abusivas. Neste
sentido, a análise crítica do processo legislativo leva à conclusão de que, no Brasil, o objetivo
que prevaleceu não foi apenas dissuadir condutas elisivas envolvendo paraísos fiscais, o que
poderia ser feito adotando-se o modelo consagrado pela prática internacional com ganhos
mais reduzidos de arrecadação, mas sim a combinação de duas finalidades: (i) dissuasão; e (ii)
ampliação da arrecadação tributária federal (com ganhos mais generosos advindos da relativa
113
amplitude da norma quando comparada à prática internacional) para que políticas de natureza
diversa fossem concretizadas.
Outra conclusão que se pode tirar a partir da análise do processo legislativo é que o
debate político é pouco direcionado para a análise da adequação das alterações tributárias à
uma conjuntura macroeconômica, especialmente, frente a uma política industrial ou de
desenvolvimento de empresas em mercados internacionais de longo prazo. Não foi sequer
cogitada a discussão quanto aos impactos da sistemática de tributação em bases universais nas
finanças das empresas de capital nacional, tampouco sobre o processo de internacionalização
produtiva das empresas nacionais.
O debate político pouco preocupado com o impacto das normas de tributação em bases
universais demonstra, sobretudo, pouca articulação política das empresas em relação a esta
temática específica, fato que pode ser justificado, em um primeiro momento, pelo
desconhecimento de que a norma seria introduzida no direito brasileiro e, também, pelo fato
de que, à época, as empresas brasileiras não se encontravam tão preparadas para
internacionalizar parte da sua atividade produtiva como ocorre hoje. Há, neste sentido, a
hipótese de que a articulação política de segmentos privados foi se aprimorando
gradativamente após a publicação da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 em virtude da
importância, cada vez maior, da internacionalização produtiva das empresas de capital
nacional para a conquista de novos mercados, estratégia de expansão da sua atividade
produtiva e, também, de sobrevivência em uma economia globalizada.
Outro ponto a ser levado em consideração é a ausência de debate entre fisco e
contribuinte ao longo do processo de evolução normativa da sistemática de tributação em
bases universais. A análise do processo legislativo e as entrevistas realizadas levam à
conclusão de que as normas não foram o resultado de um processo de construção em que
todos os grupos de interesse envolvidos tiveram direito à participação assegurado, mas sim
uma política tributária que surgiu no interior do Poder Executivo e que recebeu pouca
oposição política pelos grupos de interesse organizados no Congresso Nacional,
especialmente quando outras políticas pontuais – talvez de maior apelo popular, como foi o
caso do aumento do salário mínimo – estavam em jogo e dependiam de recursos para o seu
financiamento.
114
3. OS EFEITOS DO REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS
AUFERIDOS NO EXTERIOR NA INTERNACIONALIZAÇÃO PRODUTIVA DAS
EMPRESAS DE CAPITAL NACIONAL
3.1. Notas introdutórias
Até o momento, o foco do presente trabalho recaiu sobre o regime de tributação em
bases universais aplicável às pessoas jurídicas. Em um primeiro momento, analisamos a sua
evolução normativa no mundo, dando-se especial atenção para a sua utilização, juntamente
com uma regra de combate ao diferimento da tributação nacional, como norma antielisiva
especial pela experiência internacional cuja finalidade central é o combate à evasão e à elisão
fiscal internacional abusiva. Em um segundo momento, demonstramos a evolução do regime
no direito brasileiro de modo a identificar como os interesses e o contexto histórico
envolvidos condicionaram o seu desenho normativo.
No presente capítulo, o nosso olhar deixará de recair sobre o regime e passará a recair
sobre os seus efeitos econômicos. Neste sentido, optamos por analisar os seus efeitos no
processo de internacionalização produtiva das empresas de capital nacional e na sua
competitividade em mercados externos devido à crescente importância do tema em um
cenário em que as empresas brasileiras se tornam cada vez mais internacionalizadas.
Os problemas econômicos ensejados pelo desenho do regime são o fruto da política
tributária pouco preocupada com os seus efeitos sobre a atividade produtiva nacional.
Conforme visto no capítulo 2, o debate sobre a internacionalização produtiva das empresas de
capital nacional sequer foi abordado ao longo de toda a evolução da política tributária desde a
sua formulação inicial pelo Poder Executivo até a sua aprovação final pelo Congresso
Nacional. Por esta razão, é de grande importância demonstrar que o regime não possui
implicações apenas na esfera jurídica – conforme demonstrado no capítulo 4 –, mas,
sobretudo, no plano da realidade prática (efeitos econômicos).
Este capítulo se dividirá em duas partes. Na primeira parte, serão abordados os
conceitos, as causas e as motivações do fenômeno da internacionalização empresarial. Será
feito, também, um diagnóstico da realidade brasileira relativo ao crescimento expressivo, que
115
se observou na década de 2000, dos investimentos brasileiros no exterior. Na segunda parte,
serão expostos os resultados da pesquisa empírica feita com empresas nacionais
internacionalizadas de grande porte pertencentes a diferentes setores de atividade econômica,
autoridades fiscais e consultores em matéria fiscal. O objetivo deste capítulo, em especial da
sua segunda parte, é responder as perguntas relativas ao segundo problema que orientou a
presente pesquisa, bem como testar as suas respectivas hipóteses. O objetivo da primeira parte
deste capítulo será introduzir ao leitor o tema da internacionalização empresarial bem como
situá-lo nos seus principais fundamentos teóricos e, com isso, prepará-lo para a análise dos
resultados empíricos demonstrados na segunda parte.
3.2. Premissas conceituais do fenômeno da internacionalização
O tema da internacionalização deve ser analisado sob a perspectiva de um mercado
globalizado compreendido em uma economia aberta em que há um constante fluxo tanto de
entrada de capitais em um determinado país, na forma de investimentos diretos de empresas
transnacionais estrangeiras (inflow foreign direct investments ou inflow FDI), quanto de saída
de capitais, na forma de investimentos diretos das suas empresas no exterior (outflow foreign
direct investment ou outflow FDI).
Como uma economia globalizada pressupõe elevada integração comercial entre os
países e baixos custos de transação de se operar em mercados externos, o que se tem, na
prática, é a simultânea importação e a exportação de capitais por cada um dos países, não
obstante se admita a existência de disparidades – por vezes muito elevadas – entre os fluxos
de entrada e saída de capitais a depender do país considerado. Por esta razão, não faz sentido
falar que os países são “importadores” ou “exportadores” de capital; os países importam e
exportam capitais simultaneamente, porém em diferentes proporções141
.
O termo “internacionalização” é relativamente amplo de modo que ele pode comportar
diferentes significados. Por um lado, tem-se a internacionalização comercial que consiste na
parcela de produção nacional de mercadorias e serviços destinada ao exterior através de
141
Veja-se, neste sentido: ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da renda empresarial: uma
proposta de sistematização e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
116
exportações comerciais. Esta espécie de internacionalização não requer a realização de
investimentos diretos no exterior, mas, tão somente, de vendas de mercadorias e serviços para
mercados externos. Por outro lado, há a internacionalização produtiva que consiste, segundo
Barreto e Ricupero, “na movimentação internacional de fatores de produção, sendo apenas
necessária que haja uma relação contínua com o exterior” 142
.
Segundo os referidos autores, o conceito de internacionalização não poderia ser
confundido com o de exportações – aqui tratadas como internacionalização comercial – nem
de meras negociações internacionais, só podendo se falar em internacionalização quando há o
deslocamento de fatores de produção através da abertura de uma filial ou subsidiária no
exterior, do estabelecimento de parcerias, de investimentos cruzados entre empresas, de
acordos de cooperação industrial e/ou comercial ou, ainda, da aquisição de empresas já
constituídas no exterior. O conceito de internacionalização adotado por Rubens Ricupero se
confunde com o próprio conceito de internacionalização produtiva adotado para os propósitos
do presente trabalho.
Para outros autores, como Edmund Amann, a internacionalização consiste em um
processo que possui quatro etapas sequenciais distintas: a primeira delas é a exportação de
mercadorias e serviços; a segunda é o estabelecimento de escritórios de representação no
exterior; a terceira é a criação de empresas subsidiárias propriamente no exterior; a quarta, por
fim, é a integração global de todas as operações realizadas pelo grupo econômico143
. Veja-se
que, para o referido autor, a internacionalização comercial seria uma etapa anterior do
processo mais amplo de internacionalização empresarial o qual só se completaria com a
internacionalização produtiva das atividades empresariais e com a subsequente integração de
todas as operações realizadas em todos os pontos do globo pelo conglomerado empresarial.
A literatura econômica possui dois grandes modelos teóricos que identificam as
motivações que levam as empresas a internacionalizarem parte das suas atividades produtivas
e as condições necessárias para tanto.
O primeiro deles foi desenvolvido por Dunning e denomina-se abordagem eclética
(eclectic paradigm). De acordo com a abordagem eclética de Dunning, a principal
142
BARRETO, Fernando Mello e RICUPERO, Rubens. A importância do investimento direto estrangeiro do
Brasil no exterior para o desenvolvimento socioeconômico do país. In: ALMEIDA, André (org,).
Internacionalização de empresas brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 22. 143
AMANN, Edmund. Technology, public policy, and the emergence of Brazilian multinationals. In:
BRAINARD, Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo (editors). Brazil as an economic superpower? –
Understanding Brazil’s changing role in the global economy. Washington: Brookings Institution Press, 2009, p.
188.
117
condicionante para que a empresa busque internacionalizar parte dos seus fatores de produção
é possuir uma vantagem de propriedade (firm-specific advantage) que consiste em uma
vantagem comparativa relacionada a seus ativos tangíveis e intangíveis (e.g. propriedade de
marcas, patentes, mão-de-obra qualificada e modelo organizacional diferenciado) que permita
às empresas explorá-las em outros mercados aproveitando-se das suas vantagens de
localização144
. As vantagens de propriedade proporcionam à empresa investidora alta
probabilidade de captura de fração relevante do mercado consumidor destinatário dos
investimentos.
Em relação às motivações que levam à internacionalização produtiva, Dunning indica
que há três motivações centrais: a primeira delas é o acesso a novos mercados (the market-
seeking motive); a segunda delas é a busca por recursos materiais, como matérias-primas
minerais e vegetais, e imateriais, como ideias e habilidades (the resource-seeking motive); e a
terceira delas é o desejo de se alcançar padrões de maior eficiência econômica, através da
busca pela economia de escala através da redução do custo médio unitário de produção de
mercadorias (the efficiency-seeking motive)145
.
Para Iglesias e Veiga, a teoria eclética vai um pouco mais além e coloca o tema da
internacionalização como condicionado não apenas à existência de vantagens de propriedade,
mas também a outras vantagens que não devem ser asseguradas pela empresa, mas sim pelos
países de residência da sociedade investidora e da sociedade investida. Esses outros
condicionantes são definidos de acordo com o contexto econômico e jurídico dos países
envolvidos, o que inclui o grau de desenvolvimento do país, as condições concorrenciais e o
seu marco jurídico. Neste sentido, ao adotar essa visão da teoria eclética, Iglesias e Veiga
colocam especial destaque na importância das regras jurídicas e nas políticas de Estado como
fatores indutores da internacionalização produtiva146
.
No presente trabalho, adotou-se a mesma premissa de Iglesias e Veiga. Neste sentido,
o que se fará adiante neste capítulo é testar a hipótese de que as normas jurídico-tributárias
brasileiras afetam a competitividade das empresas em mercados internacionais. Procuraremos
144
Cf. ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das
empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 45-46. 145
Cf. AMANN, Edmund. Technology, public policy, and the emergence of Brazilian multinationals. In:
BRAINARD, Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo (editors). Brazil as an economic superpower? –
Understanding Brazil’s changing role in the global economy. Washington: Brookings Institution Press, 2009, p.
189 e 190. 146
IGLESIAS, Roberto e VEIGA, Pedro da Motta. Investimento das firmas brasileiras no exterior: algumas
hipóteses e resultados de uma pesquisa entre exportadores. In: HAMAIS, Carlos A. (org.). O desafio dos
mercados externos: teoria e prática na internacionalização da firma. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, v. II p. 204.
118
saber, também, em que medida o regime afeta a decisão quanto a internacionalizar parte da
atividade produtiva empresarial.
O segundo modelo teórico é denominado de modelo comportamentalista e vem sendo
desenvolvido nas últimas duas décadas por diversos autores que estão engajados na
explicação do comportamento usado pelas firmas para se inserirem no mercado internacional
no contexto da globalização. De modo geral, os autores de modelos comportamentalistas
afirmam que a internacionalização produtiva das firmas é o resultado de uma sequência – um
processo – em que a empresa reduz incertezas em relação ao mercado externo o que lhe
permite, portanto, comprometer recursos para se internacionalizar147
. Este modelo teórico não
está livre de críticas, uma vez que nem sempre a internacionalização é fruto de uma sequência
de medidas que culminam na transferência de fatores de produção ao exterior.
Apesar desta possível crítica, o fato é que a maioria das empresas exportadoras faz
investimentos diretos em subsidiárias no exterior como estratégia destinada a apoiar as
exportações comerciais que elas já vinham fazendo anteriormente através dos seus países de
origem. Seria esta uma condição, conforme demonstramos no modelo de Dunning, para que
se tivesse melhor acesso aos mercados externos.
Ademais, deve-se considerar também que, diante da existência de mercados que não
estão plenamente liberalizados (e.g. o mercado brasileiro nos anos que precederam ao
Governo Collor) ou de produtos ou setores específicos aos quais são impostas barreiras
comerciais e/ou tarifárias protecionistas voltadas a encarecer ou a impedir a sua importação
(e.g. suco de laranja brasileiro no mercado norte-americano), a internacionalização produtiva
torna-se uma condição para a inserção do produto nacional no mercado destinatário em
condições de isonomia de competição.
147
De acordo com Alem e Cavalcanti, há duas linhas teóricas principais relativas aos modelos
comportamentalistas. A primeira delas é o modelo dinâmico de aprendizagem ou Uppsala model e defende que a
empresa se compromete com mercados externos de forma gradual e na medida em que adquire experiência e
conhecimento dos mercados-alvo. A empresa começa internacionalizando as suas atividades para mercados
relativamente próximos em termos de distância cultural, de desenvolvimento industrial, de práticas negociais,
linguísticas, entre outras. Após a conquista desses mercados mais próximos, a empresa começa a se aventurar em
mercados mais distantes, porém, sempre de forma gradual e obedecendo-se estágios evolutivos. O modelo
Uppsala foi refinado posteriormente de modo que ele passou a defender que as empresas optam por se
internacionalizar a partir da ponderação de variáveis que representam oportunidades e ameaças do negócio bem
como os riscos do país de destino (políticos, econômicos, sociais, etc). A segunda linha é o modelo de estágios
ou innovation-related internationalization model. De acordo com este modelo, cada estágio de
internacionalização é alcançado através de inovações desenvolvidas da empresa (e.g. o aperfeiçoamento de
técnicas e processos produtivos) que representam vantagens competitivas e que são, portanto, determinantes no
processo de internacionalização. Confira maiores detalhes em: ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos
Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do
BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 47-48.
119
Iglesias e Veiga realizaram um estudo empírico com uma amostra composta por
empresas de diferentes tamanhos e pertencentes a segmentos diversos da economia e
comprovaram que as empresas de capital nacional que mais investem no exterior são
empresas de grande porte, com histórico antigo de exportações comerciais, com elevado
percentual do seu faturamento oriundo de receitas de exportação, de capital aberto nas bolsas
de valores e cujo controle não está em poder de famílias (salvo se a família for de origem
estrangeira)148
. Este estudo comprova que, ao menos do ponto de vista da realidade
empresarial brasileira, as empresas que mais exportam são aquelas que mais têm propensão a
investir no exterior o que pode, muito provavelmente, indicar que a internacionalização
produtiva é uma estratégia de apoio às exportações brasileiras nos mercados externos. O
cenário brasileiro será tratado no tópico adiante em maiores detalhes. O importante é destacar
que a internacionalização produtiva pode ser utilizada como estratégia complementar – e não
excludente – à internacionalização comercial.
Considerando os modelos teóricos propostos acima, as empresas que se
internacionalizam em virtude da busca por novos mercados – the market-seeking motive –
tendem a esgotar primeiramente o potencial de consumo do mercado local para, apenas após o
seu esgotamento, partir para empreendimentos no exterior. Dessa forma, somente as empresas
que já desenvolveram vantagens competitivas significativas sobre as demais empresas nos
seus mercados locais serão capazes de se arriscarem em mercados externos através da
realização de investimentos diretos. Isso ocorre porque as empresas têm incertezas quanto aos
retornos que elas poderão ter em mercados internacionais já que os riscos de se aventurar em
mercados pouco conhecidos são significativamente elevados, ainda mais se considerarmos
que elas terão um custo a mais de entrada decorrente de serem novas no mercado externo
devendo, portanto, investir elevadas quantias na promoção da marca e na conquista da
clientela local. Neste cenário, a criação de vantagens competitivas pode ser um fator de
minimização dos riscos ou mesmo de maximização da expectativa da rentabilidade futura
esperada de se investir no exterior.
Por outro lado, para as empresas que deslocam parte dos seus fatores de produção para
o exterior devido à necessidade de acesso aos insumos necessários à sua atividade a custos
mais reduzidos – the resource-seeking motive –, a internacionalização produtiva será
148 IGLESIAS, Roberto e VEIGA, Pedro da Motta. Investimento das firmas brasileiras no exterior: algumas
hipóteses e resultados de uma pesquisa entre exportadores. In: HAMAIS, Carlos A. (org.). O desafio dos
mercados externos: teoria e prática na internacionalização da firma. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, v. II, p. 212-
227.
120
determinante para a continuidade da sua atividade em padrões competitivos tanto no mercado
interno quanto no mercado externo caso as suas concorrentes já tenham acesso a esses
insumos oferecidos a custos inferiores. Há casos, como das empresas que exploram
commodities, em que a exploração das matérias-primas vegetais e minerais depende da
propriedade de fatores de produção nos locais (países) onde elas se encontram.
A desvantagem de ser o “recém-chegado” é apenas uma das desvantagens de se operar
em mercados externos. Cyrino e Penido apontam para outros custos e riscos da
internacionalização produtiva, tais como: (i) os custos crescentes de coordenação e
governança de uma estrutura transnacional com atividade produtiva conduzida por muitos
empregados situados em diferentes pontos do globo; (ii) a desvantagem de ser uma empresa
estrangeira sujeita a todas as diferenças culturais, linguísticas, de práticas negociais e tendo
que se adaptar a uma clientela, até então, pouco conhecida; e (iii) riscos políticos e
econômicos nos mercados externos (e.g. instabilidade econômica, inflação elevada, governos
autoritários, etc)149
.
Além dos benefícios que advém das próprias motivações que levam à
internacionalização produtiva – conforme anteriormente exposto quando da análise da
abordagem eclética de Dunning – devemos chamar atenção para o fato de que operar em
mercados externos fortalece, sobretudo, a posição competitiva da empresa no seu mercado
nacional. A internacionalização traz, portanto, ganhos de competitividade na medida em que
leva as empresas nacionais a “aprenderem a competir no mesmo nível das empresas mais
eficientes do mundo”150
.
Empresas que não se internacionalizam e que mantém a sua participação restrita a
poucos mercados se tornam mais vulneráveis a concorrentes maiores e mais
internacionalizados na medida em que todo o seu faturamento está concentrado e depende da
sua presença em poucos mercados. Logo, se a empresa sofrer forte concorrência em um
desses poucos mercados em que atua, ficará mais vulnerável e, no limite, terá que sair daquele
mercado específico ou poderá, ainda, ser adquirida e incorporada pelas suas concorrentes.
149
CYRINO, Álvaro Bruno e PENIDO, Erika. Benefícios, riscos e resultados do processo de internacionalização
das empresas brasileiras. In: ALMEIDA, André (org,). Internacionalização de empresas brasileiras:
perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 101. 150
ALMEIDA, André L. Santos de. A relevância do investimento brasileiro direto no exterior para as empresas e
para a sociedade. In: ALMEIDA, André (org,). Internacionalização de empresas brasileiras: perspectivas e
riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 295.
121
Barreto e Ricupero apontam que, antes mesmo de ser a busca por acesso a mercados
externos, a motivação que leva as empresas a se internacionalizarem é a própria proteção da
sua posição competitiva nos mercados internos, evitando-se, com isso, que elas sejam
excluídas do mercado ou adquiridas por outras empresas. Veja-se o trecho reproduzido abaixo
em que este ponto é ressaltado pelos autores:
É interessante que se tenha sublinhado no texto, como primeiro objetivo, antes de
partir à conquista de mercados de fora, a manutenção do mercado interno, o que é
inteiramente correto e confirma o que anteriormente ficou dito, isto é, em setores
mais competitivos, portanto, mais contestáveis, a escolha foi reduzida a comprar ou
ser comprado. Para enfrentar esse desafio, as empresas brasileiras passaram a buscar
alianças com outras firmas, inclusive estrangeiras, além de instalar unidades no
exterior na forma de escritórios de vendas, assistência técnica, representações
comerciais ou plantas produtivas.151
É importante ressaltar que se a empresa possui subsidiárias nos países das suas
concorrentes ela dissuadirá movimentos mais agressivos nos mercados mais importantes em
que atua e garantirá a sua presença nos mercados consumidores mais importantes antes que as
suas concorrentes criem barreiras à sua entrada152
.
Deve-se chamar atenção também para o potencial benefício de aprendizagem que a
internacionalização produtiva das empresas traz. Ao se expor a mercados externos, a empresa
é exposta a desafios com os quais não estava acostumada a lidar em seu país de origem, tais
como padrões técnicos de qualidade mais elevados, que lhe impõem o grande desafio de se
adaptar rapidamente às condições impostas pelos novos mercados em que passou a atuar.
Além de acumular novos conhecimentos necessários à sua sobrevivência e sucesso em novos
mercados, a empresa também aperfeiçoa as competências já existentes na medida em que ela
testa algumas habilidades previamente adquiridas e as aperfeiçoa, caso isso seja necessário153
.
Isso acontece, principalmente, no quesito competitividade.
Por fim, há diversas estratégias que são utilizadas pelas empresas para a sua inserção
produtiva em novos mercados. Dentre elas, há duas que merecem especial atenção.
151
BARRETO, Fernando Mello e RICUPERO, Rubens. A importância do investimento direto estrangeiro do
Brasil no exterior para o desenvolvimento socioeconômico do país. In: ALMEIDA, André (org,).
Internacionalização de empresas brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 24. 152
Cf. CYRINO, Álvaro Bruno e PENIDO, Erika. Benefícios, riscos e resultados do processo de
internacionalização das empresas brasileiras. In: ALMEIDA, André (org,). Internacionalização de empresas
brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 85-87. 153
Ibid., p. 95-100.
122
A primeira estratégia consiste na realização de investimentos diretos no exterior
através da aquisição de empresas ou unidades industriais já existentes no mercado-alvo
seguida da sua incorporação. Neste caso, a empresa investidora já dispõe de todo o fundo de
comércio da empresa adquirida o qual inclui os seus bens tangíveis – tais como a estrutura
industrial, terrenos, máquinas, galpões – e intangíveis – tais como marcas, patentes, desenhos
industriais, etc.
A segunda estratégia consiste na realização de greenfield investments que são
investimentos feitos para a constituição de subsidiárias em novos mercados “partindo-se do
zero”, ou seja, os investimentos contemplam, por exemplo, desde a criação de uma planta
industrial ou uma rede de distribuição até a promoção do nome da marca para conquistar a
clientela local.
No primeiro caso, o “custo de inserção” no novo mercado é mais baixo já que a
empresa ou o estabelecimento empresarial adquirido já contempla, em um primeiro momento,
um conjunto de bens tangíveis organizados para a produção ou distribuição de mercadorias –
ou para a prestação de serviços a depender do ramo da empresa que se internacionaliza – bem
como um conjunto de bens intangíveis que garantem acesso a uma parte da clientela local. No
caso dos investimentos do tipo greenfield, em um primeiro momento, não há nenhum
estabelecimento comercial organizado, tampouco o acesso à clientela local. A subsidiária
criada deverá incorrer em custos para a promoção da sua marca no mercado local até que seja
conquistada parcela significativa da clientela local. Muitas vezes, investimentos são feitos por
um longo período antes que o negócio possa ser lucrativo e autossuficiente. Vale ressaltar que
a nossa opção por analisar apenas duas das estratégias possíveis não exclui outras, tais como a
realização de parcerias e joint ventures com empresas pertencentes a mercados externos.
3.3. Internacionalização produtiva e desenvolvimento nacional
Apesar das inúmeras vantagens demonstradas no item anterior relativas à
internacionalização produtiva, há algumas críticas que lhe são geralmente formuladas pelos
seus opositores. Tais críticas são dirigidas aos efeitos causados pela internacionalização do
ponto de vista do Estado e da sociedade, e não do ponto de vista da empresa em si. Por esta
123
razão, as críticas que serão enumeradas neste item não negam em momento algum que, de
fato, existem importantes benefícios da internacionalização produtiva para o setor privado.
Através da formulação das críticas que serão expostas aqui, buscamos saber se seria
desejável para um país formular políticas públicas de promoção da internacionalização
produtiva das suas empresas de capital nacional. A pergunta central que norteia esta discussão
é: Em que medida a internacionalização produtiva é capaz de trazer benefícios em termos de
desenvolvimento para o Estado? É importante tê-la em mente ao se analisar as críticas que
serão apresentadas a seguir. Este tópico se destina a enumerar as referidas críticas e a explicar
os fundamentos que lhe dão embasamento ponderando argumentos tanto dos críticos à
internacionalização quanto daqueles que contestam as críticas apresentadas.
A literatura especializada aponta para quatro grandes críticas que são feitas aos efeitos
supostamente negativos causados pela internacionalização produtiva das empresas.
A primeira crítica diz respeito à possibilidade de “exportação” de empregos. Segundo
esta crítica, quando uma empresa de capital nacional se internacionaliza ela deixa de gerar
empregos no seu país de origem e passa a contratar mão de obra nos mercados externos.
Assim, os críticos argumentam que um país que carece de oferta de empregos para a
totalidade da sua população economicamente ativa, não deveria estimular a
internacionalização produtiva das suas empresas, pois, caso o fizesse, estaria estimulando a
criação de novos cargos de emprego no exterior a despeito das necessidades internas do seu
país de origem.
A segunda crítica refere-se ao prejuízo que se tem no balanço de pagamentos do país
de origem dos investimentos. O prejuízo ocorreria na medida em que o investimento no
exterior envolveria a saída de dividas do Brasil (país de origem). Além disso, haveria prejuízo
à balança comercial, pois, segundo alguns críticos, o investimento direto no exterior em
subsidiárias implicaria a redução das suas exportações o que, consequentemente, poderia
reduzir o superávit da sua balança comercial ou até torná-la deficitária.
A terceira crítica está muito relacionada à crítica apontada acima. Trata-se da
possibilidade de redução dos investimentos nacionais caso sejam feitos investimentos no
exterior.
A quarta crítica, por fim, diz respeito ao deslocamento para o exterior de grande
parcela dos fatos geradores – materialidades passíveis de incidência da norma tributária – que
poderiam estar sujeitos aos tributos nacionais incidentes, por exemplo, sobre a renda (e.g.
124
IRPJ e CSLL), faturamento (e.g. PIS e COFINS) e o consumo (e.g. IPI, ICMS e ISS),
levando, com isso, à redução da arrecadação tributária do país exportador de capitais.
Sob este ponto de vista, pode-se adotar a hipótese plausível de que o regime brasileiro
de tributação de lucros auferidos no exterior foi uma reação ao fenômeno da globalização,
sobretudo, da internacionalização produtiva das empresas. Em outras palavras, a aplicação
extraterritorial da legislação tributária brasileira surgiu como uma forma de garantir a
incidência da norma tributária brasileira sobre fatos ocorridos em outras jurisdições fiscais e,
assim, proteger a arrecadação tributária nacional em vista, principalmente, dos efeitos
ensejados pela globalização (transformação do Estado-nação em Estado-transnacional).
Embora esta lógica vise assegurar a maior eficácia possível à legislação tributária de
um determinado país – finalidade que se torna necessária diante da elevada volatilização da
base cálculo no contexto do Estado-transnacional – este objetivo deve ser devidamente
ponderado com os efeitos causados pela norma tributária no plano prático, de modo que não é
válido ao Estado garantir a sua arrecadação tributária a despeito de quais sejam os efeitos da
norma tributária para os seus contribuintes.
Por outro lado, há autores que questionam até que ponto os argumentos levantados
pelos críticos da internacionalização produtiva procedem. Alem e Cavalcanti sustentam que as
críticas levantadas correspondem a uma análise estática do processo uma vez que, em termos
dinâmicos, a internacionalização produtiva é fundamental para a sobrevivência das empresas
de capital nacional, aumenta a competitividade dos seus países de origem, bem como reduz a
vulnerabilidade externa das empresas transnacionais brasileiras154
.
Os autores questionam, ainda, a primeira crítica apresentada anteriormente ao
defenderem que “a internacionalização pode levar a um crescimento no número de empregos
na economia de origem, o que certamente deixaria de acontecer caso uma empresa não
internacionalizada e enfraquecida pela concorrência internacional viesse a fechar as suas
portas”155
. Eles alegam, ainda, que “é importante rever o enfoque simplista que coloca o trade
off entre o mercado interno e o mercado externo”156
, tendo-se em vista a necessidade de as
empresas se tornarem mais competitivas em nível internacional após a abertura da economia
brasileira no começo da década de 1990, como estratégia de sobrevivência.
154
ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das
empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 55. 155
Ibid., p. 55. 156
Ibid., p. 55.
125
A ideia de que a internacionalização produtiva reduz as exportações feitas pelo país,
afetando, consequentemente, a sua balança comercial, é questionada também. Com efeito,
sustenta-se que, no médio e longo prazo, as exportações feitas pela matriz brasileira à sua
subsidiária estrangeira (comércio intercompany) aumentam significativamente uma vez que a
subsidiária estabelecida no exterior serve como canal de acesso ao mercado local que se
deseja explorar157
. Seguindo-se este raciocínio, se a internacionalização leva ao incremento
das exportações, logo há incremento também das atividades produtivas no Brasil, o que, por
sua vez, compensaria a eventual redução da arrecadação tributária advinda da escolha por
alocar fatores produtivos no exterior.
Os dividendos distribuídos no exterior, após superada a fase de reinvestimento,
também são positivos na medida em que representam a repatriação de divisas que podem ser
reinvestidas na pessoa jurídica controladora ou coligada. Nada impede, a nosso ver, que o
Governo do país de origem dos investimentos regule prazos máximos para que a empresa
repatrie lucros, na forma de dividendos distribuídos, tendo-se em vista o risco da postergação
indefinida no tempo da sua disponibilização, contanto que não o faça de modo a prejudicar
situações em que os lucros seriam reinvestidos, já que, nessas circunstâncias, eles serão
fundamentais para o desenvolvimento e a consolidação da unidade produtiva no exterior.
Procuramos expor, no presente tópico, que a conveniência do estímulo governamental
à internacionalização produtiva é demarcada por uma discussão ideológica, no campo
econômico, entre defensores e opositores de uma economia mais internacionalizada (aberta)
ou fechada, de modo que ela não pode ser tida, de modo absoluto, como sempre contrária ou
sempre favorável ao desenvolvimento nacional.
Não cabe a nós, juristas, nos posicionarmos quanto ao tema. No entanto, para os
propósitos do presente trabalho, podemos concluir que a internacionalização produtiva poderá
ser favorável ao desenvolvimento nacional quando submetida a determinadas condições e
critérios que visem assegurar que dela decorrerão efeitos positivos como, por exemplo, a
promoção das exportações, o aumento do número de empregos e da arrecadação tributária. É
157
Para ilustrar esta hipótese, Alem e Cavalcanti expõem que, nos EUA entre os anos de 1966 e 1987, as
multinacionais mantiveram o seu padrão de exportação no mercado mundial, ao passo em que a participação das
exportações totais do país no mundo caiu um terço. O mesmo ocorreu com a Suécia entre os anos de 1965 e
1990. Além disso, os autores destacam que uma série de países em desenvolvimento conseguiu melhorar sua
performance exportadora em função das atividades orientadas para a exportação das multinacionais nacionais e
das firmas locais ligadas a elas. Confira-se, neste sentido: ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos
Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do
BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 58-59.
126
certo que cabe ao Governo Federal estabelecer critérios para a discriminação das hipóteses em
que a internacionalização produtiva será um objetivo a ser buscado pelo Estado. Voltaremos a
tratar do presente tema no capítulo 4 ao confrontarmos os efeitos do regime com a Ordem
Econômica Constitucional.
3.4. O diagnóstico da internacionalização produtiva no Brasil
As empresas brasileiras de capital nacional estão em um processo crescente de
internacionalização produtiva. Atualmente, o Brasil não é apenas um destinatário de elevados
fluxos de investimentos diretos do exterior como também vem efetuando, sobretudo na última
década, crescentes investimentos diretos no exterior.
Hiratuka e Sarti sustentam que, até o ano de 2004, houve uma elevada assimetria entre
os fluxos de investimentos diretos recebidos do exterior pelo Brasil e de investimentos diretos
realizados no exterior pelo país, já que, até o referido ano, os investimentos recebidos eram
muito superiores aos investimentos realizados158
. A partir de 2004, o Brasil passou a aumentar
significativamente os fluxos de investimentos destinados a mercados externos. No ano de
2006, pela primeira vez na sua história, os fluxos de saída de capitais, na forma de
investimentos diretos realizados no exterior, superaram os fluxos de entrada. Veja-se, neste
sentido, a tabela 1 e o gráfico 1 anexos ao presente trabalho (Anexo A).
A conclusão dos referidos autores pode ser comprovada a partir da análise da tabela 1
na qual se observa que, do total de investimentos diretos realizados – outflow FDI – no
mundo, o Brasil passou de 0,2% no decênio 1990-2000 para 0,9% no quinquênio 2004-2008
fato que representa um crescimento considerável da sua participação no total acumulado de
investimentos. Por outro lado, a participação brasileira no fluxo de investimentos diretos
recebidos do exterior – inflow FDI – passou de 2,4% para 1,9% no mesmo período analisado.
Neste sentido, a relação outflow/inflow FDI permite concluir que, no quinquênio 2004-2008,
para cada US$ 2,00 recebidos, o Brasil investia, em média, US$ 1,00 no exterior. Tais dados
permitem concluir que, de fato, foram reduzidas as assimetrias brasileiras entre inflow e
outflow FDI, mas que o Brasil ainda é um país que importa mais capitais do que exporta.
158
HIRATUKA, Célio e SARTI, Fernando. Investimento direto e internacionalização de empresas brasileiras
no período recente. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasília, 2011, p. 21-24.
127
De fato, o aumento dos investimentos brasileiros no exterior está inserido em um
cenário mais amplo de crescimento da participação dos países em desenvolvimento no total de
investimentos realizados no mundo. A tabela 1 comprova que a participação dos países em
desenvolvimento no total de investimentos realizados no mundo (outflow FDI) saltou de
10,8% no decênio 1990-2000 para 14,4% no quinquênio 2004-2008.
Observando a evolução dos investimentos feitos pelo Brasil no exterior, pode-se
constatar que os investimentos diretos realizados pelas empresas brasileiras no exterior
passaram por fases distintas. De acordo com Barreto e Ricupero, a primeira delas ocorreu no
período compreendido entre 1960 e 1982, momento em que o processo de internacionalização
produtiva estava concentrado fundamentalmente na Petrobrás, em instituições financeiras e
em empresas de engenharia. A segunda fase ocorreu entre 1983 e 1992 no qual empresas de
diferentes portes passaram a investir prioritariamente no Mercosul, aproveitando-se dos
benefícios trazidos pelo Tratado de Assunção.
Durante toda a década de 1990, os investimentos realizados no exterior continuaram
crescendo, porém com grande concentração no Mercosul. Começaram a se destacar algumas
empresas de bens manufaturados, siderurgia, material de transporte e bens intermediários. É
importante ressaltar que, durante o Governo Collor, houve a abertura comercial brasileira
motivada, entre outras razões, pela percepção de que as empresas de capital nacional estavam
muito acomodadas na medida em que não estavam acostumadas a enfrentar a forte
concorrência internacional.
Com a abertura comercial, as pressões competitivas impuseram a necessidade de uma
resposta não só das empresas, mas também dos atores institucionais dos países em
desenvolvimento159
. O desafio era agregar maior eficiência à produção das empresas
nacionais e elevar o seu padrão tecnológico. Diante deste cenário, a internacionalização –
comercial e produtiva – passou a ser vista como uma estratégia para que as grandes empresas
nacionais “passassem a explorar as suas competências centrais com a sinergia entre atividades
nacionais e no exterior e, ao mesmo tempo, permitisse que as economias nacionais
fortalecessem seus setores mais competitivos” 160
.
159
Cf. SILVA, Maria Lussieu da. A inserção internacional das grandes empresas nacionais. In: LAPLANE,
Mariano, COUTINHO Luciano e HIRATUKA, Célio (org.). Internacionalização e desenvolvimento da indústria
no Brasil. São Paulo: Unesp; Campinas, São Paulo: Instituto de economia da UNICAMP, 2003, p. 112. 160
SILVA, Maria Lussieu da. A inserção internacional das grandes empresas nacionais. In: LAPLANE,
Mariano, COUTINHO Luciano e HIRATUKA, Célio (org.). Internacionalização e desenvolvimento da indústria
no Brasil. São Paulo: Unesp; Campinas, São Paulo: Instituto de economia da UNICAMP, 2003, p. 112.
128
Devido às pressões concorrenciais advindas da abertura da economia no início da
década de 1990, muitas empresas buscaram se organizar em nichos de mercado nos quais a
sua competitividade era significativamente maior face às concorrentes internacionais. Dentre
eles, um dos nichos que mais se destacou foi o das commodities minerais e agrícolas, setor no
qual o Brasil efetuou importantes investimentos até então e desenvolveu, portanto, vantagens
comparativas. Durante os anos 2000, os investimentos realizados por empresas de capital
nacional no exterior aumentaram exponencialmente, porém de forma concentrada em alguns
setores específicos, tais como o setor de commodities. Apesar dos investimentos brasileiros no
exterior terem aumentado ao longo de toda a década de 1990 e no começo dos anos 2000, foi
apenas após o ano de 2004 que eles passaram a ganhar maior expressão161
.
Conforme visto, com a liberalização do mercado nacional no início da década de 1990,
as empresas nacionais foram obrigadas a se internacionalizarem como estratégia de aumento
de eficiência, ganhos de escala e competitividade para enfrentar as grandes empresas
competidoras internacionais que vieram para o Brasil. Porém, atualmente, as motivações que
levam as empresas a internacionalizar parte dos seus fatores de produção é a busca por novos
mercados (market-seeking motive) e o acesso a insumos produtivos (resource-seeking motive).
Este diagnóstico da realidade brasileira foi feito por Ben Ross Schneider no trecho transcrito
abaixo:
O investimento direto no exterior realizado pelas principais empresas brasileiras
realmente decolou depois de 2004 e chegou até mesmo a exceder investimentos
diretos recebidos no ano de 2006, embora os investimentos tenham sido feitos
através de algumas poucas empresas, notavelmente Vale e Petrobrás. O valor
agregado de investimentos feitos pelo Brasil no exterior aumentou de $ 96 bilhões
161
Em 2004, o grande salto no valor de investimentos realizados no exterior deveu-se à aquisição da cervejaria
belga, Interbrew, pelo grupo cervejeiro nacional Ambev por US$ 4,5 bilhões. No ano, o total de investimentos
agregados realizados no exterior foi de US$ 9,8 bilhões. Em 2005, houve a aquisição da empresa Loma Negra
pela construtora brasileira Camargo Corrêa no valor de US$ 1 bilhão. O total de investimentos diretos feitos no
exterior foi menor do que no ano anterior, totalizando US$ 2,5 bilhões. No ano de 2006, pela primeira vez, o
fluxo de investimentos diretos realizados em mercados externos (outflow FDI) superou o valor dos investimentos
diretos recebidos pelo Brasil (inflow FDI), conforme já foi descrito neste trabalho. Naquele ano, destacam-se as
seguintes operações: a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) adquiriu as empresas canadenses Inco e Canico
por US$ 16,7 bilhões e US$ 678 milhões respectivamente; o Banco Itaú adquiriu as filiais brasileira e chilena do
Banco de Boston pelo valor de US$ 2,2 bilhões e US$ 650 milhões; e a Ambev adquiriu a cervejaria Quilmes
pelo valor de U$S 1,2 bilhões. O total de investimentos agregados realizados no exterior, naquele ano, foi de
US$ 28,2 bilhões. Em 2007, o grupo Gerdau promoveu a aquisição de empresas estrangeiras em valor que
ultrapassou a cifra dos US$ 5,6 bilhões, o grupo JBS promoveu aquisições que supereram o valor de US$ 1,7
bilhões, sem contar em diversos investimentos feitos pela Petrobrás, CVRD, Votorantim e Marfrig. O valor
agregado de investimentos feitos foi de aproximadamente US$ 7 bilhões. Em 2008, houve diversas operações de
menor valor que totalizaram o valor de US$ 20,4 bilhões. Confira maiores detalhes em: HIRATUKA, Célio e
SARTI, Fernando. Investimento direto e internacionalização de empresas brasileiras no período recente.
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasília, 2011, p. 22.
129
em 2001 para $112 bilhões em 2005. (...) Em termos de estratégia para
investimentos internacionais, os investimentos realizados pelo Brasil em
empreendimentos produtivos foi predominantemente orientado pela busca de
mercados ou de recursos [insumos produtivos], ao invés de buscar ganhos de
eficiência, como seria mais comum entre manufaturas (Embraer é, claramente, uma
exceção a este padrão geral). Geralmente na América Latina, comparados com os
seus colegas asiáticos que se utilizaram de recursos tecnológicos e capital humano
para a sua expansão internacional, as empresas transnacionais latinas investiram no
exterior como estratégia destinada a enfrentar o processo de liberalização. E, com
exceção de muitos bilhões de dólares em investimentos novos pela Vale e Petrobrás,
quase todos os investimentos realizados no exterior pelo Brasil foram feitos na
forma de aquisições de empresas.162
(Tradução livre)
A partir da análise do trecho reproduzido acima, observamos que a estratégia de
internacionalização seguida pelas empresas nacionais foi pautada muito mais na aquisição de
empresas no exterior do que na realização de investimentos novos (greenfield investments).
Além disso, o perfil de internacionalização das empresas brasileiras seguiu uma lógica diversa
dos demais países em desenvolvimento pertencentes ao leste asiático; enquanto as
transnacionais orientais se internacionalizaram pautadas em vantagens de propriedade como
tecnologia e capacitação humana, no Brasil, salvo algumas poucas exceções, as vantagens de
propriedade estavam voltadas à exploração de commodities, o que requer, em geral, menos
tecnologia e capacitação humana (salvo exceções como é o caso da exploração de petróleo
pela Petrobrás em águas extremamente profundas).
Por fim, uma última característica que deve ser ressaltada do processo de
internacionalização produtiva brasileiro é a destinação dos investimentos. De acordo com
Hiratuka e Sarti (veja-se o gráfico 2 do Anexo A), o principal destino dos investimentos
realizados no exterior pelas empresas de capital brasileiro é a América Latina (46,2%),
seguida da Europa (20,6%), América do Norte (17,3%), Ásia (10,8%), África (4,7%) e
Oceania (0,4%)163
.
162
SCHNEIDER, Ben Ross. Big business in Brazil – leveraging natural endowments and state support for
international expansion. In: BRAINARD, Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo (editors). Brazil as an economic
superpower? – Understanding Brazil’s changing role in the global economy. Washington: Brookings Institution
Press, 2009, p. 177. No original: “Outward foreign direct investment (FDI) by leading Brazilian firms really took
off after 2004 and even exceeded inward FDI in 2006, though the bulk of the investment has run through a
handful of firms, notably Vale and Petrobrás. The stock of outward FDI from Brazil grew from $96 billion in
2001 to $112 billion in 2005. (…) In terms of strategies for international investment, Brazilian FDI in productive
ventures has been predominantly market seeking or resource seeking, rather than efficiency seeking, as is more
common among manufacturing firms (Embraer is again the clear exception to this general pattern). More
generally for Latin America, compared to their Asian peers, which leveraged technological prowess and social
capital in their foreign expansion, multilatinas have invested abroad in the basis of a superior ability to manage
the process of economic liberalization. And, with the exception of several billion dollars in Greenfield
investments by Vale and Petrobrás, nearly all the remaining Brazilian FDI has come through acquisitions.” 163
HIRATUKA, Célio e SARTI, Fernando. Investimento direto e internacionalização de empresas brasileiras
no período recente. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasília, 2011, p. 32 e 33.
130
No entanto, os autores também advertem que a maior parte dos investimentos
nacionais realizados no exterior é feita por intermédio de paraísos fiscais e regimes fiscais
privilegiados. Este dado fica muito evidente a partir da leitura da tabela 2 do Anexo A na qual
constam as 16 principais jurisdições fiscais destinatárias de investimentos brasileiros no
exterior. Nota-se que, em 2008, os três principais destinos primários de investimentos
realizados no exterior foram Ilhas Cayman (42,7%), Ilhas Virgens Britânicas (9,2%) e Ilhas
Bahamas (7,9%). É surpreendente observar que os três principais destinos de investimentos de
empresas de capital nacional, que respondem por mais de 58% do total de investimentos
realizados, são paraísos fiscais. A tabela demonstra que, do total de investimentos primários
feitos no exterior, apenas 41% não são feitos diretamente em países de tributação regular.
A análise desta tabela deve ser precedida de algumas cautelas. O fato de os
investimentos serem feitos primariamente em paraísos fiscais pode induzir ao erro de se achar
que eles permaneçam lá, quando, na verdade, muitas vezes o seu destino final é um país de
tributação regular. Muitas são as empresas que se utilizam de paraísos fiscais para constituir
sociedades-base e sociedades holding – conforme visto no capítulo 1 deste trabalho – cuja
finalidade é deter participações societárias de empresas localizadas em países de tributação
regular por razões fiscais.
Esta constatação é de grande relevância para o presente trabalho uma vez que ela
aponta para a necessidade de que o Brasil possua normas antielisivas especiais para combater
justamente este tipo de planejamento fiscal que se faz através de paraísos fiscais e regimes
fiscais privilegiados. O grande ponto de discordância atual quanto ao tema não diz respeito ao
reconhecimento da importância de um regime de tributação em bases universais com uma
regra de antidiferimento, mas sim quanto à calibragem do campo de incidência desta última,
conforme defendemos até o presente momento deste trabalho.
131
3.5. A internacionalização é um objetivo buscado pelo Estado?
3.5.1. A internacionalização nas políticas industriais brasileiras
Neste tópico, optamos por analisar brevemente os principais planos industriais e de
estímulo ao crescimento econômico formulados pelo Governo Federal após a abertura
econômica promovida pelo Governo Collor. A opção por este recorte temporal justifica-se
pelo fato de que foi justamente a partir desse período que as empresas brasileiras passaram a
ter maior liberdade e capacidade econômica para internacionalizar a sua atividade produtiva.
Antes disso, no entanto, os exemplos de internacionalização produtiva de empresas brasileiras
eram muito escassos e restritos a mercados específicos (e.g. petróleo e construção civil).
Analisando-se as últimas políticas industriais formulados pelo Governo Federal –
Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP)164
, lançada pelo Governo Lula para o período
de 2008 a 2010, e o Plano Brasil Maior165
, lançado pelo Governo Dilma para o período de
2011 a 2014 – observamos que, em ambas, há um nítido objetivo de se aumentar a
competitividade da indústria nacional, de inseri-la de forma competitiva no mercado global e
de fortalecimento de cadeias produtivas internacionais. No entanto, o objetivo de estimular a
inserção das empresas nacionais no exterior parece estar muito mais alinhado com uma
estratégia de internacionalização comercial, através do estímulo às exportações, do que com
uma estratégia de internacionalização produtiva.
A exposição de motivos da PDP faz menção aos objetivos de fortalecimento do
ambiente competitivo nacional e de elevar os esforços para a criação de inovações. No
entanto, os investimentos parecem estar orientados para a promoção do aumento das
exportações brasileiras. Há, entretanto, o objetivo de se estimular a integração produtiva com
os países da América Latina, Caribe e África, como forma de se alcançar maior integração
entre as regiões tratadas com vistas à consolidação de um mercado regional. Aos olhos do
Governo, este mercado regional seria um espaço de integração e fortalecimento mútuo, no
qual as Cadeias se aproveitariam das distintas competitividades em cada um dos seus
164
Vejam-se detalhes em: <www.mdic.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=2&menu=3253#PDP e
www.pdp.gov.br/paginas/objetivo.aspx?path=Objetivos>. Acesso em: 16/04/2012. 165
Vejam-se detalhes em: <www.brasilmaior.mdic.gov.br/publicacao/index.php?area=12&sitio=1&idioma =2>.
Acesso em 16/04/2012.
132
segmentos, para competir com produtos finais em âmbito mundial e alcançar um padrão de
inserção internacional que permita acesso a melhores mercados e maior valor agregado nas
exportações166
.
Resta claro, portanto, que o tipo de internacionalização pretendida pelo PDP era
comercial, através do incremento às exportações, e não produtiva como regra geral,
admitindo-se, no entanto, a internacionalização produtiva – voltada à criação de cadeias
produtivas – em hipóteses específicas envolvendo determinados países (América do Sul,
Caribe e África). Esta exceção à regra de estímulo da internacionalização comercial sugere
que o Mercosul receba um tratamento especial do ponto de vista do estímulo à
internacionalização produtiva. Este ponto será retomado adiante neste trabalho.
Quanto ao Plano Brasil Maior, ele afirma que é preciso atravessar fronteiras e
enfrentar a competição nos mercados globais; conquistar liderança tecnológica em setores
estratégicos; internacionalizar as empresas brasileiras e, ao mesmo tempo, enraizar aqui as
estrangeiras, para que elas passem a investir cada vez mais em Pesquisa e Desenvolvimento
(P&D) no Brasil167
. Como se vê, o plano estabelece como objetivo a internacionalização das
empresas de capital nacional deixando, no entanto, vago qual modalidade de
internacionalização seria aquela desejada pelo Governo Federal. Ao se buscar uma resposta
nas metas estabelecidas para o plano, observamos que nenhuma delas faz menção à
internacionalização produtiva como sendo uma meta de governo, mas sim ao incremento das
exportações brasileiras.
A meta nº 8 do plano estabelece o objetivo de ampliação da participação do Brasil no
comércio internacional através do estímulo às exportações168
. Ademais, tampouco podemos
afirmar que a internacionalização é um dos objetivos do plano quando analisamos as suas
diretrizes estruturantes169
. Assim, não é possível afirmar que a internacionalização produtiva
seja um objetivo buscado por esta política industrial. Novamente, o Governo Federal parece
ter feito a opção por estimular a internacionalização, tão somente, pela via comercial.
Houve, no entanto, dois grandes planos anteriores ao PDP e Plano Brasil Maior que
possuíam metas mais abrangentes do que estes últimos. Trata-se do Programa Brasil em Ação,
166
Vejam-se detalhes em: <www.mdic.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=2&menu=3253#PDP e
http://www.pdp.gov.br/paginas/objetivo.aspx?path=Objetivos>. Acesso em: 16/04/2012. 167
Vejam-se detalhes em: <www.brasilmaior.mdic.gov.br/oplano/brasilmaior/>. Acesso em 01/12/2011. 168
Vejam-se detalhes em: < www.brasilmaior.mdic.gov.br/publicacao/index.php?area=16&idioma=2&sitio =1>.
Acesso em 16/04/2012. 169
Vejam-se detalhes em: <www.brasilmaior.mdic.gov.br/publicacao/index.php?area=13&idioma=2&sitio =1>.
Acesso em 16/04/2012.
133
lançado em agosto de 1996 e concluído em dezembro de 1999 pelo ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) lançado durante a
“Era Lula” e que também foi incorporado pelo Governo Dilma sob a designação de “PAC 2”.
O objetivo central do Programa Brasil em Ação foi investir em obras específicas de
infraestrutura de transportes, portos, energia, gás natural (construção do gasoduto Brasil-
Bolívia), telecomunicações e em políticas específicas de emprego, agricultura, habitação,
saneamento básico, saúde e educação. A meta era que os investimentos não se limitassem ao
setor produtivo, mas abrangessem igualmente projetos sociais. Observamos que não houve
nenhuma menção ao objetivo de se estimular a internacionalização das empresas nacionais
como meta do programa170
. Sustenta-se que este programa foi o “embrião” do PAC.
O PAC foi um programa de estímulo à economia nacional que tinha como pilar não
apenas o investimento em grandes obras de infraestrutura, visando afastar os gargalos que
limitavam o crescimento econômico, como também fomentar a economia através do estímulo
ao consumo interno e às exportações. O PAC possuía cinco grandes pilares: (i) investimento
em projetos de infraestrutura (inclusive com parcerias público-privadas); (ii) estímulo ao
crédito e ao financiamento; (iii) melhora do ambiente de investimento; (iv) desoneração e
aperfeiçoamento do sistema tributário; e (v) medidas fiscais de longo prazo171
. Não
identificamos, novamente, qualquer menção a uma política de estímulo à internacionalização
produtiva como estratégica para o desenvolvimento econômico e social. O “PAC 2” seguiu
muitas das diretrizes já firmadas no “PAC 1” na medida em que procurou consolidá-las,
ampliando, no entanto, algumas das metas anteriormente concebidas172
.
A literatura econômica, ao tratar do tema da internacionalização produtiva das
empresas de capital nacional nas políticas públicas brasileiras, confirma a conclusão a que
chegamos anteriormente ao afirmar que, não obstante diversos países em desenvolvimento de
perfil econômico semelhante ao Brasil incentivem a internacionalização produtiva das suas
firmas, por vezes, criando agências governamentais especializadas, no Brasil, os casos bem-
sucedidos de internacionalização produtiva das transnacionais de capital nacional são o
170
Confiram-se detalhes em: <www.abrasil.gov.br/anexos/anexos2/bact.htm#top> Acesso em: 31/07/2012. 171
Neste sentido, confira-se: <www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/noticias/pac/070122_
PAC_medidas_institucionais.pdf> Acesso em: 31/07/2012. 172
Confiram-se detalhes em: <www.brasil.gov.br/pac/o-pac/investimentos-em-infraestrutura-para-desenvolvi
mento-economico-e-social> Acesso em: 31/07/2012.
134
resultado da sua própria iniciativa e não o resultado de uma política pública de apoio à criação
de subsidiárias no exterior como estratégia de desenvolvimento nacional173
.
3.5.2. O papel do BNDES no financiamento da internacionalização produtiva
Apesar de o Governo Federal não possuir uma política industrial explícita no sentido
de apoiar a internacionalização produtiva das empresas de capital nacional, o Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não apenas possui previsão estatutária
para apoiar investimentos produtivos de empresas nacionais no exterior, desde que o projeto
se reverta em desenvolvimento nacional, como também já financiou investimentos dessa
natureza.
Alem e Cavalcanti retratam que, até o ano de 2002, os incentivos concedidos pelo
BNDES à internacionalização produtiva eram feitos de forma indireta através de
financiamentos realizados mediante operações de renda variável. Assim, o BNDES adquiria
ações de empresas de capital nacional com capital aberto nas bolsas de valores, mas a decisão
de destinar os recursos a investimentos na constituição, aquisição ou expansão de fatores de
produção em mercados externos ficava a cargo da companhia beneficiária. O destino dos
aportes do BNDES na empresa era orientado somente por uma estratégia de ação previamente
definida pela própria empresa174
.
Posteriormente, com o crescente número de consultas e com o aumento da demanda de
financiamento para a internacionalização produtiva, surgiu a necessidade de o BNDES
desenvolver uma modalidade específica para este tipo de financiamento. Em 2002, o BNDES
houve por bem definir as diretrizes para o financiamento aos investimentos de empresas
brasileiras no exterior. Segundo Alem e Cavalcanti, as diretrizes estabelecidas tinham por
finalidade “orientar a criação de uma linha capaz de estimular a inserção e o fortalecimento de
173
Neste sentido, vejam-se: ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à
internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24,
2005, p. 54; BARRETO, Fernando Mello e RICUPERO, Rubens. A importância do investimento direto
estrangeiro do Brasil no exterior para o desenvolvimento socioeconômico do país. In: ALMEIDA, André (org,).
Internacionalização de empresas brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 28 a 31; e
AMANN, Edmund. Technology, public policy, and the emergence of Brazilian multinationals. In: BRAINARD,
Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo (editors). Brazil as an economic superpower? – Understanding Brazil’s
changing role in the global economy. Washington: Brookings Institution Press, 2009, p. 196. 174
ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das
empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 69.
135
empresas brasileiras no mercado internacional, pelo apoio à implantação de investimentos no
exterior, desde que resultassem em estímulo às exportações brasileiras” 175
.
Neste sentido, o estatuto social do BNDES foi reformulado com a publicação do
Decreto nº. 4.418/2002 da Presidência da República. O referido estatuto social – além de
tratar de diversos tópicos importantes relacionados à estrutura institucional, ao regime jurídico
aplicável, ao objeto social, às formas de financiamento, entre outros – estabelece as operações
que o BNDES tem competência para financiar. Dentre as operações autorizadas para
financiamento do BNDES, o artigo 9º, inciso II, prevê a possibilidade de financiamento da
aquisição de ativos estrangeiros ou de investimentos realizados por empresas de capital
nacional no exterior, podendo o banco, inclusive, captar recursos no mercado externo para
tanto conforme dispõe o inciso VIII do referido artigo176
. Confira, neste sentido, os referidos
dispositivos:
Art. 9º O BNDES poderá também:
II – financiar a aquisição de ativos e investimentos realizados por empresas de
capital nacional no exterior, desde que contribuam para o desenvolvimento
econômico e social do País;
VIII – utilizar recursos captados no mercado externo, desde que contribua para o
desenvolvimento econômico e social do País, para financiar a aquisição de ativos e a
realização de projetos de investimentos no exterior por empresas brasileiras,
subsidiárias de empresas brasileiras e empresas estrangeiras cujo acionista com
maior capital votante seja, direta ou indiretamente, pessoa física ou jurídica
domiciliada no Brasil, bem como adquirir no mercado primário títulos de emissão ou
de responsabilidade das referidas empresas.
Note-se que, em ambos os incisos do artigo 9º, o financiamento está condicionado à
sua contribuição para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Visando assegurar o
cumprimento deste requisito legal, o BNDES constituiu, em 2002, um Grupo de Trabalho
destinado a analisar o tema do financiamento à internacionalização das empresas de capital
nacional. Através de diversas visitas a empresas interessadas no financiamento do banco para
a sua internacionalização produtiva, o grupo concluiu que: (i) mesmo as companhias mais
avançadas em seu processo de expansão no exterior mostraram ter necessidades financeiras,
operacionais ou técnicas para continuar a expandir as suas atividades internacionais; (ii) entre
as modalidades de investimento consideradas importantes para ampliar a presença
175
ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das
empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 69. 176
Ressaltamos que a redação do inciso II do artigo 9º foi dada pelo Decreto nº 6.322/2007 e a do inciso VIII foi
dada pelo Decreto nº 7.635/2011, ambos da Presidência da República. Isso demonstra o quão atual é o
posicionamento do Governo Federal sobre a importância de o BNDES financiar a internacionalização produtiva
de empresas de capital nacional como estratégia voltada ao desenvolvimento social e econômico brasileiro.
136
internacional das empresas, estão a criação de bases no exterior, especialmente para gestão e
estoque, e iniciativas voltadas para o desenvolvimento das vendas locais, assistência técnica e
promoção comercial, a fim de garantir melhor acesso e condições competitivas nos mercados
consumidores; (iii) as demandas formalizadas por apoio à internacionalização têm
características distintas por setores e empresas; e (iv) o objetivo principal das empresas
interessadas é, em última instância, aumentar a participação no mercado internacional, via
expansão das exportações177
.
Para fins de atendimento à condição de “contribuição ao desenvolvimento econômico
e social” o BNDES entende que, se a internacionalização produtiva levar ao aumento das
exportações brasileiras, tal requisito estará atendido, devendo o incremento nas exportações
líquidas da empresa beneficiária do financiamento ser correspondente ao valor total do
empreendimento no prazo máximo de 6 anos178
. A título de exemplo da atuação do BNDES
neste tipo de financiamento, em 2005, foi aprovado o financiamento no valor de US$ 80
milhões para que a Friboi pudesse adquirir 85,3% da empresa argentina Swift Armour S.A.,
sob a condição de aumento das suas exportações brasileiras179
.
3.5.3. Conclusões parciais da internacionalização nas políticas de governo
Através da análise das duas últimas políticas industriais formuladas pelo Governo
Federal e do papel desempenhado pelo BNDES, podemos chegar às seguintes conclusões
parciais quanto ao papel do Estado no estímulo à internacionalização produtiva:
Primeira: Embora a internacionalização produtiva não conste das políticas industriais
do Governo Federal, ela vem sendo estimulada através do BNDES, ainda que em um estágio
pouco desenvolvido. Há, certamente, muito espaço para a ampliação da política de
financiamento da internacionalização produtiva de empresas de capital nacional por parte do
BNDES.
177
As conclusões expostas do Grupo de Trabalho foram expostas por: ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI,
Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista
do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 70-71. Vale lembrar que ambos eram, respectivamente,
economista e engenheiro do BNDES à época da elaboração do referido artigo. 178
Cf. ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das
empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p.71. 179
Ibid., p. 71.
137
Segunda: O Governo Federal não apenas pode como deve estabelecer condições que
assegurem que a internacionalização produtiva traga benefícios para o país em termos de
desenvolvimento social e econômico – como é o caso da exigência de que haja incremento
nas exportações nacionais ou de repatriamento de lucros em determinado período de tempo –
sem os quais não há aprovação da linha de financiamento, conforme o BNDES vem fazendo.
3.6. A pesquisa empírica: os efeitos do regime vistos da perspectiva dos contribuintes
e do fisco
3.6.1. Notas metodológicas
Esta segunda parte deste capítulo se destinará a responder as perguntas relativas ao
segundo problema orientador da presente pesquisa, quais sejam: O regime jurídico brasileiro
de tributação de lucros auferidos no exterior interfere no processo de internacionalização
produtiva das empresas brasileiras? Há impactos do regime na competitividade das empresas
nacionais no mercado internacional? Caso positivo, como os efeitos advindos do regime se
operam na prática? Ainda não trataremos do confronto dos efeitos econômicos advindos do
regime brasileiro com a Ordem Econômica Constitucional pois esta análise será objeto de
tópico específico no capítulo 4.
Nesta parte, buscaremos testar a hipótese de que o regime brasileiro de tributação de
lucros auferidos no exterior não interfere no processo de internacionalização produtiva de
empresas de capital nacional, não obstante o seu desenho amplo. No entanto, partimos
também da hipótese de que o regime possui efeitos econômicos sobre as empresas na
conquista de novos mercados. Assim, esta hipótese será testada e, se restar comprovado que o
regime brasileiro afeta o processo de internacionalização produtiva das empresas de capital
nacional e/ou apresenta quaisquer efeitos econômicos, a tarefa passará a ser a investigação de
como tais efeitos se operam na prática.
A hipótese que se deseja testar parte da constatação feita pela literatura acadêmica
especializada. A literatura econômica aponta que a regra de antidiferimento abrangente do
regime brasileiro pode representar, na prática, uma carga tributária adicional para as empresas
138
que realizam investimentos em países de tributação inferior à brasileira e que não sejam,
necessariamente, um paraíso fiscal ou um regime fiscal privilegiado, fato que levaria a uma
desvantagem concorrencial em relação aos seus concorrentes locais180
. Na literatura tributária
especializada, apesar de haver poucos autores que se dedicaram a analisar os efeitos
econômicos do regime brasileiro, há autores que apontam para o mesmo problema de natureza
concorrencial ainda que não com a devida profundidade181
.
Para responder as questões formuladas acima, optamos por realizar entrevistas com
grandes empresas brasileiras que já tivessem se internacionalizado, através da realização de
investimentos diretos no exterior. Esta é a fonte primária de coleta de dados utilizada para
responder as perguntas ora tratadas. Neste sentido, foram entrevistadas empresas grandes
pertencentes a diferentes setores da atividade econômica; empresas que exploram
commodities agrícolas e minerais, que comercializam bens de consumo e que prestam
serviços de construção.
Vale lembrar que a seleção das empresas não buscou construir um universo amostral
da percepção de todo o empresariado brasileiro. O objetivo pretendido foi, tão somente,
colher relatos que demonstrassem as percepções de representantes de grandes empresas
internacionalizadas para submetê-los a uma análise qualitativa, sem pretender criar um
universo amostral compatível com o cenário empresarial brasileiro. Procuramos entrevistar
profissionais responsáveis por cargos de diretoria das grandes empresas, economistas, bem
como representantes do seu setor jurídico. Alguns consultores tributários – advogados em sua
maioria – foram entrevistados também devido à sua experiência com várias empresas.
Além das entrevistas com empresas, foram feitas entrevistas com autoridades fiscais
de médio e alto escalão na Receita Federal do Brasil sobre as suas percepções referentes aos
efeitos econômicos do regime de tributação de lucros auferidos no exterior. Todas as
entrevistas foram gravadas, feitas preferencialmente de forma presencial e guiadas por um
roteiro, com questões abertas.
Vale a pena lembrar que todos os entrevistados autorizaram o uso da sua entrevista por
meio da sua anuência em formulário de consentimento próprio. No entanto, a grande maioria
180
Entre eles: ALMEIDA, Fabiana, MELLO, Murilo, MUNHOZ, Marienne. Questões tributárias referentes ao
investimento direto de empresas brasileiras no exterior. In: ALMEIDA, André (org,). Internacionalização de
empresas brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 143. 181
Entre eles: CARDOSO, Daniel Gatschnigg. A “CFC legislation” brasileira e os impactos na competitividade
internacional. Repertório de Jurisprudência IOB, n. 3, v. I, 2006, p. 122; e SCHOUERI, Luis Eduardo. Imposto
de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do
direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 7, 2003, p. 307.
139
dos entrevistados não autorizou que fosse feita menção direta ao seu nome ou que a empresa
onde trabalha fosse identificada, razão pela qual lhes foram atribuídos pseudônimos (e.g.
Empresa 1, Autoridade Fiscal 1, etc) 182
.
Adiante, as entrevistas realizadas serão analisadas qualitativamente e, para tanto,
optou-se por dividi-las em dois grandes grupos temáticos: o primeiro refere-se às motivações
que levaram as empresas a internacionalizarem parte da sua atividade produtiva; e o segundo
grupo se dedicará a analisar os efeitos econômicos ensejados pelo regime bem como
apresentar todas as críticas que lhe foram formuladas pelos contribuintes (empresas,
consultores e advogados) e por representantes do fisco. Ao longo da análise, procurar-se-á
ponderar igualmente tanto as percepções do setor privado (contribuintes) quanto do setor
público (fisco).
Devido à extensão dos relatos e da análise dos diferentes argumentos, optamos por
apresentar adiante, de forma objetiva, apenas os resultados e conclusões obtidos. Caso o leitor
queira ter acesso a uma análise mais pormenorizada dos relatos, inclusive com a
demonstração de vários trechos das entrevistas que respaldam as nossas conclusões,
informamos que a análise detalhada dos relatos encontra-se ao fim do presente trabalho
(Apêndice A).
Procuramos investigar como os problemas jurídicos apontados nas entrevistas podem
ser prejudiciais ao setor privado do ponto de vista dos seus efeitos econômicos. Em outras
palavras: De que forma os problemas jurídicos apontados geram custos ao setor privado e
podem afetar o processo de internacionalização produtiva? Adiante, buscaremos identificar
nas entrevistas possíveis respostas para esta questão.
182
O formulário de consentimento utilizado – formulário padrão utilizado pelo Comitê de Ética da Escola de
Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – possui dois campos distintos: um deles destinado à
autorização para o uso da entrevista na pesquisa e o outro destinado a autorizar a menção do nome do
entrevistado, empresa ou repartição fiscal ao qual ele pertence. Caso o entrevistado não manifeste consentimento
em relação a este último ponto, a alternativa é a atribuição de um pseudônimo e a omissão de informações dadas
ao longo da entrevista que possam levar à sua identificação ou à identificação da sua empresa. Trata-se de uma
medida necessária à garantia da confidencialidade das fontes entrevistadas.
140
3.6.2. Resultados da pesquisa
3.6.2.1. Importância e motivações da internacionalização produtiva
Antes de proceder a uma análise dos efeitos econômicos advindos dos problemas
jurídicas, entendemos ser importante demonstrar quais são as motivações que levaram as
empresas entrevistadas a internacionalizar parte dos seus fatores de produção.
As empresas entrevistadas que comercializam bens de consumo tendem a realizar
investimentos produtivos primeiramente em países da América Latina – não restritos ao
Mercosul – em virtude da maior facilidade geográfica, linguística e de práticas e costumes
comerciais. Após a conquista desses mercados, as referidas empresas investem em outros
países do mundo. Além da América Latina, tais investimentos se encontram mais
predominantemente alocados nos mercados da Europa e dos EUA.
A motivação adotada por essas empresas é, fundamentalmente, a busca por novos
mercados consumidores e por um melhor canal de acesso à clientela local (the market-seeking
motive). Os desafios encontrados por essas empresas ao investirem diretamente no exterior
dizem respeito às barreiras que outras empresas já previamente estabelecidas impõem à sua
entrada e, sobretudo, o custo – em termos de tempo e valores – necessário à consolidação da
marca empresarial no mercado-alvo.
A motivação para a internacionalização produtiva das empresas que exploram e
comercializam commodities atende a dois objetivos: o primeiro é a busca por matérias-primas
e o segundo é o acesso a novos mercados consumidores (the market-seeking motive),
geralmente próximos ao local de exploração das commodities.
O terceiro grupo de empresas entrevistadas é composto por empresas que atuam na
prestação de serviços de engenharia. Tal grupo de empresas afirmou que a internacionalização
de parte das suas atividades produtivas deveu-se a uma estratégia de sobrevivência em seu
respectivo mercado e como forma de diminuição da sua dependência em relação à demanda
do mercado interno.
Em relação à percepção de que a internacionalização produtiva é uma estratégia
necessária para garantir a sobrevivência da empresa, a Empresa 5 chegou a defender que “o
negócio é, se você não sair, alguém vem e te pega”.
141
A advogada e consultora tributária Simone Musa Dias183
relatou já ter trabalhado com
empresas que buscaram a internacionalização produtiva devido a problemas de natureza
regulatória no Brasil. Segundo a referida consultora, o problema enfrentado por essas
empresas era que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) não permitia a
aquisição de seus concorrentes no Brasil de modo que a única alternativa que elas possuíam
para a sua expansão era investir em projetos no exterior. Tratava-se de uma operação cuja
motivação central era a busca por novos mercados, a despeito de a questão regulatória ter sido
determinante na decisão de investimento no exterior.
Vale, ainda, ressaltar que algumas empresas entrevistadas admitiram possuir
sociedades holdings no exterior não apenas para fins fiscais, mas, principalmente, para a
centralização das suas operações no exterior.
3.6.2.2. Efeitos econômicos do regime brasileiro de tributação de lucros
auferidos no exterior
3.6.2.2.1. Percepções dos contribuintes
Após a realização de todas as entrevistas junto ao setor privado, chegamos à conclusão
de que o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior gera efeitos
econômicos na conquista de novos mercados, mas não representa um fator de desincentivo
capaz de tornar a internacionalização produtiva custosa demais frente aos seus respectivos
benefícios a ponto de inviabilizá-la. Ou seja, a percepção da maioria dos entrevistados indica
que, se a empresa deseja investir no exterior, ela irá fazê-lo, ainda que o regime brasileiro
implique um ônus tributário maior (adicional) quando comparado ao regime de tributação em
bases universais adotado por outros países. No entanto, todas as entrevistas realizadas com as
empresas apontadas no tópico anterior demonstram, nitidamente, que o regime brasileiro
representa um ônus concorrencial significativo no processo de conquista de mercados
externos.
183
Entrevista realizada com Simone Musa Dias, no escritório onde a entrevistada exerce a sua profissão, no dia
10/11/2011. A entrevistada autorizou a utilização da entrevista para os fins da presente pesquisa e permitiu a
menção ao seu nome.
142
Do ponto de vista econômico, o regime tem repercussões concorrenciais negativas às
empresas de capital nacional que investem diretamente no exterior, pois, na prática, ele
implica a exigência de que o investidor nacional arque com os 34% correspondentes à carga
tributária184
brasileira incidente sobre os lucros, ganhos de capital e rendimentos apurados
pelas pessoas jurídicas não importa onde elas venham a investir, ao final do mesmo ano em
que houver a sua contabilização no balanço da subsidiária.
Neste contexto, se elas investirem em um país de tributação inferior – que possui
tributação correspondente a, por exemplo, 25% – ela terá que pagar, ao final do ano em que
apurado o lucro no exterior, 34% correspondente à tributação brasileira incidente sobre o
lucro real apurado – 25% de IRPJ e 9% de CSLL – sendo admitida a compensação do imposto
pago no exterior (25%) até o limite do valor do imposto devido no Brasil, o que implicará, na
prática, que ela arque com a tributação devida no exterior (25%) com a adição da diferença de
9% (34% - 25%), no nosso exemplo, ao fisco brasileiro.
A partir do exemplo demonstrado acima, fica claro que só há ônus concorrencial
quando uma sociedade residente no Brasil investe em países que possuem carga tributária
incidente sobre a renda das pessoas jurídicas inferior à brasileira.
O problema central é que o mesmo ônus arcado pela subsidiária brasileira não é
suportado pelas suas concorrentes nos mercados externos.
Por um lado, se as suas concorrentes forem subsidiárias de empresas localizadas em
outros países, elas (i) poderão arcar somente com a tributação do seu mercado local (25% no
exemplo acima), caso o seu país de origem tribute em bases territoriais, ou, então, (ii) poderão
contar com o privilégio do diferimento da tributação até o momento em que os lucros forem
disponibilizados para os seus acionistas, na hipótese de o país de origem adotar um regime de
tributação em bases universais com regra de diferimento. Neste último caso, ainda que a
vantagem tributária advinda do diferimento da tributação no país de origem decorra, tão
somente, do critério temporal da sua hipótese de incidência, ela não deixa de ter elevada
relevância do ponto de vista das suas repercussões econômicas na dinâmica concorrencial.
Por outro lado, se o concorrente for uma empresa local, que só esteja obrigada a arcar
com a tributação local (25%), a vantagem tributária será ainda maior, pois, em momento
algum, ele deverá arcar com qualquer tributação adicional.
184
Por “carga tributária” ou por “tributação” deve-se entender o conjunto dos elementos que compõem o critério
quantitativo da hipótese de incidência dos tributos que incidem sobre a renda das pessoas jurídicas (lucro, ganhos
de capital e demais rendimentos recebidos).
143
Como consequência, a tributação adicional arcada pela empresa brasileira poderá ser
refletida nos preços das suas mercadorias ou serviços no exterior, o que levará os seus clientes
a deixar de consumi-los da subsidiária brasileira e a passar a consumi-los das suas
concorrentes. É claro que outros elementos possuem também influência na decisão do
consumidor, tais como o peso da marca e a qualidade do produto a ela associada. No entanto,
conforme demonstramos anteriormente, há elevados custos de se promover o nome de marcas
novas em investimentos do tipo greenfield que vão desde os recursos despendidos até o tempo
necessário para a sua promoção. Caso a tributação adicional não se reflita nos preços, será
refletida na queda da lucratividade do negócio e, com isso, poderá reduzir sensivelmente a
capacidade da subsidiária de reinvestir lucros, além de tornar o negócio menos atrativo e mais
arriscado ao empresário nacional.
O principal efeito econômico negativo causado pelo regime tributário brasileiro, o qual
implica o recolhimento de imposto adicional no país de origem do investimento no final ano
em que forem auferidos resultados no exterior (31 de dezembro) – regime de antidiferimento
por excelência –, é o desestímulo ao investimento ou ao reinvestimento dos resultados da
subsidiária para a sua expansão.
Ademais, nas entrevistas, ficou muito claro, também, que a razão pela qual a empresa
de capital nacional não repatria (disponibiliza jurídica ou economicamente aos seus sócios
brasileiros) os seus lucros tão logo eles sejam auferido e contabilizados é a necessidade de
reinvesti-los em seu próprio negócio buscando, assim, o fortalecimento da sua posição
negocial nos mercados externos.
As empresas entrevistadas chamaram atenção para o fato de que é uma prática comum
os governos locais de países subdesenvolvidos concederem benefícios fiscais para empresas
estrangeiras como forma de compensação pela pouca infraestrutura oferecida. Em relação aos
referidos benefícios fiscais – espécie do gênero ajuda de Estado –, o problema enfrentado
pelas empresas entrevistadas é que, não obstante os governos dos países destinatários dos seus
investimentos aceitem conceder benefícios para a atração de investimentos como um todo
relativos a um determinado setor-alvo, a sistemática do regime brasileiro desconsidera tal fato
e impede que a subsidiária da empresa de capital nacional possa se aproveitar de tais
benefícios. Isto porque o fisco brasileiro exige, na prática, que a empresa residente no Brasil
arque com a diferença entre a carga tributária devida no Brasil e a carga tributária devida no
exterior (compensável com o imposto devido no Brasil), pouco importando se houve a
concessão de uma ajuda de Estado para a atração de tais investimentos.
144
A consequência oriunda da aplicação do regime brasileiro é que ele impede a
homologação automática de ajudas de Estado concedidas por outros governos. Em outras
palavras, o regime brasileiro assegura que, mesmo em situações em que há concessão de
ajudas de Estado no exterior, as subsidiárias de empresas de capital nacional continuem
arcando com a tributação devida no Brasil. Neste sentido, caso o outro Estado não exerça a
sua soberania fiscal de forma plena, o Brasil não apenas exerce a sua parcela de soberania
fiscal como também exerce a parcela de soberania recusada pelo outro Estado. Trata-se do
combate ao tax sparring. No Brasil, a regra é que toda a homologação de ajudas de Estado
concedidas no exterior é expressa e nunca automática185
. Este tema será explorado em
maiores detalhes no próximo tópico.
Em termos econômicos, a opção política de não homologar automaticamente as ajudas
de Estado concedidas por outros países causa uma forte distorção concorrencial às empresas
de capital nacional caso os governos dos países de origem das suas concorrentes: (i)
homologuem-nas automaticamente ou (ii) não homologuem mas aceitem o diferimento da
tributação para o momento em que ocorrer a efetiva disponibilização econômica ou jurídica
dos referidos lucros, ganhos de capital e rendimentos.
No Brasil, a questão mais gravosa não chega nem mesmo a ser a não homologação de
forma automática de ajudas de Estado concedidas por outras jurisdições fiscais, mas sim a
proibição ao diferimento da sua tributação. A maior parte das empresas, em suas entrevistas,
indicou esta questão como uma das mais prejudiciais à sua competitividade.
Outro fator que tem representado um entrave à realização de investimentos no exterior
pelo investidor brasileiro tem sido a insegurança jurídica quanto aos critérios de aplicação das
disposições dos tratados. Conforme será analisado em maiores detalhes no próximo capítulo,
a jurisprudência das cortes administrativas tem oscilado quanto à decisão de enquadramento
do regime brasileiro nos artigos 7º (lucros das empresas), 10 (dividendos) e 21 (outros
rendimentos) da convenção-modelo da OCDE, demonstrando ora que os tratados celebrados
pelo Brasil são incompatíveis com o regime jurídico-tributário brasileiro ora que são
185
Há, no entanto, alguns tratados celebrados pelo Brasil em que há previsão de cláusula de matching credit, tal
como o tratado Brasil-Itália, através da qual os dois países signatários acordam que, ao ser adotado o método do
crédito para evitar a dupla tributação (art. 23 da convenção modelo da OCDE – methods for elimination double
taxation), o imposto que deve ser considerado pago no país da fonte pagadora dos rendimentos para fins de
compensação com o imposto do país de residência do beneficiário dos rendimentos é, necessariamente, 25%.
Assim, esta cláusula permite que o país de fonte deixe de exercer, plenamente, a sua competência tributária sem
que isso legitime o país de residência do beneficiário do rendimento a exercer a sua competência tributária
conjuntamente com a competência renunciada pelo país de fonte. Na prática, isso permite o tax sparring e que o
país da fonte pagadora conceda benefícios fiscais sem que eles sejam neutralizados pelo país de residência do
beneficiário.
145
compatíveis. A incerteza jurídica decorrente do fato de este tema não estar devidamente
pacificado na jurisprudência das cortes administrativas e judiciais gera insegurança ao
investidor brasileiro quanto a confiar na proteção oferecida pelo tratado. Esta insegurança é,
por sua vez, vista como um custo de se investir no exterior.
Outro ponto da legislação brasileira que também merece especial atenção por ter sido
apontado na maior parte das entrevistas é a vedação que consta do artigo 25, §5º da Lei nº
9.249/95 segundo o qual os prejuízos incorridos no exterior não podem ser compensados com
os lucros apurados no Brasil.
A questão dos prejuízos enseja uma desvantagem concorrencial muito relevante uma
vez que leva à majoração do valor do imposto devido no Brasil ao considerar que a base de
cálculo da tributação brasileira incidente sobre a renda da pessoa jurídica – lucro real – é
maior do que ela deveria ser caso os prejuízos incorridos em determinadas jurisdições
pudessem ser livremente compensados com os resultados positivos apurados tanto no exterior
quanto no Brasil. Há, neste sentido, tributação de “resultados fictícios”.
Nas entrevistas, foram relatados casos em que o contribuinte brasileiro possui
investimentos localizados em diversos pontos do globo sendo alguns deles deficitários e
outros lucrativos. Na lógica da consolidação dos resultados apurados pela empresa em bases
universais não haveria nenhum tributo a pagar. Porém, na lógica do regime brasileiro – que
não é de consolidação de resultados – pode ser apurado tributo mesmo em uma situação em
que o resultado global consolidado dos investimentos brasileiros no exterior seja negativo.
As peculiaridades do regime de tributação em bases universais adotado pelo Brasil
levaram algumas das empresas entrevistas a criar sociedades holding em países que admitem
a participation exemption por três motivos centrais.
O primeiro deles é diferir a tributação brasileira para o momento em que houver a
efetiva disponibilização econômica ou jurídica dos lucros, ganhos de capital e rendimentos
auferidos no exterior evitando-se a aplicação do regime brasileiro. Isso é possível através da
escolha de um país com o qual o Brasil tenha celebrado tratado destinado a evitar a dupla
tributação, não obstante haja toda a incerteza dos órgãos julgadores, conforme descrito
anteriormente, quanto à compatibilidade do regime brasileiro com as disposições dos tratados
celebrados pelo Brasil. Há, neste sentido, uma forte crença das empresas entrevistadas de que
as cortes se posicionarão no sentir de reconhecer a sua incompatibilidade. A escolha do país,
além de levar em consideração as disposições dos tratados que, em tese, impediriam a
tributação dos lucros no Brasil de fonte produtora localizada no outro Estado, também está
146
orientada a reduzir, senão evitar por completo, a retenção de Imposto sobre a Renda Retido na
Fonte (IRRF) no ato da distribuição dos dividendos pelo Estado onde se localiza a fonte
produtora186
.
O segundo motivo que leva à criação de sociedades holdings no exterior é a
consolidação de resultados, ou seja, compensar prejuízos incorridos em operações realizadas
em alguns países, nos quais a empresa possua investimentos diretos, com lucros apurados em
outros países.
O terceiro motivo é facilitar as transações realizadas dentro do grupo econômico –
operações denominadas intercompany – tais como empréstimos contratados pela sociedade
holding na posição de mutuante (credora) a outras sociedades que compõem o grupo na
posição de mutuarias (devedoras).
Esta estruturação societária, segundo o relato de algumas empresas, visa tornar mais
eficientes as transações e operações realizadas dentro do grupo econômico, sendo esta uma
prática usual adotada pelo setor privado internacionalmente. Neste contexto, surge o problema
jurídico, que possui repercussões econômicas, do tratamento jurídico dado pelo Governo
brasileiro às controladas e coligadas indiretas, ou seja, as pessoas jurídicas nas quais a pessoa
jurídica residente no Brasil possui investimentos através de uma pessoa jurídica interposta
(geralmente uma sociedade holding).
O problema do tratamento jurídico conferido às controladas indiretas consiste no fato
de que o governo brasileiro vem manifestando o entendimento de que só há direito de
compensação do imposto pago no exterior com o imposto devido no Brasil quando o imposto
devido no exterior tiver sido pago pela controlada ou coligada diretas. Ou seja, a interposição
de uma sociedade holding no exterior leva à perda do direito de compensação do imposto
pago pelas sociedades nas quais ela detém participação societária com o imposto devido no
Brasil. Aos olhos do governo brasileiro, no exemplo demonstrado acima, só haveria direito de
compensação do imposto pago pela sociedade holding no seu país de residência. No entanto,
conforme demonstrado anteriormente, como as empresas geralmente constituem holdings em
países de baixa tributação ou que admitam o participation exemption, o imposto compensado
no Brasil acaba sendo muito baixo senão nulo. Neste sentido, o governo brasileiro não
reconhece o direito de creditamento do imposto pago pelas controladas e coligadas indiretas
da empresa residente no Brasil. O tema das controladas indiretas será tratado, em maiores 186
Podem ser citados como exemplos de países com os quais o Brasil possui tratados que, não apenas asseguram
que a tributação dos lucros seja feita de forma exclusiva pelo Estado onde se localize a sua fonte produtora,
como também prevejam a não incidência de IRRF sobre os dividendos distribuídos, os tratados celebrados pelo
Brasil com a Espanha, Áustria e Holanda.
147
detalhes, no próximo capítulo, ocasião em que analisaremos até que ponto a proteção
oferecida pelos tratados às controladas diretas vem sendo reconhecida, igualmente, às
controladas indiretas pela jurisprudência administrativa e judicial.
Para além das suas repercussões jurídicas, este posicionamento implica repercussões
econômicas que também se refletem na competitividade das empresas de capital nacional em
mercados externos. Para ajudar na visualização de tais efeitos, imagine-se que uma empresa
residente no Brasil constituiu uma sociedade holding na Holanda e que esta sociedade detém a
participação societária de uma empresa no Japão (com tributação de 50% sobre a renda das
pessoas jurídicas), outra na Argentina (25%) e outra nos EUA (35%) 187
. Imagine-se que
todos os resultados positivos dessas empresas sejam consolidados na sociedade holding
holandesa ao final de cada ano-calendário. De acordo com o posicionamento adotado pelo
governo brasileiro, a sociedade residente no Brasil somente poderá compensar o montante do
imposto pago na Holanda ao apurar o imposto brasileiro devido sobre os lucros auferidos pela
sociedade holandesa. Neste caso, se a Holanda adotar o participation exemption, a sociedade
brasileira deverá arcar com a integralidade dos 34% correspondentes à tributação brasileira
juntamente com o valor da tributação arcada no Japão, Argentina e EUA188
.
Considerando que este tipo de estruturação societária é uma prática comum por
empresas residentes em diversos países, conclui-se que o posicionamento do governo
brasileiro possui um grande impacto econômico que pode ser refletido na competitividade das
empresas brasileiras caso os demais governos reconheçam o direito de crédito do imposto
pago por controladas e coligadas indiretas.
3.6.2.2.2. Percepções do Fisco
Em relação às entrevistas feitas junto ao fisco, cabe ressaltar que foram entrevistadas
autoridades fiscais que pertenceram ou pertencem ainda ao médio e alto escalão da RFB. As
autoridades de médio escalão ocupavam a posição de delegados da RFB. As autoridades de
alto escalão entrevistadas foram o ex-secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo
Maciel, e o ex-subsecretário da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinícius Neder.
187
Os percentuais relativos às cargas tributárias dos países são aproximados. 188
No exemplo analisado, a carga tributária efetiva arcada pela empresa brasileira foi, ao final, de 67%, 50,5% e
57,1% respectivamente.
148
Novamente, ressaltamos que o nosso objetivo não foi compor um universo amostral, mas,
sim, captar as percepções de entrevistados estrategicamente selecionados.
De forma geral, as opiniões e as percepções demonstradas pelos entrevistados
divergem sensivelmente. Os funcionários pertencentes ao médio escalão se posicionaram de
forma extremamente favorável ao regime e ressaltaram, a todo tempo, as suas vantagens para
a Fazenda Nacional. Os ex-funcionários de elevado escalão na RFB divergiram em diversos
pontos tratados relativos às vantagens do regime brasileiro, mas, de modo geral, assumiram
uma postura mais crítica em relação a ele, de modo a tratar não apenas das suas vantagens
como também das suas falhas e ineficiências.
Apresentaremos, primeiramente, os posicionamentos dos entrevistados pertencentes ao
médio escalão da RFB, ressaltando as vantagens do regime e, posteriormente, serão
apresentados os relatos dos entrevistados que pertenceram a postos do alto escalão da RFB
com um viés mais crítico.
Em relação aos entrevistados de médio escalão é importante ressaltar, primeiramente,
que, aos olhos dos entrevistados, o regime brasileiro estabelece o primado da neutralidade na
exportação de capitais. Neste sentido, do ponto de vista dos entrevistados, o regime de
tributação em bases universais da pessoa jurídica adotado pelo Brasil teria surgido como uma
reação governamental ao fenômeno mais amplo da globalização – causa central da
transformação do Estado-nação no Estado-transcional – estrategicamente orientada para a
defesa contra a perda de base imponível dos Estados. Um dos problemas identificados nas
entrevistas que se deseja evitar é a dupla não tributação internacional da renda que ocorre
fundamentalmente quando dois Estado deixam de exercer o seu poder de tributar uma
determinada materialidade.
Quando questionados sobre o porquê de o regime brasileiro diferir da prática
internacional, a postura deste grupo de entrevistados foi no sentido de defender que o regime
adotado pelos outros países é facilmente contornável pelo contribuinte e é muito mais difícil
de ser fiscalizado.
No tocante à questão do aproveitamento das ajudas de Estado, os entrevistados se
posicionaram no sentido de defender que o Brasil não deve homologar automaticamente as
ajudas concedidas por outros países. A decisão de homologar deve ser vista como uma
decisão de natureza política e, portanto, deve ser analisada casuisticamente pelo Governo
Federal.
149
Ao serem questionados quanto à possibilidade de o regime brasileiro de tributação em
bases universais gerar efeitos econômicos danosos ao processo de internacionalização
produtiva e à competitividade das empresas de capital nacional no exterior, as autoridades
fiscais ora tratadas negaram, em um primeiro momento, que o regime brasileiro gerasse
qualquer efeito negativo. No entanto, no decorrer das entrevistas, momento em que o tema foi
analisado em maior profundidade, as autoridades entrevistadas reconheceram que o regime
pode apresentar impactos econômicos significativos.
Em relação à temática dos efeitos econômicos provocados pelo regime, Marco Aurélio
Greco, em entrevista concedida189
, demonstrou interessante visão favorável à tese de que o
regime não afetaria, em princípio, nem o processo de internacionalização produtiva nem a
competitividade das empresas brasileiras nos mercados externos. Ele respalda o seu
argumento no fato de que a tributação recai sobre o acréscimo que houve no patrimônio da
pessoa jurídica brasileira quando do reconhecimento dos lucros auferidos no exterior por
sociedades controladas e coligadas. Neste sentido, conforme será demonstrado no próximo
capítulo, o referido autor não entende que a tributação recai sobre os lucros auferidos no
exterior. Esta perspectiva afastaria, em princípio, a tese de que o regime poderia repercutir
negativamente na pessoa jurídica residente no exterior. A única hipótese em que o regime
jurídico brasileiro poderia afetar a competitividade das empresas de capital nacional no
exterior, a seu ver, seria se houvesse um plano de investimentos da controladora ou coligada
nas suas controladas ou coligadas residentes no exterior.
Por “plano de investimentos”, entende-se como sendo o emprego de capital da
controladora ou coligada na sua controlada ou coligada residente no exterior (e.g. através de
aporte de capital na sociedade controlada ou coligada ou através de empréstimos) para
financiar a expansão das suas atividades no exterior ou, simplesmente, para lhe prover maior
fluxo de caixa. O plano pode ser periódico ou não. O importante é que ele envolva o
investimento de capital na sociedade controlada ou coligada no exterior após a sua
constituição. O plano de investimento ficaria caracterizado se, após constituída, a sociedade
residente no exterior não tivesse condições de autofinanciar a sua expansão com o seu próprio
lucro.
189
Entrevista realizada com o Professor Marco Aurélio Greco, na Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas, no dia 01/03/2011. O entrevistado autorizou a utilização da entrevista para os fins da presente
pesquisa e permitiu a menção ao seu nome.
150
A visão apresentada pelo entrevistado, apesar de plausível, não se sustenta, pois, a
nosso ver, desconsidera o fato de que muitas vezes as empresas são obrigadas a repatriar
renda do exterior para poderem adimplir com a tributação incidente no Brasil sobre os lucros
auferidos no exterior, fato que reduz a sua capacidade de reinvestimento, ensejando perda de
capacidade competitiva. A perspectiva adotada por Marco Aurélio Greco parte de uma
separação formal da personalidade jurídica da sociedade controladora ou coligada e da
sociedade controlada ou coligada residente no exterior que leva ao equívoco de se inferir que
as duas sociedades são entidades economicamente autônomas. Adotar essa perspectiva é
plausível para uma análise de repercussões jurídicas (e.g. definição de responsabilidade civil).
No entanto, adotá-la para definir as repercussões econômicas consiste, a nosso ver, em um
erro já que desconsidera o fato de que um grupo societário deve ser visto como um único
grupo econômico. A compreensão mais adequada da dinâmica do sistema financeiro
empresarial deve sempre se respaldar na visão do todo, ao invés da visão segmentada das
partes que o compõe.
Em relação aos entrevistados que pertenceram a cargos de elevado escalão da RFB, a
sua visão, apesar de divergente em diversos pontos, é mais crítica quanto ao regime jurídico
vigente atualmente. A entrevista realizada com Everardo Maciel revela, conforme se
demonstrou no capítulo 2, que o regime assumiu forma abrangente porque a sua criação havia
precedido de uma discussão sobre elisão fiscal internacional considerada essencial para que o
regime possuísse contornos antielisivos de modo a combater somente o planejamento fiscal
internacional considerado abusivo, envolvendo paraísos fiscais e a concessão de regimes
fiscais privilegiados.
Em um primeiro momento da entrevista, o ex-secretário da Receita Federal do Brasil,
que foi o autor da proposta encaminhada à Presidência da República do regime de tributação
de lucros auferidos no exterior, negou que o regime poderia afetar a internacionalização
produtiva ou a competitividade das empresas de capital nacional que operam em mercados
externos. No entanto, ao final da entrevista, ele reconheceu que o regime “pode
eventualmente ter” efeitos concorrenciais negativos e defende que o regime deve ser revisto
diante de um debate mais maduro sobre o tema da elisão fiscal internacional.
O ex-subsecretário da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinícius Neder, assume uma
postura bem mais crítica frente ao regime de tributação em bases universais adotado pelo
Brasil. Segundo ele, o regime brasileiro, por possuir uma regra de antidiferimento aplicável de
forma geral a qualquer tipo de rendimentos auferido em qualquer jurisdição fiscal, prejudica
151
concorrencialmente as subsidiárias das empresas de capital nacional na conquista de novos
mercados.
Fica claro, na exposição dos resultados das entrevistas realizadas com funcionários e
ex-funcionários da RFB, que não há um consenso entre eles quanto às vantagens e
desvantagens do regime de tributação em bases universais adotado pelo ordenamento jurídico
brasileiro. De modo geral, os funcionários entrevistados de escalão médio tenderam a
defender as vantagens decorrentes do regime, em especial, a sua eficiência arrecadatória e os
seus relativos baixos custos de fiscalização e controle talvez até por uma postura mais
corporativista. Por outro lado, os ex-funcionários entrevistados de maior escalão assumiram
uma postura muito mais crítica quanto o regime.
3.7. Conclusões dos efeitos do regime de tributação de lucros auferidos no exterior
na internacionalização produtiva das empresas de capital nacional: o regime
visto em dois contextos distintos
Feita a exposição dos resultados das entrevistas realizadas com o setor privado e
público, o que se busca, neste subtópico, é tecer breves reflexões críticas sobre a mudança dos
contextos históricos, desde a criação do regime até os dias de hoje, e evolução da articulação
dos grupos de interesses envolvidos.
As duas últimas décadas do século XX, de fato, foram caracterizadas pela globalização
que aumentou a mobilidade do capital, aproximou mercados e flexibilizou barreiras
anteriormente existentes ao livre fluxo de capitais fato que levou à redução de custos de
transação de se investir no exterior. O mundo viu a transformação da concepção de Estado-
nação em Estado-transnacional conforme expusemos. O Brasil, que permaneceu boa parte do
século com a sua economia fechada seguindo a política econômica de substituição de
importações, não resistiu às pressões internas e externas e houve por bem abrir a sua
economia na Era Collor, dando-se início a um movimento mais intenso de investimentos
brasileiros diretos realizados no exterior.
Durante toda a evolução do regime brasileiro de tributação em bases universais das
pessoas jurídicas, as empresas de capital nacional não só não possuíam capital suficiente
como também não vislumbravam, naquele momento, o melhor cenário para investir no
152
exterior devido aos elevados riscos inerentes à internacionalização produtiva já demonstrados
neste capítulo. Com o tempo, a economia brasileira foi dando sinais de maior estabilidade e
crescimento de modo a permitir que as empresas nacionais reunissem as condições
necessárias para investir no exterior. Tal fato pode explicar porque houve baixa articulação
política das empresas de capital nacional no passado e porque hoje se observa uma articulação
muito maior.
Hoje este é um tema de grande valor para diversas empresas brasileiras em vista da
emergência de um novo país que reduziu as assimetrias existentes entre os investimentos
diretos recebidos do exterior (inflow FDI) e os investimentos diretos realizados no exterior
(outflow FDI) e que, hoje, possui grandes e médias empresas com parte dos seus fatores de
produção alocados no exterior.
A questão que se impõe hoje é: Até que ponto a legislação brasileira se mostra
adequada a esta nova realidade? Em outras palavras: O desenho do sistema tributário deve
estar orientado tão somente a proteger as bases imponíveis nacionais ou deve, também,
fomentar atividades econômicas de interesse governamental? A transformação do Estado-
nação em Estado-transnacional impôs um desafio que vai muito além da articulação de
políticas tributárias que tenham por finalidade proteger a arrecadação nacional. Neste
contexto, o tema das políticas tributárias passa a se deparar com um grande desafio: proteger
as bases imponíveis nacionais e, ao mesmo tempo, fomentar atividades econômicas que sejam
de interesse do país. A ponderação dos objetivos buscados pelo Estado levará ao desenho que
melhor favorecerá o desenvolvimento nacional.
No entanto, antes que se pense no desenho da política tributária – no presente caso, o
desenho do regime de tributação em bases universais – deve-se assumir uma postura política
muito clara no sentido de se definir, de forma coerente, quais objetivos governamentais
devem ser buscados. Diante deste contexto, questiona-se: A internacionalização produtiva das
suas empresas de capital nacional é um objetivo buscado pelo Estado? A análise das políticas
industriais e do BNDES feita neste capítulo aponta para uma postura pouco clara e coerente
de apoio à internacionalização produtiva. Temas desta importância e repercussão merecem
um posicionamento governamental claro. Não é possível definir o desenho do regime sem
antes definir os objetivos políticos buscados pelo Estado especialmente quando se constata
que o regime brasileiro possui efeitos econômicos negativos na competitividade das empresas
de capital nacional em mercados externos.
153
4. ANÁLISE JURÍDICA CRÍTICA DO REGIME BRASILEIRO DE
TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR
4.1. Notas introdutórias
As questões jurídicas que serão abordadas neste capítulo são, em grande parte, fruto
da evolução da política tributária demonstrada no capítulo 2. Os problemas que foram
identificados na engenharia normativa do regime de tributação de lucros auferidos no exterior
vigente atualmente repercutiram no plano jurídico, ensejando dúvidas quanto à sua adequação
tanto ao direito interno quanto ao direito internacional. Este capítulo fará uma análise de tais
questões que vêm sendo apontadas como problemáticas.
Entretanto, haja vista a demonstração dos efeitos econômicos advindos da aplicação
do referido regime no capítulo anterior, analisaremos a sua validade jurídica não apenas em
relação ao conceito constitucional nuclear de renda, como também frente à Ordem Econômica
Constitucional. O objetivo dessa análise será examinar em que medida os efeitos produzidos
pelo regime sobre a internacionalização produtiva de empresas de capital nacional
determinam a sua inconstitucionalidade por afronta aos princípios e regras constitucionais que
orientam a Ordem Econômica Constitucional. Esta abordagem do plano da validade jurídica
do regime não foi defendida, até o presente momento, pela literatura acadêmica especializada,
mas nós possuímos a forte crença de que este seja o direcionamento que se dará às discussões
futuramente.
4.2. Uma questão preliminar
Antes de prosseguir na análise das principais questões jurídicas ensejadas pelo regime
atual de tributação em bases universais da pessoa jurídica é de fundamental importância que
se faça uma reflexão sobre uma questão preliminar: O regime brasileiro possui a mesma
natureza do regime de transparência fiscal internacional (as CFC rules) adotado no direito
154
comparado? Em outras palavras: O regime de tributação em bases universais adotado pelo
direito brasileiro é o regime de transparência fiscal internacional?
Em relação ao tema, há, fundamentalmente, duas linhas de entendimento. A primeira
defende que o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior – previsto nos
artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95 e no artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 – não
se confunde nem possui a mesma natureza do regime de transparência fiscal internacional
mundialmente adotado. A segunda sustenta que o regime brasileiro corresponde à aplicação
do regime de transparência fiscal no ordenamento jurídico pátrio.
Abaixo serão expostos, de forma sintética, os postulados de cada uma das linhas
doutrinárias.
4.2.1. A primeira linha doutrinária: o regime brasileiro não é de transparência
fiscal internacional
De acordo com esta primeira linha doutrinária, o regime brasileiro de tributação de
lucros auferidos no exterior não “alcança” e tributa os lucros auferidos pela sociedade
controlada residente no exterior, mas sim a variação patrimonial positiva sofrida pela
sociedade controladora residente no Brasil. Esta variação positiva é um reflexo do aumento do
valor patrimonial dos seus investimentos no exterior e ela se opera através da consolidação
contábil dos resultados auferidos no exterior ao final de cada período-base (ano calendário).
Esta corrente postula que o Brasil não teria adotado a teoria da transparência fiscal
internacional no seu ordenamento jurídico; teria, por outro lado, criado uma nova hipótese de
incidência do imposto de renda (e proventos de qualquer natureza) cujo critério quantitativo
seria a variação patrimonial da empresa controladora ou coligada residente no Brasil na exata
medida em que os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos pelas suas controladas e
coligadas no exterior tivessem sido reconhecidos e na proporção da sua participação
societária. Vale lembrar que, conforme expusemos no capítulo 1, o foco do regime de
transparência fiscal internacional recai sobre o valor dos lucros, rendimentos e ganhos de
capital das sociedades controladas no exterior que são alcançados desconsiderando-se a sua
personalidade jurídica para fins exclusivamente tributários (pass-throught entity theory).
155
Um dos principais defensores desta corrente doutrinária no direito brasileiro é Marco
Aurélio Greco que, em entrevista concedida para o presente trabalho, expôs a sua opinião da
seguinte forma:
Primeiro, eu não acho que seja um regime de transparência. Na minha visão, não se
está tributando o lucro da empresa estrangeira. Na minha visão, se está tributando o
aumento do patrimônio da brasileira pelo fato de existir um lucro na empresa
estrangeira. A tributação é sobre o aumento de patrimônio da empresa brasileira. Se
eu fizer uma avaliação do patrimônio da empresa brasileira na véspera do
reconhecimento do lucro na empresa estrangeira, o número será um. Se eu fizer a
avaliação da empresa brasileira no dia seguinte ao reconhecimento do lucro na
empresa estrangeira, o número será diferente. O patrimônio da brasileira será maior
pelo fato de existir esse lucro reconhecido lá. Eu não estou falando da equivalência
patrimonial, não estou falando em técnica de apuração de patrimônio para fins de
balanço. Eu estou falando de realidade de patrimônio, o que vai gerar uma série de
problemas.
A partir da análise do posicionamento exposto acima, Marco Aurélio Greco adverte
que uma das principais decorrências do regime de tributação em bases universais no direito
brasileiro é o reconhecimento de que o imposto não incide sobre a renda da controlada ou
coligada, mas sim sobre proventos da controladora ou coligada residente no Brasil - assim
entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos como renda – o que implica por
enquadrá-lo não no inciso I do artigo 43 do CTN, mas sim no seu inciso II190
. É justamente
porque o regime brasileiro tributa o provento da controladora ou coligada brasileira que ele
não poderia ser considerado como regra de antidiferimento da tributação dos lucros,
rendimentos e ganhos de capital apurados em bases universais191
. Segundo o entrevistado, o
direito ao crédito, concedido pelo Brasil, sobre os lucros auferidos no exterior, seria um
indício de que o legislador está preocupado com a realidade econômica e não jurídica, já que,
economicamente, a seu ver, negar direito ao crédito pode levar à dupla tributação econômica,
embora não exista dupla tributação jurídica.
190
Confira-se, neste sentido, outro trecho de suma importância da entrevista: “O primeiro [problema] é o
enquadramento dele para fins tributários porque, a meu ver, não é no inciso I, mas é no inciso II do artigo 43 que
fala sobre proventos de qualquer natureza. Neste sentido, qualquer aumento patrimonial está sujeito ao imposto
de renda. Ou, então, pode-se argumentar que o artigo 43, inciso II, é inconstitucional, mas este é um debate que
nem sequer foi aberto”. 191
Veja-se, neste sentido, o trecho reproduzido abaixo da referida entrevista: “Entrevistador: É um regime
antidiferimento puro? Entrevistado: Não é regime antidiferimento porque, para ser antidiferimento, você terá que
supor que só seria possível tributar no momento futuro da distribuição. A norma brasileira não é nem
antidiferimento. A norma brasileira capta o aumento patrimonial da brasileira, ponto. O patrimônio da brasileira
cresceu? Sim, na medida em que ele reconheceu o que lá estava. Ele capta algo que já existe no Brasil,
patrimonialmente. Então, a sua terminologia [norma antidiferimento] supõe uma premissa que não é a minha
premissa. Ela não é de transparência fiscal, não é antidiferimento, nada. Ela capta algo que já existe no Brasil”.
156
Sob esta perspectiva, o patrimônio da sociedade controladora residente no Brasil será
dimensionado de acordo com o valor dos lucros (ou prejuízos) auferidos por sociedades
controladas e coligadas no exterior e esse “redimensionamento”, caso positivo, ensejará a
incidência do imposto de renda (e proveitos de qualquer natureza) brasileiro. Novamente,
repita-se: não se trata da tributação dos lucros auferidos por controladas e coligadas no
exterior, mas sim da tributação do acréscimo patrimonial sofrido pela sociedade controladora
ou coligada residente no Brasil, o que não se confunde com a aplicação do regime de
transparência fiscal internacional.
Alberto Pinto Souza Júnior adota entendimento semelhante, porém não idêntico, e
sustenta que a tributação recai sobre a variação positiva do valor do patrimônio líquido do
investimento localizado no exterior contabilizado através do MEP. De acordo com a
legislação comercial, as empresas que possuem participação societária em outras e que
apurem Lucro Real são obrigadas a adotar o método de equivalência patrimonial como técnica
de “espelhamento contábil” do valor dos seus investimentos. Através da adoção do MEP, o
patrimônio líquido da controladora variará na mesma medida em que o patrimônio líquido das
suas controladas, coligadas, filiais e sucursais variar dentro de um determinado período192
.
Segundo o autor, na medida em que os ajustes positivos são feitos na sociedade
investidora em virtude de resultados positivos apurados pela sociedade investida em
observância ao regime de competência193
, eles são computados como receitas tributáveis – i.e.
passíveis de inclusão na apuração do lucro real e na base de cálculo da CSLL – de modo que,
a tributação incide sobre a variação patrimonial positiva da sociedade controladora residente
no Brasil, em virtude dos resultados positivos auferidos no exterior, e não sobre a sociedade
investida residente no exterior através da teoria da transparência fiscal internacional194
.
Seguindo a lógica desta visão, o MEP mitigou a autonomia jurídica existente entre
192
Trataremos do MEP em maiores detalhes adiante em tópico específico. 193
O regime de competência é de observância obrigatória pela pessoa jurídica na sua escrituração contábil,
representando a regra geral que comporta exceções – hipóteses em que o regime de caixa será aplicado – apenas
nas hipóteses expressamente previstas em lei. Segundo o regime de competência, a despesas e receitas são
consideradas incorridas e devem ser escrituradas, independentemente da efetiva saída ou entrada de valores em
seu caixa. Veja-se o teor do artigo 177 da Lei das S.A. em que a obrigação de se escriturar a partir do regime de
competência fica claramente estabelecida: “Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros
permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade
geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações
patrimoniais segundo o regime de competência”. 194
SOUZA JÚNIOR, Alberto Pinto. A disponibilidade de lucros oriundos do exterior. Revista Fórum de Direito
Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 1, nº 2, 2003, p. 56-67.
157
controladora e controlada na medida em que adotou uma visão da entidade como um único
complexo econômico (entidade econômica) e não como duas entidades jurídicas distintas195
.
Em relação a este último ponto – visão da entidade como um único complexo
econômico – André Martins de Andrade defende em sua obra a relativização da separação das
pessoas jurídicas como uma tendência aplicada à tributação empresarial cuja causa central é a
dinâmica cada vez mais complexa da atividade empresarial, caracterizada por grupos
societários que se internacionalizam e que, portanto, estão sujeitos a uma pluralidade de
jurisdições fiscais distintas (fenômeno da multijurisdionalidade)196
. O referido autor está
alinhado com a visão de que as cadeias transnacionais devem ser vistas como uma única
entidade econômica ao invés de uma pluralidade de entidades jurídicas autônomas.
O autor também concorda com a visão de que o regime de tributação em bases
universais adotado pelo direito brasileiro não tributa os lucros auferidos no exterior pela
controlada ou coligada, mas sim o acréscimo patrimonial reflexo sofrido pela sociedade
controladora quando os referidos lucros são consolidados nas suas demonstrações financeiras
e incorporados ao seu patrimônio através da técnica do MEP197
.
O acréscimo patrimonial objeto de incidência tributária é reflexo dos resultados
positivos registrados no exterior, porém são autônomos em relação ao mesmo, o que faz com
que o sócio seja o sujeito passivo (contribuinte) da obrigação tributária. Nestas circunstâncias,
o autor sustenta que “o objeto da tributação não é o lucro efetivamente distribuído, mas o
direito à participação do lucro produzido pela sociedade controlada ou coligada, direito este
de titularidade dos sócios, erigidos à condição de sujeito passivo da obrigação tributária” 198
.
Por fim, Fernando Netto Boiteux também defende que a tributação incide sobre o
acréscimo patrimonial uma vez que as pessoas jurídicas brasileiras devem reconhecer os seus
lucros auferidos dentro das fronteiras nacionais, aos quais são adicionados os lucros
resultados positivos apurados pelas suas controladas e coligas, através da teoria do balanço –
sinônima, segundo o autor, do regime de competência199
- que consiste na comparação do
patrimônio no início e ao final do período-base. Neste sentido, o autor parte do pressuposto de
que “todo e qualquer aumento patrimonial que se reflita no balanço pode ser tributado, sendo
195
SOUZA JÚNIOR, Alberto Pinto. A disponibilidade de lucros oriundos do exterior. Revista Fórum de Direito
Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 1, nº 2, 2003, p. 72. 196
ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da renda empresarial: uma proposta de sistematização
e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 107-112. 197
Ibid., p. 203-215. 198
Ibid., p. 153. 199
BOITEUX, Fernando Netto. As sociedades coligadas, controladoras, controladas e a tributação dos lucros
obtidos no exterior. Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT). São Paulo: Dialética, nº 105, 2004, p. 33.
158
indiferente para tanto a existência de um ato da fonte pagadora que coloque o rendimento à
sua disposição, bastando a sua disponibilidade jurídica ou virtual” 200
.
Embora parecidos, o posicionamento de Marco Aurélio Greco e dos demais têm uma
diferença fundamental; a atribuição de efeitos fiscais ao MEP. Para o primeiro autor, não há
que se falar em atribuição de efeitos fiscais ao MEP, instrumento de mero espelhamento
contábil de situação patrimonial. Para os demais, a tributação da variação patrimonial positiva
é feita justamente através do reconhecimento de efeitos tributários ao ajuste realizado através
da equivalência patrimonial. Para todos os autores, o acréscimo patrimonial sofrido pela
sociedade investidora já se encontra disponível, ao menos, juridicamente.
4.2.2. A segunda linha doutrinária: o regime brasileiro é de transparência fiscal
internacional
A segunda linha doutrinária é composta por juristas que entendem que o regime de
tributação em bases universais, adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, possui a mesma
natureza do regime de transparência fiscal internacional. Neste sentido, o regime incide sobre
os lucros auferidos pela controlada ou coligada residente no exterior, ainda que na pessoa do
sócio residente no Brasil. Esta é a linha majoritária na doutrina especializada.
Um dos principais defensores desta linha doutrinária é Luis Eduardo Schoueri para o
qual “o tema da transparência fiscal, confunde-se, no Brasil, com a própria adoção do padrão
de tributação de lucros auferidos no exterior (world wide taxation)” 201
. O referido autor
defende que o interesse que estava por trás do regime brasileiro, em especial com o advento
do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001, o qual caracterizou a retomada do
objetivo inicialmente pretendido pelos artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95, foi, de fato,
combater práticas de elisão fiscal envolvendo países de baixa tributação através da extinção
do diferimento da tributação brasileira devida em virtude da apuração de lucros no exterior.
200
BOITEUX, Fernando Netto. As sociedades coligadas, controladoras, controladas e a tributação dos lucros
obtidos no exterior. Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT). São Paulo: Dialética, nº 105, 2004, p. 27. 201
SCHOUERI, Luis Eduardo. Transparência fiscal internacional, proporcionalidade e disponibilidade:
considerações acerca do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35. Revista Dialética de Direito Tributário
(RDDT), São Paulo: Editora Dialética, n. 132, 2007, p. 39.
159
De acordo com este posicionamento, os lucros auferidos por sociedades controladas e
coligadas no exterior são imputados automaticamente, ao final de um período-base, à base de
cálculo do imposto sobre a renda das suas sócias. Dessa forma, os lucros são submetidos à
tributação no país de residência da sociedade controladora como se houvessem sido
produzidos internamente, muito embora, frise-se, a sua origem seja estrangeira.
Neste caso, a tributação não recai sobre a variação patrimonial positiva sofrida pela
sociedade investidora durante um determinado período-base, mas sim sobre os lucros
auferidos pelas suas sociedades investidas no exterior. Os lucros são, dessa forma,
“alcançados” e “trazidos” do exterior através do reconhecimento de que a sociedade residente
no exterior é transparente para fins exclusivamente fiscais (pass-throught entity theory),
conforme aponta, com precisão, o referido autor:
Assim, identificando-se a sociedade não residente como uma CFC, mediante a
aplicação de critérios estabelecidos na lei, atribui-se a ela a condição de “sociedade
transparente” com o propósito de submeter à tributação, na pessoa do sócio,
controladora ou coligada, o lucro por ela obtido no exterior.202
O autor identifica grande semelhança entre o regime brasileiro de tributação de lucros
auferidos no exterior e o regime das CFCs do direito americano na medida em que ambos
teriam como objetivo combater práticas de elisão e evasão fiscal internacional, muito embora
ele reconheça que a abrangência do regime brasileiro – que não discrimina nem a origem do
rendimento nem o tipo de rendimento, contrariamente à prática internacional – mostra-se
inadequada e desproporcional para atingir os fins pretendidos203
.
Alberto Xavier compartilha da mesma visão adotada por Luis Eduardo Schoueri de
que a figura do regime de tributação de lucros auferidos no exterior previsto no direito
brasileiro corresponde ao regime de transparência fiscal internacional. Neste sentido, veja-se o
trecho reproduzido abaixo:
A adição direta ao lucro de sociedade brasileira do lucro das controladas e coligadas
no exterior, independentemente de este ter sido distribuído ou não (designada na lei
inglesa sobre as Controlled Foreign Corporations como apportionment of foreign
accumulated income) representa, pois, a concepção das sociedades estrangeiras
como “sociedades fiscalmente transparentes”, cuja personalidade jurídica é
desconsiderada ex lege para efeitos fiscais, de tal modo que os seus lucros se
202
SCHOUERI, Luis Eduardo. Imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de
Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 7, 2003, p. 308. 203
Ibid., p. 308, 329 e 330.
160
consideram automaticamente distribuídos para as sociedades brasileiras, que
passarão a serem tributadas numa arising basis e não numa distribution basis204
.
Como se vê, para o referido tributarista, os lucros auferidos por sociedades controladas
e coligadas residentes no exterior são alcançados pelo regime de transparência que
desconsidera, para fins tributários, a separação patrimonial existente entre elas e a sua
controladora, equiparando a controlada ou coligada a uma entidade despersonalizada.
Marciano Seabra de Godoi concorda não apenas com a tese de que o regime brasileiro
de tributação de lucros auferidos no exterior corresponde ao regime de transparência fiscal
internacional, como também com a crítica relativa à sua abrangência exagerada tendo-se em
vista o fim antielisivo inicialmente pretendido. Para o referido autor, o regime brasileiro teria
sido o resultado da “adoção irrefletida da transparência fiscal internacional no direito
brasileiro”205
.
Sérgio André Rocha G. da Silva se posiciona no mesmo sentido dos autores
mencionados acima ao reconhecer que o regime brasileiro com vistas a atingir a renda
auferida no exterior por empresas controladas ou coligadas de pessoas jurídicas residentes no
Brasil, como se tivessem sido direta e imediatamente auferidas por estas últimas, encontra-se
inserido no âmbito da denominada transparência fiscal internacional206
.
Heleno Taveira Tôrres sustenta que a qualificação de uma “sociedade-transparente”,
exclusivamente para fins fiscais, depende de uma ficção jurídica segundo a qual, para efeitos
tributários, “considera-se que o sujeito interposto efetua uma automática e direta distribuição
de lucros ao sujeito residente na data do balanço no qual os lucros são apurados”207
. Neste
sentido, segundo o posicionamento do autor, o recurso à ficção jurídica atua de forma a
viabilizar a transparência fiscal da sociedade residente no exterior. Esta é uma característica
importante para esta linha de pensamento208
.
204
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 374. 205
GODOI, Marciano Seabra. O imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de
Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 6, 2002, p. 282. 206
SILVA, Sérgio André Rocha G. da. Transparência fiscal no direito tributário brasileiro. Revista Dialética de
Direito Tributário (RDDT), São Paulo: Dialética, n. 99, 2003, p. 113. 207
TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação Internacional sobre as Rendas das Empresas. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001, p. 208. 208
Ressaltamos que há alguns autores que entendem que há duas formas de se alcançar os lucros auferidos por
controladas e coligadas no exterior e tributá-los, ainda que na pessoa da controladora. A primeira delas seria a
desconsideração da sua personalidade jurídica e a segunda seria através da disponibilização ficta dos seus lucros,
de modo que elas não seriam complementares, mas sim exclusivas. Veja-se, neste sentido: TROIANELLI,
Gabriel Lacerda. Tributação de lucros no exterior em face de convenção celebrada segundo o modelo da OCDE.
In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v.
161
4.2.3. Observações críticas sobre as duas linhas doutrinárias
Observa-se que, nas duas linhas expostas acima, a questão central que as opõe é o
critério material da hipótese de incidência tributária (o que, de fato, se tributa).
Na primeira linha doutrinária, a pessoa do sócio investidor (sociedade controladora ou
coligada) é submetida à tributação pela variação patrimonial positiva sofrida em razão dos
resultados positivos das suas controladas e coligadas no exterior que são refletidos no valor do
seu patrimônio líquido, gerando um acréscimo patrimonial disponível e, portanto, tributável.
A tônica da incidência tributária, segundo este ponto de vista, está na variação patrimonial
positiva sofrida pela sociedade investidora.
Na segunda linha doutrinária, as sociedades controladas e coligadas residentes no
exterior são consideradas transparentes para que os seus lucros, rendimentos e ganhos de
capital possam ser alcançados e tributados na pessoa do seu sócio investidor. A tônica da
incidência tributária, nesta segunda linha, está nos lucros, rendimentos e ganhos de capital
auferidos pelas sociedades investidas.
A escolha de qual posicionamento adotar não está livre de repercussões jurídicas. Com
efeito, reconhecer que o regime de tributação brasileiro não recai sobre os lucros auferidos no
exterior, mas sim sobre a variação patrimonial da controladora, implica afastar o
entendimento de que a norma se opera através da desconsideração da personalidade jurídica
da controlada ou coligada residente no exterior para que os resultados sejam considerados
fictamente disponibilizados. Caso se reconheça que é a primeira linha doutrinária que deverá
prevalecer, muitas das questões jurídicas colocadas em debate atualmente, tais como as
discussões acerca da constitucionalidade do regime brasileiro bem como a sua adequação aos
tratados para evitar a dupla tributação que serão expostas a seguir, deverão ser repensadas.
A ausência de um debate legislativo mais aprofundado e técnico que tenha precedido a
introdução do presente regime no ordenamento jurídico brasileiro gerou toda a controvérsia
demonstrada acima e a grande insegurança jurídica quanto ao entendimento que deverá ser
firmado em relação a todas as questões que serão analisadas nos próximos tópicos do presente
capítulo. No final das contas, a grande questão que está por trás de todas as discussões que
6, 2002, p. 112; e BARRETO, Paulo Ayres. Imposto sobre a renda e os lucros auferidos no exterior. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 6,
2002, p. 342.
162
serão analisadas a seguir é: Afinal, qual é a natureza do regime brasileiro de tributação de
lucros auferidos no exterior? Até o momento, esta pergunta permanece sem resposta
definitiva.
Nos tópicos que serão expostos adiante, trataremos da adequação do regime de
tributação de lucros auferidos no exterior com o direito interno e, na sequência, com o direito
internacional, em especial com os tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla
tributação.
4.3. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e o direito interno
4.3.1. 1º momento de debate da validade jurídica do regime: a questão da
disponibilidade dos lucros e o conceito constitucional de renda
4.3.1.1. A ADI nº 2.588209
O primeiro momento de debate da validade jurídico do regime brasileiro de tributação
de lucros auferidos no exterior caracterizou-se pela proposta, em dezembro de 2001, da Ação
de Declaração de Inconstitucionalidade com pedido de liminar nº 2.588 ao Supremo Tribunal
Federal (STF) pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) por meio da qual se questionou
a constitucionalidade do caput do artigo 74 e respectivo parágrafo único da MP nº 2.158-
35/2001, bem como do §2º do artigo 43 do CTN.
A autora (CNI) alegou, preliminarmente, que o artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001
viola o artigo 62 da Constituição Federal uma vez que não estavam presentes os requisitos de
relevância e urgência previstos em seu caput como elementos necessários à validade formal
da adoção de medidas provisórias, com força de lei, pela Presidência da República. No plano
da validade material, a autora alegou que as referidas normas violam os conceitos
constitucionais de renda e lucro previstos nos artigos 153, III (IRPJ) e 195, I, alínea c (CSLL)
209
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.588. Autora:
Confederação Nacional da Indústria. Ministra-relatora: Ellen Gracie.
163
da Constituição Federal na medida em que a tributação recai sobre a renda ainda não
disponibilizada jurídica ou economicamente o que vai de encontro ao próprio conceito
constitucional de renda.
A autora se respaldou na tese, já mencionada anteriormente, de que o artigo 74 da
medida provisória pretende tributar algo que não é renda, pois, para tanto, é fundamental a sua
disponibilidade econômica ou jurídica, conforme prevê o caput do artigo 43 do CTN que nada
mais é do que mera explicitação do conceito constitucional de renda por atribuição da própria
C.F., conforme dispõe o seu artigo 146, inciso III210
. O conceito constitucional de renda é, por
sua vez, a expressão da medida exata de capacidade contributiva (art. 145, §1º da C.F.) que
deve ser alcançada pela incidência da norma tributária.
É justamente porque o artigo 43 é mera “explicitação” do conceito constitucional de
renda que ele não poderia definir ou atribuir à lei ordinária a tarefa de definir que há renda
quando ela de fato não existe, ou seja, antes mesmo de ocorrida a sua disponibilização
econômica ou jurídica. Tal diretriz normativa não poderia estar acobertada pela delegação
constitucional contida no artigo 146, III, da C.F. uma vez que trairia o próprio conceito
constitucional de renda previsto no texto constitucional.
Assim, a autora requereu que o §2º do artigo 43 do CTN fosse declarado
inconstitucional, sem redução de texto, para que fosse afastada a interpretação de que a lei
poderia fixar o momento de ocorrência do fato gerador do imposto de renda antes da sua real
disponibilização.
Sustentou-se, também, que o parágrafo único do artigo 74 da medida provisória vai de
encontro à regra da irretroatividade e da anterioridade, previstas, respectivamente, no artigo
150, III, incisos a e b da Constituição Federal, ao pretender tributar, no mesmo exercício
financeiro em que foi editado o referido diploma normativo, lucros apurados anteriormente,
porém ainda não disponibilizados.
A defesa da tese de que seria inconstitucional a lei tributar renda ainda não disponível
estava respaldada na jurisprudência firmada pelo STF quando do julgamento do Recurso
Extraordinário (RE) nº 172.058-1 (Caso do ILL)211
.
210 Para a autora, “o conceito constitucional de renda abrange em si a disponibilidade da renda, pelo que, o
disposto no artigo 43 do CNT nada mais é que a explicitação do que já está contido na Constituição”. 211
Trata-se da ocasião em que o STF julgou a constitucionalidade do imposto sobre a renda retido na fonte
incidente à alíquota de 8% sobre o lucro líquido apurado pela pessoa jurídica na data do encerramento do
período-base, conforme previa o artigo 35 da Lei nº 7.713/88. O STF declarou a inconstitucionalidade da
referida norma jurídica por entender que a lei não poderia tributar o lucro líquido da pessoa jurídica apurado
ainda não disponibilizado jurídica ou economicamente aos seus sócios. Na época, a análise do STF se pautou na
confrontação do referido dispositivo com o disposto no caput do artigo 43 do CTN de modo a concluir que ele
164
Até o presente momento, o julgamento da ADI nº 2.588 ainda não foi concluído.
Houve, no entanto, o pronunciamento de 9 votos até o momento sendo que o Ministro Gilmar
Mendes foi impedido de votar, restando pendente apenas o voto do Ministro Joaquim
Barbosa. O “placar” do julgamento está em 5 votos a favor da improcedência da ação
(constitucionalidade) contra 4 pela sua procedência (inconstitucionalidade) no tocante às
sociedades controladas residentes no exterior. No tocante às sociedades coligadas, o placar
está em 4 votos a favor da improcedência da ação contra 5 pela sua procedência. Dentre os
diversos votos proferidos pelos ministros, vale a pena discutir de forma mais detalhada os três
primeiros já que eles apontam para as três linhas principais que foram posteriormente
seguidas pelos demais ministros, com pequenas variações de entendimentos.
Primeiramente, a Ministra-relatora Ellen Gracie manifestou em seu voto o
entendimento de que haveria verdadeira hipótese de aquisição de disponibilidade jurídica dos
lucros de controladas residentes no exterior. Isso porque, em se tratando de sociedade
controlada, “o acionista controlador é titular dos direitos de sócio que lhe asseguram, de modo
permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos
administradores”. Segundo a ministra-relatora, a preponderância nas decisões sociais faz com
que a decisão quanto à distribuição de lucros dependa, única e exclusivamente, da pessoa
jurídica controladora. Assim, a relação de controle implica, a seu ver, a disponibilidade
jurídica da renda auferida pela controlada. Não haveria disponibilidade, no entanto, em
relação às sociedades coligadas residentes no exterior, já que a sociedade residente no Brasil
detentora da participação societária não possui poder de controle para determinar, a qualquer
momento, a distribuição dos lucros por ela auferidos. Assim, a referida ministra julgou pela
procedência da ADI apenas em relação às sociedades coligadas, julgando a sua improcedência
em relação às controladas.
O Ministro Nelson Jobim votou pela constitucionalidade do artigo 74 da MP nº 2.158-
35/2001, manifestando o entendimento de que o regime somente poderia se aplicar às
sociedades que estão submetidas à avaliação dos seus investimentos através do MEP. De fato,
o Ministro seguiu a primeira linha doutrinária demonstrada no tópico anterior ao sustentar que
o regime de tributação de lucros auferidos no exterior incide sobre a variação patrimonial
positiva sofrida pela sociedade residente no Brasil e registrada em sua contabilidade através
do MEP. Defende o ministro que, como a empresa deve reconhecer as suas despesas e receitas
não possuía amparo no CTN o que implicaria violação ao artigo 146, III, da C.F., que exige lei complementar
para definir o fato gerador dos impostos. A análise não recaiu, portanto, sobre o conceito constitucional de renda
(art. 153, III da C.F.).
165
de acordo com o regime de competência, o espelhamento da variação patrimonial positiva
decorrente dos lucros auferidos pela controlada ou coligada no ativo (conta “investimentos”)
da sociedade residente no Brasil dará ensejo a um ajuste positivo em conta de resultado que já
será considerado disponível, ao menos juridicamente, como consequência da aplicação do
regime de competência. Trata-se da tributação do resultado positivo da equivalência
patrimonial da pessoa jurídica investidora brasileira.
O Ministro Marco Aurélio de Mello, por fim, votou pela declaração da
inconstitucionalidade do caput do artigo 74 e do parágrafo único da MP nº 2.158-35/2001
bem como do artigo 43, §2º do CTN, sem redução de texto, para que lhe fosse dada
interpretação conforme a Constituição Federal. O referido ministro seguiu,
fundamentalmente, o entendimento da CNI na petição inicial da ADI. Ademais, argumenta o
ministro que a desconsideração da personalidade jurídica da empresa regularmente
constituída, sob os pontos de vista formal e material, somente seria admissível a partir do seu
exame casuístico. Neste sentido, entendendo que o regime ora discutido se opera através de
uma ficção jurídica, o referido ministro critica a possibilidade de o conceito de renda ser
deturpado, a tal ponto, que o imposto incidisse sobre renda ainda não disponibilizada. O
ministro entendeu, também, ser aplicável o precedente do ILL ao presente caso.
Os demais ministros seguiram, de uma forma geral, as linhas de entendimento
demonstradas acima212
. A doutrina também se dividiu de forma a seguir o raciocínio
evidenciado nos votos dos Ministros Nelson Jobim e Ellen Gracie ou no voto do Ministro
Marco Aurélio de Mello, ressalvados alguns poucos autores que manifestaram opinião diversa
das linhas discutidas pelo STF. O STJ, por sua vez, vem defendendo a legalidade da cobrança
e sinaliza aguardar o julgamento da constitucionalidade da matéria pelo STF213
.
212
Os ministros Eros Grau, Carlos Ayres Britto e Cezar Pelluso acompanharam o voto do Ministro Nelson
Jobim, enquanto que os ministros Ricardo Lewandowski, Sepúlveda Pertence e Celso de Mello acompanharam o
voto do Ministro Marco Aurélio Mello. O Ministro Gilmar Mendes estava impedido de participar do julgamento.
Resta, até o presente momento, pendente de prolação, o voto do Ministro Joaquim Barbosa. 213
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem firmando jurisprudência no sentido da legalidade da sistemática de
tributação do IRPJ e da CSLL sobre os lucros auferidos pelas empresas brasileiras investidoras, sobre empresas
investidas no exterior, destacando que, enquanto o STF não proferir decisão definitiva quanto à questão da
constitucionalidade do regime, ele permanece válido e eficaz no ordenamento jurídico. O STJ tem demonstrado
entendimento no sentido de que a destinação dos lucros auferidos no exterior depende unicamente da decisão da
controladora, razão pela qual estariam eles disponíveis desde que apurados no balanço da controlada e refletidos
no patrimônio da controladora (linha adotada no voto da Min. Ellen Gracie na ADI nº 2.588). Neste sentido,
vejam-se os seguintes julgados: EDcl no AgRg nos EDcl no REsp 1232796/RS, Ministro Relator: Humberto
Martins, segunda turma, data de julgamento: 27/03/2012; REsp 1161003/RS, Ministro Relator: Mauro Campbell
Marques, segunda turma, data de julgamento: 27/09/2011; REsp 1222719/RS, Ministro Relator: Humberto
Martins, segunda turma, data de julgamento: 03/05/2011; REsp 983134/RS, Ministro Relator: Castro Meira,
segunda turma, data de julgamento: 03/04/2008; REsp 907404 / PR, Ministro Relator: Humberto Martins,
segunda turma, data de julgamento: 23/10/2007.
166
4.3.1.2. As posições doutrinárias
A tese da constitucionalidade é defendida, em sua maioria, por autores pertencentes à
primeira linha doutrinária exposta no tópico anterior. A maior parte desta corrente de
entendimento defende a tese do Ministro Nelson Jobim de que a tributação ocorre na medida
em que há o reconhecimento da receita positiva de equivalência patrimonial, seguindo-se o
regime de competência, decorrente da apuração de lucros auferidos por sociedades investidas
no exterior. Neste sentido, o reconhecimento de receitas pelo regime de competência faz com
que elas estejam disponíveis na pessoa da controladora no momento em que ela as registra
contabilmente. Tal fato não ocorre em relação às pessoas submetidas ao regime contábil de
caixa, tais como as pessoas físicas, situação em que haveria, de fato, a necessidade de se
aguardar a efetiva distribuição dos valores pela controlada para que os mesmos se reputassem
disponíveis214
.
Em apoio à visão demonstrada acima à tese acima que dá suporte à tese da
constitucionalidade e, seguindo em muito a linha de raciocínio do Ministro Nelson Jobim,
André Martins de Andrade, conforme expusemos anteriormente, defende que grupos
empresariais sujeitos a diversas jurisdições fiscais devem ser vistos como um único complexo
econômico de modo que a separação formal entre as pessoas jurídicas deveria ser relativizada.
Portanto, seria possível adotar a participação societária como elemento de conexão que
embora não seja “forte” – tais como a fonte, a residência e a nacionalidade – permitiria a
tributação do sócio pelos lucros auferidos no exterior por sociedades investidas antes mesmo
da sua disponibilização, sem implicar afronta ao conceito constitucional de renda.
Partindo-se desse pressuposto, pondera o autor que o regime brasileiro determina a
incidência tributária sobre o valor do acréscimo patrimonial experimentado pelo sócio
brasileiro em virtude da sua participação societária na empresa que auferiu lucros no exterior.
Tal fato, por si só, já acarretaria disponibilidade do lucro, incorporado ao patrimônio do sócio,
uma vez que a sua realização financeira (em moeda) depende exclusivamente de um ato de
vontade do próprio investidor que possui plena titularidade sobre o ativo (investimento) ao
214
Curiosamente, em virtude de as pessoas físicas estarem sujeitas ao regime de caixa e de não haver previsão
legal para que a elas seja aplicável uma norma de antidiferimento, muitos são os planejamentos tributários
atualmente realizados utilizando-se de pessoas físicas – na função de intermediárias detentoras de participação
societárias de sociedades residentes no exterior – como estratégia voltada a diferir a tributação brasileira sobre
lucros auferidos no exterior.
167
qual se agregou o incremento patrimonial reflexo (lucro da subsidiária) 215
. A nosso ver, este
raciocínio só se aplica às hipóteses de controle societário.
Os autores que advogam pela tese da constitucionalidade não entendem que seja
aplicável o precedente jurisprudencial do ILL por não considerarem que eles tratam do
mesmo objeto; enquanto o precedente tratava de dividendos, a presente discussão versa sobre
lucros216
.
Seguindo linha de raciocínio semelhante, Eliana Karsten Anceles defende a
flexibilização dos conceitos de disponibilidade econômica e jurídica. Neste sentido, haveria
disponibilidade jurídica dos lucros auferidos no exterior nas hipóteses em que a sociedade
brasileira detivesse o controle da sociedade residente no exterior. Este raciocínio segue, em
muito, as linhas de pensamento demonstradas pela Ministra Ellen Gracie. A necessidade de se
flexibilizar o conceito de disponibilidade adviria da emergência do Estado-transnacional, ao
qual nos referimos anteriormente, em que os países devem tomar medidas de proteção para
resguardar as suas bases imponíveis217
.
Há, no entanto, críticos em relação a este entendimento. Tais críticos pertencem, em
sua maioria, à segunda linha demonstrada acima e defendem a tese da inconstitucionalidade
dos dispositivos normativos ora tratados.
Ricardo Mariz de Oliveira defende que a inclusão do §2º ao artigo 43 do CTN teria
excluído qualquer dúvida quanto à validade da tributação da pessoa jurídica em bases
mundiais, mas questiona, até que ponto este dispositivo legal teria sido o fundamento de
validade para o art. 74 da MP nº 2.158-35/2001 (regra de antidiferimento). Ao analisar a
questão, o referido autor conclui que o §2º do artigo 43 do CTN não permite que a
disponibilização dos lucros auferidos no exterior ocorra através de uma presunção ou ficção
jurídica; o dispositivo requer que haja a sua efetiva disponibilização econômica ou jurídica218
.
Isso porque, o §2º não é uma exceção ao caput do artigo 43, devendo aquele dispositivo ser
interpretado de forma harmoniosa com o comando normativo deste último, de modo que “não
215
Cf. ANDRADE, André Martins. Os limites da tributação universal da renda e a ADI nº 2.588. Revista Fórum
de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, n. 29, 2007, p. 21-25. 216
O precedente ILL tratava de dividendos uma vez que era somente sobre eles que a fonte poderia ser
responsabilizada pela inobservância do seu dever de reter IRRF como responsável tributária. 217
ANCELES, Eliana Karsten. Transparência Fiscal Internacional (Controlled Fo.reign Corporations – CFC):
uma visão analítica à luz da sistemática jurídico-tributária brasileira. Revista Fórum de Direito Tributário
(RFDT). Belo Horizonte: Fórum, n. 8, 2004, p. 77-128. 218
OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin. 2008, p. 334.
168
há uma disponibilidade no parágrafo 2º que seja distinta das disponibilidades previstas no
caput” 219
.
O autor sustenta ainda a tese de que o artigo 1º da Lei 9.532/97 não teria sido
expressamente revogado por qualquer dispositivo legal, nem mesmo pelo artigo 74 da MP –
nas vias previstas pelo artigo 12 da Lei Complementar 95 – razão pela qual é ele quem deve
reger a sistemática de tributação de lucros auferidos no exterior220
.
Esta linha de raciocínio se respalda fortemente na tese de que para que o fisco
brasileiro tribute a renda auferida no exterior, não seria possível, em vista dos limites
impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro, considerá-la transparente. Apenas através de
um ato formal da fonte pagadora que retire tais rendimentos da sua esfera patrimonial e os
coloque à disposição da pessoa dos seus sócios – e.g. crédito, pagamento, entrega, emprego,
remessa deliberados em assembleia societária ou mesmo a previsão de cláusula no contrato ou
estatuto social dispondo sobre o momento da disponibilização dos lucros – é que seria
possível ao fisco brasileiro tributar tais rendimentos pois seria só neste momento é que
haveria a transferência da sua titularidade de um patrimônio para o outro. Seguindo esta linha
de raciocínio, não há direito ao crédito da investidora dos lucros auferidos no exterior quando
da mera apuração pela investida, pois, neste momento, há tão somente a potencialidade de
direito ao lucro, representada pelo seu direito de voto em assembleia societária a favor da
distribuição dos lucros auferidos.
Tércio Sampaio Ferraz Júnior defende um posicionamento semelhante ao ponderar
que o §2º do artigo 43 do CTN atribuiu competência à lei ordinária apenas para viabilizar a
incidência do imposto de renda sobre rendas auferidas no exterior sem, no entanto, lhe
permitir que o momento e as condições da passagem da situação de “não ter” para a situação
de “ter” – passagem operada através da aquisição de disponibilidade – fossem fixadas
livremente pela lei ordinária, pois a sua definição é elemento inerente ao tipo tributário o qual,
por sua vez, é competência exclusiva da lei complementar regular221
. Assim, a delegação de
competência à lei ordinária deve se ater ao disposto do caput do artigo 43.
Ademais, ao ponderar qual seria a verdadeira natureza do critério de disponibilização
automática previsto no artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001, Tércio Sampaio Ferraz Júnior
conclui que ela seria uma ficção jurídica – na linha apontada por Heleno Tôrres conforme
apontamos anteriormente – e não a uma mera equiparação jurídica na medida em que “a 219
OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin. 2008, p. 338. 220
Ibid., p. 593. 221
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Disponibilidade: CTN art. 43. Revista de Direito Tributário (RDT). São
Paulo: Malheiros, n. 91, 2001, p. 22-23.
169
equiparação afirma uma igualdade, desprezando desigualdades secundárias, enquanto a ficção
afirma uma desigualdade essencial, procedendo, não obstante, a uma igualação”222
.
O ponto de vista demonstrado acima se respalda na ideia de separação rígida entre
duas pessoas jurídicas que, embora sejam vinculadas entre si pelo fato de uma deter
participação societária da outra, compõem duas entidades juridicamente distintas e autônomas
de modo que a passagem de bens e direitos que compõem um dos patrimônios para o outro
dependeria do preenchimento de determinados requisitos formais (e.g. deliberação em
assembleia de acionistas). Essa visão rígida possui repercussões diretas no conceito de
disponibilidade jurídica adotado que passa a exigir o preenchimento de requisitos formais
para que a renda passe a ser disponível à pessoa jurídica controladora ou coligada. Apesar de
razoável e coerente, esta tese inviabiliza, por completo, a adoção do regime de transparência
fiscal no direito brasileiro que, conforme expusemos anteriormente, é de fundamental
importância para a proteção das bases imponíveis nacionais223
.
Em vista da necessidade de o Brasil ter normas de transparência fiscal internacional
para a proteção da sua arrecadação tributária, outra parte da doutrina, que também se opõe à
tese da constitucionalidade do regime brasileiro, defende a aplicação do princípio da
proporcionalidade como critério destinado a aferir a validade jurídica das normas em análise.
Luís Eduardo Schoueri, ao analisar a adoção do regime de transparência fiscal
internacional em direito comparado, demonstra a sua natureza antibusiva e a sua aplicação
como regra de exceção haja vista o preenchimento de critérios específicos – tais como a
localização dos investimentos feitos no exterior, a natureza dos rendimentos, o propósito
negocial do investimento e a caracterização de controle societário – requisitos esses que,
conforme demonstramos anteriormente, são geralmente adotados pelos países para definir as
situações em que se deve coibir o diferimento da tributação no país de residência do
investidor. Assim, tendo-se em vista o propósito almejado pelo regime brasileiro de tributação
em bases universais, o autor sustenta que ele é desproporcional na medida em que esta
finalidade poderia ser alcançada com uma regra de antidiferimento que se aplicasse
222
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Disponibilidade: CTN art. 43. Revista de Direito Tributário (RDT). São
Paulo: Malheiros, n. 91, 2001, p. 25. 223
Esta crítica fica muito clara quando o próprio autor afirma que: “(...) nem mesmo o fato de alguns – mas não
todos – investimentos estarem em controladas situadas em paraísos fiscais autoriza uma mudança de atitude
interpretativa para validar o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001, especialmente sabendo-se que a lei
brasileira contém inúmeras normas dirigidas a atenuar os efeitos fiscais deletérios para a arrecadação nacional,
decorrentes dessas situações, e nenhuma delas tem a ver com a distribuição de lucros e dividendos, além de que
o próprio art. 74 não é restrito às coligadas ou controladas mantidas naquelas jurisdições.” Vejam-se maiores
detalhes em: OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin. 2008,
p. 363.
170
seletivamente de modo a coibir, tão somente, o abuso e não a onerar todas as formas de
investimentos feitos por empresas brasileiras no exterior. Através da aplicação do princípio da
proporcionalidade, resultaria que apenas as rendas produzidas por investimentos feitos em
paraísos fiscais ou beneficiados por regimes fiscais privilegiados – e que preenchessem os
demais requisitos delimitados acima – é que seriam atingidos pelo regime brasileiro224
.
Embora esta linha de entendimento venha a se somar à que defende a
inconstitucionalidade do regime, ela propõe a sua válida aplicação quando preenchidos os
critérios mencionados acima de modo a alinhar as normas brasileiras ao modelo
internacionalmente consagrado. Isto porque as rendas (passivas) auferidas por sociedades
constituídas sem propósito negocial em paraísos fiscais ou nas situações em que o
contribuinte se beneficie de regimes fiscais privilegiados estarão, desde a sua apuração,
disponíveis já que a legislação do país permite que o sócio controlador tenha elevada
ingerência na sociedade controlada, desprezando, por vezes, formalidades societárias que são
inerentes à existência de duas entidades juridicamente distintas e autônomas, levando a crer
serem meras sociedades “casca de ovo” 225
.
O que praticamente todos os autores que entendem ser o regime brasileiro
inconstitucional (segunda linha doutrinária) possuem em comum é o fato de que nenhum
deles defende, de fato, que seja juridicamente válida a tributação através do reconhecimento,
pelo regime de competência, de receita decorrente do ajuste positivo feito no patrimônio da
sociedade investidora brasileira em virtude da equivalência patrimonial dos seus
investimentos em controladas e coligadas no exterior, ponto este considerado central pela
grande maioria dos autores que defende a tese da constitucionalidade do artigo 74 da MP
2.158-35 e do §2º do artigo 43. Este entendimento é, por sua vez, um reflexo da visão da
pessoa jurídica como ente distinto e autônomo em relação à pessoa jurídica que detém
participação na sua estrutura societária, principalmente, no que diz respeito ao seu patrimônio.
É por esta razão que o conceito de disponibilidade jurídica torna-se menos flexível e sujeito
ao preenchimento de muitos requisitos formais para a sua qualificação. Estas são,
fundamentalmente, as premissas que opõem as duas linhas doutrinárias.
224
SCHOUERI, Luis Eduardo. Transparência fiscal internacional, proporcionalidade e disponibilidade:
considerações acerca do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35. Revista Dialética de Direito Tributário
(RDDT). São Paulo: Dialética, n. 132, 2007, p. 39-50. 225
Há outros autores que possuem entendimento muito semelhante a este. Entre eles: BIANCO, João Francisco.
Transparência fiscal internacional. São Paulo: Dialética. 2007, p. 80-83; GODOI, Marciano Seabra. O imposto
de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do
direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 6, 2002, p. 277-289; e SILVA, Sérgio André Rocha G. da.
Transparência fiscal no direito tributário brasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT), São Paulo:
Dialética, n. 99, 2003, p. 118-121.
171
Entre a doutrina especializada, fica muito claro que as linhas de entendimento
contrárias aos votos do Ministro Nelson Jobim e da Ministra Ellen Gracie são motivadas por
argumentos que amparam um posicionamento visivelmente favorável aos interesses dos
contribuintes, em especial, grandes empresas de capital nacional internacionalizadas (segunda
linha doutrinária). Por outro lado, há também autores que se propõe a defender a validade
jurídica do regime de tributação de lucros auferidos no exterior, sustentando a coerência dos
argumentos do Ministro Nelson Jobim e, neste sentido, estão aliados a interesses fiscais
(primeira linha doutrinária). Trata-se aqui de uma batalha que se trava no campo jurídico
motivada, na maior parte dos casos, pela proteção de um determinado grupo de interesse, seja
ele o dos contribuintes, seja o do fisco. Esta disputa torna-se perfeitamente visível quando se
olha para o placar acirrado da ADI 2.588 no STF.
Não pretendemos, no presente trabalho, firmar um posicionamento sobre qual dessas
linhas deve prevalecer. O nosso objetivo será, no entanto, chamar atenção para um novo
campo de debate que não está preso a estas duas linhas analisadas. Trata-se do (possível)
segundo momento de debate sobre a validade jurídica do regime tributário que não excluirá a
discussão quanto conceito constitucional de renda, mas se focará na adequação regime frente
à Ordem Econômica Constitucional.
4.3.1.3. Os efeitos fiscais do Método da Equivalência Patrimonial (MEP)
Em diversos momentos do presente trabalho, fizemos menção ao método da
equivalência patrimonial sem que, na ocasião, tivéssemos feito uma análise mais profunda
sobre o tema. Os comentários que serão feitos neste tópico são importantes na medida em que
eles esclarecem os fundamentos nos quais algumas das linhas de pensamento demonstradas
acima estão respaldadas.
O que já deve ter ficado claro até o presente momento é que o MEP é uma técnica de
avaliação de investimentos feitos em sociedades controladas e coligadas e que a legislação
vigente tem utilizado a referida técnica como forma de quantificação e submissão dos
resultados positivos auferidos no exterior – bem como os demais elementos positivos que
influenciam no cálculo da mutação patrimonial positiva sofrida pelas controladas e coligadas
172
estrangeiras – à tributação imediata na pessoa da sociedade controladora ou coligada residente
no Brasil.
Antes mesmo de entrarmos na questão dos efeitos fiscais atribuídos ao MEP, cabe
tecer comentários mais detalhados sobre o seu funcionamento na legislação comercial. O
dever de avaliar os resultados de coligadas e controladas está previsto no artigo 248 da Lei
6.404/76 (Lei das S.A.). De acordo com o referido dispositivo legal, “os investimentos em
coligadas ou em controladas e em outras sociedades que façam parte de um mesmo grupo ou
estejam sob controle comum serão avaliados pelo método da equivalência patrimonial”,
devendo o valor do investimento ser determinado através da aplicação do percentual de
participação societária da sociedade investidora sobre o valor do patrimônio líquido da
controlada ou coligada, o qual deverá ser reajustado a cada novo exercício. Assim, a diferença
positiva decorrente dos resultados auferidos pelas controladas e coligadas deverá compor, nos
termos do artigo 248, o resultado do exercício.
Na sistemática vigente anteriormente à reforma realizada pelas Leis nº 11.638/2007 e
11.941/2009, o MEP só era aplicável em relação às coligadas nas quais a detentora de
participação societária possuísse “investimento relevante” – nos termos definidos pelo
parágrafo único do artigo 247 da Lei das S.A. – e sobre cuja administração a detentora de
participação societária tivesse “influência”. No que diz respeito às controladas, o MEP era
aplicável nas hipóteses em que a controladora detivesse 20% ou mais do capital social.
As duas leis, no entanto, modificaram o enunciado normativo do artigo 248 da Lei das
S.A. de modo a ampliar a abrangência da aplicação do MEP o qual passou a ser obrigatório a
todos os investimentos em coligadas, controladas e em outras sociedades que façam parte de
um mesmo grupo ou estejam sob controle societário comum. Apenas nas situações em que a
sociedade não fizer parte do mesmo grupo e não estiver sujeita a controle comum é que o
MEP não será aplicável, estando tais investimentos sujeitos a avaliação pelo método do
custo226
.
A despeito de a legislação comercial determinar a inclusão dos resultados do ajuste
positivo constatado em virtude da avaliação dos investimentos pela equivalência patrimonial
na apuração do resultado contábil, a legislação fiscal previa, desde a publicação do Decreto-
226
Trata-se do método em que o valor dos investimentos da pessoa jurídica não são atualizados na medida em
que são contabilizados resultados positivos nas sociedades investidas. No método do custo, mantém-se o valor
histórico do investimento, não havendo qualquer ajuste contábil na conta do investimento no ativo da
investidora, nem qualquer contrapartida em conta de resultado.
173
lei nº 1.598/77 no seu artigo 23, que o resultado positivo ou negativo dessa avaliação não
seria computado na apuração do lucro real (resultado fiscal). Tratava-se da regra de
neutralidade fiscal dos efeitos da contrapartida do ajuste decorrente do MEP. Com a vigência
da Lei 9.249/95, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a tributação em bases
universais da pessoa jurídica com uma regra de antidiferimento ampla, a regra da neutralidade
fiscal do ajuste do MEP foi, ao menos em tese, mantida pelo seu artigo 25, §6º. A
neutralidade fiscal do MEP não era prevista apenas pela legislação do IRPJ, como também
pela legislação aplicável à determinação da base de cálculo da CSLL227
.
Foi com a regulamentação do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 que a contrapartida
do ajuste promovido pelo MEP deixou de ser considerada neutra para fins tributários, ao
menos em relação a investimentos realizados no exterior. Com efeito, a Instrução Normativa
SRF nº 213/2002 previu, em seu artigo 7º, que os valores relativos aos resultados positivos da
equivalência patrimonial deveriam ser considerados no balanço apurado em 31 de dezembro
pela empresa enquanto que os resultados negativos deveriam ser adicionados para fins de
determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL. Ou seja, por meio de instrução
normativa, determinou-se a tributação do ajuste positivo e a neutralidade fiscal do ajuste
negativo do MEP, o que somente veio a ressaltar a regra de que o contribuinte não poderia
compensar os prejuízos incorridos no exterior.
Diante dessas alterações, atualmente a regra de neutralidade fiscal do MEP só é válida
para investimentos detidos pela pessoa jurídica no Brasil, de modo que ele deixa de ter
neutralidade fiscal quando os investimentos estão localizados no exterior. Há, entretanto,
fortes críticas que vem sendo apresentadas à sistemática atual.
Primeiramente, criticou-se o fato de se utilizar de um método, cuja finalidade consiste
em permitir a consolidação das mutações patrimoniais decorrentes dos resultados econômicos
havidos em cada uma das unidades componentes do grupo econômico ao longo do tempo,
para fins de reconhecimento e quantificação da renda para posterior submissão à tributação
nacional já que o resultado da equivalência patrimonial não passa de reconhecimento do que
já ocorreu na investida, ou seja, o que já foi gerado e tributado. A consequência prática de se
atribuir efeitos fiscais ao resultado apurado pelo MEP é a manipulação artificial da base de
cálculo do IRPJ e da CSLL.
227
Conforme dispõe o artigo 2º, §1º, c, 4, da Lei 7.689/88.
174
A segunda delas diz respeito à impossibilidade de uma instrução normativa prever
tratamento legal distinto daquele estabelecido em lei, contrariando-a frontalmente. Conforme
sustentamos, a neutralidade da contrapartida do MEP estava previsto no artigo 25, §6º da Lei
9.249/95, tendo o referido dispositivo sido mantido até mesmo pelo artigo 74 da MP 2.158-
35/2001 que não o revogou expressamente. Neste sentido, teria o dispositivo ora tratado da
instrução normativa contrariado frontalmente dispositivo legal o que o tornaria ilegal.
A terceira crítica também se refere a possível extravasamento do âmbito regulamentar
de uma instrução normativa e é uma decorrência da primeira crítica. Critica-se o fato de o
artigo 7º da IN ter determinado a tributação de toda a contrapartida em conta de resultado do
ajuste positivo da equivalência patrimonial enquanto que a legislação teria previsto a
tributação, tão somente, dos lucros, rendimentos e ganhos de capital (art. 25 da Lei
9.249/95)228
. Assim, ao tributar toda a contrapartida positiva em conta de resultado do MEP, a
base de cálculo do imposto teria sido alargada de modo a incluir variações patrimoniais
positivas das sociedades investidas que não representam renda e que nem mesmo possuem
respaldo legal (e.g. transferências patrimoniais)229
.
228
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido que o artigo 7º da Instrução Normativa nº 213/2002 é
ilegal na medida em que, ao submeter todo o acréscimo patrimonial sofrido pela controlada à tributação na
pessoa da controladora, ele estaria captando valores que não necessariamente correspondem ao lucro, ampliando
indevidamente a base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Neste sentido, vejam-se os seguintes julgados: EDcl no
AgRg nos EDcl no REsp 1232796/RS, Ministro Relator: Humberto Martins, segunda turma, data de julgamento:
27/03/2012; REsp 1222719/RS, Ministro Relator: Humberto Martins, segunda turma, data de julgamento:
03/05/2011; REsp 983134/RS, Ministro Relator: Castro Meira, segunda turma, data de julgamento: 03/04/2008. 229
Essas três críticas foram precisamente apontadas por: CEZAROTTI, Guilherme. Lucros auferidos no exterior:
a tributação do resultado da equivalência patrimonial pela IN SRF nº213/02. Revista Dialética de Direito
Tributário (RDDT). São Paulo: Dialética, n. 97, 2003; GONÇALVES, José Artur Lima. Equivalência
patrimonial e imposto sobre a renda. Revista de Direito Tributário (RDT). São Paulo: Malheiros, n. 100, 2008;
GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto de renda sobre o lucro das coligadas e controladas estabelecidas no
exterior. Revista de Direito Tributário (RDT). São Paulo: Malheiros, n. 87, 2001.
175
4.3.1.4. Demais questões jurídicas presentes no 1º momento de debate
4.3.1.4.1. A questão da compensação dos prejuízos incorridos no
exterior com os resultados positivos apurados no Brasil
Juntamente com os questionamentos sobre a validade jurídica do regime de tributação
de lucros auferidos no exterior, conforme expusemos acima, questionou-se, também, a regra
prevista no §5º do artigo 25 da Lei 9.249/95, segundo a qual “os prejuízos e perdas
decorrentes das operações referidas neste artigo não serão compensados com lucros auferidos
no Brasil”.
Já tratamos deste dispositivo no capítulo 2 quando analisamos criticamente o processo
legislativo relativo à elaboração da referida lei. Na ocasião, chamamos atenção para as
diversas emendas apresentadas contra o dispositivo legal uma vez que os congressistas
consideraram que atribuir tratamento distinto a lucros e prejuízos incorridos no exterior – uma
vez que os lucros, ganhos de capital e demais rendimentos são tributados no Brasil enquanto
que os prejuízos não podem ser trazidos para o país e abatidos na base de cálculo da pessoa
jurídica residente – seria injusto e contra o princípio da isonomia tributária.
Esclarecemos, no entanto, que a razão que teria motivado a manutenção do enunciado
do dispositivo normativo, nos moldes originalmente propostos, teria sido o receio das
autoridades fazendárias brasileiras de que os contribuintes se utilizassem de artifícios para
“gerar” prejuízos no exterior que, caso pudessem ser abatidos do resultado positivo incorrido
no Brasil, poderiam comprometer a arrecadação tributação nacional.
Não obstante a coerência do argumento apresentado pelo Dep. Antônio Kandir ao
rejeitar as emendas que propunham a alteração do conteúdo da regra tratada, muitos são os
questionamentos jurídicos ensejados por ela na atualidade. O mais importante deles diz
respeito à possível afronta da regra ao princípio da capacidade contributiva previsto no §1º do
artigo 145 da C.F. uma vez que, através da referida regra, se está restringindo, indevidamente,
os fatores negativos que, juntamente com os positivos, levam à correta aferição da base de
cálculo do IRPJ e da CSLL que é justamente o lucro, entendido como sendo o acréscimo
patrimonial experimentado pela pessoa jurídica, de acordo com o artigo 43, inciso I, do CTN.
Dessa forma, a restrição criada pela lei à compensação de prejuízos auferidos no exterior
176
afronta o princípio da capacidade contributiva e o conceito constitucional nuclear de renda na
medida em que tributa aquilo que não configura legitima manifestação de capacidade
contributiva e que sequer é lucro.
Além do mais, a literatura especializada se opõe à pretensão do legislador de combater
as práticas de “geração” de prejuízos no exterior através da criação de uma norma que impede
que os prejuízos das controladas e coligadas sejam “trazidos” ao Brasil para compensá-los
com os resultados positivos apurados pela sócia brasileira, alegando que, embora a
neutralização dos prejuízos fictícios seja um objetivo indispensável, o legislador não poderia
tê-lo feito através de uma regra genérica de vedação à compensação de prejuízos, havendo,
para tanto, controles especiais e a exigência de informações para que as autoridades fiscais
possam se cercar da certeza necessária de que os prejuízos são reais230
.
Uma segunda crítica que se poderia apresentar à regra brasileira é que ela atribui
tratamento jurídico distinto a lucros e prejuízos. Ao mesmo tempo em que a legislação
determina que os lucros auferidos no exterior sejam incluídos na apuração da base de cálculo
dos tributos devidos pela sócia brasileira, ela proíbe que o mesmo seja feito com prejuízos.
Não há, portanto, isonomia de tratamento dos fatores (positivos e negativos) que influenciam
na correta apuração da base de cálculo dos tributos brasileiros.
A consequência prática da regra de neutralização fiscal dos prejuízos incorridos no
exterior é corretamente apontada por Luis Eduardo Schoueri quando o autor afirma que
“empresas que têm prejuízos acumulados anos a fio e, de repente, têm um pequeno lucro,
pagam imposto de renda brasileiro, a despeito de o acionista brasileiro jamais ter acesso
àquele recurso”231
. Isso ocorrerá na medida em que a sócia brasileira apure lucros em
território brasileiro e as suas controladas apurem prejuízos no exterior que não poderão ser
compensados com lucros apurados.
230
Cf. GRECO, Marco Aurélio. Globalização e tributação da renda mundial. Revista Fórum de Direito
Tributário (RFDT), Belo Horizonte: Fórum, ano 1, n. 2, 2003, p. 86-90. 231
SCHOUERI, Luis Eduardo. Anotações sobre temas de direito tributário internacional. In: SANTI, Eurico
Marcos Diniz de; ZILVETI, Fernando Aurelio; MOSQUEIRA, Roberto Quiroga (Coord.). Tributação
internacional e dos mercados financeiros e de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005.
177
4.3.1.4.2. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e as
regras de preços de transferência
O regime tributário de preços de transferência é regido, no direito brasileiro, pelos
artigos 18 a 24-B da Lei nº 9.430/96 e tem como propósito fundamental coibir que, nas
relações de mercado realizadas por partes vinculadas – seja o vínculo de natureza societária
(e.g. participação no capital social, sociedades sujeitas a controle comum, sociedades
pertencentes ao mesmo grupo societário, entre outras hipóteses), seja o vínculo de natureza
econômica normalmente decorrente de algum negócio celebrado pelas partes (e.g. contrato de
agência e distribuição) –, sejam estipulados preços artificiais – ou seja, preços que não teriam
sido fixados em transações normais de mercado entre partes independentes – com o propósito
preponderante ou exclusivo de reduzir a base de cálculo do imposto devido no Brasil e
transferir, indiretamente, lucros ao exterior. Em outras palavras, o objetivo do regime de
preços de transferência é assegurar que as transações entre partes vinculadas sigam o padrão,
defendido pela OCDE, at arm’s length para fins fiscais232
. Este regime está compreendido no
conjunto de medidas adotadas pelos países para lidar com estratégias abusivas de elisão fiscal
internacional.
As regras que estabelecem preços-parâmetro de transferência entre partes vinculadas,
sendo uma delas residente no Brasil e outra no exterior, se aplicam em relação a compra e
venda de mercadorias, prestação de serviços, tanto nas operações de importação quanto nas de
exportação, bem como na fixação da taxa de juros em contratos internacionais de mútuo. Vale
lembrar que, em diversas legislações, inclusive na brasileira, a norma dispensa o requisito de
“vinculação” quando uma das partes com a qual a outra transaciona é residente em paraíso
fiscal ou se beneficia de regime fiscal privilegiado.
Ocorre que, da aplicação conjunta dos regimes de preços de transferência e de
tributação dos lucros auferidos no exterior pela pessoa jurídica, pode resultar em uma grave
anomalia do sistema. Explicaremos esta afirmação através de um exemplo prático.
232
São vários os relatórios da OCDE em que consta o seu posicionamento em relação ao objetivo das normas de
preços de transferência em assegurar que transações entre partes vinculadas obedeçam ao padrão at arm’s length
para fins fiscais como medida de proteção da arrecadação tributária dos países contra estratégias que visem, pura
ou preponderantemente, a elisão fiscal. Entre os diversos relatórios em que a OCDE trata da questão das regras
de preços de transferência, veja-se: OECD. Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax
Administrations. Paris, 2010.
178
Imagine-se que a empresa A é residente no Brasil e detenha 80% da participação
societária da empresa B, residente na Holanda. Imagine-se também que a empresa A promova
a importação de mercadorias da empresa B tendo pagado a esta última o valor de R$
500.000,00. Considerando que após a aplicação dos métodos para a correta estimativa do
valor do preço-parâmetro de importação, previstos no artigo 18 da Lei nº 9.430/96, o método
que alcançou o maior valor – o mais favorável ao contribuinte, portanto – determinou que o
preço da operação, para fins de dedução na forma de custo, tenha sido R$ 300.000,00,
tornando, consequentemente, indedutível o valor de R$ 200.000,00 na apuração da base de
cálculo do IRPJ e da CSLL.
Imagine-se que a empresa A também esteja sujeita ao pagamento de IRPJ e CSLL
sobre a sua renda mundial, ou seja, sobre os resultados positivos apurados por controladas,
coligadas, filiais e sucursais residentes no exterior, seguindo-se, para tanto, a sistemática já
tratada anteriormente à exaustão do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001. Assim, da aplicação
da sistemática resultaria que a empresa A deveria arcar com a tributação de IRPJ e CSLL
sobre R$ 400.000,00 (80% do valor do resultado positivo apurado pela controlada).
A anomalia está justamente no fato de que cada uma das operações toma, como base,
valores diferentes para determinação de consequências tributárias; enquanto o regime de
preços de transferência limita o valor da transação para efeitos de dedutibilidade na forma de
custo na apuração da base de cálculo dos tributos incidentes, o regime de tributação de lucros
auferidos no exterior determina que a fração de participação societária da integralidade do
valor da transação efetuada seja tida como base de cálculo dos tributos brasileiros, antes
ainda, diga-se de passagem, da disponibilização dos lucros aos sócios brasileiros.
A consequência disso é que o sócio brasileiro não apenas deve arcar com a tributação
incidente sobre lucros ainda não disponibilizados (400.000 x 0,34 = 136.000), como também
com a fração do valor da operação que não pôde ser deduzida na importação – e que pode ser
considerada como parcela de imposto que se pagou a mais – devido à legislação de preços de
transferência (200.000 x 0,34 = 68.000)233
. Se por um lado a legislação brasileira determina
que o fisco reajuste o preço das transações para menos entre partes vinculadas quando se
regula a extensão do direito de deduzir custos e despesas da base de cálculo do imposto
brasileiro, por outro este “reajuste” não vale quando o objetivo é tributar em bases universais.
233
Utilizando-se de exemplo semelhante, Diogo Ferraz chama atenção para o fenômeno tratado. Neste sentido,
veja-se: FERRAZ, Diogo. O possível conflito entre os preços de transferência e a legislação CFC. Revista
Dialética de Direito Tributário (RDDT), São Paulo: Dialética, n. 121, 2005, p. 22-33.
179
Há, neste sentido, grande incoerência no fato de o sistema tributário admitir valores
distintos como base de cálculo, para dois regimes jurídicos que se aplicam aos resultados de
uma mesma transação, o que acarreta a bitributação e a consequente violação do princípio da
capacidade contributiva – orientador de todo o sistema tributário nacional – justamente da
parcela que não se permite deduzir em virtude da aplicação da legislação de preços de
transferência, mas que é tributada através do regime de tributação em bases mundiais234
.
4.3.2. 2º momento de debate da constitucionalidade do regime: a Ordem
Econômica Constitucional e a internacionalização empresarial
O debate sobre a constitucionalidade do regime brasileiro de tributação de lucros
auferidos no exterior está gradualmente migrando da discussão quanto à disponibilização da
renda e o conceito constitucional de renda para um debate maior que visa confrontar se os
efeitos do regime sobre o processo de internacionalização produtiva das empresas nacionais,
dos quais tratamos no capítulo anterior, afrontam a Ordem Econômica Constitucional, o que
levaria à sua invalidade jurídica.
A presente linha de debate não despreza o debate que caracterizou o 1º momento.
Procura, por outro lado, chamar atenção para as possíveis repercussões jurídicas, ensejadas
pelos efeitos econômicos advindos da incidência do regime brasileiro, no plano das normas e
princípios constitucionais que orientam a ordem econômica. O presente debate só vem a se
somar ao debate anterior, não a substituí-lo. O nosso objetivo, portanto, é analisar as
repercussões jurídicas do regime de tributação de lucros auferidos no exterior sob uma
perspectiva nova, até então, pouco explorada. Abaixo, demonstraremos em que medida os
efeitos do regime brasileiro sobre o processo de internacionalização produtiva de empresas
brasileiras podem afrontar a Ordem Econômica Constitucional.
234
Cf. MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, p. 112-118.
180
4.3.2.1. Constituição, ordem econômica e desenvolvimento nacional
A Constituição Federal de 1988 seguiu a tradição de algumas das suas antecessoras e
dispôs sobre a ordem econômica. A doutrina especializada denomina a parte da Constituição
destinada a regular a ordem econômica de “constituição econômica” a qual, segundo André
Ramos Tavares, corresponde aos princípios, regras ou instituições que traduzem
juridicamente os elementos determinantes do sistema econômico235
. Para José Afonso da
Silva, a constituição econômica (formal) é “a parte da Constituição que interpreta o sistema
econômico, ou seja: que dá forma ao sistema econômico, que, em essência, é o capitalista”236
.
Não se pode incorrer no risco de se dizer que ordem econômica tem o mesmo significado que
constituição econômica ou ordem constitucional econômica uma vez que estas últimas
expressões correspondem a todas as regras e princípios constitucionais que regem a economia
como um todo, sendo que a primeira expressão corresponde ao resultado da sua incidência no
plano da economia237
.
Deve-se, entretanto, fazer a ressalva de que a pretensão de se analisar a constituição
econômica como objeto autônomo em relação ao restante do texto constitucional é criticável
do ponto de vista metodológico, sobretudo, porque leva à uma interpretação restrita do texto
constitucional. Deste modo, todas as disposições relativas à disciplina constitucional da ordem
econômica devem ser lidas em conjunto com o restante dos dispositivos constitucionais para
que delas seja extraída a melhor interpretação.
Não cabe aqui fazermos uma análise detalhada das origens históricas da constituição
econômica, mas vale a pena destacar que a sua emergência teve como pressuposto
fundamental a ideia de que a economia tem suas imperfeições e que cabe ao Estado assegurar
valores, princípios e regras que deverão delinear o seu funcionamento no plano prático, de
modo a evitar que decorram efeitos perversos de uma economia que não sofre qualquer
regulação estatal, tais como abusos concorrenciais e injustiças sociais provocadas pelas
desigualdades econômicas. Não é a toa que o fenômeno da constituição econômica tomou
235
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2006, p. 75. 236
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 791. 237
Segundo Tavares, a ordem econômica é “a expressão de um certo arranjo econômico, dentro de um específico
sistema econômico, preordenado juridicamente.” De acordo com o autor, a ordem econômica é o resultado da
incidência de normas de caráter mais amplo do que aquelas presentes na constituição econômica na medida em
que apenas uma parte das normas que incidem sobre a ordem econômica estão previstas no conjunto de regras e
princípios formalmente previstos na constituição econômica, sendo que muitas das normas incidentes estão
previstas na legislação infraconstitucional. Neste sentido, veja-se: TAVARES, op. cit, p. 83.
181
maiores proporções depois da segunda guerra mundial quando os modelos clássicos que
orientavam a economia, os quais pregavam que o mercado se autorregulava de modo a se
ajustar no futuro não obstante eventuais distorções de curto e médio prazo, foram muito
questionados devido à crise mundial de 1929 e substituídos por modelos mais
intervencionistas sob a influência da escola keynesiana.
O diagnóstico feito por Dimitri Dimoulis e Oscar Vilhena Vieira aponta que entre o
século XIX e XX as constituições passaram por um forte fogo cruzado de distintas posições
políticas, ora mais liberais ora mais intervencionistas, que erodiram o prestígio político que
elas haviam conquistado anteriormente, sendo considerada por muitos como mera
formalização e consagração de um poder de fato238
. No entanto, conforme apontam os
próprios autores, ficou claro, após a segunda guerra mundial, que “as constituições deveriam
zelar pela sua característica liberal – ou seja, protetiva de direitos – mas o desprezo pela
questão social deveria ser igualmente superado”239
. Assim, a tentativa de conciliar a
perspectiva liberal com a social deu ensejo à pretensão das constituições em transformar
radicalmente a realidade social presente. É neste contexto em que se inserem as constituições
aspiracionais, dirigentes ou transformadoras preocupadas não apenas em assegurar a realidade
existente, mas também em estabelecer um programa para o futuro240
.
Dentre os valores transformadores incorporados por essas constituições está o
desenvolvimento como sendo um objetivo fundamental a ser alcançado pelo Estado. A
Constituição Federal de 1988 está, segundo Vieira e Dimoulis, inserida neste contexto e
possui pretensões claramente transformadoras, sendo ela “típica do reencontro entre
constitucionalismo e desenvolvimento no sentido coletivo-social do termo”241
.
Em relação à ordem constitucional econômica, a Constituição Federal de 1988 prevê
princípios em sentido estrito e em sentido amplo242
. Dentre os princípios em sentido amplo
que orientam a ordem econômica – ou seja, aqueles esparsos no texto constitucional não
expressamente previstos no capítulo I do título VII que dispõe sobre “A Ordem Econômica e
238
DIMOULIS, Dimitri, VIEIRA, Oscar Vilhena. Constituição e desenvolvimento. In: RODRIGUEZ, José
Rodrigo (Org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011,
p. 51. 239
Ibid., p. 51. 240
Cf. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição
de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 31-35. 241
DIMOULIS; VIEIRA, op. cit., p. 52. 242
Adotamos, neste sentido, o mesmo critério de separação conceitual proposto por André Ramos Tavares. Neste
sentido, confira-se: TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2006, p.
125-128.
182
Financeira” – encontra-se a garantia do desenvolvimento nacional previsto no inciso II do
artigo 3º como “objetivo fundamental da República Federativa do Brasil”. Os princípios em
sentido estrito que orientam a ordem econômica – expressamente previstos nos incisos do
artigo 170 – são: (i) a soberania nacional; (ii) a propriedade privada; (iii) a função social da
propriedade; (iv) a livre concorrência; (v) a defesa do consumidor; (vi) a defesa do meio
ambiente; (vii) a redução das desigualdades regionais e sociais; (viii) a busca do pleno
emprego; e (ix) o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob
as leis brasileiras e que tenham a sua sede e administração no País.
É inegável, portanto, que a Constituição Federal de 1988, transformadora em sua
essência, incorporou o desenvolvimento como objetivo fundamental da República em sentido
amplo o qual deve ser aplicado como direcionador da ordem econômica. O objetivo da
garantia do desenvolvimento deve se aplicar, sobretudo, no desempenho das funções de
fiscalização, incentivo e planejamento do Estado quando atua como agente normativo e
regulador da atividade econômica, em conformidade com o disposto no artigo 174 da
Constituição Federal.
Na visão de Gilberto Bercovici, a Constituição Federal estabeleceu as bases para um
projeto nacional de desenvolvimento e deve o Estado assumir o papel central no processo de
desenvolvimento através da sua função de planejamento – como de fato foi feito nos planos
adotados pelo Governo Federal ao longo do século XX – deixando-se de limitar a sua atuação
à fiscalização e ao incentivo dos agentes econômicos privados. Para definir os objetivos a
serem alcançados pelo plano de desenvolvimento, deve o Estado se orientar por visões
políticas e ideológicas previstas na própria Constituição243
. Eros Roberto Grau também
demonstra postura favorável à centralidade do Estado no papel de planejador do
desenvolvimento nacional ao afirmar que:
Garantir o desenvolvimento nacional é, tal qual construir uma sociedade livre, justa
e solidária, realizar políticas públicas cuja reivindicação, pela sociedade, encontra
fundamentação neste art. 3º, II. O papel que o Estado tem a desempenhar na
perseguição da realização do desenvolvimento, na aliança que sela com o setor
privado, é, de resto, primordial 244
.
243
BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 69-71. 244
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 217.
183
Assim, o Estado deve cumprir o importante mandato constitucional de promover o
desenvolvimento através da criação de planos econômicos e da adoção de uma política
industrial clara que deve servir como parâmetro orientador para o setor privado e
determinante para o setor público, devendo ele estimular atividades econômicas que sejam do
interesse nacional tendo-se em vista o seu desenvolvimento econômico, sob pena de agressão
à ordem econômica constitucional vigente. Neste sentido, tendo-se em vista a sistemática
constitucional em vigor, podemos afirmar que uma política pública – econômica, industrial,
agrícola e até mesmo fiscal – que não favoreça o desenvolvimento nacional será
inconstitucional.
Há discussões doutrinárias quanto à densidade normativa do artigo 3º, inciso II da
Constituição Federal que podem ser traduzidas na seguinte questão: Seria o artigo 3º, II, da
Constituição uma norma de conteúdo programático (baixa densidade normativa) ou o referido
mandamento constitucional possui relevância normativa maior (norma de elevada densidade
normativa)? Dimoulis e Vieira enfrentaram esta questão e defendem a vinculatividade direta e
imediata da norma que institui o objetivo de se assegurar o desenvolvimento em dois sentidos
distintos: primeiro, enquanto indicação ideológica do constituinte que deve servir como
orientador do processo de aplicação do direito constitucional e infraconstitucional; segundo,
na condição de mandamento endereçado ao legislador que deve implementar programas
direcionados a alcançar tal objetivo sob pena de responsabilização jurídica e política245
.
Concordamos com esta visão e a adotamos como pressuposto da construção interpretativa que
se fará adiante.
Devemos fazer aqui a ressalva de que, quando se pensa em uma política de
desenvolvimento nacional, não se pode restringir o conceito de desenvolvimento ao mero
crescimento econômico, pois esta dimensão tomada em sua individualidade não poderá
ensejar o desenvolvimento do país como um todo, embora contribua substancialmente.
Segundo Amartya Sen, “desenvolvimento” deve ser um conceito analisado em uma “moldura
conceitual ampla” não se restringindo apenas à sua dimensão econômica246
. A Constituição
Federal de 1988 não restringiu, no entanto, o conceito de desenvolvimento apenas à sua
245
DIMOULIS, Dimitri, VIEIRA, Oscar Vilhena. Constituição e desenvolvimento. In: RODRIGUEZ, José
Rodrigo (Org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011,
p. 56. 246
Cf. SEN, Amartya. Reforma jurídica e reforma judicial no processo de desenvolvimento. In: Direito e
Desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento.
184
acepção econômica na medida em que assegura direitos de diversas naturezas distintas (civis,
sociais, culturais, entre outros).
4.3.2.2. Internacionalização empresarial e a Ordem Econômica
Constitucional: Quais são os limites jurídicos que o Estado deve
observar ao criar uma política industrial de internacionalização
produtiva?
Ao tratar da relação do tema da internacionalização produtiva e do desenvolvimento
nacional, deve-se buscar responder a seguinte pergunta: Em que medida a internacionalização
produtiva favorece o desenvolvimento nacional? Embora a tarefa de responder essa pergunta
necessite de conhecimentos extrajurídicos, a sua resposta tem implicações claramente
jurídicas na medida em que ela determinará se a postura do Governo Federal, ao estabelecer
um regime de tributação em bases universais da pessoa jurídica com uma regra de
antidiferimento ampla, está de acordo ou não com o mandato que lhe foi atribuído pela
constituição econômica (de assegurar o desenvolvimento).
As possíveis respostas apresentadas à questão acima, deverão ser sopesadas, pelo
formulador de políticas públicas, com os possíveis limites que o ordenamento jurídico – em
especial a Constituição Federal – poderá impor na fixação da política industrial desejada.
Neste sentido, cabe perquirir a pergunta colocada no título do presente subitem: Quais são os
limites jurídicos que o Estado deve observar ao criar uma política industrial de
internacionalização produtiva?
No capítulo 3, analisamos, também, o posicionamento da literatura especializada em
relação às implicações da estratégia de internacionalização produtiva para o desenvolvimento
nacional como um todo, ocasião em que ponderamos as críticas feitas aos seus possíveis
efeitos sobre a geração de empregos, balança comercial (exportações), arrecadação tributária e
investimentos feitos no Brasil, bem como os argumentos contrários que podem ser
apresentados a essas críticas.
Demonstramos, no capítulo 3, que o Brasil ainda não assumiu uma postura clara
quanto a apoiar ou não a internacionalização produtiva das suas empresas, sendo este um tema
que carece de um posicionamento governamental claro, haja vista o contexto atual marcado
185
pela importância da estratégia de internacionalização produtiva para as empresas de capital
nacional como condição para o seu crescimento e sobrevivência em um mundo globalizado.
Nas políticas industriais brasileiras, observamos que os governos da Nova República
parecem ter optado pela estratégia de internacionalização comercial através do fomento às
exportações brasileiras ao invés de incentivar a criação de unidades produtivas no exterior.
Em relação à internacionalização produtiva, os governos assumiram uma postura tímida e
pouco clara, podendo ela ser vista quando se observa que o estatuto social do BNDES,
sobretudo no artigo 9º, prevê a possibilidade de financiamento da aquisição de ativos e de
investimentos realizados por empresas de capital nacional no exterior, desde que contribuam
para o desenvolvimento econômico e social do País (inciso II) e de captação de recursos no
mercado externo para financiar a aquisição de ativos e a realização de projetos de
investimentos no exterior por empresas brasileiras, desde que tais financiamentos contribuam,
igualmente, para o desenvolvimento econômico e social do País (inciso VIII).
Apenas a título de comparação, na experiência internacional, há diversos países que
possuem agências destinadas a regular especificamente a forma com a qual se dará a
internacionalização produtiva das suas empresas para que ela se reverta em desenvolvimento
para o país exportador de capitais.
Diante de todas as evidências expostas, embora não caiba a nós, juristas, estabelecer os
critérios que deverão orientar uma política industrial de fomento à internacionalização
produtiva – tarefa esta reservada aos administradores e economistas –, é razoável concluir
que, uma vez condicionada a um determinado processo composto por diversos critérios e
condicionantes, a internacionalização produtiva contribuirá para que o Estado assegure o
desenvolvimento nacional. A regulação estatal da internacionalização produtiva cumprirá o
requisito de “promoção do desenvolvimento econômico e social” exigido no estatuto do
BNDES e, com isso, ao invés de gerar externalidades negativas para o Brasil, gerará
externalidades positivas, ensejando a criação de mais empregos no país, promovendo
acréscimo de exportações, ganhos de arrecadação tributária e maiores investimentos no
próprio país, condições que indubitavelmente compõem o conceito de desenvolvimento –
amplo, conforme afirmamos – previsto na Constituição Federal de 1988.
Conforme expusemos anteriormente neste trabalho, o BNDES tem adotado critérios
objetivos ao financiar operações de internacionalização produtiva de empresas de capital
nacional que visam assegurar que a constituição de fatores produtivos no exterior se reverta
186
em desenvolvimento para o Brasil. Um exemplo emblemático foi o financiamento do BNDES
para a aquisição de unidades produtivas localizadas no exterior pela JBS-Friboi mediante a
condição de que a empresa brasileira aumentasse as suas exportações de origem brasileira
através da sua destinação à unidade produtiva recém-adquirida na Argentina. Este é um
exemplo claro de que a internacionalização produtiva pode claramente contribuir
positivamente para o desenvolvimento nacional.
Por outro lado, há situações em que a internacionalização produtiva de empresas
brasileiras claramente não atenderá ao objetivo de promoção de desenvolvimento nacional.
Trata-se da internacionalização que gerará impactos negativos em termos de empregos,
balança comercial, arrecadação nacional e investimentos internos. Estes casos devem ser
reprimidos pelo Estado.
Portanto, uma política industrial de incentivo (ou desincentivo) à internacionalização
produtiva deve ser sensível às hipóteses em que este fenômeno será favorável (ou não) ao
desenvolvimento nacional, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade por afronta ao
preceito constitucional que impõe ao Estado o dever de promover o desenvolvimento
nacional, sobretudo, quando atua como agente normativo e regulador da atividade econômica,
na função de planejamento.
4.3.2.3. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e a Ordem
Econômica Constitucional
Conforme vimos no capítulo 3 deste trabalho, o regime brasileiro de tributação de
lucros auferidos no exterior representa um desincentivo indireto à internacionalização
produtiva na medida em que afeta a capacidade de competição das filiais, sucursais,
controladas e coligadas de empresas brasileiras nos mercados externos onde estão localizadas
devido às diversas razões oportunamente analisadas neste trabalho.
Tendo-se em vista este pressuposto, bem como os pressupostos destacados nos
subitens anteriores, podemos concluir que o regime brasileiro de tributação de lucros
auferidos no exterior será inconstitucional caso mantenha o seu desenho atual segundo o qual
ele se aplica a todas as situações envolvendo uma empresa de capital nacional
internacionalizada. Isto porque, com o desenho amplo em vigor atualmente, o regime se
187
aplica tanto às situações tidas como favoráveis ao desenvolvimento nacional e que, portanto,
não deveriam ser desestimuladas, mas sim incentivadas pelas políticas nacionais, quanto às
situações consideradas como contrárias que, estas sim, deveriam sofrer um regime tributário
mais severo com a finalidade indutora de desestimulá-las.
Defendemos que, no primeiro caso (internacionalização favorável ao
desenvolvimento), a incidência do regime será inconstitucional ao passo em que, no segundo
caso (internacionalização desfavorável ao desenvolvimento), a sua incidência será
constitucional, sob o ponto de vista estritamente da Ordem Econômica Constitucional.
O problema é que a norma jurídica não é capaz de distinguir uma situação das outras
já que em princípio ela se aplica a todas as hipóteses (favoráveis e desfavoráveis ao
desenvolvimento), o que fará com que o seu campo de incidência tributária inclua as situações
nas quais a internacionalização produtiva deveria ser estimulada pelo Estado como forma de
cumprimento da diretriz constitucional, prevista no artigo 3º, inciso II da C.F., que qualifica o
desenvolvimento nacional como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil e
princípio orientador da ordem econômica constitucional.
Sem falar que o objetivo orientador da atuação brasileira nas suas relações
internacionais previsto no parágrafo único do artigo 4º da C.F. – segundo o qual A República
Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações –, o
qual poderia também ser buscado através de uma política industrial de internacionalização
produtiva de empresas brasileiras em países sul-americanos, poderia ser igualmente frustrado
pelo atual regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior, o que também
ensejaria a sua inconstitucionalidade247
.
A inconstitucionalidade apontada aqui poderia ser facilmente evitada caso o regime
brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior fosse direcionado apenas para coibir o
abuso de determinadas operações de elisão fiscal internacional que justificassem uma postura
mais rígida por parte da jurisdição fiscal brasileira, tais como as hipóteses em que empresas
constituem filiais, sucursais, coligadas ou controladas em paraísos fiscais ou sob a incidência
de regimes fiscais privilegiados com o propósito puro ou preponderante de postergar ou
reduzir o fato gerador do imposto no seu país de residência (geralmente esta intenção está
247
Vale lembrar que o próprio Plano de Desenvolvimento Produtivo (PDP), do Governo Lula, se apresentou
favorável à consolidação de cadeias produtivas integradas envolvendo países da América Latina, África e
Caribe, conforme demonstramos no capítulo 3.
188
atrelada aos rendimentos passivos devido à sua volatilidade elevada). Dessa forma, não se
pode defender que um regime de tributação com um desenho amplo – sem contornos
antielisivos – seja capaz de diferenciar situações de internacionalização produtiva nitidamente
desejáveis para o desenvolvimento nacional daquelas claramente indesejáveis.
Ainda que admitamos que o fato de o Brasil ainda não ter assumido uma postura clara
quanto à conveniência de se ter empresas nacionais internacionalizadas dificulte a
identificação das situações que devem ser combatidas daquelas que devem ser incentivadas
pelo Estado e pela ordem jurídica, este argumento não pode servir de substrato para justificar
que normas tributárias combatam todas e quaisquer situações de internacionalização de
fatores produtivos, provocando efeitos indesejáveis à economia nacional, pois a própria
Constituição Federal de 1988 oferece um parâmetro jurídico que pauta a atuação do Estado ao
elaborar políticas industriais (e, inclusive, fiscais); a busca pelo desenvolvimento nacional.
Tal parâmetro constitucional pode ser objetivamente aferido quando se observa, por
exemplo, que a internacionalização produtiva no caso concreto foi capaz de gerar empregos
no Brasil, diminuir a vulnerabilidade das suas empresas no mercado internacional, trazer
divisas para o país na forma de receitas de exportação, entre outras situações. Não cabe a nós
definir quando ela trará vantagens para o país, mas o fato é que, obedecidos certos requisitos,
a internacionalização produtiva contribui positivamente para o desenvolvimento nacional, o
que tornará incompatível com a ordem jurídica vigente a existência de um regime tributário
que não se respalde em um critério capaz de discriminar as situações favoráveis ao
desenvolvimento nacional daquelas desfavoráveis para que seja aplicável à sistemática de
combate ao diferimento. Assim, seguindo a lógica do presente argumento, a regra de
antiferimento deveria se aplicar somente às hipóteses de internacionalização produtiva que
não levam ao desenvolvimento nacional, pois, é através da sua aplicação, que o Estado estará
legitimamente desincentivando a internacionalização que não atende aos objetivos
fundamentais do país, previstos na Constituição Federal.
Entendemos que o juízo de adequação à ordem econômica constitucional deverá ser
sempre suscitado quando o formulador de políticas públicas tiver em mente uma alteração
legislativa no sistema tributário nacional, em especial, quando a norma pretendida possuir
nítidos efeitos econômicos sobre os operadores privados nacionais, influenciando as suas
decisões de investimento e, particularmente, a sua capacidade concorrencial em mercados
internacionais. É fundamental que as normas tributárias sejam orientadas por uma política
189
industrial de promoção do desenvolvimento muito clara, o que não ocorreu em relação ao
regime ora estudado, conforme demonstramos no capítulo 2.
Acreditamos que o presente debate ganhará força nos tribunais superiores brasileiros
especialmente no tocante à discussão judicial da sistemática de tributação de lucros auferidos
no exterior248
. Não acreditamos, no entanto, que o debate que caracterizou o 1º momento será
deixado de lado. Muito pelo contrário. Ele continuará a ser debatido, mas o debate quanto à
constitucionalidade do regime brasileiro passará a se fazer presente também em novas frentes,
em especial na discutida no presente tópico (regime versus Ordem Econômica
Constitucional).
O que não mudará de um momento para o outro do debate é o fato de que, em ambos,
é possível observar uma disputa de interesses muito acirrada entre contribuintes, preocupados
com a sua capacidade competitiva e em pagar menos tributos, e o fisco, preocupado em
proteger ao máximo a arrecadação tributária através de normas eficientes e práticas. O que
poderá mudar, no entanto, é o campo de debate jurídico em que se trava a disputa de
interesses e, com isso, os argumentos e ponderações que serão apresentados.
4.4. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e o direito internacional
A dupla tributação internacional da renda vem se tornando um problema cada vez mais
comum na medida em que os países optam por tributar, não apenas os ativos e as transações
oriundos do seu território, como também os ativos e as transações econômicas oriundos de
248
Diante do cenário pouco favorável à declaração de inconstitucionalidade do artigo 74 da MP nº 2.158-
35/2001 e do §2º do artigo 43 do CTN – este último sem redução de texto – o STF reconheceu repercussão geral
ao Recurso Extraordinário (RE) nº 611.586, nos termos do artigo 543-A e 543-B do Código de Processo Civil
(CPC) e, portanto, a decisão que for proferida em relação a este RE será igualmente reconhecida a todos os
demais casos que versem sobre a mesma matéria de direito e que permanecerão sobrestados no Tribunal de
origem aguardando o julgamento do recurso representativo da controvérsia. A composição da turma julgadora do
STF foi sensivelmente alterada desde que os votos da ADIN nº 2.588 foram proferidos, tendo muitos dos
ministros que manifestaram entendimento a favor da constitucionalidade dos dispositivos mencionados sido
aposentados o que poderá indicar a possibilidade de recomeçar o julgamento do zero. É interessante observar o
comentário do Ministro Joaquim Barbosa (último voto que faltava para concluir o julgamento da ADIN 2.588)
ao reconhecer a repercussão geral do RE da cooperativa: “é imprescindível contextualizar a tributação quando
aos seus efeitos sobre a competitividade das empresas nacionais no cenário internacional, à luz do princípio do
fomento às atividades econômicas lucrativas geradoras de empregos e divisas”. Veja-se, neste sentido: STF pode
recomeçar do zero julgamento sobre controladas no exterior. Valor Econômico. São Paulo, Artigo publicado em
02/04/2012.
190
outros países. O problema da dupla tributação internacional está, portanto, diretamente
associado à opção política dos países em tributar os seus contribuintes em bases universais.
Klaus Vogel diferencia, com precisão, a dupla tributação jurídica da dupla tributação
econômica. Na dupla tributação jurídica, duas ou mais jurisdições fiscais tributam um mesmo
contribuinte, em virtude de uma mesma materialidade econômica (transação econômica ou
propriedade de determinados ativos), em um determinado período de apuração. Há, neste
sentido, nítida sobreposição do exercício da competência das duas jurisdições fiscais distintas;
tanto a do Estado de residência da sociedade investidora que tributa em bases universais,
quanto à do Estado de fonte que tributa a fonte produtora no seu próprio território. Na dupla
tributação econômica, uma mesma materialidade é objeto de tributação simultânea por duas
ou mais jurisdições fiscais, porém, na pessoa de contribuintes diferentes 249
.
Para combater o fenômeno da dupla tributação, os Estados criaram mecanismos
previstos na sua legislação interna. O Brasil, por exemplo, prevê no seu ordenamento jurídico
interno o direito de crédito calculado com base no valor do imposto pago no exterior. No
entanto, conforme alerta Vogel, as medidas unilaterais destinadas a combater a dupla
tributação são insuficientes para preveni-la por completo uma vez que elas não cobrem, na
maioria das vezes, todas as situações que dão causa à dupla tributação, havendo também o
problema de tais medidas não serem harmonizadas o que poderá dar ensejo a inconsistências
na sua aplicação. Por estas razões, os Estados passaram a celebrar tratados como medida
complementar aos mecanismos previstos na sua legislação interna250
.
Segundo Vogel, os tratados internacionais celebrados para evitar a dupla tributação
pressupõem que cada jurisdição fiscal possui soberania para aplicar as suas próprias normas
internas, inclusive para alcançar materialidades econômicas que não estão apenas em seu
território. A sua função não é, neste sentido, a mesma das normas de determinação do direito
aplicável, a exemplo do que ocorre com o direito internacional privado. A abordagem correta
consiste em olhar para os tratados como instrumentos de direito internacional público por
meio dos quais os Estados, que em princípio detêm plena jurisdição tributária, acordam em
limitá-la ou restringi-la reciprocamente251
. Os tratados possuem a função de delimitar
249
VOGEL, Klaus. Double tax treaties and their interpretation. International tax & business lawier, v. 4, 1986,
p. 6. 250
Ibid., p. 9-10. 251
Ibid., p. 22-26.
191
competências tributárias dos países através da limitação recíproca da extensão de soberanias
fiscais distintas252
.
A compatibilidade dos tratados celebrados para evitar a dupla tributação com a
legislação interna dos países de transparência fiscal internacional (ou “similares”, a exemplo
do regime brasileiro em relação ao qual parte da doutrina questiona se a sua natureza seria a
mesma do regime de transparência fiscal internacional) é uma questão muito controvertida
não apenas no Brasil como também nos demais países do mundo. Antes de tratarmos da
adequação do regime brasileiro à convenção modelo da OCDE – convenção que inspirou a
redação da maior parte dos tratados celebrados pelo Brasil bem como de outros países –,
analisaremos em que medida a própria OCDE considera a sua convenção modelo compatível
com este regime.
É importante que se faça, ainda, uma ressalva quanto às dificuldades inerentes a tal
análise. A primeira delas diz respeito à falta de uniformidade internacional plena quanto ao
desenho das normas de transparência fiscal internacional que, embora sejam semelhantes e
convergentes conforme se demonstrou no capítulo 1 deste trabalho, podem apresentar
algumas diferenças entre si (e.g. abrangência, rigor, hipóteses de exclusão, etc). A segunda
refere-se à hierarquia dos tratados nos sistemas jurídicos nacionais. Enquanto, no Brasil, os
tratados em matéria tributária têm prevalência sobre a legislação interna, revogando e
modificando a legislação preexistente e devendo ser observados pela legislação que lhe
sobrevenha termos do artigo 98 do CTN – matéria que já ensejou e ainda enseja grandes
controvérsias jurídicas na doutrina e na jurisprudência –, em outros países os tratados recebem
tratamento jurídico ora de norma inferior à lei interna, ora de norma de igual hierarquia e ora
de norma de hierarquia superior. Feitas essas ressalvas, passaremos à análise do tema.
252
A função desempenhada pelos tratados frente à soberania fiscal dos Estados pode ser perfeitamente ilustrada
através da imagem elucidativa abordada por Luis Eduardo Schoueri de uma máscara que, ao ser colocada frente
a um determinado texto escrito, permite que parcelas do texto permaneçam visíveis ao mesmo tempo em que
encobre outras partes que já não são mais visíveis. Os tratados desempenham a mesma função de modo que as
partes encobertas representam a parcela de soberania fiscal renunciada pelo Estado contratante ao passo em que
as partes visíveis representam a parcela inalterada. Confiram-se detalhes em: SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito
Tributário. São Paulo: Saraiva. 2011, p. 109.
192
4.4.1. A compatibilidade das normas de transparência fiscal internacional com
os tratados celebrados pelos países para evitar a dupla tributação segundo a
OCDE
Antes de iniciarmos a análise, é importante que façamos a ressalva de que a
compatibilidade do regime de transparência fiscal internacional com a convenção modelo da
OCDE depende do ponto de vista adotado quanto ao objeto sobre o qual há incidência da
norma tributária. Neste sentido, considerar que o critério material da hipótese de incidência é
o lucro, o dividendo ou outros rendimentos não tratados especificamente nos artigos da
convenção modelo poderá ensejar consequências distintas quando se faz um juízo de
adequação do regime de transparência fiscal internacional, bem como os seus similares, frente
à convenção modelo. Antes de tratarmos da opinião da OCDE a respeito do tema, faremos
uma breve exposição dos dispositivos da convenção modelo que são relevantes para a
presente análise.
O primeiro dispositivo é o parágrafo 1º do artigo 7º da convenção modelo que trata do
lucro das empresas (business profits), cuja redação é a seguinte:
Art. 7º.
§1º. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis nesse
Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante
por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua
atividade na forma indicada, seus lucros serão tributáveis no outro Estado, mas
unicamente na medida em que forem atribuíveis a esse estabelecimento permanente.
A partir da interpretação do dispositivo transcrito acima pode-se constatar que
compete exclusivamente ao Estado onde reside a pessoa jurídica controlada ou coligada
(investida) tributar os seus lucros, sendo proibido o exercício da competência tributária do
outro Estado onde reside a pessoa jurídica controladora ou coligada (investidora). É por esta
razão que esta é uma norma de reconhecimento de competência fiscal exclusiva. A única
exceção a esta regra é a hipótese de a pessoa possuir estabelecimento permanente no outro
Estado253
, ocasião em que o exercício da sua competência tributária deverá se limitar ao lucro
253
Conforme definido pelo artigo 5º da convenção modelo da OCDE. Vale ressaltar, no entanto, que, conforme
dispõe o parágrafo 7º do artigo 5º da convenção modelo, estabelecimentos permanentes não se confundem com
subsidiárias, dotadas de personalidade jurídica e autonomia perante a sua controladora ou coligada, por serem
entidades despersonalizadas, de modo que a exceção prevista na parte final do dispositivo não se aplica no caso
de investimentos feitos em empresas controladas ou coligadas no exterior.
193
que pode ser legitimamente imputado a este estabelecimento. Assim, a legislação de
transparência fiscal internacional que desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade
coligada ou controlada com a finalidade de alcançar os seus lucros e tributá-los será, em
princípio, contrária ao parágrafo 1º, do artigo 7º, da convenção modelo.
O segundo dispositivo relevante para a análise é o artigo 10, que trata dos dividendos
das empresas (dividends), cuja redação encontra-se reproduzida abaixo:
Art. 10.
§1º. Os dividendos pagos por uma empresa residente de um Estado contratante para
um residente em outro Estado contratante podem ser tributados nesse outro Estado.
§2º. Esses dividendos podem, no entanto, ser igualmente tributados no Estado
contratante do qual é residente a empresa que paga os dividendos, de acordo com a
legislação desse Estado.
§5º. Quando uma sociedade residente de um Estado Contratante receber lucros ou
rendimentos do outro Estado Contratante, esse outro Estado Contratante não poderá
cobrar qualquer imposto sobre os dividendos pagos pela sociedade, exceto na
medida em que esses dividendos forem pagos a um residente desse outro Estado ou
na medida em que a participação geradora dos dividendos estiver efetivamente
ligada a um estabelecimento permanente situado nesse outro Estado, nem sujeitar os
lucros não distribuídos da sociedade a um imposto sobre lucros não distribuídos,
mesmo se os dividendos pagos ou os lucros não distribuídos consistirem total ou
parcialmente de lucros ou rendimento provenientes desse outro Estado.
Analisando-se o disposto nos dois primeiros parágrafos transcritos acima, conclui-se
que a convenção modelo assegura o direito de os dois países – tanto aquele em que residente a
fonte geradora dos lucros quanto aquele em que reside o seu sócio – tributarem os dividendos
desde que eles tenham sido pagos ou disponibilizados econômica ou juridicamente aos sócios
de qualquer outra forma. Trata-se de uma norma de reconhecimento de competência tributária
concorrente.
Muitos juristas defendem que este artigo daria causa à compatibilidade do regime de
transparência fiscal internacional com a convenção modelo da OCDE ao defenderem que a
tributação do Estado de residência do sócio incide sobre dividendos fictamente
disponibilizados (fictive dividend approach). Este ponto de vista, no entanto, fica
enfraquecido quando se observa que o referido dispositivo exige que os dividendos sejam
necessariamente pagos ou disponibilizados aos sócios por outros meios. Outros juristas
defendem, ainda, que o §5º do artigo 10 impede o uso de regras de transparência fiscal
internacional pelos Estados contratantes. Estes pontos serão abordados adiante.
194
Por fim, o terceiro dispositivo relevante para a presente análise é o artigo 21 que
dispõe sobre outros rendimentos não previstos nos demais dispositivos da convenção (other
income), cujo texto é o seguinte:
Art. 21.
§1º. Os rendimentos de um residente de um Estado contratante, de onde quer que
provenham, não tratados nos artigos anteriores da presente Convenção, serão
tributáveis apenas nesse Estado.
Alguns juristas defendem que o Estado de residência do sócio tributa o acréscimo
patrimonial experimentado pelo próprio sócio residente, calculado com base no valor dos
lucros auferidos pela subsidiária residente no exterior, mas que não se confundiria com o
mesmo, de modo que o enquadramento mais adequado para o referido rendimento seria o
artigo 21, de aplicação residual nos tratados, por falta de dispositivo específico. Desse modo,
os defensores de que o dispositivo mais adequado para classificar os rendimentos tributados
pelo regime de transparência fiscal internacional (ou regime similar) é o artigo 21, concluem
pela compatibilidade do regime com a convenção modelo.
Ao longo do tempo, a OCDE veio firmando o seu posicionamento. Periodicamente, a
OCDE publica novos comentários à convenção modelo que buscam refletir, sempre da
maneira mais atualizada possível, o seu posicionamento sobre a interpretação mais adequada
de cada um dos dispositivos presentes nos tratados. Ao analisar a progressão do
posicionamento da referida organização sobre a adequação da convenção modelo com os
regimes de transparência fiscal internacional, observa-se que, até o ano de 1992, os
comentários não faziam qualquer referência a tal regime.
Entre 1992 e 2003, os comentários feitos pela organização passaram a defender que
havia compatibilidade de normas gerais antielisivas com a convenção modelo, o que abrangia
as normas de transparência fiscal internacional. Nos comentários 22 a 26 feitos ao artigo 1º da
convenção modelo, a OCDE ponderou em que medida normas que estabelecem a prevalência
da substância das operações sobre a sua forma seriam inerentes ao espírito dos tratados, ou
seja, se elas poderiam ser aplicadas a quaisquer situações ou apenas àquelas expressamente
previstas pela convenção. Havia, fundamentalmente, duas visões: a visão majoritária defendia
a sua perfeita compatibilidade e a desnecessidade de haver qualquer previsão expressa nos
tratados, ao passo em que a visão minoritária sustentava que havia o risco muito elevado de a
aplicação de regras antielisivas pelos Estados contratantes resultar na ineficácia dos
195
mecanismos dos tratados destinados a evitar a dupla tributação. A OCDE apoiou a linha
majoritária – composta em sua maioria por países desenvolvidos preocupados em proteger a
sua arrecadação nacional – de modo a defender a desnecessidade de previsão expressa nos
tratados que autorizasse os países a aplicarem as suas normas antielisivas254
.
No entanto, a OCDE, à época, fez a ressalva importante de que as referidas normas
deveriam ser usadas em caráter de exceção, excluindo-se do seu campo de incidência algumas
hipóteses. Veja-se, abaixo, o comentário 26 ao artigo 1º da convenção modelo feito pela
OCDE em 1998:
A maioria dos países membros aceita medidas antielisivas como um meio necessário
à manutenção da equidade e da neutralidade dos ordenamentos jurídicos tributários
nacionais em um contexto internacional caracterizado por cargas tributárias muito
diferentes uma das outras, mas acreditam que tais medidas devam ser usadas tão
somente para este propósito. Seria contrário aos princípios gerais da convenção
modelo e ao espírito dos tratados destinados a evitar a dupla tributação se medidas
antielisivas fossem estendidas a atividades tais como a produção, a prestação normal
de serviços e as negociações de empresas engajadas em atividades industriais e
comerciais reais, quando elas estão claramente relacionadas com o ambiente
econômico do país onde elas residem nas hipóteses em que essas atividades são
desenvolvidas de modo que nenhuma condutiva elisiva poderia ser identificada.
Medidas antielisivas não devem ser aplicadas a países que possuem carga tributária
comparável [equivalente] àquela do país de residência do contribuinte. 255
(Tradução
livre)
Constatamos a partir da leitura do trecho acima que, até 2003, a OCDE considerava o
regime de transparência fiscal internacional compatível com os tratados apenas na medida em
que fossem preenchidos dois requisitos: (i) preservação das atividades empresariais realizadas
de maneira real e efetiva (transactional approach); e (ii) inaplicabilidade do regime em
relação aos países que possuem nível de tributação comparável ao país da residência da
sociedade investidora (jurisdictional approach). Deve-se lembrar, ainda, que em nenhuma
hipótese a aplicação do regime de transparência fiscal poderia ensejar a dupla tributação, pois,
caso o fizesse, estaria em risco o propósito central almejado pelos tratados.
254
Conforme o comentário 24 do artigo 1º da convenção modelo da OCDE. 255
OECD. Model Tax Convention on Income and on Capital: Condensed Version. Paris, 1998, p. 54-55. No
original: “The majority of Member countries accept counteracting measures as a necessary means of maintaining
equity and neutrality of national tax laws in an international environment characterized by very different tax
burdens, but believe that such measures should be used only for this purpose. It would be contrary to the general
principles underlying the Model Convention and to the spirit of tax treaties in general if counteracting measures
were to be extended to activities such as production, normal rendering of services or trading of companies
engaged in real industrial or commercial activity, when they are clearly related to the economic environment of
the country where they are resident in a situation where these activities are carried out in such a way that no tax
avoidance could be suspected. Counteracting measures should not be applied to countries in which taxation is
comparable to that of the country of residence of the taxpayer.”
196
Em 2003, no entanto, a OCDE mudou o seu posicionamento. A organização passou a
expressar o entendimento de que o regime de transparência fiscal internacional é compatível
com a convenção modelo, em especial com o parágrafo 1º do artigo 7º (lucros) e o parágrafo
5º do artigo 10 (dividendos), a despeito das particularidades que ele poderia assumir em cada
país, destacando a desnecessidade de haver cláusula nos tratados que autorizasse a sua
previsão na legislação interna dos Estados contratantes. Confira-se, neste sentido, o
comentário 23 ao artigo 1º da convenção modelo feito pela OCDE em 2003 (comentário
mantido e de igual numeração na edição dos comentários de 2010) 256
:
Sustenta-se, por vezes, baseando-se em certas interpretações de dispositivos da
convenção tais como o parágrafo 1º do artigo 7º e o parágrafo 5º do artigo 10, que
essa característica comum da legislação de transparência fiscal internacional (CFC)
entrava em conflito com esses dispositivos. Em virtude das razões explicadas no
comentário 10.1. do artigo 7º e no comentário 37 do artigo 10, tais interpretações
não estão de acordo com o texto dos dispositivos. Elas tampouco resistem a uma
leitura dos dispositivos nos seus respectivos contextos específicos. Assim, embora
alguns países tenham achado melhor deixar expressamente consignado, nas suas
convenções, que a legislação de transparência fiscal internacional não é conflitante
com a convenção, esta ressalva não é necessária. É reconhecido que a legislação de
transparência fiscal internacional estruturada dessa forma não é contrária às
disposições da convenção.257
(Tradução livre)
Em relação à compatibilidade do regime com o parágrafo 1º do artigo 7º, a OCDE
reitera, logo nos seus primeiros comentários ao parágrafo 1º do artigo 7º da convenção
modelo, a regra de reconhecimento de competência fiscal exclusiva do Estado de residência
da sociedade produtora dos rendimentos. Salvo nas hipóteses de existência de estabelecimento
permanente, na forma apontada anteriormente, o Estado de residência do sócio da fonte
produtora dos rendimentos não pode tributar os lucros ali auferidos antes do seu pagamento,
ou qualquer outra forma de disponibilização, na forma de dividendos. Este entendimento leva
ao afastamento da “teoria do órgão” que, de acordo com Ottmar Bühler, foi consagrada por
diversos países europeus nas primeiras décadas do século XX e consistia, fundamentalmente,
na visão do grupo societário como uma unidade através da consolidação dos ganhos e das
256
Este entendimento foi mantido pela OCDE nas publicações posteriores dos seus comentários à convenção
modelo de modo que, na última edição de 2010, o seu entendimento permanece o mesmo de 2003. 257
OECD. Model Tax Convention on Income and on Capital: Condensed Version. Paris, 2003. No original: “It
has sometimes been argued, based on a certain interpretation of provisions of the Convention such as paragraph
1 of Article 7 and paragraph 5 of Article 10, that this common feature of controlled foreign companies legislation
conflicted with these provisions. For the reasons explained in paragraphs 10.1 of the Commentary on Article 7
and 37 of the Commentary on Article 10, that interpretation does not accord with the text of the provisions. It
also does not hold when these provisions are read in their context. Thus, whilst some countries have felt it useful
to expressly clarify, in their conventions, that controlled foreign companies legislation did not conflict with the
Convention, such clarification is not necessary. It is recognized that controlled foreign companies legislation
structured in this way is not contrary to the provisions of the Convention.”
197
perdas do grupo na pessoa da controlada, em prol do princípio da separação das diversas
entidades distintas que compõem o grupo societário258
.
Entretanto, no comentário 10.1 ao referido artigo (comentário 14 na edição de 2010), a
OCDE manifesta o entendimento de que o parágrafo primeiro não limita o direito de o Estado
contratante tributar as pessoas jurídicas nele residentes, ainda que a base de cálculo do
imposto seja apurada com base na participação da empresa sobre os lucros auferidos por suas
subsidiárias residentes no outro Estado contratante. Em outras palavras, apesar de o critério de
mensuração da base de cálculo ter como referência os lucros auferidos no exterior, a OCDE
permite que os países tributem a renda produzida localmente pela sociedade controladora que
está sujeita à sua jurisdição, sem que se possa falar em qualquer incompatibilidade com a
convenção modelo.
Muitos autores se opõem a esta visão e defendem que o parágrafo 1º do artigo 7º não
admite tal mecanismo como forma de tributação já que isso seria contra o espírito da regra de
reconhecimento de competência tributária exclusiva contida no referido dispositivo259
. Tulio
Rosembuj defende que o regime vai de encontro ao parágrafo 1º do artigo 7º dos tratados na
medida em que ele desnatura a “cláusula antiórgão” representada pelo referido dispositivo ao
equiparar a subsidiária dotada de personalidade jurídica (controlada ou coligada) a um
estabelecimento permanente da sociedade matriz (filial ou sucursal), afastando-se a sua
personalidade jurídica – através da teoria da transparência – para atingir os seus lucros260
.
Quanto às repercussões da adoção do regime de transparência fiscal internacional
frente ao artigo 10 (dividendos) da convenção modelo, a OCDE reconhece, no comentário 38
ao referido artigo (comentário de igual numeração na edição de 2010), que a aplicação do
regime por países que adotam o fictive dividend approach – segundo o qual o que se tributa
não são os lucros das controladas e coligadas, mas sim os dividendos, ainda que fictamente
distribuídos – enseja dúvidas quanto à qualificação do rendimento tributado – se dividendo
sujeito ao artigo 10 ou “outros rendimentos” sujeito ao artigo 21 – colocando em xeque a sua
compatibilidade com o referido dispositivo. Isso porque, para que ele fosse compatível com o
artigo 10, o rendimento teria que ser pago ou disponibilizado de qualquer outra forma ao
sócio da fonte produtora na forma de dividendo uma vez que o dispositivo em discussão faz
258
BÜHLER, Ottmar. Princípios de derecho internacional tributário, trad. esp., Madrid, 1968, p. 133 apud
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 379. 259
Entre eles: XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.
383. 260
ROSEMBUJ, Tulio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: Editora El Fisco, 2001, p. 180-181.
198
referência expressa a “dividendos pagos”. Por esta razão, não é possível, considerar que
dividendo fictamente distribuído seja qualificado no âmbito do artigo 10 o que,
consequentemente, impede que os dois países exerçam concorrencialmente o seu poder de
tributar a mesma renda.
Apesar disso, a OCDE não vê qualquer incompatibilidade entre o regime de
transparência fiscal internacional e o parágrafo 5º do artigo 10 uma vez que o mesmo trata não
do imposto cobrado pelo Estado de residência do investidor sobre o dividendo fictamente
distribuído, mas sim sobre o rendimento, cobrado na fonte pelo Estado de residência da fonte
produtora (imposto de renda retido na fonte), o que excluiria, em princípio, questionamentos
quanto à adequação do regime de transparência com o referido dispositivo261
.
Interessante notar que o comentário 26, ao qual nos referimos anteriormente, foi
mantido na edição de 2003 e nas edições posteriores, porém sutilmente atenuado, de modo
que ele não mais prevê a recomendação de que o regime de transparência fiscal internacional
deixe de ser aplicável sobre as rendas ativas discriminadas nas versões anteriores. O
comentário manteve, no entanto, a recomendação de que o regime deve ser aplicado apenas
para a manutenção da igualdade e da neutralidade dos ordenamentos jurídicos tributários em
um mundo caracterizado por níveis distintos de cargas tributárias, não devendo ele ser
aplicado, portanto, em relação aos países com carga tributária comparável ou equivalente.
Com isso, a OCDE reconheceu ser mais relevante a adoção do jurisdictional approach.
Em breve resumo, pode-se dizer que o regime de transparência fiscal internacional
seria incompatível com o parágrafo 1º do artigo 7º, que trata de lucros das empresas, e com o
artigo 10, que trata de dividendos. No entanto, a OCDE tinha o interesse de viabilizar o uso de
medidas antielisivas como forma de proteção unilateral da arrecadação nacional dos seus
países membros, em sua maioria desenvolvidos e com elevada arrecadação tributária,
preocupados em legitimar o uso de tais instrumentos de proteção. O problema é que a
celebração de tratados destinados a evitar a dupla tributação, inspirados na convenção modelo
da OCDE, precedeu à adoção das regras de transparência fiscal internacional de modo que, no
momento em que tais regras começaram a ser adotadas em escala global, muitos tratados já
haviam sido celebrados. A solução vislumbrada foi a defesa, pela própria OCDE, da
compatibilidade dos tratados com os mecanismos de proteção das bases imponíveis nacionais
261
Veja-se, neste sentido, o comentário 37 dos comentários à convenção modelo da edição de 2003 com igual
numeração na edição de 2010.
199
– dentre os quais, o regime de transparência fiscal internacional – com o nítido intuito de
legitimar a sua adoção pelos países, em especial, os economicamente mais prósperos.
Por esta razão, a organização passou a defender a compatibilidade do regime com a
convenção modelo da OCDE, através, conforme demonstramos, da tributação do acréscimo
patrimonial dos residentes calculados com base em lucros auferidos por subsidiárias
estrangeiras que poderiam ser qualificados como “outros rendimentos” no âmbito do artigo
21. Apesar disso, continuam valendo as recomendações da OCDE no sentido de que o
desenho de tais normas antielisivas deve levar à sua aplicação com a finalidade exclusiva de
coibir abusos cometidos, em especial em relação aos residentes em paraísos fiscais ou que se
aproveitem de regimes fiscais privilegiados, o que indica que regimes, com desenho mais
amplo e sem caráter antiabusivo, podem incorrer em afronta à convenção modelo262
.
4.4.2. A compatibilidade do regime brasileiro de tributação de lucros auferidos
no exterior com os tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla
tributação
No Brasil, a compatibilidade do regime de tributação de lucros auferidos no exterior
com os tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla tributação não é pacífica nem na
doutrina e tampouco na jurisprudência.
Na doutrina especializada, a primeira linha doutrinária apontada no início do presente
capítulo, composta pelos defensores de que o regime brasileiro é de transparência fiscal
internacional, entendem que o regime tributário brasileiro incide sobre lucros auferidos no
exterior de modo que o seu melhor enquadramento, nos tratados celebrados pelo Brasil,
inspirados pela convenção modelo da OCDE, seria no artigo 7º que dispõe justamente sobre
lucros das empresas. Esta linha defende que, em virtude de o referido dispositivo estabelecer
que somente o Estado de residência da sociedade produtora dos lucros tem jurisdição para
262
Klaus Vogel defende a existência de uma “cláusula antielisiva implícita” nos modelos de tratados destinados
a evitar a dupla tributação internacional da renda. A referida cláusula seria utilizada na medida em que os países
identificassem formas abusivas, sem propósito negocial ou mesmo fraudulenta de elisão fiscal internacional
através da sua legislação interna. No entanto, o autor faz a importante ressalva de que esta cláusula antielisiva
implícita não poderia dar ensejo à tributação, pelos países, de operações claramente não abusivas de elisão fiscal
internacional. Neste sentido, confiram-se detalhes: VOGEL, Klaus. Double tax treaties and their interpretation.
International tax & busineslawier, v. 4, 1986, p. 82-83.
200
tributá-los, o Estado de residência dos seus sócios não teria jurisdição para fazê-lo, haja vista
a cláusula de competência exclusiva dos tratados. É por esta razão que, para esta linha
doutrinária, o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior viola,
frontalmente, o parágrafo 1º do artigo 7º da convenção modelo da OCDE.
Esta linha afasta qualquer interpretação no sentido de que o regime recai sobre
dividendo uma vez que o acordo exige que ele tenha sido pago ou disponibilizado aos sócios
de qualquer outra forma, não sendo admissível que a lei interna dos países considere
disponibilizado, através de uma ficção legal, o que não está realmente disponível, pois, caso
assim fosse feito, o legislador nacional estaria afrontando o artigo 10 da convenção modelo263
.
Os defensores da segunda linha, composta por críticos de que o regime brasileiro
corresponda ao regime de transparência fiscal internacional, se posicionam no sentido de que
o enquadramento mais adequado para o objeto do regime jurídico brasileiro é o de
rendimentos previstos no artigo 21 da convenção modelo da OCDE. Isso porque, segundo esta
linha, o regime brasileiro não desconsidera a pessoa jurídica residente no exterior e alcança os
lucros por ela auferidos para tributá-los na pessoa da sua sócia. O regime determina a
tributação da mutação patrimonial positiva sofrida pela pessoa jurídica do sócio residente em
seu território.
Há, no entanto, muitos defensores da ideia de que o que se tributa são dividendos
fictamente disponibilizados e que, portanto, o seu enquadramento mais adequado seria no
artigo 10, não obstante as críticas que possam ser tecidas a tal entendimento. Conforme será
visto adiante, esta linha de entendimento se faz presente nos julgados de órgãos
administrativos.
A questão ainda está longe de ser pacificada na jurisprudência. Na esfera judicial, até o
presente momento, a questão ainda não foi enfrentada pelos tribunais superiores de modo que
ainda não existem decisões definitivas quanto ao seu mérito. Na esfera administrativa, o
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) – órgão recursal de segunda instância
do contencioso administrativo federal – vem consolidando o seu entendimento ao apreciar
alguns poucos casos em distintas ocasiões.
263
Sobre a questão dos dividendos, veja-se, em especial: MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das
Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 150-152; SCHOUERI, Luis Eduardo.
Anotações sobre temas de direito tributário internacional. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de; ZILVETI,
Fernando Aurelio; MOSQUEIRA, Roberto Quiroga (Coord.). Tributação internacional e dos mercados
financeiros e de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005.
201
Embora a maior parte dos casos apreciados pelo CARF não tenha transitado em
julgado na esfera administrativa até o presente momento, analisaremos a linha de raciocínio
da referida corte administrativa em relação a três casos considerados de fundamental
importância até o presente momento. Estes casos foram escolhidos por terem sido grandes
marcos no entendimento do órgão, até o presente momento, e por demonstrarem que, muito
embora o entendimento da referida corte pareça estar convergindo para determinada direção,
o tema ainda está longe de ser pacificado na esfera administrativa.
O primeiro deles é o “caso Refratec” 264
no qual se discutiu a tributação pelo fisco
brasileiro de lucros acumulados em pessoa jurídica controlada no exterior, residente em
Portugal (Ilha da Madeira) de 1996 a 2001, supostamente disponibilizados quando da
alienação da participação societária detida pela pessoa jurídica controladora residente no
Brasil, e de lucros auferidos por sociedade controlada residente na Espanha (Barcelona) nos
anos de 2001 e 2002. Nos dois casos, o Brasil celebrou tratado para evitar a dupla tributação,
com disposição expressa, no artigo 7º, de regra de reconhecimento de competência tributária
exclusiva do país onde reside a fonte produtora dos rendimentos, afastando a soberania fiscal
do país de residência dos seus sócios para tributar os lucros.
Quanto ao primeiro período, a discussão central foi se a alienação de participação
societária configurava, sob a vigência da Lei nº 9.532/97, hipótese de disponibilização
jurídica ou econômica dos lucros acumulados em controlada residente em Portugal.
Sustentou-se que a referida lei teria revogado tacitamente a hipótese de equiparação à
disponibilização prevista na IN SRF nº 38/1996 (art. 2º, §9º), segundo a qual a alienação de
participação societária implicaria a disponibilização de lucros acumulados, ao não tê-la
previsto expressamente no seu texto legal. Esta foi a linha seguida no voto da Conselheira
Karem Dias. Entretanto, prevaleceu o entendimento de que independentemente do fato de a
Lei nº 9.532/97 não ter estabelecido a cessão de participação societária como hipótese de
disponibilização, a alienação do investimento, por si só, já configurava disponibilização real,
sendo desnecessária a previsão legal neste sentido.
Em relação ao segundo período autuado, o ponto da discussão que mais nos interessa
foi a análise feita pelos conselheiros quanto à adequação do tratado celebrado entre Brasil e
Espanha ao regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior. Sobre este tema,
264
BRASIL. Ministério da Fazenda. Acórdão nº 108-08.765, proferido pela antiga oitava câmara do primeiro
conselho de contribuintes na sessão de 23 de março de 2006, Conselheiro-relator: José Henrique Longo, PAF nº
13603.002794/2003-50.
202
prevaleceu o entendimento não unânime segundo o qual, quando os artigos 25 e 26 da Lei nº
9.249/95 instituíram o regime de tributação em bases universais da pessoa jurídica, o que se
tributava era os lucros auferidos no exterior, de modo que o regime brasileiro não poderia
alcançá-los devido à aplicabilidade do artigo 7º do tratado celebrado pelo Brasil com a
Espanha. No entanto, com a vigência da Lei nº 9.532/97, os conselheiros entenderam que o
que se passou a tributar foi os dividendos creditados ou pagos.
Na sequência da evolução legislativa, mesmo com a vigência do artigo 74 da MP nº
2.158-35/2001, a maioria dos conselheiros manteve o mesmo posicionamento uma vez que
prevaleceu o entendimento de que o referido dispositivo legal apenas previu que os
rendimentos passariam a ser considerados fictamente disponibilizados265
, mas que não
deixariam de ter natureza de “dividendo”. Deste modo, concluiu-se que o dispositivo dos
tratados aplicável ao regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior seria o
artigo 10, havendo, portanto, compatibilidade do regime com os tratados celebrados pelo
Brasil que seguem o padrão da OCDE, salvo se houver previsão de isenção ou regra
excepcional.
O segundo julgado é o “caso Eagle 1” 266
no qual a discussão central era se os lucros
acumulados nos anos de 2000 e 2001 pelas sociedades controladas residentes na Espanha da
empresa Eagle, residente no Brasil, deveriam ou não ser submetidas à tributação no Brasil,
nos moldes previstos pelo parágrafo único do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001.
O voto da Conselheira-relatora Sandra Maria Faroni, que foi seguido pela maioria dos
conselheiros, estabeleceu um novo marco no entendimento do CARF sobre o tema. Em um
primeiro momento, ao analisar o regime jurídico de tributação em bases universais sob a
vigência da Lei nº 9.532/97, a conselheira demonstrou o mesmo entendimento da decisão do
caso Refratec no sentido de que a tributação incidia sobre dividendos disponibilizados nas
formas previstas pela referida lei.
265
Quanto à validade jurídica do critério de disponibilização ficta trazido pelo artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001,
o Conselheiro José Henrique Longo fez até a ressalva de que não caberia a um órgão julgador pertencente ao
Poder Executivo negar a aplicação de lei validamente introduzida no ordenamento jurídico e vigente, pois tal
tarefa é de competência exclusiva do Poder Judiciário (vide súmula nº 2 do CARF). Concordando ou não com o
critério, esta seria a interpretação que, segundo o conselheiro, deveria ser dada ao regime brasileiro. Veja-se,
neste sentido, o seguinte trecho do seu voto: “Convém observar que não há espaço para o julgador administrativo
tecer considerações acerca da inconstitucionalidade de lei nem para afastar sua aplicação, de maneira que há de
ser respeitada neste âmbito a ficção mencionada com os seus reflexos de caráter tributário.” 266
BRASIL. Ministério da Fazenda. Acórdão nº 101-95.102, proferido pela antiga primeira câmara do primeiro
conselho de contribuintes na sessão de 19 de outubro de 2006, Conselheira-relatora: Sandra Maria Faroni, PAF
nº 16327.000112/2005-31.
203
A conselheira discordou, no entanto, do entendimento firmado naquele caso de que o
artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 só teria estabelecido que os dividendos passariam a ser
fictamente disponibilizados, mas que isso não teria alterado a natureza dos rendimentos
tributados, qual seja, de “dividendo”. A conselheira-relatora entendeu que, com a vigência
deste último dispositivo normativo, a tributação deixou de recair sobre dividendos e passou a
incidir sobre lucros auferidos no exterior. Isso porque, sob a égide da Lei nº 9.532/97, a lei
submetia os lucros à sua real disponibilização aos sócios, na forma de dividendos, para que
houvesse incidência tributária, enquanto que agora, com a vigência da MP, a incidência
tributária não depende mais da sua disponibilização o que desqualifica a natureza do
rendimento como sendo de dividendo, tornando-o lucro em sua essência.
Tal conclusão se reforça, segundo a conselheira, ao se observar que a norma capta
valor maior do que aquele que seria pago na forma de dividendos aos acionistas da empresa,
ou seja, a base de cálculo alcança a integralidade do valor dos lucros, não admitindo que
exclusões decorrentes de destinações específicas dadas a parcelas do lucro em virtude da
legislação societária do país da controlada ou coligada sejam feitas para fins da apuração da
base de cálculo do imposto brasileiro, o que certamente era admitido quando se permitia o
diferimento da tributação nacional. Não seria possível, portanto, considerar que lucros
disponibilizados fictamente se enquadrassem no conceito de dividendo. Veja-se, neste
sentido, importante trecho do voto da referida conselheira:
Assim, não considero possível utilizar o n° 2 do Artigo 3 da Convenção para atribuir
aos lucros apurados em balanço, antes de qualquer dedução, o significado de
dividendos. Até porque não me parece que pela legislação da Espanha o significado
do termo dividendos alcance os lucros apurados em balanço antes de sua
distribuição (em atenção ao princípio da reciprocidade). A ficção estabelecida pela
MP implicaria esvaziamento da convenção mediante alteração posterior de
"definição". Nessa linha de raciocínio, concluo que a tributação com fulcro no art.
74 da MP n° 2.158-35/2001 incide sobre o lucro das empresas, e não sobre os
dividendos. Nessa circunstância, tendo em vista o art. 7 da Convenção, não pode
haver tributação no Brasil dos lucros auferidos por intermédio da Jalua, enquanto
não disponibilizados.
Com base neste entendimento, conforme demonstrado no trecho acima, a conselheira
votou no sentido de que o regime brasileiro é incompatível com o artigo 7º do tratado
celebrado entre Brasil e Espanha, não podendo o Brasil exercer a sua competência fiscal sobre
os lucros auferidos no exterior por controlada ou coligada de pessoa jurídica residente.
Apenas a título ilustrativo, a conselheira fez um esforço argumentativo para saber quais
seriam as consequências jurídicas decorrentes da disciplina do tratado caso os rendimentos
204
fossem considerados como “dividendos fictos”. Ao enfrentar a questão, a conselheira concluiu
que, mesmo assim, não haveria qualquer incidência tributária já que o referido tratado possui
cláusula especial (art. 23, § 4º) que garante isenção aos dividendos que fossem tributados pelo
Estado espanhol.
Por fim, o terceiro julgado analisado é o “caso Eagle 2” 267
em que, não obstante a
discussão sobre a natureza dos rendimentos alcançados pelo regime brasileiro de tributação
em bases universais da pessoa jurídica se faça presente, a discussão central diz respeito ao
regime tributário aplicável aos resultados auferidos por controladas indiretas268
, residentes no
exterior. A fiscalização autuou a Eagle em virtude da não adição dos lucros apurados no
exterior, no ano de 2002, pelas empresas Monthiers, residente no Uruguai, e CCBA, residente
na Argentina, à sua base de cálculo do IRPJ e da CSLL. As duas empresas apontadas possuem
participação societária detida pela empresa Jalua Spain, residente na Espanha e controlada
direta da Eagle, de modo que esta última detém o controle indireto das empresas apontadas. A
autuação também envolve a questão dos ganhos decorrentes de variação cambial não
incluídos na base de cálculo da controladora brasileira que, por não dizer respeito diretamente
à questão dos tratados, não será tratada em maiores detalhes neste trabalho.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) alegou que, por força do tratado
Brasil-Espanha e do regime especial das Ilhas Canárias às ETVEs (Entidads de Tenencias de
Valores Estranjeros), os lucros das controladas indiretas não estavam sendo tributados nem
no Brasil nem na Espanha. Em vista da alegação, houve a conversão do julgamento em
diligência para que a RFB pudesse investigar, junto às autoridades fiscais espanholas, se as
controladas indiretas de fato estavam sujeitas à tributação regular ou se estavam se
beneficiando de regime fiscal privilegiado. Em resposta, as autoridades fiscais espanholas
informaram que os rendimentos decorrentes da participação societária da Jalua Spain nas duas
outras empresas não gozavam de tratamento tributário favorecido, sendo eles submetidos à
tributação regular que incidia sobre as demais empresas residentes na Espanha.
A partir deste ponto, a grande questão que passou a ser debatida foi se os lucros
apurados pelas controladas indiretas poderiam ser imputados diretamente à base de cálculo do
IRPJ e da CSLL da controladora indireta residente no Brasil, através da avaliação do seu
267
BRASIL. Ministério da Fazenda. Acórdão nº 101-97.070, proferido pela antiga primeira câmara do primeiro
conselho de contribuintes na sessão de 17 de dezembro de 2008, Conselheira-relatora Sandra Maria Faroni, PAF
nº 16327.000530/2005-28. 268
Entende-se, por controlada indireta, como sendo aquela na qual a controladora detém controle apenas
indiretamente, ou seja, mediante uma sociedade controlada direta que, por sua vez, detenha participação
societária na primeira (controlada indireta).
205
patrimônio pelo MEP, ou se a consolidação e a tributação dos resultados das controladas
indiretas deveriam ser feitas forçosamente através da controlada direta (Jalua Spain). As
consequências jurídicas da escolha de cada uma dessas alternativas são nítidas; no primeiro
caso, não são aplicáveis as disposições do Tratado Brasil-Espanha que impedem a tributação
dos lucros no país de residência dos sócios da controlada direta antes da sua efetiva
disponibilização, enquanto que, no segundo caso, as disposições da convenção são
plenamente aplicáveis, impedindo que o Brasil exerça a sua competência tributária até que os
lucros fossem disponibilizados, na linha de entendimento já exposta no “caso Eagle 1”
segundo a qual os rendimentos tributados a partir da vigência do artigo 74 da MP nº 2.158-
35/2001 teriam natureza de “lucro”.
A conselheira Sandra Maria Faroni manifestou o entendimento de que a imputação
não poderia ser direta, devendo os referidos lucros oriundos das controladas indiretas serem
consolidados na controlada direta, detentora do seu capital social, o que resultaria na
aplicação do tratado e, portanto, na impossibilidade de o Brasil tributar tais rendimentos até o
momento da sua disponibilização na forma de dividendos269
.
Apesar de plausível o argumento da conselheira, não foi esse o entendimento
majoritário da câmara julgadora. O conselheiro Valmir Sandri, que proferiu o voto
“vencedor” seguido pela maioria dos conselheiros no presente caso, concordou com a
conselheira Sandra Maria Faroni no tocante ao argumento de que o regime tributário após a
vigência do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 passou a recair sobre lucros e que, por esta
razão, o dispositivo dos tratados que rege a sua aplicação é o artigo 7º que é incompatível com
o regime brasileiro.
Ele discordou, no entanto, da ideia de que somente podem ser tributados, no Brasil, os
resultados das controladas indiretas através da sua consolidação nas controladas diretas.
Segundo o conselheiro, os resultados das controladas indiretas podem ser diretamente
tributados na controladora indireta brasileira (Eagle) sem a sua passagem pela controlada
direta, essencialmente, porque a legislação fiscal270
não restringiu a sua incidência tão
somente às sociedades controladas diretas, tendo adotado a expressão “controlada” de
maneira irrestrita. Ao analisar o conceito que a legislação comercial atribuiu a “sociedade
controlada”, o conselheiro concluiu que os conceitos de “sociedade controlada”, previstos no
269
É interessante notar que, mesmo crente de que os referidos rendimentos possuem natureza de lucro, a
conselheira se preocupou em demonstrar que, ainda que fossem considerados dividendos, não seriam tributados
por força da regra de isenção prevista no artigo 23, §4º do Tratado Brasil-Espanha. 270
Em especial o caput do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001.
206
§2º do artigo 243 da Lei nº 6.404/76 e no inciso II do artigo 1.098 do Código Civil, são
amplos e incluem, expressamente, as hipóteses de controle indireto.
Com base nesse entendimento, o conselheiro concluiu que os lucros auferidos no
exterior por controladas indiretas poderiam ser imputados diretamente à base de cálculo do
IRPJ e da CSLL da controladora residente no Brasil (Eagle) por meio do seu controle
individualizado feito através do MEP. A consequência deste raciocínio é o reconhecimento de
que as disposições do Tratado Brasil-Espanha não são aplicáveis aos lucros auferidos pelas
sociedades controladas indiretas residentes no Uruguai e na Argentina.
Registre-se, entretanto, que esta visão foi fortemente questionada por outros
conselheiros, tais como José Sérgio Gomes que questionou a premissa de que os rendimentos
sobre os quais incide o artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 tenham natureza de lucro, ao
entender que a sua real natureza era de dividendo na linha do entendimento que prevaleceu no
Caso Refratec.
Os julgados mais recentes do CARF sobre o tema da adequação do regime brasileiro
de tributação de lucros auferidos no exterior com os tratados celebrados pelo Brasil não revela
uma alteração significativa do posicionamento que a referida corte administrativa vinha
firmando através dos casos analisados acima. De fato, optamos por analisar os três casos
acima, não apenas porque a tarefa de analisar todos os casos em que CARF se pronunciou
sobre o tema seria inviável – o que já justificaria, por si só o recorte metodológico –, como
também porque esses foram os casos mais importantes analisados pela referida corte
administrativa, até o presente momento, para a formação do seu entendimento sobre o tema.
Em relação ao entendimento de que cabe às pessoas jurídicas consolidar e
individualizar os lucros e tributos das suas controladas indiretas, devemos tecer algumas
ponderações. De fato, há um conflito entre algumas disposições da IN SRF nº 213/2002 com
disposições legais que regulam a matéria. Por um lado, o artigo 1º, §6º e o artigo 14, §6º, da
IN SRF nº 213/2002 preveem a consolidação dos resultados das controladas indiretas nas
controladas diretas para efeito de determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL da
controladora brasileira. Por outro lado, o caput do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 e o
artigo 16, inciso I, da Lei nº 9.430/96 apontam para o controle e a tributação individualizada
de cada sociedade controlada, sem delimitar a extensão do conceito que, conforme vimos,
leva à interpretação de que ele se aplica tanto às diretas quanto às indiretas. Em outros
207
dispositivos, a própria instrução normativa mencionada parece apontar no mesmo sentido dos
dispositivos legais mencionados271
.
Parece haver, portanto, uma certa contradição nas disposições normativas que se
aplicam à presente temática. Enquanto algumas disposições da IN SRF nº 213/2002 pendem
mais para a consolidação dos resultados das controladas indiretas no lucro da controlada
direta, o método de tributação da MP nº 2.158-35/2001 e da Lei nº 9.430/96 pende mais para a
adição individualizada ou isolada do lucro e exclusão dos tributos pagos de cada controlada
indireta diretamente ao lucro da controladora indireta no Brasil272
.
Ao analisar os casos, podem ser tecidas duas breves conclusões. Primeiramente,
considerando tão somente o universo de casos analisados, embora pareça haver uma tendência
de se conceber que os rendimentos alcançados pela incidência do artigo 74 da MP nº 2.158-
35/2001 têm natureza de lucro, a jurisprudência administrativa está longe de ser pacificada
haja vista a existência de defensores da linha de que a norma incide sobre dividendos fictos.
Assim, é difícil dizer, com certeza, qual será o entendimento das cortes administrativas sobre
o correto enquadramento do regime brasileiro; se no artigo 7º dos tratados celebrados pelo
Brasil para evitar a dupla tributação ou no artigo 10. A segunda conclusão é no sentido de que
a jurisprudência caminhou, até o presente momento, no sentido de excluir do campo de
incidência das disposições dos tratados os resultados auferidos pelas controladas indiretas.
4.5. Conclusões da análise jurídica crítica do regime brasileiro de tributação de
lucros auferidos no exterior
Desde o princípio, os debates sobre a validade jurídica do regime brasileiro de lucros
auferidos no exterior foi caracterizado por uma forte oposição entre juristas que se
organizaram em, fundamentalmente, duas linhas de pensamento que partem de pressupostos
diametralmente opostos.
A ausência de debates mais aprofundados e técnicos sobre o regime brasileiro quando
da sua criação criou dúvidas quanto à sua real natureza, ou seja, se seria ele o da transparência
271
Veja-se o seu artigo 1º, §5º. 272
Cf. YAMASHITA, Douglas. Controladas indiretas no exterior: controvérsias de seu regime tributário. Revista
Dialética de Direito Tributário (RDDT). São Paulo: Dialética, n. 179, 2010, p. 30-34.
208
fiscal internacional ou não. No final das contas, as grandes questões que estão por trás do
questionamento quanto à real natureza do regime brasileiro são: Qual é o objeto de tributação
do regime brasileiro? O lucro das controladas e coligadas? Ou a variação patrimonial sofrida
pela controladora brasileira? Até o momento, estas perguntas permanecem sem resposta
definitiva.
As duas linhas doutrinárias se contrapõem, sobretudo, em relação às grandes questões
jurídicas ensejadas pelo regime brasileiro. Com efeito, no que nós chamamos de “primeiro
momento do debate sobre a validade jurídica do regime”, as duas visões se colocam
claramente contrapostas. Na ADI nº 2.588, a primeira linha defende a constitucionalidade do
regime enquanto que a segunda linha sustenta ser o regime inconstitucional.
Não obstante o debate patrocinado por meio da ADI 2.588 sobre o conceito
constitucional de renda ainda aguarde um posicionamento do Poder Judiciário, temos a forte
crença de que o debate da validade jurídica do regime brasileira de tributação de lucros
auferidos no exterior está em transformação e que ele deverá se fazer presente em novas
frentes de discussão. A principal delas diz respeito ao confrontamento dos efeitos econômicos
advindos do regime brasileiro com a Ordem Econômica Constitucional. Um indício desta
constatação talvez seja o reconhecimento de repercussão geral ao RE nº 611.586 pelo STF.
Neste sentido, ao confrontar os efeitos econômicos do regime brasileiro de tributação
de lucros auferidos no exterior – identificados em nossa pesquisa empírica – com a Ordem
Econômica Constitucional, restou comprovado que, em determinadas circunstâncias, o regime
brasileiro será inconstitucional por desincentivar a internacionalização produtiva. Em outras,
será constitucional.
Em relação ao juízo de adequação do regime brasileiro com os tratados celebrados
pelo Brasil para evitar a dupla tributação, vimos que a OCDE mudou de posicionamento ao
longo do tempo quanto à adequação do regime de transparência fiscal internacional com os
tratados de modo que, em seu último comentário à convenção modelo de tratados para evitar a
dupla tributação, restou claro que o regime não é incompatível com os tratados, sendo
desnecessária cláusula que o autorize, mas recomendou-se que o seu desenho fosse voltado
apenas a combater determinadas situações onde estivesse caracterizado o abuso.
No Brasil, as cortes judiciais ainda não se posicionaram sobre o tema, mas é certo que,
na esfera administrativa, a jurisprudência do CARF está longe de ser pacificada haja vista a
existência de defensores de linhas de entendimento diversas quanto ao dispositivo dos
209
tratados que se aplicaria quando da incidência do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001, muito
embora pareça haver uma tendência de se conceber que os rendimentos alcançados pela
incidência do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 têm natureza de lucro. A questão assume
complexidade ainda maior quando se analisa a questão das controladas indiretas, em relação
às quais as cortes administrativas não entenderam ser possível a aplicação da proteção
conferida pelos tratados.
210
5. CONCLUSÕES FINAIS
Nesta conclusão final, elencaremos, pontual e objetivamente, as conclusões a que
chegamos em cada um dos capítulos deste trabalho e, ao final, faremos as nossas breves
considerações finais pensando em uma agenda de pesquisa para a futura reforma legislativa
das regras brasileiras de tributação em bases universais das pessoas jurídicas, em especial, da
sua regra de antidiferimento.
1. Trajetória da evolução histórica do regime de transparência fiscal internacional
1.1. O regime de transparência fiscal internacional surgiu como uma reação unilateral dos
países contra a perda das suas bases arrecadatórias advinda de práticas de elisão fiscal
envolvendo paraísos fiscais e regimes fiscais privilegiados.
1.2. As práticas de elisão fiscal internacional são uma decorrência de um fenômeno maior – a
globalização – que levou ao surgimento de um mercado global todo interligado por redes
tecnológicas que permitiu mobilidade e livre fluxo de capitais ao redor do mundo.
1.3. A globalização transformou a concepção de Estado adotada até o início do século XX, de
Estado-nação para Estado-transnacional, o que ensejou uma nova orientação nas políticas
tributárias adotadas pelos países até então, sobretudo, diante da constatação de que as
políticas implementadas pelos Estados passaram a gerar reações de outros Estados
diretamente afetados neste ambiente global. Na medida em que o capital se tornou móvel,
aumentou a concorrência fiscal entre os países pela sua atração.
1.4. A primeira reação unilateral partiu da iniciativa dos EUA, com a inserção, em 1913, do
que viriam as ser as suas CFC rules (subpart f) em 1962 (regime de transparência fiscal
internacional norte-americano).
1.5. O debate legislativo norte-americano demonstra que houve um forte embate político no
Congresso norte-americano entre a Administração Kennedy, que desejava adotar uma
norma antidiferimento ampla visando promover, sobretudo, a neutralidade na exportação
de capitais, e o empresariado que era receoso quanto aos efeitos concorrenciais que o
regime da subpart f poderia causar à competição em mercados internacionais. O desenho
211
final do regime foi um reflexo deste embate político na medida em que a regra de
antidiferimento foi apenas parcialmente aplicada. Estas disputadas de interesse foram
claramente observadas até o começo dos anos 2000 quando o debate passou a se focar nas
check-the-box regulations.
1.6. O Congresso norte-americano, sensível aos interesses do empresariado, criou regimes
especiais que permitiam ora o diferimento ora a isenção completa das receitas de
exportação auferidas por subsidiárias estrangeiras de empresas norte-americanas como
forma de promoção das exportações nacionais. Tais regimes foram posteriormente
criticados, principalmente por países da União Europeia, por constituírem subsídios
proibidos às exportações norte-americanas, conforme disposto no Acordo GATT.
1.7. As estratégias de elisão fiscal internacional passaram a ser objeto de preocupação da
OCDE. A organização encabeçou uma luta contra a concorrência fiscal danosa,
especialmente nas duas últimas décadas do século XX. Reconhecendo que a coordenação
internacional seria um ideal difícil de ser alcançado, a organização defendeu a adoção de
medidas destinadas à defesa da arrecadação nacional dos seus países membros – em sua
maioria desenvolvidos (incluindo membros do G7) – frente à concorrência fiscal danosa
promovida por outros países. Dentre as medidas recomendadas, estão das CFC rules.
1.8. Depois do relatório de 1998, a OCDE foi fortemente criticada e o seu papel foi
consideravelmente alterado na medida em que passou a se focar na promoção da
transparência e na troca de informações entre jurisdições fiscais – através do Fórum
Global – e não na criação de critérios de discriminação de concorrência fiscal danosa.
Países em desenvolvimento ganharam maior representatividade no órgão, em especial, os
emergentes através da inserção do G20 na organização.
1.9. Apesar das críticas, a OCDE já havia legitimado o uso das CFC rules como medida de
proteção das bases imponíveis dos seus países membros, o que estimulou a sua adoção
por diversos países do mundo.
1.10. A Comunidade Econômica Europeia (atual União Europeia) se deparou com a
problemática da concorrência fiscal danosa patrocinada por países de tributação regular,
mas que possuíam regimes fiscais privilegiados para determinadas atividades e tipos de
rendimentos.
1.11. A solução europeia foi muito mais pautada na coordenação entre os países do que na
adoção de medidas unilaterais uma vez que instrumentos desprovidos de coação jurídica
possuem elevado enforcement político quando considerados no âmbito comunitário.
212
Assim, instrumentos como o código de conduta assumiram importância muito maior na
comunidade europeia do que a adoção das CFC rules. Estas últimas eram vistas como
uma potencial ameaça às liberdades estabelecidas no Tratado da Comunidade Europeia,
haja vista a sua jurisprudência recente, devendo elas ser usadas com diversas restrições
quando aplicadas a países membros e com menos restrições quando aplicadas aos países
não membros (terceiros).
1.12. A experiência internacional tem demonstrado que, na ausência de uma política de ação
coordenada, as medidas unilaterais de proteção das bases arrecadatórias têm sido
amplamente utilizadas, dentre elas, o regime de transparência fiscal internacional.
1.13. A evolução do tema da transparência fiscal internacional revela que a sua natureza é de
norma antielisiva especial de modo que a sua incidência está orientada para combater
formas abusivas de elisão fiscal internacional. É, portanto, uma norma antiabuso.
1.14. No plano internacional, o desenho do regime de transparência fiscal internacional está
geralmente orientado para combater o diferimento de determinados rendimentos passivos
(transactional approach) auferidos por subsidiárias em países de tributação favorecida ou
beneficiárias de regimes fiscais privilegiados (jurisdictional approach), sujeitas a um
percentual mínimo de participação societária por parte da pessoa jurídica investidora.
2. Trajetória da evolução normativa do regime de tributação de lucros auferidos no
exterior no direito brasileiro
2.1. No Brasil, duas razões motivaram a adoção de um regime de tributação da pessoa jurídica
em bases universais juntamente com uma regra de combate ao diferimento da tributação
nacional: (i) a nova conjuntura macroeconômica interna do Brasil pós-Real; e (ii) a
existência de uma orientação internacional recomendando o uso da transparência fiscal
internacional como forma de proteção da arrecadação tributária interna frente ao
fenômeno da competição tributária danosa.
2.2. O desenho normativo do regime brasileiro diferiu sensivelmente da prática internacional
e da própria recomendação do modelo da OCDE na medida em que a sua regra de
antidiferimento não discriminou o rendimento nem pela sua natureza (ativo ou passivo),
nem pela sua origem (regime fiscal favorecido ou não). Assim, a regra de antidiferimento
213
brasileira desconsidera tanto o transactional approach quanto o jurisdictional approach
geralmente adotados para definição do campo (seletivo) de aplicação do regime.
2.3. A regra de antidiferimento brasileira não possui natureza antielisiva na medida em que
ela não coíbe tão somente as práticas abusivas de elisão fiscal internacional.
2.4. No Brasil, não obstante as tentativas anteriores, o regime de tributação em bases
universais das pessoas jurídicas, vigente atualmente, foi introduzido no ordenamento
jurídico através dos artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95 o qual, não apenas previu a
possibilidade de tributação de lucros, ganhos de capital e rendimentos auferidos por
controladas e coligadas brasileiras no exterior em substituição ao regime territorial até
então vigente, como também se respaldou em uma norma de antidiferimento ampla.
2.5. A possível inadequação do regime inicialmente formulado pelos artigos 25 a 27 da Lei nº
9.249/95 representou um risco que precisava ser contornado no curto prazo, o que veio a
ocorrer através da publicação da IN SRF nº 38/1996 – ilegal por apresentar inovação
incompatível com a legislação vigente – e da Lei nº 9.532/97 que atribui “status legal” às
alterações introduzidas pela referida instrução normativa.
2.6. Posteriormente, com a alteração introduzida pela Lei Complementar nº 104/2001 no
artigo 43 do CTN, o Governo Federal entendeu estarem satisfeitas as condições jurídicas
necessárias para a previsão de uma regra de antidiferimento ampla e irrestrita. Tal
intenção veio a ser concretizada através do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 e com a IN
SRF nº 213/2002 que a regulamentou.
2.7. No Brasil, o objetivo que prevaleceu não foi apenas dissuadir condutas elisivas
envolvendo paraísos fiscais, o que poderia ser feito adotando-se o modelo consagrado
pela prática internacional com ganhos mais reduzidos de arrecadação, mas sim a
combinação de duas finalidades: (i) dissuasão; e (ii) ampliação da arrecadação tributária
federal (com ganhos mais generosos advindos da relativa amplitude da norma quando
comparada à prática internacional) para que políticas de natureza diversa fossem
concretizadas.
2.8. É notável o fato de que houve um aumento significativo da arrecadação tributária no
contexto pós-Real. Esta tendência foi motivada por diferentes fatores políticos e
econômicos; ora buscava-se amenizar a perda de arrecadação federal advinda de crises
econômicas, ora procurava-se arrecadar recursos necessários ao financiamento de
políticas específicas de governo. Em todas essas situações diversas, observamos que tanto
214
a criação de novas espécies tributárias quanto a majoração da alíquota das espécies já
existentes representavam estratégias com custo político muito elevado.
2.9. A alternativa política mais viável para aumentar a arrecadação tributária, no período
analisado, foi a instrumentalização das autoridades fiscais com medidas mais sofisticadas
de controle e fiscalização do contribuinte destinada, principalmente, ao combate às
práticas de elisão fiscal (nacional e internacional).
2.10. O debate político é pouco direcionado para a análise da adequação das alterações
tributárias à uma conjuntura econômica considerando-se uma política industrial ou de
desenvolvimento de empresas em mercados internacionais de longo prazo.
2.11. A articulação política de segmentos privados foi se aprimorando gradativamente após a
publicação da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 em virtude da importância crescente
da internacionalização produtiva para as empresas de capital nacional.
2.12. As entrevistas realizadas com ex-funcionários da RFB sobre as razões que teriam levado
o Brasil a ter um regime que diverge sensivelmente da experiência internacional revelam
que o Brasil não possuía longa experiência no debate sobre elisão fiscal e,
principalmente, em normas antielisivas especiais aplicáveis ao direito tributário
internacional quando o regime brasileiro foi inicialmente concebido. Ademais, uma regra
geral de antidiferimento foi a alternativa mais eficiente e menos custosa, para o Governo
Federal, do ponto de vista da arrecadação tributária.
2.13. É notável a ausência de debate entre fisco e contribuinte ao longo do processo de
evolução normativa da sistemática de tributação em bases universais de modo que o
regime atualmente em vigor não foi o resultado de um processo de construção em que
todos os grupos de interesse envolvidos tiveram direito à participação assegurado, mas
sim uma política tributária que surgiu no interior do Poder Executivo e que recebeu pouca
oposição política pelos grupos de interesse organizados no Congresso Nacional,
especialmente quando outras políticas pontuais – talvez de maior apelo popular, como foi
o caso do aumento do salário mínimo – estavam em jogo e dependiam de recursos para o
seu financiamento.
215
3. Os efeitos do regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior na
internacionalização produtiva das empresas de capital nacional
3.1. Há, fundamentalmente, dois tipos de internacionalização empresarial: (i)
internacionalização comercial, promovida através das exportações; e (i)
internacionalização produtiva, na qual empresas brasileiras internacionalizam fatores de
produção.
3.2. A literatura econômica aponta para três motivações centrais da internacionalização
produtiva: (i) o acesso a novos mercados; (ii) a busca por recursos materiais; e (iii) o
desejo de se alcançar padrões de maior eficiência econômica, através da busca pela
economia de escala pautada na redução do custo médio unitário de produção de
mercadorias.
3.3. Há diversas vantagens, do ponto de vista empresarial, advindas da internacionalização
produtiva. Operar em mercados externos fortalece, sobretudo, a posição competitiva da
empresa no seu mercado nacional. A internacionalização traz, portanto, ganhos de
competitividade na medida em que leva as empresas nacionais a aprenderem a competir
no mesmo nível das empresas mais eficientes do mundo.
3.4. Há diversas estratégias que são utilizadas pelas empresas para a sua inserção produtiva
em novos mercados, tais como: (i) a aquisição de empresas ou unidades industriais já
existentes no mercado-alvo e (ii) a realização de greenfield investments (investimentos
feitos para a constituição de subsidiárias em novos mercados “partindo-se do zero”).
3.5. Do ponto de vista do desenvolvimento nacional, não há um consenso, entre os críticos,
quanto ao fato de a internacionalização produtiva favorecer o desenvolvimento do país
exportador de capitais, sendo claro que as principais críticas dizem respeito à criação de
empregos no exterior, desincentivo às exportações, diminuição dos investimentos
internos e perda de arrecadação tributária.
3.6. O Brasil está passando por um processo de internacionalização produtiva que se acentuou
muito na última década, liderado por empresas de capital nacional que atuam em
mercados de commodities agrícolas e minerais e por algumas poucas empresas de outros
setores. Mesmo assim, o Brasil ainda é um país que mais importa do que exporta capitais.
3.7. Não há, nas políticas industriais brasileiras formuladas desde o início da Nova República,
uma postura clara do Governo Federal quanto a apoiar ou não a internacionalização
216
produtiva. O posicionamento governamental se restringe à internacionalização comercial,
em relação à qual há uma postura favorável ao estímulo das exportações brasileiras.
Embora a internacionalização produtiva não conste das políticas industriais do Governo
Federal, ela vem sendo estimulada através do BNDES, ainda que em um estágio pouco
desenvolvido. Há, certamente, muito espaço para a ampliação da política de
financiamento da internacionalização produtiva de empresas de capital nacional por parte
do BNDES.
3.8. O Governo Federal não apenas pode como deve estabelecer condições que assegurem que
a internacionalização produtiva traga benefícios para o país em termos de
desenvolvimento social e econômico – como é o caso da exigência de que haja
incremento nas exportações nacionais ou de repatriamento de lucros em determinado
período de tempo – sem os quais não há aprovação da linha de financiamento, conforme
o BNDES vem fazendo.
3.9. As entrevistas com empresas de capital nacional revelaram que, embora o regime
brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior não representa um fator de
desincentivo capaz de tornar a internacionalização produtiva custosa demais frente aos
seus respectivos benefícios a ponto de inviabilizá-la, ele gera um ônus concorrencial para
as controlada e coligadas de empresas nacionais frente aos seus competidores em
mercados internacionais.
3.10. O principal ônus ensejado pelo regime brasileiro é a vedação ao diferimento da tributação
nacional, ao passo em que as concorrentes das subsidiárias brasileiras podem contar, ou
com tributação inferior no país de residência da pessoa investidora, ou com a
possibilidade de diferimento até o momento em que os lucros são repatriados.
3.11. As entrevistas apontam que outros problemas decorrentes do regime brasileiro, tais como
a não homologação das ajudas de Estado concedidas no exterior, a insegurança jurídica
quanto à interpretação que será dada ao final pela Administração Tributária (e cortes
administrativas) aos tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla tributação, a
impossibilidade de compensar prejuízos incorridos no exterior, entre outros problemas
apontados neste trabalho, reforçam a tese de que o regime brasileiro afeta a capacidade
competitiva das controladas e coligadas de empresas brasileiras no exterior,
representando, para elas, um ônus que as suas concorrentes não incorrem necessariamente
ao competirem fora do país da sua investidora.
217
3.12. Não há um consenso entre os funcionários e ex-funcionários da RFB entrevistados quanto
às vantagens e desvantagens do regime de tributação em bases universais adotado pelo
ordenamento jurídico brasileiro. De modo geral, os funcionários entrevistados de escalão
médio tenderam a defender as vantagens decorrentes do regime, em especial, a sua
eficiência arrecadatória e os seus relativos baixos custos de fiscalização e controle talvez
até por uma postura mais corporativista. Por outro lado, os ex-funcionários entrevistados
de maior escalão assumiram uma postura muito mais crítica quanto o regime,
concordando com os efeitos competitivos negativos ensejados por ele.
4. Análise jurídica crítica do regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no
exterior
4.1. A ausência de debates mais aprofundados e técnicos sobre o regime brasileiro criou
dúvidas quanto à sua real natureza, ou seja, se seria ele o da transparência fiscal
internacional ou não. Dessa forma, as dúvidas quanto à real natureza do regime levaram à
criação de duas linhas doutrinárias.
4.2. A primeira linha sustenta que o regime brasileiro não é de transparência fiscal
internacional na medida em que o objeto sobre o qual recai a incidência tributária é o
acréscimo patrimonial positivo sofrido pela pessoa jurídica investidora residente no
Brasil.
4.3. A segunda linha defende que o regime brasileiro corresponde à teoria da transparência
fiscal internacional na medida em que ele desconsidera a pessoa jurídica controlada ou
coligada exclusivamente para alcançar os lucros por ela auferidos.
4.4. Defendemos que o debate sobre a validade jurídica do regime brasileiro está em
transformação, de questões jurídicas que caracterizaram um primeiro momento para
questões que demarcam um segundo momento de debate, sem, no entanto, que as
questões presentes no primeiro momento fossem descartadas.
4.5. No primeiro momento de debate, a questão central de debate é a adequação do
mecanismo legal de disponibilização automática da renda ao conceito constitucional de
renda e com o disposto no artigo 43 do CTN. A ADI nº 2.588 é caracterizada por três
visões distintas que partem de conceitos mais ou menos rígidos do que seria a
218
disponibilização jurídica e econômica da renda. A oposição que caracteriza as duas linhas
doutrinárias apontadas acima é igualmente perceptível nos votos do Min. Nelson Jobim e
Marco Aurélio.
4.6. Por trás da defesa acadêmica das duas linhas apontadas, há um verdadeiro embate de
interesses entre fisco e contribuinte.
4.7. No primeiro momento de debate sobre a validade jurídica do regime brasileiro, outras
questões também foram criticadas. Uma das questões refere-se ao extravasamento do
âmbito regulamentar da IN SRF nº 213/2002 que, ao determinar a tributação de toda a
contrapartida positiva em conta de resultado decorrente do ajuste feito pelo MEP,
ampliou indevidamente a base de cálculo de modo a não apenas abranger os lucros,
rendimentos e ganhos de capital. Criticou-se, igualmente, a impossibilidade de
compensação de prejuízos incorridos no exterior com lucros auferidos pela pessoa
jurídica investidora e o risco de sobreposição das normas de tributação de lucros
auferidos no exterior com a sistemática vigente de preços de transferência.
4.8. Defendemos que o debate relativo à validade jurídica do regime de tributação de lucros
auferidos no exterior está assumindo um novo campo de discussão que, apesar de não
desprezar o debate realizado até então, demarca nitidamente um segundo momento de
discussão. Neste novo campo de debate, os efeitos econômicos do regime são
confrontados com a Ordem Econômica Constitucional.
4.9. A Ordem Econômica Constitucional, prevista na Constituição Federal de 1988, é
orientada por princípios em sentido amplo e estrito.
4.10. Em sentido estrito, a Ordem Econômica Constitucional – também denominada de
Constituição Econômica – é orientada por diversos princípios constitucionais previstos no
capítulo I do título VII que dispõe sobre “A Ordem Econômica e Financeira”,
especialmente aqueles previstos no artigo 170 da C.F.
4.11. Em sentido amplo, a Ordem Econômica Constitucional é orientada por outros princípios
previstos esparsamente no texto constitucional, tais como o objetivo fundamental de
garantir o desenvolvimento nacional previsto no artigo 3º, inciso II da C.F.
4.12. A Constituição Federal de 1988 é transformadora – ou dirigente – em sua essência e o
desenvolvimento nacional é um objetivo que norteia a atividade do Estado, sobretudo, no
desempenho das funções de fiscalização, incentivo e planejamento quando atua como
agente normativo e regulador da atividade econômica, em conformidade com o disposto
no artigo 174 da Constituição Federal.
219
4.13. Há vinculação direta e imediata da norma que institui o objetivo de se assegurar o
desenvolvimento (elevada densidade normativa) em dois sentidos distintos: primeiro,
enquanto indicação ideológica do constituinte que deve servir como orientador do
processo de aplicação do direito constitucional e infraconstitucional; segundo, na
condição de mandamento endereçado ao legislador que deve implementar programas
direcionados a alcançar tal objetivo sob pena de responsabilização jurídica e política.
4.14. Levando-se em consideração que o regime brasileiro gera efeitos concorrenciais
negativos às subsidiárias de empresas nacionais que concorrem no exterior e que a
internacionalização produtiva, uma vez regulada através da imposição de condições e
critérios, é favorável ao desenvolvimento nacional, defendemos a tese de que o regime
brasileiro será inconstitucional, por contrariar frontalmente a Ordem Econômica
Constitucional vigente, nas hipóteses em que ele incidir sobre operações de
internacionalização produtiva favoráveis ao desenvolvimento nacional.
4.15. Apesar de não caber aos juristas a tarefa de definir quando a internacionalização
produtiva é favorável ao desenvolvimento nacional, é evidente que, mediante a regulação
estatal, é possível discriminar os casos em que a internacionalização produtiva é uma
estratégia fundamental para a promoção do desenvolvimento nacional, daqueles em que
ela não corrobora para o desenvolvimento. Uma prova disso é a previsão normativa e o
desempenho do BNDES no financiamento da internacionalização produtiva de empresas
de capital nacional. O regime brasileiro, no entanto, se aplica indiscriminadamente a
todos os casos em que há empresas nacionais internacionalizadas e daí a potencial afronta
à Ordem Econômica Constitucional.
4.16. Em relação ao juízo de adequação do regime brasileiro com os tratados celebrados pelo
Brasil para evitar a dupla tributação, a OCDE mudou de posicionamento ao longo do
tempo quanto à adequação do regime de transparência fiscal internacional com os
tratados de modo que, em seu último comentário à convenção modelo de tratados para
evitar a dupla tributação, restou claro que o regime não é incompatível com os tratados,
sendo desnecessária cláusula que o autorize, mas a organização recomendou,
expressamente, que o seu desenho fosse voltado apenas ao combate de determinadas
situações onde estivesse caracterizado o abuso, sob risco de incompatibilidade com a
convenção modelo.
4.17. No Brasil, as cortes judiciais ainda não se posicionaram definitivamente sobre o tema,
mas é certo que, na esfera administrativa, a jurisprudência do CARF está longe de ser
220
pacificada haja vista a existência de defensores de linhas de entendimento diversas
quanto ao dispositivo dos tratados que se aplicaria quando da incidência do artigo 74 da
MP nº 2.158-35/2001, muito embora pareça haver uma tendência de se conceber que os
rendimentos alcançados pela incidência do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 têm
natureza de lucro. A questão assume complexidade ainda maior quando se analisa a
questão das controladas indiretas, em relação às quais as cortes administrativas não
entenderam ser possível a aplicação da proteção conferida pelos tratados.
Considerações finais: pensando em uma agenda de pesquisa para a futura reforma
Pensar em como o direito é capaz de assegurar as bases necessárias para a promoção
do desenvolvimento foi a inquietude que esteve presente em todo o processo de elaboração
deste trabalho acadêmico. Este foi o objetivo central de um trabalho que se dedicou a estudar
a relação de causalidade do direito com o desenvolvimento.
Através do presente trabalho, esperamos ter demonstrado que o regime brasileiro de
tributação de lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior gera efeitos econômicos
nocivos à internacionalização produtiva das nossas empresas, na medida em que afeta a sua
capacidade competitiva, e que tais efeitos ensejam repercussões jurídicas capazes de tornar o
regime inconstitucional, não pela sua inadequação ao conceito constitucional de renda, mas
pela sua afronta direta à Ordem Econômica Constitucional.
O valor do presente trabalho não se restringe ao campo estritamente jurídico. Em uma
acepção mais ampla de pesquisa jurídica (que não se resuma à mera exegese jurídica ou à
verificação da consistência interna do direito), identificamos que o processo de formulação da
política tributária que orientou o desenho do regime de tributação de lucros auferidos no
exterior foi a causa central das grandes questões jurídicas que foram levantadas na sequência
da sua introdução no ordenamento jurídico. Entender o caminho percorrido pela política
tributária – a sua “engenharia normativa” – torna possível compreender a verdadeira causa
dos problemas jurídicos ensejados pela norma. A necessidade de gerar maiores receitas para a
arrecadação nacional, a preocupação dos legisladores com políticas pontuais, a inexperiência
221
brasileira no tema e a falta de participação do contribuinte no processo de formulação do
regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior fizeram dele um tema
juridicamente problemático, de questionável constitucionalidade e de difícil harmonização
com os tratados.
Temos a crença de que este trabalho possa servir de ponto de partida para a reforma do
sistema atualmente em vigor mediante a sua substituição por um regime que, à semelhança da
recente reforma promovida pelo governo do Reino Unido nas suas CFC rules, “melhor reflita
a forma como os negócios se operam em uma economia global e que alcance o melhor
equilíbrio possível entre tornar a tributação da renda mais competitiva e proteger a
arrecadação tributária”273
. Esperamos, verdadeiramente, que uma reforma legislativa futura
contemple a participação de todos os grupos de interesse afetados e procure encontrar o
melhor equilíbrio possível entre competitividade econômica e proteção da arrecadação
tributária. Este equilíbrio levará ao desenvolvimento nacional.
273
HM TREASURY; HM REVENUE AND CUSTOMS. Controlled Foreign Company (CFC) Reform:
response to consultation. London, 2011, p. 7-8. Disponível em: <www.hm-treasury.gov.uk>. Acesso em:
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230
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JURISPRUDÊNCIA JUDICIAL:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.588.
Autora: Confederação Nacional da Indústria. Ministra Relatora: Ellen Gracie.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) nº 172.058-1.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) nº 611.586. Recorrente:
Cooperativa Agropecuária Mourãoense Ltda. Recorrida: União. Ministro Relator: Joaquim
Barbosa.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EDcl no AgRg nos EDcl no REsp 1232796/RS,
Ministro Relator: Humberto Martins, segunda turma, data de julgamento: 27/03/2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1161003/RS, Ministro Relator: Mauro Campbell
Marques, segunda turma, data de julgamento: 27/09/2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1222719/RS, Ministro Relator: Humberto
Martins, segunda turma, data de julgamento: 03/05/2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 983134/RS, Ministro Relator: Castro Meira,
segunda turma, data de julgamento: 03/04/2008.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 907404 / PR, Ministro Relator: Humberto
Martins, segunda turma, data de julgamento: 23/10/2007.
NOTÍCIAS DE JORNAL:
STF pode recomeçar do zero julgamento sobre controladas no exterior. Valor Econômico. São
Paulo, Artigo publicado em 02/04/2012.
231
APÊNDICE A
ANÁLISE DETALHADA DAS ENTREVISTAS
Importância e motivações da internacionalização produtiva
Vale destacar inicialmente que, além de todas as empresas entrevistadas já possuírem
investimentos previamente realizados no exterior, todas elas manifestaram a percepção de que
este movimento sofreu um crescimento elevado nesta última década no Brasil, sobretudo no
que diz respeito aos seus próprios investimentos realizados no exterior.
De acordo com o consultor tributário da Empresa 1, além de a internacionalização
produtiva ter se tornado um fenômeno cada vez mais presente para as empresas de capital
nacional, hoje, o Brasil assumiu uma posição de liderança na América Latina, de modo que
muitos investimentos feitos na região são estruturados a partir de empresas criadas no Brasil
como estratégia de centralização das operações realizadas em outros países da região. Assim,
de acordo com o seu relato, há duas formas de internacionalização produtiva ocorrendo no
Brasil:
Mas grandes grupos têm colocado o Brasil na posição de liderança, de consolidação
e centralização na América do Sul e essa vinda para a América do Sul têm
acontecido de forma bem forte. Então você tem (i) uma internacionalização de
empresas brasileiras [de capital nacional] em que grandes grupos brasileiros foram
para o exterior e esses foram para a Europa, para os EUA e para a América do Sul
também, e você tem (ii) uma internacionalização de empresas estrangeiras que a
partir do Brasil se ramificam para outros países da América Latina.
As duas formas de internacionalização produtiva tratadas acima são: a
internacionalização das empresas de capital nacional que realizam investimentos diretos no
exterior e a internacionalização das empresas estrangeiras que desejam realizar investimentos
na América Latina, mas que criam uma sociedade no Brasil para centralizar as suas
operações, podendo elas ser meras sociedades não operacionais destinadas a deter
participações societárias – sociedades holdings – ou sociedades operacionais propriamente.
As empresas entrevistadas que comercializam bens de consumo tendem a realizar
investimentos produtivos primeiramente em países da América Latina – não restritos ao
Mercosul – em virtude da maior facilidade geográfica, linguística e de práticas e costumes
comerciais. Após a conquista desses mercados, as referidas empresas investem em outros
232
países do mundo. Além da América Latina, tais investimentos se encontram mais
predominantemente alocados nos mercados da Europa e dos EUA.
A motivação adotada por essas empresas é, fundamentalmente, a busca por novos
mercados consumidores e por um melhor canal de acesso à clientela local (the market-seeking
motive). Os desafios encontrados por essas empresas ao investirem diretamente no exterior
dizem respeito às barreiras que outras empresas já previamente estabelecidas impõem à
entrada e, sobretudo, o custo – em termos de tempo e valores – necessário à consolidação da
marca empresarial no mercado-alvo. Veja-se, neste sentido, um trecho da entrevista com a
Empresa 2:
Uma empresa de bens de consumo para se internacionalizar tem uma dificuldade
muito grande por conta da concorrência local e dos importadores já consolidados
nos outros mercados locais. E nós temos ainda, uma dificuldade ainda maior - e
nisso a legislação não nos atende - que é a construção da marca e do canal de
vendas.
(...)
Gasta-se muito para construir a marca no exterior e para vender um volume
razoável, frente aos investimentos feitos, apenas depois de 10 a 15 anos.
As empresas que exploram e comercializam commodities tendem a se dirigir aos
mercados onde estão localizadas as principais fontes de recursos minerais e agrícolas, ou seja,
as suas matérias-primas. A motivação para a internacionalização produtiva deste grupo de
empresas pode parecer, em um primeiro momento, tão somente a localização das suas
matérias-primas (the resource-seeking motive), mas, na verdade, ela atende dois objetivos: a
primeira é a busca por matérias-primas e a segunda é o acesso a novos mercados
consumidores (the market-seeking motive), geralmente próximos ao local de exploração das
commodities.
Esta é uma tendência observada nas entrevistas realizadas com as Empresas 4 e 5,
ambas exploradoras de commodities. A Empresa 5 alega que “nós estamos com um
investimento muito elevado no Brasil de modo que para o exterior nós vamos para buscar
mercado, não tanto mais para a produção”. Fica claro no trecho citado que, com o sucesso das
operações no Brasil, empresas exploradoras de commodities buscam investir no exterior como
forma de escoamento do excedente de produção nacional o que fortalece a hipótese de que a
internacionalização pode apoiar as exportações brasileiras. Confira-se, neste sentido, outro
trecho da entrevista realizada com a Empresa 5:
É, na verdade, hoje, a gente possui um balanço do que a gente exporta e importa
mais ou menos equilibrado. A gente já está com um excedente de produção que o
233
Brasil não consome e a tendência é que isso aumente para os próximos anos.
Portanto, essa busca de mercado é por conta dos excedentes que nós temos aqui.
O terceiro grupo de empresas entrevistadas é composto por empresas que atuam na
prestação de serviços de engenharia. Tal grupo de empresas afirmou que a internacionalização
de parte das suas atividades produtivas deveu-se a uma estratégia de sobrevivência em seu
respectivo mercado e como forma de diminuição da sua dependência em relação à demanda
do mercado interno.
A Empresa 6 alegou, neste sentido, que, por ela realizar diversos projetos de
engenharia juntamente com o Governo, a diversificação das suas atividades através da
realização de investimentos no exterior é uma estratégia voltada a reduzir a sua
vulnerabilidade em momentos em que o país enfrenta crises econômicas ou em que o
Governo investe menos em infraestrutura – como ocorreu durante a década de 1980 depois de
um período de forte investimento do Governo em infraestrutura nas décadas de 1950 a 1970 –
deixando parte dos seus ativos ociosos. Confira-se, neste sentido, o trecho da entrevista com a
Empresa 6 reproduzido abaixo:
Esse [internacionalização produtiva], hoje, é um caminho de todos que querem
sobreviver. Houve um período muito crítico no Brasil em que nós tínhamos 15% do
nosso faturamento aqui e 85% lá [exterior]. Então, é até uma questão de
sobrevivência. Dentro de um mundo globalizado, você não pode ficar ali limitado ao
seu país de origem. A internacionalização é condição para que a empresa seja
sustentável. É também condição para que nós não fiquemos dependentes do mercado
interno. Além disso, como nós realizamos diversos projetos para o Governo, sempre
que o Governo enfrenta alguma dificuldade, ele diminui a sua capacidade de
investir. A Empresa fica em uma situação mais confortável se ela pode
contrabalancear esta situação com o acesso a outros mercados no exterior. Mas a
nossa base geográfica é aqui no Brasil (matriz).
Em relação à percepção de que a internacionalização produtiva é uma estratégia
necessária para garantir a sobrevivência da empresa, a Empresa 5 chegou a defender que “o
negócio é, se você não sair, alguém vem e te pega”.
A advogada e consultora tributária Simone Musa Dias relatou já ter trabalhado com
empresas que buscaram a internacionalização produtiva devido a problemas de natureza
regulatória no Brasil. Segundo a referida consultora, o problema enfrentado por essas
empresas era que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) não permitia
aquisição de seus concorrentes no Brasil de modo que a única alternativa que ela possuía para
a sua expansão era investir em projetos no exterior. Tratava-se de uma operação cuja
234
motivação central era a busca por novos mercados, a despeito de a questão regulatória ter sido
determinante na decisão de investimento no exterior.
A Empresa 2 defendeu que a sua internacionalização produtiva decorreu do
reconhecimento de que a sua internacionalização comercial, através de exportações, se
revelou ser uma estratégia insuficiente, por si só, para assegurar a inserção dos seus produtos
nos mercados externos. Veja-se, abaixo, o trecho da entrevista realizada:
Sem dúvida, nós não conseguimos, simplesmente, exportar os nossos produtos do
Brasil para o exterior. Tem que entender culturalmente esses países e trabalhar uma
estratégia específica para cada um deles. Então, para disseminar o conhecimento da
nossa marca, do nosso produto e para permitir a sua recepção no exterior, a
internacionalização se faz necessária, inclusive se adequando às culturas locais.
Vale, ainda, ressaltar que algumas empresas entrevistadas admitiram possuir
sociedades holdings no exterior não apenas para fins fiscais, mas, principalmente, para a
centralização das suas operações no exterior. Este ponto será tratado em maiores detalhes no
próximo subtópico.
Efeitos econômicos do regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior
Percepções dos contribuintes
Após a realização de todas as entrevistas junto ao setor privado, chegou-se à conclusão
de que o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior gera efeitos
econômicos na conquista de novos mercados, mas não representa um fator de desincentivo
capaz de tornar a internacionalização produtiva custosa demais frente aos seus respectivos
benefícios a ponto de inviabilizá-la. Ou seja, a percepção da maioria dos entrevistados indica
que, se a empresa deseja investir no exterior, ela irá fazê-lo, ainda que o regime brasileiro
implique um ônus tributário maior quando comparado ao regime de tributação em bases
universais adotado por outros países.
No entanto, todas as entrevistas realizadas com as empresas apontadas no tópico
anterior demonstram nitidamente que o regime brasileiro representa um ônus concorrencial
significativo no processo de conquista de mercados externos.
235
Do ponto de vista econômico, o regime tem repercussões concorrenciais negativas às
empresas de capital nacional que investem diretamente no exterior, pois, na prática, ele
implica a exigência de que o investidor nacional arque com os 34% correspondentes à carga
tributária brasileira incidente sobre o lucro real apurado pelas pessoas jurídicas não importa
aonde elas venham a investir, primado da neutralidade na exportação de capitais. Neste
contexto, se elas investirem em um país de tributação inferior – que possui tributação
correspondente a, por exemplo, 25% – ela terá que pagar, ao final do ano em que apurado o
lucro no exterior, 34% correspondente à tributação brasileira incidente sobre o lucro real
apurado – 25% de IRPJ e 9% de CSLL – sendo admitida a compensação do imposto pago no
exterior (25%) até o limite do valor do imposto devido no Brasil, o que implicará, na prática,
que ela arque com a tributação devida no exterior (25%) com a adição da diferença relativa
aos 9% (34% - 25%) ao fisco brasileiro.
A partir do exemplo demonstrado acima, fica claro que só há ônus concorrencial
quando uma sociedade residente no Brasil investe em países que possuem carga tributária
incidente sobre a renda das pessoas jurídicas inferior à brasileira.
O problema central é que o mesmo ônus arcado pela subsidiária brasileira não é
suportado pelas suas concorrentes nos mercados externos. Por um lado, se as suas
concorrentes forem subsidiárias de empresas localizadas em outros países, elas poderão arcar
somente com a tributação do seu mercado local (25% no exemplo acima) caso o seu país
tribute em bases territoriais ou então poderão contar com o privilégio do diferimento da
tributação do país de origem até o momento em que os lucros forem disponibilizados para os
seus acionistas na hipótese de o país de origem adotar um regime de tributação em bases
universais com regra de diferimento. Neste último caso, ainda que a vantagem tributária
decorrente do diferimento da tributação no país de origem decorra, tão somente, do critério
temporal da sua hipótese de incidência, ela não deixa de ter elevada relevância do ponto de
vista das suas repercussões econômicas na dinâmica concorrencial. Por outro lado, se o
concorrente for uma empresa local, que só esteja obrigada a arcar com a tributação local
(25%), a vantagem tributária será ainda maior, pois, em momento algum, ele deverá arcar
com qualquer tributação adicional.
Como consequência, a tributação adicional arcada pela empresa brasileira poderá ser
refletida nos preços das suas mercadorias ou serviços no exterior, o que levará os seus clientes
a deixar de consumi-los da subsidiária brasileira e a passar a consumi-los das suas
concorrentes. É claro que outros elementos influem na decisão do consumidor, tais como o
236
peso da marca e a qualidade do produto a ela associada. No entanto, conforme demonstrado
anteriormente, há elevados custos de se promover o nome de marcas novas em investimentos
do tipo greenfield que vão desde os recursos despendidos até o tempo necessário para a sua
promoção. Caso a tributação adicional não se reflita nos preços, será refletida na queda da
lucratividade do negócio e, com isso, poderá reduzir sensivelmente os reinvestimentos feitos
pela subsidiária, além de tornar o negócio menos atrativo e mais arriscado ao empresário
nacional. Veja-se, neste sentido, o trecho muito elucidativo da entrevista realizado com o
consultor tributária da Empresa 1 reproduzido abaixo:
Entrevistador: De toda forma, essa norma [regime brasileiro de tributação de lucros
auferidos no exterior] é concorrencialmente negativa?
Entrevistado: Ela acaba sendo negativa porque você imagina o seguinte: eu coloco
uma subsidiária em um país onde a tributação incidente sobre a renda empresarial é
25%, não paraíso fiscal, portanto, aí eu tributo esse resultado e quando no balanço de
31 de dezembro eu preciso pagar mais 9% para chegar à alíquota brasileira. Nenhum
concorrente da subsidiária brasileira paga essa majoração de 9%, eles só pagam os
25%. Então a questão é: vou refletir esse aumento de carga tributária na minha
formação de preço no exterior? Se sim, eu tenho uma desvantagem em termos de
competição. Se não, eu estarei deixando uma parte do meu resultado para o fisco
[reduzindo o meu lucro]. Então, realmente há perdas em termos de concorrência. No
entanto, eu acho que o caminho natural de partir para o mercado tem falado mais
alto, ou seja, se você tem capacidade para atender esse mercado sob pena de você ter
até algum tipo de ociosidade ou qualquer coisa assim. Então, eu acho que ninguém
deixou de fazer por conta disso, mas que os resultados talvez pudessem ser
melhores, isso eu imagino que sim.
O trecho transcrito acima demonstra, de forma muito clara, que o adicional de carga
tributária incidente sobre a renda devida no Brasil possui repercussões concorrenciais para as
subsidiárias brasileiras nos mercados externos na medida em que implica ou a majoração do
preço praticado ou a redução da lucratividade do negócio. Confira-se o trecho da entrevista
realizada com a Empresa 3 em que este ponto é reiterado:
Entrevistador: Correto. Agora, do ponto de vista econômico, do ponto de vista
concorrencial, essa norma possui um impacto sobre as suas controladas lá fora uma
vez constituídas?
Entrevistado 2: Sem dúvida porque a Empresa não compete de maneira igual com os
seus concorrentes locais. Os seus concorrentes locais arcam apenas com a tributação
daquele país e a maioria dos países atendem as regras da OCDE e só tributam no
momento da disponibilização. (...) Isso faz com que você compita de forma desigual
com as outras empresas instaladas naquele país. Eu acho que isso as empresas levam
em consideração – essa questão tributária - na hora de tomar a decisão estratégica.
Entrevistado 1: Eu acho que esse ponto apresentado pelo Entrevistado 1 é um ponto
muito forte pois você tem uma desvantagem concorrencial da sua empresa produtiva
no exterior. E, no final das contas, a carga tributária das empresas locais acaba sendo
menor do que da empresa brasileira recém-chegada. Então, eu já tenho a
desvantagem de ser entrante tendo que enfrentar as barreiras à entrada oferecidas
237
naturalmente pelo mercado já consolidado, além disso, eu ainda tenho uma
desvantagem tributária, ou seja, a saúde que você exige da empresa brasileira e o
dinheiro que ela deve gerar a mais para ser considerada minimamente competitiva
no exterior é desproporcional de modo que você tem um desincentivo ao
crescimento externo da empresa brasileira.
A partir da análise do texto em destaque, confirma-se o fato já mencionado
anteriormente de que o ônus tributário vem a se somar com as demais dificuldades inerentes à
entrada de uma empresa estrangeira em um novo mercado, tais como barreiras à entrada,
custos na conquista da clientela local, promoção da marca, adequação regulatória, entre
outros. O principal efeito econômico negativo causado pelo regime tributário brasileiro, o
qual implica o recolhimento de imposto adicional no país de origem do investimento no final
ano em que forem auferidos resultados no exterior (31 de dezembro) – regime antidiferimento
por excelência –, é o desestímulo ao investimento ou ao reinvestimento dos resultados da
subsidiária para a sua expansão. Este efeito pôde ser identificado em diversas entrevistas. A
título de exemplo, abaixo se encontra reproduzida uma parte da entrevista realizada com a
Empresa 5:
Então, se o Brasil tributa – e tributa a alíquota de 34% no momento em que você
apura o resultado lá fora – há uma distorção muito grande, pois esse resultado que o
fisco alcança lá fora é utilizado para reinvestir em outras operações, para buscar
mercados, o que também implica custos para a Empresa. Se a gente não distribuiu, o
objetivo último disso não é deixar dinheiro lá fora infinitamente, não faz sentido isso
para a gente. O lucro só está lá fora porque existe a necessidade dele estar lá fora; é
reinvestir. Se eu tributo isso à 34%, eu vou perder mais de 1/3 do que eu poderia
estar reinvestindo e vou deixar de ser competitivo em relação às outras empresas que
não possuem o mesmo ônus tributário nos seus países de origem. Esse é um
problema gravíssimo para a gente.
Fica muito claro, também, que a razão pela qual a empresa de capital nacional não
repatria (disponibiliza jurídica ou economicamente aos seus sócios brasileiros) os seus lucros
tão logo eles sejam auferido e contabilizados é a necessidade de reinvesti-los em seu próprio
negócio buscando, assim, o fortalecimento da sua posição negocial nos mercados externos.
Seguindo a lógica demonstrada no trecho em destaque, tão logo sejam feitos os investimentos,
a empresa começará a gerar resultados que serão disponibilizados jurídica ou
economicamente aos seus sócios brasileiros. Este percurso compõe a lógica que orienta a
maior parte dos investimentos privados realizados no exterior. De acordo com as entrevistas
realizadas, conclui-se que os resultados de investimentos diretos realizados no exterior só são
238
disponibilizados aos sócios brasileiros quando superada a fase de investimento e consolidação
do empreendimento no mercado externo.
Em relação aos investimentos realizados em países com menor carga tributária e
geralmente com condições precárias de infraestrutura, todas as empresas entrevistadas
chamaram atenção para o fato de que é uma prática comum os governos locais concederem
benefícios fiscais para empresas estrangeiras como forma de compensação pela pouca
infraestrutura oferecida. Ressalta-se que a concessão de benefícios fiscais, nestes casos, não
implica, necessariamente, a ocorrência de uma prática de concorrência fiscal danosa. A
questão deve ser tratada como uma concessão de ajuda de Estado e enquadrada no regime
jurídico correspondente, qual seja, a submissão da sua análise à Organização Mundial do
Comércio (OMC) que seria o órgão responsável pelo juízo da sua adequação ao Acordo
GATT. Este, no entanto, é um tema que foge aos propósitos do presente trabalho.
Em relação aos referidos benefícios fiscais – espécie do gênero ajuda de Estado –, o
problema enfrentado pelas empresas entrevistadas é que, não obstante os governos dos países
destinatários dos seus investimentos aceitem conceder benefícios para a atração de
investimentos como um todo relativos a um determinado setor-alvo, a sistemática do regime
brasileiro desconsidera tal fato e impede que a subsidiária da empresa de capital nacional
possa se aproveitar de tais benefícios. Isto porque o fisco brasileiro exige, na prática, que a
empresa residente no Brasil arque com a diferença entre a carga tributária devida no Brasil e a
carga tributária devida no exterior (compensável com o imposto devido no Brasil), pouco
importando se houve a concessão de uma ajuda de Estado para a atração de tais
investimentos.
A consequência oriunda da aplicação do regime brasileiro é que ele impede a
homologação automática de ajudas de Estado concedidas por outros governos. Em outras
palavras, o regime brasileiro assegura que, mesmo em situações em que há concessão de
ajudas de Estado no exterior, as subsidiárias de empresas de capital nacional continuem
arcando com a tributação devida no Brasil. Neste sentido, caso o outro Estado não exerça a
sua soberania fiscal de forma plena, o Brasil não apenas exerce a sua parcela de soberania
fiscal como também exerce a parcela de soberania recusada pelo outro Estado. Trata-se do
combate ao tax sparring. No Brasil, a regra é que toda a homologação de ajudas de Estado
concedidas no exterior é expressa e nunca automática. Este tema será explorado em maiores
detalhes no próximo subtópico.
239
Em termos econômicos, a opção política de não homologar automaticamente as ajudas
de Estado concedidas por outros países gera uma forte distorção concorrencial às empresas de
capital nacional caso os governos dos países de origem das suas concorrentes: (i)
homologuem-nas automaticamente ou (ii) não homologuem mas aceitem o diferimento da
tributação para o momento em que ocorrer a efetiva disponibilização econômica ou jurídica
dos referidos lucros, ganhos de capital e rendimentos. Confira-se, por oportuno, o trecho da
entrevista com a Empresa 4 em que fica muito claro o efeito concorrencial decorrente da
opção política adotada pelo Brasil:
Empresas que exploram recursos naturais, como é o caso da nossa empresa, e que
vão explorar isso em países com péssima infraestrutura local, como os países da
África, porque é interessante haver essa exploração nesses países, negociam com os
governos locais incentivos fiscais para regiões e atividades específicas desses países,
justamente porque o governo de lá reconhece que ele não está provendo
infraestrutura alguma, mas que não podem ser aproveitados pela nossa empresa
justamente porque essa regra [regime de tributação em bases universais brasileiro]
não permite o seu aproveitamento. O Brasil tributa os lucros daquela base produtiva
pela diferença e desconsidera os incentivos fiscais concedidos. Aí você vai olhar o
seu competidor, ele é uma empresa sediada na Alemanha ou em qualquer outro país
que não adota a mesma regra de tributação que o Brasil adota. Qual é o ganho de
competitividade que ele tem? Ele consegue o mesmo benefício que foi dado à
empresa brasileira, mas, no final do ano, ele não precisa pagar o diferencial de
alíquotas ao governo do seu país – no caso do Brasil, é o diferencial entre 34% e a
alíquota do país do investimento – ele só arca com a tributação local. Ele ganha em
termos de competitividade, pois ele possui mais incentivos para crescer no país de
residência do seu investimento. Ele não será onerado pelo governo do seu país sede
assim como ocorre no caso da empresa brasileira.
Note-se que a questão mais gravosa não chega nem mesmo a ser a não homologação
de forma automática de ajudas de Estado concedidas por outras jurisdições fiscais, mas sim a
questão da permissão ao diferimento da tributação do país de origem dos investimentos
diretos feitos no exterior. A maior parte das empresas, em suas entrevistas, indicou esta
questão como uma das mais prejudiciais à sua competitividade.
O que permitiria afastar a pretensão brasileira de exercer a sua soberania fiscal sobre
lucros, ganhos de capital e rendimentos auferidos no exterior seriam os tratados celebrados
pelo Brasil para evitar a dupla tributação. De fato, o Brasil possui uma rede composta por 27
tratados celebrados com os principais parceiros comerciais brasileiros – com exceção dos
EUA – que vão desde países em desenvolvimento pouco industrializados, como Angola, até
países industrializados em desenvolvimento, como China e Coréia do Sul, e desenvolvidos,
como Áustria, Holanda e Espanha.
240
No entanto, um fator que tem representado um entrave à realização de investimentos
no exterior pelo investidor brasileiro tem sido a insegurança jurídica quanto aos critérios de
aplicação das disposições dos tratados. Conforme analisado anteriormente, a jurisprudência
das cortes administrativas tem oscilado quanto à decisão de enquadramento do regime
brasileiro nos artigos 7º (lucros das empresas), 10 (dividendos) e 21 (outros rendimentos) da
convenção-modelo da OCDE, demonstrando ora que alguns dos tratados celebrados pelo
Brasil são incompatíveis com o regime de tributação em bases universais ora que são
compatíveis. A incerteza jurídica decorrente do fato de este tema não estar devidamente
pacificado na jurisprudência das cortes administrativas e judiciais gera insegurança ao
investidor brasileiro quanto a confiar na proteção que o tratado deveria lhe assegurar. Esta
insegurança é, por sua vez, vista como um custo de transação intrinsecamente relacionado à
decisão de se investir no exterior.
Aqui, há fundamentalmente dois problemas distintos. Um primeiro problema diz
respeito à indecisão sobre qual decisão virá a ser tomada em relação à compatibilidade do
regime brasileiro de tributação em bases universais com os artigos mencionados acima dos
tratados celebrados pelo Brasil. Esta indecisão das cortes brasileiras é vista pelo operador
privado como fonte de elevada insegurança jurídica. Neste sentido, a indefinição de um
critério claro já é um custo atual que é arcado pelo empresário brasileiro ao investir
diretamente no exterior. O outro problema ocorrerá caso se reconheça a compatibilidade do
regime brasileiro com os tratados, pois, neste caso, reconhecer-se-á que os tratados não
impedem a sua aplicação e, com isso, todos os efeitos concorrencialmente negativos que estão
sendo apontados neste subtópico persistirão ainda que se invista em países com os quais o
Brasil celebrou convenção. A insegurança em que se encontra o setor privado e os custos
associados a ela podem ser claramente observados a partir da leitura do trecho abaixo extraído
da entrevista realizada com a Empresa 2:
São vários pontos que dificultam a empresa a ir para fora. (...) Você tem um bom
tratado. Tem argumentos favoráveis para defender a aplicação desse tratado. Mas a
autuação é quase certa. Nós temos uma controlada na França, que tem lucro e a
gente tributa esse lucro anualmente no Brasil. Pela aplicação do tratado, a gente não
deveria tributar esse lucro porque o tratado fala que a tributação somente poderia
ocorrer quando da distribuição de dividendos. Mas se a gente não tributar a RFB vai
autuar. Após a autuação, através do contencioso administrativo nós teríamos
argumentos para nos defendermos mas, além do gasto, teríamos que arcar com o
risco de derrota administrativa e, posteriormente, na ação judicial.
(...)
Muitas das nossas concorrentes no exterior podem dispor de tratados melhores do
que os que o Brasil possui. A postura da administração tributária onde se localiza as
suas matrizes é muito melhor do que a postura da RFB. Quando se faz uma
241
ponderação nesta ceara fica mais difícil competir com as nossas concorrentes.
Agora, quando essas empresas estabelecem as suas subsidiárias no Brasil, acabam
passando por uma situação semelhante.
De acordo com a parte final do trecho transcrito acima, nota-se que a incerteza quanto
aos critérios aplicáveis ao regime brasileiro de tributação em bases universais se reflete,
inclusive, na postura na Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) que é o órgão
responsável pela fiscalização dos contribuintes nacionais. Veja-se outro trecho entrevista
realizada com a Empresa 5 em que esta questão da insegurança jurídica gerada pela
indefinição das regras aplicáveis fica clara:
(...) Há grande insegurança jurídica porque você não sabe qual é a regra que vale, se
o tratado vale, em que situações ele vale, se pode consolidar os resultados ou não
pode, em que momento que você vai tributar a distribuição de dividendos ainda que
tenha tratado, as diferenças de interpretação.
Após a realização das entrevistas, não houve consenso das empresas quanto ao fato de
o Brasil possuir ou não uma rede satisfatória de tratados, ou seja, uma rede grande o suficiente
a ponto de ampará-las nas principais jurisdições fiscais onde possuem investimentos diretos
de maior monta. Prevaleceu, no entanto, o consenso de que ter uma rede ampla de tratados
não possui efeito prático algum sobre o setor privado caso não haja segurança jurídica quanto
à sua aplicação com a definição prévia dos critérios que orientam os investimentos brasileiros
feitos diretamente no exterior. O trecho da entrevista com a Empresa 6 é emblemático neste
sentido:
Entrevistador: E o senhor acha que o Brasil possui hoje uma rede de tratados que é
satisfatória para as transações realizadas?
Entrevistado: Do jeito que o Brasil trata os seus tratados, pouco importa.
Outro ponto da legislação brasileira que também merece especial atenção, devido aos
seus potenciais efeitos negativos à concorrência, é a vedação que consta do artigo 25, §5º da
Lei nº 9.249/95 segundo o qual os prejuízos incorridos no exterior não podem ser
compensados com os lucros apurados no Brasil, tão somente com os lucros apurados no país
de residência da filial, sucursal, coligada ou controlada.
A questão dos prejuízos enseja uma desvantagem concorrencial muito relevante uma
vez que leva à majoração do valor do imposto devido no Brasil ao considerar que a base de
cálculo da tributação brasileira incidente sobre a renda da pessoa jurídica – lucro real – é
242
maior do que ela deveria ser caso os prejuízos incorridos em determinadas jurisdições
pudessem ser livremente compensados com os resultados positivos apurados tanto no exterior
quanto no Brasil. Há, neste sentido, tributação de “resultados fictícios”.
Nas entrevistas, foram relatados casos em que o contribuinte brasileiro possui
investimentos localizados em diversos pontos do globo sendo alguns deles deficitários e
outros lucrativos. Na lógica da consolidação dos resultados apurados pela empresa em bases
universais não haveria nenhum tributo a pagar. Porém, na lógica do regime brasileiro – que
não é de consolidação de resultados – pode ser apurado tributo mesmo em uma situação em
que o resultado global consolidado dos investimentos brasileiros no exterior seja negativo. A
preocupação que orientou o formulador de políticas públicas a adotar esta regra foi evitar que
prejuízos fossem artificialmente criados em paraísos fiscais. No entanto, seria plenamente
possível que se permitisse a compensação de prejuízos incorridos em países de tributação
regular no exterior e se mantivesse a vedação quanto aos prejuízos oriundos de investimentos
em paraísos fiscais. Quanto à questão dos prejuízos, leia-se o trecho da entrevista realizada
com a Empresa 5 em destaque abaixo:
Umas das deficiências da norma é que o prejuízo apurado no exterior não pode ser
compensado com o resultado positivo auferido no Brasil. Se além dessa deficiência,
eu não puder compensar o prejuízo de uma empresa lá fora com os prejuízos de
outra também no exterior, haverá uma dupla deficiência. O ideal é que o Brasil
tribute efetivamente os resultados [líquidos] das operações. Só que o Brasil possui
uma série de inconsistências no sentido de que ela busca tributar resultados fictícios,
ou seja, não são resultados efetivamente auferidos pela empresa. Há resultado
fictício na medida em que o resultado de todo o grupo econômico não
necessariamente é positivo uma vez que ao se deslocar o resultado de um país para
outro cria-se renda, por um lado, mas também se criam despesas, por outro, que ao
nível de todo o grupo econômico se compensariam, mas o Brasil submete os
resultados positivos à tributação. Quando o Brasil segrega todos esses resultados e
fala que não compensará o prejuízo com os resultados positivos [ao nível de todo o
grupo econômico] o Brasil acaba tributando uma coisa que, de fato, não existe. Essa
é uma outra ineficiência que você não vê em outros países. Em outros países há o
participation exemption, segundo o qual, se o país da controladora tributar os
resultados lá fora, eles não serão tributados no país da subsidiária. Esses países não
permitem que se traga o prejuízo apurado no exterior porque se você não tributa o
resultado você também não pode trazer o prejuízo. Mas os países que não têm
participation exemption permitem que você traga o prejuízo do exterior. O Brasil
não permite trazer nada. Então, além de o Brasil não permitir a compensação, ele
também acaba tributando resultado positivo fictício.
É interessante notar que o trecho acima coloca em evidência não apenas a questão da
tributação dos “resultados fictícios”, mas também o fato de que os países que não concedem a
participation exemption – isenção dos resultados apurados por controladas e coligadas de
empresas residentes implicando, na prática, a adoção do método da isenção ou territorialidade
243
– têm a tendência de aceitar a compensação de lucros e prejuízos incorridos no exterior ou em
seus respectivos territórios. Esta tendência, aliada ao fato de que a legislação brasileira não
permite a consolidação de todos os lucros e prejuízos apurados em bases globais, é um dos
fatores que levam empresas nacionais a estruturar sociedades holdings em países que admitem
a participation exemption e que são geralmente de baixa tributação.
De fato, as peculiaridades do regime de tributação em bases universais adotado pelo
Brasil levam empresas a criar sociedades holdings em países que admitem a participation
exemption por três motivos centrais.
O primeiro deles é diferir a tributação brasileira para o momento em que houver a
efetiva disponibilização econômica ou jurídica dos lucros, ganhos de capital e rendimentos
auferidos no exterior evitando-se a aplicação do regime brasileiro. Isso é possível através da
escolha de um país com o qual o Brasil tenha celebrado tratado destinado a evitar a dupla
tributação, não obstante haja toda a incerteza dos órgãos julgadores, conforme descrito
anteriormente, quanto à compatibilidade do regime brasileiro com as disposições dos tratados
celebrados pelo Brasil. Há, neste sentido, uma forte crença das empresas entrevistadas de que
as cortes se posicionarão no sentir de reconhecer a sua incompatibilidade. A escolha do país,
além de levar em consideração as disposições dos tratados que, em tese, impediriam a
tributação dos lucros no Brasil de fonte produtora localizada no outro Estado, também está
orientada a reduzir, senão evitar por completo, a retenção de Imposto sobre a Renda Retido na
Fonte (IRRF) no ato da distribuição dos dividendos pelo Estado onde se localiza a fonte
produtora.
O segundo motivo que leva à criação de sociedades holdings no exterior é a
consolidação de resultados, ou seja, compensar prejuízos incorridos em operações realizadas
em alguns países, nos quais a empresa possua investimentos diretos, com lucros apurados em
outros países.
O terceiro motivo é facilitar as transações realizadas dentro do grupo econômico,
operações denominadas intercompany tais como empréstimos contratados pela sociedade
holding na posição de mutuante (credora) a outras sociedades que compõem o grupo na
posição de mutuarias (devedoras).
Esta estruturação societária, segundo o relato de algumas empresas, visa tornar mais
eficientes as transações e operações realizadas dentro do grupo econômico, sendo esta uma
prática usual adotada pelo setor privado internacionalmente. Neste contexto, surge o problema
jurídico, que possui repercussões econômicas, do tratamento jurídico dado pelo Governo
244
brasileiro às controladas e coligadas indiretas, ou seja, as pessoas jurídicas nas quais a pessoa
jurídica residente no Brasil possui investimentos relevantes (acima de 10% de participação
societária) através de uma pessoa jurídica interposta – geralmente uma sociedade holding – na
qual ela detenha, diretamente, o controle societário.
O problema do tratamento jurídico conferido às controladas indiretas consiste no fato
de que o governo brasileiro vem manifestando o entendimento de que só há direito de
compensação do imposto pago no exterior com o imposto devido no Brasil quando o imposto
devido no exterior tiver sido pago pela controlada ou coligada diretas. Ou seja, a interposição
de uma sociedade holding no exterior leva à perda do direito de compensação do imposto
pago pelas sociedades nas quais ela detém participação societária com o imposto devido no
Brasil. Aos olhos do governo brasileiro, no exemplo demonstrado acima, só haveria direito de
compensação do imposto pago pela sociedade holding no seu país de residência. No entanto,
conforme demonstrado anteriormente, como as empresas geralmente constituem holdings em
países de baixa tributação ou que admitam o participation exemption, o imposto compensado
no Brasil acaba sendo muito baixo senão nulo. Neste sentido, o governo brasileiro não
reconhece o direito de creditamento do imposto pago pelas controladas e coligadas indiretas
da empresa residente no Brasil. Vale ressaltar que esta postura não se encontra pacificada no
entendimento da jurisprudência administrativa e judicial.
Para além das suas repercussões jurídicas, este posicionamento implica repercussões
econômicas que também se refletem na competitividade das empresas de capital nacional em
mercados externos. Para ajudar na visualização de tais efeitos, imagine-se que uma empresa
residente no Brasil constituiu uma sociedade holding na Holanda e que, esta sociedade, detém
a participação societária de uma empresa no Japão (com tributação de 50% sobre a renda das
pessoas jurídicas), outra na Argentina (25%) e outra nos EUA (35%). Imagine-se que todos os
resultados positivos dessas empresas sejam consolidados na holding holandesa ao final de
cada ano-calendário. De acordo o posicionamento adotado pelo governo brasileiro, a
sociedade residente no Brasil somente poderá compensar o montante do imposto pago na
Holanda ao apurar o imposto brasileiro devido sobre os lucros auferidos pela sociedade
holandesa. Neste caso, se a Holanda adotar o participation exemption, a sociedade brasileira
deverá arcar com a integralidade dos 34% correspondentes à tributação brasileira juntamente
com o valor da tributação arcada no Japão, Argentina e EUA. No exemplo analisado, a carga
tributária efetiva arcada pela empresa brasileira foi, ao final, de 67%, 50,5% e 57,1%
respectivamente.
245
Considerando que este tipo de estruturação societária é uma prática comum por
empresas residentes em diversos países, conclui-se que o posicionamento do governo
brasileiro possui um grande impacto econômico que pode ser refletido na competitividade das
empresas brasileiras caso os demais governos reconheçam o direito de crédito do imposto
pago por controladas e coligadas indiretas.
Percepções do Fisco
Em relação às entrevistas feitas junto ao fisco, cabe ressaltar que foram entrevistadas
com autoridades fiscais que pertenceram ou pertencem ainda ao médio e alto escalão da RFB.
As autoridades de médio escalão ocupavam a posição de delegados da RFB. As autoridades
de alto escalão entrevistadas foram o ex-secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo
Maciel, e o ex-subsecretário da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinícius Neder.
De forma geral, as opiniões apresentadas pelos entrevistados divergem sensivelmente.
Os funcionários pertencentes ao médio escalão se posicionaram de forma extremamente
favoráveis ao regime e ressaltaram, a todo tempo, as suas vantagens para a Fazenda Nacional.
Os ex-funcionários de elevado escalão na RFB divergiram em diversos pontos tratados
relativos às vantagens do regime brasileiro, mas, de modo geral, assumiram uma postura mais
crítica em relação a ele, de modo a tratar não apenas das suas vantagens como também das
suas falhas e ineficiências.
Neste subtópico, serão apresentados, primeiramente, os posicionamentos dos
entrevistados pertencentes ao médio escalão da RFB, ressaltando as vantagens do regime e,
posteriormente, serão apresentados os relatos dos entrevistados que pertenceram a postos do
alto escalão da RFB com um viés mais crítico.
Em relação aos entrevistados de médio escalão é importante ressaltar, primeiramente,
que, aos olhos dos entrevistados, o regime brasileiro estabelece o primado da neutralidade na
exportação de capitais. Neste sentido, do ponto de vista dos entrevistados, o regime de
tributação em bases universais adotado pelo Brasil teria surgido como uma reação
governamental ao fenômeno mais amplo da globalização – causa central da transformação do
Estado-nação no Estado-transcional – como estratégia de defesa contra a perda de base
imponível dos Estados. Um dos problemas identificados nas entrevistas que se deseja evitar é
a dupla não tributação internacional da renda que ocorre fundamentalmente quando dois
Estado deixam de exercer o seu poder de tributar uma determinada materialidade. Este
246
problema foi oportunamente apontado pelas Autoridades Fiscais 2 e 3 no trecho em destaque
abaixo:
Autoridade Fiscal 2: Elas [as normas brasileiras de tributação em bases universais]
são necessárias pois, diante da globalização, o dinheiro pode ser alocado em
qualquer lugar e os lucros auferidos em qualquer lugar também, sendo necessário
que esses lucros sejam tributados. Elas são necessárias e elas estão na maioria dos
países. Nós temos normas similares de normas de tributação de bases universais
utilizadas internacionalmente.
Autoridade Fiscal 3: Isso porque o Brasil não está mais em uma economia fechada e
autárquica. Ele está, hoje, em uma economia aberta onde o investidor brasileiro pode
aplicar como residente ou como não residente, é possível investir em qualquer lugar
do mundo, tendo liberdade na movimentação de capital e isso se reflete no fisco. A
tributação em bases mundiais é anterior ao artigo 74 não é?! Ela vem sendo aplicada
desde 1996 [desde a publicação da lei 9.249/95]. O artigo 74 surgiu como uma
norma antidiferimento para completar essa legislação em bases mundiais da pessoa
jurídica. (...) E antigamente o Brasil não podia investir no exterior, era uma
economia fechada. Eram poucas as hipóteses em que um brasileiro podia investir no
exterior. O investimento estrangeiro aqui era muito escasso, eram apenas as grandes
empresas. Hoje o cenário é muito aberto tanto para a entrada de capitais quanto para
a saída de capitais. O fisco deve se adaptar a esta nova realidade senão teremos um
problema gravíssimo.
Entrevistador: E quais são as vantagens, em geral, dessa norma para a Fazenda
Nacional?
Autoridade Fiscal 3: Ela visa a neutralidade na exportação de capitais. É um
elemento necessário à garantia da efetividade da tributação em bases mundiais sem o
qual haveria uma renúncia fiscal fortíssima em uma economia onde as pessoas
podem investir lá fora através de controladas e coligadas.
Autoridade Fiscal 2: E muitas vezes o fisco não tributa nem um lugar nem o outro.
Este é o pior dos mundos para ambos os fiscos envolvidos. Este é um dos riscos. É o
risco da não tributação.
A questão da dupla não tributação fica muito clara no último parágrafo do trecho
destacado acima. O maior mérito do regime brasileiro, aos olhos dos entrevistados, é a sua
lógica de funcionamento que se reflete no seu elevado potencial arrecadatório e na maior
facilidade de fiscalização e controle do contribuinte brasileiro (pessoa jurídica controladora ou
coligada). Do ponto de vista dos entrevistados, o regime é simples, prático e menos custoso
em termos de fiscalização quando comparado ao regime de tributação em bases universais
com regra de antidiferimento adotado por outros países. Veja-se, abaixo, a percepção da
Autoridade Fiscal 1 sobre a lógica do regime brasileiro:
Eu acho que a vantagem é a lógica [da equivalência patrimonial]. (...) Eu acho que a
vantagem que tem é a lógica. Eu acho que quando o assunto chegar lá no STF e a
lógica for explorada através de um procurador bem orientado eu creio que a gente
[Fisco] tem grandes chances de emplacar que essa lógica, apoiada no direito, vingue.
Eu particularmente acredito nisso. Eu acho que não existe técnica melhor do que a
da equivalência patrimonial justamente porque esta técnica está aliada ao
comportamento da nossa sociedade, se não fosse assim, o dinheiro ficaria
247
eternamente retido lá fora e isso já se confirmou no passado. Foi por isso que
mudou.
Note-se que, no trecho acima, fica muito clara a percepção do entrevistado de que sob
a égide de uma norma que permita o diferimento da tributação nacional sobre os lucros
auferidos no exterior, o contribuinte brasileiro busca postergar o momento da sua
disponibilização jurídica ou econômica para evitar a incidência tributária no Brasil. Trata-se
de uma postura com a qual as empresas entrevistadas não concordam já que a finalidade de se
manter lucros no exterior é, segundo os seus relatos, reinvestir no negócio de modo que tais
lucros são repatriados somente quando superada a fase de investimentos.
Quando questionados sobre o porquê de o regime brasileiro diferir da prática
internacional, a postura deste grupo de entrevistados foi no sentido de defender que o regime
adotado pelos outros países é facilmente contornável pelo contribuinte e é muito mais difícil
de ser fiscalizado. Quanto à facilidade de controle e fiscalização do contribuinte propiciada
pelo regime brasileiro, confira-se o trecho abaixo da entrevista feita com as Autoridades
Fiscais 2 e 3:
Autoridade fiscal 3: Agora, a nossa norma possui caráter geral, o que torna a questão
muito interessante. Mas agora tem uma coisa, a norma é aplicada sem nunca sair do
âmbito do meu residente. Através do artigo 74 [da MP 2.158-35/2001], em nenhum
momento se está tributando uma pessoa jurídica residente no exterior; tributa-se em
bases mundiais a pessoa jurídica brasileira.
(...)
Autoridade fiscal 3: Como o Brasil começou especificamente aplicando-a aos sócios
“pessoa jurídica”, foi possível essa opção pela competência e que gerou uma norma
muito melhor do que as outras. A gente comparou a norma brasileira com a norma
Argentina e nós chegamos à conclusão de que ela é um fracasso. É desanimadora.
Qualquer criança é capaz de contorná-la. É muito fácil falar que renda passiva é
renda ativa.
Autoridade fiscal 2: Até você classificar tudo aquilo e depois conferir se tudo aquilo
está mesmo certo...
Autoridade fiscal 3: Muitas vezes eles abrem um banco offshore e aí a renda passiva
de uma empresa residente no exterior, na forma de juros, acaba “virando” renda
ativa do banco.
O primeiro parágrafo do relato transcrito acima deixa muito claro que o ponto de vista
dos entrevistados situa-se na primeira linha doutrinária analisada no capítulo 5 no sentido de
que o Brasil não adotou a teoria da transparência fiscal internacional. Ademais, note-se que a
Autoridade Fiscal 3 demonstrou a clara percepção de que o regime adotado
internacionalmente – inclusive pela Argentina – é facilmente contornável devido à facilidade
de se camuflar rendimento passivo na forma de rendimento ativo de modo que o regime
248
brasileiro teria o mérito de evitar este tipo de fraude à lei já que ele abrange todos os tipos de
rendimentos, pouco importando a sua natureza e origem.
No tocante à questão do aproveitamento das ajudas de Estado, os entrevistados se
posicionaram no sentido de defender que o Brasil não deve homologar automaticamente as
ajudas concedidas por outros países. A decisão de homologar deve ser vista como uma
decisão de natureza política e, portanto, deve ser analisada casuisticamente pelo Governo
Federal.
Quando questionados quanto à possibilidade de o regime brasileiro de tributação em
bases universais gerar efeitos econômicos danosos ao processo de internacionalização
produtiva e à competitividade das empresas de capital nacional no exterior, as autoridades
fiscais ora tratadas negaram, em um primeiro momento, que o regime brasileiro gerasse
qualquer efeito negativo. No entanto, no decorrer das entrevistas, momento em que o tema foi
analisado em maior profundidade, a Autoridade Fiscal 3 reconheceu que o regime pode gerar
efeitos econômicos negativos. O trecho transcrito elucida este ponto:
Autoridade Fiscal 3: Essa é a dúvida: será que ela atrapalha ou é vantajosa? Do
ponto de vista da tributação em bases universais [arrecadação tributária] e da
neutralidade na exportação de capitais, ela é maravilhosa. Agora, tem o outro lado,
do ponto de vista da neutralidade na importação de capitais, pode-se alegar que a
norma prejudica o empresário. Bom, pois é, isso é outra consideração.
Entrevistador: A gente tem ouvido de muitas empresas que as normas atuais de
tributação em bases universais brasileiras que essas normas são prejudiciais para a
empresa que quer abrir a sua filial ou subsidiária no exterior fato que seria, segundo
as empresas, bom para a expansão da sua atividade produtiva e para o aumento do
seu faturamento em um contexto normal de fortalecimento da empresa nacional.
Autoridade Fiscal 3: É o “Custo Brasil”. É a taxa do nosso condomínio. Imposto,
para mim, é igual a condomínio, se outros têm condomínios mais baratos, sorte
deles. Eu acho que isso não vai, necessariamente, levar a empresa à falência ou
reduzir a sua capacidade.
Apesar de, ao final, a Autoridade Fiscal 3 ter se posicionado no sentido de que o
regime brasileiro não seria capaz de “levar a empresa à falência ou reduzir a sua capacidade”,
fica muito claro através da interpretação sistemática de todo o conteúdo da entrevista,
principalmente da fala transcrita acima, que a Autoridade Fiscal tratada reconheceu que o
regime pode possuir impactos econômicos significativos. É interessante observar o descaso do
entrevistado com os referidos efeitos ao se referir a eles como componentes do “Custo Brasil”
e ao supor que o investidor privado brasileiro teria tido o “azar” de pertencer a um país onde o
seu “condomínio” é mais caro do que dos demais países. Trata-se de uma visão lamentável
que enfoca somente os interesses fiscais na medida em que deixa de ponderá-los com outros
interesses igualmente válidos.
249
Em relação à temática dos efeitos econômicos provocados pelo regime, Marco Aurélio
Greco, em entrevista concedida, demonstrou visão favorável à tese de que o regime não afeta,
em princípio, nem o processo de internacionalização produtiva nem a competitividade das
empresas brasileiras nos mercados externos. Ele respalda o seu argumento no fato de que a
tributação recai sobre o acréscimo que houve no patrimônio da pessoa jurídica brasileira ao
serem reconhecidos os lucros auferidos no exterior por sociedades controladas e coligadas.
Neste sentido, conforme demonstrado no capítulo precedente, o referido autor não entende
que a tributação recai sobre os lucros auferidos no exterior. Esta perspectiva afastaria, em
princípio, a tese de que o regime poderia repercutir negativamente na pessoa jurídica residente
no exterior. A única hipótese em que o regime jurídico brasileiro poderia afetar a
competitividade das empresas de capital nacional no exterior seria se houvesse um plano de
investimentos da controladora ou coligada nas suas controladas ou coligadas residentes no
exterior.
Por “plano de investimentos”, entende-se como sendo o emprego de capital da
controladora ou coligada na sua controlada ou coligada residente no exterior (e.g. através de
aporte de capital na sociedade controlada ou coligada ou através de empréstimos) para
financiar a expansão das suas atividades no exterior ou, simplesmente, para lhe prover maior
fluxo de caixa. O plano pode ser periódico ou não. O importante é que ele envolva o
investimento de capital na sociedade controlada ou coligada no exterior após a sua
constituição. O plano de investimento ficaria caracterizado se, após constituída, a sociedade
residente no exterior não tivesse condições de autofinanciar a sua expansão com o seu próprio
lucro. Veja-se, em maiores detalhes, o posicionamento de Marco Aurélio Greco acerca do
tema:
O que eu digo – e que eu acho que isso é nítido – é que o sistema brasileiro não
interfere na vida da subsidiária, ele não prejudica a subsidiária em nada, ao
contrário, a subsidiária gerou renda para o seu país e ela tem essa renda disponível
lá. E na medida em que ela tenha essa renda disponível lá, se ela precisar fazer
novos investimentos, ela vai fazer. A tributação no Brasil é absolutamente
irrelevante para a subsidiária. Portanto, para a competição no local é irrelevante. Vai
me dizer: mas o regime brasileiro, na medida em que ele obriga a brasileira a fazer
um desembolso, isso pode afetar a brasileira? Sim, em tese pode – se de fato afeta é
um exame empírico - mas em relação a novos investimentos, mas não aos
investimentos feitos na subsidiária. Quando os investimentos são feitos, o regime
brasileiro é irrelevante. Se a subsidiária tem prejuízo, o regime brasileiro é
irrelevante. Se a subsidiária tem lucro e, pela legislação de lá, neutraliza e compensa
o seu prejuízo e, portanto, está no zero, o regime brasileiro é irrelevante. Se a
subsidiária tem lucro e precisa manter esse lucro lá para manter a sua atividade, o
regime brasileiro é irrelevante porque os lucros já estão lá e o dinheiro está nas mãos
da subsidiária e ela pode crescer. Portanto, o regime brasileiro é irrelevante. O
250
regime brasileiro só passa a ser relevante se a subsidiária precisa de mais
investimento do que ela consegue com o lucro gerado e ai a brasileira, por força do
regime brasileiro, não tem condições de suprir. Mesmo se a brasileira tiver
condições de suprir, mesmo com o regime brasileiro, aí ele não interfere. Se houver
possibilidade de crescimento com novos investimentos da subsidiária ou com outros
investimentos de outras subsidiárias em outros países, o regime não prejudica. “Mas
diminui o meu caixa!”. Muito bem, então aí você precisa de uma pesquisa empírica
dentro de cada empresa para verificar qual é o impacto. Então vamos desmistificar
este ponto. O regime brasileiro não interfere com a competição da subsidiária no seu
país. Só interferirá se, de alguma forma, ele dificultar que, em havendo necessidade
de novos investimentos a empresa brasileira se veja impedida ou dificultada de
fornecer para a subsidiária mais recursos além daqueles que ele já gerou.
(...)
Não é só o plano, o problema é de disponibilidade efetiva de caixa. Eu teria que a
brasileira não tem caixa para remeter à sua controlada porque a empresa está
comprometida com outras coisas, com outros investimentos no Brasil, com o
pagamento de tributos no Brasil e, portanto, não sobraria dinheiro para aumentar o
investimento no exterior. Este é que é o ponto.
A visão apresentada pelo referido professor de direito, apesar de plausível, não se
sustenta pois desconsidera o fato de que, muitas vezes, as empresas são obrigadas a repatriar
renda do exterior para poderem adimplir com a tributação incidente no Brasil sobre os lucros
auferidos no exterior fato que reduz a sua capacidade de reinvestimento, ensejando perda de
capacidade competitiva.
A perspectiva adotada por Marco Aurélio Greco parte de uma separação formal da
personalidade jurídica da sociedade controladora ou coligada e da sociedade controlada ou
coligada residente no exterior que leva ao equívoco de se inferir que as duas sociedades são
entidades econômicas autônomas. Adotar essa perspectiva é plausível para uma análise de
repercussões jurídicas (e.g. definição de responsabilidade civil). No entanto, adotá-la para
definir as repercussões econômicas consiste, na opinião deste autor, em um erro já que
desconsidera o fato de que um grupo societário deve ser visto como um único grupo
econômico. A compreensão mais adequada da dinâmica do sistema financeiro empresarial
deve sempre se respaldar na visão do todo, ao invés da visão segmentada das personalidades
jurídicas que o compõe.
Em relação aos entrevistados que pertenceram a cargos de elevado escalão do Poder
Executivo no que concerne à arrecadação tributária, a sua visão, apesar de divergentes em
diversos pontos, é mais crítica quanto ao regime jurídico vigente atualmente.
A entrevista realizada com Everardo Maciel revela, conforme se demonstrou no
capítulo 3, que o regime assumiu forma abrangente pois a sua criação havia precedido uma
discussão sobre elisão fiscal internacional considerada essencial para que o regime possuísse
contornos antielisivos de modo a combater somente o planejamento fiscal internacional
251
considerado abusivo, ou seja, aqueles que envolvessem a criação de estruturas societárias em
paraísos fiscais e em regimes fiscais privilegiados. Em um primeiro momento da entrevista, o
ex-secretário da Receita Federal do Brasil, que foi o autor da proposta encaminhada à
Presidência da República do regime de tributação em bases universais, negou que o regime
poderia afetar a internacionalização produtiva ou a competitividade das empresas de capital
nacional que operam em mercados externos. No entanto, ao final da entrevista, ele reconheceu
que o regime “pode eventualmente ter” efeitos concorrenciais negativos e defende que o
regime deve ser revisto diante de um debate mais maduro sobre o tema da elisão fiscal
internacional. Leia-se o trecho da entrevista a qual é feita referência:
Entrevistador: Então, apenas para finalizar, o Senhor não acredita que hoje a norma
possua qualquer tipo de efeito sobre a internacionalização das empresas nacionais e
a sua competitividade nos mercados internacionais?
Entrevistado: Não, pode eventualmente ter. Pode e deve ser revista. Mas ser revista
também em um contexto em que se revise a nova conformação da elisão fiscal. O
propósito, como você falou aqui é antielisivo, faz sentido. Tem todo sentido o que
você está falando. Só que nós estávamos discutindo esta norma no tempo em que a
palavra elisão sequer constava no vocabulário. Eu escrevia no Word e ele censurava!
Então era neste contexto.
O ex-subsecretário da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinícius Neder, assume uma
postura bem mais crítica frente ao regime de tributação em bases universais adotado pelo
Brasil. Segundo ele, o regime brasileiro, por possuir uma regra antidiferimento aplicável de
forma geral a qualquer tipo de rendimentos auferido em qualquer jurisdição fiscal, prejudica
concorrencialmente as subsidiárias das empresas de capital nacional na conquista de novos
mercados. Veja-se o trecho da entrevista realizada em que ele expõe de forma clara e objetiva
o seu posicionamento:
A minha avaliação é que, atualmente, essa legislação está prejudicando as empresas
nacionais. Ela obriga a tributar imediatamente na apuração do balanço enquanto que,
muitas vezes, não há planejamento de repatriação desses recursos. Eles seriam
utilizados para investimentos enquanto que, em geral, a distribuição de dividendos é
muito posterior, levando as empresas a se descapitalizarem e muitas vezes, na
concorrência internacional, os países onde se realizam as operações conseguem
incentivos fiscais às empresas para determinadas atividades. No sistema que tem
hoje, a tributação automática ao final de ano acaba capturando as isenções e
tributando-as no Brasil, diminuindo a competitividade das empresas nacionais.
Então, eu entendo que essa nossa legislação deve ser aperfeiçoada agora para que
nós reformulemos elas, podendo até mesmo adaptá-las ao modelo internacional que
quase todo mundo usa.
252
Fica claro, na exposição dos resultados das entrevistas realizadas com funcionários e
ex-funcionários da RFB, que não há um consenso entre eles quanto às vantagens e
desvantagens do regime de tributação em bases universais adotado pelo ordenamento jurídico
brasileiro. De modo geral, os funcionários de escalão médio entrevistados tenderam a
defender as vantagens decorrentes do regime, em especial, a sua eficiência arrecadatória e os
seus relativos baixos custos de fiscalização e controle talvez até por uma postura mais
corporativista. Por outro lado, os funcionários de maior escalão entrevistados assumiram uma
postura muito mais crítica quanto o regime.
253
ANEXO A
TABELAS E GRÁFICOS
(INTERNACIONALIZAÇÃO PRODUTIVA NO BRASIL)
Tabela 1
254
Tabela 1 (Conclusão)
255
Gráfico 1
256
Tabela 2
257
Gráfico 2274
274
FONTE (todos os gráficos deste Anexo A): HIRATUKA, Célio e SARTI, Fernando. Investimento direto e
internacionalização de empresas brasileiras no período recente. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA). Brasília, 2011.
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