a mulher de preto 2 | anjo da morte - visionvox · a casa do brejo da enguia. Úmida, em ruínas,...
Post on 24-Aug-2020
2 Views
Preview:
TRANSCRIPT
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha é devastada por bombas alemãs. Enquanto os desafortunados encontram seu fim em meio a escombros e explosões em uma Londres arruinada, os sobreviventes buscam proteção nas estações de metrô e as crianças são enviadas para a zona rural para fugir do horror da Blitz.
A professora Eve Parkins é responsável por um desses grupos de crianças que segue para o campo. O destino: a Casa do Brejo da Enguia. A nova residência, localizada em um pântano e sempre encoberta por uma espessa bruma, agora está reformada e pronta para servir de escola e abrigo. Porém, existe algo na casa que deixa a jovem professora inquieta. Um mofo preto que parece se esgueirar pelas paredes, pesadelos angustiantes e um ruído aterrador vindo do porão à noite.
Edward, uma das crianças do grupo, tem um passado trágico. Após testemunhar a morte da mãe em um ataque aéreo, ele se retrai completamente. Sempre afastado, busca consolo em um fantoche que encontra na casa. No entanto, longe de ser apenas um brinquedo, o boneco parece servir de instrumento para o menino conversar com alguém.
Logo os novos residentes da Casa do Brejo da Enguia percebem que há mais uma pessoa entre eles. E ela parece ter planos para os visitantes.
Acasa
ACasadoBrejodaEnguia.Úmida,emruínas,rejeitadaeinabitada.Ela se manteve erguida solitária na ilha do Brejo da Enguia durante
grandepartedoséculo.Cercadaporumabrumaespiraladaqueatornamaisescura e cinzenta; e porumchuviscopegajoso e geladoqueadeixamenosnítida,acasaseagigantaatravésdanévoa.Vazia.Masnuncasilenciosa.Aáguaseagitaesussurraaoredordailhaondeacasafoiconstruída.Bate
nasmargensdobrejoque cercaa construção.Penetrano solomaismacio,transformando-o em areia movediça, pronta para reivindicar as vidas dosviajantes que se afastaram do caminho, para sugá-los e cobri-los, engolirpessoas inteiras, manter a superfície inalterada, como se ninguém nuncahouvessepassadoporali.Sobasuperfície,aáguaseagitacomosconstantesmovimentos escorregadios e contorcidos das enguias; cobras com rostosfuriosos,alimentam-sedequalquerservivoqueseaproxime.A casa permaneceu imperturbada durante décadas. Como um antigo
amontoadodepedraspesadas,elaesmaeceu,massobreviveu,ruindo,porémainda de pé. No entanto, há umamovimentação na ilha, na casa. Recente.Indesejada.Aportaestáaberta.Elalançaumaluzàescuridão,fazapoeiraseerguer,
pequenosanimaisseesconderemnassombras.Pinturasforamremovidasdasparedes;velhasfotografias,documentos,papéiseenfeitesforamjogadosemcaixas,armazenados.Nolugardisso,coisasdiferentesentraramnacasa.Coisasnadafamiliares.
Coisasestranhas.Pesadascortinasnegrasforampostasnasjanelas,criandoum mundo novo no interior. Camas de ferro fundido foram carregadasescada acima e arrumadas nos quartos, e colchões foram colocados sobreelas.Acasateránovosocupantes.
Agora, umespesso cabonegro serpenteiaoperímetroda casa, adotandoformas retorcidas, sinuosas, um espelho sombrio das enguias que secontorcemnaáguaabaixoeemvoltadaconstrução.Ocaboseconectaaumgerador que emite um zumbido constante nos corredores e nos aposentos.Máscaras de gás estão penduradas em ganchos, seus olhares vazios eesbugalhados anunciando as primeiras boas-vindas que os recém-chegadosreceberão.Omatagalnoentornodacasatambémfoilimpo.Lentamente,umjardim,
há muito incorporado pelos arbustos, começa a despontar. E, com ele, orestante da ilha. Até mesmo as lápides do cemitério tiveram as ervasdaninhaseomusgoremovidos,tornandoosnomeslegíveisoutravez.Acasaestápronta.Acasaestáesperando.
Ogaroto
O Spitfire britânico deu uma guinada para cima, então virou e, com osmotores zunindo, investiu sobre o pelotão, suas duas metralhadorasfrontaisdisparandorajadasmortais.Os soldados gritavam “Achtung! Schnell! Heil Hitler!”. Eles usavam os
uniformescáquidossoldadosdainfantariabritânica,masexclamavamemum alemão caricato. Os homens caíam de costas e de lado, pesados eimóveis,aspernasparaoar,osbraçosaindaemristesegurandoosrifles.O Spitfire subiu em mais uma manobra e retornou, silvando ao se
aproximar. O piloto se comunicava pelo rádio com o tom suave e calmotípicodaForçaAéreaReal,odiscursodedespedidacobertodeestática.Oaviãoestavapreparado,prontoparaatacaroutravez,paramatarospoucossoldados alemães que permaneceram de pé. O manete completamentepuxado,oroncodosmotoresaumentou...Oaviãoparou.Totalmenteimóvel.Elepairavasuspensonoar.Ogarotoqueoseguravaergueuacabeça,inclinadadelado,paraescutar
melhor.Tinhaescutadoalgo.Umavoz.Umavozquechamavaporele.Eapenas
porele.Omeninosevirouecaminhouemdireçãoàjanela,atraídopelavoz.Sua
brincadeira,esquecida;estavaalheioaossoldadinhosdechumbonochão.Seus pés desceram os esmagando e fazendo com que estalassem,entortando-osatéficaremdeformados.Elebrincavaemumquartonosegundoandardoquehaviasobradode
uma casa bombardeada. Sua própria casa ficava do outro lado da rua, aúnica via que restava na região. Todas as outras haviam sido destruídaspelasbombasalemãs.
A voz era insistente, atraindo-o. Ele chegou à janela, parou diante dovidro quebrado. Inclinou o corpo para a frente, passando a cabeçalentamentepeloquadradovazio,opescoçopróximodasbordasafiadas.A silhueta escuradeumamulher estavaparadana soleiradaportade
umacasadoladoopostodarua.—Edward!Edward!Eraamãedele.—Venhacá,agora.Rápido...Ogarotopiscouportrásdosóculosdelentesgrossas.Elepodiaouviro
ruído de um avião, não o avião da brincadeira anterior, e sim um deverdade. Escutou o ruído novamente. Uma esquadrilha inteira seaproximavae,acimadessesom,olamentofamiliaredeprimentedasireneanunciandooataqueaéreo.Ele baixou os olhos para a entrada da casa mais uma vez. Sua mãe
gesticulavaparaeleseapressar,sairdaquelacasa,desceratéoabrigo.Elavestia o casaco de lã preta, sua peça para casamentos, funerais emissas,aquelaquesempreusavaduranteataquesaéreos.—Meuúnicocasacobom.—Eleaouviradizermuitasvezes.—Vãoter
demeenterrarcomele.Ogarotoolhouparaaminiaturadebrinquedoaindaemsuamão,então
sevirouparaocéu.Aviõesdeverdadeseaproximavam,nenhumdeleseraum Spitfire. Ele deixou o brinquedo cair no chão e, ao aterrissar, umapequena nuvem de poeira se ergueu das tábuas de madeira rústicas.Edwardviroudecostasparaajanela,agoraansioso,prontoparadesceraescadacorrendo.Otempoparou,prendeuarespiração,entãoacelerou,eogarotoescutou
ofimdomundoenquantoeralançadoparatrásnochãoquetremia,ovidroquerestavanasjanelasseestilhaçando,voandosobreele.
QuandoEdwardabriuosolhos,achouqueestavanoParaíso.Piscou.Sentou-se.Não.Aindaestavanoquartodoandardecima,ainda
onde havia caído. O garoto fez uma rápida inspeção em si mesmo,descobriu que ainda conseguia se mover. Seu corpo doía, mas ele nãopareciaterquebradonada.Edwarddeuumarisadinharouca.Estavavivo.Eletinhasobrevivido.Seu rosto estava coçando e molhado, ardendo. Edward passou a mão
nele. Parecia uma lixa, áspero e dolorido. Ele afastou amão e a estudou.Sangue.Ovidroestilhaçadoohaviacortado.
Elecorreuatéoquetinhasobradodajanela,prontoparagritar,paradaraboanotíciaàmãe,dizeraelaparanãosepreocupar.Porémsuamãenãoestavalá.Havia apenas escombros onde a casa ficava, e debaixo do monte de
entulhosdespontavaumpedaçodeumcasacopreto.Edward ficou observando fixamente, incapaz de se mover, enquanto
compreendia o que havia acontecido. Lágrimas se acumularam em seusolhos,começaramaescorrerpelasbochechas,misturando-seaosangue.Suamãehaviapartido.Elaestavamorta.Sentiu o pesar crescer internamente, fervilhando, sombrio e tóxico.
Edwardgritava,soluçavaegritavamaisumpouco,anunciandosuadoraomundo,comoseelanuncafossepassar.
Hopeintheireyes
EveParkinssabiaquehaviacoisaspioresatemerqueaescuridão.Masissonãosignificavaqueelagostavadoescuro.Ouqueumdiafossegostar.A estação demetrô estava se tornandomais familiar que seu próprio
quarto.Seguraamesmarotinahaviamaisdeummês.Deitartremendonochão esmaecido da plataforma, noite após noite, ao lado de completosdesconhecidos enrolados em cobertores se apoiando nos ladrilhos deporcelana da parede, como cadáveres rígidos e amortalhados em umnecrotério.CadaumdelesrezandoparaquenestanoiteaLuftwaffeerrasseoalvo,paraqueaartilhariaantiaéreativessesorte,paraqueaForçaAéreaRealobtivessesucessoemumbombardeiodiurnodooutro ladodocanalparadebilitarocontingentealemão.Eparaqueninguémmorresse,pelomenosnenhumdosalipresentes.E
aindaparaquehouvesseumacidadeparaelespelamanhã.Eveobservouafila.Haviatodotipodegenteali,pensou,naplataforma
comela.Jovens,idosos,gordos,magrosetudoentreessesextremos.Todosdiferentes, mas, ao mesmo tempo, com os rostos exibindo o mesmocansaço,amesmadesolação.Alguns tentavamcantarunsversosde “TheWhiteCliffsofDover”para
manteromoralelevado.Apósoprimeiroamaioriadasvozesdefinhou.—I’llneverforgetthepeopleImet...Uma voz solitária continuava cantando, trêmula, ecoando nas paredes
friaseseperdendoaolongodotúnel.—Bravingthoseangryskies...Outros se juntarammais uma vez, suas vozes comovidas, tentando se
elevar.Porémaquiloaindapareciafalso,assombrado.—Irememberwellastheshadowsfell,thelightofhopeintheireyes...
Asvozesdesapareceram.Ninguémsemoveu.O ruído dosmotores podia ser ouvido do lado de fora, vindo de cima.
Todossabiamoqueaquilosignificava.Asrajadasemstaccatodasbateriasantiaéreas que respondiam ao som constante apenas confirmavam asuspeita.Osbombardeirosestavamdevolta.Ouviu-seumgemido,diferentedosomdosmotores.Entãooutro.Emais
outro.Todos prenderam a respiração. As lamparinas a óleo penduradas ao
longodasparedesiluminavamcorpostrêmulos,olhosamedrontados.Entãoasbombascaíram.Asparedesestremeceramebalançaram.Gesso
epoeirasedesprenderamdelas.Pessoasseencolheram,pularam.Algumaslamentaramegritaram,entãotentaramrecuperaroautocontrole.Nãoeraagradávelsurtardiantedosoutros.Evefechouosolhos,tentouseimaginaremoutrolugar,emalgumlugar
quente,ensolaradoeseguro.Outraexplosão.Outrachuvadepoeiraegesso.Ela abriuosolhosnovamente.Denadaadiantava.Estavaali.Agora.As
bombasnãoiriampararsóporqueeladesejavaisso,entãotinhaapenasdelidarcomasituação.Eve prestou atenção à fileira de rostos, seu olhar parando sobre um
menininho. Estava de pijama, os cabelos desgrenhados. Ele segurava umursinho de pelúcia esfarrapado, agarrando-se ao brinquedo como se suavidadependessedaquilo.Comcadaexplosãodistante,osolhosdomeninosemoviam,aterrorizados,outralágrimaameaçandosederramar.Evesentiualgodentrodelasepartirefoisesentaraoladodogaroto.Ela
sorriu.Eraumsorrisocalorosoqueiluminavaseurosto,oferecendocertoesplendor,mesmonaescuridãoiluminadaalamparinas.—Qual é o nome dele?— perguntou Eve, olhando para o ursinho de
pelúcia.Omeninoaencaroufixamente,quaseincapazdefalar.—Urso—respondeudepoisdealgumtempo,suavoztãoesmaecidae
debilitadaquantoobrinquedo.—Evocêestácuidandodele?Omeninofezquesimcomacabeça.—Entãovocêvaigarantirqueelenãofiquecommedo?—continuouela.Omeninopensouporuminstante,olhouparaoursinho,entãodevolta
paraEve.Elebalançouacabeçademaneiraafirmativa.—Issoébom—comentouEve.—Agenteprecisademeninoscorajosos
comovocê.Osorrisodelaaumentou,fixadonomenino,quegradualmentecomeçou
aretribuí-lo.Seguroagora,tranquilizado.—Comovocêfazisso?Uma mulher ao seu lado estava encolhida junto à parede em um
cobertor. Era mais velha que Eve, apenas alguns anos, porém apreocupação e a exaustão em sua expressão faziam a diferença pareceraindamaior.Evesevirounadireçãodela,franzindoocenholevemente.—Noiteapósnoitedisto—prosseguiuamulher—,evocêaindasorri...Antes de responder, Eve olhou mais uma vez para o túnel que se
alongava.Eleestavaescuro,vazioepareciainfinito.—Nãotemoutrojeito,nãoé?—retrucou,suavoztãoanimadaquanto
elaconseguiufazersoar.Amulhernãopareciatertantacertezadaquilo.Eracomoseafadigaeo
cansaço a consumissem antes das bombas. Ela franziu a testa para Eve,claramentesemacreditaremsuaspalavras.Soboolhardamulher,osorrisodeEvetitubeou,eelasevirou,olhando
paraotúneloutravez.
Amanhãseguinteestavatristeecinzenta,deprimenteeinvernal,enquantoEve saía da estação de metrô, limpando a poeira das roupas. Ela haviasobrevividoàoutranoite.Eveolhouasuavolta.Acidadeestavaaindamaisarruinadaemarcada
pela destruição que na noite anterior. Havia escombros de lojas, bares ecasasportodolado.Ummanequimquebradoestavapenduradonavitrinedeumaloja,balançandocomoumladrãoenforcado.Tudooquerestaradoandardecimaeraumaparedecomumalareiraintacta,massemochãoouasalaemtorno.Aoladodelaestavaumarmário,aportarangendonabrisa,uma pilha de tigelas de porcelana balançando na prateleira. Elas caíram,estilhaçando-se, juntando-se aos escombros. As fotografias de algumafamília voavam pela rua; crianças felizes e sorridentes removidas do lar,memórias,lembrançasdeumavidaperdidasparasempre.Eveestavaviva.Masacidadepareciamorta.Ela verificou seu relógio enquanto corria para casa. Precisava fazer as
malas.Eveestavaindoembora.
Maissegurasnocampo
Eveestavaapenaslevementesemfôlegoquando,vestidadeformaelegantee comamalanamão, entrouna estaçãodeKing’s Cross. Ela achavaqueprecisavacomeçardozero.Ehojeseriaodiapara fazer isso.Estava indoemboradacidade.Indoaalgumlugarseguro.Fuligemcobriao vidrodo tetodaestação, enquantoovapordos trens
flutuavaacimadascabeças.Olocalestavavivocomchegadasepartidas,oclangor e o tinido dos trens e dos passageiros. Reuniões alegres eseparações sofridas aconteciam por todo lado. O ar estava carregado deuma energia frenética e nervosa enquanto a esperança e o desesperotransformavamidasevindasrotineirasemquestõesdevidaoumorte.Cartazes cobriam todas as paredes da estação. Diversas variações das
propagandas que diziam “Conversas descuidadas custam vidas” estavamespalhadas,assimcomoconclamaçõesde“Plantepelavitória”.Umhomemaustero, com rosto vermelho e um olhar furioso, vestido como apersonificaçãodoReinoUnido,paradodiantedeuma filade soldadosdainfantaria,apontavaumdedoacusatórionadireçãodetodosquepassavameperguntava“QUEMESTÁFALTANDO?SeriaVOCÊ?”.O cartaz deixou os soldados aindamais evidentes para Eve. Os jovens
otimistas, com a expressão descansada, ansiosos para lutar contra osalemães,contrastandocomoshomensferidoseenfermosqueretornavam:cabeças baixas, olhos voltados para o chão enquanto caminhavam pelocorredor. Os jovens soldados se esforçavampara não olhar para aquelesqueretornavam,ignorandoapresençadelesparaevitarqueamásortesetornasseumainfecçãotransmitidapeloar.Eve ouviu um choro logo atrás dela e, virando-se, viu umamãe com a
filha.Eradifícildescobrirquemchoravamais.Amãeseagarravaàfilha,ea
garotinha faziaomesmo,atéqueparentesbem-intencionadas separaramasduas,levandoameninaembora.— É para o bem dela — escutou Eve. — Ela vai estar mais segura
conosco.Eve pensou no menino na estação de metrô na noite anterior. Ela
esperavaquealguémestivessecuidandodele,garantindoqueestivesseemsegurança.Opensamentotrouxelágrimasaseusolhos.“Mães, enviem-nos para fora de Londres”, dizia um cartaz na parede
acimadamãe chorosa.Mostravaummeninoeumameninadepijamaseroupões, encostados a um muro de tijolos. Abraçados, assustados eapreensivos, seus olhos tinham expressões sombrias e traumatizadas. Aolado deles, outro casal de irmãos, mas estes eram querubins bucólicos,loiroserechonchudos.Ogaroto,comoscabelosperfeitamenterepartidoseengomados, passava um braço protetor em volta da irmã com cabeloscacheados. Os dois pareciam satisfeitos e animados. Sob eles estavaenunciada a razão para tal felicidade: “As CRIANÇAS estãomais seguras nocampo...Deixem-naslá.”Eveesperavaqueissofosseverdade.Sim.Eratudooquepodiafazer.Não demorou muito para ela ver a mulher com quem deveria se
encontrar. Dez anosmais velha, com olhos frios e costas completamenteeretas,paradacomoseprestasseatençãoatudoasuavolta,JeanHoggeraadiretoradaescoladeEve.Em volta de Jean estava um grupo de crianças, todas parecidas com
aquelasassustadasdoprimeirocartaz.Jeanhavianotadoalgodeerradonocasacodeumdosgarotoseestavaabaixadaparaajeitá-lo,repreendendoopobre menino por não abotoá-lo devidamente, enquanto Eve seaproximava.— Bom dia, diretora — saudou Eve, com um sorriso no rosto. Então
olhou para todos os outros, oferecendo-lhes um sorriso ainda maior.—Bomdia,crianças.—Bomdia,Srta.Parkins—responderamtodasemconjunto,aspalavras
ditasdeformamecânicanashabituaisvozescantadas.Algumas foramcapazesde retribuiro sorriso.Eve sentiuumcalorpor
dentroquandofizeramaquilo.Jean se levantou e a examinou cuidadosamente. Durante um segundo,
Eveseperguntouseadiretoraencontrariaalgumdefeitoemseucasaco.—Vocêestáatrasada—repreendeuJean.—Minha...ruafoiatingidaontemànoite.AexpressãodeJeansugeriaqueumabombanãoeradesculpaparafalta
de pontualidade, enquanto Eve observava as crianças. Eram sete, trêsmeninas e quatro meninos, a mais nova tinha 7 anos, a mais velha, 11.Todas levavam suas própriasmalas e cada uma carregava uma pequenacaixa de papelão com “Máscara de Gás” escrito na lateral. Eram criançaspobres, do centro da cidade, e nenhuma delas estava acompanhada dospais.—Devemosprocurarotrem?—perguntouEve.—EstamosesperandoEdward.PelotomdeJean,EvepodiadizerqueEdwardestavaemumacategoria
deatrasoaindapiorqueadela.Evefranziuatesta.—Penseiqueamãedeleotrariaaqui.OolhargeladodeJean—porapenasumsegundo—cedeu.— A casa deles foi atingida há duas noites. Ele é órfão agora. — Ela
deixoudefitarEve,analisandoocorredor.—Aquiestáele.Eve seguiu os olhos da diretora, ainda tentando absorver o que havia
acabadodeescutar.Edward—umórfão.Todas as crianças se viraram para observá-lo se aproximar, cada uma
alegando ser a primeira a avistá-lo. Eve sabia como eram as crianças.Qualquercoisaforadocomum,diferente,eraumespetáculo,especialmentequando envolvia calamidade e perda. O garoto, querendo ou não, seriaagoraumacelebridade.Edward caminhou lentamente em direção ao grupo, um homem mais
velho segurava sua mão, acompanhando-o. Mas, ao contrário das outrascrianças, ele não tinha umamala, carregava todos os seus pertences emumasacolaremendada.Oscortesnorostocausadospelaexplosãoestavamsarando e seus óculos foram consertados, porém Eve podia dizer, pelaexpressãodomenino,oquantoeleodiavaserocentrodasatenções.—Vamoslá,Edward,sejaumbommenino—encorajouJean,esperando
que sua autoridade fosse notada imediatamente. — Precisamos pegar otrem.ElaestendeuamãoparaEdward,maselenão feznenhumamençãode
segurá-la,oumesmodesemoveremsuadireção.Ogarotoseagarrouaohomemaseulado.Eve se moveu rapidamente na direção de Edward, agachando-se para
ficarnaalturadele.—Edward—disseEve,tentandofazê-loolharparaela—,sintomuito...Edwardnãorespondeu.Evetentouumsorriso.
—Você vai... Você vai vir coma gente agora—continuouela.—Paralongedetudoisso.EdwardcontinuousemrespondereEveacabouselevantando.—Elenãofalouumapalavradesdeoacidente—explicouohomem.—
Imaginoquevocêsejaaprofessoradele.—Sim.—Eusousóumvizinho.Tenhocuidadodeledesde...vocêsabe.—Ele
apertouamãodogarotocarinhosamente.—Vamoslá,Edward.Vácomamoça.Sejaumbommenino...OhomemsoltouamãodeEdward.—Nãoseesqueçadosseusdoces—avisouele, colocandoumsacode
papelnobolsodomenino.Edwardpermaneceumudo.EvesegurouamãodeEdwardeolhouemseusolhosmaisumavez.Eles
estavamvazios,silenciosos.Nãohavianadaali.Nadaqueelapudesseler.Nadaqueelapudessealcançar.Eve o levou até as outras crianças. Estava na hora de embarcarem no
tremparairemboradeLondres.Estavanahoradeficarememsegurançanovamente.
ForadeLondres
Mesmo no curto espaço de tempo que passaram no trem, Eve notou amudança no humor das crianças. Conforme os escombros da cidadebombardeada eram substituídos por vilas menores e finalmente pelocampo, a grandiosidade do que estava acontecendo começou a serpercebidaporelas.Ascriançascomeçarama ficar inquietasnosassentos,nervosas e animadas. Elas estavam fora de Londres, deixando suas vidasnormaisparatrás,partindoemumaaventurarumoaumnovomundo.Eve percebeu que as crianças se dividiram em dois grupos no vagão
lotado,meninosemeninas.Elaestavasentadacomosmeninos.Tomeraomaisvelhoe,honestamente,aqueledequemEvemenosgostava.Elasabiaquenãoerabomumaprofessorapensardessaforma,pelomenosnãoemrelação a crianças, mas não conseguia ser diferente. Ele tinha umcomportamento maldoso, e ela havia tentado dar um jeito nisso, semsucesso. Se alguém fosse intimidado, ela sabia por experiência que Tomseriaoresponsável.AoladodeTomestavaAlfie.Acimadopesoeextremamenteinteressado
na Força Aérea Real, ele alegava conseguir identificar um avião apenasouvindoseusmotores.Mas,apósosataquesaéreosemLondres,aquelanãoera uma habilidade exclusiva dele. Alfie e Tom olhavam pela janela,fascinadoscomoqueviam.Diante de Tom e Alfie estavam James e Edward. James era o melhor
amigodeEdward,mas ele evidentemente não sabia lidar coma situaçãoatualdocolega.Sempreolhavaderelanceparaomeninomudoetriste,odesejodeajudaremconflitocomaincapacidadedefazê-loestampadosemsuaexpressão.Edwardapenasolhava fixamenteparao sacodedocesnocolo.
Jean,comorostoescondidoatrásdoDailyExpress,estavasentadacomas três meninas. A mandona Joyce; Ruby, sua fiel escudeira; e Flora. Oirmão mais novo de Flora, Fraser, que fungava como se tivesse umresfriado permanente, também estava sentado com elas. Flora deveriaestarcuidandodele,maseraevidentequenãoofazianomomento.Emvezdisso, olhava fixamente para Edward. Eve sabia que Flora tinha umaquedinha por ele, mas a forma como a garota o estava encarando nestemomento ia além disso. Eve olhou para as outras crianças. Agora todasestavamobservandoEdward,fascinadasporsuaimobilidade,pelofatodeeleestarsimultaneamentecomelaseausente.Jeanabaixouseujornal.—Éfaltadeeducaçãoencarar,crianças.Joyce,Ruby,FloraeFraserimediatamentedesviaramosolhosdadireção
deEdwardeficaramsentadasemumsilêncioconstrangedorepasmo.—Vocêspodemconversarentresi—concedeuJean,suavozumpouco
maisbaixa,porémaindaformal.—Baixinho.Mas elas não conversaram. Não na frente de Jean. A diretora era uma
figuraimponentedemaisparaelasfazeremisso.Eve observava a paisagemdo campo que passava pela janela, as cores
vívidas como um filme em tecnicolor depois da escuridão monótona deLondres.Seusolhossefecharam.—Vocêdevetercomeçadocedo.Elaosabriunovamente.Todasascriançasaindaestavamali,assimcomo
Jean,masoutrapessoa tinha se juntado a eles e ocupavaumassento emfrenteaodelanovagãolotado.Eleerajovemebonito.EssasforamasprimeirascaracterísticasqueEve
notou.Tambémestavavestidocomelegância.SeuuniformedaForçaAéreaRealindicavaopostodecapitão.—Oquevocêdisse?—perguntouela.Ele apontou para as crianças. Eve notou imediatamente seus braços
fortes,aformaatléticacomofezomovimento.—Parateroitocrianças—explicouele.Evesorriuesentiuseurostocorarlevemente.—Elasnãosãominhas.O capitão da Força Aérea Real retribuiu o sorriso, erguendo uma
sobrancelha.—Entãovocêassequestrou?—Souaprofessoradelas.Evesentiuocalornovagãoaumentarderepente.
—Excursãoescolar?—Nãoexatamente—respondeuEve.—Ospaisdelasnãopodemsairde
Londreseelesnãotêmoutrosparentes...—Evedeudeombros.—Entãoaslevaremosaumacasanocampo.Ocapitãofranziuocenho.—Sozinhas?—Outrasescolasvãoestarlátambém.—Eveseinclinouparaohomem.
—Nãoseisevocêouviufalar,mastemumaguerraacontecendo.Ocapitãosorriuoutravez,prontopararesponder,masaatençãodeEve
tinhasidodesviada.—Ondevocêconseguiuisso?ElasedirigiaaTom,ogarotomaisvelho,queseempanturravadebalas
dealcaçuzdeumsaco.—FoiJamesquemedeu—respondeuTom,comabocacheia.EveolhouparaJamescomumaexpressãosevera.—James,vocêsabequeosdocessãodeEdward.— Ele não estava comendo — explicou-se James, mas não havia
convicçãoemsuavoz.Evemanteveacalma.Tomdeviatê-lastomadoeintimidadoJamespara
queeleassumisseaculpa.ElasabiaqueJameseraumgarotodecente,aocontráriodeTom.—Devolvaosdocesepeçadesculpas—ordenouela.—Sim,professora—acatouJames.EletomouosacodedocesdeTome
o devolveu a Edward.— Sintomuito— disse ele, olhando nos olhos doamigo.No entanto, Edward não emitiu nenhum som. Ele nem ao menos se
moveuquandoosacofoicolocadoemseucolo.—Aondevocêsestãoindo?Era o capitão da RAF novamente. A voz afastou Eve dos garotosmais
umavez.Elasevirouparaohomem.Esboçouumsorriso.—Estousendointerrogada?Ocapitãoretribuiuosorriso.Seusolhosrefletiramaluz.—Talvez.OsorrisodeEveaumentou.—Entãogostariadesaberseunomeesuapatente.—CapitãoBurstow—respondeu,eEvequaseesperavaqueelebatesse
continência.—MaspodemechamardeHarry.—Eve—apresentou-seela.—MaspodemechamardeSrta.Parkins.DestavezHarrybateucontinência.
—Prazer em conhecê-la, Srta. Parkins. E posso lhe perguntar aonde asenhoritaestáindo?—Pode—respondeuela.—EstamosacaminhodeCrythinGifford.Eleergueuasobrancelhanovamente,genuinamentesurpresodestavez.—Sério?Eutambém.—Eoquevocêvaifazerlá?—Soupilotodebombardeiro—respondeuele,tentandonãodarmuita
importânciaàspalavras,poissabiaqueaquiloaimpressionaria.Evedeuumarisadinha.—Éoquetodosdizem.Harrydeudeombros.—Alguémtemdepilotarosaviões.Suavozhaviamudado,seutomestavamaissombrio,maissério.Notando uma ponta demágoa em suas palavras, Eve o observou com
mais atenção. Havia virilidade em seus modos e ele tinha umatranquilidadeeumacalmaque,paraela,sugeriamumaespéciederebeldia.Porémalgohaviabrilhadoemseusolhos.Apenasporuminstante,quandoeleresponderasuapergunta;estavalá,entãosumira.Suarebeldiapareciaenvolverumaespéciedelutainterna,paraalémdaguerranoexterior.MasEvehavianotadoereconhecidoaquilo.Harrydesviouosolhosdela,acendeuumcigarro.—Eu...sintomuito—falouEve.—Nãofoiminhaintenção...Eleolhounovamenteparaela,comafumaçaescondendosuaexpressão.—Éconfidencial,entãonãoconteaninguém.—EleseinclinouparaEve
eafumaçasedissipou.Haviaumbrilhoemseusolhos.—Ouentãovouterdeatiraremvocê.—Nãosepreocupe—respondeuEve—,podeconfiaremmim.EelasorriuparaHarrymaisumavez.Osorrisoque,esperava,deixaria
tudobem.
Edward
Edwardestavaapavorado.Eleseencontravanaplataformadeumaestaçãono campo, mas nada era familiar e ele não conseguia ver nenhumconhecido.Sentiu o pânico crescer. Estava cercado por adultos, apressados,
trombandounsnosoutros,comseuscasacosde lãásperosseesfregandonele.Edwardfoijogadodeumladoparaooutro.Umafolhaaovento.Estavaperdido.Sozinho.Fechouosolhos, tentou fazeromundodesaparecer.Esperounãovera
mesmacoisaquesempreviaaocerrá-los.Osorrisodamãe,seurosto.Suavozochamando.Então:opedaçodocasacopretodamãesaindodebaixodeummontede
escombros.Edwardabriuosolhosnovamente, chocadoe surpresoporaindaestar
nomesmolocaldeantes.Porperceberqueaspessoasaindaestavamasuavolta,ignorando-o,abandonando-o.E então viu amão. Amão de umamulher.Macia. Amigável. Querendo
ajudar.Seucoraçãocomeçouabatermaisforte,seusanguecorrendomaisrápido. Era sua mãe. Ela o havia encontrado. Não estava morta afinal.Edwardtinhaapenasvistoseucasaco,sóisso.Suamãehaviatiradoapeçaderoupa,elasobreviveraeestavaaquiagora.Paraficarcomele.Edwardpiscoueumaondadetristezapercorreuseucorpoaoperceber
quenãoerasuamãe,afinaldecontas.Nãochore,disseasimesmo,porquegarotosnãofazemisso.Garotosprecisavamserfortes.Garotosprecisavamaguentaremsilêncio.Não era suamãe, nãomesmo. Era a Srta. Parkins parada a sua frente,
sorrindo.ElegostavadaSrta.Parkins.Elaofaziasesentirseguro.Elanão
haviaidoembora,nãoohaviaabandonado.ASrta.Parkinsvieraprocurá-lo.Ele correu em direção à professora, segurando suamão, pressionando
seu corpo contra o dela. A Srta. Parkins exalavaumaromade flores.Umaromaadorável.Eeraumaromadesegurança.—Edward—diziaela—,encontreivocê.Vocêseafastou...Ela estendeu o braço, acariciou seus cabelos. Ele pensou em fechar os
olhos,masnãoofez.Aprofessoraolevoudevoltaatéorestantedogrupo,queaindaestava
na plataforma, aguardando. O capitão da RAF dizia que o próximo tremestavaatrasadocercadeduashoraseadiretoraolhavaparaopilotocomosefosseculpadele.A seu redor, asoutras crianças sedesentendiam.Floraqueria algo, e a
Srta.Parkins, tendoseasseguradodequeEdwardestavabem,soltousuamãoeseaproximoudameninaparaveroqueestavaacontecendo.Edwardolhouparaochão.Haviaumapoçacongeladadivididaporuma
granderachadura.Eleconseguiaverocéuqueescureciarefletidonela,asnuvensseaproximando.Elepensounamãeesesentiusolitárionovamente.
Deslocamento
As crianças estavam cansadas. A inquietação de mais cedo havia sedissipadoe,entreperíodosdecochilo,elasolhavampelajaneladosegundotrem, observando uma noite mais escura que qualquer uma que elas jáhaviampresenciadonacidade.Seuspensamentosestavamestampadosemseus rostos. Eve sabia que elas sentiam falta das famílias e dos lares. Ajornadaasestavainquietando,deixando-asmaisressabiadascomodestinofinal.Aquilotinhadeixadodeserumaaventura.Eve não estava surpresa. O trem em que enfim embarcaram era
consideravelmente mais antigo e primitivo do que o que tomaram emKing’sCross.Eletinhabancosdemadeiranolugardosassentosestofados,as janelas estavammanchadas de fumaça e óleo, retinindo e rangendo edefinitivamente deixando correntes de ar entrar. E, para piorar tudo, adeterminaçãodemanterasluzesapagadasfaziacomqueotremtivessedeviajarnamaiscompletaescuridão.Eve olhou a seu redor no vagão. Ao luar, os rostos de todos pareciam
pálidosefantasmagóricos.Edwardestavapróximodela,encolhidojuntoaseu corpo. Ele não havia saído de seu lado desde que se perdera naplataforma. O capitão da RAF, Harry Burstow, estava diante deles. Evenotoualguémdooutroladodovagão.Umaenfermeira.Evesentiua respiração falharquandoaenfermeiravirou lentamentea
cabeçaeaencarou.Osolhoseasbochechasdamulhereramburacosnassombras,suapeletãobrancaquepareciaosso.Evesentiuopânicocrescer,repentino, agudo, e sua mão foi até a garganta, segurando com força opingentedequerubimqueusava.OcoraçãodeEveacelerou,arespiraçãodelaficoumaisrápidaenquanto
fechava os olhos e via fantasmas do passado voltando à vida.Desenrolando-se diante de seus olhos como um velho filmemonocromático. E lá estava ela em preto e branco. E vermelho. Muitovermelho.Ehaviador.Tantostiposdiferentesdedor...Não...Não...Ela fechou os olhos com mais força. Desejou que a lembrança fosse
embora.Quando sentiu que podia abri-los novamente, a enfermeira estava
olhando pela janela. Eve afastou os dedos do pescoço, deixou o pingentevoltaraolugar.—Vocêestábem?—HarryseinclinounadireçãodeEve,apreocupação
estampadaemseurosto.—Vocêpareceuterficado...perturbada.—Estoubem.Obrigada.Everespiroufundo.Outravez.Ocapitãoaindaaobservava.— Você pode parar com isso, por favor?— pediu ela, sentindo calor,
apesardofrioquefazianovagão.Harryfranziuatesta.—Pararcomoquê?Eveengoliuemseco.—Parardeolharparamim.Eledeuumabreverisada,olhouao redor, comosepedisseparao luar
confirmarsuaspalavras.—Malpossovê-la.—Bem...—Eveprocuroualgoparafalar.—Paredetentar.Elaconseguiudarseuhabitualsorriso,forçando-seamantê-lo.—Estouapenasmeperguntando...Harryergueuasobrancelhamaisumavez.—Oquê?—Oquevocêestáescondendoportrásdessesorriso.Eve se encolheu, a lembrançados segundos anteriores girando em sua
mente.— Faz parte do meu trabalho — declarou ela, tentando fazer a voz
parecercondizentecomosorriso.Harrypareciaumpoucocontrariado.—Entãovocênãoestásorrindoparamimdeverdade?Eve abriu a boca para responder, porémnão conseguiupensar no que
dizer sem insultá-lo aindamais.A verdade eraque ela gostavadeHarry,gostavadasrugasqueseformavamnocantodeseusolhosquandosorria.A
formacomoeleajeitavaoscabelosloirosonduladosquandoachavaqueelanão estava olhando. Mas não gostava da forma como o capitão seconcentravanela,oudofatodeeletervistotantadoretantomedoemseurosto.EEvesabiaquenuncamaisdeveriadeixá-loveraquilo.Ocapitãoacendeuumcigarroe,emsuavisãoperiférica,EvenotouJean
revirarosolhosebalançaracabeça.Ignorandoosdois,elaolhouparaEdward.Deseubanco,nooutro lado
docorredor,Florasorriaparaelee,comoEdwardnãosorriudevolta,elaacenouparaomenino.Noentantoelenãoretribuiuosorrisonemoaceno.Apenasaencarou.Inexpressivo.
Pareciaoesqueletodeumaestação,velhaeabandonadaparaapodrecer.Asconstruções eram de tijolos enegrecidos pela fuligem, as telhas estavamsoltasehaviaalgumasfaltando,asjanelasquebradas,amadeirapodre.Umvento gelado assobiou entre eles, agudo como uma flauta. Notasdissonantesemumasintoniaindesejada.Enquanto a fumaçado tremquepartia semisturava à brumanoturna,
Eve, Harry, Jean e as crianças se aproximaram para se aquecer naplataforma enquanto um vulto coxeante, sua silhuetamal-iluminada pelacentelhadeuma lamparinaagásquesegurava,caminhava lentamentenadireçãodogrupo.Eve sentiu as crianças se encolherem com medo do vulto,
sobressaltando-se conforme ele se aproximava. Até mesmo Jean haviaficadotensa.Orostodovultoseagigantousobreeles,surgindodabruma.—Srta.Hogg,suponho?Jean se controlou e deu um passo à frente. Qualquer medo que ela
pudessetersentidocomaaproximaçãodohomemhaviadesaparecido.—Senhora—corrigiuelacomfirmeza,umapontadeindignaçãonavoz.Ohomemriuefezumabrevesaudaçãocomacabeça.—Sintomuito.SouoDr.JimRhodes.Dajuntalocaldeeducação.Depertonãohavianadadeassustadornele.Naverdade, oDr.Rhodes
pareciabastanteamigável.As crianças, não sentindo nenhuma ameaça e vendo que a diretora
estavacuidandodetudo,relaxaramumpouco.Eve sentiu alguém encostar a mão em seu braço. Ela se virou. Harry
apontouparaaestradaatrásdaestação,entãoparaela.—Foiumprazerconhecê-la,Srta.Parkins.Euirei...visitarquandopuder.
Seusmodoseramformais,porémamigáveis,aindaassim,Eveachouqueelequeriadizeralgomais.—Porfavor—disseEve—,mechamedeE...Jeanolhouparaelacomumaexpressãosevera.—Vamos.Jáestamosatrasadosparanossoônibus.Eveaseguiupelaplataforma,entãosevirou.Maseratardedemais.Harry
játinhaidoembora.Apenasmaisumencontrobreve,pensouela.
Oônibuseraquasetãoantigoquantootrem.Ele seguiu seu caminho desde a estação, com os faróis apagados, pela
paisagem plana. Nuvens escondiam a lua e as estrelas. O campo inteiropareciaestarcobertoporumaenormemantadoExército.JimRhodesdirigiacomFraser,oirmãomaisnovodeFlora,sentadoaseu
lado.Detodasascrianças,elefoioúnicoquenãoficoucommedoquandooDr.Rhodesseaproximoumancandonanévoa.Curioso,masnãocommedo.— Por que vocêmanca?— perguntou Fraser, fungando e limpando o
nariznamangadocasaco.Eveseaproximouetocouobraçodomenino.—Fraser...JimRhodessorriu.—Está tudobem.—Elesevirouparaomenino, tentandonãotiraros
olhosdaestradaescura.—Foinaúltimaguerra.Eufiqueimuitopertodeumagranada.—ODr.Rhodesvoltouaatençãoàestradaasua frente.—Tivesorte.Eve se recostou e olhou pela janela. Seus olhos se ajustaram e ela era
capazdepercebervariadostonsdepretoecinza.Notoutambémqueelesestavam entrando em um vilarejo. Eve conseguia distinguir ruaspavimentadasquesecontorciamechalésdepedraadiante.Elaolhoucommaisatenção.Haviaalgoerrado.Haviaalgofaltando.Nãohaviapessoas.EvesevirouquandoJoycepuxouamangadeseucasaco.—Ondeestátodomundo?Osolhosdameninaestavamarregalados,acabeçainclinadaparaolado,
perplexa. Adultos têm todas as respostas, pensou Eve. Adultos sabem detudo.Elasuspirou.— Talvez... — Eve olhou pela janela novamente. — Talvez o vilarejo
tenhasidoevacuado.Porcausadaguerra.Joyceaindanãoestavaconvencida.
— Foi abandonado há anos — explicou Jim Rhodes. — A economiaprovavelmentedesandou.—Ou...Ou...—Fraserpulavaemseuassento.—Outalveztodostenham
sofridocomapeste...As outras crianças se animaram com isso e começarama se interessar
pelos arredores, preparando-se para oferecer suas próprias teorias. Evesabia como isso terminaria e abrira a boca para interrompê-las quandoJeanfoimaisrápida.—Jáchega.Nadadeperguntasduranteorestodaviagem.As crianças ficaram em silêncio imediatamente. Problema resolvido. A
expressão de Jeanmostrava que Eve era culpada por toda a situação aoencorajá-las.Aprofessora,porsuavez,ignorou-a.Edward,aindaagarradoaEve,sentiuoclimaentreelaseseprendeucom
maisforça,quandohouveumestrondo.Oônibuscambaleavadeumladoparaooutro.Ascriançasgritaramese
seguraramemseusbancos.—Droga!JimRhodesparouoveículo,levantou-sedeseuassentoeapontouparaa
janela.—Perdemosumpneu—avisouele.Oônibusestavainclinadoparaolado.Eveolhoupelajanela.Nolugardo
pneuestavaalgoquesepareciacomumagigantescalesmamorta.—Estamospresosaqui—comentouFraser.Eradifícildizerseeleestavaanimadoouaterrorizado.
Ovilarejovazio
As crianças fecharam os casacos e apertaram os cachecóis em volta dospescoços.Agrupadasdoladodeforadoônibus,batendoosdentesdefrioecomasmãosenfiadasnosbolsos,nenhumadelas falava.EvenotoucomoFloraabraçavaforteo irmão.Anoiteestavademasiadamentefria,porém,Evepercebeu,ocalafrioquetodossentiamiaalémdatemperatura.O vilarejo estava estranhamente silencioso. Vazio. Não como Londres
após os bombardeios, onde ainda havia muitas pessoas circulando,tentando colocar as vidas nos eixos novamente, continuar lutando,seguindoemfrentejuntas.Issoeraooposto.Asconstruçõesaindaestavamaqui; foram os habitantes que partiram. Pareciam estar em uma cidadefantasma.—Fiquemtodosjuntos...Evesevirou.Jeandavaumaordemdesnecessáriaàscrianças.Nenhuma
delashaviasemovido.Atrás dela, Jim Rhodes chutou o pneu, então, praguejando um pouco
mais,parasimesmodestavez,eleseguiuatéatraseiradoônibus.—Temumestepenoporta-malas—avisouele.Jeancaminhavaaseulado.—Vouajudar.JimRhodesparoudeandareolhouparaela.—Asenhora?— Já troquei muitos pneus na minha época.— Seus olhos cintilavam
enquantoelafalava,oscantosdesuabocaerguidos,quaseumsorriso.JimRhodes o retribuiu. Um pouco afobada, Jean se virou para Edward, queainda estava agarrado ao casacodeEve. Ela estendeu amão.—Edward.Porquevocênãonosajuda?
Issoeramaisumaordemqueumapergunta.EdwardsimplesmenteseagarroucommaisforçaaEve.Jeanmantevesuaposição,comobraçoaindaesticado.—Vamoslá.Voumostrarcomosetrocaumpneu.Elenegoucomacabeça,segurando-secomaindamaisforça.—Achoqueelenãovai...—começouEve,entãoparou.Jeanmarchouemdireção aEdward, segurou suamão e o arrancouda
professora.—Elenãopodeficaragarradoavocêotempotodo—falou,arrastandoo
menininho assustado com ela.— Fique de olho nas outras crianças, porfavor.Preocupadaeumpoucoassustada,Evecaminhoupelalateraldoônibus
atéondeascriançasestavamreunidas.Elasaindanãohaviamsemovidoeestavam todas olhando para o gramado na beira da estrada, olhosarregalados demedo e admiração. Eve correu até elas, imaginando qualpoderiaserafontedofascínio.Umaovelhaasestavaencarando.—Nuncaviumaovelhaantes...—Alfiepareciachocado.Fraserfranziuatesta.—Porqueelaestáolhandoparaagente?Flora,Evepercebeu,haviafechadoosolhos.—Façaelaparar...JoycesevirouparaEve,comasmãosnacintura,assumindoocontrolena
ausênciadaSra.Hogg.—Professora,elaestáassustandoascriançasmaisnovas.Seutomdevozexigiaqueumaatitudefossetomada.Evesorriu.—Éapenasumaovelha.Elanãovaimachucarninguém.Evedeuascostasàscriançaseàovelha.Ovilarejoatraiusuaatenção.Ele
se erguia emmeio à bruma gelada comoumnavio abandonado em alto-mar.Entãoelaouviualgo.Distante,masinconfundível.Osomde...Oqueera
aquilo?Vozes?Sim.Cantoria.Vindadovilarejo.Havia alguns chalés vazios a sua frente. Eles estavam velhos e seus
telhadoscediam,comervasdaninhassubindopelasparedesmofadas.Umdoschalés,elanotou,estavaqueimado,porémnãohavianenhumsinalqueindicasseumatentativadederrubarorestodaconstruçãooudeconsertá-lo. Ele fora simplesmente abandonado. Uma placa de metal quebradaestavapenduradanafachada:
IlustríssimoSenhorHoratioJerome,Advogado.
Eveconseguiuleraquiloàluzdalua.Osomvinhadointerior?Elaescutou.Sim.Achavaquevinha.Aprofessoraolhouparaacasachamuscadamaisumavezesentiualgo.
Uma espécie de força, alguma... Ela não conseguia explicar. Nem para simesma.Umfascínio?Umaatração?Eláestavamelasnovamente.Asvozes.Eramvozesdecrianças.Eveolhounovamenteparaoônibus,paraascriançasparadasaoladodo
veículo.Nenhumadelasestavacantandoeaessaalturaamaioriatentavafazercarinhonaovelha.JeaneJimRhodesestavamocupadoscomoestepe,eEdwardosobservava.Nenhumdelespareciaterouvidoasvozes.Evesevirououtravezparaochaléqueimado.Paraovilarejocongelado
nabruma.Elacomeçouaandaremsuadireção.Logoseussapatosecoavamsobreosparalelepípedosdasruas,enquanto
ela se aproximava da estrutura carbonizada do chalé. A fachada daconstruçãoestavadestruída,easduasjanelasdoandarsuperioreovazioabaixo delas a faziam se parecer com um rosto gritando. Eve tremeu. Eescutou.Criançascantavamdenovo.Aspalavraseramconfusas,carregadaspelo
vento, ganhandoeperdendo força,masela conseguiadistinguir algumas.Eraumacantigainfantil,ouumacançãodeninar.
“JennetHumfryeperdeuobebê...”
Evecontinuoucaminhando,asvozesficandomaisaltas,aspalavrasmaisreconhecíveisenquantoelaseaproximava.
“Nodomingomorto,nasegundaachadoocorpo...”
Elachegouàpraçaprincipal.Eparou.
“Quemseráopróximoamorrer?Deveservocê...”
Asvozes cessaram,aúltimapalavraecoandopela construçãodepedravazia. Eve olhou ao redor, esperando ouvir passos, correria. Até mesmorisadas, enquanto as crianças saíam correndo.Nada.Ninguém.Ela estavasozinhaemumlugarvazio.Entãoelaouviuoutracoisa.Umsom.Vindodeumadascasas.Evesevirouparaficardefrenteparaela.Destaveznãohavianenhuma
cantoria,nenhumavoz.Apenasmovimentos.—Olá?—gritouela,enquantocaminhavalentamentenadireçãodeum
doschalésemruínaseobservandoointeriordele.Emboraajanelaestivesseimundacomanosdesujeiraacumulada,elafoi
capaz de distinguir uma pequena sala. As paredes estavam úmidas e osobjetosnointerioreramescassoseempoeirados.Ochalépareciatersidoabandonadoàspressas.Eve tremeunovamente,nãoapenasporcausadofrio.Eentãoumrostoapareceudiantedela.Evegritou.
Oidoso
Eve caiu para trás em choque, perdeu o equilíbrio e bateu nosparalelepípedos.Quandoolhouparacima,orostohaviasumido.Trêmula,elaselevantou,edessavezviuasilhuetadeumidosoacuado
debaixodajanela.Estavacomasmãosnacabeçaechoravabaixinho.—Sintomuito—disseEve,falandocomeleatravésdovidro.—Váembora...Oidosobalançavaparaafrenteeparatrás.—Nãofoiminhaintençãoassustá-lo.Eleergueuumadasmãosefezumgestoparaelasecalar.—Saiadaqui.Saiadaqui.Antesquevocêaveja...Elecontinuoufalando,porémaspalavrasseperderamquandocomeçou
amurmurarparasimesmo.—Nãovoumachucá-lo.Oidosocomeçouasemexer.—Porfavor...—continuouEve.Eleselevantou,encostouorostonovidro,eEverecuouumpouco.Seus
olhos eramenormesebrancos,penetrantes.Comoduas luas leitosas.Eleeracego.Eveestremeceu.—Sintomuitoseoassustei.OidosopareciarepetiraspalavrasdeEve.Ele inclinouacabeçaparao
lado.—Vocêparecetriste.Eveficouumpoucosurpresa.—Eu...Eunãoestoutriste.—Vocêestá.Vocêéigualaela.
Eleergueuavozesuamãovoouemumgesto,apontandoparaalguémquenenhumdosdoiseracapazdever.—Quem?—perguntouEve.—Eusouigualaquem?—Váembora!Oidosobateuopunhocontraajanelaimunda.Ovidroseestilhaçou.—Váembora...Ele caiu no chão, curvando-se sobre si mesmo outra vez. Suas mãos
cobriramsuacabeça,eelecomeçouachorar.Eveolhouparaoônibus,entãovoltousuaatençãoaoidoso.Elanãosabia
o que fazer para ajudar. Ele se lamentava, repetindo para simesmo semparar:—Váembora...Váembora...Prendendo a respiração e tentandonão chorar também,Eve correude
voltaatéoônibusomaisrápidoquepôde.
PassagemdasNoveVidas
—Vejam!Vejam!ÉumbombardeiroLancaster!EaqueleéumHalifax!EumSpitfire!E...—AlfiesevirouparaEve.—Podemosirvê-los,porfavor,professora?Porfavor?—Sente-se,Alfie—pediuJeanantesqueEvepudesseresponder.Ogarotosesentoucomumaexpressãodetristezanorosto.Eve olhou pela janela imunda do ônibus para as mesmas silhuetas de
aviões queAlfie tinha visto, omesmobrilhode luzes vermelhas.Mas elanãoosviu.Tudooqueviufoiumaviador.Umbelocapitãoemseuuniformeda Força Aérea Real. Eve se lembrou de seu bom humor, seu sorrisotranquilo.Decomoeleahaviafeitosesentir.Esorriu.
Abrumaficoumaisespessa,tornou-seumaentidadeinstável,rodopiante,quaseviva.Empoucossegundos,haviaengolidocompletamenteoônibus.JimRhodesestavaconcentradonafinafaixadeestradaasuafrente.—Ondeestamos?—perguntouEve.—NapassagemdasNoveVidas—respondeuele,aindaolhandoparaa
frente.—Nãosepreocupecomisso,éapenasumanévoaquevemdomar.Estouacostumado.Evepodiaouviralgoacimadoroncodomotor.Umruídoquepareciaum
sopro,sussurrante.—Oqueéisso?—perguntouela.—Osenhorconsegueouvir?—Ouviroquê?—indagouJimRhodes.—Uma espécie de... Não sei. Umbarulho de redemoinho. Farfalhando.
Deslizando.—Devemserasenguias—explicouJimRhodes.—Elasvivemnaságuas
dessebrejo.Evesentiuumapontadademedo.Elanuncahaviagostadodeenguias.Elenotouaexpressãodamoçaedeuumarisadaaltaepenetrante.—Ouospneusnaestradamolhada.Vocêpodeescolher.—Osenhornãodeveriaacenderosfaróis?—perguntouJean.Evenotouquehaviaumtomdetensãonavozdadiretoraqueelalutava
paracontrolar.—Nãopossofazer isso,sintomuito—disseJimRhodes.—Aregrade
manterasluzesapagadasaindaseaplicaaqui.— Mas... Mas... — Jean olhava fixamente pela janela, aparentemente
fascinadapelanévoaúmidae sufocante.—Poderíamosacabar saindodaestrada...—Tambémpoderíamosacabardebaixodeumbombardeiroalemão.Um silêncio tenso se instalou enquanto todos procuravam outra coisa
comquesepreocupar.EveprocurouEdwardenotouqueeleestavasentadonofundodoônibus
aoladodeFlora,queseguravaamãodele.Elavoltousuaatençãoaomundoexterior,bematempodeverumacruz
enfiada na lama ao lado de onde o ônibus passava. Quis perguntar a JimRhodes sobre aquilo, mas logo se esqueceu, pois, erguendo-se entre abrumadiantedeles,viuumaenormemansãoantiga.JimRhodessuspiroualiviado.—Bem-vindosàCasadoBrejodaEnguia.
ACasadoBrejodaEnguia
AgourentaedesoladoraforamasduaspalavrasquevieramàmentedeEveenquanto olhava fixamente a fachada da Casa do Brejo da Enguia. Aconstrução seerguia imponentee sólida,umantigomonólitodeumaerapassada,cobertaporbrumaenévoa,comoaúltimalápideaindafirmeemumcemitériodecadenteeemruínas.Eladeuumpassoparatrás,tropeçandoemumespessocabonegro.—Cuidado—falouJimRhodes,segurandoamoça.—Temumanexona
lateralondecolocamosogerador.Eleapontouparaocabo.Jean caminhava pelos arredores, familiarizando-se com as novas
acomodações.—Vejamaquilo—indicouela,apontandoparaoperímetrodoterreno.
—Aramefarpado.—Jeansevirounovamenteparaele.—Issoérealmentenecessário?JimRhodesdeudeombros.—Nãotemnadaavercomigo.AsForçasdeDefesaocolocaramali.—Paramanterosalemãesdoladodefora,ounósdoladodedentro?Jim Rhodes suspirou conforme guiava as crianças em direção à casa.
Olhandoincomodadaparaoaramefarpado,Eveoseguiu.
ACasadoBrejodaEnguianãotinhaumaaparênciamelhornointerior.Naverdade, parecia ainda pior. Ninguém morava ali havia décadas —possivelmente nem mesmo havia sido habitada nesse século — e elaclaramente foradeixadapara apodrecer.A tintanaspeçasde carpintariaestava descascando e mofada, o papel de parede rasgado e descolando.
Lamparinas a óleo velhas e enferrujadas despontavam das paredes, semuso e cobertas por teias de aranha.Manchas demofo preto estavamportoda parte, como se a escuridão do exterior tentasse entrar. As paredespareciammolhadasao toque, estava frio e aumidade fazia apeledeEvecoçar e se arrepiar. Aquele era um lugar onde ela sabia que nunca sesentiriaaquecida.Oespessocabonegroemqueelahaviatropeçadodoladodeforadacasa
estavaportodaparte.Contorcendo-separedeacima,conectadoalâmpadasempoeiradas, trazendo uma iluminação fraca e bruxuleante para a casaquandoJimRhodesligouointerruptor.Eve e Jean estavam paradas diante da grande escadaria central e
olhavamosarredores.Nenhumadelasfalouumapalavra.JimRhodesacenoucomacabeça,entendendoerroneamenteaexpressão
deterrordasduascomosurpresa.—Grande,nãoé?—perguntouele.Ambas permaneceram caladas. As crianças, reunidas atrás delas,
tambémespiavamoquehaviaaoredor.JimRhodescaminhouatéumaportaduplademadeiraetentouabri-la.
Estava tão úmida e empenada que ele precisou de várias tentativas,masacabou conseguindo. Dentro do quarto havia duas fileiras de camas deferrofundidoarrumadas.Nenhumadelasestavaocupada.—Oalojamentodascrianças—anunciouele.Jean examinou o corredor, olhou rapidamente para o quarto das
crianças,entãonovamenteparaJimRhodes.—Ondeestãoosoutros?JimRhodesfranziuatesta.—Outros?Jeanpareciairritada.—Osoutros.Osgruposdasoutrasescolas.—Ah.Elessóchegamnasemanaquevem.Vocêssãoosprimeiros.Elesorriu,comoseaquiloostornasseespeciais.—Eosenhoresperaquevivamosassim?JimRhodesdeudeombros,parecendosedesculpar.—Bem,elaestá...—Abandonada,Dr.Rhodes—interrompeuJean.Elaseaproximoudele,
suavozficandomaisbaixa.Evesabiaqueissonuncaeraumbomsinal.—Meumarido é general do Exército e ele não permitiria que seus homensficassememumlugarcomoeste,muitomenosumgrupodecrianças.Jim Rhodes ergueu as mãos em um gesto de súplica — ou talvez de
rendição.Evenãosabiaqualdosdois.—Verdade,ela...Ninguémvivenelahámuitotempo,mastenhocerteza
deque, quando esse lugar estiver... estiver cheio depessoas, ele... ele vaiganharvidanovamente.Elebalançouacabeça,comoseestivessetentandoseconvencerdaquilo.Jeanclaramentenãohaviaficadoimpressionada.—Issonãoébomosuficiente,Dr.Rhodes.—Étudooquetemos,Sra.Hogg.—AvozdeJimRhodessetornoufria.Eve notou que as crianças se juntaram em volta deles e assistiam à
discussãoentreosadultos.Virou-separaelas,comumsorrisonorosto.—Vamos,crianças,vamosdesfazerasmalas.Tomnãosemoveu.—Nãopodemosdarumaolhadanosarredores?Evecontinuousorrindo.—Primeirovamosdesfazerasmalas.—Mas...—Ondeestãoasoutrascrianças?—perguntouJoyce,suavoztrêmulade
preocupação.Eveabriuabocapararesponder,masJeanfalouantes.—Chega.Todosficaramemsilêncio.—Eve, peça para oDr. Rhodesmostrar a casa a você. Vou cuidar das
crianças—ordenouJean.—Sim,diretora—respondeuEve,sentindo,nãopelaprimeiravez,ser
umadascrianças,enãoaprofessora.Jeanmuitasvezesafaziasesentirassim.IssoirritavaEve,maselasabia
qualseriaareaçãodeJeanseousassereclamar.EveolhouparaJimRhodese,juntos,elescomeçaramavisitaguiadapela
casa.
Noquartoinfantil
—Ali fica a cozinha— indicou JimRhodes, apontandoparaumaporta àesquerda—,easaladejantarficanosfundos.Evebalançouacabeça,absorvendotudo.Jim Rhodes parou repentinamente e tentou olhar para ela, mas não
conseguiuencará-la.Elesuspirou.—Sintomuitopornãoteremcontadoavocêscomoseria.—Estátudobem,doutor—disseEve,suavemente.—Seiqueosenhoré
apenasomensageiro.Elelheofereceuumbrevesorrisoesevirounovamenteparaocorredor.—Obrigado.Gostariaquetodosfossemassimtãocompreensivos.—A Sra. Hogg... leva suas obrigaçõesmuito a sério. Ela é responsável
pelascriançaseacreditaemarregaçarasmangase cuidardascoisasporcontaprópria.Elatemboasintenções.—Éumaformadeinterpretarasituação.—Existeoutra?—Sim.PessoascomoaSra.Hoggguardamtodosossentimentosetodas
as emoções em uma caixa. Elas dizem a si mesmas que estão sendoracionais.Aguerrafazissocomalgumaspessoas.Suaformadelidarcomasituação,imagino.—Ecomoosenhorsabedisso?JimRhodessuspirou.—Euvidaúltimavez.Umaporçãodecompanheirostinhaessaatitudee
receio que não foram muitos os que voltaram para casa. Eles tambémtinhamboasintenções.—Elefezumapausa.—Vamosaoandardecima?Eveolhouparaaescadaria.Eravelha,sólidaepareciaresistente,masa
moçaseperguntouemqueestadoelarealmenteseencontrava.
— Tem dois quartos para a senhorita e a Sra. Hogg— avisou ele.—Vamosarrumarorestantequandomaispessoaschegarem.JimRhodesgesticulouparaqueelasubisse.Eveobedeceu,notandoque
elevinhamancandoatrásdela,notandotambémqueastábuasdoassoalhorangiamegemiamacadapasso.—Quetipodedoutorosenhoré,senãoseimportacomapergunta?Neste ponto a escadaria era suficientemente larga para Jim Rhodes
caminharaseulado.—Médico.—Masosenhortrabalhaparaajuntadeeducação?— Também sou supervisor de defesa antiaérea — ressaltou ele, um
pouconadefensiva.—Agentefazoquepode.O andar de cima parecia ainda mais abandonado que o térreo. Jim
Rhodespegouumalanternaeaacendeu.—Aindanãotemluzaquinoandardecima,infelizmente,mashámuitas
velaselamparinasaóleo.Suacordialidadeforçadaestavaficandomenosconvincente,pensouEve.
Elespararamemfrenteaduasportas,umadecadaladodocorredor.— Esses dois são os seus aposentos. Vamosmanter os outros quartos
trancadosatéorestantedaspessoaschegar.Eveolhouparaofimdocorredor.Umaportaestavaaberta.—Todoseles?—perguntouela.JimRhodesseguiuseuolhar.Entãofranziuatesta.—Ah.Acheiquehaviatrancadotodos.Ele se virou, despreocupado, porém Eve ficou curiosa. Algo na porta
parecia estar chamando-a, convidando-a a entrar. Ela pegou a lanterna eseguiupelocorredor,comJimRhodesaacompanhandodeperto.
—Achoqueumdiaestecômodofoiumquartodecriança—comentouJim.Eveapontoua lanternaparaasparedes, iluminandováriascamadasde
papel de parede descascadas, como anéis de uma árvore. Era possívelidentificaraidadedacasapelaquantidadedepapeldeparede.Eveparoudesemover,sentindoalgo.Algoquenãoconseguiacompreender.Elaestremeceu.—Estátão...frioaquidentro.—Sótínhamosaquecedoresparaoandardebaixo—explicouele.Ela apertouosbraços emvoltado corpo, caminhou até a janela, olhou
para fora.Podiadistinguiruma florestanabruma, cercandoa casa.A lua
acimadanévoaestavaaltaeclaranocéu,formandoumasombranaparedeatrásdela.—Não quis dizer frio, Dr. Rhodes, não foi o que eu quis dizer. É uma
sensação... — Eve inspirou. Fechou os olhos. Era como se houvesse umpensamento, um pensamento importante, fora do alcance da mente. Ouumaemoçãoqueelanãoconseguiadescrever.Lembrou-sedotúnelvaziodometrôemqueseabrigavaquandoestavaemLondres.Escuro.Vazio.—Não sei. É uma sensação... triste — explicou ela, passando a mão nopingentedequerubimnopescoço.Jimseaproximoueparouaseulado,juntoàjanela.—Quartosnãosãotristes,Srta.Parkins.Pessoassãotristes.Evecontinuouolhandopara fora,paraomundoenevoadoe congelado
debaixodeles.— Vamos— chamou Jim Rhodes.— Vou trancar este quarto quando
sairmos.Aoouvirsuaspalavras,Everespiroufundoeoseguiu,saindodocômodo.Massuasombrapermaneceuexatamenteondeestava.Elavirouacabeçaeobservouenquantoosdoisseafastavam.
Anoite
ForadaCasadoBrejodaEnguia,abrumaaindacobriaocéueomaremumamortalhaespessacinzenta.JimapertouamãodeEve.—Voutentarterminartodososreparosomaisrápidopossível.—Obrigada—falouEve,observandoseucorpocurvado,pensandoem
comorepentinamenteelepareciamuitomaisvelho.Jim Rhodes olhou ao redor, para a casa, para o gramado, para a
estradinha,entãonovamenteparaEve.Algopareciapassarporsuacabeça,algoqueelenãoeracapaz,ouquenãotinhaaintenção,deexpressar.— É um lugar grande— comentou ele, hesitando.— Vocês vão ter...
Vocêsvãoterdeficardeolhonascrianças.—Claro.—Oquequerodizeréquedevemmantê-lasafastadasdapassagem.A
maré pode subirmuito rápido e a senhorita viu como aquela névoa quevemdomarpode...Evecolocouamãodelicadamenteemseubraço.—Doutor,ficaremosbem.Deformarelutante,eleretribuiuosorrisodamoça.—Sim,claro.Sintomuito.Osorrisodohomemdesapareceuquandoeleviu JeanHoggaparecerà
porta.—Émelhoreuirembora.Atravessarapassagemenquantoaindaposso.
Boa sorte, senhoras — desejou ele, enquanto voltava apressado para oônibus.Juntas,JeaneEveobservaramohomemseafastar.—Eleaindanãoouviunemmetadedoque tenhoadizer—comentou
Jean,comosolhosbrilhandodefúria.
Evesabiaoquevinhaaseguir.ElajáhaviasidoalvodasdurascríticasdeJean.—NãosabiaqueomaridodasenhoraeradoExército—comentouela.Jeanfranziuatesta.—Porquesaberia?Supondoqueaperguntafosseretórica,Evenãorespondeu.EmLondres,
as vidas particular e profissional de Jean eram mantidas como duasentidadesdistintaseseparadas.Ascoisasclaramenteseriamiguaisaqui.—Vamos—chamouJean.—Émelhorcomeçarmosalimpar.—Oquê?Agora?Nãodeveríamoscolocarascriançasnacama?—Bobagem.Elaspodemnosajudar.Eve deve ter ficado perceptivelmente surpresa, porque Jean sentiu a
necessidadedeexplicar.—Elasestãoagitadasdemaisparadormir.E,alémdomais,umpoucode
trabalhopesadonuncamatouninguém.Jean entroude volta na casa, suapostura ereta comode costume, sem
dar nenhum indício de que ela havia passado horas em uma viagemcansativa.Evebalançouacabeçaeaseguiu.
Preces
Ascriançassesentiamexaustas.Elasestavamajoelhadasaoladodesuascamas,vestidascomsuasroupas
dedormir,olhosbemfechados.EveeJeanasobservavam.Todastrabalharamduro.Todasreceberamtarefaseascumpriramcom
precisão militar. Eve tinha espiado Jean algumas vezes enquanto elastrabalhavameaexpressãodeorgulhoemseusolhoserainconfundível.Baldes e panelas foram posicionados debaixo de goteiras, o chão foi
varrido, o pó acumulado nas superfícies foi retirado. A tarefa de Eve foipegarumpanoetentarlimparasmanchasdemofoquecresciamportodaacasa,espessasenegras, tãoescurasquantosombras.Masnãoadiantou.Por mais força que fizesse, por mais que cansasse o braço, o mofo serecusavaasumir.Em certosmomentos, ele parecia crescer enquanto Eve observava. Ou
melhor,quandonãoobservava.Elaolhavaparaaparede,percebiaomofocomocantodoolhoeoviasemover,expandir-se.Damesmaformaqueelaolhava diretamente para o céu noturno e via constelações inteirasrepentinamente se revelarem em sua visão periférica. Então focava nomofopropriamenteditoeeleestavaexatamentecomoantes.Oueraoqueparecia. Eve suspirou. Talvez fosse apenas uma ilusão. E o fato de estarmuitíssimocansada.—Háquatrocantosemminhacama...Ascriançasfalavamemuníssono,entoandoaspalavrasdesuaprececom
ohabitualtomcantado.—Quatroanjos emvoltadaminha cabeça...Umparavigiar eumpara
rezar...Todasparticipando,menosuma,Evenotou.
—Edoisparalevarminhaalma.Edwardestavaajoelhadocomorestantedascrianças,suasmãosjuntas,
seusolhosfechados.Eveseperguntouparaqueeleestavarezando,ouserealmenteo fazia.ElasabiaemqueEdwardestavapensando,ou,melhor,emquemeleestavapensando.Jeanbateuumapalmasolitária.—Pronto,crianças,todasparaacama.Elas obedeceramao comando, e Evedeu a volta no quarto arrumando
seus cobertores e verificando se todas estavam bem. Ela parou junto àcamadeEdwardeajoelhouaseulado.—Olhe.Sevocênãoquiserfalarainda,estátudobem.Nãotenhapressa.Edward,obviamente,apenasafitoufixamente.Eve se inclinou para ele, sentindo aquele vazio familiar dentro de si,
aqueladorprofundadaseparação.Sabendocomoeledeviasesentir.Elafechouosolhos.Viuaenfermeiradotrem.Eselembroudoterror.—Suamamãevaiestarsemprecomvocê—declarouelaaEdward.—
Aspessoasqueperdemosnuncanosabandonamcompletamente.Acrediteemmim...EdwardestendeuobraçoesegurouamãodeEve.Elaficoutãosurpresa
que sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Havia conseguido seconectaraomenino.Finalmente.— Agora— falou Eve—, me prometa que você vai dormir bem esta
noite.Nadadesonhosruins.Edward balançou a cabeça em afirmativa, seu corpo pequeno e leve
debaixodaroupadecama.—Vocêsabeoqueéumpesadelo?—continuouEve.—Éaformaque
suamentetemparaselivrardetodosospensamentosruins.Quandovocêossonha,elesvãoembora.Edward estendeu o braço sobre a mesa de cabeceira, encontrou um
pedaço de papel e uma lasca de carvão. Ele escreveu algo no papel e oentregouaEve.Elaleuorecado.Issoébobagem,eraoqueestavaescrito.Everiu.—Ah,émesmo?PorémEdwardjáescreviaoutramensagem.Eveesperoupacientemente
atéeleterminarelhepassaropapel.Mamãedizquesecombatesonhosruinscompensamentosbons.—Bem,tenteissoentão,certo?Evesorriumaisumavez.
Edwardbalançouacabeçaeretribuiuosorriso.Jean havia notado que Eve conversava com Edward e agora se
aproximavaparaverificaroqueestavaacontecendo.—Vamos fazer você falar amanhã, não vamos, Edward?— perguntou
ela, suas costas perfeitamente eretas, seu rosto sério. — Não podemosdeixaressatolicesealongarmuito.OsorrisodesapareceudorostodeEdward.Evese levantou,masogarotohaviaseguradoseubraço,nãoquerendo
deixá-laseafastar.JeanabaixoueafastouamãodeEdwardcomfirmeza.—Sejaumbommenino—disseela,comumsorrisofrágil,afastandoEve
dele,emdireçãoàportadoquarto.—Eleprecisaaprender—acrescentou,destavezparaEve.Evepensounoque JimRhodes tinha falado,emcomoalgumaspessoas
guardavam suas emoções em uma caixa e a fechavam, pensando estarfazendo a coisa certa. Seria essa realmente amelhor forma de lidar comcrianças?, imaginou ela. E isso ajudaria Edward a superar a perda? Ou ofariasenti-ladeformaaindamaisaguda?—Durmambem—declarouJeandaportadoquarto.Aoapagaraluz,oquartofoiinundadopelaescuridão.
Oanexo
Eve tinhaapenasmaisuma tarefaa cumprirantesdepoderdormir. Jeandissera que ela ficaria perfeitamente feliz em fazê-lo,mas Eve podia vercomo ela parecia cansada, apesar dos protestos. Então foi assim que,tremendo no frio congelante, Eve se percebeu andando em direção aoanexo,comumruídoaltoepulsantenoar,comumalanternanamão.Agramahavia sidocortadanospreparativosparaa chegadadogrupo,
porém o chão ainda estava desnivelado, raízes e pedras esperando paraderrubarosdescuidados,umaherançadosanosdenegligência.Ela chegou ao anexo e entrou. O som alto e pulsante imediatamente
aumentoumuito.Ogeradoreravelho,acabadoeengordurado.Ocupavaamaiorpartedoaposento,produzindoeletricidadeparaacasa.Eveapontoualanternaparaafrentedamáquina,encontrouoqueprocuravaegirouachave.Ogeradorcomeçouaparar.Eveendireitouapostura.Econgelou.Elasentiuumespasmomuscularentreasomoplatas,umainquietaçãono
corpo.Tentoumoverosbraços,afimdealiviaraquelasensação,expulsá-la.Não adiantou. Eve sabia exatamente o que era: a nítida sensação de quealguémaobservava.Ela tentou ser racional, imaginar quem poderia ser. Uma das crianças,
provavelmente. Não conseguiu dormir e a seguiu até o lado de fora.Edward,talvez,nervoso.OuTom,pregando-lheumapeça.Eraexatamenteotipodecoisaqueumgarotocomoelefaria.Elasevirourápido,esperandopegá-losnoflagra.Nãohavianinguémali.
Tentou escutar.Nada alémdo tique-taque cada vezmais baixo domotordiantedela.Eveolhoupelajaneladoanexo,procurandoportodososlados,eviuapenasbruma,noite.
A professora se virou novamente para o gerador. Ele havia paradocompletamente agora. Ela tentou escutar novamente. Nada. Ajeitando apostura, determinada a ser corajosa, Eve se virou, saiu do anexo ecaminhoudevoltaatéacasa.Aolongeumamulherestavaparada,seuvultodelineadocontraovasto
céuenevoado,contraaescuridão.Observando.Esperando.
Oquerubim
Assim que entrou, Eve trancou a porta e colocou a chave no bolso. Sehouvessealgumacriançadoladodeforaagora,pregandoalgumapeçatola,aquilo lhe serviria de lição. Então Eve se repreendeu por simplesmentepensaremalgotãocruel.Abriuumadasportasdoalojamentodascriançase as observou. Estavam todas presentes e bem. Aliviada, ela subiu paradormir.Seu quarto estava iluminado apenas por velas. Eve havia tirado suas
posses escassas da mala e pendurado as poucas roupas que tinha noguarda-roupa. Um diário, que ela colocou sobre a mesa de cabeceira, ealgumas peças de joias baratas, mas com grande valor sentimental,completavamseuspertences.Tirou cuidadosamente o colar de querubim e beijou o pingente,
colocando-o sobre amesa de cabeceira ao lado do diário. Então deu umsuspiro tristeenquantoolhavaparaele.Seusorriso foiapróximacoisaaser removida. Não havia ninguém ali para quem precisasse sorrir. Eveolhou para simesma em um pequeno espelho de bolso.Pareço cansada,pensou.Cansada.Eve se deitou e descobriu que sua cama era quase tão fria e úmida
quantoorestodacasa.Elatentounãotremer,relaxar,masseusolhosnãoqueriam fechar, o sono não vinha. Ficou deitada de barriga para cima,olhandoparaoteto.Haviaumamanchademofosobreacama.Pareciaumailha.Divagando,Evetentouimaginarcomoseria.Algumlugardistantecompalmeiras e praias de areias brancas se estendendo até onde os olhospudessem ver. O tipo de lugar que só vira em filmes de Hollywood.Enquantoobservavaamanchaúmida,partedesi,apartesincera,desejavaestar lá, no sol quente, sem sepreocupar comomundo.Nadade guerra,
nadadeinfelicidade.Algumlugarondepudesserelaxar.Ondeelapudessesorrirumsorrisosincero.No entanto, o sono ainda a ignorava, então ela virou de lado e ficou
olhandopela janela.Evepodiaouviromarportrásdascortinaspesadas,massabiaqueelenãochegavaaolitoraltropical.Erafrio,severoebatianapassagem.Elaimaginouasenguiasnaágua,arrastando-seedeslizandoaoredorumasdasoutras,amontoadas,rodeandoailha.Agitada,Evesevirouparaooutrolado.Eseviuemumquartodiferente.Eveolhouaoredor,olhosarregaladoscomochoque.Suacamaeraagora
uma de muitas, uma fileira inteira se estendendo até uma porta dupla.Todas as outras camas estavam vazias. Era a enfermaria de um hospital.Sempacientes,porémrepletadesombras.Elaouviugritosfracosecoandoaolonge.Com o coração acelerado, a mente vacilando, tentando
desesperadamenteentenderoquehaviaacabadodeacontecer,empurrouascobertas,colocouospésnochãoeselevantou.Emseguida,passoupelasoutras camas, procurando a origem dos gritos. Todas as camas estavamvazias,masdesarrumadas, os contornosdepacientesquepartiramaindavisíveisemcadaumadelas.Seus pés descalços produziam ecos secos no chão frio de ladrilho
enquantoelacaminhavapelaenfermaria.OsgritosaumentavamàmedidaqueEveseaproximavadaportadupla.Elaaabriuecaminhouemdireçãoauma porta simples mais adiante. Os berros eram agora agonizantes edolorosamentealtos,quaseinsuportáveis.Ela colocou amão na porta. Hesitou. Pormais que quisesse ver o que
estavano interior,omedodoqueencontrariaa impediu.Eveestendeuamão novamente. O mesmo aconteceu; sua mão não completava omovimento. Ela respirou fundo algumas vezes. E, livrando-se do medo,abriuaporta.Sob seus olhos havia uma agitação de médicos e enfermeiras, todos
cercando uma mulher deitada em uma cama. A mulher era a fonte dosgritos,ehaviasangueportodolado.Elaestavadandoàluz.Eve se aproximou, tentando ver o rosto dela, mas a equipe médica
atrapalhava.Tudooqueelaconseguiavererasuamãosegurandoalateraldacamademetal.Então tudomudou.Amulher paroude gritar, começou a respirar com
dificuldade, como se tivesse acabado de correr uma maratona. Umaenfermeiraseafastoudacama,segurandoumembrulhodecobertores.Eve
virou o pescoço para ver enquanto uma pequena mão se levantava, osdedosemminiaturasedobrando,contorcendo-se.—Deixe-mevê-lo...Porfavor...Era amãe, gritando da cama.Mas a enfermeira não lhe deu nenhuma
atenção. Ela manteve o embrulho junto ao corpo enquanto se virava epassavaporEve,saindopelaporta.—Porfavor!—gritouamãe—Porfavor,volte.A enfermeiranemaomenos lhedeuouvidos. Simplesmente continuou
andando,comaportabalançandoatrásdela,rangendoeestalando,masserecusandoafechar.—Porfavor...—Avozdamãeficavamaisdesesperada,parandoemsua
gargantaenquantoelagritava.—Nãová,porfavor,deixe-mevê-lo...Masnãohouveresposta,apenasaportabalançandoparaafrenteepara
trás.Cric...crac...Cric...crac...Evetentouignorarobarulhoeseconcentrarnavoz.Haviaalgofamiliar
nela.Eveseaproximouparavermelhoramãe.Eviuquemestavadeitadanacama.Elamesma.
Cric...crac...
Evearquejouesesentounacamaderepente,respirandocomdificuldade.Estava novamente em seu quarto na Casa do Brejo da Enguia. Sozinha.Balançouacabeça,tentandoexpulsarasimagensquehaviatrazidoconsigodosono.Foiumsonho,apenasisso.Apenasumsonho.Quandosuarespiraçãoretornouaonormal,elasedeitoumaisumavez,
dispostaavoltaradormir,masalgoaimpediu.Umsom,ritmado,pulsante.Éaporta,pensou,nohospital.Aindabalançando,aindase recusandoa
fechar. Eve olhou para a porta do quarto. Estava fechada.Mas o barulhopermanecia.Cric...crac...Cric...crac...Deveserogerador.Dealgumaformaeledeveterligadonovamente.Ao
mesmo tempo que pensava nisso, Eve sabia que não era possível. Elamesmaohaviadesligado.Eentãopôdeouvirnovamente.Cric...crac...Cric...crac...Evenãoestavanemumpouco sonolenta.O sonho tinhadadoum jeito
nisso.Elalevantoudacamaeabriuascortinaspesadas.Nadaalémdeumapraiavaziaeummarcalmo.Elaouviuobarulhonovamente.Vinhadointeriordacasa.Alguémmaisdeviaterescutadoisso.Nãopodiaseraúnica.Cric...crac...Cric...crac...Eve sabia que não podia contar com a possibilidade de alguém mais
ouvirobarulhoefazeralgoarespeito.Haviacriançasnacasaeelaseramsua responsabilidade. Teria de investigar aquilo por conta própria. Elaacendeu uma vela e abriu a porta. Após respirar fundo algumas vezes,aindasentindoaadrenalinadosonhocorrerporsuasveias,Eve foiatéocorredor.
Estavadeserto.Eve foiaoquartode Jean,pressionouaorelhacontraaporta e prestou atenção. Escutou apenas roncos. O outro ruído aindacontinuava,vindodotérreo.Ascrianças.Eraisso:elashaviamacordadoeestavamexplorandoacasa
namadrugada.Eladesceria,conversariacomelasemvozbaixaevoltariaantesqueJeanacordasse.Adiretoranemficariasabendo.Protegendo a chama da vela com amão, desceu a escada. A luz criava
sombrasenormesnasparedes.Omofopretopareciasugá-las,tornando-asaindamaisescuras.Eve parou diante do alojamento das crianças e entrou no quarto da
formamaissilenciosaqueconseguiu.Estavamtodasali,dormindo.EaindaassimEvecontinuavaaouvirobarulho.Porquesouaúnicaque
consegueouvi-lo?,pensouela.Porquenãoacordoumaisninguém?Evefechouaportaeseguiuemdireçãoàcozinha.Osomestavamaisalto
lá.Elaestendeuavelaparatodasasdireções,tentandoiluminaroscantosescuros. Não viu nada. Absolutamente nenhum movimento. Ela prestouatenção.Cric...crac...Cric...crac...A porta na outra extremidade da cozinha estava entreaberta. Com o
coraçãomartelandonopeito,Evefoiemsuadireção.O caminho levava a uma velha e estreita escada de pedra. Eve a
empurrouecomeçouadescer, suavelabruxuleandonaescuridão.Temiacair, pois as rochas estavam escorregadias e úmidas sob seus pés, maschegou ao final em segurança. Diante dela havia outra porta: velha,apodrecida,quasepretademofo.Osomdefinitivamentevinhadetrásdela.Ainda estou sonhando?, perguntou-se ela.Atravessando porta depois de
porta em busca de um som? Para encontrar... Eve estremeceu, sentindo ofrio,aumidade.Não.Issonãoeranenhumsonho.Issoerareal.Evepigarreou.—Quemestáaí?Nenhumaresposta.—É...Éosenhor,Dr.Rhodes?Osenhorestá...Osenhorprecisadeuma
camaparapassaranoite?Porfavor...Porfavor,diga.Silêncio.Nãohaviacomovoltaragora.Eveabriuaporta.
O cheiro a atingiu como se fosse sólido. O ar estava espesso com umaumidaderançosaefétida.Elapenetravanasfundaçõesdacasacomofedorde podridão e decomposição. Eve colocou amão sobre a boca e o nariz,
tentandonão respirar.Mas sentiuqueaquilo,mesmono curto espaçodetempo que ela havia permanecido ali, penetrava em sua camisola,invadindoseusporos.O aposento era enorme. Provavelmente cobria a mesma área da casa,
calculou Eve. As paredes eram de pedra, esfarelando-se e cobertas demusgo. Água corria lentamente por elas até o chão molhado, fazendo oaposentointeiroterumbrilhoverdeemisteriosoàluzdavela.Haviafileirasefileirasdeestantescobertascomcaixas,algumascomas
tampaslevantadas,mastodasabarrotadasdeobjetoseartefatosvelhos,osrestosúmidoseempoeiradosdosantigosproprietários.MasEveestavasozinha.Lentamente afastando a mão do rosto para proteger a chama, ela
levantou a vela mais uma vez, caminhando até as estantes. As caixasestavammolhadasemofadas.Eveconseguiuabriratampadeumadelaseolhou para o interior. Havia um amontoado de papéis e algumas roupassurradas comidas por traças. Ela a tampou e olhou para a caixa ao lado.Estava cheia de brinquedos velhos, encharcados, enegrecidos eabandonados. Os rostos de bonecos antigos, agora com olhos cegos esorrisos congelados e vazios, olharam para ela. Debaixo deles havia umamoldurademadeira.Oquetinhasobradodomaterialdepositadosobreelaestavaapodrecidoepreto,masEvefoicapazdedistinguirvestígiosdecor,osuficienteparareconheceroqueaquiloumdiahaviasido.Umteatrodefantoches. Sentindo uma pontada de tristeza e arrependimento, fechou acaixa.Ofimdainfância.Aoladodacaixadebrinquedosestavaalgomaisinteressante.Umvelho
fonógrafo.Elaesticouobraçoetocouamáquinaenferrujada.Eraissoqueestavafazendoobarulho?Eveapertouobotãonalateraleesperou.Nadaaconteceu.Haviaalgunscilindrosaoladodelecominscriçõesnalateral.Elapegouoprimeiro—AliceDrablow—ejuntodonomehaviaalgumasdatas.EntãoEvenotououtracoisa.Elafranziuatestaeaproximoualuz.Estava
atrásdaestante,sobreaparededepedra.Aproximouavela.Haviapalavrasriscadasna superfície, letras perturbadoras e estranhamentebrutas:MEUPESARVIVERÁNESTASPAREDESPARASEMPRE.Eve estendeu o braço e passou os dedos sobre as palavras. Ela queria
sentir as letras, ter uma impressão tanto delas quanto de quem as haviaescrito.NoentantoapedraestavatãoúmidaevelhaqueesfarelouquandoEveatocou.Aspalavrasdesapareceramcomosetivessemsidoescritasnaágua, deixando-a com uma sensação de desolação e tristeza, exatamentecomohaviasesentidonoquartodecriança.
Entãodeuumpassoparatráseatingiualgumacoisa.Elatomouumsustoesevirou.Cric...crac...Cric...crac...Umavelhacadeiradebalanço.Eraaquiloqueestava fazendoobarulho?Alguémestava sentadonela?
Balançando-se?Sefosseocaso,quemeraeondeestavaessapessoanestemomento?Até ondeEve sabia, havia apenasumaporta, aquelapelaqualtinha entrado. Isso significava que quem quer que tivesse passado pelocômodoaindaestavaaliembaixocomela?Lentamente,comocoraçãomartelandonopeito,elaestendeuavelapara
todasasdireções,tentandoobservarassombras.Ummovimentonocanto.—Olá?Oruídosurgiunovamente.Detrásdaestanteseguinte.—Olá?—repetiuEve,esperandoquesuavozsoassemaisconfiantedo
queelasesentia.Ela prendeu a respiração enquanto caminhava na direção do som. Em
seguida, estendeu o braço que segurava a vela e, querendo saber o queestavaali,mascommedodeseaproximardemais,esticouopescoçoparaveroqueestavaatrásdaestante.Umratocorreuemsuadireção.Evegritouedeixouavelacair.Elaseapagoucomumchiadoebateuno
chão úmido, deixando o aposento no escuro. Eve ficou imóvel, com arespiraçãopesada.Aindapodiaouviroratocorreremalgumlugar.Eentãoouviudenovo.Cric...crac...Cric...crac...Acadeiradebalançosemovianovamente.Evepartiuemdireçãoàporta,correndopelaescadaomaisrápidoque
podia na escuridão total, escorregando e deslizando enquanto fugia, elachegou à cozinha e subiu imediatamente pela escadaria principal paravoltar a sua cama. Evepuxou as cobertas sobre a cabeça e ficoudeitada,tensaerígida,maisamedrontadadoquejáestiveraemtodaasuavida.Elasóconseguiaouvirasondasbatendocontraacostadoladodefora.Easbatidasfrenéticasdeseucoraçãoaterrorizado.
Odiaseguinte
Tudopareciamelhornamanhãseguinte.O sol, reluzente e distante, havia dispersado a bruma, deixando o céu
azulcomooovodeummelro.Umafinacamadadegelobrilhavaecintilavaportodolado.Aqueleera,pensouEve,otipodemanhãquenuncasevianacidade.Ela ficouparadano jardimcom Jean, observandoas crianças.O jardim
podia ter visto diasmelhores, e o arame farpado que o cercava era umalembrança constantedeque a guerranunca estava realmente longe,masnestemomentoascriançasnãopareciamseimportar.Asmeninaspulavamcorda cantandouma cantiga infantil, enquantoAlfie e Fraser corriamumatrásdooutro.SuasrisadasesuaenergiaalegreafugentavamostemoresdeEvedanoiteanteriorcomoosoldispersandoabruma.—OndeestáEdward?—perguntouEve.Jeanmanteveosolhosnascrianças.—Eudisseparaasenhoritaqueelenãopoderiasairatéestardispostoa
falar.Evenãorespondeu.Elaapenassevirouecaminhoudevoltaparaacasa.—Deixe-osozinho—ordenouJean,suavozirritada.Eveparou.—Vouprepararminhasaladeaulaparaalição.NãohavianadanaqueladeclaraçãodequeJeanpudessediscordar,então
elasecontentouemacenarcomacabeça,eEveentrounacasa.
Enquanto ela seguiapara a salade jantar, Tomveio correndo e tromboucom Eve, quase a derrubando no chão. Ela ainda se recuperava quando
James fez omesmo.Osdois garotospararam imediatamente, ofegantes esentindoculpa.Everecuperouoequilíbrioeolhouparaosdois.—Oquevocêsestãofazendo?—Pega-pega,professora—respondeuTom.—EstácomJames.—Vocêsnãodeviamcorrerporaí.Ela estava pronta para falar mais quando notou que as portas para o
alojamento das crianças se encontravam abertas. Edward estava sentadoem sua cama, desenhando. Ele parecia estar em outro mundo, em umpequenoplanetasolitáriocomapenasumhabitante.—James—falouEve—,vocêcostumavaseromelhoramigodeEdward,
nãoémesmo?Jamesestavaprestesaresponder,porémTomoencaroudeformasevera
esorrateiramentepisouemseupé.Evepercebeu.—Veja,euseiqueascoisasmudaram,James,maseugostariaquevocês
não o excluíssem. — Suas palavras também abrangiam Tom. — É emmomentoscomoestequeeleprecisadeamigos.Vocêscompreendem?Osgarotosbalançaramacabeçaafirmativamente.—Apenaspensememcomoseriasefossecomvocês.Ela se afastou, esperando que eles estivessem pensando exatamente
nisso.
Tom
TomsabiaqueaSrta.Parkinsnãogostavadele.Elanãoprecisavadizê-lo;deixavaaquiloperfeitamenteclarosemproferirnenhumapalavra.Elenãosabia por quê. Ela simplesmente não gostava. Mas estava tudo bem, naverdade, porque ele tambémnão gostava dela. Ou pelomenos era o queTomdiziaasimesmo.MasaSra.Hoggeralegal.Elaeraforte.Elaeradisciplinada.Apesardeele
tertomadoalgumassurrasdevaradela,aSra.Hoggnuncahaviasidocruel.Doera, mas não muito. Ela era rígida, porém justa, e essa era umacaracterística com a qual Tom podia se identificar, que podia respeitar,porque as coisas deviam ser assim. Seu pai lhe tinha dito isso antes departir.Haviapartidopara lutar, segundo suamãe, vinha lutandodurantetodaasuavida.EraassimqueTomacreditavaqueumhomemdeveriaser.EseupaitambémeramuitomaisrigorosoqueaSra.Hoggquandopunia.Semdúvida.Então Tom não se importava se a Srta. Parkins, com seu sorriso
simpático e suas boasmaneiras, gostava dele ou não. Não se importava.Nemumpouco.Não.Masmesmoassimseviunoalojamentodascrianças,fazendooqueelahaviapedido.EdwardnãoergueuosolhosquandoTome Jamesentraramnoquarto.
Eleestavasentadoemsuacama,comacabeçaabaixada,concentradoemseudesenho.Tomseaproximou,olhandoporcimadeseuombro.Edwardfaziaoesboçodeumamulhereummeninopequeno,paradosemfrenteaumacasa.Tomsentiuumanovaemoção.Tristeza,raiva,inveja,compaixão?Nãosabiabemoqueera.Masestavaalieelenãogostavadisso.Deixava-ofurioso.Ele ficou parado, esperando Edward notar a presença deles. Como o
meninonãonotou,Tomfalou:—Vamos,Edward,vamosexploraracasa.Eleopuxoupeloombro,masEdwardnãosemoveu,apenasnegoucoma
cabeçalentamente.Tomestavaachandoaquilodifícil.EledeuumsoconoombrodeEdward.
Umsocobemleve.—Qualéoproblema?Vocênãoquersermeuamigo?Edwardseencolheueabaixouacabeça,comoseestivesseprestesaser
atingido.Qualquerrespostaseriaerrada.Tomestavaficandoirritadoecomeçavaademonstrarisso.—Vocêtemdeser.Aprofessoramandou.OpânicoinvadiaosolhosdeEdward.Eleencarouosdoisgarotos.James
seaproximou,suavozbaixaecompassiva.Elesorriuparaoamigo.— Não se preocupe, vai ficar tudo bem. Estamos todos presos aqui,
temosdeseramigos.TomviucomoEdwardficoumaistranquiloaoouviressaspalavras.Por
queelenãopodiaserogarotodequemasoutrascriançasgostavam?Elesentiu sua raiva crescer ainda mais. Já conhecia o padrão. Tom logoprecisariadeumaválvuladeescape,algoparadescarregartudo.Algoqueeleesperavaquelevasseosoutrosarespeitarem-no.ElepegouodesenhodasmãosdeEdward.Edward ergueu os olhos, aterrorizado, como se umpertence estimado,
algodeimportânciavital,tivessesidoroubado.Eletentoupegá-lodevolta,masTomseesquivou.Assim é melhor, pensou Tom. Se ele não pudesse fazer algo para
conseguirumareaçãoboa,umaruimserviria.— Eu vou devolver — declarou, apreciando o poder sobre o outro
menino—,sevocêfizeroqueagentemandar.Edward olhou para James, que parecia desconfortável e não conseguia
encará-lo.Edward,semterescolha,fezquesimcomacabeça.Tomsorriue,comodesenhonamão,foiparaocorredor.Osoutrosdois
o seguiram. Ele partiu diretamente para a escadaria e começou a subi-lacorrendo.—Porquevocênãofala?—perguntouTom.Edwardnãorespondeu.UmaideiapassoupelacabeçadeTom.—Achoque...Achoqueagentedeveria fazer comqueele falasse.Aí a
Srta.Parkinsvaigostardagente.Ele se virou para James, que não parecia feliz por seguir as ideias de
Tom,masnãodissenada.Entãose lembrou:aSrta.Parkins jágostavadeJames.Eaquelepensamentoodeixoufuriosooutravez.Elechegouaotopodaescadae,semesperarosoutrosdois, seguiupelocorredor,girandoasmaçanetasdetodasasportas,procurandoumaqueestivesseaberta.Eleaencontrou.
Oatiçador
Oquartoestavaempoeiradoevazio.Todaamobíliahaviasidoremovidaesórestavaumalareiraenegrecida,manchadadefuligemcomumapesadagradedeferroposicionadaasuafrente.Tom estava decepcionado e furioso, como se o quarto tivesse sido
esvaziadoexclusivamenteparaaborrecê-lo.—Nãotemnadaaquidentro—gritoueleparaosoutrosdois.James e Edward entraram no cômodo, olharam ao redor. Tom já
expressava seudescontentamento sobre comoo aposento era entediantequandoJamesouviualgo.Eleergueuamão, indicandoparaTomficaremsilêncio.Tom não gostava que lhe dissessem o que fazer e estava pronto para
reclamaraindamaisquandoJameslhemandouficarcaladonovamente.Eentão ele também ouviu. O som de algo sendo arranhado; baixinho,masaudível.Vindodalareira.Edward,quenãohaviasecomprometidoaentrartotalmentenoquartoe
estavaparado juntoàporta,virou-separa irembora.Tomnãopermitiriaqueissoacontecesse.—Ei,ajudeagente.Ele agarrou Edward e o arrastou até a lareira, onde o garoto ficou
parado, observando. Não parecia interessado no que os outros doisestavamfazendo,apenasesperavaqueseudesenhofossedevolvido.Osarranhõescontinuavam.GesticulandoparaqueJamesfizesseomesmo,Tomajoelhouecomeçoua
erguer a grade. Ela eramuito pesada,mesmo para os dois juntos, entãoTomolhoumaisumavezparaEdward.—Vamos,nãofiqueaíparado.
Edward,conhecendoumaameaçaquandoaouvia,ajoelhou-se,juntando-seaeles.Juntos, conseguiram levantar a grade e a colocaramao ladoda lareira.
Todosostrêsespiaramointerior.Havia um corvomorto enroscado e imóvel em um ninho, cercado por
váriosfilhotinhostambémmortos.Edward e James saltarampara trás, recuandopor causadoque viram,
porém Tom continuou olhando, fascinado. O corvo claramente estava alihaviaalgumtempo,porquecomeçaraaapodrecer;ointeriordeseucorposedecompunha,quasemumificado.Osfilhotespareciamtranquilos,comoseestivessemdormindo.Tom se sentia arrebatado. Ele adorava estar próximo à morte, era
fascinado por ela. A guerra tinha sido uma dádiva de Deus para Tom.Enquantooutras crianças ficavamaterrorizadas comosbombardeios, eleos adorava. Não sabia o que haveria sobrado quando saísse na manhãseguinte,tampoucoquemestariadesaparecido.Sempretorciaparaque,sealgumconhecidofossebombardeado,apessoamorressedeformabrutaleelepudesseverocorpoensanguentado.Tom pegou o atiçador ao lado da lareira e cautelosamente começou a
examinaropássaro,espetandoecutucandooanimalmorto.Acabeçadocorvocaiu.Os outros dois garotos se encolheram, virando os rostos. Mas Tom,
encantado, continuou. Tendo a espetado um pouco mais e exaurindo aspossibilidadescomamãe,voltouaatençãoaosfilhotes.—Não,Tom...—falouJames.— Cale a boca — sussurrou Tom, cutucando um dos filhotes
delicadamentecomoatiçador.Eelesemexeu.Os três garotos— inclusiveEdward—gritaram, surpresos, e todos se
afastaramdalareira.Porém,lentamente,elesretornaram.OfascíniodeTompareciatersido
transmitidoaosoutrosdois.Tomfranziuatesta.—Oqueagentedevefazercomele?Pelaprimeiravez,Tomdefatoparecianãoteraresposta.MasJamesapossuía.—Agentedevialevaratéaprofessora.Tomfezquenãocomacabeça.—Masamãedeleestámorta.
—Edaí?Enquanto os outros dois discutiam, Edward observou o pequeno
pássaro. Suamãe estavamorta. Um órfão. Ele cuidaria do filhote. Ele seencarregariadenãodeixarquenenhummallhefossecausado.Edward estendeu a mão para pegar o filhotinho, preparando-se para
recepcioná-lo,cuidardele.Masnãochegouaseaproximar.Tomabaixouoatiçador com força. O filhote agora estava tão morto quanto todos osoutros.EdwardolhouparaTomcomraiva. Jamesestavaboquiaberto.Osolhos
deTomserevezavamentreosdois.— O quê? — perguntou ele. Sua voz estava trêmula, mas ele estava
determinado a se justificar.—Ele... Ele ia acabarmorrendo, de qualquerforma. — Tom riu, satisfeito por ter chocado os dois a ponto de elesreagirem.Podia ter sidoumpoucoexagerado,porémeramelhorque serignorado.—Ah,qualé...A julgar pelas expressões em seus rostos, James e Edward não
concordavam. Tom havia se cansado deles. Jogou o atiçador no chão,repentinamentecansadodaquilotudo,esevirouparasairdoquarto.—Vamos—chamouele,puxandoJames.Edward permaneceu onde estava, observando enquanto eles partiam.
Lágrimasfuriosasesolitáriasseacumulavamemseusolhos.
Esconde-esconde
Tom saiu a passos largos do quarto, com um brilho nos olhos. Matar opássaro o havia feito pensar que era capaz de qualquer coisa e queninguémpodia impedi-lo.Ninguém.Ele examinouo corredor, fechandoeabrindo os punhos, dentes àmostra, procurando o quepoderia fazer emseguida.Masnãofoilonge.Edwardsaiucorrendodoquarto,bocaaberta,rosnandosilenciosamente,
atirando-seàscostasdeTom.Pegodesurpresa,Tomperdeuoequilíbrioecaiu.Edward,chocadocomaprópriaatitude,ficouimóvel,olhandofixamente
paraTom,quelentamenteselevantava.Jamesficouenraizadonolugar.Segundos pareceram horas enquanto os três garotos permaneciam
paradosali,semsemover.—Nuncaofereçaaoutra face— lembrou-seTomdeouvir seupai lhe
dizer. — Nunca. Cuide sempre de si mesmo. Porque, se você sempreofereceraoutraface,sabeoqueacabaacontecendo?Vocêviraumsacodepancadas,éissoqueacabaacontecendo.Tom caminhoudevagar até Edward, comos punhos erguidos. Edward,
sabendoqueoqueoaguardavairiamachucá-lo,encolheu-se.Elefechouosolhos.Masogolpenuncaveio.Emvezdisso,TomsorriueagarrouEdward.—Vamosbrincar de esconde-esconde—disse ele, girandoo pulso do
menino, forçando-o a entrar novamente no quarto do qual acabaram desair.—Vocêprimeiro.Ele soltou Edward e o empurrou para dentro do quarto. Antes que o
garoto pudesse sair correndo novamente, Tom segurou a maçaneta e
fechou a porta. Ele sentiu que Edward tentava girar a maçaneta,esforçando-separaabriraporta,porémTomeramuitomaisfortequeele.James se aproximou e abriu a boca como se fosse falar algo, mas a
expressãonosolhosdeTomosilenciou.Eleficouparadoali,escutandoossocoseoschutesnaporta.Depoisdeumtempo,obarulhoparou.
Edward logopercebeuquenãoadiantavacontinuarpuxandoamaçaneta.Tom a segurava firme. Sabia que não conseguiria abrir a porta até Tomsoltar.Eledesistiueseafastou.Repentinamenteoquartoesfriou,umfrionoturno.Edwardpodiaversua
respiração formando nuvens quando expirava. Ele tremeu e apertou osbraçosemvoltadocorpo.Havia algo estranho naquele quarto. Algo de que ele não gostava. Não
apenas o frio e os pássaros mortos na lareira, mas uma sensação. Umatristeza.Edwardjásesentiaperdidoedesolado,porémestequartopareciaalimentar sua dor, fazendo-a aumentar. E havia mais uma coisa: umasensaçãodepavor,deterror,movendo-seemsuadireção.Eentãoelenotouopapeldeparede.No cantomais afastado, o papel úmido e velho começou a rachar e se
descolar.Omofopretoparecia aindamais escuro, espalhando-se apartirdocanto.Edward sentiu o coração na garganta, o corpo começar a tremer. Ele
voltouatéaportaebateucomtodaaforçaqueconseguiu.
Tom riu e segurou amaçaneta comaindamais força. James ficou apenasparado,assistindo.TãomudoquantoEdward.
Edwardviroudecostasparaaporta,ousouolharnovamenteparaoquarto.Omofo semovia em suadireção, comoosdedosdeumabruxa, pretos eenrugadosseesticandolentamente,prontosparaagarrá-lo,capturá-lo...Comvigorrenovado,elevoltouabaternaporta.
Eveimprovisavaumlugarondepudessedaraulanasaladejantarquandoouviu o barulho. Ela imediatamente largou os livros que estavamespalhadosecorreuparaveroqueestavaacontecendo.
Edward parou de bater. Ele sentiu algo tocá-lo. Nunca havia ficado tãoaterrorizadoemtodaasuavida.Eleabriuabocaedeuumgritosilencioso.
—Oqueestáacontecendo?Evechegouàportadoquartodecriança.Tom a viu se aproximando e soltou a maçaneta. Ele rapidamente se
afastoudaporta.—Jamesmeobrigouafazerisso—acusouele,comavozfraca.Eve o ignorou e seguiu diretamente para a porta. Ela ouvia Edward
batendodooutrolado.Evetentougiraramaçaneta,masaportanãoabriu.EntãosevirouparaTom.—Vocêtrancouaporta?Tommeneouacabeça,negando.Elepercebeuqueestavaencrencado.—Ondeestáachave?—gritouEveparaele.Tomcontinuoubalançandoacabeça.—Eunão...Agentenão...Elaavançounadireçãodogaroto.—Paraentrar,vocêdeveterdestrancadoaportaprimeiro.—Ela...Elaestavaaberta...Eveseagigantousobreele,seusolhosparecendodoispedaçosdecarvão
incandescentes.—Ondeestáachave?Tom recuou, fugindo dela, a raiva da professora o deixava
completamentemudo.Elaseviroudenovoparaaporta.—Edward!Deixe-meentrar!Evegirouamaçaneta,empurrandoepuxandoaporta.Aoperceberque
não estava adiantando, ela soltou, cerrou os punhos e começou a baterfreneticamentenamadeira.Masnadaaconteceu.Com as articulações doloridas, Eve se virou para os outros meninos,
prontaparaexigir,maisumavez,queelesencontrassemachave.Entãoamaçanetagirou.Aportaseabriulentamenteporcontaprópria.Aoveroqueacontecia,Evecorreuparadentrodoquarto,prontapara
agarrarEdward,temendoopior.Entãoelaparou.Omeninoestavasentadono chão nomeio do quarto. Em suasmãos se encontrava um brinquedovelhoeEdwardbrincavacomele,aparentementesatisfeito.Evesemoveucautelosamenteemsuadireção.—Edward?—chamouela,baixinho.
Elenãoergueuosolhos,apenascontinuoumexendoemseubrinquedo.—Edward,vocêestábem?Elanãoobteveresposta.Edwardnãopareciaestarouvindo.Eve se ajoelhou ao lado dele, ofereceu-lhe a mão. Ele a segurou e,
enquantoaprofessoraseerguia,Edwardselevantoujunto.Elaolhouparaoobjetoqueomeninosegurava.EraumvelhofantochedoMr.Punch,suatúnicavermelhaagorasarapintadadepreto,seuslongoscabelosdouradossoltos.Eveaindaconseguiadistinguirasfeiçõesemseurostodemadeira:olhosbrilhanteseazuis,umsorrisovívido,asbochechas,onarizpontudoeoqueixoalongadoaindavermelhos.Edwardpermitiuqueelaoconduzisseparaforadoquarto,segurandoo
Mr.Punchfirmementenaoutramão.Enquantosaía,Eve,franzindoatesta,notouoestadodasparedes.Acasa
pareciasedeterioraracadahoraquepassava.Massepreocupariacomissoemoutromomento.ElatirouEdwarddoquartoefechouaportacomforçaaosair.
Umavisita
Oalmoçofoidesconfortável.Na sala de jantar, Tom e James forammantidos separados das outras
crianças, sem comida. Eles se sentaram a uma mesa à parte, copiandofrasescomopunição,soboolharatentodeJean.Nãodevointimidarasoutrascrianças.Nãodevointimidarasoutrascrianças.Nãodevo...Asoutrassabiamexatamenteoquehaviaacontecidoe,assimcomoTom
e James observaram Edward no dia anterior, elas estudavam os doistransgressorescomumfascíniosemelhante.Eve se sentou ao ladodeEdward.Ela temiaque suas experiênciasnas
mãosdeTom—e,pensoudeformarelutante,James—odeixassemaindamais retraído.No entantoparecia ter acontecidoo contrário. Elenão eramaisogarotoque tinhasidoantesdeperderamãe,masparecia,emsuamudez,terpassadoincólumepelaprovação.Noentanto,EdwardcontinuavaagarradoaoMr.Punch.—Ondevocêarranjouisso,Edward?—perguntouelaaogaroto.Havia algo no brinquedo de que Eve não gostava. Aquilo a deixava
inquieta,noentantoelanãoconseguiaexpressaromotivo.PareciaqueumpedacinhodaquelequartotristehaviasesoltadoesegrudadoaEdward.Ele não respondeu. Apenas terminou o almoço, sua atenção o tempo
inteironofantoche.—Vi alguns comoessenoporão—continuouEve.—Tinhaumvelho
teatrodefantochesláembaixo.Vocêdesceuláparapegar?Elefezquenãocomacabeça.Eve inclinou o corpo em sua direção, a voz baixando a um tom
conspiratório:— Você não vai ser castigado se tiver descido. Só quero queme diga
comoencontrouofantoche.Edwardnãorespondeu.Tentandoencorajá-loaindamais,elacolocoua
mãoemseubraçopara confortá-lo.Ele se aproximouumpouco, oqueaprofessoraconsiderouumencorajamento,masnãosoltouoMr.Punch.Alguémbatiaàportadafrente.—Abraaporta,porfavor,Srta.Parkins.Evefezquesimcomacabeçaeselevantou.Enquantosaíadasala,estava
cientedeque Jean, atrásdela, ia atéa janela.Evequase sorriu.Elapodianãoabriraporta,masnãoconseguiaconteracuriosidadedesaberquemestavalá.OqueEvenãoviu foiEdward.Eleesperouatéasduasadultasestarem
distraídas com outras coisas para cruzar a sala até a mesa onde Tom eJamesestavamsentados.Jamesnãoconseguiaolharparaoantigoamigo.EdwardparoujuntoaTomelheentregouumbilhete.Devolvameudesenho.Tomsoltouseulápis,comumsorrisoperversoestampadonorosto.Ele
meneouacabeça.Joyce percebeu o que estava acontecendo e se aproximou. Ela viu o
bilheteeareaçãodeTom.—Devolva—mandouela—,oueuvoucontarparaaprofessora.Tomselançouàfrente,orostomisteriosotomadopelafúria.—Euvourasgarodesenho.JoyceeEdwardderamumsaltoparatrás.
Eve não ficou sabendo disso. Ela abriu a porta da frente, esperando JimRhodes, e encontrouHarry em seu lugar. Ele sorria encolhido dentro dosobretudo,esfregandoasmãosporcausadofrio.—Penseiemdarumapassadaevercomoestãoascoisas.Seestavatudo
bem.— Então ele acrescentou rapidamente:— Com todos vocês, querodizer.Eleviuumrostonajanela.Jeanoobservavaatravésdovidro.—Chegueinahoraerrada?EveseguiuseuolhareJeanrecuou.Aprofessorasorriu.—Não.Nãomesmo.Osdoisficaramparadosali,imóveis.Elepareciamaisbonitoàluzdodia,
pensouEve,entãoserepreendeupelopensamento.
—Escute—falouHarry—,nãosouumgrandefãdepneumonia...Everiueoconvidouaentrar.
Poderespsíquicos
Sem querer que Jean a acusasse de qualquer atitude imprópria, EvecontinuoucomsuastarefasenquantoconversavacomHarry.Elaestavanodormitóriodascrianças,arrumandoascamas.Harryseencontravaparadodiantedeumaquecedor,aindatentandoseesquentar.—Querajuda?—perguntouele.Evesorriu.—Obrigada.Harry tirou o sobretudo e se juntou a ela, prendendo, dobrando e
esticandooslençóis.—Eujádeviaestaracostumadocomissoaestaaltura.—Deviamesmo.Harryolhouparaaportaebaixouavoz.—ComoestáasargentoCarranca?Eveolhouaoredor,nervosa.—Falebaixo,elavaiescutar.Eégeneral,nãosargento.Bem,éaesposa
dele,dequalquerforma.Harrydeudeombrosdeformazombeteira.—Nãotenhomedo.—Elepareciapensativo.—Emboraelarealmente
sejaminhasuperior...Eve riu. Esse pareceu ser seu momento mais descontraído desde que
haviasaídodeLondres.Harry, sorrindo, pegou um livro de uma mesa de cabeceira e olhou a
capa. Era um romance água com açúcar, I’ll Be With You, de FrancesBraybrooke.EleomostrouaEve.—Istoédela?Apostoqueé.Duronadoladodefora,masbemnofundo...Elebalançouacabeça.AsbochechasdeEvecoraramlevemente.
—Naverdade,émeu.Deixeiaquiporengano.—Ah.Harry colocouo livrodevoltano lugar comcuidado, comoseoobjeto
tivesseficadorepentinamentequente.Elepareciaenvergonhado.—Issomeajudaamedesligardealgumascoisas—explicouela,para
fazê-losesentirmelhor.—Vocêlê?Harrydeudeombros.—Manuais.Vocêsabe,essetipodecoisa.Nãogostomuitodehistórias.Evesorriu.—Todomundogostadehistórias.Elespararamdefazerascamas.—Entãoqualéasua?—perguntouHarry.Evesecurvoueafofouumtravesseiro,evitandoosolhosdele.—Acheiquevocênãogostassedessetipodecoisa.Harrydeudeombrosnovamente.—Vamosver.Elaparoudemexernotravesseiroeapontouparaoquartoaoredor.— E quanto a esta casa? — continuou ela, ignorando a pergunta. —
Tenhocertezadequeháumahistóriainteressanteaqui.—Sobreexcessodeumidade,talvez.Evemordeuseulábioinferior,aexpressãorepentinamenteséria.—Encontreiummontedecoisanoporãoontemànoite.Harryriu.—Coisasvelhas?Emumporão?Gosteidessa...Eve,noentanto,ficouséria.—Achoquealgoruimaconteceuaqui.Harryolhouaoredor.—Bem,opapeldeparedeébastantefeio...—Estoufalandosério.—Evejogouumtravesseironele.Surpreso,Harry
o agarrou.— Tem algo estranho neste lugar. Parece...— Ela pensou novelhoquartodecriança,nobrinquedorecém-descobertodeEdward.—...triste,oufurioso.Talvezasduascoisas.Nãosei...Harryesfregouasmãos,seusolhosbrilhavam.— Poderes psíquicos, hein? — Ele se aproximou dela e colocou o
travesseirosobreacama.—Entãomedigaemqueestoupensando...EledelicadamenteposicionoudoisdedosnatestadeEve.Estavamfrios,
mas ela gostou do toque. Exagerando, Harry fingiu agir como umhipnotizador, contorcendo o rosto como se sentisse dor, balançando aoutramão.Então,moveuoslábiosfazendoumaperguntasilenciosa:
—Deondevocêé?Everiu.—Croydon.Eledeuumsaltoparatrás.—Impressionante!Denovo.—Harrycolocouosdedosnatestadamoça
outravez,rindo.—Eagora?Suaexpressãoestavaumpoucomaisséria.Elenãomoveuoslábiosdesta
vez.PorémEvenãoestavaprontaparaagirseriamentecomele.Aindanão.—Vocêquerumaxícaradechá?—sugeriuela,sorrindo.—Respostaerrada.Evepensoumaisumpouco.—Ah,nãosei.Vocêvaiterdemedizer.—Oqueestavaportrásdaquelesorriso?—perguntouHarry,olhando
paraeladeformapensativa.Evefezquenãocomacabeça.—Essaperguntadenovo?—Souumdiscoarranhado.SeusorrisofoidesaparecendoeseusdedosseafastaramdatestadeEve.De repente ela percebeu comoHarry estava próximo.Os olhos dele se
fixaramaosseus.—Éapenasomeujeito.Écomolidocomascoisas.—Comaguerra?Elepareciaterseaproximadoaindamais.—Comtudo.Evesentiuarespiraçãodeleemsuabochecha,ocheirodesualoçãopós-
barba.OsolhosdeHarryfixosnosseus.—Eve?Ela se assustou e se virou rapidamente. Jean estava parada à porta do
quarto.Háquantotempo,Evenãofaziaideia.Jeandeuumacenoríspido.—Achoqueestánahoradasaulasdatarde,vocênãoacha?—Sim,claro—respondeuEve,arrumandoafrentedovestido,apesarde
nãoestaramarrotada.Jeanbalançouacabeçabrevemente.—Tenhaumbomdia,capitão.Adiretorasevirouesaiudoquarto,parandoapenasparatocarasinetaa
fimdereunirascrianças.EveeHarryseolharame,comomomentointerrompido,riram.
—Eume sinto comoumdos alunos— comentouHarry.—Umalunobagunceiro.Everiumaisumavez.—Essesorrisofazpartedoseutrabalhotambém?—perguntouele.Elacontinuousorrindo,continuouolhandoemseusolhos.—Talvezessesejadeverdade.
Harry
O vento frio produzia pequenas ondulações na água dos dois lados dapassagem das Nove Vidas. As ondas cresciam em cristas brancas,quebravam e batiam na beira da estrada, desaparecendo. Então seretraíam,prontasparacresceroutravez.As mãos de Harry tremiam enquanto ele segurava firme o volante do
jipe. Olhava fixamente e de forma determinada para a frente enquantoguiava, sem se permitir ser distraído por qualquer coisa que estivesseacontecendo nas laterais do veículo. Ele odiava a água. O som dela seavolumava em sua imaginação. O barulho era alto, quase ensurdecedor,estrondosodemaisparaotamanhodasondas,amplificadoemsuacabeçaaté que o ritmodomar tivesse se tornado o ritmode sua respiração, deseus batimentos cardíacos. Batendo e quebrando. A respiração cada vezmaisentrecortada,elesóqueriacruzarapassagemdeumavez.EntãoHarryouviualgomaisaovento,acimadossonsensurdecedoresda
água.Fracoesutil,masinconfundível.Umgrito.Emaisoutro.Umpedidodeajuda.Entãonada,aágualevandoavoz,arrastando-aparabaixo.Afogando-a.Harryparouojipeetirouasmãostrêmulasdovolante.Tentouafastaros
sons da água, os gritos que ecoavam e sumiamainda em sua cabeça. Elefechouosolhoscomforça,franziuatestae,sentindoaimpotênciafamiliarda iraedomedocrescendomaisumavezdentrode si, bateunovolantecom força. E continuou batendo, até que, exausto, ficou sentado imóvel,respirandocomdificuldade,tentandorecuperaracalma.Esfregouosolhos,absorvendooqueestavaaoredor.Escutou.Osgritos
afogadosdesapareceram.Harryseperguntouserealmenteoshaviaouvido,ouseeramapenasosgritosquecarregavaconsigo,emsuacabeça.
Ele ligouo jipenovamenteedirigiuomaisrápidoquepôdeatéa terraseca.AtrásdeHarry,anevecomeçouacair.
Orostodebaixodastábuasdoassoalho
Eve fechou aportada frente, girando a chavena fechadura com firmeza.Faziafrioláfora,anevecaía.Dentronãoestavamuitomaisquente.ElapensavanavisitadeHarry.Gostavadele.Ocapitãoeraumhomem
jovem,encantadorebonito.MasEveacreditavaqueexistiaalgomais.Eleparecia carregar algo consigo, um ar melancólico, uma dor. Harry aescondia bem, não era visível a todos. Apenas àqueles que reconheciamalgo semelhante em si mesmos, acreditava Eve. Uma alma gêmea. E eletambémpareciainteressadonela.Sorrindo, Eve seguiu pelo corredor, mas parou abruptamente quando
umadastábuasdoassoalhorangeusobseupé.Elacolocouseupesosobrea madeira novamente. A tábua cedeu, entortando. Estava preta eapodrecida,comumenormeburaconomeio.Aquiloeraumperigo,pensouEve,umtrabalhoparaJimRhodesquandoelevoltasse.OuHarry.Elasorriumaisumavezaopensarnorapaz.Eveajoelhouparaexaminaratábua.Entãocaiuparatrás,emchoque.Dois olhos.Brilhando comumamaldade sombria emum rostobranco.
Olhandofixamenteparaelaporentreastábuasdoassoalho.Com o coração acelerado, ela ajoelhou novamente e observou pelo
buraco.Nãohavianinguémali.Eveselevantou,olhouaoredor.Nãohavianinguémporperto.Elaseguiu
para a cozinha e abriu a porta. E lá estava Jean sentada à mesa,massageandoseustornozelos.ElaergueuosolhoscomaentradadeEve.—Aáguaacaboudefervernachaleira—avisouJean,apontandocoma
cabeçaparaaxícaradechádiantedela.Eveolhouparaadiretora.
—Asenhoraestevenoporãoagora?— Há algunsminutos— respondeu Jean, terminando a massagem no
tornozeloebebendoseuchá.—Nãoémuitoagradável,nãoacha?Ofedoréimpressionante.Eve olhou para a porta, então para Jean e para a xícara de chá diante
dela, vapor subindo do líquido. Poderia ter sido Jean quem ela vira porentre as tábuas do assoalho? Jean poderia ter voltado lá para cima notempoqueEvelevoudocorredoràcozinha?Eaindaterpreparadoochá?—Bebaumpouco—ofereceuJean.Evesaiudotranse.—Chá.Sim.Chá.Tem alguma coisa acontecendo comigo?, pensou Eve. Estou
enlouquecendo? Ontem à noite e agora isso? Ela pegou uma xícara noarmárioeserviuumpoucodechádobule.Uma alucinação, pensou ela. Foi isso. Como ontem à noite. Sim. Uma
alucinação.Eve se sentou àmesa com seu chá.Nãopensenisso, pensou, fale sobre
outracoisa.—O...maridoda senhora foi convocadoquandoa guerra começou?—
perguntouEve,entãoimediatamentesearrependeu.Ela sabia por experiência própria que Jean não era afeita a perguntas
sobresuavidaparticular.Noentanto,paraasurpresadeEve,Jeansorriu.—Não.Estamosnaativahámuitotempo.Nossosdoisfilhostambém.Eve se inclinouna direção da diretora, reagindo à cordialidade recém-
descoberta.—Asenhoratemfotos?Ascortinassefecharamnovamente.—Euseicomoelessão.Eve levou a xícara aos lábios, sorveu um gole e, revigorada, tentou de
novo.—Ondeelesestão?—perguntouela,emvozbaixa.Jeantomouumgoledechá.Enquantobebia,pareceurelaxarumpouco
mais.—UmestánaÁfrica,ooutro,naFrança.Meumaridotambémestálá.EladesviouosolhosdeEveedeuoutrogole.—Asenhora...JeansevirououtravezparaEve—Tentonãopensar neles. Eles não estão aqui. Se eu começasse ame
fazerperguntas,então...quemsabeaondeminhamentemelevaria?Jean desviou o olhar de novo, porémEve tinha percebido o brilho nos
cantos dos olhos da diretora. Ela pensou novamente nas palavras de JimRhodesenãoinsistiunoassunto.Jeanterminouseucháeselevantou.—Boanoite,Eve.Eve ficou boquiaberta. Aquela era a primeira vez que a diretora a
chamavapeloprimeironome.Surpreendeu-setantoquemalconseguiulhedarboa-noiteemresposta.
Fogonocéu
Edward não conseguia dormir. Ele havia fechado os olhos com força eestavadeitadosemsemexeremsuacama,masnãoadiantava.Permaneciaacordado,comopolegarenfiadofirmenabocaeoMr.Punchpressionadono peito. Edward sabia que as outras crianças falavam dele e, emboraaquilonãoajudasse,nãoeraaúnicacoisaqueomantinhadesperto.OuviuTomcontar aFraserqueele achavaqueEdwardhaviavistoum
fantasma quando foi trancado no quarto de criança. Aquilo empolgouFraser, que estava tão cheio de perguntas e especulações bizarras queEdward,escutandotudo,sabiaqueelenãoconseguiriadormirestanoitedeformaalguma.Elesesentou,colocouosóculoseolhouaoredornodormitório.Algumas
velas ainda estavam acesas, a única iluminação no quarto. Tom e Fraserestavam deitados em suas camas adjacentes, cochichando entre si. Elesviram que Edward estava acordado. Fraser o encarou, boquiaberto. Tomsimplesmenteolhouparaelesemdarmuitaimportância.—Vocêviu?—perguntouTom,sabendoqueEdwardtinhaouvidotudo
oqueelesdisseram.—Vocêviuumfantasma,nãoviu,Edward?Edwardnãorespondeu.— Era sua mãe? — indagou Fraser, e Flora, escutando a conversa,
contorceu-secomafaltadetatodomenino.—DeixeEdwardempaz—advertiuela.Tomsevirouparaagarota.—Eufalooquequiser.Elenãoéseunamorado,é?—Fiquequieto—mandouJoyce,comsuahabitualvozdeprofessoraem
formação.—VoucontarissoàSra.Hogg.Voufalardetodosvocês.Alfiepuxouascobertassobreacabeçaeseencolheu.
—Eusóquerodormir—reclamouele,suavozabafadaecansada.Edward deu as costas a todos e tampou os ouvidos com as mãos.
Precisavaafastá-los.Afastartudo.Eleficouencarandofixamenteaparede.Eumrostohorrendosurgiubemasuafrente.Edward pulou para trás, empânico, e caiu da cama. Arriscou erguer o
olhar na direção do rosto grotesco, contorcendo-se, escondendo os olhosatrás dos dedos com medo de que o rosto o assustasse novamente. Elepercebeuoqueeranaverdade:Tomestavausandosuamáscaradegás.—Enganeivocê—falouogaroto,tirandoamáscaraejogando-adelado.Rindo,elevoltouparaacama.Edwardselevantoulentamentedochãoe,envergonhado,subiudenovo
emsuacama.EleagarrouoMr.Punchcommaisforçaainda.TomclaramenteapreciavaaangústiaquehaviacausadoaEdward,mas
aquilonãoeraosuficiente.Elesabiaqueasoutrascriançasnãoestavamdoseulado,porémaindasesentiadeterminadoaprovocarumareaçãomaisimpactante.TompegouodesenhodeEdwardeobalançouparaqueomeninovisse.
Então o dobrou e o colocou no bolso do pijama, batendo nele de leve.Edwardficouextremamenteaflito.—Devolva.O grupo inteiro se sentou para ver o que estava acontecendo. Viram
JamesparadoaopédacamadeTom,comasmãosnacintura.—EufaleiparadevolverodesenhoaEdward.Tom o encarou, estupefato. Essa era a primeira vez que James o
enfrentava. A primeira vez que qualquer um no grupo o fazia. E, pelaexpressãonorostodeJames,elenãorecuaria.Nãosembrigar.Tomsaiudedebaixodoslençóiseseaproximoudogaroto.Porémabriga
não começou, porque, naquele momento, eles ouviram um zumbidoestrondosodo ladodeforada janela.Souberamimediatamentedoquesetratava.MesesdeataquesaéreosemLondreslhesensinaramisso.Comabrigaesquecida, todossaíramdesuascamasecorreramparaas
janelas, empurrando-se para ter a melhor visão, colocando as mãos emvoltadosolhosparaenxergarmelhor.Ao longe, no céu de inverno sobre o mar, havia uma esquadrilha de
bombardeirosHalifaxacaminhodacasa.—Éumataque!—gritouFraser.—Elessãoingleses,seuidiota—retrucouAlfie.Omenininhoolhouaoredor,envergonhado.
—Eusabiadisso.Joycegesticulouparaqueosdoissecalassem.—Vejam.Umdosbombardeirosestavaemchamas.Elecomeçouaficarparatrás,
afastando-se do grupo. As crianças olharam fixamente, arrebatadas,sussurrando preces, palavras de encorajamento, desejando que elepermanecessevoando.Nenhuma das crianças percebeu quando, por trás da luz pálida e
bruxuleantedasvelas,umasombrasedestacoudasoutrasesemoveuemdireção a elas. Vestida de preto, o rosto branco como osso, ela seaproximoueparouatrásdelas.Enquantoogrupoolhavaparaoavião,elaobservavaascrianças,seusolhospretoscomocarvãodançandocomumamaldadeevidente.Olhandoparaogrupo,escolhendo...—Oqueestáacontecendoaqui?Jeanestavaparadajuntoàporta,prontapararepreenderascriançasde
formamais severa, porém, quando viu a que elas assistiam, juntou-se aogrupo.Semservista,acriaturacomorostobrancocomoossorecuouparaas
sombras.Nocéu,oaviãonãoconseguiamais semantervoando.O fogohavia se
espalhado por toda a sua fuselagem e tinha consumido uma asa. Elecomeçou a cair, as chamas o envolvendo cada vezmais. Todos assistiamenquantooaviãodesciaemumaespiralatéomar.Aoatingirasuperfíciedaágua,estavatãodistantequemalfoiouvido.Orestodaesquadrilhadesapareceueanoite ficousilenciosamaisuma
vez. Omar estava tranquilo agora, como se nada tivesse perturbado suasuperfície. Mas todos ainda olhavam fixamente, observando o céu vazio,tentandocompreenderoquehaviamacabadodever.AtémesmoJean.
Em seu quarto, Eve também tinha visto aquilo acontecer. Mas haviafechadoosolhosantesdeoaviãoatingiraágua.Elaapertouopingentedequerubimcomforçajuntoasuagarganta.—Porfavor,quenãosejaHarry...
Outrapresença
Suamãe sorria e usava omelhor casaco. Aquele preto. Ela o chamava, eEdward, com o coração explodindo de felicidade por vê-la novamente,corriaomaisrápidoquepodiaemsuadireção.Tudohaviasidoumsonho,pensouele,enquantocorria.Oataqueaéreo,
a explosão, a casa, o quarto de criança... Tudo. Isto era real. Isto estavaacontecendo.Edward continuou correndo, quase alcançando-a, quase lá. Mas,
conforme se aproximava dela, amãe parecia se afastar. Sempre distante,sempreforadoalcance,chamando-o,massabendoqueelenuncapoderiaalcançá-la.EntãoEdward finalmente começoua fazeralgumprogresso.Omenino poderia ter gritado de felicidade, gargalhado. Abraçaria a mãenovamente.Embreve.Agora.Noentantonãoeramaissuamãe.Elahaviamudado.Aindavestiapreto,
mas não o bom e costumeiro casaco da mãe. Suas roupas eram velhas,surradas.Ehaviaalgosobreorostodela—umvéu?Aquilonãoescondiaosdetalhesdesuaface.Edwardpodiaversuapelebrancatãoesticadaquesepareciacomossosantigos;seusolhos,pretosefrios,brilhandocomrancoremalícia.Eelecorriaemsuadireção.Tentouseobrigaraparar, forçarospésadiminuíremoritmo,massua
velocidadesóaumentava,aspernasolevandomaisrápido.Elebalançouacabeça,tentougritar,porémavoznãosaía.Esteéosonho,pensouele.Nãooanterior.Porfavor,deixe-meacordar,porfavor...Edwardsesentouderepente,seupeitoqueimandoporcausadoesforço
do sonho, suor na testa. Ele abriu os olhos. Estava escuro no quarto, asvelashámuitoconsumidas.Tudoeraumborrãoenquantoaindanãohaviacolocadoosóculos,maseleconseguiaenxergarosuficienteparasaberque
osoutrosdormiamprofundamente.Pegouosóculosnamesadecabeceira,porém,aolevantá-los,deixouque
caíssemnochão.Esticandoobraçodecimadacama,tateouaoredor,masnão conseguia encontrá-los. Atrás de si, ouviu o som de algo estalando,movendo-se.Esfarelando-se.Elesesentoueolhouaoredor.Aúnicacoisaatrásdeleeraaparede.A
parede estava estalando? Ele semicerrou os olhos, tentou enxergar.Conseguiudistinguirapenasformasvagassemovendonassombras.Entãoumadassombrascomeçouasedeslocaremsuadireção.Enquanto
vinha, o som de estalos foi substituído por outro. Algo se arrastando,sussurrando.Asombrasemoviarapidamente,aumentandocadavezmais,agigantando-se sobre seu corpo. Ele sentiu um terrível fedor dedecomposiçãoepodridão.Aquiloodeixouimediatamentenauseado.Aterrorizado,Edwardpuxouascobertassobreacabeçaedeitouomais
rápido que pôde. Mr. Punch estava debaixo das cobertas com ele, e omeninoapertouobonecocontraopeito,sentiuseunarizdurodemadeiraespetá-lo.Ele segurou o cobertor com força, sem ousar se mover, quase sem
respirar,desejandoserinvisível.Tentoufazeroquesuamãecostumavalhedizer,pensaremcoisasboasparaafastarossonhosruins.Edwardtorceuparaqueaquilofuncionassecomoqueoucomquemquerqueestivesseali.Entãoalgotentoupuxarocobertor.Edward o segurou, o mais firme que conseguiu, porém a presença
continuou lutando. Determinado a não desistir, Edward usou toda a suaforçaapenasparasemantercoberto.Ocobertorseafrouxounasmãosdomenino.Eleouviuobarulhodealgo
searrastandoefarfalhandonovamente,masdestavezrecuando.Oterrívelcheirocomeçouasedissipar.Eleficouimóvel,escutando.Depoisdealgumtempo,nãoconseguiaouvirnadaalémdaprópriarespiração.Edward tremia, engolia os gritos com medo de a sombra escutá-lo.
Mantendoosolhosbemfechados,desejoupegarnosononovamente,voltarao sonho. A parte boa, a parte com amãe. Umadasmãos segurou oMr.Punchjuntoaopeito;osdedosdaoutraestavamenfiadosemsuabocaparaabafarquaisquergritos.Ficoudeitadoassimpelorestodanoite.
Amulhercomorostobrancocomoossodeuascostasaogarotoemposiçãofetalevasculhouodormitório,voltandosuaatençãoaTom.Enquantoisso
acontecia, a atmosfera no quarto mudou, exalando agora uma malíciapalpável.Tom se sentou na cama e piscou. Uma vez. Duas. Seus olhos estavam
abertos, mas sua expressão era vazia. Ele empurrou as cobertas e selevantoudacama.Aindadepijamaedescalço,ogarotosaiudoquarto.Elechegouàportadafrenteeesperou.Elaseabriulentamentecomsua
presença.Doladodefora,aneveaindacaía.Oventosopravalufadaspelaporta,os
flocosgélidosatingindoorostodeTomcomoagulhascongeladas.Elenãose encolheu, nemmesmo piscou,mas deu as costas para a neve, prontoparaentrarnovamentenacasa.A mulher estava parada atrás dele, impedindo sua volta. Ele parou e
olhou para ela, então fez que sim com a cabeça. Havia compreendido.Então,descalço,Tomsaiuparaanoitegelada.Aportasefechoudelicadamenteatrásdele.
Descoberta
Edward estava exausto. Ele sentia como se não tivesse dormido, mas ofizerae,portodaaatividadenoquarto,eraoúltimoaacordar.Encontrou seus óculos no chão e os colocou. Suas duas professoras
circulavam pelo quarto, verificando debaixo das camas, nos armários,olhando-se e balançando as cabeças. Ele sentia a tensão nelas. As outrascrianças também estavam acordadas e fora da cama, suas expressõessoturnas.Percebendoquealgo sério estavaacontecendo,Edwarddecidiuqueeramelhorselevantaresejuntaraelas.Aoficardepé,percebeualgosaindodebaixodotravesseiro.Elepuxou.
EraodesenhoqueTomhaviaroubado.Amulhereogaroto.Edwardolhouao redor, esperando descobrir quem o tinha colocado ali. James,provavelmente, ou Joyce. Mas nenhum dos dois percebeu quando eleencontrouodesenho.Ninguémnotousuapresençanoquarto.Eleolhouaoredor.OndeestavaTom?
Nocorredor,Jeancaminhouparaaportadafrenteegirouamaçaneta.Elaseabriu.AdiretoraolhoudeformaacusatóriaparaEve,queestavaparadaatrás
dela.Osolhosdaprofessorasearregalaramcomochoque.—Maseuatranquei...ElacorreuparaficaraoladodeJeanjuntoàporta.Emvoltadamaçaneta
e da fechadura a madeira estava escura e desbotada, podridão edecomposiçãoseinstalando.Evepercebeuquetodasascriançassaíramdodormitórioeasobservavam.— Todos, por favor, fiquem dentro de casa — mandou a professora,
enquantoelaeJeaniambuscarseuscasacos.Elas ainda estavam de camisola por baixo e Eve sentiu o frio em suas
pernasemãos.Ochãoestavacobertodeneveendurecidaeenlameada.Evecomeçouabuscadiantedacasa.Podiaverapassagemseestendendo
atéocontinente,aáguatranquilanestemomento.Elaolhouparaochãoeviupegadasapartirdaporta,quelevavamaoaramefarpadonamargemdailha.A professora correu nessa direção. E viu algo emaranhado no arame.
Tom.Ocorpodomeninoestavacontorcido,completamentetorto,comoseele
estivessedeterminadoaatravessaracercaeescapar,masoarameafiadoohaviaimpedido.Seuslábiosestavamazuis.Osanguedoscortesearranhõestinhasegrudadoaocorpocomolágrimasdegelo,vermelhascomorubi.Tomhaviamorridocongelado.
Resultado
Eve olhou para os sete rostinhos que a encaravam, suas expressõeschocadas e tristes.As criançasqueriamrespostas, explicações e conforto,mas Eve não tinha nada disso para oferecer.Explicar a guerra é fácil emcomparação a isso, pensou ela, porque eu mesma não entendo o queaconteceu.Jean e Eve se juntaram às crianças no dormitório. A diretora havia
começadoaconversarcomelas, tentandoexplicaroquetinhaacontecidocom Tom. Foi um discurso longo e evasivo, com muito pouco de seuhabitual tom direto. Eve achou que Jean parecia lutar para encontrarrespostas e que, se continuasse falando por tempo suficiente, elassurgiriam.—Sei que vocês todos... todos perderam alguémou conhecem alguma
pessoa que perdeu alguém na Blitz... — Ela lutava para não olhar paraEdward, para não colocar o menino em evidência. — E... E... vocês seacostumam com isso. Mas não deveriam ter de se acostumar... nãodeveriam, isto é...— Jean deu as costas para as crianças, esperou algunssegundos,recompondo-se.—Istoédiferente.Aqui,nestacasa,nestailha,édiferente, mas tão perigoso quanto. — Outra respiração profunda. Elapigarreou,ajeitouafrentedablusaquenemsequerestavaamarrotada.—Ontem à noite aconteceu um... um terrível acidente. Terrível... e vocêsdevemcompreenderque,que...nocampo,aqui,aindaexisteperigo.Comocantodoolho,Evenotouumamanchademofonaparedeatrásda
cama de Tom. Ela parecia se mover, pulsando. Crescendo. A professorafixouoolharnaquilo.Não,omofonãosemexia,masela tinhacertezadequenãoestavaaliantes.Jeanaindafalava.
—Vocêsdevem...devemobedeceràsregras.Sim.Obedeceràsregras.Éassim...Éassimquesobrevivemos.Éassimque...passamospormomentosdifíceis.Sim.Obedeceràsregras.Repetir...Repetirissonuncaéosuficiente.Um estrondo repentino foi ouvido no corredor. As crianças, agora
ressabiadas,viraram-separaveroqueera.Aportahaviasidoaberta,eJimRhodes carregava pela casa o corpo de Tom envolto em um cobertor,prontoparalevá-loparaforadailha.Umaagitaçãomórbidacresceunogrupo.Ascriançasestavamdivididas
entreobedecerasuaprofessoraeaemoção ilícitadequererveroamigomorto.Jean marchou até a porta, fechando-a com cuidado. Ela se virou
novamenteparaascrianças.—Queroquetodos...todosfiquemdentrodecasahoje.Atémesmo...Até
mesmonorecreio.—Elafechouosolhos,balançouacabeça,entãoergueuosolhosnovamente,virando-separaEve.—Srta.Parkins,cuideparaqueoDr. Rhodes consiga tudo de que precisar. Eu... Eu vou escrever àmãe domenino.Jean atravessou a porta, batendo-a com força depois de sair. Sua
compostura desaparecia, e ela não podia permitir que as criançaspresenciassem isso. Porém Eve tinha visto seus ombros tremerem e aslágrimascomeçaremaescorrerantesdeaportasefechar.Evesevirouparaascrianças.Edescobriuquenãotinhanadaadizer.Elalhesofereceuoqueesperavaserumsorrisoreconfortanteesaiupara
encontrarJimRhodes.
O arame farpado havia sido cortado e desenrolado para permitir que ocorpo de Tom fosse removido. Ele fora recolocado no lugar, cobrindo oburaco resultante. Agora, a única coisa que marcava aquele ponto era osanguequerestava.JimRhodesestavadoladodefora,paradoaoladodoônibus,observando
a propriedade, enrolado em um casaco grosso e um cachecol, tentandoimpedir que seus olhos se fixassemno local onde o corpo de Tomhaviasidoencontrado,maseraincapazdedesviarseufocodolocal.Eve saiu e parou a seu lado. Durante ummomento, nenhum dos dois
falou. A respiração deles formava nuvens geladas, desfazendo-se atédesaparecer.—Eu...Eutinhacertezadequehaviatrancadoaporta—comentouela,
depoisdeumtempo.—Aportadafrente.Tinhacertezadisso.
JimRhodesbalançouacabeça,seusolhosdesviandodosdela.—Eudissequevocêprecisavatercuidado.—Eusei,eeu...—Evesuspirou.—Lamentomuito.Jimsevirouparaolhá-la.—Achoquenenhumdenóspodelamentarosuficiente.Evevirouorosto.Seusolhospousaramsobreoburacoreparadonacerca
dearamefarpado.Elaestremeceu.Osanguesecohaviaassumidoumacorde ferrugem. Para Eve, aquilo parecia um eco externo do mofo que seespalhavanointeriordacasa.ElasevirounovamenteparaJimRhodes.—Doutor.— Sua voz ainda estava hesitante,mas suas emoções eram
sinceras.—Temalgoerradoaqui.JimRhodesfranziuatesta.—Oquequerdizer?Eveolhounovamenteparaacasaebaixouavoz,comosesuapresença
pudesseinibiroqueelaestavaprestesadizer.—Asparedes...têmmarcaspretassobreelas,mofo.Estáseespalhando
quando não, quando não se olha para ele... Estava na... na porta hoje demanhã,naportadafrente...enãoestavaláontemànoite...JimRhodesnãofeznenhumcomentário.Eve não conseguia parar. Todos os seus medos se alastravam dentro
dela.—E... o rosto. Eu... Eu vi um rosto. Por entre as tábuasdo assoalho.O
porão.Noporão.Umrostobranco.Eouvisons,como...como...—Elafechouos olhos, tentou se forçar a se lembrar.— Para a frente e para trás... Eninguémmaisouviuisso...E...Ehaviaumainscrição...Eve parou de falar, o medo que ela havia aprisionado dentro de si
extinguindo-se.—Euseique...queparecetolice,especialmenteàluzdodia,mas...—Ela
suspirou.—Precisamossairdaqui.Todosnós.Os olhos de Jim Rhodes estavam repletos de compaixão enquanto ele
falava.—Eudisseavocêsquenãohaviaoutro lugarpara ir.—Eleseguroua
mãodamoçaentreassuas,acompaixãoagoramisturadaàpreocupação.— Olhe— disse, apertando a mão dela, sua voz comedida, como se eleestivesse comunicandoumdiagnósticograveaumpaciente.—Achoqueseriamelhorvocêiremboraquandoonovogrupochegar.Eve ficou chocada. Essa não era de forma alguma a resposta que
esperava.Elarecuou,suamãosaindodoconfortodasmãosdohomem.—Não,não...nãoestouinventandoisso...Eunão...
JimRhodescontinuou:—Nãodevíamosteresperadoquevocêestivesseprontaparaessetipo
decuidadoemtempointegral.Vocêaindaémuitojovem.Eve de repente se viu como a heroína de um romance vitoriano,
denunciadacomohistérica,tendosuasqueixasdesacreditadaseprestesaserinternadaemummanicômioparaseuprópriobem.—Não—retrucouela—, issonãotemnadaavercom...Estoupronta.
Juro.A empatia nos olhos de JimRhodes era quase dolorosa. Ele segurou a
mãodamoçamaisumavez.—Onovogrupovaisermaisadequadoaisso.Nãoénadapessoal.Mas
todaselassãomães.—Elebateude levenamãodeEvee lheofereceuoque achou ser um sorriso reconfortante. — Tenho certeza de que vocêcompreende.Eve não conseguiu encontrar palavras para responder. Ela se virou e
percebeuqueEdwardestavaparadonosdegrausque levavamàportadacasa.Eleprovavelmenteouviuaconversainteira.O menino olhou para ela, sua expressão indecifrável. Ele ergueu o
boneco.Seurostovermelhodemadeirapareciarirdela,caçoando.Edwardsevirouevoltouparadentrodacasa.
OAnjodaMorte
Portodaparteanevederretia.Acrostadegeloerafinaefrágil,eossapatosdeEveaquebravamcomfacilidade,afundandonagramamaciaemolhadaenaterradebaixodela.Ummundofrágilsepartindopararevelaroutro.As crianças estavam no interior da casa. Eve poderia dizer que elas
estavamseguraslá,mascomeçavaaacreditarqueessenãoeraocaso.PelomenosestavamtodasjuntaseaoscuidadosdeJean,entãoEvenãotinhadesepreocuparmuitocomisso.Ela caminhou pelamata envolta em bruma, sem notar de que direção
viera, sem se importar com a direção em que seguia. Não conseguiacontinuar perto da casa, Eve precisava se afastar. As palavras de JimRhodesaindaecoavamemsuamente,culpaepesarsemisturando.Ela parou de andar, tocou o pingente de querubim pendurado em seu
pescoçoefechouosolhos.Eve queria chorar, gritar, estar em outro lugar. Ser outra pessoa. Ela
sentiu lágrimas forçaremoscantosdeseusolhos fechadose lutoucontraelas.Nãodesistiria,nãopodiadesistir...Ela abriu os olhos novamente, secando as lágrimas. Entre as árvores a
suafrente,delineadocontraabruma,haviaumvultoindistinto.Evefoiatéo lado de uma árvore para ter uma visão melhor. Então lentamentecaminhounadireçãodovulto.Umamulher vestida de preto. Mas não eram roupas contemporâneas;
elaseramdedécadasatrás.Usavaumvéupreto,mas,mesmodelonge,Evenotouapelebrancacomoossoeosolhosescurosecintilantes.UmcalafriopercorreuocorpodeEve.Elareconheceuorostocomoaquelequehaviavistoatravésdastábuasdoassoalhonoporão.Amulhera fitoucomumaexpressãoséria.
—Oquevocêestá fazendoaqui?—gritouEveparaela.—Oquevocêquer?Amulhersimplesmenteseviroulentamenteeseafastou.—Espere...Eve correu atrás dela, mas a mulher continuava se afastando. Ela
desapareceuatrásdealgumasárvores,eEveapertouopasso,semquererperdê-ladevista.Masamulherparecia cadavezmaisdistante.Pormaisrápido que Eve corresse, não conseguia alcançá-la. Era como se tivesseentrado em um sonho, um domínio em que a lógica cotidiana não seaplicavamais.—Volte...Eve correumais rápido. Estava tão determinada a alcançar o vulto em
retiradaquenãoprestouatençãonoespaçoasuavolta.Elahaviasaídodatrilha há muito tempo, e agora estava em um morro mais alto com umdecliveíngremeàesquerda.Nevederretidacobriaoterrenodesconhecidoeelapisouemfalso,perdendooequilíbrio.Eveescorregouecaiu,rolandomorroabaixo.Elaatravessousamambaiasearbustos, lama,nevefofaegelo,atéparar
aopédamontanha,ofegante,comascostasapoiadasemalgofrioeduro.Evemanteveosolhosfechadosatérecuperarofôlego,entãoosabriu.Egritou.Umvultoseagigantavasobreela,comosbraçosestendidos,asasabertas.
Como coraçãoacelerado,Evepercebeuqueolhavaparaaestátuadeumanjo.Eve se levantou devagar, limpando a lama das roupas. Estava em um
cemitério. Ela vasculhou a área ao redor. A mulher que perseguia nãoestavaemlugarnenhum.Aslápideschamaramsuaatenção.Eramtodasvelhas,tãovelhasquanto
a casa, supôs. Uma tentativa de embelezá-las havia sido feita —provavelmente para a chegada das crianças —, mas era superficial ecompletamenteinútil.Estavamempéssimoestado,decompondo-se,comohavia acontecido com os corpos debaixo delas. Eve distinguiu apenas ainscriçãodaqueestavamaispróxima:
NATHANIELDRABLOW2deagostode1863–29dedezembrode1871
8anosdeidade.Amadofilhode
AliceeCharlesDrablow
Alguém, Eve notou, tinha tentado arranhar a frase final. Ela examinououtralápide.
JENNETHUMFRYE
Eve não conseguia ler mais nada naquela. A pedra tinha uma enormerachadura na frente. Parecia que havia sido atingida por um raio ou quealguémaviolara.Eve endireitou a postura e sentiu um calafrio. Cemitérios não
costumavam assustá-la. Afinal de contas, não havia por que temer osmortos—sempretinhasidoracionalquantoaisso—,apenasosvivos.Masnãogostavadaqui.Elasesentiamuitodesconfortável.Virandoascostasparaaquilotudo,correudevoltaparaacasa.Enãoolhouparatrás.
Leitederramado
Jamesnão gostoudo leite. Tinhaum sabor diferente daquele comoqualestava acostumado em Londres; era mais espesso e mais quente. A Sra.Hogghavialhesditoqueelestinhamsorteporbeberaquilo,queoleitedocampoeramuitomaisfrescoqueodacidade.Mesmoassim,pensouJames,eleaindapreferiaoleitedeLondres.PreferiatudodeLondres.Todas as crianças estavam sentadas em volta da mesa, almoçando.
Ninguém havia falado enquanto comia; na verdade, elas nem mesmo seolharam. James pensava em Tom. Lembrava-se de quando brincavam decaubóise índios,ounazistasealiados,quandoumdeleseraatingidoporuma bala, morria e então se levantava novamente, pronto para dispararmaisumavezcontraoinimigo.MasTomnãolevantarianovamente.Nuncamais.ElehavianotadoaSrta.Parkinsentrarcobertade lamaesubirparase
trocar. Ela estava com pressa, esperando que ninguém a tivesse visto.James não contaria o que vira. Sentia orgulho de não ser esse tipo depessoa.Masficouimaginandoondeaprofessoraestivera.Talvezelativessetidosuaprópriaexperiênciaruimcomoaramefarpado.Jamesbalançouacabeça e tentou não pensar naquilo. A Srta. Parkins havia descido e sejuntadoaeles,maspareciatãochateadaquantotodososoutros.Elaquasenãocomiatambém.Eletomououtrogoledeleite,entãoselembroudequenãogostavadabebida.Edward estava sentado a sua frente. Ele não havia tocado na comida.
Apenasolhavaparaseupreciosodesenhonocoloeparaaquele fantochevelhoe surradodoMr.Punchquenunca soltava. Jamesqueria fazeralgoparaajudá-lo.Tudoquehaviafaladooufeitodesdequechegaramacabavasoando errado. Desejava desesperadamente descobrir uma forma de se
redimircomoamigo.Vê-lofelizmaisumavez.—Possocomerseupão?Alfie, sentado ao lado de Edward, havia limpado o prato, porém ainda
estava com fome. Ele olhava para Edward, buscando permissão paracomeçaraatacarodele.Edward não deu ouvidos à pergunta. Alfie tomou o silêncio dele como
consentimento e estendeu a mão sobre o prato do menino, pronto parapegar o pãozinho. James empurrou amão deAlfie para longe, que olhouparaele,assustado.— Ele não disse que podia — retrucou James. — Você não pode
simplesmentepegaracomidadosoutros.Alfie ficou surpreso com a explosão de James, mas não desistiu. Ele
encolheuosombroseesticouamãonovamentenadireçãodopão.Jamessegurou suamãodesta vez, determinado anãodeixarque ele opegasse,aborrecido consigomesmopor não defender Edward antes, desesperadoparacompensaragora.Mas, ao fazê-lo, James acidentalmente derrubou seu copo de leite. Ele
caiudelado,oleitesederramandosobreocolodeEdward.Jean,alertacomosempre,levantou-se.—Cuidado,James...Asduasprofessorasforamatéamesa.Edwardpuxouodesenho,masnãofoisuficientementerápido.Oleitejáo
haviaatingido,molhandoopapel,borrandoostraços.EleolhouparaJames,seusolhosseenchendodemágoa.Eve começou a limpar a bagunça com um guardanapo. Enquanto fazia
isso,JamesolhouparaEdward,seusolhostentandosedesculpar.—Não foiminha intenção—explicou-se James.—Sintomuito, foium
acidente...Porém Edward não lhe deu ouvidos. Ele estava de pé, saltando sobre
James,dandosocosechutes,furiosocomele.Jamesficoutãosurpresoquemaltevetempodelevantarasmãosparasedefender.Eveestavaaoladodeles.Elasoltouoguardanapoepassouasmãosem
volta de Edward, segurando-o com força por trás, gritando para queparassecomaquilo,tentandosepará-lodeJames.Edwardnãorespondeu.Comlágrimasnosolhos,eleapenascontinuava
desferindogolpes.Evetentouvirarseurosto.—Olheparamim...Edward,porfavor,olheparamim...Ele apenas a empurrou. Elamanteve os braços apertados em volta de
Edward, sem deixar o garoto se mover, e gradualmente sua raiva se
dissipou. James se levantou e se afastou, como corpo tenso e os punhoscerradosemumsilênciocarregadodeadrenalina.A Srta. Parkins olhou o desenho de Edward. Ela viu o que era—uma
mulher e um garoto — e imediatamente entendeu por que seria tãoprecioso para o menino. James também sabia o quanto significava paraEdward,masestavatãofuriosoquenãoseimportava.Tenteiserlegal,pensouJames,tenteidefendê-lo,eesseéoagradecimento
querecebo.Bem,jámecanseidele...Alguémbateuàporta.—Olá—saudouumavozanimada—,aportaestavaaberta,entãoeu...Harry, o capitão da Força Aérea Real, entrou no aposento. Seu sorriso
congelouaoveracoleçãoderostosassustados,furiososetristes.—Ah,chegueiemummomentoruim?
Féecrença
Eveestavaencolhidadebaixodocasacopesadoedocachecol.Aseu lado,Harry usava um sobretudo que envolvia seu corpo firmemente. Elescaminharamàbeira-mar,nosfundosdacasa,ocascalhoduroecobertodenevesobseussapatos.Osdoisandavamseparados.Amaréhaviabaixado,deixandoumaextensãodelamapretaecinzadepoisdaspedras.SaberqueapassagemestavaabertadeveriaterfeitoEvesesentirmaisconectadaaocontinente, menos isolada. Mas ver como seus arredores pareciamtraiçoeirosedesoladoresafaziasesentiraindamaissolitária.Océuestavalimpo, asúnicasnuvenseramasque se formavamapartirda respiraçãodosdois.Depois da aparição repentina de Harry, Jean tinha decidido que Eve
deveria respirar um pouco de ar puro, distanciar-se um pouco dosacontecimentosrecentesnacasa.— Vá dar uma caminhada — dissera ela, e Eve não precisou que
insistisse.Desde que havia contado aHarry o que tinha acontecido, o silêncio se
estabelecera.Porém,quantomaiselesseafastavamdacasa,maisaquelaspalavraspareciamaEveumaconfissão,eelaagorasentiaas lágrimashámuitoacumuladasescorrerem.Elaaslimpouetentousorrirparadisfarçaratristeza.—Desculpe...—Vocênãotemporquesedesculpar—falouHarry,compreocupação
nosolhos.—Oqueaconteceunãofoiculpasua.Ela assentiu com a cabeça de forma pouco convincente, como se
estivesse concordando com algo que não havia ouvido de forma correta.Elescontinuaramcaminhandoemsilêncio.Depoisdeumtempo,Evefalou:
—Agentetrouxeascriançasatéaquiparafugirdetudoaquilo.—Tudooquê?—perguntouele.—Aguerra,aluta,asmortes...—Elaolhouparaooutrolado,falandoao
vento.—Maisseguronocampo?—Evebalançouacabeça.—Ah,nãosei,talvezeunão tenha trancadoaportano fimdas contas.Eupoderiaestardistraída,eu...—Elasuspirou.—Talvezeutenhaesquecido.—Nãoseculpe.Elepoderiaterdestrancadoaportasozinho.—Maseuestavacomachave.Harryergueuumdedo.—Uma chave. Duvido que exista apenas uma, em uma casa daquele
tamanho.Elepoderia ter,nãosei,encontradoumadelas jogadaemoutroquarto,talvez.—Oualguémdeuaele.—Issomesmo—concordouHarry.—Poderiatersidoumadasoutras
crianças.—Não—disseEvecomfirmeza—,nãoumadasoutrascrianças.Harryfranziuatesta.—Quem,então?Evevirouorosto,seusolhossobreaágua,massemvê-la.Emvezdisso,
viuumrostobrancocomolhospenetranteserepletosdefúria.—Euacho...Euachoquetemmaisalguémnestailha.—Oquevocêquerdizer?Morandoaqui?Evebalançouacabeçademodoafirmativo.— Ouvi alguém no porão na noite em que chegamos. Desci para
investigar, mas a pessoa havia saído. Então hoje demanhã tinha... Eu vialguémnocemitério.—Vocêfaloucomapessoa?—Tentei,masela...eladesapareceu.—Desapareceu—repetiuHarry.—Sim.Dequalquerforma,talvezessa...essamulhertenhadestrancadoa
portaontemànoite.Harryfezquesimcomacabeça,masnãorespondeu.Evesesentiutola
porlhecontarsobreamulher.Elapercebeucomosuaspalavrasdevemtersoado implausíveis para ele. Tão implausíveis que agora não ousava lhecontarsobreorostodebaixodastábuasdoassoalho.HarryparoudeandarecolocouasmãosnosombrosdeEve.Elaolhou
fixamente para ele, esperando que lhe dissesse que estava imaginandocoisas, que aquilo tudo estava em sua cabeça. Palavras cheias de boasintenções,mascondescendentes.
— Talvez devêssemos investigar — sugeriu Harry —, perguntar sealguémmaisaviu.Evepiscouearregalouosolhos.—Vocêestádizendoqueacreditaemmim?Vocêacreditanoqueacabei
decontar?Harryofereceuumsorrisoperplexo.—Porquenãoacreditaria?Eve retribuiu o sorriso, sincero e natural. Apesar de tudo o que havia
acontecido,esteeraomomentoemqueelasesentiamaisconfiantedesdequechegouacasa.Harrytinhafénela.Elasentiucomosefossechorarnovamente.
A primeira pessoa com quem eles tinham de conversar, decidiu Eve, eraEdward. O menino não era o mesmo desde que havia saído do quartotrancado.Evesentiaqueeleviraalgo—oualguém—quepodiaajudá-los,oupelomenosconfirmaroqueelatinhavivenciado.Edward estava sentado ao pé da escada com um bloco namão. Eve e
Harryajoelharamaseulado.Evesorriuparaele.—Olhe,Edward,vocênãofeznadadeerrado.Sóprecisoconversarcom
você,sóisso.Tudobem?Edwardfezquesimcomacabeça,ressabiado.Eveabriuumsorriso.—Bom.Certo,Edward.Agenteprecisasaberoqueaconteceuquandoos
meninostrancaramvocênaquelequarto.Podenosdizeroqueaconteceu?Edwarddesviouoolharemeneouacabeça.Eve e Harry se olharam. Eve encontrou encorajamento nos olhos de
Harryecontinuou:—Vocêviualgumacoisa?Os olhos de Edward dispararam de um lado para o outro, como um
animalenjauladoprocurandoumarotadefuga.Evecontinuoutentando,calma,masinsistente.—Vocêviu?Vocêviualgumacoisa?EntãoEdwardconfirmou.Evesorriumaisumavez.—Bom.Oquevocêviu?Edward não respondeu, apenas segurou com mais força o boneco
horripilante do Mr. Punch. Eve notou que a tinta havia começado a
descascar da madeira, dando a seu rosto um aspecto libertino ecorrompido.AmãodeEdwardtremia.—Vocêpodeescrever—sugeriuela.Edwardpensouporuminstante,pegouseu lápis,entãopassouobloco
depapelparaEve.Elamedisseparanãocontar.Evesentiuocoraçãobatermaisforteaoleraquelaspalavras.Nãoestava
imaginandocoisas.Elaseinclinouparaomenino.—Quem?Quemdisseparanãocontar?Edwardnegoucomacabeça,comatestafranzida.—Porfavor,Edward,émuitoimportantequevocênosconte...Elemeneouacabeçaoutravez,mais firmeagora.Evesegurouasmãos
domeninoentreassuas.Elasestavamgeladas.— Você não deve escutar o que ela fala — avisou Eve. — Você me
entende?Nãoimportaoqueeladiga,vocênãodeveescutá-la.Edwardsoltousuasmãosdasdelaeabaixouacabeça.—Porfavor,Edward—pediuEve,desesperoemágoaemsuavozagora.
—Penseiqueéramosamigos...EdwardergueuosolhoseoqueEveviunelesquasepartiuseucoração.
Lágrimasseformavameseacumulavam,seurostoenrugadodedor.Evesuspirou.—Sintomuito,Edward.Vocêpode...ir.Apenas...váagora.Ele se afastou dela o mais rápido que pôde, voltando ao quarto,
apertandoobonecocomforçacontraopeito.EvesevirouparaHarry.—Euoperdi.Acheiqueestavatãopróximadele,mas...—Elabalançoua
cabeça.—Agoraoquevamosfazer?Eve olhou fixamente para o bloco de papel no chão, a única frase a
encarando.Elamedisseparanãocontar.
Féeação
—Nãoestavatãoruimassimantes...Todo o chão do porão estava coberto de água. Eve podia senti-la
penetrandoemseussapatos,eocheirodepodridãoeraaindapior.—Deveserumvazamentoemalgumlugar—comentouHarry,olhando
aoredor.—Masnãopareceteralguémmorandoaquiembaixo...Evesentiualgocutucarseutornozeloeseengasgoucomosusto.Harry
estavaaseulado.—Oqueéisso?—perguntouela,olhosfechados,semousarver.Harryselevantou,segurandoalgocomprido,cinzaeescorregadio.—Uma enguia— respondeu ele—, uma enguiamorta. Não sei como
entrou...— Livre-se dela — pediu Eve, afastando a cabeça. — Por favor. Não
suportoessascoisas.Eelaestáfedendo.Mas,dequalquerforma,estelugartodoestá...Harry arremessou a enguia no canto, limpando asmãos na parede de
pedra.—Acheiquevocêgostavadessascoisas—falouele, sorrindo.—Você
sabe,porserdeLondres.Vocêscomemgelatinadissolá,nãoé?Evefezumacareta.—Porfavor.Eles começaram a vasculhar o porão, investigando cada caixa
apodrecida, tirando cartas epapéis, todosúmidosemofados,desbotadospelotempoedecompostos.Algunsesfarelavamesedesintegravamquandotocados.Logoperceberamquenãohavianadaquepudesseajudá-loscomoproblemaatual;apenasfragmentosdopassado.Enquanto Harry estava concentrado em uma caixa, tirando papéis,
estudando-os, balançando a cabeça e os colocando de volta, Eve oobservava.—Eravocêontemànoite?Harrysevirouparaela,comatestafranzida.—Voandosobreomar.UmaesquadrilhadeHalifaxes?—Ah,sim.—Evenegoucomacabeça.Elanãoconseguiuverseusolhos
quandoelerespondeu:—Não.Nãoerameuturno,infelizmente.Eve estava prestes a lhe fazer mais perguntas, porém Harry havia
encontradoofonógrafo.— Ei— falou ele, sorrindo—, não vejo um desses desde que eu era
criança...—Nãofunciona—comentouEve.—Euotestei.Eleopegounaprateleiraecomeçouapassarosdedossobreoaparelho,
examinando-o.—Deixecomigo.VendoqueHarryestavaconcentradonatarefa,Evevoltouavasculhara
caixamaispróxima.Elaencontroualgosólidono interior.Retirando-odacaixa, levantou o objeto à luz fraca, examinando-o.Uma chave, comduasiniciaisescritasnalateral:HJ.Eveexaminouoporão,procurandoumafechaduraadequadaparatestá-
la, mas não conseguiu encontrar nenhuma. Enquanto fazia isso, umacampainhatocounoandardecima.—Essacampainhaanunciaofimdointervalo.Émelhoreu...Harryassentiucomacabeçaeolhoumaisumavezparaofonógrafo.—Vá,então.Voutentarconsertaristo.Elasorriu.—Obrigada.Eentãosubiuaescadacorrendo.
— Certo, crianças — começou Eve, assim que chegou à sala de aulaimprovisada —, hoje à tarde, quero que vocês escrevam uma históriasobre...— Seus olhos vagaram pelo quarto, procurando inspiração.— ...Estacasa.Sim.Estacasa.Qualquercoisaquevierasuasmentes.As crianças olhavam para ela desconfiadas. Eve sabia que estavam se
questionando por que seus pés estavam molhados, mas nenhuma delasousou lhe perguntar, e a professora não havia oferecido a informaçãovoluntariamente.EvetentounãoolharparaEdward,paraversuareação.Oexercícioera
paraobemdele.Elaqueriaveroqueeleiriaentregar.Joyceergueuamão.—Sim,Joyce.—Nãoestánahoradatabuada?—Bem,normalmente,sim,seriaahoradatabuada.Masnãohoje.—Ela
selevantouecaminhouatéaporta,segurandocomfirmezaachaverecém-descoberta. — Vamos fazer isso depois. Tenho de sair por um instante.Voltologo.—Masasenhoranãopodedeixaragentesozinho—retrucouJoyce,com
avozindignada.Eveparoujuntoàportaepensou.—Joyce,voudeixarvocêencarregadadaturmaenquantoeuestiverfora.
Éumagranderesponsabilidade,entãoseasseguredequetodosfaçamseustrabalhos.Joyce,comoEvetinhaprevisto,nãopoderiaterficadomaisorgulhosa.
Enquanto as crianças estavam ocupadas fazendo a lição, Eve andou portodaacasa,comachavenamão.Elaatestouemportas,armários,gavetas,qualquer coisa com uma fechadura, independentemente do tamanho.Depois de um tempo ela havia esgotado todas as possibilidades em queconseguiapensar,masnãotinhaencontradonenhumaquefosseadequada.EvefoivercomoHarryestavasesaindo.
Fantasmasdopassado
Harry havia levado o fonógrafo para fora do porão, colocando-o sobre amesadacozinha.Láeramaisfáciltrabalhar,oaposentoestavamaissecoe,além domais— apesar de ele normalmente não se importar com essasbaboseirassobrenaturais—,algonaqueleporãoodeixavanervoso.Alémdo cheiro, era algo que... ele não sabia. Era incapaz de explicar. Seuvocabulárioeraprático,nãoestavaacostumadoadiscursospomposos,masdefinitivamenteexistiaalgoquenãoestavacertonaquelelocal.Oconsertosemostravamaiscomplicadodoqueelehaviaprevisto.Harry
normalmente era bom com trabalhos manuais, porém reanimar aqueleaparelho velho, enferrujado e deteriorado parecia estar além de suascapacidades. Ele realinhou o eixo do cilindro uma última vez e girounovamenteamanivela.— Certo — disse ele, limpando a poeira e a ferrugem dos dedos. —
Vamoslá,seupequeno...Amáquinadeusinaldevida.—Vencivocê...Harrynãoconseguiuesconderasatisfaçãonavoz.Eleconectouosfones
ligados a cabos grossos e os posicionou nos ouvidos. O somque escutouestava distorcido, arranhado. Indistinto e deformado. Uma voz femininasurgiu entre os chiados e estalos. Distante e hesitante. Um fantasma dopassado.—...AliceDrablow...—Afraseseguintefoiperdida.—...BrejodaEnguia
durantetodaaminhavida...Entendi, pensou Harry, preenchendo as palavras que faltavam. Ele
esperou, porém não havia mais nada. Moveu a agulha adiante sobre ocilindro.Aofundodochiadodaestática,avozemergiunovamente.
—...Nathanielseafogoueelameculpa...—Maisestática.—...umamãemelhordoqueelapoderiatersidoumdia...Ele ergueu a agulha, posicionando-a em diferentes partes do cilindro,
tentandotrazeravozdeAliceDrablowdevolta,massemsucesso.Aquelesegmento havia se deteriorado por completo. Com um suspiro irritado,Harry seguiu para um ponto onde a estática estava baixa. Mas escutavaapenassonsdoambiente.Estavaprestesadesistirquandoumanovavozsurgiu,apagadaedistante.—Nuncaperdoe.Nuncaesqueça.Entãosilêncio.Harry se inclinouparaa frente, escutandocomatenção,
desejandoqueavozsemanifestassenovamente.Elavoltou,maisaltadestavez,maispróxima.Comoseapessoaestivesseaseulado,sussurrandoemseuouvido.Elequaseconseguiasentirarespiraçãonopescoço.—Nuncaperdoe.Nuncaesqueça.Harryestremeceu.Atrásdele,pelaportaabertaquelevavaaoporão,umasombrasurgiuna
parede, aumentando, agigantando-se enquanto subia a escada. Harry,totalmenteconcentradonofonógrafo,começouaficarinquietoconformeavozdeAlicevoltava.—Jennet,eusou...—Osestalosencobriramsuavoz.—...irmã...Mesmo no péssimo estado da gravação, não dava para não perceber o
medodeAliceDrablow.Suavozestavatrêmula.AtrásdeHarry,asombranaparedesealongavaenquantoovulto,vindo
doporão,alcançavaotopodaescada.Harrysentiuumapertonopeito,suarespiraçãoficoudifícil.Não,pensouele,nãoaqui,nãoagora...AvozdeAlicecontinuou.—Saia...—Maischiado.—...demim.Vocênãoé...—Agravaçãodeuum
salto.Harrynãoconseguiuvoltar.—... imaginandovocê.Vocêé...—Maisestática.—...consciênciapesada...—Estalos.—...eufalei,saiadepertodemim!Aquelaúltimafrasefoigritada,seguidadesilêncio.Apenasozumbidoeo
chiadodavelhamáquina,osomdarespiraçãoofegantedeAliceDrablowdeanosatrás.A sombra se estendeupela sala, ocupandoaparedeeo teto, descendo
sobreHarry.Elesentiuadornopeitoaumentareumaescuridãonegraeúmidacercá-lo.Outrasvozesvieramatéele,então,vozesquenãoestavamnagravação.—Socorro...Socorro,capitão...Harryfechouosolhos.Derepente,houveumterrívelguinchodistorcido.
Elegritou,o somagredindoseus tímpanos.Arrancouos fonesdeouvido,afastou-sedamesaeencarouofonógrafo.—Vocêestábem?Ele deu um salto, com a mão apertando o peito e com a respiração
ofegante.Avozvinhadasalaondeeleestava.Eveestavaparadaàportadacozinha.Asombradesapareceu.Eveolhouparaele.—Vocêestábem?Harrynãorespondeu.Elaacenoucomacabeçaparaofonógrafo.—Algodebom?—Não—respondeuHarry—,muitopelocontrário.
Achave
Eve estava parada junto à janela no hall de entrada, olhando para apassagem; aquele longo trechode estradaparcialmente submersaque seestendia até a civilização.Quandopensavana casa e em tudoque estavaacontecendonela,acivilizaçãopareciaaindamaisdistante.Harry a colocou a par das novidades. Ele lhe contou sobre suas
experiênciascomo fonógrafo,deixandoEveescutaragravaçãoporcontaprópria. Depois de ouvir, ela havia saído da cozinha, perdida empensamentos.—Poderiaserquemeuvi?Jennet?Euvialápidedela.Harryfranziuatesta.—DojeitocomoAlicefalava,Jennetnãopareciaserreal.Agravaçãoera
muito ruim,mas parecia que Alice estava responsabilizando sua própriaconsciênciapesada.Imaginandocoisas.—Maseuvialguém.Nocemitério.—Sim,masvocêmesmadissequeeladesapareceuquandotentousegui-
la.—Elequisrir,masfracassou.—Querodizer,seeuacreditassenessascoisas,diriaqueeraum...—Fantasma?—perguntouEve,osolhosfixosnosdele.—Eraissoque
vocêiadizer?Harry negou com a cabeça, aborrecido. As crianças deveriam estar
fazendosualição,mastodasosobservavamcomatençãopelaportaaberta.Depois do que havia acontecido, nenhum dos dois podia culpá-las porestaremassustadasecuriosas.EleesperavaquenãoconseguissemouviroqueconversavacomEve.—Equantoàchave?Vocêteve...tevealgumprogressocomela?—Não—respondeuEve.—Tenteipor todaparte,emcada fechadura
queconseguiencontrarnacasainteira.Mesmonaquelasemqueacheiqueelanãoserviria.Nada.Oquequerqueelaabranãoestáaqui.Harrydeudeombros.—Entãooqueelaabrenãoestáaqui.—Talvez—falouEve,franzindoatesta,tentandoselembrardealgo.—
Masjáviaquelasletrasemalgumlugar,tenhocertezadisso.—Alguémnaescola?Alguémemsuafamília,talvez?Elabalançouacabeçanegando.—Não,foidepoisquechegueiaqui...Eve olhou novamente para a passagem, alongando-se até o vilarejo de
CrythinGiffordealém.CrythinGifford...Ela olhou para a chave em sua mão, para as iniciais “HJ”, então
novamenteparaHarry.—Ovilarejo.—Sério?—Elepareciaconfuso.—Vocêtemcerteza?—Sim.Absoluta.Fuiatélánanoiteemquechegamos.Eu...Sim.Aquelas
iniciais.Euasvinovilarejo.—Elaolhouparaascriançasatravésdaportadupla.Maisumavezelasimediatamentefingiramestarfazendoalição.—VoudizeraJeanquevamossairagora.Elapodeassumiraaula.UmesboçodesorrisosurgiunoslábiosdeHarry,acompanhadoporum
brilhodehumornosolhos.— Você quer um pouco de apoio moral para lidar com a sargento
Carranca?—Não,obrigada—falouEve,ruborizandolevemente.—Vouficarbem.—Bom—disseele,seguindoemdireçãoàportadafrente.—Entãovou
ligarojipe.Eve caminhou rumo ao dormitório das crianças para falar com Jean.
Antesdechegaràporta,elasevirou.Eviualguémnofimdocorredor.Umvulto,todovestidodepreto.OcoraçãodeEvesaltou.Elaficouparalisadaondeestava.Ovultonãose
moveu.—Jean?—perguntouEve,suavozmaisfracadoqueelapretendia.Ovultopermaneceuimóvel.Evesentiuaspernaseosbraçoscomeçarematremer.—Váembora...—Aspalavrassaíramemumsussurrochiado.Elaandoulentamentepelocorredornadireçãodasombra.—Váembora...
Sua voz se firmara agora. Ela se movia mais depressa, a raivasobrepujandoomedoatéficarparadadiantedovulto.—Eufaleiparavocêirembora!Elarecuouobraçoedesferiuumsoconovulto.Edescobriuqueeraumcasacopenduradoemumacavilha.Evedeuumpassoparatrás,trêmula.—Não...Não...ElaseviroueviuJeanparadanocorredor,olhandofixamenteparaela,
comaexpressãoimpassível.—Podemosconversar,porfavor?Jean entrou novamente no dormitório das crianças. Eve, embasbacada,
seguiu-a.
Jeanbalançouacabeçavigorosamentecomoseestivessetentandoafastaralgoquenãodeveriaestarali,umpensamentoqueelaachavaalheioasuascrenças.—Não—recusouela,semquerernemconseguiracreditarnoqueEve
lhecontava.—Não,nãoenão.Issoéumatremendabobagem.—Nãoé,Jean—falouEve,tentandoserpacienteenãodeixarairritação
transparecernavoz.ElaolhouparaJeanporcimadeumadascamas.Haviaalgoalémdoespaçofísicoentreasduas.—Quemquerqueelaseja,nós,eueHarry,achamosqueestárelacionadaàmortedeTom.—Ah,eueHarry.Claro.—Jean,porfavor,apenasescute...— Não — respondeu a diretora, perdendo a paciência, os olhos
flamejantes.—Não.Évocêquemprecisaescutar.Escuteoquevocêmesmaestádizendo.Vocêdeveriacompreendercomoissosoa.Evesuspirou.—Vejabem,Jean,euseiqueissodevesoarcomoloucura...—Sim,éverdade.Pareceesoaaloucura.Jeanfalavacomoseaquelefosseofimdadiscussão.Eveinsistiu.— Jean, por favor. Ela parece estar tentando falar com Edward,
comunicar-secomeledealgumaforma.Jeanrespiroufundoeaproveitouparaajeitaraposturacomseuhabitual
comportamentomilitarantesdefalar.—Vocêquersaberoqueeuachoqueé isso?—Avozdelanãoestava
mais irritada.Aindahaviaohabitualautoritarismo,masmisturadoaumaespécie de compaixão.— Acho que você está procurando uma forma de
nãoseculpar.Evesentiulágrimasseacumulandoemseusolhoseficoudeterminadaa
nãodeixá-lasescorrer.—Issonãoéverdade...—Srta.Parkins...—Jeaninclinouacabeçade ladoecontinuoufalando
lentamente,esclarecendoascoisasparaela.—Acreditoquevocênãosejaapessoa adequada para estar aqui. E não quero responsabilizá-la. Nomáximo,éminhaculpaportrazê-la.—Não...—Evebalançouacabeça.—Não...Nãopossodeixarascrianças
aqui.Nãovoufazerisso.—Mas,mesmoassim—falouJean,continuandocomamesmavozcalma
eracional—,vocêagoraquerabandonarsuaobrigaçãomoralparairatéovilarejocomocapitão.—Elasorriu.Nãofoiumsorrisoagradável.—Vocêpercebeoquequerodizer?—Eu...Eu...não.Nãoéassim.Tenhodeirao...—Eveengoliuemseco.—
Tenhodeiratéláagora.Issofoitudoquevimdizer.Jeanfezquesimcomacabeça,suaexpressãoséria,fria.— Muito bem. Mas, se você decidir não voltar, vou considerar isso
perfeitamenteaceitável.Evetinhaumaréplicaplanejada,maspensoumelhorantesdefalar.Emvezdisso,foisejuntaraHarry.
Sobreviventes
Harryprestavaatençãonaestradaasuafrente.Eveoobservava.O capitão da Força Aérea Real estava tenso, suas mãos seguravam o
volante com tanta força que as articulações estavam rígidas e brancas.Ojovem encantador e sorridente a que ela tinha se acostumado haviadesaparecido. Em seu lugar estava uma pilha de nervos de olhosarregalados.Eleconduziaojipeincrivelmenterápidoatravésdapassagem.—Harry...Eve falava delicadamente, sem querer perturbá-lo,mas esperando que
elefossenotá-laequereduzisseavelocidade.Estavaficandoassustada.—Recebiumamensagemnorádio—disseele,semdesviarosolhosda
estradaasuafrente.—Precisamdemimnabaseaérea.Infelizmente,achoque só vou poder deixar você no vilarejo, mas posso buscá-la daqui aalgumashoras.Tudobem?—Sim,issonãodeveserumproblema.Harryconcordoucomacabeçarapidamente.Evepercebeuqueosuorna
testadelecomeçavaaescorrerporseurosto.—Harry,estátudobem?—Sim—respondeuele,suavozumpoucoaltaeagudademais.Harry
continuava sem olhar para ela. — A maré está subindo. Temos de nosapressar.Eveolhoupelajanela.Osolseelevava,océuestavalimpoeanevehavia
começadoaderreter.Aáguaestavacalma,quasenãobatianasmargensdapassagem.—Estátudobem—declarouela.—Não,nãoestá—retrucouHarrydeformaseca,episoumaisfundono
acelerador.
Eveseguroucomforçanasbeiradasdoassento.—Harry,porfavor...Ele dirigia ainda mais rápido, seus olhos enlouquecidos, penetrantes,
focadosnãonaestrada,masemalgomuitoalém.—Porfavor,vámaisdevagar...Harry respirava fundo enquanto dirigia. Tentava semanter calmo. Ele
bateunovolantecomforça.Uma,duas,trêsvezes.Nãopareceufuncionar.Evesevirouparaele.—Harry...—Calada!—Apalavrasaiunumgrito.Eveseencolheu,chocadacomaferocidadenavozdeHarry.— Sinto muito, eu... — As palavras não pareciam convincentes, nem
mesmoparaele.—Precisomeconcentrar...O jipe seguiu aindamais rápido. Eve continuou agarrando o assento e
fechouosolhos.
Apósalgumtempoeleschegaramaooutrolado,eHarryparouojipe.Elesedeixou desabar sobre o volante, ofegante como se tivesse acabado decorrerumamaratona.Seucorpotremia.Depois de algum tempo ele se recuperou, limpou o suor da testa e
engoliuemseco.—Imagino—começouele,suavozfalhando,hesitante.—Imaginoque
eulhedevaumaexplicação.—Não,está...Harryofereceuumsorrisotriste.—Porfavor.Nãosejaeducada.Eufuiterrívelagorahápouco.Evenãodissenada,apenasesperou.— Fomos... abatidos. Sobre o mar. Minha tripulação ficou presa na
fuselagem enquanto o... enquanto o avião afundava.—Harry olhou pelopara-brisa,olhos focadosemalgumlugarqueEvenãoconseguiaver,queEve não queria ver. — Desci para resgatá-los. Eles estavam... estavamgritando, me chamando... “Socorro... Socorro, capitão”... e eu os vi, euestava...estavaquase...—Elefechouosolhoscomforça,soltouarespiraçãoque não havia notado estar prendendo. — Estava afundando rápidodemais.Eu...Eunãoconseguialcançá-los.Apesardaclaridadedodia,Harrypareciaestarsobumasombra.Eveprocurouaspalavrascertas.—Euestou...
—Fuioúnicosobrevivente.Nenhumdosdoisfalounada;apenasficaramsentadosali,olhandoparaa
frente.EntãoHarrysevirouparaEve.—Entãoagoranãogostodeágua.Suavoztentoumostrarleveza.Masfracassou.Evenãorespondeu.Apenascolocouamãodelicadamentesobreadele.
AconversadeEdward
Jeanpareciaansiosa.Seusolhossemoviamdeformanervosaeelaestavacruzandoeseparandoosdedosenquantoascriançasentravamnasaladejantarparasuapróximaaula.Todasnotaramseucomportamentoestranho.Aquilo, combinado à ausência da Srta. Parkins e à morte de Tom, haviadeixadotodasextremamentenervosas.— Vamos lá — falou Jean, tentando atrair a atenção das crianças—,
acabou o intervalo. — Ela olhou para o grupo, contando os alunosmentalmente.—OndeestáEdward?Pânicosurgiuemsuavoz.—Eleestavanacama,lendo—respondeuJoyce.Jeanolhoufixamenteparaela,omedopareciaraivaemsuaexpressãoe
emsuavoz.—Oqueeudissesobreasregras?Hein?Oqueeudisse?Joyceapenassorriuparaela,semsaberbemseaperguntaeraretórica
ounão.—Vábuscá-lo,porfavor,Joyce—continuou.—Sim,diretora.Eameninasaiucorrendo.
*
Joyce passou a cabeça pela porta dupla, pronta para gritar com Edward,espelharomodoautoritáriodaSra.Hogg,masoquarto estavavazio.Elavasculhoucadacanto,olhandoinclusivedebaixodascamasparaocasode
omeninoestarbrincandodeesconde-esconde.ElaevitouacamadeTom,noentanto.Ocolchãohaviasidodespidoeascobertas,removidas.Aquelacama estava vazia e solitária ao fundo do quarto. Joyce percebeu que apodridãonegrahaviaseespalhadotantonaparedeatrásdelaquepareciaqueumasombrapermanentecresciaaseuredor.Joyceestremeceu.Aquilolhedavaarrepios.Naverdade,todaacasalhedavaarrepios.MasaSra.Hoggestavacerta.A
únicaformadeelesenfrentaremaquiloeraseguindoasregras.Joycehaviaaprendido isso muito cedo em casa. Seu pai e sua mãe gostavam de sedivertir,tantoquemuitasvezesatrasavamascontaseascomprasdomêstinhamde sernegociadas. Seupai fora à guerra, deixando Joycepara sercriadapelamãe,que,porsuavez,passavaamaiorpartedotemponobar,bebendoatéacabarcomopoucodinheiroquepossuíam.Joycedecidiuqueelanunca terminariadaquela forma.ASra.Hoggera
umabênção.Ameninaaamavaeaadmirava,queriasercomoelaquandocrescesse. Joyce havia passado a se assegurar de estar sempre vestidaelegantemente para a escola, mesmo que tivesse de lavar as própriasroupas,eerasemprepontual.Naverdade,elapensavanaSra.Hoggmaiscomoumafiguramaternaquesuamãeverdadeira.Porémnuncasonhariaemdizerissoàdiretora.Issonãoestavanasregras.Ela ouviu uma tábua do assoalho ranger e olhou ao redor. Não era no
quarto.Ouviunovamente.Noandardecima.Eradeláqueobarulhovinha.Edwarddeviatersubido.Joycesaiudoquartoecomeçouasubiraescadabarulhenta,parandono
topo.ElaviuEdwardnofimdocorredor,paradosoboportaldoquartodecriança, o quarto em que Tom o havia trancado no dia anterior. Elecarregavaaquelebonecomedonho.Joyceoodiava.Cadavezqueelaolhavaparaobrinquedo, seusdentespareciammaispretos emais apodrecidos,seusorrisomaislargoemaisdesagradável.Edward não a tinha visto. Joyce começou a caminhar na direção do
menino.Ele seguravaoMr.Punch juntoaoouvido.Entãoassentiu comacabeçaeafastouoboneco, comoseoestivesseutilizandoparaconversarcom outra pessoa no quarto. Uma sacudidela rápida de cabeça, então obonecoestavajuntoaseuouvidonovamente.Eleparou,fezquesimcomacabeçamaisumavez.JoyceouviuumchiadobaixoenquantoEdwardfaziaisso, como algo deslizando na água. Ela podia sentir um cheiro também.Apodrecido,comopeixevelho.—Edward?—chamouela.O menino se assustou, escondeu o boneco nas costas e se virou para
Joyce,comosolhosarregalados.Joycetentouveroquartoatrásdele.—Comquemvocêestavafalando?Edwarda ignoroue, apósumencontrão, saiupelocorredoredesceua
escada.Joyce abriu a boca para dizer algo, repreendê-lo por sua indelicadeza,
masdesistiu.Eletinhapassadoporumgrandetrauma,queobviamenteohaviaperturbadodealguma forma.Emvezdisso, ameninaolhouparaovãoabertodaporta.Eladeveriaentrare investigar?Versehaviaalgoalidentro, alguém com quem ele estivesse conversando? Ou Edward estavaapenasbrincando,inventandoumamigoimaginário?Seu pé estava na soleira da porta, pronto para entrar, quando um
sentimentoestranhoaacometeu.Umasensaçãoigualaquetiveraaoolharpara a podridão negra atrás da cama de Tom: arrepiante e solitária.Assustadora.Elarecuouopéevoltouemdisparadapelocorredor,paraaSra.Hoggeparaasegurança.
Nadadeadeus
OsoljáhaviaquasedesaparecidoquandoHarryencostouojipediantedaigreja na entradadeCrythinGifford. Evedesceudo carro e olhoupara ovilarejo arruinado ao redor. O crepúsculo que se aproximava tornava assombras mais longas e a pequena vila mais escura, como se fossecomprimidapelasgarrasdeumagigantescamão.Harry esticou o corpo para fora da janela do motorista. Ele estava
claramente dividido entre a angústia de deixar Eve ali sozinha e apreocupaçãodedesobedeceràsordens.—Sintomuitopornãopoderficar.Deverdade.—Nãosepreocupe—respondeuEve.—Tenhocertezadequevouficar
bem.Harryassentiucomacabeça,querendoacreditarnela.—Euachoadmirável,vocêsabe—comentouela.—Realmenteacho.Harryfranziuatesta.—Oqueéadmirável?OsolhosdeEvesemoveramparaocéu.—Vocêaindasubirlá.Depoisdoqueaconteceu.— É preciso seguir em frente, não é? — declarou ele, sua voz
enfraquecendo.Evefezquesimcomacabeça.—Sim.Vocêestácerto.—Elasorriu.—Boasor...—Não— interrompeu ele.—Desejar sorte dá azar. E nadade adeus.
Nunca.Issotambéméproibido.HarryofereceuaEveumsorrisopálidoepartiucomocarro.ElaficouparadaobservandoenquantoHarryseafastava.Nadadeadeus,
pensou Eve. Como devia ser acenar para alguém que partia, imaginando
que essa poderia ser a última vez que se veriam e sabendo que a outrapessoa estava pensando o mesmo? Os dois fingiriam que nada estavaacontecendo? Mentiriam um para o outro? E, se mentissem, o que issocausaria? Como seria possível seguir em frente? Ela meneou a cabeça.Aquelaguerratinhamuitasrespostasadar.Eve se virou e caminhou na direção contrária à do jipe, entrando no
vilarejo.Elasabiaaondeestavaindo.
HJ
Eveparoudiantedoexteriorqueimadodaconstruçãoeverificouaplaca:
IlustríssimoSenhorHoratioJerome,Advogado.
Então ela olhou para a chave na mão. As letras “HJ” gravadas com amesmafonteusadanaplaca.O solquedesaparecia tornavaas sombrasmais longas, faziaas janelas
frontaisenegrecidaspareceremdoisolhosfantasmagóricoseassombrados;aporta,umabocaescancarada.Estendendo a chave firmemente a sua frente, como um crucifixo para
afugentarvampiros,elaentrounoprédio.O interior da construção estava tão enegrecido pelo fogo que parecia
espantarqualquer luzquehavia restadododiaprestes a acabar.Porumsegundo fugaz ela pensou na podridão e nomofo pretos que cobriam asparedes da Casa do Brejo da Enguia.É assim que ela vai acabar ficando,pensou.Evepermaneceunohalldeentrada.Osescritóriostinhamdivisóriasde
madeira e vidro que se estendiam por uma parede inteira, além de umaescadaparaoporãonaoutraextremidade.Opapeldeparedeestavapretoporcausadofogoeesverdeadodevidoaomofo.DeumladodeEvehaviaum enorme buraco no chão, suas beiradas escuras, através do qual erapossível ver o porão. Ela caminhou até a beira do buraco e olhou parabaixo,porémviuapenasmaisruínasepoeirapeloar.
Entrando no escritório mais próximo, Eve o revirou em busca dequalquercoisaemqueachavepudesseencaixar,masnãoencontrounada.Elavasculhouasalaseguinteeobteveomesmoresultado.Entãodesceuaescadaatéoporão.A primeira coisa que ela notou foi uma pilha carbonizada nomeio do
cômodo,algoparecidocomosrestosdeumafogueira.Evefranziuatesta.Oincêndiohaviasidointencional?A pilha enegrecida ainda mostrava formas vagas. Eve a analisou
cuidadosamente,procurandoalgoquepudesseterumafechaduraentreosdestroços—umacaixatrancada,talvez—,porémnãotevesucesso.Entãoalgochamousuaatenção.Elapegouoobjetodochão.Umavelha
boneca, coberta de fuligem e chamuscada. Ela se parecia com Judy, acompanheira do fantochedoMr. PunchdeEdward.Nãohavia alegria norostodaboneca.Seusolhosestavamarregaladoseamedrontados,suabocaaberta em uma expressão de surpresa. Tremendo, Eve a jogou de voltaondeaencontrara.Enquantofaziaaquilo,elanotouumapequenapassagemnocantomais
afastado,atrásdeumaportagradeada,enegrecidapelofogoeenferrujada,masaindaparecendofirmeesólida.Eveapuxou.Comorangerdevelhasdobradiçassemuso,aportaseabriu.Eveentroupelovãoeseviuemumcorredor estreito. No fim dele havia uma pilha de cofres. Eve sentiu ocoraçãodisparareachaveemsuamãorepentinamenteficouquente.Eve testoua chavenoprimeirocofre.Elaentrou,masnãogirou.Então
testounoseguinte.Omesmoaconteceu.Oterceiroabriu.Comummistodemedoeansiedade,elaenfiouamãoládentroeretirou
oconteúdodocofre.Umenvelope.Eveleuonomeeadedicatória:NathanielDrablow,emseuaniversáriode
18anos.Elaovirou.Haviaumlacrenoversoquenuncatinhasidoviolado.A porta gradeada se fechou com um som estridente. Assustada, ela se
viroueavistouumvultocontraa luzquedesaparecia.Eveescutouosomdeumafechadurasendotrancadaecorreuatéaporta.— Você não pode voltar— declarou uma voz áspera e estridente.—
Sintomuito.Eve reconheceu o idoso cego que havia encontrado ao passar pelo
vilarejo. Ele era muito maior e mais forte do que ela tinha imaginado aprincípio.Evetentouabriragrade,masestavatrancada.—Oquevocêestáfazendo?—perguntouela,suavozousadadehisteria
edescrença.—Vocênãopodefazerisso.Vocênãopodemetrancaraquiemedeixar...Ohomemsevirouecomeçouaseafastarpelocorredor.—Porfavor—gritouela,suavozecoandopelasparedes.—Porfavor...
Volte...Eleparou,maspermaneceusemsevirar,semenfrentá-la.—Sevocêvoltaracasa—disseele,suavoztensa,comoummensageiro
trazendoumanotíciadesagradável—,asmortesvãorecomeçar...—Oquevocêquerdizer?—perguntouEve.—Vocêouviumeusamigos...Eleassentiucomacabeçaenquantofalava.—Seusamigos?—Sim...Elescantaramamúsicaparavocê...Eveselembrou.Asvozesinfantis,ocoroqueelatinhaouvidoaoentrar
novilarejo.Ouvido,masnãovisto.—Sim—falouEve.—Euosouvi.—Bem,vocêdeveriaterescutadooqueelesdiziam.Elecontinuouandandoemdireçãoàescada.Evesabiaquetinhadefazeralgo,dizeralgo,parafazê-lovoltaredeixá-la
sair.—Éela,nãoé?—gritouEve.—JennetHumfrye.Édelaquevocêestá
falando.Oidosocongelou.MasnemassimsevirouparaencararEve.— Perdeu seu menino Nathaniel no brejo — explicou ele, sua voz
trêmulae fraca.—Então sematou.Maselavoltouparabuscarasoutrascrianças.Ah,sim...Evetentoumantê-lofalando.Nãoapenasparaconvencê-loasoltá-lamas
tambémporqueestavacuriosa.—Mascomoela...Otomdoidososesobrepôsaodela,recitandoumverso.Evenãosabiase
elemesmoohaviacriado.—Sealguémavir,podetercertezadequeumacriançairámorrer.—Ele
balançou a cabeça.—E verdade, é verdade... E é por isso quenãopossopermitirquevocêvolteacasa.Evefezquenãocomacabeça,assimilandoaspalavras.—Masumacriançajámorreu.OidosofinalmentesevirouparaencararEve.Seusolhoscegosaolharamfixamente.
James
Jamesestavasentadonasaladeaulaincapazdeseconcentrarnodever.AmortedeTomhaviaperturbadotodos,maselepareciasentiraquilomaisprofundamente. Desde que eles saíram de Londres, Tom se tornara seuamigoe,emboranãotivessecertezaseogarotogostavadele,umamigoeraumamigoevocêdeveriaficarchateadoquandoalgoassimacontecia.Elequeriafugir,paramaislongeeomaisrápidopossível.Massabiaque
nãoconseguiria.MalconseguiasairdacasasemserrepreendidopelaSra.Hogg,entãoficousentadoali,inquieto,tomadoporapreensãoeansiedade.EleolhouparaEdward,omeninoquecostumavaserseumelhoramigo.
Jamesnão sabiaoque tinhaacontecido.Nãoera sóo fatodeEdward terperdido a mãe, era tudo. Ele sabia que deveria continuar tentando sergentilcomEdward,masdequeadiantava?OamigohaviamudadoeJamestinhadeaceitaraquilo.Eleolhouparaseudever.Nãoconseguiamaisescreverenãoeracapaz
deficarsentadoalipormaistempo.Ergueuamão.— Professora — chamou, tentando atrair a atenção da Sra. Hogg —,
estoucomfome.Jeanparoudetricotareolhouparaeleporcimadeseusóculosdeleitura.—Termineseutrabalho.Elavoltouasuasagulhas.Jameslevantouamãodenovo.—Professora.Jeanergueuosolhosmaisumavez,irritadaagora.—Sim,James.—Euterminei.Elasuspirou.
—Entãoescrevanovamente.—MasaSrta.Parkinsdeixaagente...—ASrta.Parkinsnãoestáaqui!—Jeanbateucomasagulhaseapeça
inacabadanamesacomtantaforçaqueorestantedaturmaseassustou.Adiretora pareceu se arrepender de ter perdido a compostura, esperoualgunssegundoseserecuperou.—NãomeimportanemumpoucooqueaSrta. Parkins deixa vocês fazerem. Vocês farão o que eu mandar. Agora,fiquecaladoeescrevanovamente.Elavoltouatricotar.O menino não conseguia ficar sentado no lugar. Sua perna direita
balançava tanto que James achou que ela poderia se soltar do corpo. Eleteveumaideiaeergueuamãomaisumavez.—Professora—chamouele.Jeanestavaficandoirritadaeprestesagritarcomeleoupuni-lo,maso
garotocontinuoufalando.—Precisoiraobanheiro,professora.Jeansuspirouebalançouacabeça.—Vá.Vádeumavez.
Foradasala, Jamesolhouparaosdoisladosdocorredor.Emvezdeiraobanheirocomoadiretoraesperava,elevirouàdireitaeseguiuemdireçãoàcozinha,sorrindoparasimesmoporsuaesperteza.Alheioaovultodepretoqueoobservavadotopodaescada.
Caçandoànoite...
—Qual...Qualéoseunome?Eveencarouosolhoscegosasuafrente.Elasabiaquetinhadeatrairsua
atenção,convencê-lo.Fazê-lodestrancaraporta.Havialidadocompirraçade criança o suficiente para saber como acalmar alguém. Ela tinha dedriblaresseidoso.—Meunome?—indagouele, comoseaquela fosseumaperguntaque
não lhe fizessem havia anos e ele tivesse de pensar para responder. —Jacob.—Jacob—repetiuEve.Elasorriu,sabendoqueo idosonãopodiaver,
masesperandoqueaquilotransparecesseemsuavoz.—Olá.EusouEve.Háquantotempoosenhorviveaqui,Jacob?Ele balançou a cabeça, como se estivesse sendo incomodado por uma
moscainconveniente.—Desdesempre...—Acheiquetodostinhamidoemboradovilarejo.Elebalançouacabeça,concordando.—Eforam.Eusouoúltimo.Oúltimo...Eveseinclinouparaafrente.—Oquevocêquerdizer?— Mortos. — Ele cuspiu a palavra como se estivesse presa em sua
garganta. — Todos os outros estão mortos. — Sua risada foi aguda eperturbadora.—Maselanãoconseguiumepegar.—Eleapontouparaasesferasleitosasdeseusolhos.—Nasciassim...Oidosopassouosdedossobreosolhossempiscar.—Entãocomovocêsobreviveu,Jacob?Eleapontouparaosolhosmaisumavez.
—Porcausadeles...—Certo.Ecomovocêaindasobrevive?—Caçando. À noite.—Ele se aproximou. Eve sentiu o cheiro rançoso
queJacobexalava.—Quandoolhosnãosignificamnada...Everespiroufundopelaboca.—Jacob—disseela, tentandoparecercalmaeconvincente—,preciso
sairdaqui e tirar as criançasda casa. Preciso levá-las aum lugar seguro.Nãopossosimplesmentedeixá-lasnaquelacasa.O rosto de Jacob adquiriu uma expressão pensativa. Ele se moveu na
direçãodaporta.Encorajadaporaquilo,Evecontinuou:—Euavi,Jacob.Issosignificaqueelaestávoltando,nãoé?Jacobparouebalançouacabeça.—Não...Não,não,não...—Jacob—clamouEve,agoracomurgênciaemsuavoz—,escuteoque
estoudizendo.Euprometoaosenhorque,semedeixarsairparabuscarascrianças e levá-las a um lugar seguro, vamos embora e nunca maisvoltaremos.Eleemitiuumsomcomoodeumanimalferido.—Tardedemais,tardedemais...— Por favor— implorou Eve, o pânico crescendo dentro dela—, por
favor,Jacob,medeixesair...Jacob saltou sobre a porta. Suas mãos passaram pelas grades e
agarraramEve.Perplexaeincapazdesedefender,elaosentiupuxá-laemsuadireção,batendocomseucorpocontraometal.—Tardedemais...Tardedemais...
James achouque estava sendo realmente esperto. Ele não haviamentidoparaaSra.Hogg,nãoexatamente.Bem,nãoarespeitodeestarcomfome,aquela parte era verdade. E provavelmente precisaria ir ao banheiro,apenasnãonestemomento.Sóqueriaarranjaralgoparacomerantes.Ele abriu a porta da despensa na cozinha e ficou parado diante das
prateleiras,decidindooquepegar.Nãohaviamuitasopções,mas,pensou,eramelhor do que nada. James encontrou alguns bolinhos de aveia e oscolocou no bolso. Aquilo ficaria guardado para mais tarde, quando nãoconseguisse dormir e acordasse com fome, porém não seria o suficienteparaagora.Eleprocuroualgomais.Amulherdepretocomorostobrancocomoossoentrounacozinha,as
paredes estalando e enegrecendo enquanto se aproximava. Ela trouxe
consigo o som de enguias se contorcendo na água em volta da ilha e ocheirolevededecomposição.James estava tão concentrado em sua tarefaquenãonotou apresença
atrásdele.Masencontrouoquequeria.Umpotedebalasdecaramelonaprateleiramaisalta.Jamescomeçouaescalar.
Elaafetasuamente...
Jacob puxou o rosto de Eve até junto à grade. Ela estava a poucoscentímetrosdele.Podia sentiro cheirodo idoso,dapele suja,dosdentespodres,das roupas fedidas.Estava tãopertoqueconseguiaverpequenosinsetossemovendosobreseuescalpo.—Elaafetasuamente—diziaJacob,salpicandoEvecomperdigotos.—
Elaaobrigaafazercoisas...Todasasgarotinhasetodososgarotinhos,comolhosbrilhantesedentesbrancoscomopérolas...Evetentavaolharparaqualquer lugar,paratodolugar,masnãoparao
rosto do idoso. Seus olhos vagaram e pararam sobre o cinto do homem.Havia uma grande chave presa a ele. A esperança cresceu dentro delaentão,apesardetímida.Mantenha-ofalando,pensou.Mantenha-ofalando.—Seéassim,entãomecontecomopodemosimpedi-la.Jacobcomeçouabalançaracabeça,comoseumacadênciadiferente,uma
queEvenãoconseguiaescutar,tivesse-odominado.—Afoga...queima...envenena...corta...Lentamente,elaestendeuamãonadireçãodachave.—Jacob...Jacob...Vocêtemdemeajudar...Ascrianças...—Ninguémavêháanos...—Avozdeleficavamaisalta,maisselvagem,
suacabeçabalançandodeformamaiserrática.—Vocêdeufimaisso.Você.Agoraelaestáficandomaisforte.—ElepuxouEveparamaispertodesi.—Possosentir.Evetentounãorespirarseuhálitopodre.—Mas,Jacob,porfavor,devehaverumamaneiradepodermos...Elapegouachave.—Ladra—gritouele.—Ladra...Você...Vocêrouboudemim...Ele a empurrou de volta por entre a porta gradeada, fazendo-a cair
esparramadanochão.EntãoJacobseafastoue,comumgrito,jogou-secomumainvestida.Aportatremeulevemente,masnãocedeu.Elerecuoumaisnocorredor,entãovoltoucorrendo,gritandomaisaltodestavez.Aporta,velhaeenferrujada,começouasesoltar.Oidosotentouumaterceiravez.Atrancavelhacedeueaportaseabriu,batendocontraaparede.Eve, caída no chão, olhava para cima. Jacob estava parado debaixo do
portal,bloqueandosuafuga.Aportaestavaaberta,masEvepermaneciapresa.
Jamessubiunaprateleiradomeioeestendeuamãoatéaseguinte.Porquealguém colocaria um pote de balas de caramelo aqui em cima? Para meimpedirdepegar,respondeuasimesmo.Depoissorriu.Nãofuncionou,nãoémesmo?Enquanto suamão tateavamais acima, seu sorrisomurchou emorreu.
Suaexpressãoficouimpassível,vazia,seusolhosnãopiscavam.Suasmãospararamdesemovereelesevirou,sentindoumapresençaasuascostas.Jamesassentiucomacabeçaumavez,comoserespondesseaumcomandosilencioso,esevirounovamenteparaadespensa.James chegou à prateleira domeio e esticou amão até amais alta de
todas. Havia pouquíssimas coisas ali além de poeira, fezes de rato e umpotecomumdesenhodecrânioedoisossoscruzados.Venenoderato.Atrásdele,osolhosdamulherbrilhavamcomumamaldadesombria.
Nuncavoltará...
Jacobentrounasala,cabeçainclinadaparaolado,escutando.—Nuncavoltará—declarouele—,vocênuncavoltará,nunca...Eveanalisoufreneticamenteocômodo,calculandoasopções.Elaviusua
únicachanceeaaproveitou,arrastando-serapidamenteaoredordeJacob,de quatro, enquanto ele recuperava o equilíbrio e o fôlego depois de terderrubadoaporta.Elesentiuimediatamenteoqueestavaacontecendoeseabaixou para agarrar Eve. Porém ela foi mais rápida. Conseguiu seesgueirare,levantando-se,tentoudispararpelocorredorparaseafastardohomem.Jacobpreviuoqueelafariaeesticouopé.Evetropeçouecaiudecarano
chão,ofegante.O idososemoveurapidamente.Evesabiaquetinhadese levantar.Dar
atenção à dor no peito era um luxo ao qual não podia se sujeitar. Elarastejou omais rápido que conseguiu pelo corredor até a primeira sala.Nela,deparou-secomosrestoschamuscadosdafogueiraeolhouemvolta,tentando encontrar algo que pudesse usar contra Jacob. Seus olhospousaramsobreofantochedeJudy.Ela a pegou o mais silenciosamente possível e, sem fazer barulho
enquantose levantava,arremessou-adooutro ladodasala,nadireçãodeondetinhavindo.Jacobgiroucomagilidade.Eve,comocoraçãoacelerado,correuemdireçãoàescadaemespiral.Voltouaotérreo,Jacobgritandoimpropériosparaeladopisoabaixo.Eve
torcia para que o barulho que ele fazia encobrisse seus movimentosenquanto ela passava lentamente pelas tabuas quebradas do piso, masJacobaouviu,suasmãospassandopeloburacoetentandoagarrá-la,puxá-
ladevoltaparaosubsolo.—Você...não...pode...voltar...Evechegouàporta,saiudoprédioecorreupelarua.PodiaouvirJacob
gritando atrás dela, mas não parou, não olhou para trás. Continuoucorrendo,correndo.Atécolidircomoutrapessoa.Evegritou.—Olá,senhorita.Estáemapuros?Harry.Evenuncahaviasesentidotãoaliviadaporveralguémnavida.
Jamesesticouobraçoomáximoqueconseguiu,seusdedosencontrandoovenenoderato.Eleaproximouopotedocorpoecomeçouaabri-lo.Repentinamente,foipuxadoparalongedaprateleira.Jamespiscou,comoseestivessedespertandodeumsonoprofundo,ese
virou.LáestavaaSra.Hogg.—Oqueestáfazendo?—perguntouela.Jamesolhouaoredornacozinha.Elenão fazia ideiadeondeestavaou
comohaviachegadoali.Lembrava-sevagamentedeteroutrapessoacomele.Eraissomesmo?Seera,nãohaviamaisninguémaliagora.—Vásejuntaràsoutrascrianças,porfavor,edeixeasbalasdecaramelo
empaz.James,aindaaturdido,assentiucomacabeçade formamecânicaesaiu
dacozinha.Jean,prontapara sair, notouamanchademofopretonaparede.Ela a
examinoucomrepulsa.—Estelugarestácaindoaospedaços—declarouela,esaiudacozinha
atrásdeJames.
Nathaniel
O jipe sacudia e balançava enquanto Harry pisava fundo no acelerador,tentandochegaràCasadoBrejodaEnguiaomaisrápidopossível.Evelhecontara o que tinha acontecido no velho escritório de advocacia. Harryhavia ficado tão abalado com o que ela disse que temporariamente seesqueceradeseumedodedirigirnapassagemenquantoamarésubia.Eveseguravaacarta,comoisqueirodeHarryiluminando-a.—Nathanielmorreuantesdecompletar18anos—comentouela.— Então ele nunca leu a carta? — perguntou Harry, olhando para a
frente,concentradonaestradatotalmenteescura.—Não,nunca leu.—Eveaabriu,aproximouo isqueiroosuficientedo
papelecomeçoualeremvozalta.—“QueridoNathaniel,nãotenhomuitotempo.Elesestãomemandandoparaummanicômio,então,quandovocêlerisso,provavelmentetereipartidohámuitotempo.”—ElasevirouparaHarry.— “Eles”.—Continuoua ler.— “Estou escrevendoparaque vocêsaibaaverdade.”—Elacontinuoulendoemsilêncio.—Ah,meuDeus...—Oquediz?Evepigarreoueleuemvozalta:—“VocêfoicriadoparapensarqueAliceDrablowésuamãe,maselanão
é.SeupaiénaverdadeCharlesDrablow.Maseusousuaverdadeiramãe.Essaéaverdade.Elesotiraramdemimenãotivecondiçõesdeimpedi-los.Por favor, acredite no que digo e venha me resgatar o mais rápido quepuder.Elesnãopermitiamqueeu tivesse contato comvocê,mas semprecuideidevocêeoameiàdistância.Seenlouquecifoiporcausadatristezacausada pelo que fizeram comigo e pelo modo como me mantiveramafastadadevocê.Poiseufui,souesempresereisuamãe.JennetHumfrye.”Eve abaixou a carta e fechou o isqueiro. Os dois ficaram em silêncio,
absorvendooquehaviaacabadodeserlido.Subconscientemente,osdedosdeEvecomeçaramaacariciarseucolardequerubim.—Elenuncasoubequeelaerasuamãe.Nuncasoube...Seusolhosestavamcheiosdelágrimasebrilhavam.Harrymanteveaatençãonaestrada.—Vamostirá-losdelá.Temosdefazerisso.Ele pisou fundo no acelerador. O jipe espirrou água da passagem
enquantoentravanailha.
Anoitecai
Joyceestavaseriamentepreocupada.ElahaviadescidoaescadadepoisdeencontrarEdwardparadojuntoàportadoquartodoandardecima.SabiaquehaviaalgodeerradocomogarotoequeriadesesperadamentecontaraquiloàSra.Hogg.Mas,todavezqueelatentarafalar,aSra.Hoggatinharepelido,irritada,eagoraestavanahoradedormir.A Sra. Hogg observou as crianças enquanto elas se deitavam em suas
camas. Joyce se esforçou para não olhar para a cama vazia na qual Tomhaviadormido.Tinhacertezadequeomofohaviacrescidoemvoltadela.—Vamoslá,crianças—falouaSra.Hogg—,estánahoradedormir.Esse era exatamente o tipo de coisa que ela própria diria quando se
tornasseprofessora,pensouJoyce.Eles ouviram o som de um jipe se aproximando e ficaram atentos,
encarando-se,repentinamenteanimados.—Fiquemquietos—mandouJean,dirigindo-seàporta.—Querotodos
nacamaquandoeuvoltar.Elasaiudoquarto,apressada.Joyce estava preocupada. A Sra. Hogg normalmente parecia estar no
controleo tempo inteiro. Independentementedoqueestavaacontecendo,ela lidava coma situaçãode forma calma e imperturbável. Esta noite elaparecia distraída e nervosa, tendo quase corrido ao ouvir o som do jipe.Issonãoeratípicodela.Amaioriadascrianças, Joycenotoucomdesdém,havia ignoradoaSra.
Hogg e, emvezde sedeitar, tinha ido até a janela para ver o que estavaacontecendo. Joyceprecisavaadmitirquequeria fazeromesmo,porémaSra. Hogg lhes dera uma instrução, e elas deviam deixar de lado o quequeriampara fazeroqueadiretora julgava seromelhor.Então Joyce se
aproximouda janela comosoutros,prontapara repreendê-los, enquantotambémdavaumaespiadarápidanoqueestavaacontecendo.Quando passou pela cama de Edward, ela notou, junto àquele horrível
boneco doMr. Punch, que seu desenho estava ali, aquele damãe com ofilho.AquelequeTomhaviatomadodele.Ela o pegou e caminhouna direção de Edward, que olhava pela janela
comoasoutrascrianças.—Comovocêconseguiuisto?Ela estendeuodesenhoparaomenino.Edward sevirou, surpreso.Ele
baixouosolhosnadireçãododesenhoeentãoolhounovamenteparaela.—Estava no bolso de Tom na noite em que elemorreu. Como você o
pegoudevolta?—insistiuJoyce.Edward não respondeu. As crianças desistiram de observar o jipe
estacionar e a Srta. Parkins e o capitão da Força Aérea Real saírem,decidindoqueissoeramaisinteressante.Joyceassentiucomacabeça,decidida.—Voucontaràdiretora.Edwardtirouodesenhodamãodameninaevoltoucorrendoparasua
cama.Joycesaiudoquarto.ASra.Hoggteriadeescutá-laagora.
Eve ouviu um som chiado, rugido, mas não sabia se era das ondasinvadindo a passagem e os seixos enlameados da praia ou o sanguecorrendonocorpoenquantoocoraçãodisparava.Ela e Harry estavam parados ao lado do jipe. Eles não conseguiram
entrarnacasa,poisJeanhaviamarchadoatéoladodeforaparaencontrá-los,suaexpressãotãoimpassíveleimpiedosaquantoumaantigamáscaramortuária de mármore. Eve vinha tentando lhe contar o que tinhaacontecido no vilarejo, comunicar o que eles descobriram,mas Jean nãofacilitava.—Todavezqueelaévista—tentouEve,começandonovamente—,uma
criançamorre. Essa é suamaldição. Ela perdeu o próprio filho, então sevingoudovilarejomatandotodasascrianças.Eagoraquechegamosaqui,tudocomeçounovamente...Jeanmeneoua cabeça, seu rostoainda inexpressivo,mas comosolhos
aindaemchamas.—Ah,nãosejatão...Naqueleinstante,Joycesaiucorrendodacasa.
—Sra.Hogg.Sra.H...—Volteparadentro!—gritouJeanparaamenina.Joyce,momentaneamenteperplexa,comolábioinferiortrêmulo,voltou
paradentro.Eveaproveitouaoportunidadeparainsistirnoqueexplicava.—Temosdepartiragora.Imediatamente.Antesqueamarésuba.—Nãosejaridícula—respondeuJean.—Nãopodemosatravessaruma
passageminundadanoescuro.—Harrypodenoslevar,então—argumentouEve.Eledeuumleveacenodecabeça.Jeansevirouparaele,suamáscarademármorecaindo,avozsibilando.—Issonãoédasuaconta.—Escute,Jean—disseEve,tentandorecuperaraatençãodadiretora.—
EdwardaviunoquartodecriançaontemeTommorreu.Eagoraeuavi.Hoje.Entãoissosignifica...—Você—disseJean,apontandoumdedotrêmulonadireçãodorosto
deEve.—Vocêprecisacolocaracabeçanolugar...Harrydeuascostasàsduaseolhouparaocéuescuro.Evebaixouavoz,tentandosermaisrazoável.—Porfavor,Jean,estoudizendoque...— Não!— Jean fez que não com a cabeça mais uma vez, fechando e
abrindo os punhos. Ela começou a andar em pequenos círculos, seussapatos esmagando o cascalho. — Sobrevivi durante esta guerra sendoracional.E,maisdoquenunca,édissoqueessascriançasprecisam.Deumavozracional.Édissoquetodosnósprecisamos.—ElaparoudiantedeEve,olhandoemseusolhos.Suavozestava trêmuladeemoção.—Está...Estáclaro?Eveseafastou,chocadacomareaçãodadiretora.Elanuncahaviavisto
Jeansecomportardaquelamaneiradurantetodootempoqueaconhecia,nuncaavirachegartãopertodeperderocontrole.Antesqueelapudessefalar,Harrysevirouparaasduasnovamente.—Nãopodemosirembora.Jeanesboçouumsorrisoqueeramaisdealívioquedetriunfo.—Obrigada,capitão—falouela.EvefranziuatestaecolocouamãonobraçodeHarry.—Harry...Eleapontouparaocéu.—Escutem.Elasseguiramseuconselhoeescutaramosomfamiliardeumzumbido
distanteacompanhadodeumasériedebaquesabafadosesecos.Eveolhounovamenteparaele.—Issoparece...—Umataque—completouele—,sim.—Masaquitãolonge?—perguntouEve.Harryolhourapidamenteaoredor.—Precisamosirparaumabrigo.—Nãotemosum—declarouJean.Harrycontinuouestudandoaárea.—Qualquerlugardebaixodaterra,qualquerlugar...—Bem,temosoporão—sugeriuJean.— Não— rebateu Eve.— Não podemos ficar aqui. E certamente não
podemosdesceratélá.HarrycolocouasmãosnosbraçosdeEveeolhoudiretamenteemseus
olhos.—Vaiterdeservir—disseele.—Agoravamos,nãotemostempopara
discutir.Ostrêsentraramcorrendonacasa.Osomdosaviõesseaproximandoficoumaisalto.
Oataque
Quando ouviram Jean entrar correndo no dormitório, as crianças seapressaramparavoltarasuascamas,menos Joyce,que jáestavanadela.DepoisdeaSra.Hoggtergritadocomamenina,elavoltaraaoquartoeforaimediatamente para debaixo das cobertas, sem querer que as outrascriançasnoquartovissemcomoestavaaborrecida.Aqueleeraseu limite.ElanãofalariamaiscomaSra.Hoggatéadiretorasedesculparcomela.O fato de a Sra. Hogg não se irritar por eles estarem fora da cama
demonstrava que algo sério estava acontecendo. Assim que ela explicouque havia uma esquadrilha de bombardeiros alemães sobrevoando osarredores, as crianças, pegando suas máscaras de gás, souberamexatamenteoquedeviamfazer.— Já para o porão—ordenou Jean, enquanto elas se dispersavam.—
Rápido.EveentrounoquartocomHarry.—Masporqueelesnosatacariam?Não temnadaaquiemumraiode
quilômetros.Éabaseaérea?— Duvido — respondeu Harry, observando as crianças saírem
apressadas do quarto.—As bombas que eles não usam nas cidades sãojogadasnocaminhodevolta.Faltadesorte,acho.Edward,napressaparasair,haviaseesquecidodoMr.Punch.—Nãohátempoparaisso—avisouJean,segurandoamãodomenino.
—Venha.O fantoche foi deixado na cama, seu sorriso de dentes quebrados
debochando deles; sua túnica bordada e seu chapéu que um dia foramimaculadosagorasetornavamtãopretosemofadosquantoasparedes.Eveficoufelizpelobrinquedopermanecerondeestava.Algoneleaperturbava.
No entanto ela não teve tempo de pensar nisso, pois as criançasprecisavamserlevadasaoporão.Uma de cada vez, elas seguiram pela cozinha e desceram a escada
escorregadia. Jean ia à frente, segurando uma lanterna. Enquanto Eve eHarrycuidavamdaretaguarda,elesouviramJoycegritarládebaixo:—Professora!Professora!Estátudomolhado!Efedido!Evechegouaopédaescada.Joycetinharazão.Oníveldaáguanoporão
estavaaindamaisaltoqueantes.Cobriaostornozelosdetodos,subiaporsuaspernas.—Vai terde servir— falou Jean,dirigindo-se aogrupo.—Encontrem
algosobreoquesentarouficardepé.Issodeveajudar.Receioqueeunãopossafazernadaquantoaocheiro.Acasaévelha;tudoestápodre.Vocêssimplesmentevãoterdeseacostumaraisso.Ascrianças,apertandoosnarizescomforçae fazendosonsdeânsiade
vômito,claramentenãoconcordavam.Rubycolocouosdedosnaparedemaispróximaesentiuomofomolhado
epingando.—Estelugaréhorrível,professora.Atéasparedesestãochorando.EveolhouparaHarrydesconfiada.—Estápiorqueantes—comentouela.—Issonãoénadabom,temosde
sairdaqui.—Vamosficarbemsepermanecermosjuntos—argumentouele.—Se
cuidarmosunsdosoutros.Evebalançouacabeçademodorelutante.— Vamos, por favor — falou Jean, aparecendo ao lado dos dois. —
Ajudemascrianças.Como Eve previra, Jean tentava lidar com o estresse da situação
recorrendoacoisaspráticaseàrotina.Suaexpressãoestavatãoimpassívelquantoantes,quandoEveeHarrylhecontaramsobreJennetHumfrye.Elacuidou de todos, assegurando-se de que havia lugar suficiente para ascriançassesentaremoupelomenosficaremdepéemrelativoconforto.—Achoqueoqueservedeconsoloéquenãotemosdeficaraquianoite
inteira — declarou Jean a ninguém em particular, possivelmente a simesma—Assimqueosaviõestiverempassado,operigodeveteracabado.Ninguémrespondeu.Nasuperfície,elespodiamouvirosomdistantede
bombascaindo.Velasforamacesasecolocadasemqualquersuperfíciedisponível.Todos
tremiampor causa do frio e da umidade. O cheiro não haviamelhorado,maselesseacostumaram.Nãopodiamsesentaremnenhumlugarcentral,
entãoforamobrigadosaseespalharentreasfileirasdeestantes,tirandoascaixasmaioresparaservirdeassento,ouseempoleirandonasbeiradasdasprateleiras.—Minhamãedizque,quandoépossívelouvirasbombas,nãotemnada
comoquesepreocupar—falouRuby.—Équandotudoficasilenciosoqueelasvãocairsobrevocê.Todospermaneceramemsilêncio,escutando.
Lágrimasnoescuro
Harrysesentouemumengradadoviradodecabeçaparabaixoe,tentandoignorar o som das bombas caindo do lado de fora, olhou para Eve. Apósterminar de ajudar Jean a organizar as crianças, ela se sentou sozinha,pegando a carta de Jennet Humfrye e relendo-a sem parar, seu rostoconcentrado. Como se a estudasse, pensou ele, examinando-acuidadosamenteembuscadeumsignificadoescondidooudeumamensagemsecreta.Harrynãonotouomeninosentadoaseulado.—Vocêépiloto?Harrytomouumsusto.Nãohaviapercebidocomoestavanervoso.Elese
virou para o menino. Era uma criança rechonchuda com cabelosencaracolados, e seus olhos brilhavam com um misto de terror eempolgação. Harry tinha visto muitas pessoas responderem à guerradaquela forma.Ele se esforçoupara lembrar.Alby?Algo assim.Alfie. Eraesseonomedomenino.—ASrta.Parkinsdissequevocêépiloto—continuouAlfie.Harrybalançouacabeçaafirmativamente,enquantoumabombacaíado
ladodefora.Elasseaproximavam.—Éverdade—respondeuele.Alfiesorriu.—Euvouserpiloto.Oporãotremeuquandooutrabombacaiualiperto.Harryseencolheu.—Euesperariaatéaguerraacabar,sefossevocê.Ogarotosepreparavaparadisparartodasassuasperguntas,masHarry
nãoqueriarespondê-las.Elesedesculpoueselevantou,andandoatéEve,que estava sentada de costas para o restante do grupo, ainda debruçada
sobre a carta. Ele se sentou a seu lado, notando, pela primeira vez, aslágrimasnosolhosdela.—Ei,nãofiqueassim.Harrypassouobraçoemvoltadela.— Ninguém — disse ela, quando seu choro estava controlado —,
ninguémmerecesofrercomoelasofreu.Eve falava sussurrando para que os outros não a ouvissem. Harry
respondeudamesmaforma.—Nãoésóisso,certo?—Eleestudouorostodamoça.—Nãoéapenas
sobreJennetHumfryeeofilho.Evenãorespondeu.Suamãofoiatéocolardequerubimoutravez.—Conte-meporqueissoaabalou.Evesuspirou,olhandoparaele,masnãofalou.Harryafastouobraçodela
esegurousuamão.Erapequenaeestavafria.—Porfavor.Evesuspirounovamente,seusolhoscorrendopeloporão,paragarantir
queninguémescutava.Quandoelacomeçouafalar,Harryparoudeprestaratençãoàsbombasquecaíam.—Eu...Eutiveumfilho.—Suavozpareciatãodiminutaquantosuamão,
masnãotinhanadadefria.—Ummenino.Eunãoeracasada.Éramos...Euerajovemdemais.Entãoeu...euoabandonei.Suavozestavatrêmula.Harry não sabia o que dizer. Ele observou a luz brilhando no colar, o
sorrisodacriançareluzenteefeliz.Semprepresente,sempreselembrandodela.EveestendeuacartadeJennetparaele.—Jennetlutoupelofilho.Harry não sabia o que fazer. Se não era capaz de consertar com as
própriasmãos,nãotinhaideiadoquefazer.Masqueriaajudar,queriadizeroufazeralgoquedariaaEvealgumaespéciedepaz.—Tenhocertezadequevocêfezacoisacerta—comentouele,entãose
repreendeupelasuperficialidadedesuaspalavras.Evenegoucomacabeçaeretrucou:—Oquefizfoiegoísta.Euachei...Euacheiquepodiasuportar...—Seus
olhos cintilaram enquanto ela relembrava o passado.—Uma enfermeiraveioeotomoudemim.Sempensarduasvezes.Eununcaovi.Nuncanemosegureinocolo.Elesnãomedeixaram...AvozdeEvesumiu.Harryesperou.
—Tentei procurá-lo,mas não queriammedizer onde ele estava.Nemqueriammedizeronomedele.—Elasuspirou.—Então,depoisdealgunsanos,eu...desisti.Desistidomeuprópriofilho.Euodeixeiirembora...Harrynãodissenada,apenasapertouamãodela.—Vocênãopodedeixaropassadodeprimi-la—comentouele,depois
de um tempo.— É fácil deixar isso acontecer, permitir que se torne umprisioneiro dele, mas é preciso continuar em frente.— Ele suspirou.—Achoqueoqueestoutentandodizeréque...avidaécurtaehámuitacoisaparafazeragora.Pessoasaoredorprecisamdevocê...evocêtemde...vocêtemdeestar...EveolhouparaasprofundezasdosolhosdeHarryeseperguntouseele
falava tantodesimesmotantoquantodela.Não importa,suaspalavrasafaziamreconheceralgonelequetambémestavadentrodela.Eveoabraçoueopuxouparamaisperto.Elecorrespondeu.Entãoumadascriançasgritou.
Mãeefilho
—Oqueeudisse?Oquê?Evesevirourapidamente,osbraçosdeHarryseafastandodela,eseguiu
atéooutroladodoporão,aáguaaoredordeseustornozelosdificultandooavanço, as costas da mão secando as lágrimas enquanto caminhava. ElaencontrouFrasercomumaexpressãoenvergonhadaeJeandiantedele.—Oqueeudisse?—continuouJean.Elaapontouparaumageringonça
circularemumaprateleira.—Deixeascoisasondeestão.—Sintomuito,professora.Eusóqueriatestar...Fraserseguravaumvelhozootrópio.Quandoeragiradosuficientemente
rápido,asfigurasnointeriorcomeçavamasemover.Elehaviaolhadoparaobrinquedoeviraumrosto furiosoobservá-lodooutro lado.O rostodeJean.—Porfavor,coloqueissodevoltanaestante,Srta.Parkins.Eve o pegou damão de Fraser e o recolocou na prateleira. Ao fazê-lo,
notouumapilhadevelhas fotografiasaseu ladoeapegou.Eladesatouafitavelhaqueasprendiae,procurandoalgoqueafastassedesuacabeçaarecenteconfissãoaHarry,começouaestudá-las.Elasmostravamhomensemulheresvestindooqueelasupôsseremsuas
melhoresroupas,paradosemposesformaiserígidas,suasexpressõestãosériasquequasepareciamirritadas.Emoutrascircunstâncias,Eveasteriaachadodivertidas. A Casa doBrejo daEnguia parecia resplandecente emtodasasfotografias,tãosólidaeimponente,nãoaruínacaindoaospedaçosqueerahoje.Então,entreelas,dobrada,Eveencontrououtrafotografia.Desdobrou-a
e sentiu um tremor de apreensão. A fotomostrava umamulher e o filhoparadosdiantedaCasadoBrejodaEnguia.Amãetinhaamãonoombrodo
menino,easmãosdomeninoestavamjuntas,segurandoalgo.Osolhosdamãeforamriscados.Masessanãoeraaúnicacoisaqueelaachouperturbadoranafoto.Havia
algo familiar. Estudando commais atenção, Eve descobriu o que era. Elaviraafotoantes.—Harry...Elefoiatéoseulado.—Oquefoi?Elalhemostrouafotografia.—Issoéfamiliar?Jáviissoantes...—Onde?—sussurrouele.Eve apontou a cabeça levemente na direção de Edward. Ele estava
sentado entre as outras crianças, mas sua tranquilidade o destacava. Acabeçadeleestavaabaixada,suaatençãofocadanodesenhoemseucolo.—Ali—indicouela,comavoztãobaixaquantoadeHarry.—Edward.
Odesenhoqueelefez,aqueledoqualnãosesepara.Acheiqueeradelecomamãe,masnãoé.—Edward e...—Harry olhoupara ela e fez quenão coma cabeça.—
Não...Jennet?Os dois olharam para o menino. Edward ergueu a cabeça lentamente.
Seusolhos,escurosedesconfiados,encontraram-secomosdela.Evesentiuumcalafriomaisumavez.Entãoumaexpressãodemedopassoupelorostodogaroto,quefechouosolhoscomforça,comoseestivessesepreparandoparareceberumgolpedoloroso.—Edward...Umabrisapenetrantee fria soprounoporão, apagando todasasvelas.
Naescuridãorepentina,ascriançasgritaram.—Estátudobem,crianças—disseJean—,nãohámotivoparapânico.É
apenasumacorrentedear,sóisso.EvesentiuHarryaseulado.Elesemexia,tentandopegaroisqueiro.—Lembrem-sedeondeestãoospalitosdefósforo—veioavozdeJean.
—Lembrem-se...Lembrem-sedaprateleiraemquevocêsoscolocaram.Eve escutou os sons de água respingando enquanto as crianças se
moviam, acompanhados de lamentos enquanto elas lutavam contra ahisteriacrescente.Elaouviumãossearrastandoenquantoprocuravamospalitosdefósforo.Evepensouem Jacob,oeremitacegodovilarejo.Pelomenos elas estão
em segurança, pensou.Por enquanto.Pelomenos elanãopodepegá-las seninguémpudervê-la.
—Professora—gritouRuby.—Encontreialgunspalitosdefósforo.OcoraçãodeEvepulou.O rosto de Ruby foi iluminado durante um segundo, sua sombra
projetadanaparedeao fundo,enquantoopalitode fósforoeraacendido,entãorapidamenteseapagava.—Voutentardenovo...Maisumavezopalitodefósforofoiaceso.Destavez,EvenotouFlorae
Fraserparadosaseulado,seusrostosigualmenteamedrontados,suastrêssombrasprojetadascontraaparede.Emseguidaofósforoseapagou.Elatentounovamente.Edward,pensouEve,ecorreunadireçãodele,comHarryaolado.—Consegui—gritouFlora,acendendoumavelanopalitodefósforo.—Estamostodosaqui?—perguntouJean.—Ótimo.Estavam todos ali. Ninguém notou a sombra adicional, se soltando do
cantomaisafastadodoporãoesemovendonadireçãodeles.Aluzseapagounovamente.—Ruby...—AvozdeJeanestavacarregadadetensão.—Vamoslá...Rubyconseguiureacenderavela.Assimqueachamase firmou, Jeana
tomoudamãodameninaecaminhoupeloporão,reacendendoasoutras.Atensãonoambientediminuiu.Algumascriançasderamrisinhosnervosos.—Fiquepertodagente—pediuEveaEdward,sorrindoepassandoo
braçoemvoltadomenino.MasEdwardapenasaafastou.Evetentounovamente.—Porfavor...Edwardrepetiuogesto.Elenãoqueriaqueelaotocasse.Evebalançoua
cabeça,frustrada,eseafastoudele.Todasascriançasestavamnovamentenaclaridade.Menosuma.Joyce,semservistapelosoutros,separou-sedogrupo.Elahavia ficado
magoada com as reprimendas da Sra. Hogg e nem mesmo a escuridãorepentina tinha conseguido dissipar aquele sentimento. Então a meninavirou a cabeça e olhoupara um canto, onde as sombras se juntaram.Elacontinuou olhando para lá, imóvel. Joyce não gritou. Algo ondulante epegajoso se contorcia em volta de seus tornozelos. Sua cabeça estavainclinadaparaolado,comoseelaestivesseescutandoalgo.Depoisdeummomento,aoouviralgumacoisaqueninguémmaisnoporãoouviu, Joycebalançou a cabeça, concordando. Lentamente. Apenas uma vez. Então sevirou e, fazendo omínimo de barulho possível, como se o que quer que
estivessedeslizandoao redorde seus tornozelosestivesseagoraguiandoseus passos e amortecendo seus pés, caminhou em direção à escada. Ameninachegouàbasedelaeolhouparacima.DelineadacontraaportaquelevavaàcozinhaestavaJennetHumfrye.Amulherdepretoseviroueentrounacasa.Joyce,comorostoinexpressivo,seguiu-aemumritmolentoecomedido.
Umaboamenina
Oruídodosaviõesnocéueraensurdecedor,acasatremendoporcausadaproximidade das bombas que caíam. Porém Joyce não percebeu, nemmesmoseencolheu.Elaentrounodormitóriodascriançaseseguiuatéacama.JennetHumfryeestavaparadanocantoatrásdacamavaziadeTom,as
gavinhasdemofopretonasparedesatrásdelaseagitandoeaumentando.Mantinhaumaposturaereta,umvéupretoescondiasuaexpressãobrancacomoosso, suas rugasparecendo longas lágrimaspretasescorrendopelorosto.Seusolhoseramcarvõesnegros, iluminadosporumfogomalignoedançante.NacamadiantedeJoyceestavaofantochedoMr.Punch.Apoiadosobreo
travesseiro, ele olhava de forma maliciosa para ela com seu sorriso dedentesquebradoseseurostocobertodeferidasepústulas.Joycenãoprestouatençãoanenhumdosdois.Elaparouaoladodesua
camaetirousuamáscaradegásdacaixa.Lentamente,desenroscouofiltroe dobrou sua toalha de rosto, empurrando-a para dentro, bloqueando aspassagensdear.Elaestudouoresultadoeassentiucomacabeça,satisfeitacomaprópria
obra.Entãocolocouamáscarasobreorosto.
—OndeestáJoyce?AvozdeEveecooupeloporão.Harrypareciaansioso.Evenotoualgo sendocompreendidoeacionado
nosolhosdeJean.
—Vamoslá,todomundovasculhandooporão.Asparedestremiamesoltavampoeiraemofoqueflutuavamportodoo
cômodo, mas ninguém deu importância àquilo. Estavam determinados aencontrar Joyce. Eles procuraram no porão inteiro, nos vãos entre asestantes,nasfendas,noscantos.Ameninanãoestavaemlugaralgum.— Ela deve ter subido — comentou Jean, olhando para o teto, raiva
transparecendoemsuavoz.Asparedestremeramquandoumabombacaiuperto.—Agentenãopodedeixarqueelafaçaisso—declarouRuby.—Temos
queencontrarJoyce.EvetentouimaginarondeJoyceestaria.Juntoàparede,pertodaescada,
era isso. Ela atravessou até o local exato. A parede atrás de onde Joyceestivera se encontrava rachada e enegrecida. O coração de Eve disparou.ElavirouacabeçanadireçãodeHarry.—Jennetalevou...Rubyfranziuatesta.—QueméJennet?Evecomeçouasubiraescadacorrendo,comHarryatrásdela.Noporão,ascriançasentraramempânico.— Todos fiquem onde estão — ordenou Jean, com sua voz mais
autoritária.—Estátudosobcontrole...Masnemelaacreditavaemsuasprópriaspalavras.
Joycetentavarespirar,masnãohaviaarsuficienteparaencherospulmões.Elaestavatotalmenteimóvel,braçosesticadosjuntoaocorpo,forçandoa
respiraçãodentrodamáscaradegás,queseaproximavadeseurostocadavezquetentavapuxaroar.Elarespirououtravez,tentounovamente.Masnãoadiantou.Simplesmentenãohaviaarsuficiente.Joycecomeçouaficartonta.Enquantoasbombascaíameexplodiamdo
lado de fora, ela podia ver estrelas diante dos olhos. Suas pernascomeçaramaficarbambas.Os buracos para os olhos namáscara estavam ficando embaçados por
causa de sua respiração. Era como sua própria névoa particular. Masatravés dela Joyce ainda conseguia ver a mulher de preto parada a suafrenteeoMr.Punchcomo sorrisomaliciosona cama.Ela sentiuosdoisincitando-a, encorajando-a, e ela queria agradá-los, especialmente amulher.Elatinharegrasrígidas,Joycepodiasentiraquilo.Esabiaqueeramuito importante segui-las. Fazeroqueamulhermandava. Serumaboa
menina.Elatentou,enãoconseguiu,respirarmaisumavez.
O barulho era ensurdecedor. As paredes tremiam, as bombas caíam. Evegritou o nome de Joyce, mas ela sabia que amenina não seria capaz deouvi-la.Elamesmamalescutavaaprópriavoz.Evecorreudacozinha,comHarryaescoltando,atéopróximocômodo,
então até o seguinte. Eles a procuraram desesperadamente, gritando onome de Joyce, temendo o que acreditavam estar acontecendo, torcendoparanãochegaremtardedemais.
Aspernasdameninacederameelacaiunochão.Oquartoestavaficandoescuro, a sombra invadindo tudoa suavolta.Masessaescuridãonãoeracomoanoite, Joycesabia.Essaescuridãodurariaparasempre.Porémelatinhadefazeroqueamulherdizia.Tinhadeseguirsuasregraseagradá-la.A escuridãoadominou, e Joyce sentiuumaespéciede alívio.Elahavia
cumprido as ordens que tinha recebido. Desempenhara sua tarefa comperfeição. Ela ouviu uma voz, tão estridente e escura quanto a casadecadenteaoredor.—Éassimquesefaz...
—Não.Ah,não.Ah,não,não,não,não,porfavor,não...EveeHarryentraramcorrendonodormitóriodascrianças.Joyceestava
deitada no chão, imóvel. Harry ajoelhou, arrancou a máscara de gás dorostodameninaeaarremessouparaooutroladodoquarto.Eveajoelhouaseulado.Ele tentou reanimá-la, mas, pela cor e pela expressão contorcida do
rosto, Harry sabia que era tarde demais. Seus olhos estavam virados,deixandoesferasbrancasleitosasolhandoparaeles,comoumpeixemorto.Evecomeçouachorar.— Está tudo bem — disse Jean de trás deles, ofegante por causa da
corrida.—Osaviõesestãoindoembora.Estamossegurosagora.Estamosseguros...Elaviuocorposemvidacaídoentreosdoisesuavozimediatamentese
apagou.
Refugiados
—Foiumacidente,sóisso,umterrívelacidente...Jeansemprehaviaacreditadoquesuasopiniõesecrençaseramsólidas.
Elaastinhafeitoserassim.Algumasvezesimaginavaquesuamenteeraolugarmaisorganizadopossível.Tudooqueelasentiaeemqueacreditavaestava no lugar, perfeitamente ordenado e preso com firmeza. Qualquercoisa desagradável que ela não queria — ou não podia — permitir eraarmazenada, como bugigangas indesejadas em um armário, coisas dasquaiselanãoqueriaselivrar,masquenãoqueriaver.Agora, depois de tudo que havia acontecido, Jean sentiu que aquelas
crenças estavam mudando. Elas já não se encontravam mais presas,segurasegarantidas,masflutuavam,atrapalhando,esbarrandoemoutrascoisas.Aportadoarmárioestavaaberta,eaquelespensamentossombriose profundos escapavam. Se não tivesse cuidado, eles a dominariamcompletamente.—Umterrívelacidente...Jeanproferiaaspalavrascomosefossemummantra,assentindocoma
cabeça todavezqueasdizia, comose, ao repetir aquiloo suficiente, elaspudessemsetransformaremverdade.Doladodefora,osol,acabandodeseerguersobreohorizonte,prometia
umbeloe friodiade inverno.Raiosdesolgloriososchegavamàs janelasaltas e iluminavam a sala de jantar de forma viva e celestial. Mas avivacidadenãoalcançavaosvultossentadosreunidosemvoltadamesaemumpequenogrupo.Por falta de lugar paradeixá-lo,Harrydeitou o corpode Joyce em sua
cama,comumcobertorsobreele.Aportadodormitóriohaviasidofechada,com instruções rígidas para que ninguém a abrisse. As instruções eram
desnecessárias.Ninguémqueriaentrarlá.HarryeEveseencarregaramdascriançasrestantes,levando-asàsalade
jantar, insistindo para que ficassem juntas. Os jovens estavam sentadosquase em estado catatônico, a não ser Ruby, que não havia parado dechorar. Harry e Eve estavam sentados com eles, tentando pensar no quefazeremseguida.Jean estava virada de costas para o resto da sala, sem querer que
ninguém visse as lágrimas contra as quais lutava desesperadamente,determinadaanãocederasuasemoções.Pelaprimeiraveznavida,todasassuascrençastinhamsidodesafiadaseelanãosabiacomolidarcomisso.—Foiumacidente,sóisso.Apenasumterrívelacidente...Harrycolocouamãonoombrodadiretora.—Jean.Elaseviroueolhouparaocapitão,seulábioinferiortrêmulo,seusolhos
perdidosesemfoco.—Nãofoi—retrucouele,comavozmaissuavepossível.Asalaficouemsilêncio.AtémesmoRubyparoudechorar.Eve se levantou. Impotência,medo e raiva semisturavam dentro dela,
lutandopelaprimazia.Elatinhadefazeralgo,tomaralgumaatitude.Andouaté a parede mais próxima e lentamente passou os dedos sobre umarachadurarecente,entãorecolheuamãoeexaminouosdedoscomoseelativessesidocontaminadadealgumaforma.Éisto,pensou.Éisto.—Doqueadianta?—murmurou.Eve olhou para a sala ao redor, descobriu cada pedaço mofado, cada
rachaduraquenenhumraiodesolseriacapazdeumdiaatingir.— Você não vai trazê-lo de volta! — exclamou ela. — Não importa
quantosmate,elenãovaivoltar!Evegritouasúltimastrêspalavras.Ascriançasapenasolhavamparaaprofessora,commedonosolhos.Elas
nunca a viram dessa forma antes. Primeiro a diretora, agora a Srta.Parkins...—Apenas...nosdeixeempaz...Harry se levantou e se aproximou dela, passando o braço por seus
ombros.Evesentiuseucorpoarrefecerenquantoatensãodiminuía.Eleaconduziudevoltaàmesa.—Vamospartirassimqueamarébaixar—decretouele.—Possolevar
vocêsatéovilarejo,entãopensamosemumaformadeenviá-losparacasa.Eveparoudesemexer,comosombrostensosmaisumavez.
—Nãovouvoltaraovilarejo—retrucouela.Harryfranziuatesta.—Leve-nosparaabaseaérea.Harry pareceu momentaneamente chocado com a sugestão. Ele devia
estar fazendo alguns cálculos, pensou Eve, como se estivesse decidindoalgo.Entãosorriu.—Tudobem.
Aevacuaçãoestavaatodovapor.Ascriançaseramtiradasdacasaomaisrápidopossível.Elascarregavamapenasoqueconseguiriamlevarnojipe.Edward, Eve notou, estava segurando oMr. Punch com força.O fantocheparecia estar sedeteriorandodiantede seusolhos.Elanão sabia comoogarotosuportavatocá-lo.Evecolocouamãonobraçodomenino,fazendo-oparar.—Deveríamosdeixarissoaqui—disse,daformamaisrazoável,porém
firme,possível.Elaconseguiumostrarumsorrisotímido.—Olugardeleéaqui.Edward nem mesmo reconheceu o que ouvira. Ele não soltaria o
brinquedo.—Passeessebonecoparamim,porfavor,Edward.—Suavozestavafria
agora.Elenegoucomacabeça.—Edward...Eve tentou agarrar o fantoche, mas o garoto o afastou. Ela não seria
vencida.ComumadasmãosseguroucomforçaobraçodeEdward,comaoutra arrancou o boneco de seu poder. Ao fazê-lo, Eve sentiu uma doragudanamão.Ofegou,deixandoobonecocaireexaminandoseusdedos.Suamãosangravaentreopolegareoindicador.Droga,pensouela,issoestátãovelhoerachadoquesoltouumafarpaem
minhamão.Evepegouobonecoeoexaminou.Omesmosorrisomaliciosoestavaem
seurosto,masdessavezhaviasangueentreseusdentes.Seelaacreditassenessetipodecoisa,teriaditoqueobonecohaviamordidosuamão.ElaojogoudevoltadentrodacasaesevirouparaEdward.Maselehavia
sejuntadosilenciosamenteaosoutrosnojipe.
Quandotodosestavamapertadosdentrodocarro,Harrysesentouatrásdovolanteeacelerou.Eveestavasentadanobancotraseirocomascrianças.Enquanto as outras olhavam para a frente, ela notou que a cabeça deEdwardestavavirada,olhandofixamenteparaacasaqueficavaparatrás.—Edward—chamouEve.Omeninoaencarou,seusolhosescuros,indecifráveis.—Nãoolheparatrás—continuouela.Eveolhoubemnosolhosdomenino.Apósumtempo,eleseviroupara
olharparaafrentedenovo.
Ira. Era isso que queimava dentro da mulher enquanto ela observava ogrupopartirjuntoàjaneladoquartodecriança.Elaestendeuseusdedos, tentoutocá-los,alcançá-los, trazê-losdevolta.
Nãoadiantou.Elesestavammuitodistantes.Seusdedosbateramnovidrodajanela,suamãotransformadaemumagarra.Airaferviaeardiadentrodela,umaforçavitalalimentando-a,sustentandosuaexistênciacontínua.Elaarranhouovidrocomosdedos,suasunhasguinchandoeuivando.O
vidrorachouseguindoosmovimentosirregularesdesuasgarrasafiadas.Ojipedesapareceunapassagem.Ela gritou com fúria e dor enquanto assistia à partida, seus dedos
pressionando o vidro fragmentado com mais força, os guinchosaumentando.Ajanelaseestilhaçouemmilharesdepequenoscacos;repentinamente,
deformaexplosiva.Elanãoosdeixariafugir.
Abaseaéreafantasma
—Aviões!—gritouAlfie.—Alfie,volteaqui...AvozdeJeanseperdeuaovento,maselasaiuatrásdogaroto,querendo
mantertodosjuntos.Omenino,tendoesquecidosuaansiedadeanterior,ficouanimadoassim
queviuosaviõespelacercaenquantoojipeseaproximavadabaseaérea.Quandodescobriuaondeelesestavamindo,Alfiesófaloudissoatéchegarlá.Alfie correu o mais rápido que conseguiu em direção aos aviões
estacionadosnoperímetrodabaseaérea, JeaneEveoseguindodeperto.Mas ele parou assim que chegou à primeira aeronave. Eve, em pânico etemendoopior,correuaindamaisrápidoparaalcançá-lo.Quandoelaparouaoladodomenino,elesevirouparaaprofessora,com
decepçãoeconfusãonorosto.—Elesnãosãodeverdade.Estenãoéumverdadeiro...Eveolhouaoredor,observandoabaseaéreacomatençãopelaprimeira
vez.Sóentãoelanotouqueaquilonãoeracomoimaginavaouesperavaquefosseumabaseaérea.Nãohaviahangares,apenasgrandespedaçosdelonaestendidosnosoloparadaraimpressãodeconstruçõesquandovistosdocéu.Osaviões,apesardeconvincentesdelonge,depertonãosepareciamcom um avião de verdade. Eram ocos, feitos de madeira e lona, suasmarcações e seus motores meramente pintados. Em volta da grade quedelimitavaabaseaéreahaviagrandescestasdepalhacheiasdegravetos.Umvultosaiudeumbunkerenterradonabasedamontanhaecaminhou
emdireçãoaeles.Corpulento,nacasados40anos,eleabotoavaatúnicadeseuuniformeesoltavaumguardanapodelinhoqueestavapresoemvolta
dopescoço. Ele parou quando viu asmulheres e as crianças, franzindo atestaparaHarry.—Oqueestáhavendo,cabo?EveolhouparaHarry,queruborizouepigarreou.— Essas pessoas precisam ficar aqui por algumas horas, sargento
Cotterell.Refugiadas.Sua...casafoidestruídanobombardeioontemànoite.Estouprovidenciandotransporteparaelas.Cotterell moveu os olhos de Harry para as crianças, claramente
descontentecomasituação.—Vocêdeviaterpedidoautorizaçãoamim,cabo.Harrypareciaquererqueaterraseabrisseeoengolisse.—Sim,sargento.Sintomuito.Cotterellencontrouumúltimopedaçodecomidapresaentreosdentes,
sugou-aecomeu.Elebalançouacabeça.—Nãodeixequeelesatrapalhemsuastarefas.—Sim,senhor.Cotterellrespiroulentamente.—Orelatóriodasituaçãoestácalmoparaanoitedehoje—declarouo
superior.—Então é apenas vocêna vigia.AEquipe S estáde sobreavisoparaocasodascoisasmudarem.Harrysaudouseusargento,queseafastou.EvesevirouparaHarry.—Harry,oqueé...Eleenroscouseubraçonodelaeaafastoudasoutraspessoas.Nuvens
carregadassejuntavamnocéu,transformandoodiaemumaescuraquasenoite.Assimqueestavamlongeosuficienteparanãoseremouvidospelosoutros,elecomeçouaexplicar.—Éumabaseaérea falsa—disse, incapazdeencararEve.—Paraos
nazistasbombardearemaqui emvezdeumadeverdade.Movemos luzespela área para fazer parecer que aviões estão decolando.—Ele apontouparaosgrandescestosdepalhacheiosdegravetos.—Entãoacendemososcestosparafazê-lospensarquenosatingiram.—Harrysuspirou.—Somosiscas.—Masvocêdissequeerapiloto.Vocêdissequeeracapitão...Harryvirouacabeçaparaasnuvenscarregadas.— Fui as duas coisas. Um dia. Mas, depois de ser abatido, eu...— Ele
limpouocantodeumolho.—Ovento—explicouele,balançandoacabeça.— Depois de ser abatido, eu... eu não consegui mais voar. Então merebaixaram. E me mandaram para cá. Falta de fibra moral, foi o quedisseram.Significaquevocêéumcovarde.Oficialmente.
Os dois ficaram sem falar por um tempo. Eve acabou quebrando osilêncio.—Porquevocênãomecontou?—Avozdelaeraacanhada.Harrytentourir.Aquilosoouquasecomoumsoluço.—Eugostavadaformacomovocêmevia...Patético,nãoé...?Eve lentamentecolocouamãoemsuabochecha.ElasorriuparaHarry,
queseafastou.— E aí está aquele sorriso de novo — disse ele. — Aquele sorriso
enigmático.Édepenapormim?Elameneouacabeçaecolocouamãoemsuabochechamaisumavez.—Não—respondeuela.—Nadadisso.Era a primeira vez que Harry olhava para Eve daquela maneira, de
verdade, do jeito que elamerecia, vendo o que estava em seus olhos, sóparaele.Ela sorriuoutravez.Nãohavia comoconfundiro significadodosorrisoagora,eeleretribuiu.Eveobeijou,eHarryretribuiu.
Amigosnovamente?
O bunker havia sido construído sob uma montanha. Em outrascircunstâncias, esse teria sido um local empolgante para se visitar, umótimo lugar para uma aventura. Mas não hoje, não agora. As criançasestavamparadasdoladodefora,reunidas,semquererdeixarninguémforadocampodevisão.Todasmenosuma.Edward estava parado um pouco afastado. Ele não havia percebido o
mesmoqueeles.OmeninonãotinhaerguidoosolhosquandoaSra.Hoggentrounobunkerseguindoosargentomal-humorado,nãosepreocuparacomapossibilidadedealgoaconteceraelaeadiretoranuncamaissairdelá.ElenãoviraaSrta.Parkinseocapitãosebeijandoeseabraçandopertodosaviõesfalsos.O menino apenas permanecera ali parado, com as mãos nos bolsos,
perdidoemseuspensamentos,emsuatristeza.Elenotouossussurrosasuavolta.Durantealgunssegundos,achouque
estavadevoltaacasa,ouvindoasantigasvozesconversandocomelemaisuma vez, porém logo percebeu que eram as outras crianças e que elasfalavam dele. Edward se esforçou para dar a impressão de que nãoescutava.Eleconseguiudistinguirtrechos.—Tomfoimaucomele...EraavozdeRuby,seusotaquecockneycarregadoinconfundível,mesmo
baixa.—EJoyceiadedurar...Fraser.Edwardnãoprecisavaolharparasaberqueomenininhoestaria
comosolhosarregaladosenquantofalava.—Evejamoqueaconteceu.—Rubynovamente.Elaimitavaaafetação
damãe,apontodeacharque,sefizesseumadeclaraçãoeamanifestassedeforma suficientemente enfática, ela sempre estava certa. — Faz sentido,nãofaz?— Escutem. — Era James dessa vez, irritado. Tentando demonstrar
liderança.—Apenas... fiquemquietos. Todos vocês. Escutemo que estãodizendo.Issoéidiotice.Osoutrossecalaram.Edwardrelaxouumpouco.Omeninosentiualgo
caloroso dentro dele por seu antigo amigo. Gostaria de poder expressarissodealgumaforma.—Achoquefoiele.Edwardcongelou.Eleconheciaaquelavozmuitobem.Flora.Emalguns
momentoselahaviasidosuaúnicaaliada,ficandodoseuladocontratodos,defendendo-o.Noentanto,agoranãoeramaisocaso.EleolhouparaFlora.Ajovempareciatãotristeemagoada.Ealgomais,
algoaindapior.Sentiamedodele,pareciarealmenteaterrorizada.Edwardqueriadizeralgo,queriaatémesmochorar.Masnãoconseguia.
Trancadonaprisãodoprópriocorpo,tinhasimplesmentedeficarparadoalifingindonãoouvirenquantotodososoutrosfalavamdele.Ruby,encorajadapelaspalavrasdeFlora,começounovamente.—James—disseela,preocupada—,vocêderramouoleitedele.—Não,nãoderramei—respondeuJames,tentandonãodarimportância
a suas palavras, mas estava claro em seu tom de voz que ela estavaconseguindoperturbá-lo.Rubypersistiu:—Vocêderramou,sim.—E...E...vocêtambémotrancounoquarto.—Alfiesejuntavaagora.—FoiTom—retrucouJames,irritado.—Nãofuieu.EdwardviuFraserergueramão,apontarparaJames,comosolhosainda
arregalados.—Vocêéopróximo...—Ah,calemaboca,todosvocês—disseJames.—Vocêssãorealmente
patéticos.Crianças.Eledeuascostasaosoutroseseafastouparase juntaraEdward,mas
seu antigo amigo não conseguia olhar para ele. Ainda sentia o toquedaquelamão frianadele, emboraestivessemseparadosporquilômetros.Aindapodiasentirocheirodofrioedapodridãodacasa.—Escute—começouJames,aopararao ladodeEdward—,eu... sinto
muitopelagentetertrancadovocênoquartodecriança.Eunão...—Jamessuspirou.—Sintomuito.Eunãofiznada.Eudeveriaterfeitoalgumacoisa
e não fiz. E sinto muito por ter derramado seu leite também. Foi umacidente,nãofizdepropósito.Edward não disse nada. James deu a volta até encarar o menino de
frente,semnenhumachancededesviarosolhos.—Agentepodeseramigonovamente?Edward queria responder, queria dizer “Sim, é claro que podemos.
Vamosseramigos,vamosnosdivertirjuntosnovamente.Comoantes”.Masnãoconseguia.Eletentou,masaquelamãofriaemortahaviaapertadoadele,ocheiro
de umidade e podridão aumentando ainda mais. Edward tinha saído dacasa,masacasaaindaestavadentrodele.—Edward?Edwardapenasvirouacabeçaeolhouparaohorizontevazioeplano.James,comosolhosúmidosdetristeza,afastou-se.Começouachover.
Nobunker
A chuva caía forte agora, batendo no teto de metal corrugado como asaraivadadeumametralhadora.Evetinhalevadoascriançasparaointeriordobunkerassimqueachuva
começara. Estavam todas lá, reunidas no meio da construção. Jean seencontravaatrásdelas,comosbraçossobreosombrosdascriançasmaispróximas,osdedosafundandonapele.Evenãosabiaseadiretoraestavaseassegurandodequeelasestavamemsegurançaouseascriançasaestavamapoiandoemantendo-adepé.Oequilíbriodopoderhaviamudadoconsideravelmentedentrodogrupo.
Jean não tinhamais nada a oferecer, nada construtivo para contribuir. Oque havia acontecido estava além de sua experiência, além de suacompreensão.Eveforacolocadanocomando.Elanãoqueriaexerceraqueletipodeliderança,masesperavaestaràaltura.Paraobemdetodos.Obunkernãotinhajanelaseeradeprimente.Eleconsistiabasicamente
emuma longasala,asparedesdeconcretocobertascomfolhasdobradasdemetalcorrugado.Ometalcontinuavasubindo,formandoumteto.Deumladohaviaumaescada,quelevavaaumaescotilhanoteto.Dooutro,umasalademáquinasdeondeeramcontroladosailuminação,oaquecimentoeosdispositivosdeacendimentodoscestos.Aslâmpadasnotetoprojetavamumaluztristeeestérilnasala.Eveolhouparaascriançasparadasdiantedela,comolhosarregaladose
aterrorizadas. Até mesmo os abrigos antiaéreos no metrô eram maisseguros que isso, pensou ela. Precisava encontrar algo para dizer que asconfortasse,queasinspirasse.Queasajudasse.—Nosso tremparavoltaraLondres chegaamanhã.Entãovamos ficar
aquiestanoite.
Eveconseguiusorrir.Olhandoparaosrostosassustadosecansadosdascrianças,aquilonãopareceufazermuitadiferença.
Harry abriu um armário na sala de máquinas e pegou alguns capachosacolchoadosefinos.—FeitospeloDepartamentodeGuerra, infelizmente—declarou ele a
Eve, que o havia acompanhado —, mas vão servir para uma noite. Ascriançaspodemsedeitarneles.—Obrigada.—Evesorriu.Eraumsorrisodiferentedaquelequehavia
fracassado em confortar as crianças.—Tenho certeza de que vão servirmuitobem.EnquantoHarrytiravaoscapachoseoscontava,Evedeuumaolhadaao
redor. Sua atenção foi imediatamente atraída por uma velha fotografiacoladaaopaineldecontrolesobreogerador.Elaapegou.Afotomostravauma tripulação de pé diante de um bombardeiro, todos os homenssorrindo,comrostosjovensecheiosdevida.Eveolhoucommaisatenção.BemnomeioestavaHarry.—Esteévocê,nãoé?—perguntouEve,mostrando-lheafoto.Harry ergueu os olhos, seus braços cheios de capachos, pronto para
responder.Quandoviuoqueelasegurava,suaexpressãoficousombria.—Era—respondeuHarry.Eleviroudecostasecontinuoucomotrabalho.
Anoitecaiu, trazendoconsigoaindamaischuva.Omundo ficouescuroecheiodeestática.As crianças ainda estavam reunidas dentro do bunker. Elas quase não
falavam,malsemoviam.AssimqueHarrydesenrolouoscapachos,elassedeitaramsobreas camas improvisadas.Estavamabsolutamenteexaustas,mas amedrontadas demais para dormir. Em vez disso, simplesmenteficaramdeitadasali,oscapachosemumcírculonocentrodasala.Comoemumfilmede faroeste,pensouEve, todasascarroças formandoumcírculoparaimpedirosataquesdosíndios.Harry,JeaneEveestavamsentadosemcadeirasdobráveisdemetalatrás
dogrupodecrianças.Oúnicosomnasalaeradasmarteladasincessantesdachuvanotelhado.Edward estava deitado um pouco distante dos outros, com as mãos
juntassobreopeito,olhandoo teto.Asoutrascrianças tentavamdormir,
ou aomenos fingir que o faziam. Edward não estava nem tentando. Evetinhaa impressãodequeocorpodomeninoeraumaprisãoeeleestavatrancadoalidentro.—Tentedescansarumpouco.Quando Eve se aproximou de Edward, ele se encolheu, dando-lhe as
costas.Elemanteveosolhosfixosnotetodemetal.—Estátudobem,Edward.Estamoslongedacasa.Estamosseguros.Ela
nãopodepegá-loaqui.O menino não respondeu. Eve o estudou. Havia raiva nos olhos dele.
Raivadela?Porquê?PorjogarobonecodoMr.Punchdevoltaparadentrodacasa?Eraisso?Justamentequandoelaabriuabocaparadizeralgomais,Rubyapareceuaseulado.—Professora...—Sim,Ruby.—TomcontouparaagentequeEdwardviuumfantasma,professora.AdeclaraçãoeratãoinesperadaquefezEvepararoquefazia.—Bem,eu...—Eleviumesmo?A primeira reação de Eve foi mentir, dizer que Tom estava falando
tolices.Maseladesistiu.Rubymereciamaisqueaquilo,maisquementiras.Para conseguirem escapar daquela situação, para ficarem em segurança,todosmereciammaisquementiras.—Sim,Ruby.Eleviu.Eutambémavi.—Eve...A professora ergueu os olhos. Jean estava balançando a cabeça em
reprovação.EveaignorouevoltousuaatençãoaRuby.—Sim.Eutambémavi.Masestátudobem.Seelanãoforvista,nãopode
nos causar nenhummal. Estamos aqui agora. Deixamos tudo aquilo paratrás.Qualquerfingimentodesonohaviadesaparecido.Orestantedascrianças
agoraescutava,todaselasolhandoparaEvecommedoefascínio,lutandoparaprocessaraspalavras,paralidarcomainformação.—Srta.Parkins,parecomessababoseiraimediatamente.Jeanaencarava,olhosfaiscando.Elasevirouparaascrianças.— Isso tudo émentira,meninos. A Srta. Parkins está tentando encher
suascabeçascombesteirasementiras.— Não — interrompeu Harry. — Não é mentira. Eve está dizendo a
verdade.Jeanbalançoua cabeçae seafundounovamentena cadeira.Mas, antes
queelapudesseexporqualquerargumento,Harryfalou:—Jámecanseidementiras.Jámecanseidesegredos.Hácoisasruinsaí
fora.Pessoasquequeremmatarvocês,matartodosnós.Estaéumaépocaperigosa. E não superamos épocas perigosas ignorando ou fingindo quenadaestáacontecendo.Nósassuperamostrabalhandojuntos.Éassimqueacabamoscomelas.—Eleolhouparaogrupoaseuredor,entãoencontrouamãodeEveeaapertoudeformareconfortante.—Entendido?Evesorriuparaele.As crianças não disseram nada enquanto assimilavam a informação.
Depois de um tempo, Fraser, com o rosto contorcido de concentração,falou:—Então,professora,ofantasmaéamãedeEdward?Evebalançouacabeçaemnegativa.—Não,Fraser.Issonãotemnadaavercom...Ela apontou na direção de Edward, prestes a dizer seu nome, mas
congelou.NamãodomeninoestavaofantochedoMr.Punch.E,pelaformacomo
elebrincava,obonecopareciaestarfalandocomele.Eveoencarou,horrorizada.—Maseuotomeidevocê.Nósodeixamosnacasa...—Elacaminhouaté
juntodele.—Elalhedevolveuoboneco?Edwardaignorou.Apenascontinuoubrincando.—Diga,Edward...Elelevouofantocheaoouvido,escutou,entãoassentiucomacabeça.—Diga!Ele não respondeu. O silêncio tomou conta do bunker. Até mesmo a
chuvapareciamaisbranda.Então,aolonge,Eveouviuumacançãofamiliar.
“JennetHumfryeperdeuseubebê...”
Harryselevantoueolhouaoredor.Eletambémconseguiaouvi-la:—Oqueéisso?
“Nodomingomorto,nasegundaachadoocorpo...”
As vozes ficarammais altas, ecoandonas paredes demetal do bunker.Todasascriançasestavamsentadas,omedomarcadoemseusrostos.TodasmenosEdward,quecontinuavasimplesmentedeitadoali.
“Quemseráopróximoamorrer?Deveservocê!”
OcoraçãodeEvemartelavaemseupeito.—Elaestáaqui.Ah,meuDeus.Elaestáaqui...Harryaindaseguravasuamão.—Masninguémaviu.Vocêdissequeelasóaparecese...EveolhouparaEdward,aindabrincandocomofantochedoMr.Punch.—ElaveioatrásdeEdward.Jeanestavadepé.—Agoraparemcomisso.Vocêsestãoassustandoascrianças.Evesevirouparaela.—Asenhoranãoouviuaquilo?Jeanolhoufixamenteparaela,prontaparadiscutir.— A senhora ouviu, não ouviu? O que era aquilo então? O que eram
aquelasvozes?AbocadeJeanseabriuesefechou,masnenhumapalavrasaiu.Antesquequalquerumpudessefalarousemover,doladodeforaveioo
somdemáquinassendoligadas.Harrycorreuparaasalademáquinas.Osinterruptoreseosmostradores
nopaineldecontroleganharamvidaeagoraestavamligados.—Alguémdisparouaspiras.—Piras?—perguntouEve.—Oscestosdefogodoladodefora.Ele tentoumexernoscontroles,porém,antesqueconseguisse,opainel
entrouemcurto-circuitoe fagulhasvoaram.Harryprotegeuosolhos.Eleestendeuobraço,tentougirarosbotõesmaisumavez.Nadarespondeu.—Elesnãoqueremdesligar...Dentro do bunker, uma das lâmpadas do teto explodiu. As crianças
gritarameseabraçaram.Oquesobroudalâmpadacomeçouabruxuleareasoltarfagulhas.Obunkerestavaquasenaescuridãototal.Nasparedes,noscantosenasfendas,assombrascresciam.
Ocírculo
Jean olhou para Harry e Eve, parados junto ao painel de controle,conversando, decidindo o que fazer em seguida. Eles nem mesmo aconsultavam,fingindoqueelaerainvisível.Oupior,idiota.—Oquevamosfazer?—perguntouEve.Harry voltou correndo para a sala principal, após desistir de tentar
alterarqualquerumdosinterruptoreseosbotõesligadosaogerador.—Vamosficarjuntos.Essaéamelhorcoisaquepodemosfazer.Jeanjáhaviaaguentadodemais.— Ah, por favor — disse ela. — Vocês estão sendo ridículos. Muito
ridículos. — A voz dela se tornava esganiçada e histérica. Ela respiroualgumasvezes.—Baboseirasupersticiosa.Éapenasuma...umafalha.Umafalhaelétrica.Vamosresolverissosendoracionais,nãocedendoa...—Todosdeemasmãos—interrompeuEve,ignorandoJean.Eve e Harry mandaram as crianças formarem um círculo. Eve se
certificoudequeEdwardestavaaseuladoesegurouamãodomeninocomfirmeza.—Certo—disseEve,tentandoparecercalma.—Estamostodosdemãos
dadas.Sealguémsairdocírculo,doisdenósvamossaber.Jeanmanteveasmãosjuntoaseucorpo.—Srta.Parkins,issoé...—Jean,porfavor—interrompeuEve.Jeansentiuaraivacrescendodentrodela.—Nãosejatão...—Façaoqueelamandou!—gritouHarryparaadiretora.Jean, sem conseguir falar e acuada pela autoridade na voz do jovem,
obedeceuàsordensmansamente.
Elesficaramparadosemumcírculo.Imóveis,malrespirando.Acantigadeninarfantasmagóricacomeçounovamente.
“JennetHumfryeperdeuseubebê...”
As crianças pareciam aterrorizadas. Eve não ia aceitar se sentir damesma forma. Alguém tinha de permanecer calmo e racional, pensar emuma forma de sair daquela situação. Concentre-se, pensou ela, ignore econcentre-se...— Jacob—disse Eve, pensando alto.—Ele foi o único sobrevivente...
Cego... O que ele disse? Ele sobreviveu porque não podia vê-la... — Eveolhouaoredorparaorestantedogrupo.—Éisso.Fechemosolhos.Todosfechemosolhos...
“Nodomingomorto,nasegundaachadoocorpo...”
—Agora!—gritou.—Fechemosolhosagora...!Todos eles fecharam os olhos, até mesmo Jean. Ela se sentiu ridícula
fazendoisso,masalgoaperturbava,indicavaqueaquelaeraacoisacertaasefazer.Histeriacoletiva,pensou,imitaroquetodosestãofazendo.Masadiretoranãoabriuosolhos.— Professora — falou uma voz que Jean identificou como sendo de
Fraser—,professora,estoucommedo...AntesqueJeanpudesseresponder,Evefalou:—Está tudobem,Fraser.Vamos fazernossasprecesnoturnas. Issovai
ajudar.—Nãodeixequeelamepegue...porfavor...—Jamesestavaaosprantos.Jean tentou abrir a boca, pronunciar-se, dizer algo autoritário que
acalmariaasituação,maspercebeuquenãohavianadaadizer.—Vamoslá,todomundo—incitouEve—,todosaomesmotempo...Há
quatro...
“Quemseráopróximoamorrer?Deveservocê!”
—Vamos—continuouEve—Háquatrocantos...Ascriançassejuntaram:—...emminhacama.Quatroanjosemvoltademinhacabeça...
“JennetHumfryeperdeuseubebê...”
—Maisalto!—exclamouEve.Ascriançasentoaramaindamaisaltoocântico:—Umparavigiareumpararezar...
“Nodomingomorto,nasegundaachadoocorpo...”
—Edoisparalevarminhaalma.
“Quemseráopróximoamorrer?Deveservocê!”
Osilênciosefezpresente.Ninguémsoltouasmãosouabriuosolhos.Osúnicossonsqueconseguiamouvireramachuvanotelhadoeoscestosdefogoseacendendodoladodefora.Jean tentou não escutar nada daquilo. Ela se concentrou apenas na
própria respiração. Escuridão e respiração. Isso era tudo. Era isso que aajudariaasuperaressemomento.Escuridãoerespiração.Entãoelaouviupassos.Passoslentosecomedidos.—Nãosolteasmãos,Edward.Eve. Jeanachouqueomeninodevia tersoltadosuamão, tentado fugir.
PelaforçanavozdeEve,elanãopermitiriaqueEdwardfizesseisso.Ospassosestavamseaproximando.Escuridãoerespiração...Escuridãoerespiração...Jeanapertouseusolhos
jáfechadoscomaindamaisforça.—Nãoolhem—mandouEve.—Ninguémabraosolhos...Jean ouviu os passos lentamente cercarem o grupo. Ela queria
desesperadamenteabrirosolhos,verquemestavaali.Provavelmenteeraaquelesargentomal-educadoquehaviavoltado,prontoparadizeralgoquefaria com que eles se sentissem ridículos, que faria com que eles se
sentissemidiotasporfazeremaquilo.—Istoéridículo—declarouJean.—Jean...—AvozdeEvetinhaumtomdeadvertência.Ospassosaindacaminhando,aindacercando.—Não.Sintomuito,masé...— Jean, não faça isso. Por favor, não faça isso...—Agora a vozdeEve
revelavadesespero.Ospassosseinterromperam.—Loucura—comentouJean.Elaabriuosolhos.E lá estava amulher de preto, sua facemorta diante do rosto de Jean,
gritandoparaela.
Pandemônio
Jeancaiuparatrás,empânico,juntandoseusgritosaosdeJennetHumfrye.Enquantocaía,elaacertouEve,que,semequilíbrio,tropeçouemumadascadeirasdemetal,batendocomacabeçanaqueda.Elaficoucaída,imóvel.—Eve!—gritouHarry.Elecorreuatépertodelaetentoudespertá-la.Evepermaneceudeitada,
semreagir,comosolhosfechados.As crianças gritaram e correram, espalhando-se por todo o espaço
disponívelnoambienteparcialmenteescuro.Harry olhou ao redor. Jennet parecia ter desaparecido mais uma vez,
porémaquelefatonãopareciateracalmadoninguém.James se encolheu em posição fetal, com as mãos sobre a cabeça. Ele
chorava,repetindoamesmafrasesemparar.—Porfavor,nãomecastigue...Porfavor,nãomecastigue...HarryviuEdward imóvel, comooolhodeum furacãoenquantoocaos
giravaasuavolta.ElelevouofantochedoMr.Punchaoouvidomaisumavez,assentiucomacabeçaecorreunadireçãodaescada.—Edward!Espere!Omeninooignorou.HarryolhouparaEve.Elarespirava,masestavainconsciente.Nãohavia
nadaquepudessefazerporelanaquelemomento.ElesevirouparaJean.—Jean,cuidedascrianças.Mantenhatodaspróximas.Jeannãoparecia tê-loescutado.Elaestavasentadaemumcanto,olhos
arregaladosefixos.Fitandoovazio.—Jean—chamouHarry,sério.—Ascrianças...Elafezquesimcomacabeça,entorpecida.Harry delicadamente apoiou a cabeça de Eve no chão, levantou-se e
seguiuEdward,subindoaescadaesaindopelanoite.
Asombradeumacriança
Edward corria pela base aérea deserta o mais rápido que suas pernasconseguiamlevá-lo.Osaviõesfalsosseagigantavam,avesderapinapretasenvoltas pelo céu cinza escuro da noite de tempestade pesada. A lonaondulando livremente ao vento e à chuva, sacudindo as molduras demadeiracomoasbatidasdegrandesasasdecouro.Assombrasdeenormesegrotescasgralhasnegrasoseguindoaondequerquefosse.Ao redor, os enormes cestos de fogo se acendiam e ardiam, enviando
grandesexplosõesdeluzecalor;erupçõescurtaseincisivasdeiluminaçãointensa, repentinas contra a escuridão, como rupturas em um sol queexplodia.Otempotodoachuvacaíaemproporçõesbíblicas.
—Edward...Harry abriu a escotilha e saiu do bunker. Ele parou do lado de fora e
olhouaoredor.Nenhumsinaldomenino.Edwardhaviadesaparecidoentreosaviões.Harrycorreu,procurando-o.UmcestodefogoseacendeueHarry,emvezdeprotegerosolhos,usoua
explosãorepentinadeluzparavasculharaárea.Ali,maisadiante,estavaasombradeumacriançaatravésdalonadeum
avião.Vistabrevemente,entãodesaparecida.Harrycorreunadireçãodoavião.Ninguém.Eleolhouasuavolta,tentandoserecuperar,veremquedireçãoEdward
podiaterido.Outraexplosãodeumcestodefogo,entãomaisuma.Harryestava desorientado, confuso. Ele não conseguia ver Edward em lugaralgum,não conseguiavernadapor alguns segundos, anão ser a imagem
residualdasrajadasintensasdançandoemsuasretinas.Harry esperou sua visão voltar ao normal, então vasculhou o campo
novamente.—Edward...Ali. Ele viu novamente o vulto domenino correndo enquanto passava
atrásdeumdosbombardeirosfalsos.Harryfoiatrásdaimagemechegouaoavião,ofegante,comacabeçagirandoporcausadasexplosões.Outro cesto pegou fogo, a faísca repentina iluminando o interior do
bombardeiromais próximo como uma radiografia. E lá estava omenino.Dentro do bombardeiro, Harry viu — por um segundo ou dois — umasombradotamanhodeumacriança,encolhidanonarizdaaeronave.—Edward—gritouHarry—,estátudobem...Soueu,Harry...Vocêestá
emsegurançaagora...Nãohouveresposta.AluztinhadesaparecidoeHarrynãoconseguiaver
ououvirnadanointeriordoavião.Eledeuavoltaatéencontrarapequenaescotilha de manutenção na parte inferior da fuselagem e subiu até ointerior.
Harry piscou. De novo. E de novo. A princípio achou que a chuva haviaembaçado sua visão, caindo forte e rápido demais do lado de fora, masdentro do avião ela vinha das goteiras nas costuras da lona. Sua cabeçaaindagiravaporcausadaproximidadedasexplosões,achuvaagravandoadoraomartelarinsistentementenocascodoaviãocomopregoscontraseucrânio.Estavaescurodoladodedentro,maisescuroqueeleimaginouqueestaria.Olhouparaonarizdaaeronaveondehaviavistoasombradacriançae
seguiulentamentenaqueladireção.—Edward...—Harryfalavasuavemente,paranãoassustaromenino.—
Estátudobem...Vocêestáemsegurançaagora...Chamas se ergueram do lado de fora, projetando sombras contra a
parededelona.Asilhuetadeumacriançasurgiu.Entãooutra.Emaisuma.Então mais, todas aparentemente paradas do lado de fora do avião,esperando.Harrypiscou.Não,pensouele.Éumtruquedeluz.Seusolhosaindanão
estavamacostumadosàsmudançasrepentinasentreclaroeescuro.Eentãoeleouviuacantoria.
“JennetHumfryeperdeuseubebê...”
AmentedeHarryseperdeu.—Nãoescute,Edward.Nãoescute...Mais silhuetas apareceram do outro lado do avião, iluminadas por
clarões.Acantoriaficoumaisalta.
“Nodomingomorto,nasegundaachadoocorpo...”
—Nãodêouvidosàsvozes...—gritouHarry.—Nãoseentregueaelas...Asvozesficaramaindamaisaltas.
“Quemseráopróximoamorrer?Deveservocê!”
Então,silêncio.Assombrasdesapareceram.Acantoriaparou.TudooqueHarry ouvia era seu coração martelando no peito, o sangue sendobombeandoemseusouvidos.Elesuspiroualiviado.—Estátudobem,Edward.Elesforamembora.Estamosseguros.Agora,
medêsuamão...Harryestendeuobraço,tocouoombrodogaroto,tentougirá-lo.Masnãoeraumgaroto.Ocadáver,encharcado,inchadoedecomposto,olhouparaHarrycomseu
únicoolhorestante.—Socorro,capitão,socorro...
Ocestodefogo
Harrygritoue seafastoudaaparição comumpulo, caindode costas.Elenãoconseguiarespirar;seupeitopareciatersidocomprimidoporumatiradeaço.O cadáver havia desaparecido. Em seu lugar estavam apenas um
amontoadodelonasbrancaselatasdetintaparcialmentecheias.Aindatremendo,Harryolhouaoredor.Estavasozinho.Elesaiudoaviãoomaisrápidoquepôde.
Edwardaindacorria.Elejánãosabiamaisparaondeoudeque,tudooquesabiaeraquedeviacontinuarcorrendo.A grade do perímetro o impediu de chegar muito longe. Ele havia
colididocomelaacertaalturaeviradonadireçãooposta.Arotaolevaraaomorroqueele agora subia correndo.Edwardesperavaqueexistisseumasaídanooutrolado.Um cesto de fogo se acendeu. Ele se viu exposto no alto do morro,
contornadopelocéunoturno.—Edward!Harrycorriaemsuadireção.Não,pensouele.Tenhoquefugir,tenhoquecontinuarcorrendo...Edward continuou correndo, atravessouo cumedomorro edesceudo
outrolado.ElesevirouparaverseHarryestavaseaproximando.Então pisou em falso na grama molhada, escorregou e saiu rolando
ladeiraabaixo.
Edward não sabia onde estava. Ele não conseguia ver nada. Seus óculoshaviamsumido,derrubadosnaqueda.Ele tateou a sua volta e semicerrou os olhos. Estava deitado em uma
camademadeiraesentiaocheirodecombustível.Elesesentou,sentiuapalhanaspontasdosdedos.O garoto conseguiu com dificuldade distinguir os contornos domorro
acimadele,erapidamentedescobriuondeestava.Elehaviacaídoemumcestodefogo.Edwardseajoelhou, tentandodesesperadamente sairdali antesquese
acendesse.
Harryoviucair,pousardentrodocesto.—Edward...Ele correu ainda mais rápido, ignorando o cansaço em seu corpo,
obrigando-seacontinuar.EletinhadealcançarEdwardantesque...Harryfoijogadoparatrásquandoocestodefogoexplodiu.
Issoéculpasua...
Eveabriuosolhos.Imagensabstrataseborradassurgiramecomeçaramase transformar em algo sólido, corpóreo e nitidamente definido. Sonsabafadosedistorcidossetornaramcompreensíveiseaudíveis.Elaviuumrostoaencarando,comumaexpressãopreocupada.—Harry?Ela se sentou e olhou ao redor, sua cabeça latejando. Distinguiu o
concreto e ometal corrugado do bunker iluminados por uma luz fraca eouviuaincessantebatucadadachuva.Tudopareciacinzaedesbotado.Outalvezessafosseapenasaformacomoelasesentia.Eve viu as crianças e Jean reunidas. Todas pareciam aterrorizados. Da
formacomoamulhermaisvelhaseagarravaaelas,eradifícilsaberquemconfortavaquem.Evepassouamãonacabeça.Eladoía.—Quantotempoeufiquei...?—Umasduashoras—respondeuHarry.Eve olhou ao redor mais uma vez, preocupada, ignorando a dor na
cabeçadestavez.—OndeestáEdward?Harry segurava algo. Ele abriu os dedos e deixou Eve observar o que
estavaali.Napalmadesuamão,chamuscadosecontorcidos,comaslentesestilhaçadas,estavamosóculosdeEdward.Eve balançou a cabeça, o que fez aumentar a dor, mas ela não se
importava.—Não...Não,não,não...—Elecorreu.Eufuiatrásdele.Ele...caiuemumcestodefogo,eu...—A
voz de Harry estava trêmula.— Não consegui alcançá-lo antes que... Eu
tentei...Sintomuito,sintomuito,muitomesmo...Evenãosabiaoquedizer,oque fazer.Raivae tristezaseacumulavam
dentrodelaebrigavampelaprimazia.Seurostosecontorceueseusdedossefecharamempunhoscerrados.Elaprecisavadeumaválvuladeescape.EsevirouparaJean.—Vocêsaiudocírculo—declarouela.JeanapenasolhouparaEve,boquiaberta.—Eu...Eveapontouumdedoparaela.—Issoéculpasua...Jeanabaixouacabeçaecomeçouachorar.—Sintomuito...—Eve.—HarrysegurouosombrosdeEve.—Parecomisso.Sim,tenho
certezadequevocêqueracharalguémparacolocaraculpa.Seforocaso,culpeJennet.Issotudonãoéculpadeninguémalémdela.OsombrosdeEvecaírameaforçasumiudeseucorpo.Osúnicossonsno
ambienteeramachuvaeossoluçosdeJean.Eve franziu a testa quando um pensamento repentino passou por sua
cabeça.—Issonãofazsentido.ElasesoltoudasmãosdeHarry, caminhouatéospoucospertencesde
Edwardecomeçouainvestigá-los.—Oquevocêestáfazendo,Eve?—perguntouHarry.ElareviravaabolsadeEdward.—Odesenhodele...Elenãoteria...Aquiestá.Eve o pegou e olhou para o papel. Ele havia mudado. O menino e a
mulher estavamagoraparadosdiantedeumacasa.As roupasdamulheriamatéochãoeestavamtodaspintadascomlápispreto.Umvéucobriaseurosto. Omenino segurava algo. O boneco doMr. Punch. Eve sorriu paraHarry,comumaexpressãoselvagemetriunfantenosolhos.—Edwardaindaestávivo—declarouela.—Eve—falouHarry,deformabondosa—,vocêestáemchoque.—Não—retrucouela,suavozcalmaebaixa.—Não,nãoestou.Vocêviu
ocorpo?—Eleestavalá.Euovicair,eu...—Vocêviuocorpo?Harryfezumgestodesamparado.—Nãohaviamaisnadaparaver...Eles pararam de falar quando ouviram o som de um veículo que se
aproximava.Eleencostoudoladodeforadobunker.—Elaolevouparaacasa—falouEve.ElaergueuodesenhodeEdwardeestavaprontaparaexplicarmelhor,
quandoaescotilhafoiabertaeJimRhodesentrou.—CapitãoBurstow—disseele,assimqueacaboudedesceraescada—,
porquevocêtrouxetodasessascriançasparacá?Eve não tinha tempo ou energia para desperdiçar discutindo com Jim
Rhodes.SeuúnicopensamentoeravoltaratéacasaesalvarEdward.—Elasnãopodiammais ficarnacasa—respondeuHarry.—Nãoera
seguro.—Seguro?Oquevocêquerdizer?—ElesevirouparaencararEve.—
Issofoiideiasua,Srta.Parkins?Algumabesteirasua?MasfoiJeanquemrespondeusuapergunta.Elaselevantouecaminhou
em sua direção. Lágrimas escorriam por seu rosto, seu cabelo estavadesgrenhadoe sua roupa, amarrotada.Nãohaviaquasenenhum traçodamulher meticulosa de antes, que tinha crença absoluta em sua própriaautoridade.Emvezdissohaviamágoa,perdaeraiva.—Trêscrianças,Dr.Rhodes.Trêscrianças.Veja.Vejaosenhormesmo.
Elasseforam.Mortas.Mortas,porcausadaquelacasa,doqueestá...doqueestánaquelacasa...JimRhodesapenasolhouparaela.— Eu avisei— continuou Jean.— Eu avisei que aquele lugar não era
seguro,masosenhormeescutou?Ah,não.Osenhornosdeixoulá.Eagoraisso.Isso...—Aslágrimaspingavamdesuasbochechasagora.—Porquê?Porqueosenhorfariaisso?Porque...?Elacomeçouasoluçarmaisumavez,suasmãoscobrindoorosto.— Jean...—Harry passou amão de forma protetora em volta de seus
ombros.JimRhodesapenasolhouparaela.—Eufiz...Eufizoqueacheique...NinguémnotouEvesubiraescadaesairdobunker.
Devoltaàvelhacasa
Eve saiu da escotilha e correu pelo asfalto na direção do jipe. Ela ouviuHarry gritar seu nome. Não havia tempo para esperá-lo, só conseguiapensaremumacoisa.VoltaracasaesalvarEdward.Elasaiucomocarrodabaseaérea,a imagemdovultoabandonadode
Harrydiminuindonoretrovisor lateral,esentiuumapontadadeemoção.Evenãogostavade se separardele, oude ficar semele.HaviapassadoagostardeHarry. Ela esperavaque, quando isso tudo acabasse, pudessemcontinuarjuntos.Quandoissotudoacabasse.Seissoumdiaacabasse.Eladirigianoventoenachuva,oslimpadoresincapazesdedarcontade
tudo o que a tempestade lançava no para-brisa, e tentava se acalmar,pensardeformalógica,racional.Elatinhadeserfortequandochegassedevoltaacasa.Corajosa.Nãohaviaespaçoparaemoções,paraconfusãoemsuamente.Edwardestava lá,Eve tinha certezadisso.E Jennetnãopodialevá-lo.
*
ElasaiudaterrafirmeecruzouapassagemdasNoveVidas,abrumavindado mar, envolvendo o jipe enquanto ele avançava. Ondas batiam naslateraisdaestrada,quebravamsobreapassagem.Amarésubia.Evesentiuque o mundo todo estava se afogando. Que tudo conspirava contra ela,
tentandoimpedi-ladechegaràilhadoBrejodaEnguia.MasaindaassimEvecontinuouadirigir.
ACasadoBrejodaEnguiapareciaaindamaisdesoladoraearruinadaquequando Eve a vira pela primeira vez. As trepadeiras e as ervas daninhasretornaram; invadindo os jardins mais uma vez no pequeno espaço detempoqueelahaviaficadoafastada,comosenuncativessemsidopodadas.AcasaeoterrenovoltavamasercomoJennetqueria,pensouela.Eve estacionou o jipe antes dos portões, saiu do carro e os empurrou.
Erampesados,enferrujadosevelhos.Fechadosdesdeaúltimavezqueelatinhapassadoporali.Elesofereceramresistência,abrindoapenascomumrangidodemetalcorroídosobremaismetaleapenasdepoisdeEvefazermuitaforça,parecendorelutantesemdeixá-laentrar.Após os portões, a casa, agredida pelo vento e pela chuva que tanto a
castigavam,parecialutarparasemanterdepé,paranãoserengolidapelosolooulevadapelaáguaqueacercava.Nãohavialuzesnasjanelas.Elapareciavazia.MasEvesabiaquenãopodiaconfiarnasaparências.Respirou fundo uma vez, então outra, tentando acalmar o coração que
batiaagitado,Evecaminhounadireçãodaporta.
Acasadoente
Eve empurrou a velha porta enorme. A casa estava escura a não ser porfeixesestreitosde luarpenetrandopeloscantosdascortinaspesadas.Elaficou imóvel e escutou. O único som que ouvia era a água da chuvapingandodasgoteiraspelacasa.Nadamais.Ninguémmais.—Edward?Nenhumaresposta.Elatentouointerruptordeluz,temendoqueaágua
pudessecausarumcurto-circuito.Aslâmpadasseacenderamlentamenteedeformarelutante.Ou,melhor,acenderam-separcialmente;elassoltavamfaíscas e zumbiam, iluminando de maneira instável, nunca se tornandototalmentebrilhantes.As luzes relutantes iluminavam parcamente o hall de entrada. Eve se
assustou com o que viu. A escuridão havia se espalhado. A casa inteiraestava úmida e decrépita,mofo e podridão ocupando a construção comoumadoençadegenerativa,cancerosa.Evenãoconseguiavê-la,maseracapazdesenti-la.Jennet.Portodolado.
A podridão, a degeneração, era apenas a manifestação externa, umademonstração de que seu controle sobre a casa agora era praticamentetotal.Eveentrounodormitóriodascrianças.Ascamasestavamcomoelasas
deixaram,desarrumadas.Anão seruma: ade Joyce. Seu corpinhoestavadeitadoali,cobertoporumlençol,suamáscaradegásnochãoondeHarryahaviaarremessado.Elesnãodecidiramoquefazercomocorpo,entãoodeixaramparalidarcomelenodiaseguinte.Eveolhouparaaquiloesentiuatristezaeodesamparotomaremcontadela.Não.Elanãoseentregaria.OcorpodeJoyceeraumalembrançadoque
tinha acontecido. Era também uma advertência para não deixar aquilo
continuar.Jennetnãopodiavencer.Evenãoadeixariavencer.Elanão conseguiamais olhar amenininhamorta e se virou, saindodo
quarto.Devoltaaohalldeentrada,Evegritounovamente:—Edward?Silêncio,anãoserpelachuva.A dúvida cresceu dentro dela. Talvez estivesse errada. Talvez Edward
tivessemorridonabaseaéreaeissofosseapenasum...Cric...crac...Seuestômagoserevirou;seucoraçãodisparou.Osomveionovamente.Cric...crac...Cric...crac...Omesmobarulhoritmadoqueelatinhaouvidoemsuaprimeiranoitena
casa.Aquelequeahavia tiradoda camaea levadoaoporão.Aquelequehaviacomeçadotudoisto.Cric...crac...Cric...crac...Ele não vinha do porão desta vez. Eve escutou novamente, com mais
atenção.Vinhadoandardecima.Evesentiuseucoraçãopalpitar.Elaolhouaoredoreescutoumaisuma
vez.Cric...crac...Cric...crac...Definitivamente vinha de cima. E, pensou Eve aterrorizada, também
conseguiria adivinhar de que quarto. Esperou alguns segundos e serecompôs.Entãocomeçouasubiraescada.Desciaáguapelasparedes,formandopoçasnaescada.Amadeiraestava
emumestado lastimável,podreeencharcada.Quandoerapisada,aáguaesguichava dos dois lados. Eve sentiu as tábuas se contorcerem eempenarem debaixo de seus pés quando apoiava o peso sobre elas. AstábuaspareciamguinchardedoraotoquedeEve.Elacontinuousubindo,usandooisqueirodeHarryparailuminarocaminho.Cric...crac...Cric...crac...Elachegouaotopoecomeçouapercorrerocorredor.Asluzesestavam
aindamais fracas ali, projetando apenas um fantasma de iluminação nasparedes, fazendo as sombras dançarem com os horrores imaginados. Osriachos mal-iluminados da água de chuva eram como veias e artériasdescendopelasparedesapodrecidas.Cric...crac...Cric...crac...Osomchegavaaseuvolumemáximoatrásdaportadoquartodecriança.
Eve esticou o isqueiro a sua frente, andando na direção do barulho,temendoquealgosurgissedassombrasantesqueelaoalcançasse.
Eve parou diante da porta. Estava fechada, porém o barulhodefinitivamentevinhadointeriordocômodo.Cric...crac...Cric...crac...Elaestendeuamãoatéamaçanetaeagirou.Aportaseabriu.Eveparoudebaixodoportal,semousarentrar,semousarolharparao
que estava no interior, mas não podia fugir. Ela havia chegado longedemais,haviaperdidocoisasdemais.Aquilotinhadeacabar.Agora.Elafechouosolhos.Cric...crac...Cric...crac...Evetentouignoraravozemsuacabeçaquegritavaparaelafugir,para
darmeia-volta,otremoremseusbraçosepernas,asbatidasfortesdeseucoração.Elarespiroufundo.Emaisumavez.Entãoentrounoquarto.
Oquartodecriançarecuperado
Oquartodecriançaestavatransformado.O carpete era espesso e felpudo; as cortinas, pesadas e bordadas. Um
grandeguarda-roupademadeiradecoradadominavaumcantodoquarto.Lamparinasaóleonasparedesrevestidascompapeldistribuíamumbrilhocaloroso e reconfortante. Encostada a uma das paredes havia uma camapequena e brinquedos estavam espalhados pelo chão. Macacos quetocavam címbalos, soldados de uniformes vermelhos, um teatro defantoches como telhado giratório, pintadode vermelho e branco, deMr.PuncheJudy.Nãohaviaumidadeali,nadaemdecomposição.Edward estava sentado no meio do quarto, brincando atentamente.
EstavadecostasparaEveenãosevirouquandoelaentrou.Aprofessoranotouqueelevestia roupasdiferentes, comoomeninoda fotografia.Evenotouqualeraofocodesuaatenção.Mr.Punch.Nãomaistãodeterioradoou decrépito como o resto da casa, o boneco parecia novo em folha, seusorrisopintadoperversamentetriunfante.Cric...crac...Cric...crac...Acadeiradebalançoestavapertodele,movendo-separaafrenteepara
trás.EraamesmaqueEvetinhavistonoporão,aquelaquesuspeitoutercausadoobarulhonaprimeiranoitequepassounacasa.Comooquarto,elatambém havia sido restaurada. Não havia ninguém sentado nela, mas acadeiranãoparoudebalançar.EvecolocouoisqueirodeHarrynobolsoelentamenteseaproximoude
Edward.—Edward...O menino não se moveu. Não se virou, não ergueu os olhos. Não deu
nenhumindíciodequeahaviaouvido,ficouapenassentadoali,brincandocomaquelefantochedemadeiracomosorrisomalicioso.—Edward...—repetiuela,maisalto.Eveesticouamãoetocouoombrodomenino.Edwardsevirourapidamente,comumaexpressãofuriosanosolhos.Ele
agolpeoucomoMr.Punch,atingindoEvenorosto.Eve cambaleou para trás, com a mão na bochecha, sentindo o sangue
escorrer.Edwardtinhavoltadoaseubrinquedo,viradodecostasmaisumavez.Sentadocalmamentecomosenadativesseacontecido.Cric...crac...Cric...crac...Eve pensou em dar meia-volta e sair do quarto, da casa. Mas ela se
obrigouaficar.Não.ElanãodeixariaJennetvencer.—Edward.Elavoltouaseaproximardele.ParaimpedirqueEdwardaatacassemais
uma vez, Eve prendeu os braços domenino junto a seu corpo. Ele lutou,tentandosesoltar,contorcendo-separaselivrardaprofessora,maselanãoosoltou.EdwardaindaseguravaoMr.Punch.EEveseguravaEdward.—Edward...precisamosirembora...Ela se moveu na direção da porta, o menino, que esperneava, preso
firmementeemseusbraços.QuandoEvechegouàporta,acadeiradebalançoparoudesemover.Umcalafriopercorreuseucorpo.Adrenalinafoibombeadaintensamente
em suas veias. Agarrando o menino desesperado o mais forte queconseguiu,conseguiupassarpelaportapoucoantesdeelabater.Quandosaiudoquarto,Evenãoolhouparatrás.Nãoousouverquemou
o que a seguia. Ela correu para a escada, Edward esperneando em seusbraços, tentando desesperadamente se livrar de seu domínio e voltar aoquarto. Sua expressão estava selvagem, lábios abertos mostrando osdentes.Enquantoelacorria,Edwardarranhavaseurosto,dedosrígidosecurvadoscomogarras, rasgandoapeledeEvee tirandosangue.Sua faceardia de dor, mas ela se recusou a desacelerar ou soltar o menino. Elecomeçou a bater nela com o boneco do Mr. Punch. Eve tentou ignoraraquilo,concentrando-seemtiraromeninodacasa.O mofo preto se espalhou a partir da porta do quarto de criança, as
paredes rachando com seu toque, perseguindo os dois pelo corredor,tentandoapanhá-los.AescuridãorastejantealcançouEve.Elaolhouderelanceparaoladoea
viu.Entãoseforçouacorrermaisdepressa.Eve chegou à escada e a desceu correndo o mais rápido que pôde,
desesperadaparanãoperderoequilíbrioousoltarEdward.Um guincho agudo reverberou nas paredes, como uma tempestade de
fúria.Eveoignorouecontinuoucorrendo.Omofoseespalhavarápidoagora,afundandonasparedesnocaminho,
esfarelando-as, fazendo-as ruir. Parte da parede ao lado de Eve tombou,cobrindo-a de gesso. Ela agarrou o corrimão para se equilibrar,engasgando,tirandopoeiraúmidadabocaedosolhos.Enquantofaziaisso,quasesoltouEdward,masconseguiutransferiropesodeleparacontinuarseguindoadiante.Aportaestavabemdiantedela.Eveseanimouaopensarnaquilo.Tudoo
queprecisavafazererachegaraopédaescada,atravessarohalldeentradaesair.Umaquestãodesegundos.Sóisso.Eve não notou a podridão negra passar por ela e deslizar sobre os
degrausrestantes,tomandoamadeiraquejáestavaapodrecida.Masnotouquandoosmesmosdegrauscederam.Ela entendeu o que aconteceu, mas corria rápido demais. Não
conseguiriaparar.Evetropeçouecaiunochão.Nestemomento,suasmãossoltaramEdward,eomeninoconseguiuescapar.—Não...Elesaiuemdisparadaparalongedaprofessora,nadireçãodassombras.
Eveselevantounovamente,determinadaanãodeixá-loescapar.Elaoviucorrerparaocantodohalldeentrada,aescuridãoprofundaprontaparaenvolvê-lo, pronta para engolir o menino. Ela se jogou sobre Edward,braçosesticados,umaúltimaedesesperadacartada.Seelefugissedesuasmãos,elaoperderiaparasempre.Suas mãos o tocaram. Ele parou de se mover. O impulso de Eve a
conduziu.Evecaiuporcimadomenino.Elaohaviaagarrado.Entãoochãocedeueosdoiscaíramnaescuridão.
Demôniosdamente
Harryabaixouacabeça,concentradonovolante,naestradaasuafrenteenachuvaalém.Emnadamais.Eletentouignoraramarésubindoefazendoasondasbateremcontraas
rodas do ônibus enquanto seguia pela passagem. E bloqueou os ouvidospara os gritos dos afogados que ele tinha certeza de que ouvia sendocarregadospelovento.QuandoEvesaiuemseujipe,elenãopensouduasvezes.OônibusdeJim
RhodesestavavazioeHarrypulouparadentroepartiuimediatamente.ElesabiaaondeEveestavaindo.Apenasesperavachegaratempodeajudá-la.As ondas batiammais forte contra o ônibus, crescendo em tamanho e
ferocidade. Os gritos dos homens que se afogavam se tornaram maisintensos.—Não...Não...Ele tentou seu truquehabitual, baternovolante três vezes.Aquilonão
mudounada.Comsuorpingandodesuatestaeasmãostremendo,Harrycontinuoudirigindo.Determinadoanãodesistir,nãodecepcionarEve.Eentãoouviuavoz.—Socorro,capitão...Socorro...—Não,não,não,não...Harrydirigiuaindamaisrápido.—Socorro...Harrypercebeuquenãoestavasozinho.Elearriscouumaespiadela.Lá
estava o tripulante afogado que havia visto no avião falso. Seu uniformeencharcadoeapodrecido,seurostocarcomido,umolhofaltando,esticandoamãoemsuadireção.—Socorro...
Harry,comocoraçãodisparando,manteveosolhosnaestradaadiante.Ouviu um movimento atrás dele, no corredor do ônibus. Alguém
mudando de assento, chegando para a frente. Então outro. Lentamente,arrastando-se. Rastejando; pesados, encharcados. Harry olhou peloretrovisor interno e viu sombras, pessoas comuns, desafortunadas,movendo-se.—Socorro...—Vocês não são reais!— gritou Harry.— Todos vocês... Nenhum de
vocês...—Vocênosmatou...—Não,nãomatei!Nãomatei...—retrucouHarry.Oônibusdeuumaguinadaparaaesquerda,perigosamentepróximoda
beiradaágua.Harryconseguiutrazê-lodevoltaàestradanahoraexata.—Não—retrucouele—,eunãoosmatei.Fomosatingidos...Eutentei
salvá-los...Silêncionoônibus.Harrycontinuoufalandoemanteveosolhosnaestrada.—Vocêsnãosãoreais.Sãofantasmas.Euoscarregoaondequerqueeu
vá.Masvocêsnãosãoreais.Sãoapenasminhaculpa.Ésóisso.Porquenãoconseguisalvá-los.Eutenteie...enãoconsegui.Nada.— E eu... sinto muito. Sempre vou sentir muito. Fiz o que pude. E
fracassei. E sempre carregarei isso comigo. Sempre vou carregar vocêscomigo.Harry arriscou olhar novamente. Os fantasmas desapareceram. Ele
estavasozinho.Tinha sido a primeira vez que havia reconhecido como se sentia em
relaçãoaosacontecimentoseasuaincapacidadedesalvaratripulação.Emvozalta.Parasimesmo.Harrysentiuacalmadominá-lo.Umaforçacorreuporseucorpo.Eleestavaefetivamentesozinho.Pelaprimeiravezemmuitotempo,Harrynãotinhaninguémaseulado.Eleabaixouacabeça,concentradomaisumaveznaestradaadianteena
chuvaalém.
Jennettriunfante
A água fedia, tinha gosto de estagnação e podridão, como peixesmortosrançosos e coisas do tipo. Aquilo enchia as narinas e a boca de Eve,fazendo-atossiresentirânsiadevômito.Precisavaselivrardaquelaáguaoquantoantes.Pisounochão.Eve e Edward estavam no porão. As estantes de madeira haviam
desabadoe sequebradoquandoo chão cedeu.Eles caíramsobreelas, ascaixas derrubadas, o conteúdo delas boiando. A água estava alta, altademais, pensou Eve. Muito mais alta do que antes, na altura da cintura.Canossobresuascabeçasseromperam,borrifandoseu líquidosalobre.Aáguajorravaatravésdostijolosvazados.Asparedesestavamesfarelando,aresistêncianaspedrasdiminuindo,enquantoaáguadoexteriorpenetrava,vindomaisdepressa,ameaçandodestruirasfundaçõesdacasa.As lâmpadas titubeantes providenciavam uma iluminação fraca e
intermitente.Eveestavacompletamentedolorida,masnãotinhatempoparaverificar
seestavabem.PrecisavaencontrarEdward.Elaoviu,paradono topodaescada,ofantocheagarradojuntoaopeito.Parada a seu lado estava Jennet Humfrye. A pose dos dois era
exatamente amesma do desenho de Edward, e da fotografia; as paredesenegreciameruíamemvoltadeles.—Edward—gritouela,maisaltoqueobarulhodaágua—,Edward...
vocêestábem?Omeninonãorespondeu.Elatentousemovernadireçãodogaroto,masdescobriuquesuaspernas
estavampresas.Eveolhouparabaixo.Fitasprateadassemoviamemvoltade seus tornozelos, puxando-a para baixo, impedindo seu movimento.
Beliscandoemordendosuaspernas.Correntesvivasecontorcidas.Enguias.Eveengoliuoímpetodegritar.—Edward...Omeninoapenasolhouparaela.—Edward,vocêtemdemeajudar...Edwardcontinuouolhando.Evepercebeusuaexpressão.Eracomoseele
estivesseemtranse.Jennetinclinouacabeça,eeleolhouparaamulher,suacabeça virada para um lado, como se estivesse escutando, recebendoinstruções.Entãoeleassentiu.—Edward,não...Edwardcomeçouadescerosdegraus.Lentamente,ignorandoaáguaque
subiaemumritmoconstante.—Não— gritou Eve, tentando desesperadamente soltar as pernas.—
Não...Vocênãopodeficarcomele...Não...EdwardapertavaoMr.Punchcomforçacontraopeitoenquantodescia
atéaágua.Ele foiemdireçãoaocentrodoporão, foradoalcancedeEve.Então parou de semover. Eve percebeu o que ele estava fazendo, o queJennetdesejavaqueelefizesse.QueriaqueEdwardseafogasse.Oníveldaáguacontinuavasubindo.Elaondulavaerespingava,cobrindo
abocadeEdward.Elenão feznenhuma tentativadeseafastarounadar,apenasolhavadiretamenteparaafrente.—Acorde...Edward,porfavor,acorde...Eve lutou para se livrar das correntes de enguias, mas elas apenas
apertavam ainda mais suas pernas. Ela abriu a boca o máximo queconseguiueusouavozmaisaltaquefoicapazdeemitir.—Elenãoéseu...—gritouelaparaovultonoaltodaescada.Sua única resposta foi um estrondo e um crepitar ensurdecedores
enquanto a casa toda começava a tremer, a podridão se espalhando portodolado.—Deixe-oempaz...EveolhounadireçãodeEdwardmaisumavez.Aáguaquasecobriaseu
narizagora.Seusolhosaindaestavamabertos.Eveachouque tinhavistodúvida crescendodentrodele, no fundodaqueles olhos.Não sabia se eraapenassuaimaginação,ailuminaçãobruxuleanteafazendovercoisasquenãoestavamali,maselatinhadeacreditar,tinhadeseagarraràquilo.Eleestavapresoelutavaparasair.—Edward—gritou—,vocêtemdelutarcontraela,vocêtemdelutar...
Nãoseentregueaela...
AáguacobriuonarizdeEdward.Eleparoudetentarrespirar.—Edward...—Evepensavadeformafrenética.—Você...Vocêcombate
sonhos ruins com pensamentos bons... lembra? — Nenhuma resposta.Edward fechou os olhos. A voz de Eve ficou aindamais alta.— Edward,vocêcombatesonhosruinscombonspensamentos.Suamãelhediziaisso.Vocêselembra?Suamãe...Edward abriu os olhos e fitou o topo da escada. Jennet havia
desaparecido.Emseu lugarestavasuamãe,gloriosaemseubomevelhocasaco preto, parada exatamente como ele a havia visto pela última vez,juntoàportadesuacasa,chamandoseunome,estendendoosbraçosemsuadireção,umaimagemcintilanteeimpossível.A parede ruía a sua volta, exatamente como havia acontecido na
explosão.Eeladesapareceu.EmseulugarsurgiuJennet.Edwardfechouosolhosmaisumavezedeixouaáguacobrirsuacabeça.—Não...Não...AvozdeEveeraalgocontido,derrotado.Nãotinhamais forçasdentro
delaparalutar.Haviafracassado.Edwardtinhadesaparecido.Jennethaviatriunfado.
Ocorofantasma
EveolhouparaopontoondeacabeçadeEdwardtinhadesaparecido.Nãohavia nada que evidenciasse suamorte, nemmesmo bolhas subindo. Elaapenas precisava aceitar que ele havia se afogado. A professora sentiaaqueladorcomoumafacanocoração.Então,enquantoobservava,aáguacomeçouaseagitareaborbulhar,e
Edward apareceu mais uma vez. O menino jogou a cabeça para trás,lutando para respirar. Seus braços se levantaram e ele arremessou obonecodoMr.Punchcomtodaasuaforçacontraosdegraus.Umgritoaterrorizanteecooupeloporão.UmaempolgaçãoesperançosacorreupelocorpodeEve.—Vocêperdeu—gritouelaparaasparedes.—Elearejeitou...Enormes rachadurasabriramasparedes, comorelâmpagos subindoao
teto.AiradeJennetestavaderrubandoacasa.AsenguiasafrouxaramodomíniosobreaspernasdeEveeelaconseguiu
se desvencilhar delas. A água chegava a seu pescoço agora e ela tinhadificuldadesparasemover,oranadando,oracaminhando,nadireçãoondeEdwardlutavaparamanteracabeçaforad’água.Omeninoesticouasmãos,seurostomostrandoalívioefelicidadeporvê-la.Evesentiualívio.Elaoalcançou.—Vocêestáemsegurançaagora...Pegueivocê...Enquantoelafalava,mãossurgiramdebaixod’água.Pequenas,cinzentas,
macilentas.Mãosdecriança,tentandoagarraralgo.ElasseguraramEdwardecomeçaramapuxá-loparabaixo.—Não...Eve tentoupuxaromeninodevolta, levá-loatéospoucosdegrausque
ainda estavam acima do nível da água, mas outras mãos apareceram,
puxando-oeoapertando.ElasestavamsobreEvetambém,agarrandosuasroupas,suaspernas,puxando-aparabaixocomele.—Deixe-nosir...Erammuitasparalutar.Asmãospuxaramosdoisparadebaixod’água.Aoafundar,Eveabriuosolhos.Através da água turva, viu que o teto do porão havia cedido, que as
paredescontinuavamoprocesso.Oexteriorestavaentrandoali.Por todoladoemvoltadelaedeEdwardhaviapequenosvultosquesecontorciam.AsvítimasdeJennet.Ocorofantasma.Aindamarcadospelasformascomomorreram, suas queimaduras, suas mutilações e seus envenenamentos.Nãomaishumanos, apenasespectrosarruinados.Olhosdepeixemortoepele escamosa de peixe, mandíbulas se distendendo, mostrando bocasrepletasdedentesafiadosepontudos,mãosemformadegarracortantescomobarbatanas.Agarrando Eve e Edward, puxando os dois para as profundezas
repentinas.Eve, ficando rapidamente sem ar, lutou contra elas o máximo que foi
capaz,afastandoosdedosdeseucorpo,fugindodaqueleenlacenauseante.Edwardfaziaomesmo,freneticamentesedebatendoparasesoltar.EveolhouparacimaeviuJennetparadasobreaágua,devoltaàescada
do porão, malignamente exultante. Eve redobrou seus esforços paraescapar,porémasmãoserammuitasemuitofortes.Afundando-seemsuasroupas,suapele.Puxandoseucorpoparabaixodeformaimplacável.Edward parou de se esforçar e se agarrou com força a Eve. Ela,
percebendoafutilidadedecontinuarlutando,aceitouoqueestavaprestesaacontecereoabraçouforte.Evesentiaocorpinhodomeninotremendo.Eles ficariam juntos durante seus últimos segundos de vida e então se
separariam.Evefechouosolhos.
Aqueda
Harry estacionou o ônibus, o vento e a chuva o encharcando quaseinstantaneamente, e entrou correndo na casa. Ela ruía, desmoronando asuavolta.Harryolhouaoredoraohalldeentradaeviuoburaconochão,comaáguasubindoatéquasechegarnele.Acasaapodreciadedentroparafora.—Eve...Nenhumaresposta.Eleolhounovamenteparaoburaconochão.Aágua
estavaquasechegandoaotetodoporão.EntãoHarryouviugritosvindoládebaixo.Umavozfeminina.Eve.Eletirouseusobretudo,prontoparamergulharimediatamente.Masalgo
oimpediu.Oburacoerapequeno;haviamuitosfatoresdesconhecidos.Emvezdisso,Harrycorreuatéacozinhaeabriuaportaparaoporão.Jennetestavalá.ElavirouseusolhosameaçadoresemalevolentesparaHarry.Esemoveu
emsuadireção.—Nãofaçaisso.Elaparou.—Eunão tenhomedodevocê— falouHarry, calmoeconfiantecomo
não se sentia havia muito tempo.— Você não temmais nenhum podersobremim.Jennetoencarou.—Vocêpoderia ter feitomaisporNathaniel.Nãoéapenasa fúriapelo
quefoifeitoavocê.Ésuaculpapornãoterfeitoosuficienteporele.AlgobrilhounofundodosolhospretoscomoobsidianadeJennet.—Agorasaiadafrente.Harryaempurroucomodedo.Elaseencolheueseafastou.
Os degraus estavamquase submersos pela água que subia. Ele viu umcontorno fraco de dois vultos sendo carregados, indo para o fundo, emergulhounadireçãodeles.Eve olhou para cima e o viu. Sua presença renovou sua energia e ela
começouaempurrarasgarrascomvigorredobrado.Harrynadounadireçãodosdois,segurandoEdward.Omeninoresistiua
princípio,acreditandoseroutrodosataquesdeJennet,noentanto,comoencorajamentodeEve,permitiuqueHarryolevasse.QuandoHarrysegurouEdward,ocorofantasmaafrouxouseudomínio,
fugindodelecommedo.HarrysegurouamãodeEveeapuxou.Ocoraçãoda professora estava acelerado, adrenalina e esperança jorrando pordentroenquantoostrêssemoviamemdireçãoàsuperfície.EntãoumamisteriosamãoseesticouesegurouocolardeEve,puxando
todooseucorpodevoltamaisumavez,arrastandoamoçaparabaixo.ElasoltouHarrye levouamãoàgarganta, lutandocontraamãoquea
prendia, tentando não sufocar. Neste momento, outras mãos surgiram,puxando-aparabaixo.O colar se rompeu. O pingente de querubim afundou lentamente, indo
paralongedela.Eve fez menção de mergulhar atrás dele, porém Harry a segurou e a
puxoudevoltaparaasuperfície.Deixequeelesevá,pensouela.Continueemfrente.Eleschegaramàsuperfícieaomesmotempo,ofegantes.—Vamos—gritouHarry,nadandonadireçãodaescada.Comumgemido,o tetosobreaescadadesmoronou,bloqueandoarota
defuga.—Jennet...—falouEve,encolhendo-separaevitaraspedrasquecaíam.
Elaolhouaoredor.—Poraqui...Evecomeçouanadarnadireçãodaoutrapontadoporão,atéoburaco
porondeelaeEdwardcaíram.Harryaseguiu,comEdwardemsuascostas.A água havia quase atingido o teto do porão quando Harry levantouEdwardeoajudouapassarpelaaberturasobreeles.Assimqueomeninosaiu,elesevirouparaEve.—Suavez—avisouHarry,ajudando-aasubir.Eveergueuseucorpoatéochãodohalldeentrada,livredaágua,ainda
respirando com dificuldade. A seu redor, a casa tremia e balançava.Escombrosdemadeiraepedraestavamespalhadospelolocal,eelatevedesaltarparanãoseratingidaquandooutravigadotetocaiuaseulado.—Rápido— falou ela, estendendo amão para ajudar Harry a sair da
água.Ele segurou suamão, começou a tirar o corpo da água. Seus olhos se
encontraramcomosdela.Harrysorriu.Everetribuiuosorriso.Entãoelepercebeuoutracoisaatrásdelaesuaexpressãomudou.Jennet estava parada no canto do hall de entrada, observando-os
fixamente.Elaolhouparaotetoegritoucomfúria.Harry percebeu o que estava prestes a acontecer, o que ela estava
fazendo.Eleselevantoue,instintivamente,aproximou-sedeEdwardeEveeosempurrounadireçãodaportadafrente.Eve,semequilíbrio,caiunochão.Elaolhouparacima.Eviuotetoacima
deHarrydesmoronarsobreele.—Harry!Elaobservouseucorpoesmoreceresedobrarquandoopesodamadeira
edapedraoderrubou,inconsciente,quebrandoseusossos,esmagando-o.As tábuas do assoalho debaixo deHarry lascaram com a força e o corpodele, agora sem vida, foi levado para a água que subia, ondeava erespingavaportodoohalldeentrada.Jennetcontinuavagritando.Asparedestremiameruíam;orestodoteto
estavaprestesaceder.UmaúltimatentativadeJennetparalevarEdward.Eveempurrouomeninopelaportaeoseguiuatéoladodefora.Os gritos se intensificaram. O vidro das janelas se estilhaçou, a ira de
Jennetrefletidaemcadacaco.EveeEdwardcorreramparalongedacasa,tropeçando,semousarparar
ouolharparatrás.Elesderraparamerolarampelaestradinhaquelevavaàcasa,parandodoladodeforadosportões,diantedapassagem.Eveseviroueolhoumaisumavezparaacasa.Tudo o que restava era uma estrutura negra e apodrecida cercada de
escombros.Paredesirregulares,vigastortase,saindodocentro,umapoçaprofundadeáguapretatransbordavacomoumvazamentodeóleo.Osgritosecoaramatédesaparecer.Silêncio.—Harry...Eve sabia que o havia perdido, mas não conseguia admitir aquilo.
Lágrimascorreramporseurosto.Elagritouesoluçouseunome.—Harry...Eveficousentada,imóvel,olhandofixamenteparaacarcaçadacasa.Então uma mãozinha lentamente segurou a sua. Apertou-a. Ela olhou
parabaixo.Edward.—Sintomuito...
Asprimeiraspalavrasqueelehaviafalado.Eve colocouosbraços emvoltadomenino. Ela o abraçouomais forte
queconseguiu.Aslágrimasdomeninosejuntaramàssuas.Achuvaparou.Odiacomeçouanascer.Umsolfrioedistanteatravessouabrumaebrilhousobreeles.
Muitosanosdevida
ABlitzhaviaterminadoeLondres,ouamaiorpartedela,aindaestavadepé.As estradas estavam cobertas de escombros. Quase todas as ruas se
encontravam irreconhecíveis por causa das ruínas dos prédios, como osrestosdeumacivilizaçãoantigaesperandoqueumamaisnovaemodernasurgisse em seu lugar. O passado estava acabado. O futuro ainda seriaescrito.Amortalhapesadademedotinhasidotiradadecimadacidade.Agoraos
londrinos seguiam com suas rotinas sem o medo da morte iminente. Oterrorprosaicodedormiretemernãoacordarhaviaacabado.Opânicodainvasão nazista fora reduzido. Por enquanto. A guerra ainda sedesenrolava, mas era, em grande parte, algo distante. As pessoas sereuniam,ajudavam-se.Pelaprimeiravezemmuitotempo,elasousavamteresperanças.NasaletadesuapequenaeorganizadacasageminadaemHackney,Eve
Parkinsdavaosretoquesfinaisaumpresentedeaniversárioqueelaestavaembrulhando. O sol de verão penetrava pelas janelas, tornando aquele otipo de dia que qualquer um ficaria grato por viver. Era assim que Evetentavasesentir.E,namaiorpartedotempo,conseguia.Ela carregou o pacote com seu embrulho colorido até a sala de estar.
Edward estava parado lá usando suas melhores roupas, olhando-se noespelho,tentandoajeitarsuagravata.—Pronto?—perguntouelaaomenino.Edwardsevirouparaela.—Sim.Eveajeitouseucolarinhoecolocousuagravatanolugar.
—Muitoelegante.Edwardsorriuparaela,eEvesentiuseucoraçãosepartir.Setemeses.Eraotempoquehaviapassadodesdeosacontecimentosna
Casa do Brejo da Enguia. Setemeses de dor, raiva e tristeza, de culpa eperda, recriminaçãoe reconstrução.E finalmente, felizmente,oalívioqueeles sentiram apenas por estarem vivos. Eve e Edward começaram umanova vida juntos. Eles saíram da casa. Ela apenas esperava que a casapudessesairdeles.—Aqui—disseela,entregando-lheopresente.—Felizaniversário.Edward sorriu. Com alegria, com naturalidade. Eve sentiu um tipo de
amor doloroso por ele naquele momento. O menino começou a abrir oembrulho de seu presente, com a ajuda de Eve. Ele puxou o papel pararevelarumnovoconjuntodelápisdecoreumgrandecadernodedesenho.—Paravocêpoderfazernovosdesenhos.Desenhoscoloridos.Edward olhou para o caderno. Eve notou seu sorriso se apagar e sua
expressãosealterar.Comonuvensescondendoosolemumdiadeverão.Elevoltavaaserogarotomudo.OcoraçãodeEveparou.—Edward?Oquehouve?Elecontinuouolhandofixamenteparaoslápis.Depoisdeumtempo,ele
ergueuosolhos.—Elavaivoltar?Aquilonuncaoshaviadeixado.Independentementedeteremsemudado
paratãolonge,oudecomoelestentarampreenchersuasvidasemcomumcomoutrascoisas,aquiloestavasempreali.Elaestavasempreali.Quandoosdoissaíamdecasa,parairaalgumlugar,aumparqueouaumarua,eumdelesviaderelancealguémquesepareciacomela,EveeEdwarderamjogados de volta àquela noite na casa mais uma vez. Então o momentopassava e a vida lentamente recomeçava. Esses pequenos interlúdios setornavamcadavezmenosfrequentesàmedidaqueotempopassavaeEveesperava que em algummomento eles desaparecessem por completo. Ador aguda se transformaria em uma coceira inofensiva. Isso aconteceria,estavaacontecendo.Masaindafaltava.—Vai?—perguntouEdward,comolhosamedrontados.—Não—respondeuEve.—Elafoiembora.EdwardcontinuouaolharparaEve,procurandoumagarantia.Eladisse
as palavras que repetiu tantas vezes para ele, as palavras que precisavaescutar,emqueprecisavaacreditar.Aspalavrasemqueelatambémqueriaacreditar.—Ela se alimentava dos sentimentos ruins dentro da gente. Então, se
ficarmos felizes, ela não pode voltar. Você entende? Você tem de meprometerqueseráfeliz,certo?—Sim...Edwardnãopareciatertantacerteza.—Edward?—Sim.Maisfirmedestavez.—Bom.Agora,ondeestámeusorriso?Edward sorriu. E o aposento iluminado pelo sol pareceu muito mais
claro.—Muitobem—elogiouela.—Suavez—falouEdward,aindasorrindo.Eveapontouparaoscantosdesuabocae lentamenteabriuumsorriso
para ele.Não era como seu sorriso anterior, parteda armadura comquelutava suas batalhas diárias; era algo diferente, algo novo. Um sorrisonascido da felicidade, do alívio e do amor por Edward. O garoto sabiadaquilo,eissoofaziaamá-laaindamais.Mas seu sorriso titubeou quando ela olhou para a foto emoldurada na
parede.Aimagemfaziaaquilo,pegava-adesprevenida.Mesmoosdiasmaisensolaradospodiamprojetarassombrasmaisescuras.Lágrimas inesperadas se formaramnos cantos de seus olhos enquanto
ela seperdiana fotografia e emsuas lembranças.Harrye sua tripulação.Todosolhandopara a câmera, todos sorrindo. Sorrindopara sempre. Elahaviaresgatadoafotonabaseaéreafalsa,levadoparacasaeaemoldurado.EratudooqueelatinhadeHarry.Ohomemmaiscorajosoqueelajáhaviaconhecido.Eve secou os olhos. E se lembrou do que ele tinha dito sobre viver o
presente,sobreestarprontoparaajudaraspessoasqueprecisamdevocênomomento.—Vamoslá.Horadesair.ElasegurouamãodeEdwardeelessaíramdacasa,descendoarua.Asalafoideixadavazia.Quasevazia.Um vulto saiu da sombra para a luz do sol e olhou para a fotografia
emoldurada.Paraosrostossorridentes.Outros vultos saíram também. Vultos pequenos e macilentos, seus
corpos mostrando a forma como foram mortos, seus olhos vazios. Suasbocasseabrirameelescomeçaramsuacantoriasussurrada,abafada,maisumavez.
— Jennet Humfrye perdeu seu bebê... No domingo morto, na segundaachadoocorpo...Quemseráopróximoamorrer?Deveservocê...Ocorofantasmasedispersou.Ovultoaltoeescuroobservoufixamentea
fotografiaatéovidro rachar. Seu rostobrancocomoosso foi refletidodevoltaemdezenasdecacos.Elalentamentevoltouasemisturaràssombras.Eesperou.
FIM
MinharelaçãocomaHammer
Childrenof the Stones.Sky.Kingof theCastle.AceofWands.Timeslip.TheChanges. Filmes de informação pública com uma narração de DonaldPleasence. E, claro,Doctor Who. Os anos 1970 foram uma ótima décadaparaprogramasdeTVinfantisrealmenteassustadores.E,paraumacriançadessadécadaqueadoravaficarassustada,aquilofoiincrível.Sim,eueraessetipodecriança.Eueraumnerdantesdeserlegalserum
nerd.Crescilendohistóriasemquadrinhos.Eucostumavaganharprêmiospor causa das miniaturas que construía, especialmente os monstros daAuroraquebrilhavamnoescuro.Eutinhaumaguilhotinaemtamanhorealemmeuquarto.EuliOcorcundadeNotreDameeAguerradosmundosnoensinofundamental.Eufiztudoisso.Maseununcatinhavistoumfilmedeterror.Eisso,eusabia,eraalgoque
euprecisavaconsertar.Oexorcistaeraagrandenovidadedaépocaetodososgarotosdeminha
turma da escola alegaram ter assistido. Eu nunca me preocupei emquestionar como garotos de 9 e 10 anos conseguiram entrar em umasessãoproibidaparamenores,eeu,apesardesergrandeparaminhaidade,nãoterconseguido,masacrediteineles.Eeumesentiaexcluído.Tinhadefazeralgoarespeito.Eentão,noRadioTimesdaquelanoitedesexta-feira,estavaaminhachance.Drácula,operfildodiabo.Faleiparaminhamãequeficariaacordadoatétardeparaassistiraofilme.Ela,surpreendentemente,eu achei, concordou. Então assisti. E aindame lembro da experiência deformavívida.Os créditos surgiram. Uma música dissonante e agourenta. “Drácula”
escritoemletrasgarrafaisnatela.Minhaversãode10anostremeu.Entãooscréditosterminarame...umgarotoemumabicicleta.Eleparecefeliz.Ele
está assoviando. O quê?, pensei. Isso é um filme da Hammer? Isso eraassustador?Não. Eu aguento isso.O garotoda bicicleta vai à igreja local,joga sua bicicleta sobre os degraus de uma forma que eu sempre erarepreendidopor jogareentra.Elepegaumavassouraecomeçaavarrer.Umpoucoentusiasmadodemais,achei.Entãovai tocarosino.Elepuxaacorda.O sino não badala. Ele olha para asmãos. Vermelho. Vermelho desangue.Elegrita.Euestavacomeçandoaficarassustado.Opadreentracorrendonaigreja.Abicicletanãoestámaisnosdegraus.
Eusabiaqueeledeviatê-laacorrentado.Elesobeosdegrausatéatorredosino.Eencontraumatrilhadesangue.Aessaaltura,minhaversãode10anosestátendopalpitações.O padre segue o sangue até o sino onde... umameninamorta, sangue
escorrendodesuasferidasduplasnopescoço,cai.Eaquilofoiosuficienteparamim.Fuiparaacama.Eaindaassim...aindaassim...Eunãoiadesistir.Jureiqueaquelenãoseriaofim.Ah,não.Eunãoseria
vencido. Então tentei novamente. Um velho filme em preto e branco daUniversal dessa vez. Frankenstein, uma mistura da teatralidade inglesaafetadacomoexpressionismoalemão.Fácildemais.Nenhumproblema.Eera ótimo, mas não era Hammer. Então, com mais coragem, tenteinovamente. Karloff e Lugosi foram minhas drogas de iniciação. Lee eCushingforamasmercadoriaspesadas.Efoiisso.Fiqueiviciado.Depoisdaquilo,filmesdaHammer(edaAmicuseatémesmodaTigon)
ocuparamumaenormepartedaminhainfância.Eucomprei,eaindatenho,cada número da revistaThe House of Hammer (ou qualquer que fosse onomedelanaquelemês),oslivrosenormesecheiosdeilustraçõesdeAlanFrank e Denis Gifford sobre filmes de terror e tudo em que conseguiacolocarminhasmãos.EquandoaBBCcomeçousuasessãodupladeterroremumanoitedesábado...euestavanoparaíso.Ounoinferno,oquevocêpreferir.Não sei dizer o quanto eu amava esses filmes. E ainda amo. Suas
gloriosas cenas sangrentas em tecnicolor agora estão conectadas aomeuDNAdeescritor.TenhoumacoleçãovergonhosamentegrandedeDVDseBlu-raysdaHammer.Eaindaassisto.Atéofim,agora.Então,quandorecebiumaligaçãomepedindoparaescreverasequência
deAmulherdepreto para aHammerBooks, agarrei aoportunidade.Nãohesitei, não parei para pensar.Meu nome e Hammer na lombada de umlivro?Comcerteza.
Mas então... Espere um pouco. Eu havia acabado de concordar emescrever a continuação de uma das melhores histórias de fantasmas detodosostempos.Euseriacapazdefazerisso?Nãosei.Eaúnicacoisaqueeusabiaeraque,seeunãofizesse,elespediriamaoutrapessoa.Eissoseriapiorquesimplesmentenãofazer.E a outra coisa queme atraiu foi que não era apenas um exercício de
nostalgia.Eunãoqueriafazerumarecauchutagemdeumromanceoriginaldamesma formaqueaHammernãoqueria fazer filmesquesóatrairiamum público de cinquenta anos atrás. A Hammer não sente remorsos porfazer o tipo de filme que você esperaria que a equipe original estivessefazendo,seelestivessemcontinuadonoséculoXXI.Entãofizomelhorquepude.Esperonãoapenasterhonradooromance
originalmas também ter escrito algoque teria deixado eletrizado aquelemeninode10 anosque estava amedrontadodemaisparaolhar,masquequeriadesesperadamentecontinuarassistindo.Istoéparaele.Eparatodaaquela geração de espectadores e leitores que cresceu a seu lado. Mastambéméparaapróximageração,queestáassistindoaosnovosfilmesdaHammer cobrindo os olhos e aprendendo como émaravilhoso ficar commedo.
MartynWaitesJulhode2013
top related