a cultura musical da zona portuária carioca nos embalos do g.r.b.c. fala meu louro
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
DO RIO DE JANEIRO
A cultura musical da Zona Portuária carioca nos embalos do G.R.B.C.
Fala Meu Louro
Raphael Sousa dos Santos
Rio de Janeiro, RJ
2013
1
Raphael Sousa dos Santos
A cultura musical da Zona Portuária carioca nos embalos do G.R.B.C.
Fala Meu Louro
Monografia apresentada ao curso Projeto
Experimental em Jornalismo como
requisito parcial à obtenção do grau de
especialista em Comunicação Social/
Jornalismo.
2
RESUMO
De todas as maneiras que já me envolvi com a cultura da região portuária carioca, esta
deve ter sido a mais desafiadora. Da composição de um samba à descoberta da uma fachada
“nova” construída antes do nascimento de meus bisavós, nada se assemelha ao percurso histórico
do Fala Meu Louro que tracei nas páginas a seguir.
A quadra do bloco, na Rua Waldemar Dutra, 17, fez parte de alguns momentos de minha
infância e adolescência, mas nenhum deles ligados ao samba, muito menos à agremiação. O local
era alugado para festividades de famílias locais. No ano passado, quando alguns amigos
resolveram assumir a diretoria do Louro e colocá-lo na rua, resolvi me debruçar na história do
bloco que emociona tantos conhecidos que vivem há mais de 30 anos na região. E entendi o
porquê da euforia. A cada depoimento me senti um missionário com um único objetivo: tornar
acessível a trajetória de um dos bloco mais antigos da história do carnaval carioca.
A seguir, apresento o resultado de quase um ano de estudo sobre essa pedra preciosa da
cultura brasileira, que ainda merece ser lapidada por muitas outras mãos. Uma história que
começa a ganhar força no encontro de Sinhô, o Rei do Samba, com os atletas do time Atília
Futebol Clube, formado no Morro do Pinto, até hoje existente na Zona Portuária. Localidade que
por sinal foi berço do pianista e compositor Ernesto Nazareth anos antes e até hoje nunca recebeu
reconhecimento à altura de seu valor histórico.
Oficialmente, o G.R.B.C. Fala Meu Louro existe desde 1938. Para manter a agremiação e
semear divertidos carnavais pela região portuária, o Louro filiou-se à Liga de Blocos da Zona
Portuária e transformou diversas vezes seu formato de banda e alas. Antes desse período, a banda
que originou no bloco levava o mesmo nome do time do Morro do Pinto.
As transformações da cidade desde o Brasil Império refletiram diretamente na região
estudada, tanto geograficamente como socialmente. Esses reflexos são analisados no capítulo “O
jeitinho luso-afro-carioca”. Em seguida, cabe abordar as peculiaridades da agremiação e sua fase
áurea durante o século 19. De acordo com todos os entrevistados para esta pesquisa, na década de
1970 o Louro se destacava em todas as batalhas de confetes e banhos de mar realizados na Praia
do Flamengo. Contam que nesta época o bloco chegou a ter sócios que contribuíam
financeiramente para manter a estrutura e fazer o carnaval, conforme relatado em “O Louro voa
alto”.
Na década seguinte, o Fala Meu Louro fechou as portas por diversos fatores. Alguns são
contados no capítulo “Acertos com a história”. Foram trinta anos silenciados, “mas o papagaio
não se intimida”, como diz o samba. E em 2013 a ave de bico azul voltou às ruas da região.
3
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------- 4
O JEITINHO LUSO-AFRO-CARIOCA -------------------------------------------- 7
O LOURO VOA ALTO --------------------------------------------------------------- 15
ACERTOS COM A HISTÓRIA ----------------------------------------------------- 22
CONSIDERAÇÕES FINAIS --------------------------------------------------------- 26
ANEXOS -------------------------------------------------------------------------------- 27
ENTREVISTA -------------------------------------------------------------------------- 30
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ----------------------------------------------- 31
4
INTRODUÇÃO
Se atualmente temos a sensação de que as fronteiras culturais estão menores e o
fluxo mundial de informação é cada vez mais rápido, é bom saber que nem sempre foi
assim. Durante muito tempo as cidades se desenvolveram em torno das proximidades
portuárias, já que o mar era o único canal de acesso ao exterior. “O porto carioca era o
terceiro maior do continente americano em volume de comércio, no início do século
XX1", além de operar como porta de entrada de diversos imigrantes no país.
“O levantamento industrial realizado em 1907 pelo Centro
Industrial do Brasil afirma a supremacia do Distrito Federal no
panorama deste setor. A cidade do Rio de Janeiro detinha 33% da
produção nacional, contra 16% de São Paulo e 15% do Rio
Grande do Sul. Concentrava 56 % da produção dos moinhos de
trigo, 55% das indústrias de vestuário, 53% do setor de
construção naval, 41% de bebidas (sobretudo cerveja) e 25% da
produção de tecidos. Além disso, contava com a indústria mais
diversificada do país, abrigando 78 dos 98 grupos de produtos
que constavam do censo, sendo que 20 com exclusividade.” 2
Os anos de ouro da primeira fase do samba carioca germinaram diretamente no
solo da região portuária. Mais precisamente no trecho apelidado “por Heitor dos Prazeres
de ‘Pequena África’, que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, tendo
como capital a Praça Onze” 3. Entre as principais manifestações populares destacaram-se
os cordões, ranchos – de caráter mais disciplinado – e os blocos de sujos – que cresceram
à margem dos foliões das camadas médias e altas da sociedade, como o próprio nome
denuncia.
Além das histórias perdidas no tempo ou narradas descontinuamente, a Zona
Portuária comportou uma série de episódios que, registrados ou não, influenciaram os
rumos da canção popular brasileira. Um deles é a parceria entre a banda do Bloco
Carnavalesco Fala Meu Louro, existente desde a primeira década do século 20, e José
Barbosa da Silva (Sinhô), um dos líderes dos encontros nos terreiros da Cidade Nova, de
onde o samba criou sua primeira linguagem coletiva. Se não fosse a briga que o sambista
arrumou com sua turma da Cidade Nova, talvez esse encontro com os músicos do Morro
1 LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer. Dos Trapiches ao Porto. 2ªed. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio,
2006, p.94. 2 Id. Ibid., p.96.
3 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. 2ª ed. 1995. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, p. 93.
5
do Pinto jamais tivesse ocorrido. No entanto, a aproximação resultou em bons frutos a
partir da emblemática canção “Pé de Anjo”, que entrou para a história como a pioneira
marchinha satírica a ser trilha do carnaval de rua.
Posteriormente, o ritmo carioca passou por uma série de adaptações por seus
diversos seguidores até ser consagrado na cultura brasileira:
“Este estilo, que desceu o morro com compositores como Ismael
Silva, Newton bastos, Armando Marçal e Bide, ultrapassou os
limites das agremiações carnavalescas e cristalizou-se como a
mais importante contribuição das camadas populares urbanas do
Rio de Janeiro à história da música. De sua base rítmica e
melódica desenvolveu-se toda uma linha da música popular
brasileira, de Noel Rosa e Ari Barroso a Chico Buarque de
Holanda”.4
Quando o assunto é escola de samba, não podemos deixar de citar a valorosa
Vizinha Faladeira. Fundada no início da década de 30, na Zona Portuária, a agremiação
representou a região durante os primeiros concursos oficiais promovidos pelo governo em
parceria com jornais da época. Suas contribuições ao carnaval de passarela são
indispensáveis a qualquer estudo sobre a história dos desfiles apoteóticos, que até hoje
alimentam a imagem de exportação cultural do Brasil por meio de espetáculos produzidos
em cima de enredos.
Foi a Vizinha Faladeira a primeira escola a apontar como “impossível estabelecer
critérios precisos para julgar versos de improviso e sugerir que o samba se atrelasse ao
enredo” 5, por exemplo. Antes, os sambas apresentados nos desfiles se baseavam no
partido-alto, onde apenas o refrão é decorado. E ainda, os versos poderiam não respeitar o
tema proposto pelas alas e alegorias, tornando confusa a compreensão dos espectadores.
O comportamento questionador da direção da Vizinha Faladeira resultou em
diversas polêmicas durante seu período entre as líderes. E para surpresa de seus
representantes, em 1938 a escola foi desclassificada do carnaval por trazer um tema
internacional no enredo (Branca de Neve e os Sete Anões). A exclusividade de temas
patrióticos era exigida pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, que fez com que os
sambistas se organizassem para que o restante da sociedade aceitasse melhor a festa
popular. O episódio gerou imediato declínio da Vizinha Faladeira no carnaval e dura até
4 MUSSA, Alberto, SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, pp.15 e 14. 5 Id. Ibid., p.18
6
hoje. Diversos grupos de moradores e trabalhadores portuários tentaram reestruturar a
agremiação, mas nunca conseguiram restabelecê-la ao lado das pioneiras.
Por se inserir numa conjuntura menos complexa, o Fala Meu Louro ganhou uma
projeção que se sustentou aproximadamente cinquenta anos. Milhares de foliões dos
bairros Santo Cristo, Saúde e Gamboa lotavam as ruas do Centro em nome do papagaio
tagarela.
O segundo apogeu do bloco foi durante a década de 70, quando se tornou
recorrente a visita de grandes nomes do samba em seus ensaios na Praça Santo Cristo. De
acordo com a ex-presidente da época, Eunice, o Louro foi palco de apresentações de
músicos como Dicró, Zeca Pagodinho e Almir Guineto. Neste mesmo período, o bloco
colecionou alguns dos principais títulos de desfile, que eram disputados páreo a páreo
com “Cacique de Ramos” e “Bafo da Onça”, por exemplo.
É de suma importância reviver a trajetória do papagaio de bico azul da Zona
Portuária para desvelar alguns episódios desconhecidos na historiografia musical da
cidade. É também oportuno evidenciar o legado dos blocos de rua da região por meio da
trajetória do Fala Meu Louro, já que a agremiação retornou as atividades após pouco mais
de duas décadas parado.
No carnaval de 2013, o Louro voltou às ruas da região portuária graças a uma
comissão formada por moradores do Morro do Pinto, herdeiros de antigos responsáveis
pelo bloco. A memória que se perdia foi o principal incentivo para a ação. E ainda, a
recente retomada de atenções para a região portuária, impulsionada pelo projeto Porto
Maravilha, representa um momento fértil para o resgate desse pedacinho de história que
intervém anualmente em nosso instinto folião.
7
O jeitinho Luso-afro-carioca
A vinda de D. João VI ao Brasil em 1808, acompanhado de sua corte com 15 mil
pessoas, foi suficiente para desequilibrar a estrutura social e econômica da cidade do Rio
de Janeiro durante o século 19.
“Em menos de duas décadas, sua população duplicou, alcançando
100.000 habitantes, aproximadamente, em 1822, e 135.000, em
1840. Entre 1808 e 1816, foram construídas cerca de 600 casas
no perímetro da cidade, onde os sobrados começaram a suplantar
as toscas casas térreas dos tempos da colônia, e 150 nos arredores
- chácaras, em sua maioria, para a residência de verão dos
senhores e sua numerosa escravaria domestica.” 6
O aumento populacional também contribuiu para que as áreas do Centro e da
Zona Portuária fossem avaliadas como nobres, já que formavam a região urbana da
cidade com o maior número de colonos residindo. Nesta fase, os novos habitantes se
expandiram para a área que ficou conhecida por Cidade Nova, assim nomeada para se
diferir à região vizinha, hoje conhecida como Centro do Rio Antigo. O novo bairro se
estendia do Campo de Santana ao início de São Cristóvão, que já fazia parte da “freguesia
do Engenho Velho, onde antigos sítios e fazendas cederam lugar a moradias
aristocráticas, sobretudo na área compreendida entre a Quinta da boa Vista e a ponta do
Caju.” 7
A proibição do tráfico negreiro, em 1845, foi outro fator que alterou a
configuração social da região portuária. Mais especificamente no bairro da Gamboa, que
passou a receber os escravos no Cais do Valongo, por ser um local mais discreto da mira
das autoridades. Em pouco tempo, o bairro tornou-se populoso e insalubre, composto por
armazéns e trapiches. Entre a Praça Mauá e a Rua da Quitanda, a orla passou a ser
ocupada pelo fluxo cafeeiro, que logo tornou-se a atividade mais lucrativa da colônia.
Com o crescimento do setor, a utilização de mão de obra escrava era cada vez mais
intensificada. Por outro lado, “com a proibição do tráfico, aumentaram os preços dos
escravos e cada vez menos pessoas podiam comprá-los.” 8
6 BENCHIMOL, Jayme Larry. Pereira Passos - um Haussmann tropical. 1ª ed. Rio de Janeiro: Biblioteca
Carioca, 1992, p.25. 7 Id. Ibid, p.26.
8 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de e FILHO, Walter Fraga. Uma história do negro no Brasil. 1ªed. Bahia:
Centro de Estudos Afro-Orientais, 2006, p.174.
8
Em 1849 já havia 10.732 negros libertos nas freguesias urbanas,
deixando apreensivos os administradores da corte, temerosos,
como fora a administração colonial, de um levante negro na
cidade que ultrapassasse o desafio permanente com as fugas e
com os quilombos. Temores que haviam crescido com a revolta
de iorubás e malês em Salvador em 1835, provocando duras
medidas municipais contra os negros dentro do perímetro urbano,
que repercutiam nas atitudes do poder imperial e de sua polícia
com os escravos em todo país.9
Após a Lei Áurea, os negros passaram a povoar diversas freguesias da cidade,
inclusive as já citadas Santana e Santa Rita por serem as mais baratas e estarem
localizadas próximas ao cais do porto, onde podiam trabalhar como estivadores. Muitos
recém-libertos da Bahia também viriam reorganizar suas vidas na capital, fugindo das
práticas repreensivas que havia em Salvador. E ainda, a decadência do café no Vale do
Paraíba proporcionou a chegada de mais trabalhadores para as docas, que absorviam a
mão de obra barata disponível na cidade.
As transformações urbanas do século 19 trouxeram as primeiras características de
uma cidade moderna ao Rio de Janeiro. A Zona Portuária foi a região de maior
interferência a partir da implementação dos bondes, da reestruturação do porto carioca e,
em seguida, das reformas do prefeito Pereira Passos. Desde lá, as fronteiras sociais eram
delineadas pela geografia da cidade, levando em consideração o potencial econômico de
seus habitantes. Demarcações que se estendem aos dias atuais.
“No final do século XIX, a cidade, fora do centro comercial, está
dividida em áreas aristocráticas e populares. Copacabana e
Botafogo já se configuram como bairro de elite e os subúrbios,
por exemplo, Irajá e Inhaúma, como uma alternativa para as
camadas menos favorecidas, muito embora a maior parte dos
trabalhadores continuasse a residir no coração da cidade,
amontoada em cortiços, casas de cômodos ou no fundo do quintal
das pequenas fábricas e oficinas onde trabalham.” 10
A capital da República passava por grandes transformações. Nesta época, o
carnaval já era marcado pelos festejos populares proporcionados por diversos ranchos e
agremiações espalhados pela Zona Central do Rio de Janeiro. Nas primeiras linhas da
9 NOGUEIRA, Nilcemar, THEODORO, Helena, JUPIARA Aloy, VALENÇA, Rachel. Dossiê das Matrizes
do Samba no Rio de Janeiro. 1ª ed. Produção do Centro Cultural Cartola. Rio de Janeiro: Iphan/MinC, 2006, p. 15. 10
ROCHA, Oswaldo Porto. A Era das demolições - cidade do Rio de Janeiro 1870-1920. 2ª ed. 1995. Coleção Biblioteca Carioca, pp, 41 e 42.
9
crônica “Os cordões”, do livro “A alma encantadora das ruas”, o escritor João do Rio
descreve a sensação de estar num desfile de cordões já no início do século 20.
Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão
apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a
passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a
gritar, tipo que berravam pilhérias. A pleitora da alegria punha
desvarios em todas as faces. Era provável que o Largo de S.
Francisco à Rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta
grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos,
gritassem cinquenta mil pessoas.11
Os primeiros anos do século ficaram marcados pelo governo de Rodrigues Alves,
que nomeou o engenheiro Pereira Passos ao cargo de prefeito do Distrito Federal. Ele
"tomou posse em 3 de janeiro de 1903, antes mesmo da publicação do decreto de sua
nomeação. O projeto político-administrativo de Rodrigues Alves tinha dois pontos
chaves: a remodelação da capital e a política de imigração.” 12
É importante ressaltar as
ações políticas da época para que se perceba o distanciamento entre os sambistas e o
governo, já que, nesta fase, as comunidades praticantes do samba/ maxixe foram as mais
reprimidas pelo poder público.
Por outro lado, era favorável ao governo que as principais modificações
ocorressem no entorno da região portuária, pois era preciso modernizar as instalações e
operações do setor, ainda incompatíveis com os moldes europeus.
No projeto de construção da Av. Central (atual Av. Rio Branco) a festa do
carnaval foi mencionada apenas uma vez. Mesmo assim, como um dos argumentos
direcionados à aristocracia da época:
"Imagine-se por um momento o que serão, quando edificada a
nova rua, as grandes festas de carnaval e outras, que tão
grandiosamente se fazem nesta capital, quando os ricos préstitos
percorrerem aquela extensão e desembocarem na vasta praça, em
vez de andarem acanhadamente pelas ruas estreitas e tortuosas
que hoje temos." 13
Para esta construção, inspirada no modelo francês, foram derrubados alguns
morros vizinhos, como o Morro de Santo Antônio e o Morro do Castelo, que abrigavam
antigos escravos, além de retirantes de regiões do Norte e Nordeste do Brasil. Esta ação
11
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1995, p. 89. 12
ROCHA, op.cit., p. 58. 13
BENCHIMOL, op.cit., p.199.
10
era determinante para que o Centro da capital aludisse às largas avenidas francesas. Parte
desta população exilada tratou de se instalar na região da Cidade Nova, próximo à Praça
Onze e ao Estácio, onde já havia alguns casarões e cortiços de famílias baianas. Este foi o
cenário em que os primeiros sambas-maxixes surgiram.
Nestas comunidades eram marcantes as figuras das tias baianas. “Uma delas foi a
Tia Ciata, que proporcionou a integração de músicos durante as festas que oferecia em
sua casa14
”. A musicalidade herdada do batuque do candomblé africano, praticado nesta
região, se confundiu com outros ritmos e contribuiu para o surgimento e amadurecimento
do maxixe:
“(...) essa nova dança, marcada pelas tradições corporais do negro
e por sua sensualidade, passa a ocupar as fantasias dos homens
das classes médias, e consequentemente a atrair a atenção da
censura de costumes, fazendo parte de um tipo de divertimento
urbano moderno que transcorre fora do âmbito da família.” 15
Assim também nasceram os primeiros sambas de terreiro. Diretamente do
território das tias baianas para as gafieiras e bares da Zona Central. José Barbosa da Silva,
mais conhecido como Sinhô, era um dos músicos que liderava os encontros de criação
musical coletiva, numa roda, com direito a todo tipo de improviso. Alguns historiadores
relatam que o samba “Pelo Telefone”, reconhecidamente o primeiro a ter registro (em
novembro de 1916 por Donga), foi criado nesta montagem espontânea, em grupo. No
entanto, a polêmica nunca ficou esclarecida.
Sinhô é um dos personagens centrais desta pesquisa. Mas antes de mencionar sua
importância, vale analisar a formação sociocultural da cidade durante primeira metade do
século 20
Uma das obras urbanas herdadas pela geração de Sinhô, por exemplo, foi o
aterramento do trecho da pedreira de São Diogo (atual morro do King Kong) até o Cais
da Imperatriz (atual rua Barão de Tefé) para a construção da primeira estação ferroviária
do Centro da cidade.
"Uma vez construído o cais e aterrado todo aquele espaço
triangular formado pelo Saco de São Diogo, seria instalada ali a
E. F. D. Pedro II. Um ramal ferroviário acompanharia a margem
esquerda do canal até o cais e prosseguiria sobre uma ponte de
14
MOURA, op.cit., p.51. 15
MOURA, op.cit., p.65.
11
mais de 500m de extensão, até encontrar fundo suficiente para a
atracação de navios de grande calado. O objetivo deste ramal e do
novo cais era evitar os prejuízos financeiros decorrentes do
congestionamento das ruas estreitas do centro pelo trânsito de
mercadorias (incluindo os pesados artefatos metálicos
empregados nas obras públicas), entre a estação ferroviária e o
porto.” 16
Foi graças a estas e outras obras de abertura de ruas que o Morro do Pinto teve
condições de receber seus primeiros moradores. Conforme estudos feitos por Sérgio
Tadeu de Niemeyer Lamarão, em meados do século 19 a localidade teve seus primeiros
investimentos urbanísticos.
"O que mais chama a atenção na área de estudo é a rápida e
repentina abertura de vias no morro do Pinto, possibilitando sua
progressiva ocupação. As plantas de 1852 e 1864 retratam o
morro como um verdadeiro vazio, que conta apenas com a antiga
Rua de Santa Teresa e a Rua do Pinto (presente somente na de
1864). Já o mapa de 1875 apresenta um quadro totalmente novo:
o morro aparece cortado de vias em suas duas vertentes e mesmo
na cumeira, verificamos que o Morro do Pinto serviu de palco a
dois processos simultâneos, através dos quais foram adquiridas e
posteriormente loteadas muitas das chácaras aí existentes" 17
Ao mesmo tempo em que a capital da República se transformava estruturalmente,
as agremiações carnavalescas populares nasciam no berço das comunidades remanejadas
pelo poder público. O primeiro rancho que se tem notícia, por exemplo, é o Rei de Ouro,
de Hilário Jovino, que em 1884 “apresentou-se no Itamaraty – numa evidente
manifestação de prestígio – para o presidente Floriano Peixoto.” 18
Ainda na primeira década do século seguinte, o Jornal do Brasil realizou o
primeiro concurso de ranchos da história, determinando em regulamento as sociedades
organizadas em “abre-alas, comissão de frente, alegorias, mestre-sala e porta-estandarte,
mestres de canto, coro feminino, figurantes, corpo coral masculino e orquestra.” 19
Esta formalização dos ranchos era o que os distinguiam dos blocos de sujos, que
saiam às ruas sem organização e eram marcados pela presença de muitos negros. A
origem destes blocos se perdeu na historiografia brasileira, já que a manifestação não
estava entre os interesses da elite carioca, embora nunca tenha sido extinta do carnaval.
16
BENCHIMOL, op.cit., p.144. 17
LAMARÃO, op.cit., pp.96 e 97. 18
MUSSA, SIMAS, op.cit., p.11. 19
MUSSA, SIMAS, op.cit., p.12
12
Portanto, restam-nos principalmente os imprecisos relatos perdurados por mais de um
século.
Já bastante habitado, o Morro do Pinto tornou-se cenário para o surgimento do
time Atília Futebol Clube, que logo ganhou fama em toda a região. Por volta de 1910, os
atletas do Atília fundaram uma banda carnavalesca a fim de desfilar pelo bairro do Santo
Cristo durante o período carnavalesco. Nesta época - é importante lembrar - esta
iniciativa passava longe dos olhos da elite carioca e, principalmente, da imprensa da
época.
Alguns anos após sua fundação, já se sabia na região que a banda dos atletas era
tecnicamente aprimorada, em relação às demais. E foi justamente essa a notícia que
aproximou o sambista Sinhô de uma das suas futuras bandas de embalo. José Barbosa da
Silva, conhecido nos anos 20 como o Rei do Samba, frequentava muito a antiga Vila
Formosa, na Zona Portuária, onde fundou e acompanhou blocos e ranchos. O sambista
também era bastante respeitado por seu destaque musical nas festas realizadas em
comunidades baianas do bairro do Estácio.
Quando o violonista Donga registrou o pioneiro samba “Pelo Telefone” sem
mencionar a contribuição de Sinhô à obra, provocou no sambista a maior inspiração para
mudar seu estilo de compor, além de uma grande implicância com os bambas dos
terreiros baianos. O embate foi suficiente para que Sinhô passasse a frequentar mais o
outro lado da Zona Central da cidade, onde moravam os componentes do Atília. Segundo
o historiador e musico Nei Lopes, a briga, “que acabou por opor cariocas e baianos e
projetar o nome de Sinhô, representou a primeira crise da música brasileira” 20
.
Nestas circunstâncias, a banda do Atília Futebol Clube acabou sendo escalada
para o time de bambas do Rio de Janeiro. A parceria com a malandragem do Rei do
Samba tornou a banda dos atletas umas das mais respeitadas durante os encontros de
sambistas. A princípio, a fusão resultou no lançamento de duas canções inéditas,
determinantes para alavancar a carreira de Sinhô: “Pé de anjo” e “Fala Meu Louro”.
Ambas sucesso no carnaval de 1920. A primeira delas ficou reconhecida como a pioneira
marchinha carnavalesca ao lado de “Pois não”, de Eduardo Souto. Mérito que também
deveria ser dado à banda do Atília, mas acabou abafado, devido à projeção da carreira de
Sinhô, com o decorrer dos anos seguintes.
20
LOPES, Nei. Quem foi mesmo que renovou o Samba, hein? neilopes.blogger.com.br. 12 de abril, 2012. http://www.neilopes.blogger.com.br/2012_04_01_archive.html
13
“Sucesso absoluto em todo o Brasil, no O Pé de anjo Sinhô mais
uma vez provocava seus desafetos. A marcha ao que tudo indica
era endereçada ao China (Otávio da Rocha Viana), irmão do
Pixinguinha, um dos elementos mais visados pelo irrequieto
compositor.” 21
A segunda canção trouxe tanta fama aos rapazes do Atília, que acabou sendo o
novo nome do grupo. Desta vez, o sambista escolheu satirizar a derrota de Rui Barbosa
nas eleições presidenciais daquele ano nos versos da canção “Fala Meu Louro”. “Por isso
mesmo o ousado compositor o interpreta graciosamente no seu grande samba, que logo se
espalha por todo o Brasil”.22
Daí em diante, a banda do Louro era presença certa nas festas da Penha ao lado de
Sinhô. Vale lembrar que, devido ao forte temperamento e vaidade de Sinhô, o Louro,
assim como os demais grupos que o acompanhou, jamais teve o devido reconhecimento
por parte do sambista ou da crítica, que o perseguia. A informalidade assombrou os
rapazes do Atília até os anos 70.
Coincidência ou não, situação semelhante aconteceu com a Escola de Samba
Vizinha Faladeira, também da região portuária. A agremiação conviveu todos esses anos
com ofuscamento histórico após desrespeitar o regulamento nacionalista, sugerido pelos
sambistas, durante o Estado Novo de Vargas. O mais irônico é que a escola saiu de cena
no mesmo ano em que o Fala Meu Louro foi oficialmente registrado.
“Em 1938 o primeiro artigo do regulamento proposto pela União
das Escolas de Samba dizia o seguinte. De acordo com a música
nacional, as escolas não poderão apresentar os seus enredos no
carnaval, por ocasião dos préstitos, com carros alegóricos ou
carretas, assim como não serão permitidas histórias
internacionais em sonhos ou imaginação (...). Foi este polêmico
artigo do regulamento de 1938 que gerou a desclassificação, no
carnaval seguinte, da Vizinha Faladeira. A escola desfilou com o
enredo ‘Branca de Neve’, baseado no desenho de Walt Disney.” 23
O fato que mais nos interessa é que neste ano o Fala Meu Louro obteve
reconhecimento da Polícia Militar e incorporou as iniciais “Grêmio Recreativo Bloco
Carnavalesco” ao seu nome. Após a morte de Sinhô, em 1930, não há relatos oficiais
21
ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do samba. Edição ilustrada. Rio de Janeiro, 1968: Civilização Brasileira, p. 60.
22 Id. Ibid., p.40.
23 MUSSA, SIMAS, op.cit., p. 51.
14
sobre as atividades da agremiação. Este é o período em que a história do Louro começa a
ser remendada exclusivamente pelos relatos e fotografias de seus antigos integrantes.
A primeira fase do bloco após seu registro se estendeu até a década de 60.
Segundo Waldir Trindade de Aviz, mais conhecido como Waldirzinho, esse período foi
marcado pela presença de uma banda de sopro - sem instrumento de percussão -, e o
descuido estético e organizacional de seus desfiles. As últimas características renderam
aos integrantes do Louro a fama de brigões, como reconhecem muitos dos que
acompanharam a transição do bloco nos anos 70. Conta-se que o pessoal do Louro se
envolvia em brigas na maioria dos encontros entre blocos. Por episódios semelhantes a
esses, “a polícia proibira o pandeiro de tarraxa, mas os choques entre as escolas eram
frequentes”24
24
CARNEIRO, Edison. Unidos do Salgueiro, 1953. Correio da Manhã, Minas Gerais, 14 set. 1968. Segundo Caderno, p.4.
15
O Louro voa alto
As escolas de samba já haviam tomado conta da cena carnavalesca e o samba já
era elemento de aproximação popular à política do governo Vargas. Fator este que
contribuiu para que os blocos recebessem menos atenção das autoridades e tendessem ao
ostracismo cultural.
Os quatro anos seguintes ao registro do Fala Meu Louro foram marcados pelas
consecutivas vitórias da Portela, graças à dedicação do diretor Paulo da Portela. O
sucesso da agremiação de Oswaldo Cruz é relacionado à diversas atuações pioneiras.
“A Portela marcou de maneira decisiva a história das escolas de
samba. Dentre outras coisas foi a primeira agremiação a desfilar
com alegorias, uniformizou a comissão de frente e introduziu a
caixa-surda e o apito de bateria. Não bastasse isso, foi a pioneira,
através da figura do presidente Natal, da ligação entre as escolas
de samba e o jogo do bicho.” 25
De fato, todas as contribuições da Portela, citadas acima, foram incorporadas pelo
Fala Meu Louro na década de 70, quando o bloco decidiu alterar o formato musical,
tendo sua primeira banda de bateria durante os ensaios. Antes disso, a banda do Louro
mantinha o tradicionalismo da sonoridade das bandas de baile de salão. O legado deixado
pelos contemporâneos de Sinhô fazia a festa dos foliões pelas ruas da região portuária.
No centenário da Independência, o Brasil teve sua primeira experiência com a
radiodifusão. Era quase improvável arriscar que, anos mais tarde, a Zona Portuária seria
palco de amadurecimento do recente fenômeno. E foi na década de 40, marcada pela
febre do rádio, que a música brasileira alcançou as massas pela primeira vez e se
singularizou em território nacional. As rádios de maior sucesso tinham suas sedes no
centro do Rio. Entre elas, a Radio Nacional, instalada no famoso edifício “A noite”.
“O edifício A Noite dá ao Brasil um título muito especial:
primeiro país no mundo a ter construído um "arranha-céu" (como
eram chamados na época) com mais de 100 metros de altura
(102,8 metros para ser exato), inteiramente de concreto armado.
Os mais altos edifícios do mundo até então — o Dayton (Estados
Unidos), com 71,1 metros, e o Sterling (Canadá), com 77,5
metros — haviam sido construídos em estrutura metálica. O
edifício A Noite, chamado na época de "prodígio arquitetônico",
25
MUSSA, SIMAS, op.cit., p.131
16
foi construído entre os anos de 1926 e 1928, a partir de um
projeto e cálculos de Emílio Baumgart, um autêntico teuto-
brasileiro, nascido em Blumenau em 1880.” 26
“Na sexta-feira, 8 de março de 1940, o presidente Getúlio Vargas assinou o
decreto-lei 2.073”27
em que instituiu a Radio Nacional como parte das Empresas
Incorporadas ao Patrimônio da União. Desta forma, o Estado Novo incorporou a rádio,
promovendo-a como instrumento de afirmação nacionalista, assim como o samba. No
entanto, era incomum que os poetas do morro fossem aos auditórios de rádios, mas
algumas de suas canções eram interpretadas por outros cantores, atualmente consagrados
na historiografia musical. Um deles foi “Jorge Goulart, que foi o primeiro cantor popular
a interpretar sambas-enredo para uma escola de samba, a Império Serrano”.28
Os bairros da Zona Portuária, formados por famílias portuguesas, além das
descendentes de escravos e nordestinos, respiravam a moda regida pelas cantoras de rádio
em seu tempo de ouro. Era comum que muitas donas de casa da região se deslocassem
para a porta de uma rádio e tentassem se infiltrar nos disputados auditórios atrás do sonho
de conhecer algum cantor ou cantora da época. Dona Julieta da Silva Roseira, 91, conta
que morava no Santo Cristo quando a Radio Nacional montou seus primeiros programas
de auditório. Ela lembra que até tentou participar como calouro em outros programas,
mas nunca conseguiu.
Na década de 50, os blocos de rua já eram instituições regionalizadas, perdidas do
controle e interesse da cidade em geral. O eixo da música carioca/brasileira já não estava
na região central da cidade. No fim da década, os holofotes se voltaram para a Zona Sul,
de onde surgiu o movimento Bossa Nova, tendo como expoente o jovem João Gilberto.
Pela primeira, vez a legitimidade da canção produzida em território nacional gerava
ruídos polêmicos. Estaria ameaçado o tradicionalismo do samba, criado por Sinhô e sua
turma?
“O aparecimento da chamada bossa nova na música urbana do Rio de Janeiro
marcou o afastamento definitivo do samba de suas origens populares.” 29
Pela primeira
vez, a música brasileira se ramificava a partir de uma comunidade de alto poder
aquisitivo. A bossa nova introduziu na canção brasileira a fusão entre o popular e
algumas influências clássicas, sendo o segundo elemento fundamental para sua projeção.
26
AGUIAR, Ronaldo Conde. ALMANAQUE DA RÁDIO NACIONAL. 1ªed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.
27 Id. Ibid., p.16
28 Id. Ibid., p.37
29 TINHORÃO, José Ramos. Música popular - um tema em debate. 2ª ed. Rio e Janeiro: JCM, 1969.
17
“Ora, a década de 50 marcava, no Rio de janeiro, o advento da
primeira geração de jovens do após-guerra e após-ditadura.
Estabelecida pela corrida imobiliária a divisão econômica da
população da cidade – os pobres na Zona Norte e nos morros, os
ricos e remediados na Zona Sul – a apareceria logicamente na
zona grã-fina de Copacabana uma camada de jovens
completamente desligados da tradição, isto é, divorciados da
espécie de promiscuidade social que permitira até então, aos
representantes da classe média, participar de certa maneira, em
matéria de música popular, do contexto cultural da classe
colocada um degrau abaixo em escala social.” 30
O rompimento com a sonoridade encontrada por Sinhô e a turma da Cidade Nova
levou a música brasileira às discussões sociológicas acadêmicas, além de torná-la
universal. Por outro lado, os blocos de rua foram cada vez mais afastados da discussão
cultural da cidade e a espontaneidade de seus foliões temperava o discurso amedrontado
das elites.
As novidades musicais e as transformações sociais causavam dúvidas e críticas
por parte dos conservadores. Em fevereiro de 1957, o jornal carioca “Para Todos” aborda
a decadência do carnaval através dos depoimentos de Ary Barroso e Mario Lago. A
repórter Thereza Camargo escolhe o formato de texto declarativo, divulgando a entrevista
na íntegra. Pergunta ela a Ary Barroso se ele acha que o carnaval está em decadência.
Ary foi categórico:
“Está e posso apontar quatro razões para fundamentar a minha
afirmativa: 1º) – A oficialização do carnaval, que deu aos clubes,
ranchos e escolas de samba a sensação de beneficiários do poder
público, tirando aquilo que fez realmente a grandeza do folguedo
carnavalesco, a iniciativa particular (...). 2º) - A ausência do corso
que constituía um dos detalhes tipicamente cariocas do nosso
carnaval (...). 3º) - A morte dos blocos, hoje substituídos pelos
‘sujos’ insuportáveis e perigosos que infestam a cidade e os
subúrbios (...). 4º) – A mediocridade do repertório, pois a música
deixou de ser inspiração, brasilidade e beleza, para se transformar
em indústria de medíocres, sufocando o muito pouco que nos
resta de estro e ternura (...).” 31
Nota-se que o músico, já em 1957, sustentava a crítica sobre a perda de
“brasilidade e beleza” nas canções carnavalescas – tipicamente tradicionais. Em sua
terceira justificativa, Ari toca na questão que nos interessa nesta análise: a rejeição dos
blocos de sujos. A categoria que fazia parte o Fala Meu Louro naquele momento era
30
TINHORÃO, op.cit., p.36 31
CAMARGO, Thereza. Está ou não em decadência o carnaval? Para Todos, Rio de Janeiro, set. 1957. p,23.
18
rejeitada por quase a totalidade dos cariocas. A principal alegação era a permissividade
dos membros das agremiações. Para muitos eles eram considerados socialmente
perigosos.
O morador do morro do Pinto Wilson Carneiro desfilou no Louro durante este
período. De acordo com ele, muitos comerciantes até fechavam as portas quando sabiam
que por ali iriam passar os integrantes do bloco durante o desfile. Wilson conta que
membros da agremiação já chegaram a roubar cavalos da Polícia Militar e usá-los na
comissão de frente do Louro. A ex-presidente Eunice reforça o discurso ao afirmar que
havia briga em quase todos os encontros de blocos. Sempre envolvendo os integrantes do
Louro.
É evidente que os grandes acontecimentos musicais da cidade sequer passavam
pela região, muito menos pelo Fala Meu Louro. O contexto foi composto apenas como
título de ilustração, para que entendamos como a localidade tornou-se indiferente para as
autoridades em tão pouco tempo.
Por outro lado, é de suma importância para qualquer instituição cultural
autossustentável que haja liberdade de atuação. Desta forma, é possível reformular os
padrões ou se equilibrar de maneira espontânea. E sem muita resistência, o Fala Meu
Louro começou a traçar seu novo rumo. Primeiro alterou seu formato de banda, passando
a adotar apenas percussões em seus ensaios. Waldirzinho Fez parte da primeira
montagem de bateria do Louro.
Eunice conta que entrou para a diretoria do bloco em 1966, apoiada por seu
namorado na época, que era bastante influente no bairro. Neste período, o Fala Meu
Louro ainda não tinha um local fixo para ensaiar. Os foliões ocuparam diversos locais
emprestados ou alugados da região para manter constantes os encontros. A comissão
organizadora estava determinada a reestruturar o tradicional grêmio recreativo.
Com o decorrer dos anos, já na década de 70, o Louro se afiliou à Liga dos Blocos
Carnavalescos da Zona Portuária e teve que reformular sua identidade. Passou a ser
classificado como “bloco de embalo” e não mais “de sujos”. Passou a ter eleições anuais
para escolha de rainha e princesa, além de ser composto um novo samba/marcha de
embalo para cada desfile. A música mais marcante para o ex-presidente Carneiro foi o
samba que homenageou o clube que deu asas ao bloco no início do século:
Fala Meu Louro
Deixa esse Louro falar
19
Esse louro é bastante inteligente
Fala como gente que o Atília vai ganhar
A asa branca
O bico azul
Esse louro é Atília pra chuchu
Outra grande mudança foi estrutural, já que a disposição dos foliões passou a ser
em alas vestidas com uniformes. Para Wilson Carneiro, uma das melhorias mais
significativas foi a introdução de um carro de som – concedido pela prefeitura – aos
intérpretes do bloco, já que a agremiação havia se organizado junto à Liga. Ele conta que,
quando o Louro ainda era bloco de sujo, o recurso era negado pelo poder público. Além
das novidades, o ritual de gravar discos voltou a ser exercido pela agremiação, sempre
que possível.
De certa forma, o Fala Meu Louro deve muito aos governantes. Suely Azevedo,
esposa do Waldirzinho, lembra que foi graças à influencia de seu marido no gabinete do
prefeito que o Fala Meu Louro obteve a concessão da atual quadra. Segundo ela, no lugar
funcionava uma agência da Caixa Econômica Federal já desativada, quando o espaço foi
destinado aos bambas. Fato semelhante ocorreu em 1996, quando o “vereador Jorge
Pereira viabilizou obras de reforma nos banheiros, instalações hidráulicas e instalações
elétricas, além da cobertura da quadra” 32
. O fato é que, na década de 70, o Louro
decolava cada vez mais alto.
Além do advento da quadra, a época ficou marcada pela refinada estrutura
proporcionada pelo bicheiro conhecido como Tesoura. Apaixonado pelo carnaval do Fala
Meu Louro, Tesoura resolveu entrar na comissão organizadora do bloco como
financiador das reformas e das festividades oferecidas aos sócios e moradores. O Louro
funcionava como um clube, só que sem catraca na entrada. Havia sócios que todo mês
contribuíam financeiramente com o bloco, mas o grande patrocinador do período era o
bicheiro, que fazia ponto da Praça Santo Cristo. Foi graças ao Tesoura que o Fala Meu
Louro passou a ser frequentado por grandes personalidades do samba.
O cantor e compositor Almir Guineto não hesita ao responder como foi parar no
Fala Meu Louro através do Tesoura que o contratou na época. Segundo o músico, os dois
ainda são grandes amigos desde essa época. Almir Guineto participava das rodas de
samba do bloco acompanhado pelos grupos Samba Som Sete, Exporta Samba ou Nosso 32
POVÃO, Marlene. Sonho antigo dos moradores será realizado. Jornal do bairro – Zona Portuária, Rio de Janeiro, maio. 1996, p.4.
20
Samba, que embalavam as festas da agremiação. O cavaquinhista do grupo, conhecido
como Ratinho, acompanha Almir Guineto até hoje em seus shows pelo Brasil.
Nesta época a região portuária comportava muitos blocos de embalo. Alguns deles
são: Coração das Meninas, Eles que Digam, Independente do Morro do Pinto, Unidos do
Moreira Pinto e o Fala Meu Louro. Havia ainda o rancho Unidos do Morro do Pinto, que
por ter outra classificação acadêmica, já vinha conquistando mais espaço na imprensa da
época.
“Passavam das 22 horas quando o primeiro rancho, o Tomara
Que Chova, abriu o desfile, apresentando-se na Av. Presidente
Vargas, vindo dos lados da Central do Brasil, em direção à
Candelária. O Grupo, que não era dos maiores, trazia como
enredo “Curiosidades do Brasil”. O Unidos do Morro do Pinto
veio em seguida, com a “História da Galeota Imperial, de 1908 a
1922”, e permaneceu demoradamente frente à Comissão
Julgadora.” 33
De qualquer forma, ao contrário das bandas de MPB e outras de grande projeção
nacional, essas agremiações passavam longe dos censores do Regime Militar. Nenhum
bloco da área chegou a sofrer repressão do governo. Enquanto os artistas populares
deixavam o país, os movimentos dos blocos cariocas aumentavam cada vez mais.
Além dos clássicos desfiles, o evento mais disputado do ano pelos blocos
carnavalescos era o “Banho de Mar”, promovido no Aterro do Flamengo. Segundo os
antigos integrantes, o Fala Meu Louro ganhou o concurso durante seis anos consecutivos,
em sua fase áurea.
A década de 80 poderia ter sido melhor para o bloco, não fosse o afastamento do
Tesoura. De acordo com ele, o Fala Meu Louro só fez parte da sua vida até o ano de
1976. De lá pra cá nada mais ele soube. Moradores contam que o motivo de tanto rancor
se deve à retirada de seu nome da parede da quadra do Louro. Vaidoso, Tesoura se sentiu
esquecido pelos membros da instituição que tanto ajudou a crescer. Almir Guineto conta
que o bicheiro também enfrentou uma série de problemas devido à ilegalidade da
profissão, que o fez quebrar financeiramente. De qualquer forma, é interessante o fato de
que os dois mantêm até hoje a amizade decorrente dos encontros no Fala Meu louro. O
cantor e compositor orgulha-se ao dizer que ajuda o amigo em qualquer situação.
Os anos 80 foram de declínio para o Louro, que continuou no pique de seus
desfiles até encerrar as atividades no final da década. A ex-presidente Eunice conta que a
33
Jornal O Globo. Ranchos êste ano mais aplaudidos. Rio de Janeiro, 28 fev. 1968, p, 7.
21
maioria dos foliões do bloco migrou para a Escola de Samba Tradição, dissidente da
Portela, que surgia naquele momento. De acordo com ela, os ritmistas se sentiram
atraídos pela proposta de boa remuneração oferecida pela nova escola.
Em 1996, Wilson Carneiro passou a tomar conta da quadra do Fala Meu Louro,
que ainda manteve a razão social enquanto bloco carnavalesco. O local era alugado para
festas familiares e eventos em geral para que fossem pagas as contas cobradas de
impostos e contas de água e luz.
No ano de 2012 um grupo de moradores do Morro do Pinto resolveu assumir a
presidência da Fala Meu Louro e colocá-lo novamente na rua. Para isso foi necessária
uma reunião com representantes da prefeitura, já que a quadra do bloco estava ameaçada
de ser tomada pelo poder público devido às dívidas multiplicadas ao longo destes anos. O
prefeito Eduardo Paes, via Twitter, informou que o bloco continuaria na quadra. A partir
daí, o ano de 2013 foi marcado pela volta da agremiação às ruas da Zona Portuária. O
bloco retomou as atividades, escolhendo samba, ritmistas e intérpretes para o carnaval.
22
Acertos com a história
É incontestável a contribuição do Fala Meu Louro para a cultura popular
carnavalesca do Rio de Janeiro. O bloco atravessou gerações e acompanhou as principais
transformações sociais da cidade, além de introduzir uma série de tendências ao carnaval
de rua em suas primeiras décadas.
A partir da trajetória do Fala Meu Louro é possível construir a musicalidade que
embalou as festas populares da Zona Portuária durante o século 20. Em muitas vezes, a
história do Louro coincide com o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro. Sua
popularidade alcançada na segunda década de vida, por exemplo, acompanha a
efervescência das ruas do Centro do Distrito Federal, que ainda concentravam as
principais atividades urbanas de todo o município. Em seguida, o espaço metropolitano
foi se alargando de acordo com a demanda migratória, impulsionada pela necessidade de
expansão do estado que se formava.
“A estrutura espacial de uma cidade capitalista não pode ser
dissociada das práticas sociais e dos conflitos existentes entre as
classes urbanas. Com efeito, a luta de classes também reflete-se
na luta pelo domínio do espaço, marcando a forma de ocupação
do solo urbano. Por outro lado, a recíproca é verdadeira: nas
cidades capitalistas, a forma de organização do espaço tende a
condicionar e assegurar a concentração de renda e de poder na
mão de poucos, realimentando assim os conflitos de classe.” 34
Com a definição dos espaços nobres da cidade, concentrados na Zona Sul, o
samba passou a figurar como elemento quase que folclórico das camadas mais pobres. Os
poetas de morro não se infiltravam nas sociedades refinadas e vice-versa. Na época de
ouro do rádio, por exemplo, não havia espaço para que estes personagens atuassem nos
auditórios lotados. Noel Rosa, que não era do morro, foi um dos poucos sambistas
tradicionais a passar pelo rádio. No entanto, vale ressaltar que, o sambista mangueirense
Cartola atraiu as atenções de futuros intérpretes do rádio desde muito cedo. O fundador
da Estação Primeira de Mangueira era visto como ótimo letrista e músico, mas nunca
houve convite para que ele cantasse no rádio.
34
ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997, p. 9.
23
“Em 1931, Mario Reis veio a morro. Ele chegou com um rapaz
chamado Clóvis, que era guarda municipal e que tinha dito que
era meu primo, coisa e tal. O Clóvis subiu para falar comigo, mas
o Mário ficou lá embaixo. Chegou dizendo que o Mário queria
comprar um samba meu. Pensei que ele estava maluco. Como,
vender samba? Clóvis disse que era para o Mário gravar, e tanto
insistiu que eu acabei descendo e cantando um samba pra ele,
que, por sinal, ele já conhecia. Perguntou quanto eu queria.
Fiquei sem resposta. Já pedir uns cinquenta mil-réis, mas Clóvis
cochichou pra eu pedir quinhentos. Aí eu pedi trezentos. Ele me
deu.” 35
Nota-se que a prática de vender samba era anterior ao advento da radiodifusão no
Brasil. Neste momento, as agremiações carnavalescas de caráter espontâneo patinavam
na informalidade e terminavam expulsas da discussão social, tanto acadêmica, quanto
informal. Apenas em 1935, na prefeitura de Pedro Ernesto, que os desfiles dos “ranchos e
de grandes sociedades” 36
do samba passaram a fazer parte do programa oficial do
carnaval, elaborado pelo Departamento de Turismo. A União das Escolas de Samba,
criada um ano antes, facilitou a aceitação oficial.
O mesmo não se pode dizer das agremiações bairristas. Assim como o Fala Meu
Louro, estes blocos só foram reconhecidos pelas instituições públicas em 1938, quando se
tornou obrigatório o registro de todas as sociedades carnavalescas da cidade, até mesmo
as que só existiam no papel.
Dessa forma, a política de Vargas pretendia controlar as ações comunitárias a fim
de medir o poder e aceitação de seu governo. Legitimar o samba como identidade de uma
nação majoritariamente excluída desta prática cultural, demonstra bem o aspecto de sua
política. A partir de raciocínio feito por Hannah Arendt, a antropóloga Marilena Chauí
reitera a percepção a respeito desta prática.
“O poder é a coerção mediada pela lei, a qual pode ser tanto fonte
de liberdade como de dominação, e seu fundamento é o
consentimento – quando o consentimento é voluntário, o poder
propicia a liberdade; quando o consentimento é forçado, torna-se
dominação e opressão. Para Arendt, a força opera por meio da
violência com finalidade de eliminar diferenças; a formação
opera pela formação do sentimento comunitário, considerando as
diferenças como secundárias.” 37
35
SILVA, Marília T. Barboza da, Filho, Arthur L. de Oliveira. Cartola: os tempos idos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003.
36 SILVA, Marília T. Barboza da, MACIEL, Lígia dos Santos. Paulo da Portela, traço de união entre duas
culturas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Funarte, 1979. 37
CHAUI, Marilena. O que é política? 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.
24
Com todos os obstáculos instituídos, os sambistas ligados aos blocos de rua se
marginalizavam cada vez mais aos olhos de uma sociedade moralista. Era necessário
vestir a carapuça para conquistar uma abertura na história do carnaval de rua. O Fala Meu
Louro agiu como um emblema desta conduta. Bandidos do Morro da Favela (atual
Providência) praticamente só saiam do morro para desfilar no bloco, que recebia
incentivo financeiro de bicheiros e dos chamados malandros.
Esses e outros motivos que feriam os critérios de noticiabilidade dos veículos
impressos, e da mídia em geral, afastavam o Fala Meu Louro das colunas carnavalescas.
Até mesmo na década de 70, quando o bloco teve um desempenho acima da média dos
demais, o nome da agremiação apareceu poucas vezes em jornais populares. Todos os
depoimentos de pessoas que acompanharam o bloco neste período são coincidentes, ao
citar os anos em que o bloco liderou o concurso do Banho de Mar, no Aterro do
Flamengo, por exemplo. Para a surpresa de todos, no dia seguinte os veículos de maior
alcance não noticiavam as conquistas do bloco.
Definitivamente, é necessário estar infiltrado entre os sobreviventes da
agremiação para que se possa medir a importância dela para o legado da cultura musical
da região. Desde as primeiras modinhas de Catulo Cearense da Paixão − um dos
primeiros compositores de modinhas do século 19 e também estivador − até os dias
atuais, não houve banda, movimento ou grupo que tenha perdurado na região por tantos
anos como o Bloco Carnavalesco Fala Meu Louro.
É evidente que ao lidarmos com a memória de uma instituição como esta
esbarramos na problemática do tempo. Devido à ausência de provas ou documentos mais
contundentes, referentes a certos períodos, nos apegamos aos relatos daqueles que
viveram o bloco, de alguma forma. No entanto, é comum ao ser humano incorporar
fatores pessoais às histórias narradas. Afinal, essa é uma das condições para que ele tenha
se apegado à ocasião. Cabe ao pesquisador equilibrar no texto a maneira romântica que
um personagem narra um acontecimento infiltrado em sua memória.
“A lembrança diz respeito ao passado, e quando ela é contada,
sabemos que a memória se atualiza sempre a partir de um ponto
do presente. Os relatos da vida estão sempre contaminados pelas
vivências posteriores ao fato relatado, e vêm carregados de um
significado, de uma avaliação que se faz tendo como centro o
momento da rememorização (...). O passado é descrito muitas
vezes em termos românticos, como se os indivíduos vivessem um
tempo áureo no qual tudo era permitido.” 38
38
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 5ª ed. São Paulo: Braziliense, 2006.
25
O mais interessante dessa estrutura de análise são os registros e transformações da
memória coletiva das pessoas que a tecem diariamente. Pode ser que se pergunte sobre o
Louro a um ex-morador do bairro desgostoso do carnaval e se encontre uma nova
adjetivação ao bloco. Pode ser que um daqueles comerciantes furtado anualmente pelos
antigos integrantes da agremiação se recorde do pior que ela lhe proporcionou e teça uma
narrativa recriminando o Louro. Entretanto, tanto essa como todas as demais percepções
a respeito do Fala Meu louro são igualmente relevantes para que se alcance ao máximo o
percurso historiográfico da agremiação incentivada pelo Rei do Samba, no início do
século 20.
É provável nessa teia de depoimentos e verdades contornadas pelo tempo haja
outros temas que mereçam o esforço de uma pesquisa, afinal a Zona Portuária está entre
os espaços urbanos do Rio de Janeiro mais esquecidos pelo poder público no século
passado. A situação piora quando consideramos falar sobre uma das primeiras regiões
habitadas da cidade, principalmente após a vinda da família real, em 1908.
“O príncipe regente, D. João ainda na Bahia em 28 de janeiro de
1808, assinou uma carta regia abrindo os portos do Brasil ao
comércio com todas as nações que estivessem em paz com o seu
governo, isso significou o fim do monopólio comercial.
Significou também o fim das restrições impostas pelos
colonizadores portugueses aos colonos e colonizados, como o fim
da censura à entrada de livros, proibição da imprensa, as medidas
que dificultavam a entrada de estrangeiros para o Brasil e o
controle sobre quaisquer idéias contrárias aos colonizadores
portugueses e a igreja católica. Tais transformações trouxeram
diversas implicações para o cotidiano da cidade, e sem sombra de
dúvida nenhum outro fato de tamanha magnitude política até
então ocorrera na cidade do Rio de janeiro que pudesse se
responsabilizar por tantas mudanças no âmbito econômico,
cultural e urbanístico quanto à decisão estratégica de ‘transplantar
a Metrópole’ para a colônia.” 39
Nessa conjuntura social, a região portuária foi a primeira a sofrer influências de
imigrantes que se instalavam na localidade. Imagina quantas histórias não se perderam no
tempo ou simplesmente não cativaram os olhares dos colonizadores que permaneceram
entre os becos e sobrados até mesmo após o decreto abolicionista. Este é o caminho que o
Fala Meu Louro não merece inclusive da perspectiva moralista, que tanto contribuiu para
que ele fosse abafado ao longo do século.
39
BERNARDES, Lysia Maria Cavalcanti. Evolução da paisagem urbana do Rio de Janeiro até o século XX. Boletim Carioca da Geografia. Rio de Janeiro, nº 1 e 2, 1959.
26
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A princípio, como entusiasta do carnaval de rua e amante da historiografia
musical do Rio de Janeiro, escolhi trazer ao ambiente acadêmico a trajetória do bloco
Fala Meu Louro. Já sabia a respeito de sua importância para o desenvolvimento cultural
da região próxima ao porto e à sonoridade do samba tal como o conhecemos. No entanto,
percebi que o tempo me forçaria a adiar o mergulho nas minúcias do bloco, já que me
deparei com um projeto muito mais complexo na prática, tendo alguns meses para
concretizá-lo apenas. Outra descoberta, não tão surpreendente, foi sobre a dificuldade em
obter informações a respeito dos blocos de rua, conhecidos como blocos de sujos. Há
muitos estudos em torno das agremiações carnavalescas consagradas pela grande mídia –
aquelas que têm seus desfiles transmitidos em tempo real pelas emissoras de TV e
sustentam financeiramente o setor de turismo devido ao assédio dos visitantes de outras
nações. Uma gama de autores já explorou o tema de maneira excepcional. Sem esgotá-lo.
Percebi que para ter acesso à história do carnaval informal de rua, é necessário
ligar o gravador e se valer de entrevistas calorosas sobre o do assunto, salvo a exceção de
poucas publicações sobre o tema. De fato, tive a sorte de lidar com personagens tão
cativantes quanto à agremiação que os fizeram felizes. Moradores e ex-moradores do
bairro guardam na memória as mais graciosas histórias vividas em algum encontro do
Fala Meu Louro. O depoimento do compositor e sambista Almir Guineto também
contribuiu muito para percebermos o alcance da fama que a agremiação criou entre os
sambistas da cidade.
O bloco merece muito mais espaço para além destes corações saudosos. No ano
passado, diversos blogueiros fizeram matérias dando apoio à volta do bloco, que também
mereceu espaço na coluna do Ancelmo Góis, no jornal O Globo, alertando para a
tentativa de retirada da quadra por parte da prefeitura.
Se o Louro, que fica numa região de fácil acesso, foi ignorado pela imprensa, o
que dirá uma agremiação perdida nos confins da Zona Norte, por exemplo, que
possivelmente tenha sido um fenômeno popular? O silêncio na história do carnaval de rua
foi a percepção mais intrigante desta pesquisa.
27
ANEXOS
Sinhô (ao centro) e a banda do Fala Meu Louro (anos 20)
Folionas do Fala Meu Louro antes do desfile (anos 40)
28
Capa de LP do Fala Meu Louro (1961)
Desfile do bloco (1963)
29
Desfile que marcou a volta do Louro às ruas (2013)
O Louro voltou a decolar*
A vez dos retirantes está perto
Tão perto, que ofusca o nosso olhar
Das cinzas refinaram a arquitetura
E essa mistura irá nos consagrar
Quanto às partituras esquecidas
Haverá uma saída
É que entre becos e sobrados
Sobrevoa um papagaio troglodita
O louro voltou
Trazendo na ponta da língua
Um grito que vai acionar
A nossa saudade contida
E pra além do cais da Guanabara
O Louro bate asas
Neste céu de possibilidades
Resgatar a identidade de quem te criou
A voz dos portuários chegou longe
Tão longe, que se perdeu no mar
Respeite o cenário de origem
Dos bambas e mestres de capoeira
Desde os precursores da modinha
Aos batuques da Vizinha
Querem evitar os nossos passos
Mas o papagaio não se intimida
*Samba de minha autoria que embalou os foliões em 2013.
ENTREVISTA
Almir Guineto (sambista, cantor, compositor popular brasileiro)
Almir, como você conheceu o bloco Fala Meu Louro?
- Conheci lá através do Tesoura, que era o bicheiro que bancava a agremiação. Eu
cantava lá à beça. Fiz muito show com o Samba Som Sete, Exporta Samba e Nosso
samba. Íamos eu, Jorginho do Império, Dicró e era o Tesoura quem proporcionava isso.
Então a gente saía muito cedo no fim de semana e eu frequentava muito ali, mas eu nunca
desfilei no bloco.
Esses shows eram promovidos durante o ano inteiro ou apenas próximo ao
carnaval?
- Não, era fora do carnaval, durante todo o ano. Eu fazia muito show. Qualquer festa no
Louro eu estava sempre presente, convidado pelo Tesoura. Hoje não sei porque ele não
quer mais falar sobre o bloco. Eu ia neste bloco, mas tinham outros que já nem lembro o
nome. Sempre levado pelo tesoura, que era um bicheiro muito poderoso, na época. O
ponto de bicho dele era em frente à Praça do Santo Cristo. Hoje já não é mais porque ele
quebrou. Isso era mais ou menos em 72, 73.
Nesta época você desfilava em algum bloco carnavalesco?
- Não. Eu fui do Cacique (de Ramos), mas também não desfilava. Só participava dos
ensaios, mas nunca gostei de desfile. Só saí mesmo no Salgueiro, que era a minha escola,
lá do Morro do Salgueiro.
Você chegou a ser influenciado pelo Samba Amaxixado, cultivado pelo Louro?
- Não. Eu não peguei esta época.
Como você analisa a importância do Fala Meu Louro para a cultura popular de
rua?
- O bloco antigamente era muito importante para o bairro, para a área, onde o pessoal
descia para desfilar nas épocas carnavalescas antigas. Parece que a Prefeitura dava uma
ajuda, ou algo assim, para o desfile.
Você percebe contribuição do Fala Meu Louro para a sua carreira?
- Ah, claro. A gente (os sambistas) sempre estava ali se apresentando. Pelo ao menos
tinha um dinheiro para a gente. Um cachê. E era o Tesoura que pagava diretamente. Ele
me ajudou muito. Hoje quem ajuda ele sou eu. Aquilo era a alegria do bairro. Ai, o
Tesoura saiu em 76, mais ou menos e eu parei de ir. Antes eu ia em muito bloco por ali.
Tinha um conjunto ali muito bom: Nosso Samba. Eles acompanhavam a Clara Nunes.
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