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Ive Seidel de Souza Costa
Panóptica, ano 1, n. 8, maio – junho 2007
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A LEGALIDADE DO ABORTO EUGÊNICO EM CASOS DE ANENCEFALIA.
Ive Seidel de Souza Costa
Bacharelanda em Direito pela FDV.
1. INTRODUÇÃO.
A prática do aborto sempre foi tema muito controvertido, tendo sempre
provocado muita polêmica e controvérsias em nossa sociedade. É assunto
remoto, mas que, de épocas em épocas, ressurge discutindo situações que
estremecem os ditames sociais.
A interrupção da gravidez de feto portador da anencefalia fez retornar ao
panorama nacional as aventadas discussões acerca da legalidade ou
ilegalidade da prática abortiva. Diante da propositura, em 2004, da Ação por
Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54, pelo Conselho Nacional dos
Trabalhadores na Saúde - CNTS, a polêmica e as discrepâncias de idéias
existentes acerca do tema em análise voltaram a figurar na sociedade
brasileira. Questiona-se: deve-se sempre proibir a prática abortiva quando o
feto não possuir qualquer viabilidade de vida extra-uterina? Uns optam pela
liberalidade, integral e indiscriminada. Outros, fervorosamente, clamam pela
tipificação total e incondicional, mormente respaldados pelos apelos religiosos
e morais.
Sabe-se que o Direito, contudo, visa à realização do bem comum, que seria o
bem individual de cada pessoa, enquanto esta pertence a um todo. Desta
forma “o indivíduo colima o bem da comunidade, na medida em que ela
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representa o seu próprio bem” 1, segundo as noções da justiça social e
solidária. Para tanto, faz-se mister reunir os anseios controvertidos e resolvê-
los de forma equilibrada. Haverá o Direito, de fato, bem como a justiça,
conseqüentemente, sempre que a sociedade, organizadamente, sopesar seus
valores e guiá-los a um fim comum, o qual será essencial para a harmonia do
coletivo.
Assim sendo, é necessário que o tema aqui proposto receba um respaldo
jurídico equilibrado. Os extremos são perigosos. Deve haver um contrapeso
entre as idéias alvitradas, para que nem as tendências religiosas que marcam a
personalidade de alguns profissionais de direito, nem os ideais anárquicos, que
alguns juristas carregam consigo, se sobreponham indiscriminadamente um
ante o outro diante da discussão da prática abortiva, mais precisamente, o
aborto em casos de anencefalia. Discutir-se-á a justiça e o Direito, não o
moralismo.
O objetivo do presente escrito, desta forma, incide em analisar nomeadamente
a prática do aborto em casos de anencefalia sob uma perspectiva jurídica,
social e humanitária. Para tanto, buscar-se-á por meio de uma pesquisa teórica
e bibliográfica, coletar as informações mais atinentes à matéria e coordená-las
em um pensamento que possa servir como sugestão à conjuntura jurídica
atual.
Utilizaremos, igualmente, o método dialético e hipotético-dedutivo, na medida
em que será necessário contrapor e harmonizar idéias e normas, para que o
problema possa ter uma solução juridicamente aceitável.
1 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 48, dez. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11>. Acesso em: 01 out. 2006.
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2. A PROBLEMÁTICA DO ABORTO.
Primeiramente, a palavra aborto provém do latim ab-ortus, ou seja, “privação
do nascimento” 2. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),
abortamento é “a morte do embrião ou feto antes que seu peso ultrapasse
500g, atingido antes das primeiras 22 semanas de gravidez”3. Por tratar-se de
tema polêmico, houve a necessidade de aperfeiçoarem-se os conceitos,
utilizando termos menos pejorativos e menos agressivos. O aborto, neste caso,
seria a interrupção da gravidez, espontânea ou provocada, de um embrião ou
de um feto antes do final de seu desenvolvimento normal, com a conseqüente
destruição do produto da concepção.
As mais remotas notícias sobre métodos abortivos datam do século XXVIII a.C,
na China, de acordo com Célia Tejo4. No antigo Império Romano, lembra José
Maria Marlet5, por considerarem ser o feto parte do corpo da mulher e de suas
vísceras, o ato em questão não era considerado crime. Foi o apogeu do
Cristianismo que influenciou fortemente as concepções do mundo antigo, por
meio das severas punições atribuídas pela Bíblia Sagrada àqueles infiéis que
praticassem ou se permitissem praticar o aborto. Desde então, o abortamento
foi erigido à categoria de crime na maior parte do mundo.
Assim sendo, a transformação cultural e histórica comparece no quadro causal-
explicativo do problema do aborto, na medida em que se questionam tradições,
alteram-se costumes, criam-se novos conceitos e normas e leis se modificam e
2 WIKIPEDIA, Contribuidores da. Interrupção da Gravidez. Wikipédia: a enciclopédia livre, 2006. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Interrup%C3%A7%C3%A3o_da_gravidez> Acesso em 14 out. 2006. 3 Ibid. 4 TEJO, Célia. Aborto Eugênico. Datavenia, Paraíba, Ano 3, n.17, julho de 1998. Disponível em:<http://www.datavenia.net/opiniao/celia.html> Acesso em 03 out. 2006. 5 MARLET apud CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade e transplantes. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p 23.
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propõem. A polêmica é motivada, sobretudo, pelos diversos ângulos de visão
existentes e possíveis sobre o assunto.
A questão ético-religiosa, imperativamente, é crucial em relação ao aborto,
posto que cruza com as noções de contracepção, um dos temas mais
delicados da Igreja, em que são registradas graves posturas de
transponibilidade extremamente difícil. Isto se explica pela forte influência que a
religião possui e sempre possuiu perante os homens, e pelo posicionamento de
subordinação que estes mantêm ante esta Instituição. A Igreja é a responsável
pela formação do caráter moral do indivíduo, influenciando cegamente e
interferindo na liberdade de reflexões de cada um, convertendo-o sempre em
favor de seus dogmas. Tal intocabilidade e incondicionalidade são, no entanto,
inaceitas por correntes que se opõem a esse tipo de argumentação. Surge,
assim, a disputa, pois os legisladores são suscetíveis às paixões e influências
religiosas, éticas e filosóficas, sendo praticamente impossível agirem de forma
neutra em suas criações normativas.
Belíssima é a posição da teóloga Ivone Gebara, a favor da descriminalização e
legalização do aborto como forma de abrandar a violência contra a vida:
Uma sociedade que não tem condições objetivas de dar
emprego, saúde, moradia e escolas é uma sociedade
abortiva. [...] Uma sociedade que silencia a
responsabilidade dos homens e apenas culpabiliza as
mulheres, desrespeita seus corpos e sua história é uma
sociedade excludente, sexista e abortiva. [...] Nessa linha
de pensamento, concentrar a defesa do inocente
somente no feto, é uma maneira de [...] não denunciar a
morte de milhares de mulheres inocentes vítimas de um
sistema que aliena seus corpos e as pune
impiedosamente, culpabilizando-as e impedindo-as de
tomar uma decisão ajustada a suas reais condições.
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Em seqüência, sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro se posiciona
absolutamente contrário ao aborto, admitir tão só duas exceções: o aborto
necessário e o sentimental ou humanitário, admitindo que em algumas
situações a proteção à vida do embrião ou do feto não é absoluta, existindo
outros bens jurídicos que a ela se sobreponham.
Desta forma, no aborto sentimental, ao se pautar na justificativa de que não é
humano exigir da mulher que uma gestação venha a lhe recordar
continuamente o sofrimento que a gerou, o bem jurídico a ser defendido é o
livre arbítrio dela, sobrepondo-se ao direito à vida. Diante de tal ciência, a juíza
Matilde Josefina6 tece críticas em relação ao ordenamento jurídico brasileiro
em permitir um aborto do produto de um estupro, e não aceitar aquele em que
o feto não terá condições de sobreviver.
3. O ABORTO EUGÊNICO.
Esta é uma análise superficial, mas essencial para o entendimento do assunto
que pretendemos abordar: a prática do aborto em casos de anencefalia. O
grande problema, segundo Célia Tejo7, reside no ponto da disponibilidade da
vida humana.
O aborto eugênico, segundo Ricardo Henry Marques Dip8, “é o aborto fundado
em indicações eugenésicas, equivalente a dizer, em indicações referentes à
qualidade da vida”. A eugenia ocorre quando há comprovação de que o feto
nascerá com má-formação congênita. Neste sentido, os casos de anencefalia
são, a princípio, sua espécie.
6 JOSEFINA apud CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade e transplantes. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p 31-32. 7 TEJO, Célia. Op Cit. 8 DIP, Ricardo Henry Marques. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico – alvará para matar. Revista dos Tribunais, São Paulo, Ano 85, v. 734, Fasc. Pen, p. 520, dez 1996. p 4.
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Francis Galton foi o primeiro a discorrer sobre a eugenia, correlacionando-a a
necessidade de haver uma seleção forçosa da raça, pois, segundo ele9
a seleção natural já não se realizava entre os homens
porque os governos e as instituições de caridade
passaram a proteger os fracos, os doentes, os
incapazes, o que levou e ainda leva a decadência da
raça humana e ao surgimento de toda a espécie de
doenças que contaminaram a sociedade. Para
interromper esse declínio, deveria impedir-se a
propagação dos degenerados, dos débeis mentais, dos
alcoólatras, dos criminosos, em resumo, de todas as
pessoas indesejadas na sociedade.
Este princípio pode ser considerado como sendo o pressuposto inspirador para
o terrorismo que o alemão Adolf Hitler instaurou no século 20, ao pretender a
realização do arianismo, uma raça pura onde apenas os alemães fortes
mereceriam sobreviver.
Todavia, ainda hoje algumas características da teoria galtoniana fazem parte
do cenário mundial, ainda existindo sociedades que permitam a prática de
eliminação dos fetos com má-formação. Entretanto, imperativo ressaltar que a
anencefalia não encontra respaldo nessa linha de argumentação. Não seria a
anencefalia meramente uma má-formação física, mas a inexistência de um
importante órgão do encéfalo, o cérebro, sem o qual a viabilidade existencial
extra-uterina fica comprometida. Trata-se de uma má-formação irreversível e
gravíssima, em razão da qual o feto não sobreviverá. É condicionante de
sobrevida, não podendo, para nós, ser confundida com a discriminação em
razão de deformidade física ou mental, posto não se poder falar em viabilidade
de vida.
9 Ibid, p 521.
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Em seguida, parece-nos repugnante a idéia de se admitir indiscriminadamente
o aborto eugênico. A vida humana não pode ser mensurada segundo critérios
indefesos de proveito à coletividade. A má-formação física ou mental não pode
servir de justificativa para se sobrepor ao direito, universalmente reconhecido,
de que todos possuem gozo a vida. A Declaração Universal dos Direitos do
Homem reconheceu em seus artigos 1º e 2º que todos os homens nascem
livres e iguais em dignidade e direitos, e que todos têm capacidade para gozar
os direitos e as liberdades sem distinção de raça, cor, sexo, entre outros. No
mesmo sentido a Constituição Brasileira elevou o princípio da dignidade da
pessoa humana como pressuposto para a realização do Estado Democrático
de Direito (art. 2, II, CF).
Assim sendo, o nosso presente propósito reside na tentativa de defender a
legalidade da pratica do aborto eugênico em casos que envolvam, tão
somente, fetos anencefálicos, porquanto em virtude desta má-formação o feto
não conseguirá sobreviver.
4. A ANENCEFALIA.
A anencefalia é uma má-formação congênita em decorrência de um defeito no
fechamento do tubo neural10. Também chamada de acefalia, pode ser
diagnosticada precocemente através de um exame de ultra-sonografia. O
grande ponto dessa questão reside na falta de consenso acerca da precisão de
qual momento o feto ou embrião é considerado vivo, se no nascimento, na
concepção ou em período intermediário. Por isto, freqüentemente este debate
está combinado com concepções religiosas e morais.
Segundo a Sociedade Mineira de Pediatria, “a anencefalia impede que o feto
tenha atividade elétrica cerebral, por este não possuir os hemisférios cerebrais
constituídos, em parte, pela estrutura funcional mais importante: o córtex
10 O tubo neural é a estrutura embrionária que dará origem ao cérebro e à medula espinal. WIKIPEDIA, Contribuidores da. Tubo Neural. Wikipédia: a enciclopédia livre, 2006. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Tubo_neural> Acesso em 15 out. 2006.
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cerebral. Conseqüentemente, tem apenas o tronco cerebral, motivo pelo qual
não mantém relação com o mundo exterior e não conscientiza a dor”.
De acordo com o presidente do Conselho Federal de Medicina, Dr. Edson de
Oliveira Andrade11, um feto anencefálico tem chance estatística de
praticamente cem por cento de estar morto durante a primeira semana após o
seu nascimento. Assim, para que haja uma relativa prolongação de seu estado
vegetativo, nesse sentindo, questão de horas ou dias, inevitavelmente dever-
se-á recorrer aos aparelhos mecânicos, opção esta nem sempre possível para
todos por demandar um gasto exorbitante e por nem sempre o feto resistir, na
medida em que a sua existência se mantém em razão da sua ligação ao
organismo materno.
Se determinar o momento de vida não é matéria fácil, precisar o instante de
morte também não é tranqüilo. Há na doutrina dois tipos de morte: a morte
encefálica e a morte clínica. Segundo Dilío Procópio Drummond de
Alvarenga12, a morte encefálica consiste na cessação da atividade elétrica
desse principal órgão do corpo humano, mesmo que o tronco cerebral esteja
temporariamente funcionando; a morte clínica, por sua vez, tem um conceito
mais rígido, exigindo a mais, a parada irreversível da atividade cardíaca. A lei
vigente - Lei 9.434/97 - adotou o primeiro conceito, o de morte cerebral ou
encefálica, para autorizar a extração de tecidos, partes e órgãos do corpo
humano destinados a transplante ou tratamento. A lei que anteriormente
tratava tal matéria adotou o outro critério. Percebe-se, assim, a instabilidade
que há na doutrina diante do tema.
A Resolução nº. 1480, de 8 de agosto de 1997, referenciada pela Lei 9434/97,
contudo, temporariamente, põe fim ao debate ao dispor que a morte encefálica
deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida. Assim
11 ANDRADE, Edson de Oliveira. A grande diferença. Provida Anápolis: Goiás, 2003. Disponível em <http://www.providaanapolis.org.br/agrandif.htm>. Acessado em 22 set 2006. 12 ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond de. Anencefalia e aborto. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 324, 27 maio 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5167>. Acesso em: 10 out. 2006.
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sendo, se a falta do córtex cerebral não é condição suficiente para ser
reconhecida a morte encefálica, a irreversibilidade desta condição e a certeza
absoluta de que o feto não conseguirá sobreviver em razão desta deficiência
servem como atestado de que a morte é certa, ainda que o feto consiga
sobreviver por algumas horas após desligar-se do útero materno.
Além disso, o mesmo documento dispõe que a morte encefálica será
comprovada se for demonstrada, de forma inequívoca, que o cérebro não mais
possui atividade elétrica (art. 6º, a), característica esta permanente nos fetos
anencéfalos.
Em seguida, a Resolução 1752/2004 do Conselho Federal de Medicina
aprovada em 08 de setembro de 2004, veio a permitir a retirada dos órgãos de
recém-nascidos anencéfalos, para fins de transplantes. Se o próprio CFM, que
é órgão cuja especialidade lhe confere competência e credibilidade para dispor
sobre o fim da vida, permite que fetos anencefálicos possam ser alvos de
transplantes de órgãos, então o tema está esgotado. Importante é que a morte
encefálica não significa que os demais tecidos e órgãos estejam mortos,
contudo atesta a total impossibilidade de vida como indivíduo.
Esta resolução confirma o Parecer n. 24, de 9 de maio de 2003, do conselheiro
Marco Antônio Becker13, que traz a seguinte recomendação:
Uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico
poderá proceder ao transplante de órgãos do anencéfalo
após a sua expulsão ou retirada do útero materno, dada
a incompatibilidade vital que o ente apresenta, por não
possuir a parte nobre e vital do cérebro, tratando-se de
13 BRASIL. Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 24, 2003. Parecer sobre os atos anestésicos simultâneos. Relator: José Albertino Souza. Disponível em: <http://www.cremers.com.br/cremers/Interface/show_new.action?beanNew.idNew=487> Acesso em 14 out. 2006.
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processo irreversível, mesmo que o tronco cerebral
esteja temporariamente funcionante (grifo nosso)".
5. A LEGALIDADE DO ABORTO EUGÊNICO EM CASOS DE
ANENCEFALIA.
Em julho de 2004, o Min. Marco Aurélio de Mello deferiu medida liminar
autorizando a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia. Baseou-se
para tanto nos princípios constitucionais da liberdade e preservação da
autonomia da vontade, da legalidade, do direito a saúde e da dignidade da
pessoa humana14. A decisão foi um avanço para o processo civilizatório, e
ainda que a medida tenha sido recentemente derrubada pelo Plenário do
Supremo Tribunal Federal, a atitude do ministro foi louvável por fazer retornar
discussão tão necessária à conjuntura jurídica atual.
Em primeiro lugar, consoante a Resolução de 2004 do CFM, já citada, o
anencéfalo foi erigido à categoria de natimorto cerebral. Assim sendo,
confirmou-se ausência de viabilidade de vida quando o feto não possuir
atividade elétrica cerebral. Deste modo julga-se injustificável submeter a mulher
aos riscos de uma gravidez e aos traumas psíquicos que dela podem advir,
quando não houver qualquer expectativa de que seu filho nascerá com vida.
Segundo a FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia15, a gravidez do feto anencéfalo pode resultar em
inúmeros problemas maternos durante a gestação. O puerpério da mulher
também pode ser intensificado em decorrência de hemorragias por falta de
14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Deferimento de pedido de medida cautelar. ADPF 54. Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Relator: Marco Aurélio. 01 jul. 2004. Disponível em: <http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=ADPF&s1=anencefalia&u=http://www.stf.gov.br/Processos/adi/default.asp&Sect1=IMAGE&Sect2=THESOFF&Sect3=PLURON&Sect6=ADPFN&p=1&r=1&f=G&n=&l=20> Acesso em 3 out. 2006. 15 FREASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), Rio de Janeiro. 2006. Disponível em <www.febrasgo.org.br/> Acesso em 22 set. 2006.
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contratilidade uterina, o que pode levar a uma maior incidência de infecções
pós-cirúrgicas.
Acrescente-se ainda que, de acordo com a médica Ana Clélia de Freitas16,
cerca de 30% dos anencéfalos apresentam outras más-formações congênitas
graves, principalmente defeitos cardíacos. Tudo isso fará com que a mulher
tenha gestação seja mais penosa para a mulher, e certamente a manutenção
deste tipo de gravidez, principalmente quando for indesejada, ocasionará
graves distúrbios psicológicos na gestante, em decorrência da tortura sofrida e
do tratamento degradante, por vezes necessário para tais tipos de gestação.
Se a morte encefálica atesta a total impossibilidade de vida como indivíduo, por
que compelir a mulher a submeter-se a esse tipo de gestação?
Conforme as preleções do professor Antônio Chaves17, cada vez mais estão
sendo ampliadas, no panorama internacional, as indicações de se admitir o
aborto em fetos com má-formação cerebral, baseadas no papel que “a nova
medicina deve desempenhar na sociedade como forma de valorizar o indivíduo
e democratizar as disponibilidades médicas em seu favor”.
Em uma pesquisa realizada pelo IBOPE18, em 2005, 76% da população
brasileira dizia-se favorável à prática do aborto quando o feto padecer de
acefalia. Isso, somado ao infindável número de clínicas de abortos
clandestinas, bem como a existência de inúmeras fórmulas abortivas, reflete a
insatisfação de muitas mulheres ante a legislação atual, a qual, enquanto
pertencente a um Estado Democrático de Direito, não tem cumprido com os
seus fins representativos.
Sabe-se que os procedimentos empregados para a interrupção da gravidez
possuem alta capacidade degradante no organismo da mulher, em razão de
16 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello et al. Existe aborto de anencéfalos? . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6467>. Acesso em: 23 set. 2006. 17 CHAVES, Antônio. Op Cit. p 36. 18 ÉPOCA, Revista. A Igreja Dividida, n 355. 07 mar 2005. São Paulo: Globo, 2005. p. 72.
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ser o útero um órgão muito vascularizado, o que aumenta a possibilidade de
inflamação generalizada, se porventura o processo não for concluído
devidamente. Não tendo pessoas capacitadas para tanto, o número de casos
de aborto desastrosos é assustador, envolvendo desde a morte materna, até
os casos em que o aborto não tenha sido consumado, tendo o bebê resistido e
ficado com seqüelas irreparáveis.
No Brasil cerca de três milhões de abortos ilegais são praticados por ano,
sendo que 340 mil mulheres são internadas por complicações advindas deste
procedimento. Segundo a OMS, o aborto é, na América Latina, a causa de 30 a
50% da morte das mulheres que engravidam19. Isso tudo se deve pela total
falta de higiene dos ambientes clandestinos que intervém indevidamente na
gravidez. Os especialistas afirmam que toda a problemática ocorre,
principalmente, devido às condições sócio-econômicas das gestantes. Desta
forma, não nos parece eficaz para que a situação seja controlada, concentrar
as discussões no campo tão-somente da moral. Há que serem discutidas
questões éticas, jurídicas e, sobretudo, humanitárias.
Em junho de 2002, o Parlamento Europeu adaptou ao relatório “Lancker”, que
“aconselhava a tornar o aborto legal, seguro e acessível, apelando aos países
para que não perseguissem mulheres que tivessem feito um aborto ilegal” 20.
As Nações Unidas, no ano de 1995, ao mesmo tempo, defenderam durante a
“Quarta Conferência Mundial da Mulher”, em Beijing, que os governos
deveriam, a partir daquele instante, lidar melhor com os impactos que a prática
abortiva clandestina provocava às mulheres e à Saúde Publica, devendo
fortalecer o seu compromisso com o bem estar das mesmas. E, não diferente,
a Organização Mundial de Saúde defendeu, em 1997, que as nações deveriam
reduzir a necessidade de abortar e proporcionar serviços de qualidade sobre o
tema, bem como enquadrar as leis e políticas sobre o aborto tendo por base o
19 CHAVES, Antônio. Op Cit. p 24. 20 WOMAN ON WAVES, Amsterdam. 2006.<http://www.womenonwaves.org/index.php?lang=pt > Acesso em 03 out. 2006.
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compromisso com a saúde das mulheres e não com base nos seus códigos
criminais21.
Desta forma, é necessário que as mulheres que desejem pôr termo à gravidez
passem a ter acesso a um aconselhamento prévio, devendo ser prestados os
serviços devidos para a sua total informação a respeito das condições de vida
do feto que carrega consigo, para que, de acordo com suas convicções morais,
religiosas e éticas, ela possa decidir por si só se quer persistir com a gestação
ou não. Assim, perquire-se uma liberdade de escolha à gestante, pautada no
principio do seu livre-arbítrio.
Em seguida, é incompreensível o posicionamento do ordenamento jurídico em
permitir o aborto em casos em que a gravidez tenha advindo de estupro,
mesmo que este ato ponha em risco a higidez do feto, o qual, a princípio, é
saudável. Os legisladores atenuaram o art. 128 do Código Penal justificando-se
no fato da não aceitação da mulher em carregar um filho fruto de um trágico
momento de sua vida. Ora, isso é no mínimo injusto. Afinal, como pode uma
mulher pôr termo a vida de um filho, a princípio saudável, pelo simples fato de
rejeitar a forma como ocorreu a gravidez, e não poder uma outra abortar um
feto que não terá qualquer expectativa de vida? Por vezes este último é tão
mais indesejado que o primeiro, por, neste caso, a mulher carregar em seu
ventre um filho que não terá condições de viver.
Insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidade de êxito, quando
há vontade contrária da mulher, segundo o Juiz Corregedor da Polícia
Judiciária da Capital Paulista, Geraldo Francisco Pinheiro Franco, “representa
capricho irresponsável do legislador e da sociedade que o apóia, pois este
sofrimento poderá evoluir para um grave comprometimento psicológico” 22. Há,
21 Ibid. 22 FRANCO, Geraldo Francisco Pinheiro apud SÃO PAULO. Comarca de Campinas. Autorização de Interrupção de gravidez. Processo nº 000/1999. Maria Maria Maria e Ministério Público. Relator: José Henriques Rodrigues Torres. 23 abr 1999. Disponível em: <http://www.jep.org.br/downloads/JEP/Abortamento/voto_aborto_maria_maria_maria_torres.htm> Acesso em 22 out. 2006.
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ainda, a possibilidade de risco à saúde da mulher, como já mencionado, com
eventual reflexo em suas condições de vida. E isso deve ser impedido, no
mínimo, por razões humanitárias.
A ausência de cérebro mata o feto durante a gestação ou, no máximo, nos
primeiros minutos após o parto. É má-formação incurável e qualquer
intervenção é em vão. O diagnóstico, neste caso, segundo Antônio Chaves23,
servirá apenas para a preparação psicológica dos pais. Isto porque, a
responsabilidade que lhes cabe é manifestadamente maior, exigindo-lhes mais
maturidade, além de recursos econômicos, pois se porventura o bebê
conseguir vir ao mundo de forma vegetativa, o prolongamento desta “vida
artificial” por alguns dias, demandará um gasto considerável, tendo em vista a
falência do atendimento público e os caros recursos disponíveis.
Desta forma, qual seria o sentido então, fora das preleções religiosas, de
obrigar uma mulher a manter uma gestação que terá um desfecho trágico? O
Estado teria o direito de punir uma mulher, inocente, com o sofrimento
psicologicamente torturante? Em nome de que? O ex-procurador-geral da
República, Cláudio Fonteles, diz que a gravidez deve ser conservada em nome
da vida. É lindo isso. Contudo, de acordo com as palavras do jornalista André
Petry, a única vida que estaria em discussão é a da gestante, pois o feto não
possui qualquer possibilidade de completar dez minutos fora do útero. Assim,
deve-se falar na defesa de vida da futura ex-mãe, que, não tendo nenhuma
escolha feliz possível, tem o direito ao menos de poder escolher sobre
prolongar ou encurtar o seu sofrimento. Nesse mesmo sentido, o jornalista diz
que:
Quando se combate o aborto de um feto sem cérebro
não se está defendendo a vida - defende-se só um
dogma religioso pelo qual a interrupção de uma vida,
23 CHAVES, Antônio. Op Cit. p. 32.
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mesmo em estágio intra-uterino, mesmo sem chance de
sobrevivência, só pode ocorrer por obra divina24.
Submeter a mulher ao sofrimento psicológico, mediante o emprego de violência
simbólica dos dogmas religiosos, configura-se uma prática torturante. Posto
isso, a Carta Constitucional erigiu a tortura à categoria de crime inafiançável e
insuscetível de graça ou anistia (Art. 5º,XLIII). Assim sendo, ninguém poderá se
submeter a um tratamento degradante por qualquer motivação, inclusive
religiosa. Assim, quando se contesta a medida liminar deferida pelo Min. Marco
Aurélio, legitima-se a posição de subordinação do Estado perante a Igreja,
possibilitando submeter cidadãos que professam religiões diversas ou
nenhuma aos dogmas daquela imperada no Estado, desrespeitando-se, assim,
a liberdade de crença e o laicismo estatal.
Para que a lei penal fosse legítima além de legal far-se-ia a necessidade de
reformulá-la. A legitimidade da norma emana da idéia que a sociedade faz do
justo. E, certamente, a sociedade brasileira hodierna tem os seus conceitos de
justiça alterados, desde o ano de 1940, quando o atual Código Criminal surgiu.
Neste sentido, a modificação da lei é necessária para reajustar a expectativa
da norma aos anseios dos sujeitos que por meio dela realizam o Direito. A
eficácia da norma, nós sabemos, depende do consenso social em observá-la, o
que ocorrerá quando esta refletir as vontades do seu público.
A anencefalia já é tema resolvido em grande parte do globo, tendo a Alemanha,
a Áustria, o Reino Unido, a França, já se posicionado favoráveis a sua
liberalização. Felizmente, no Brasil cada vez mais se avultam juristas com o
pensamento semelhante ao do Min. Marco Aurélio, como é o caso de Luís
Roberto Barroso25 que defende a necessidade de haver a defesa da saúde da
mãe, posto que esse tipo de gravidez pode acarretar perigos a sua salubridade.
24 PETRY, André. A favor do aborto – e da vida. Revista Veja. São Paulo, ed. 1862, jul 2004, p 108. 25 GUERRA, Gustavo Rabay. O aborto dos fetos anencefálicos na ordem constitucional. Jurista.com.br, João Pessoa, a.I, n.1, 22/12/2004. Disponível em: <http://www.juristas.com.br/revista/coluna.jsp?idColuna=5> Acesso em 17 Out. 2006
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Neste sentido, o jurista pede a aplicação do instituto do periculum in mora, a
fim de resguardar a saúde da mãe de um dano irreparável, enquanto não há
consenso sobre a matéria no ordenamento que a proteja.
Atualmente têm-se buscado diversas interpretações da lei penal para se
possibilitar a antecipação do parto do anencéfalo. Fala-se em acrescer ao Art.
128, do Código Penal, um novo inciso que estendesse a exclusão da ilicitude
aos casos em que o aborto eugênico se consumasse. Foi temendo esta última
hipótese que o STF derrubou a liminar autorizadora do abortamento em feto
anencefálico, através do voto condutor elaborado pelo Min. Eros Roberto Grau,
para quem a manutenção da liminar poderia ensejar uma pretensa intenção da
Suprema Corte em reescrever o Código Penal26. Compreensível a justificativa,
embora não aceitável, principalmente pelo fato de o tema abranger muito mais
que políticas normativas.
Interessantíssima a corrente de juristas que busca afastar a tipicidade do
aborto eugênico em casos de fetos anencefálicos através da tese de que, em
fato, não há o tipo aborto em tal conduta. O nascituro possui expectativa de
direitos, conforme a Lei de Introdução do Código Civil de 2002. Desta maneira,
em se diagnosticando a morte cerebral do feto, não mais haveria bem jurídico a
ser tutelado. Conforme o Min. Marco Aurélio, justificando a liminar que
concedeu, a interrupção da gravidez no caso de feto anencefálico não
caracterizaria aborto, porque não há que se falar em expectativa de vida fora
do útero. Concordamos com esta posição.
O Estado, quando autoriza a prática do aborto em gravidez oriunda de estupro,
explicita que o feto pode ser sacrificado para garantir os direitos constitucionais
e, em especial, a honra da mãe. Conclui-se daí, que nem sempre a vida está
26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Deferimento de pedido de medida cautelar. ADPF 54. Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Relator: Marco Aurélio. 01 jul. 2004. Disponível em: <http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=ADPF&s1=anencefalia&u=http://www.stf.gov.br/Processos/adi/default.asp&Sect1=IMAGE&Sect2=THESOFF&Sect3=PLURON&Sect6=ADPFN&p=1&r=1&f=G&n=&l=20> Acesso em 3 out. 2006.
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acima dos princípios constitucionais, bem como, manter um ser morto no útero
materno prolonga inultimente o sofrimento da mãe, sem nenhum benefício à
vida, contrariando o princípio bioético da beneficência27, que garante a
autonomia do paciente em decidir o que é melhor para si mesmo. Nestes
moldes, o direito à vida, em nosso ver, amparados pelo ponto de vista do
advogado Manuel Sabino Pontes28, seria conseqüência lógica da dignidade da
pessoa humana. É justamente este o fundamento invocado pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde, autora da ADPF 54, para quem a
impossibilidade do aborto eugênico em feto anencefálico violaria a dignidade
da condição feminina.
O filósofo norte-americano Ronald Dworkin refere-se à criminalização do aborto
como algo antes de indesejável, ser igualmente terrível. Justifica a atitude das
mulheres que contrariam a ordem estatal e tomam qualquer atitude para evitar
o prolongamento da gravidez, no fato de que o trauma que irá persegui-las e o
dano ao seu amor próprio são incomensuráveis, só podendo ela própria ser
capaz de mensurar a extensão dessas dores, jamais um terceiro.
A libertação da ordem jurídico-estatal das visões moralistas e religiosas,
conforme Gustavo Rabay Guerra29, representou a elevação do Estado à
condição de Democrático de Direito. A Carta Constitucional previu o laicismo
do Estado, garantindo a cada cidadão a liberdade de crença e assegurando-o
que ninguém será privado de direitos por motivo de opção religiosa (Art. 5º,
VIII, CF). Assim sendo, é desumano proibir que a mulher retire de seu ventre o
feto, quando já está morto, forçando-a a persistir na gestação. O direito à vida
seria sempre absoluto e instransponível? O ordenamento brasileiro não pensou
27 “A beneficência é entendida como (...) a autonomia do paciente em decidir o que é melhor para si mesmo (...)”. Cf. DRUMOND, José Geraldo de Freitas. O princípio da beneficência na responsabilidade civil do médico. Montevidéu, Uruguai. 2000.<http://www.ibemol.com.br/sodime/artigos/BIOETICA_DIREITO_MEDICO.htm> Acesso em 16 out. 2006. 28 PONTES, Manuel Sabino. A anencefalia e o crime de aborto: atipicidade por ausência de lesividade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 859, 9 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7538>. Acesso em: 14 out. 2006. 29 GUERRA, Gustavo Rabay. Op. Cit.
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desta forma quando priorizou o livre-arbítrio da mulher ante o direito de viver do
feto, nos casos de aborto humanitário.
6. CONCLUSÃO.
As turbulências existentes sobre o aborto residem, principalmente, no fato de
não haver um consenso jurídico internacional acerca dos conceitos de vida e
morte. O próprio ordenamento brasileiro absorveu esta inquietude ao manter-se
instável perante o tema, mudando de tempos em tempos o seu entendimento a
respeito e permitindo-se influenciar pelas concepções religiosas.
Como já mencionado, a modernidade jurídica é resultado do desvencilhamento
dos aspectos religiosos, pelas normas estatais. É de se esperar, que o tema
abordado disponha de um discurso pautado na ética humanista e respeitosa
dos valores que circundam a sociedade. Todavia, não devem os argumentos
ser baseados em ideais pretensamente moralistas e ligados às convicções
religiosas pessoais do feitor da norma. Afinal, Michel Villey já dizia que ser
jurista não significa exercer o sacerdócio da justiça, nem seguir ao Evangelho,
mas servir ao bem-estar dos homens.
Os religiosos têm todo o direito de manifestar suas opiniões e orientar seus
fiéis para que sigam os seus ensinamentos, afinal, o Brasil é um Estado
Democrático laico, podendo qualquer cidadão professar a crença que almejar.
Estamos livres juridicamente dos dogmas das igrejas. Assim, não se concebe
que os julgamentos se pautem em crenças e misticismos, tampouco que os
aplicadores das leis se deixem mover por suas convicções religiosas. Estar-se-
ia legitimando o poderio da Igreja e assentindo a subsunção das normas às leis
das mesquitas e igrejas.
O direito à vida é tão inviolável quanto o direito à liberdade do homem, estando
a própria Carta Constitucional concordante quanto a isso, ao dispor ambos na
mesma linha de importância (art. 5º, caput). Assim, havendo conflito entre os
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dois direitos, necessário será que haja uma conjugação e sopesamento dos
valores abordados, não devendo admitir querer fazer com que a mãe suporte
toda a carga de uma gravidez, cujo desfecho será trágico.
Inúmeras teorias acerca do tema existem, entretanto todos concordam com a
certeza de que, ao final, a má-formação encefálica ensejará na morte da
criança, ainda no útero ou dias após o nascimento. Isto posto, diante do fato
abordado, deve-se permitir liberdade a cada mulher de decidir se quer ou não
prosseguir com a gestação, segundo as suas convicções, pautadas nos
princípios da liberdade, da dignidade e da autonomia da vontade.
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