amendola - análise

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Recensão crítica à obra La Ciudad Postmoderna de Giandomenico Amendola Fernando de Castro Gonçalves* Introdução Esta reflexão incide sobre partes da obra La Ciudad Postmoderna - Magia e Miedo de Ia Metrópolis Contemporânea, de Giandomenico Amendola, professor de sociologia urbana na Escola de Arquitectura da Universidade de Florença, publicada em 1997. O estudo deste livro analisa particularmente a parte III (La ciudad postmoderna) e a parte XV (Los excluídos dei sueno y Ia ciudad blindada), de modo a contrapor, tal como o título do livro sugere, a cidade do encantamento e do sonho à cidade real e frequentemente desagradável -a outra cidade- evidenciando a complexidade e a contradição de vários fenómenos contemporâneos nas metrópoles pós- modernas, ao longo da estrutura de argumentos proposta pelo pensamento do autor. Segundo Amendola, a pós-modernidade na cidade pode manifestar-se através das suas formas físicas, arquitectónicas e urbanísticas -designadas por cityscape- e na sua vida e cultura -denominadas mindscape. Assim, se no panorama físico de algumas cidades, no seu cityscape, o pós-moderno é aparentemente raro, no mindscape das cidades, a pós-modernidade já marca os sonhos, os medos, os gostos e os consumos das pessoas que as habitam. A cidade nova, conceito de Amendola para se referir à cidade pós- moderna, toma forma nas culturas, nos valores e nos estilos de vida dos seus 16 Arquitecto especialista em questões de Planeamento Urbano e Regional. 205

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Análise de Amendola e sua teoria sobre o modernismo e as pessoas.

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  • Recenso crtica obra La Ciudad Postmoderna de Giandomenico Amendola

    Fernando de Castro Gonalves*

    Introduo Esta reflexo incide sobre partes da obra La Ciudad Postmoderna -

    Magia e Miedo de Ia Metrpolis Contempornea, de Giandomenico Amendola, professor de sociologia urbana na Escola de Arquitectura da Universidade de Florena, publicada em 1997. O estudo deste livro analisa particularmente a parte III (La ciudad postmoderna) e a parte XV (Los excludos dei sueno y Ia ciudad blindada), de modo a contrapor, tal como o ttulo do livro sugere, a cidade do encantamento e do sonho cidade real e frequentemente desagradvel -a outra cidade- evidenciando a complexidade e a contradio de vrios fenmenos contemporneos nas metrpoles ps-modernas, ao longo da estrutura de argumentos proposta pelo pensamento do autor.

    Segundo Amendola, a ps-modernidade na cidade pode manifestar-se atravs das suas formas fsicas, arquitectnicas e urbansticas -designadas por cityscape- e na sua vida e cultura -denominadas mindscape. Assim, se no panorama fsico de algumas cidades, no seu cityscape, o ps-moderno aparentemente raro, no mindscape das cidades, a ps-modernidade j marca os sonhos, os medos, os gostos e os consumos das pessoas que as habitam.

    A cidade nova, conceito de Amendola para se referir cidade ps-moderna, toma forma nas culturas, nos valores e nos estilos de vida dos seus

    16 Arquitecto especialista em questes de Planeamento Urbano e Regional.

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    habitantes, antes de se reflectir, muitas vezes, segundo o autor, nas formas arquitectnicas ou urbansticas de algumas cidades.

    A cidade ps-moderna Para Amendola, o conceito de ps-moderno tem o mrito de constituir um

    dos principais instrumentos para reflectir sobre as grandes transformaes sociais e culturais que se vivem hoje. A sua extensa utilidade, tanto analtica como comunicativa, est em permitir relacionar significativamente as transformaes do espao construdo, da cidade e da experincia urbana com as mudanas sociais e culturais da sociedade contempornea. Do mesmo modo, Huyssens, citado por Harvey (1999: 45), salienta que num importante sector da cultura ocidental deu-se uma notvel mutao na sensibilidade, nas prticas e nas formaes discursivas, razo pela qual possvel destinguir um conjunto ps-moderno de pressupostos, experincias e proposies relativamente a um perodo precedente, designado por moderno. Assim, conceitos como sobrecarga de estmulos, hiper-realidade, cultura de superfcie, estetizao do quotidiano, ironia das formas, convertem-se em instrumentos de uso corrente para definir realidades e experincias inditas contemporneas, refere Amendola.

    Segundo o autor, o campo de nascimento e de visibilidade do ps-moderno foi a cidade, ou melhor, a arquitectura da cidade nova, mas a cidade contempornea mais ps-moderna do que diz a sua arquitectura ou o desenho urbano, uma vez que a arquitectura ps-moderna limitada e polarizada geograficamente principalmente na Amrica do Norte e na Europa, onde marca de forma aprecivel a arquitectura dos servios e do cio de apenas algumas grandes cidades. O habitar ps-moderno refere-se mais cidade do que aos edifcios em si e o que permite falar do ps-moderno como tendncia de fundo na cidade nova contempornea o clima cultural geral produzido pelas atitudes visveis das massas, pelos comportamentos e os estilos de vida.

    Entre as grandes transformaes culturais, Amendola identifica o desaparecimento tendencial da fronteira entre a alta cultura e a cultura popular, a assuno do quotidiano como campo privilegiado de formao de sentido e a contnua introduo de elementos do quotidiano em todos os sectores da alta cultura, tais como pintura, a msica e a arquitectura. No que se refere particularmente arquitectura, as experincias contemporneas da pop-art orientam j a ateno de Robert Venturi, em 1966, para o mundo do quotidiano e do consumo, cuja elementar linguagem propagandstica pretende aplicar arquitectura. No seu livro Complexidade e Contradio na Arquitectura, a

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    defesa da vivncia das grandes ruas, concebidas em funo dos automveis e dedicadas ao comrcio e diverso, expressa na afirmao Main Street is almost ali right (Kruft, 1990: 742). Deste modo, eclectismo, continua Amendola, no significa apenas liberdade e variedade na eleio dos estilos, mas tambm dos nveis de cultura alta e popular, numa mescla de estilos, formas e experincias que d origem a um universo pop.

    Para o autor, se o urbanismo modernista assumia como parmetro de referncia o Homem, escrito com H maisculo, no clima ps-moderno a referncia a gente, escrita com g minsculo. O parmetro Homem deriva directamente da tradio dos modelos normativos e universais do humanismo; o parmetro gente refere-se s pessoas pelo que elas so e no pelo que deveriam ser. Enquanto os modernistas viam o espao como algo a ser moldado para propsitos sociais, tendo sempre presente a construo de um projecto social, o projecto urbano do ps-modernismo deseja somente ser sensvel s tradies vernaculares, s histrias locais, aos desejos, s necessidades e s fantasias particulares, gerando apenas formas especializadas (Harvey, 1999: 69). A referncia j no uma abstracta opo tica ou poltica, como acontecia no modernismo, mas uma precisa referncia aos gostos, culturas e desejos das pessoas, tal como so hoje nas suas actividades quotidianas, afirma Amendola.

    em nome desta primazia da gente comum e de hoje que Venturi, no seu segundo livro -Learning from Las Vegas- publicado em 1972, declara preferir o quotidiano e a pop e convida a aprender com Las Vegas e os seus letreiros de non. Este livro a consequncia das investigaes de Venturi sobre a commercial strip e a procura de uma nova simbologia arquitectnica, que consiste na afirmao esttica do mundo quotidiano, colocando os signos banais ao mesmo nvel que a simbologia histrica da arquitectura. A partir da crtica ao funcionalismo chega defesa de um eclectismo formal e histrico que retome a ornamentao. Em certo sentido, este livro ir constituir o manifesto da arquitectura ps-moderna de tendncia historicista (Kruft, 1990: 742-743), acusada por muitos de continuamente vasculhar no "lixo" da histria, dada a sua preponderncia para o pastiche de citaes histricas descontextualizadas. Ainda no mesmo ano de 1972, num artigo do New York Times, ironicamente intitulado Michey Mouse Teaches the Architects, Venturi solicitar a tomar como exemplo para a cidade do quotidiano a Disneylndia (Harvey, 1999: 62).

    Assim, a cidade torna possvel e visvel o ps-moderno, que se prope como cultura metropolitana por excelncia, segundo Amendola. Na cidade concretiza-se a interseco e hibridao do local com o supranacional, a

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    contextualizao do localismo e a descontextualizao da citao meditica, o cruzamento entre a diversidade e o possvel.

    A cidadQ-bricolage Amendola considera que a cidade nova contempornea escapa, graas

    sua nova e estrutural indeterminao ou ambiguidade, aos intentos de compreenso e de interpretao totalizadores, tanto de especialistas como dos seus habitantes. No s so dbeis os modelos de referncia necessrios para descobrir uma eventual ordem escondida, como estes so sobretudo mltiplos, nem sempre coerentes e quase sempre variveis e efmeros. A desconfiana relativamente aos metarrelatos -modelos totalizadores, como os produzidos por Marx ou Freud, fundamentados na racionalidade e em ordens preestabelecidas- denunciada por Foucault e Lyotard, ataca explicitamente qualquer noo de que possa existir uma metalinguagem ou uma metateoria, mediante as quais todas as coisas possam ser ligadas ou representadas (Harvey, 1999: 49-50).

    Obviamente, a incredulidade perante as metanarrativas abarca tambm os modelos totalizadores e omnicompreensivos da cidade. Harvey (1999: 69) chega mesmo a declarar a impossibilidade de controlar a totalidade da metrpole, pondo em evidncia a sua fracturao aos pedaos para o exerccio do projecto urbano, uma vez que os ps-modernistas preferem projectar partes de cidade, dada a dificuldade em planear o seu todo. No planeamento modernista das cidades a tendncia era procurar o domnio da metrpole como uma totalidade e o projecto assumia deliberadamente uma forma fechada. Em oposio, o planeamento ps-moderno sente o processo urbano como algo incontrolvel e catico, onde a anarquia e o acaso podem intervir numa forma sempre aberta (Harvey, 1999: 49).

    A cidade fundada em lgicas de centralidade espacial, simblica e cultural d lugar cidde-collage -do livro Collage City do arquitecto Collin Rowe, publicado em 1978, onde defende uma cidade de coliso projectada mediante a collage de fragmentos do passado e de utopias urbanas e sociais (Montaner, 1999: 85-86)- ou cidado-bricolage, conceito proposto por Amendola. o aparecimento da cidade dbil, categoria derivada da epistemologia do pensamento dbil ou ontologia dbil que, em primeiro lugar, Gianni Vattimo, e por extenso outros pensadores, puseram em circulao nos ltimos anos. A este propsito, Sol-Morales (1995: 65-66) referindo-se a Manfredo Tafuri, reala que a experincia contempornea apresenta-se pluriforme, complexa e diversa, e que apenas atravs de seces e cortes em vrias direces so possveis aproximaes capazes de destrinar e desfazer

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    a complexidade intrnseca da prpria experincia. Em jeito de concluso, Sol-Morales (1995: 81) afirma que a fora da debilidade aquilo que a arte e a arquitectura so capazes de produzir precisamente quando no se apresentam agressivas e dominantes, mas sim tangenciais e dbeis.

    Fracturas e diferenas j no constituem uma patologia ou uma excepo. Citando Harvey, Amendola sublinha que a cidade apresenta-se como um sistema anrquico e arcaico de signos e smbolos, um imprio de estilos, uma enciclopdia de culturas e de linguagens, um sistema esquizofrnico orgnico e operante. A cidade , ao mesmo tempo, cenrio e protagonista deste meltingpot cultural e de signos. Contra a totalidade activam-se e enfatizam-se todas as diferenas possveis.

    Uma das tcnicas preferidas da arquitectura ps-moderna a citao, o uso sapiente e no limitado da citao proporciona possibilidades incrveis, reala Amendola. Alis, Derrida considera a colagem/montagem a modalidade primria do discurso ps-moderno. Com o seu desconstrutivismo, Derrida evidencia que consumidores e produtores de texto o fazem com base em todos os outros textos com que se confrontaram. Deste modo, a vida cultural interpretada como um conjunto de textos em interseco, produzindo novas significaes e sentidos expressos em novos textos. Esse entrelaamento adquire vida prpria e transmite sentidos que no estavam na inteno dos textos iniciais. Assim, afirma Harvey (1999: 53-55), o impulso desconstmcionista est em procurar, dentro de um texto por outro, dissolver um texto em outro ou embutir um texto em outro... O efeito quebrar (desconstruir) o poder do autor de impor significados ou de oferecer uma narrativa contnua, de modo a proporcionar uma dupla leitura: a do fragmento percebido relativamente ao seu texto de origem e a do fragmento incorporado a uma nova e distinta totalidade. No que se refere arquitectura, oua-se o discurso do arquitecto Toms Taveira sobre algumas das suas obras e constata-se a referncia directa e contnua a citaes arquitectnicas de outros autores, simuladas na sua linguagem sempre irnica em pequenas homenagens a....

    O termo e o prprio conceito de desconstrutivismo ir tambm influenciar, de uma forma directa ou indirecta, um grupo to heterogneo de arquitectos como Frank O. Gehry, Daniel Libeskind, Rem Koolhaas, Peter Eisenman, Coop Himmelblau, entre outros, bem visvel no catlogo da exposio Deconstructivist Architecture, organizada em finais dos anos oitenta no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. No prefcio do referido catlogo, escrito pelo arquitecto Philip Jonhson (1988: 7), director da exposio e autor do AT&T Building de Manhattan -um dos smbolos da arquitectura ps-

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    moderna- pode ler-se que a exposio representa a confluncia, desde 1980, na obra de alguns arquitectos importantes, de enfoques similares que do como resultado formas similares. o resultado de tendncias similares prximas, em diferentes lugares do mundo, provenientes do construtivismo russo da segunda e terceira dcadas do sculo passado. A confluncia formal caracteriza-se, basicamente, em todos os arquitectos, pela sobreposio oblqua de formas rectangulares e/ou trapezoidais.

    Para Amendola, a cidade feita de um collage de citaes das mais sugestivas e cativantes e, provavelmente, com as suas incoerncias e tenses, tambm das mais estimulantes. Segundo o autor, na cidade contempornea, o passado, entendido como histria, eliminado. A citao ps-moderna diferente da clssica, uma vez que no se limita a utilizar o passado como fonte de legitimao e repertrio de sentido, mas sim para eliminar o salto entre presente e passado, anulando, com efeito, na experincia quotidiana o factor tempo. A cidade nova ps-modema converte-se na representao de um presente que consegue actualizar o passado. As citaes inseridas sem soluo de continuidade no tecido e na experincia urbana criam uma realidade onde tempo e espao so comprimidos e privados de significado: na cidade nova tudo presente e contemporneo, uma vez que no existe o passado e a distncia. Cenas e formas procedentes do passado ou de pases distantes adquirem, nesta sociedade sem tempo, a actualidade e o imediatismo do presente e do prximo. Tudo emulsionado e homologado no presente e no imediato da cidade ps-moderna sem tempo: citaes e estilos arquitectnicos, informaes peridicas e sries televisivas, news and fiction, passado e presente, prximo e distante. A incessante repetio de citaes produzem a sensao de uma constante possibilidade de recriao do palimpsesto urbano e, ao mesmo tempo, ofuscam a diferena entre o verdadeiro e a imagem.

    O conceito de palimpsesto tem origem na expresso do arquitecto Philippe Robert -arquitectura como um palimpsesto- invocando deste modo os manuscritos medievais que eram reciclados para servir de suporte redaco de um novo texto. Esta metfora tambm utilizada, como se viu, embora num contexto diferente, pelas tendncias formais do desconstrutivismo na arquitectura. Mas a pertinncia desta expresso revela-se, principalmente, na composio dos arquitectos a partir dos anos setenta, os quais trabalham, para alm do contexto natural e cultural, com o prprio patrimnio arquitectnico e urbanstico. Esta nova orientao ir traduzir-se na restaurao, renovao e reciclagem das construes e da forma urbana que fazem parte desse patrimnio (Lagueux, 1993: 97).

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    O neo-barroco Para Amendola, o jogo e a pardia so aceites como expresses da livre

    criatividade individual e homologados a outras prticas e formas urbanas. A ironia incorpora-se em grande parte dos edifcios ps-modernos como critrio interpretativo acrescentado. Charles Jencks introduz, a este propsito, a noo de double code e de doble critrio de possvel leitura de um mesmo edifcio. A dupla possibilidade de leitura, refere Amendola citando Jencks, tem a funo de comunicar tanto com o pblico como com a elite. Segundo Cejka (1995: 29), uma das caractersticas que distingue, efectivamente, a ps-modernidade da modernidade a capacidade de doble codificao, uma vez que um edifcio ps-moderno pode ter um nvel de percepo intelectual, que apenas compreensvel para o especialista, e outro mais trivial, que pode ser compreendido por qualquer observador.

    Amendola afirma que nas classes sociais culturalmente mais preparadas difunde-se a conscincia de viver permanentemente numa zona de fronteira entre realidade e iluso, cuja existncia possvel apenas graas a uma atitude mental de contnua auto-ironia e auto-encantamento. A cidade panorama transforma-se em cidade espectculo, onde tudo espectculo e tem de converter-se em espectculo, para que a cidade possa representar e tornar experimentvel o sonho e o desejo. Harvey (1999: 57), referindo-se a Jameson, reala que a imagem, a aparncia e o espectculo podem ser experimentados com uma intensidade, que tanto pode ser de jbilo como de terror, possvel apenas pela sensao de constiturem presentes puros e no relacionados no tempo. O mundo perde profundidade e torna-se uma pele lisa, uma sucesso de imagens sem densidade. O carcter imediato dos eventos e o sensacionalismo do espectculo poltico, cientfico, militar e de diverso afirmam-se como a matria que molda a conscincia.

    A cidade contempornea cada vez mais uma cidade narrada, em que a fronteira entre a cidade e o seu relato tende a perder-se. Graas colaborao dos media, o mundo real transforma-se num espectculo permanente, onde se eliminam as barreira entre actor e espectador, entre simulao e realidade, entre histria e fico. Chambers, citado por Harvey (1999: 63), evidencia as transformaes nas culturas metropolitanas dos ltimos anos provocadas pelo cinema, televiso, estdios de gravao, gravadores, sons, moda e estilo de vida da juventude, imagens e histrias diariamente misturados e reciclados na grande tela que a cidade contempornea. Deste modo, continua Amendola, nasce na poca neo-barroca a cidade-palco. Na cidade barroca clssica era bem visvel a distino entre sujeitos que tinham a fora social e os recursos necessrios para ser protagonistas e os destinados a ter um papel passivo e

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    mudo de espectadores. Hoje, ao contrrio, a cidade nova ps-moderna fundamenta-se num pacto colectivo de simulao, o espectculo capilarizou-se no quotidiano da cidade e na trama dos espaos e dos tempos da experincia metropolitana. A cidade torna-se toda ela um palco e at difcil falar de distoro da realidade, uma vez que falta um parmetro de validade ao qual fazer referncia. Veja-se o exemplo de algumas obras de teatro contemporneo, onde o espectador convidado a ter um papel activo no desenrolar da obra, onde as personagens saem do palco e se misturam com a plateia, interagindo com esta, e onde as mesmas personagens, muitas vezes, entram em cena a partir da prpria plateia, diluindo por completo a fronteira entre palco e plateia.

    Segundo Amendola, o mundo redesenha-se cada vez mais medida da televiso e do mundo dos media, no intento de torn-lo parecido com o imaginrio. A distino entre real e imaginrio dilui-se e a prpria expresso "representao" perde-se na conscincia do indivduo, que no vive um sonho ou uma simulao mas uma situao real, pondo em prtica comportamentos reais. A realidade modelada para reproduzir um sonho, simulando imagens e desejos, e considerada e aceite como tal apenas se se parece com o imaginrio. Harvey (1999: 63-64), referindo-se televiso, afirma que ela um produto do capitalismo avanado, no contexto da promoo de uma cultura do consumismo, criando necessidades e desejos misturados com fantasia e distraco; tudo isto imprescindvel na manuteno, nos mercados de consumo, de uma demanda capaz de conservar o lucro da produo capitalista.

    Assim, a realidade constri-se e organiza-se cada vez mais sobre a base do imaginrio, alerta Amendola, o qual tem no mundo dos media o seu prprio e principal motor gentico, destacando-se a televiso como modelo principal. O quotidiano imita o mundo da televiso, propondo-se como um espectculo contnuo, quase como os episdios de uma srie, com heris, golpes de cena, iluses e desiluses. Deste modo, na cidade contempornea, o espectculo torna-se o princpio organizador da vida, no como momento excepcional, mas como dimenso da experincia quotidiana.

    O cidado ps-moderno Nesta variedade de estilos e neste bazar de signos e de arquitecturas

    vivem as pessoas, que estabelecem um contnuum analtico com o ambiente construdo, afirma Amendola. Graffitis, sons, vesturio so os novos vestgios para achar as novas ordens simblicas e as suas cristalizaes espaciais. Num mundo em que no s a realidade transformada em imagens, como onde

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    tambm os fragmentos de tempo so convertidos em presentes perptuos e contemporneos, vagueiam as tribos urbanas ps-modernas unidas por impulsos emotivos temporais, identificadas com os signos da moda que as unificam e separam das demais. A sua presena forte e visvel nas grandes cidades que, enquanto terreno nutritivo da moda, so o seu ambiente natural. As tribos urbanas representam as novas tramas de sociabilidade e identificao. Mais do que as determinantes produtivas, na cidade contempornea so as modas que funcionam como pontes para unir e excluir, para agregar e contrapor. Lipovetsky (1989: 19) reala que o facto capital das nossas sociedades... precisamente a extraordinria generalizao da moda, a extenso da forma moda a esferas outrora exteriores ao seu processo, o advento de uma sociedade reestruturada de alto a baixo pela seduo e o efmero, pela prpria lgica da moda.

    Na cidade contempornea, continua Amendola, h a possibilidade de construir-se identidades e agregaes novas, livres de vnculos pre-determinados de carcter econmico, social, poltico ou territorial. As diversidades sociais e culturais convertem-se de factor de desagregao em elemento de reorganizao e de coeso da nova sociedade. Os segmentos e os fragmentos da cidade nova ps-moderna recompem-se num cenrio flexvel e cambiante. As tribos urbanas representam o resultado da fragmentao e do parcelamento do tecido social e deixam rastos fsicos, espaciais e comportamentais da sua presena. A sua identidade representa o xito de um processo de bricolage feito de intentos, experincias, recuperaes do passado e inveno do novo. Mela (1999: 155-156), relativamente s tribos urbanas, esclarece que os protagonistas da vida citadina, os mais activos nos espaos pblicos e lugares de encontro, so geralmente grupos caracterizados por modos de vida, formas de expresso e diferentes rituais, ligados pelo desejo de serem visveis aos olhos dos outros, atravs da acentuao dos seus traos distintivos. As vrias tendncias contemporneas da msica pop e do rock (rap, dance music, heavy metal...) so assumidas como emblemas de modos de vida diferentes no mundo juvenil urbano e, em alguns casos, conflituais. A fragmentao dos estilos expressivos no impede a renovao contnua das tendncias, nem a contaminao dos estilos e subculturas umas pelas outras, podendo mesmo um indivduo pertencer a vrias tribos.

    Neste panorama de diversidade, salienta Amendola, ganha fora e importncia o indivduo ps-moderno, militante de si mesmo, e a cidade nova expressa o difcil problema de identidade do ser humano contemporneo. Na chamada sociedade de massas criou-se, paradoxalmente, o maior grau de liberdade e de variedade individual que jamais existiu. O mundo ps-moderno

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    compe-se de uma pluralidade de agentes criadores de sentidos e de significados, cada um dos quais se auto-legitima e auto-limita, precisando o seu mbito de aco e influncia, resultado de uma espcie de especializao cultural. As palavras chave da nova identidade, tradicionalmente estvel, duradoura e profunda, so temporal, limitada e superficial. O actual cenrio mutvel e efmero exige que as identidades se possam formar, adquirir e transformar com a mesma rapidez com a qual se muda de roupa. A identidade tem de ser flexvel e cambiante. Necessita-se de mudar continuamente a prpria identidade para se enfrentar com proveito as diversas cenas e representaes da actualidade, podendo mesmo falar-se numa identidade dbil e num zapping identitrio.

    Segundo Amendola, o nascimento do individualismo de massa, fundamentado no princpio de que cada um tem de viver a sua vida no pleno respeito pela sua identidade. Cada um tem direito a ser o que e, sobretudo, de ser o que decidiu ser. a afirmao de um individualismo tico que sustm e refora identidades e diferenas, as quais adquirem um valor moral absoluto. A ideia de que todos os indivduos ou grupos tm o direito de falar por si mesmos, com a sua prpria voz, e de ver aceite essa voz como autntica e legtima, fundamental para o pluralismo ps-moderno, salienta Harvey (1999: 52). Cada um militante de si mesmo e cada um pode construir o seu imaginrio personalizado.

    A cidade nova o campo gentico deste individualismo de massa, continua Amendola, que se organiza e estrutura recorrendo aos imensos repertrios culturais disponveis. A produo de massas consome de forma voraz e incessante todas as reservas de estilos disponveis. Recursos provenientes da alta cultura e da pop, da histria e dos media, das culturas das minorias e das opulentas das modas, afluem cidade para alimentar o grande palco urbano. Tudo possvel e compatvel e tudo pode ser misturado, mixed e re-mixed. A este propsito, Jos de Miranda (2000: 12), afirma que a hip-hop, uma cultura urbana internacional por excelncia, um bom exemplo de ps-modernismo, nomeadamente pela sua capacidade de recombinao, de hibridizar e misturar, que caracteriza boa parte da cultura contempornea.

    A experincia urbana est marcada por uma sobredisponibilidade de recursos culturais. Amendola socorre-se de Bauman, que na linha de Baudrillard, evidencia a existncia de uma cultura do excesso, caracterizada pela abundncia de significados e pela falta de autoridades capazes de julgar e hierarquizar. A disponibilidade dos produtos culturais demonstra-se muito superior capacidade de assimilao de qualquer membro da sociedade. Harvey (1999: 62) refere que a degenerao da autoridade intelectual sobre

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    o gosto cultural dos anos sessenta e a sua substituio pela pop arte, pela cultura pop, pela moda efmera e pelo gosto das massas so vistas como um sinal do hedonismo inconsciente do consumismo capitalista. O prazer consumista assume-se como um bem supremo.

    Para Amendola, o desejo de prazer, a procura da distino social, a avidez de consumo, a afirmao da identidade representam impulsos que orientam o comportamento das novas tribos que fluem na cena urbana. A deslocao do acento sobre o indivduo aumenta o carcter de collage da cidade contempornea. Os desejos, os impulsos, as paixes, os interesses imediatos da gente transferem-se para a cidade, para a sua organizao, os seus espaos e as suas formas. Todos estes factores reflectem-se nos "profissionais da cidade", que de rbitros e tcnicos convertem-se, discretamente, em intrpretes e sugestores, debilitando a lgica dos planos totalizantes, entrada em crise nos anos sessenta. Assim, hoje, so cada vez mais numerosos os urbanistas que defendem um planeamento fundamentado na participao e nas demandas expressas pela gente, como critrio de adequao e de valorizao.

    Os excludos do sonho e a cidade blindada Segundo Amendola, os lugares do sonho e do encantamento no so,

    obviamente, toda a cidade mas tm a fora crescente de se proporem como a melhor cidade, a cidade das possibilidades e do desejo. Ao lado desta cidade est a cidade real, a outra cidade. Escondida mas real, est sempre presente e, mesmo quando no visvel, ameaa a cidade dos sonhos. A nova cidade do imaginrio e das imagens situa-se ao lado da real, frequentemente desagradvel. Com efeito, Mela (1999: 114) alerta, valendo-se de Marcuse, que na cidade ps-industrial, seja de carcter dualista ou dividida em vrias partes, no se pode ignorar o facto preocupante de que, apesar do incremento das potencialidades comunicativas possibilitadas pelas novas tecnologias, continua dividida por "muros" invisveis, isto , por barreiras sociais extremamente operativas.

    A cidade do desejo estratifica e classifica, sublinha Amendola. Se os impulsos fundamentais so os de tendncia a satisfazer o desejo e a aquisio de status, a cidade nova ps-moderna organiza e hierarquiza os espaos e a populao em relao sua capacidade e possibilidade de satisfazer os desejos. Se a tendncia em direco ao encantamento e criao de sonhos experimentveis, o critrio de estratificao dado pela possibilidade de acesso aos mundos encantados da cidade nova. A cidade sempre se organizou em partes e fez da acessibilidade a essas partes um critrio forte de seleco e discriminao social. Na sociedade marcada e estratificada sobre a base da

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    excluso, apresenta-se central e crucial a possibilidade de aceder a outros espaos onde se criam os sonhos e a experincia do imaginrio urbano.

    Da parelha exploradores e explorados passou-se de includos e excludos, da oposio entre dominantes e dominados passou-se a uma sociedade marcada pela distncia entre os que esto dentro e os que esto fora, afirma Amendola. A nova e exasperada polarizao social da cidade torna cada vez mais crucial o problema das relaes com a outra cidade e a sua gente. Mela (1999: 111-112), referindo-se a M. Castells e s suas teses a propsito do carcter dual da cidade na sociedade ps-industrial, evidencia que o dualismo tem origem num conjunto de factores intimamente ligados s transformaes da base produtiva dos pases mais desenvolvidos, particularmente na economia urbana, a qual tende a alterar-se devido definio de dois sectores igualmente dinmicos mas de natureza oposta. O primeiro sector o da economia formal, baseado nas tecnologias microeletrnicas e na elaborao de informao, com tarefas privilegiadas e bem remuneradas, que promove uma nova elite urbana com um nvel de vida e vantagens exclusivas; o segundo sector o da actividades informais, que apresenta algumas semelhanas com o sector correspondente ao das cidades do Sul do mundo, e que ocupa mo-de-obra desqualificada e mal paga proveniente, em larga medida, dos vrios grupos tnicos de imigrao recente ou mesmo de imigrantes clandestinos. Estas teses de dualismo urbano, esclarece Mela, recebem fortes crticas sobre a implcita simplificao que contm, uma vez que a realidade social e econmica vislumbra-se mais complexa.

    A cidade dos shoppings malls contempornea, prossegue Amendola, deve ocultar os outros, os marginais e excludos. O intento conceder a quem pode, viver sem ver os outros e a sua cidade. Apenas uma parte dos habitantes pode colocar-se estavelmente na cidade do encantamento e do imaginrio e ter a possibilidade de dominar a experincia urbana contempornea e de viver a cidade como um jogo contnuo. Para os demais, tudo isto negado, tendo apenas a possibilidade de pequenas experincias limitadas no tempo e no espao, cuja extenso est em funo do poder aquisitivo de cada um. Para os outros, est a cidade dura do quotidiano, a cidade onde a simulao e a representao tm pouco espao, e onde, num cenrio de sobrevivncia, continua a desenrolar-se em cena a tragdia da pobreza.

    A ira dos excludos Alerta Amendola que a cidade espectculo, do gosto e da estetizao de

    massas est baseada na desigualdade social e o seu reconhecimento est representado na capacidade de nos distinguirmos dos demais. O valor de um

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  • Recenso crtica obra La Ciudad Postmoderna de Giandomenico Amendola

    bem ou de uma experincia dado pela iluso da promoo social. Quase tudo pode converter-se num smbolo de status. Para manter o seu frgil equilbrio, a cidade nova ps-moderna tem a necessidade de, por um lado, uma difundida conscincia da desigualdade social para promover os consumos distintivos e, por outro lado, invalidar e ocultar os efeitos extremos destas desigualdades. No que se refere segregao, Mela (1999: 175) identifica com particular interesse dois tipos de segregao, obviamente com correlao entre eles: a de base tnica, assente nas diferenas relativas s tradies, costumes e estilos de vida de grupos de diversas origens tnicas e geogrficas; e a socioeconmica, fundada nas diferenas de rendimento e estatuto social. Quem est excludo do sonho pode constituir, reala Amendola, um perigo e um mal-estar para a prpria existncia do sonho. A cidade encantada pode desmoronar e o sonho transformar-se em pesadelo.

    O medo e a ansiedade so a outra face da cultura do desejo na cidade contempornea, continua Amendola. A cidade objecto de desejo e de repulsa e pode ser simultaneamente percebida como rea segura ou de risco. A cidade torna-se, assim, vulnervel ao medo e s vagas de intensa emotividade. As tribos urbanas formam-se, frequentemente, como reaco emotiva ao perigo e adversidade. As origens da hip-hop, refere Jos de Miranda (2000: 12), esto ligadas a um movimento que atacava principalmente a maneira como os media, particularmente o cinema, construa uma imagem menos favorvel dos negros, tendo por base o enorme crescimento da economia do entretenimento. O temor extensivo da cidade um dos assuntos mais explorados pelos media e o cinema, sublinha Amendola, diluindo os limites entre realidade e fico, contribuindo para a assuno da violncia e do perigo como caracterstica meta-histrica da experincia metropolitana.

    Os graffitis Smbolo e metfora do medo metropolitano so os graffitis. Mas os

    graffitis que marcam as paredes da cidade so a afirmao a trao grosso de um dos mais fortes movimentos urbanos do nosso tempo -o hip-hop. Uma cultura de rua que enche os olhos, mas tambm os ouvidos: o rap (rhythm and poetry) conjuga a msica e a poesia com uma forte nota de interveno poltica e social. Mas o hip-hop tambm danvel num movimento que radicalmente se identifica como breakdance.

    Afirma Amendola que a luta das administraes das grandes cidades dos E.U.A. contra os graffitis j foi at definida por alguns como a guerra mais extensa e ruinosa jamais travada pelos norte-americanos. S na cidade de Nova Iorque a administrao do metro teve de limpar e repintar em cinco anos

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    mais de seis mil composies de metro, sem poder reclamar vitria na luta contra os autores dos graffitis, os quais, quando a vigilncia se torna demasiado intensa sobre as estaes, saem superfcie e pintam tudo quanto encontram frente, com uma curiosa preferncia pelos camies de lixo.

    Segundo Amendola, tudo comeou em 1971 quando Demetrius, um jovem de dezassete anos, cobriu a sua prpria "marca colorida", o seu tag -TAKI 183- sobre os muros da cidade de Nova Iorque. O New York Times descobriu o autor e dedicou-lhe meia pgina, convertendo-o em heri da cultura underground metropolitana. O xito dos graffitis foi imediato e contagioso e rapidamente receberam o estatuto de obras de arte. Ao mesmo tempo, os graffitis comearam a ser hostilizados por grande parte da populao, uma vez que eram interpretados como contra-control do territrio e "fuga de demnios" do inferno das periferias e dos slums, levando os administradores da cidade a uma reaco violenta contra os graffitis, ao consider-los como uma das piores formas de contaminao da vista e da mente.

    Nesta perspectiva de contaminao possvel uma comparao entre os out-doors publicitrios e os graffitis: os primeiros como smbolo de uma sociedade de consumo continuamente interessada em ampliar necessidades e desejos atravs de influentes e dispendiosas estratgias de marketing e publicidade que atribuem aos produtos ou servios promovidos qualidades estticas, status e afirmao de um estilo de vida; os segundos, como refere Jos de Miranda (2000: 14), ao pr em causa a noo de propriedade, ao politizar o espao urbano e fazer descer ao comum uma nova poesia e uma nova esttica. A diferena que os primeiros esto inside e os segundos so outside.

    Citando Norman Mailer, Amendola exalta a funo dos graffitis como signo da revolta da populao dos slums contra a pobreza e a carncia de significado da arquitectura moderna e de uma cidade marcada pela forma urbana dos altos edifcios, dando conta, ao mesmo tempo, do medo e do horror que o "empregado civilizado" -o good voting citizen de Nova Iorque pode sentir diante dos graffitis, interpretados como uma espcie de "porta aberta" pela qual pode irromper toda a violncia do mundo. O objectivo da comuni-dade graffiter perturbar os outros, neste caso, os includos, pela presena dos graffitis nos locais onde passam, de modo a no ignorarem a sua existncia. Registam nas paredes "possveis" a sua marca ou a marca do seu colectivo, produzida por um grupo de jovens que se pretende afirmar como um movimento cultural. (Filomena Marques et ai, 2000: 17)

    Deste modo, em Nova Iorque e em muitas outras cidades, incluindo recentemente Lisboa, os graffitis contribuem para criar uma sensao de

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  • Recenso crtica obra La Ciudad Postmoderna de Giandomenico Amendola

    incapacidade do governo, de pouco control da criminalidade juvenil e, em consequncia, uma condio de mal estar e de temor em alguns sectores mais conservadores da sociedade. Em Portugal, o aparecimento do movimento graffiti deu-se no final dos anos oitenta (Filomena Marques et ai, 2000: 17). Muito recentemente, em Lisboa, foi anunciado pelas autoridades policiais o combate aos graffitis e a definio de um conjunto de estratgias com vista reduo das suas "marcas", exaltando os mesmos argumentos apresentados pelas administraes e habitantes de outras metrpoles. Para grande parte destes habitantes, os graffitis so a prova evidente da existncia do outro no assimilvel e, nesta perspectiva, considerados a par da violncia como um mal epidmico, constituem um elemento de desordem na ordem da cidade. Como tal, forma de arte ou no, sero combatidos, reala Amendola.

    A cidade e o medo Para Amendola, o crime e, mais ainda, o medo do crime impulsionam a

    fortificao fsica e electrnica do territrio. Mais do que a violncia, um dos novos princpios da organizao da cidade contempornea o temor da violncia, o medo de poder ser agredido na sua pessoa e nos seus bens, em qualquer parte e momento. Os protestos e os temores dos habitantes das grandes cidades do conta da existncia de um medo extensivo, que aumenta com taxas e ritmos absolutamente superiores aos da violncia real presente, de uma forma consistente, no cenrio urbano contemporneo. Este extenso temor, extraordinrio pela sua intensidade e radicao, permite compreender formas urbanas e arquitectnicas, comportamentos e posturas adaptativas, assumidos pelo habitante metropolitano contemporneo. Os elementos que jogam a favor da difuso do grande medo urbano so muitos e, pelo seu entrelaamento sinrgico e acumulativo, so tambm dificilmente isolveis.

    Segundo Amendola, h pelo menos trs factores dominantes na alimentao do ciclo vicioso do medo urbano: a persecuo contnua das crescentes promessas e expectativas de segurana, por uma parte, e a realidade insegura, por outra; a decadncia dos critrios tradicionais reguladores da distribuio espao-temporal da violncia e a afirmao no seu lugar do princpio da ubiquidade e causalidade absoluta, pelos quais a violncia assume na cidade contempornea uma natureza omnipresente; a mistura da violncia verdadeira e da representada e/ou reconstruda no mundo dos media e do imaginrio, onde violncia e imagens de violncia se misturam num empaste indiscernvel. Este ltimo factor assume particular peso no universo urbano contemporneo, no qual j no h nenhuma aprecivel distino entre real e imaginrio, mas sim o real considerado real s se se parece ao imaginrio,

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    segundo a lgica ps-moderna analisada por Baudrillard. A este propsito, reflicta-se sobre o que aconteceu recentemente actriz Ldia Franco em Lisboa e sobre a forma como os media estenderam e virtualizaram o temor e o mal-estar a nvel nacional, levando mesmo, de uma forma directa ou indirecta, "queda" do ministro da administrao interna.

    O cidado metropolitano bombardeado por sinais de perigo, continua Amendola; o seu medo alimentado pelos media, crnicas, relatos e, em pequena medida, por experincias pessoais. O cidado atemorizado procura viver numa redoma protectora no interior de uma cidade que deseja igualmente protegida. Desloca-se de carro da casa blindada ao escritrio vigiado, deste ao shopping mall, onde cada movimento controlado e gravado, daqui ao restaurante, onde o ingresso filtrado. Quando est em casa procura ter distncia a violncia do mundo exterior -da cidade no domesticada- blindando tanto a habitao como a prpria vida. O mundo filtrado, no privado, pela televiso e pela capacidade selectiva do comando distncia, que permite construir um universo meditico prprio, misturando e combinando as enormes possibilidades oferecidas por dezenas de canais. O cidado atemorizado tem a iluso de poder recriar o mundo real, para apoiar os prprios sonhos e para confirmar o quadro social de referncia. Violncia e perigo continuam a alcan-lo, uma vez que do ecr da televiso irrompem constantemente cenas de um mundo plausvel e de terror; real e virtual diluem-se, tudo real e tudo d medo. A cidade real, fora de casa, constituda, na representao do cidado metropolitano, por um empaste violento e terrfico de verdade e fico, de prximo e de distante, de presente e de passado. Tudo se converte assim em plausvel e possvel, no porque tenha sucedido ou poderia suceder, mas apenas porque foi visto. A televiso constitui, assim, o primeiro meio cultural de toda a histria a apresentar os acontecimentos no tempo como uma colagem coesa de fenmenos com a mesma importncia e de existncia simultnea, divorciados do espao e do tempo e transportados para as salas de estar num fluxo mais ou menos ininterrupto (Harvey, 1999: 63).

    A cidade contempornea, refere Amendola, mostra os signos do medo difundido na organizao e nas modalidades de uso dos espaos, nas formas arquitectnicas, na cultura e nos comportamentos quotidianos. Nasce a cidade fechada e o seu mais directo resultado, o apartheid urbano, nas palavras de Bind (2000: 63). Este autor afirma que a segregao espacial e social das metrpoles contemporneas gera uma nova forma urbana, composta pelos enclaves fortificados, pelas cidades "muralhadas" ou as vilas totalmente privadas, culturalmente e socialmente homogneas e guardadas por milcias igualmente privadas. A emergncia deste apartheid urbano apresenta

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    modalidades bastante diversas, mas possui algumas caractersticas comuns que so: a acentuada privatizao dos espaos pblicos; a separao crescente fiscal e residencial de cidados privilegiados; a extrema polarizao social reforada pelo crescimento da desigualdade, o desenvolvimento da insegurana ou o medo da insegurana e a expanso da economia da droga; o desenvolvimento e o crescimento de dispositivos de segurana e de vigilncia combinados com servios de empresas privadas e a superviso, por vezes com grande desempenho, outras vezes quase sem expresso, da polcia pblica.

    Deste modo, antes de tudo, muda o espao privado, convertendo-se a casa urbana, prtica e simbolicamente, numa pequena fortaleza blindada, com sistemas de segurana activa e passiva e os servios de vigilncia tradicionais ou telemticos a registarem crescimentos substanciais, sublinha Amendola. O princpio do medo aparece tambm no cenrio urbano contemporneo, incluso simbolicamente, sob a forma do edifcio fortaleza. Nas arquitecturas blindadas, das quais o edifcio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto pode ser um bom exemplo, muros fortificados, materiais "fortes", separao enfatizada entre interior e exterior, produzem o efeito de fortaleza relativamente a um mundo urbano considerado hostil. A caracterstica constante destes sistemas no s a sua eficcia prtica, mas tambm a forte visibilidade. A sua presena deve marcar a ruptura do continuum do espao pblico e representar o limite entre espao privado de grupo e espao pblico. relativamente pouco importante que o espao privado seja individual ou de grupo, uma vez que o dado fundamental que j no pblico. O controle interno dos edifcios assegurado pela electrnica moderna e pelos servios de segurana privados.

    As estratgias de defesa Segundo Amendola, a reaco das pessoas perante a crise da segurana

    urbana varia tambm em funo da interpretao social do fenmeno. Nos E.U.A. considera-se como central entre as causas da difuso da violncia urbana o debilitamento do controle do territrio por parte do grupo de pertena e o direito do cidado auto-tutela, inclusive armada. Na Europa, ao contrrio, onde a proteco do cidado foi sempre, na Idade Moderna, considerada uma prerrogativa do Estado, a crise da segurana urbana vivida maioritariamente como resultado da crise global do Estado ou como resultado da ruptura dos equilbrios garantidos pelo pacto social entre cidados, devido forte presena de residentes no cidados -os imigrantes. As terapias propostas variam, portanto, com a interpretao da insegurana urbana. Enquanto na Europa as respostas foram mais de tipo institucional -polticas de reforo da polcia

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    atravs da sua maior radicao no territrio urbano, reviso das leis sobre a cidadania e a imigrao, entre outras- nos E.U.A., onde prevalece um pensamento conservador, as estratgias consideradas mais adequadas foram a manuteno do direito do cidado, garantido pela Constituio, a armar-se e defender-se por si mesmo, bem como a possibilidade jurdica e prtica dos habitantes defenderem o seu prprio vizindrio. O resultado destas duas iniciativas foi, por um lado, a difuso das armas e, por outro, o progressivo processo de privatizao do espao pblico, que transformou radicalmente as cidades norte-americanas, atravs da difuso de vizindrios, de bairros privados e fortificados pelos habitantes, alguns dos quais protegidos por guardas armados.

    Os espaos residenciais das cidades dos E.U.A. foram rapidamente transformados por uma projectao orientada para o controle e a defesa e pelos comportamentos dos habitantes tendentes a uma contnua vigilncia do prprio espao, destaca Amendola. Os cidados contrataram com as administraes pblicas a permisso para cercar o vizindrio e patrulh-lo com polcia prpria, oferecendo, em contrrio, encarregar-se dos gastos de limpeza e iluminao. Esta prtica estendeu-se nas zonas suburbanas das grandes cidades norte-americanas, criando um panorama fragmentado, no qual se dispersou a dimenso pblica da cidade. A segurana converteu-se, assim, de atributo pblico indivisvel, num privilgio individual ou de grupo, ligado ao poder aquisitivo de cada um. Os espaos pblicos urbanos foram agredidos e drasticamente reduzidos por este processo de privatizao e de blindagem do espao. O resultado do processo de privatizao residencial a tendencial dissoluo da cidade pblica e a sua substituio por um sistema de mbitos privados.

    Ainda sem esta expresso, mas j com forte presena nos ltimos anos em Portugal, tem vindo a crescer o nmero de condomnios privados e fechados, alguns dos quais acentuando bem a fronteira entre o espao colectivo do grupo e o espao pblico, principalmente atravs dos muros, da localizao urbana, da linguagem arquitectnica e do tratamento dos espaos verdes exteriores do condomnio. A segurana de empresas privadas tambm uma constante, bem como os sistemas de vigilncia televisiva, sendo todos os visitantes controlados logo entrada, uma vez que ningum se desloca ao interior do condomnio sem a prvia autorizao do respectivo habitante ser transmitida ao porteiro-segurana. Alguns destes condomnios possuem mesmo uma srie de equipamentos ou servios colectivos, tais como piscina, espaos desportivos, de reunies ou encontros colectivos, lavandaria, entre outros.

    Como salienta Bind (2000: 65), as formas contemporneas do apartheid

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  • Recenso crtica obra La Ciudad Postmoderna de Giandomenico Amendola

    urbano, actualmente em pleno desenvolvimento, rejeitam explicitamente os princpios de abertura, igualdade e de livre circulao. Deste modo, perde-se todo o sentido de partilha e de fruio do espao pblico, ainda h bem pouco tempo visto como um lugar da troca e da interaco social, o qual ilustrava bem a riqueza da vida urbana. A obsesso de segurana e de ordem social agora a causa de uma real violncia social.

    Estas estratgias de defesa tendem a transformar a acessibilidade generalizada, prpria dos espaos pblicos, em acessibilidade selectiva, podendo mesmo falar-se em espao pblico selectivo, reala Amendola. O desenvolvimento do apartheid urbano , sem qualquer dvida, favorecido pelo crescimento das desigualdades que acompanham a expanso de uma economia baseada nas novas tecnologias, a qual propicia o que Bind (2000: 66), citando Daniel Cohen, designou de appariements slectifs, traduzido em portugus como emparelhamento selectivo. Bind refere que a emergncia do apartheid urbano e da sua esttica defensiva indissocivel da irrupo de um novo apartheid social, que acompanha a mundializao e a terceira revoluo industrial. O desenvolvimento do apartheid urbano acelerado pelo aumento da insegurana ou do sentimento de insegurana, que so consequncia da desintegrao social crescente, do boom do narcotrfico e do crime organizado.

    Deste modo, conclui Amendola, o maior factor de transformao da cidade contempornea a privatizao do espao em nome da sua defesa e do seu resultado, constitudo pelo nascimento de uma nova cidade: a cidade defendida ou analgica no interior da considerada perigosa.

    A outra cidade O medo extensivo refora o problema da outra cidade, da cidade oculta

    e inacessvel, da shock city. A grande cidade europeia, cujos bairros tm ainda os nomes dos velhos povoados ou das velhas comunidades que os formaram, conglomerando-se, mostra uma natureza composta. Isto no significa a formao de reas privadas de grupos, defendidas pelos prprios habitantes, alis, observe-se, nos ltimos anos, tal como se referiu anteriormente, a proliferao de condomnios privados. Existem diferenas e variedade, coexistem o gueto e o centro urbano, no entanto, na generalidade, a cidade permaneceu sempre nica, graas a uma slida concepo de centralidade da dimenso pblica da experincia urbana e a uma base de segurana colectiva, afirma Amendola. Ao contrrio, a grande cidade norte-americana teve uma histria diferente da europeia. O melting pot das diferenas tnicas e uma esfera pblica em geral mais dbil, contriburam para criar uma cidade

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  • Fernando de Castro Gonalves

    fragmentada e feita de reas cuja defesa foi confiada ou deixada aos cidados. O direito/dever do cidado de defender, incluso com o uso da violncia das armas, a si mesmo e aos seus prprios bens pode ser considerado um dos elementos fortes da cultura de massas norte-americana.

    Tambm na Amrica do Sul, mais concretamente em So Paulo, este fenmeno visvel e os resultados so idnticos, embora com origens diferentes. Bind (2000: 64-65), aludindo aos estudos de Teresa Caldeira, reala que os enclaves fortificados visam constituir mundos onde se exibem formas privadas de autarquia, que proscrevem ou desvalorizam a vida exterior, avaliada em termos negativos e identificada com todas as patologias urbanas. A relao que se estabelece , neste caso, uma no relao: evita-se o espao pblico. As vias pblicas so transformadas em espaos dual: circulao automvel para as elites e circulao dos pobres em transportes colectivos ou a p. Praticar fisicamente o espao pblico torna-se, assim, um signo de estigmatizao social e uma actividade abandonada pela elite: todo o vcio necessariamente pblico, toda a virtude, privada (Bind, 2000: 65).

    Uma tese que tambm acentua os mecanismos de controle e de auto tutela dos cidados relativamente crise de segurana, mas certamente de tendncia poltica oposta -sublinha Amendola- s massas mais conservadoras da grande cidade americana, foi sustentada por Jane Jacobs no livro que marcou nas ltimas dcadas a aco de planeamento e de recuperao das cidades: The Dead and Life of Great American Cities. Neste afirma que a paz pblica da cidade -a paz dos passeios e das ruas- no mantida principalmente pela polcia, ainda quando esta seja necessria. mantida por uma intrincada, quase inconsciente, rede de controles voluntrios e constantes entre as mesmas pessoas e aplicadas e tornadas eficazes pelas prprias pessoas. Harvey (1999: 73-75), referindo-se ao livro de Jacobs, afirma que, para alm de ele constituir uma das primeiras e mais influentes obras anti-modernistas, ele procura definir toda uma abordagem para a compreenso da vida urbana e responder diversificao das populaes urbanas no planeamento da cidade. Para Jacobs, deveria concentrar-se a ateno nos ambientes urbanos "saudveis", onde possvel discernir um intrincado sistema de complexidade organizada, uma vitalidade e uma energia de interaco social que depende basicamente da diversidade, da complexidade e da capacidade de lidar com o inesperado de forma controlada mas criativa. A sua cruzada contra o urbanismo funcionalista moderno e para propor a recuperao do vizindrio e da vida quotidiana orientou, nos ltimos anos, urbanistas de todo o mundo, afirma Amendola.

    No entanto, prossegue o autor, vrias reas da cidade, cujos vizindrios

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  • Recenso crtica obra La Ciudad Postmoderna de Giandomenico Amendola

    j no so homogneos, onde a populao est segmentada e frequente a presena de "estrangeiros", os residentes esto obrigados a adquirir conhecimentos e qualidades particulares para sobreviver. Os habitantes das reas mistas onde coexistem, devido aos rpidos mas descontnuos processos de gentrificao e de alternncia de modos, populaes diversas constitudas por intelectuais, estudantes, classes mdias brancas e de cor, devem fazer referncia a sistemas de normas e critrios capazes de "classificar" com rapidez situaes de perigo ou simplesmente de diversidade, e de distinguir o "estrangeiro" perigoso daquele inofensivo. Assim, os habitantes criam um sistema de normas, uma street etiquette, para conseguirem captar os sinais de perigo e pr em aco comportamentos capazes de evitar o mesmo, ou pelo menos reduzi-lo. Se esta espcie de "educao de rua" confere o mnimo de instrumentos indispensveis para viver e compreender a rua e a sua "fauna urbana", para viver em pleno a rua necessria uma espcie de sabedoria articulada da rua -uma street wisdorn- capaz de permitir adaptaes cognitivas e comportamentais cada vez mais tempestivas e precisas, refere Amendola, citando E. Anderson.

    Entretanto, vai-se difundindo a aceitao de uma certa dose de risco na vida da cidade, reala Amendola, segundo o princpio de que com o perigo necessrio aprender a conviver. A capacidade de adaptao a um ambiente estruturalmente hostil leva a que pequenos delitos de rua, tais como o pequeno furto ou o vidro partido do carro, quando carecem de maiores consequncias sobre a pessoa, so descriminalizados pela prpria vtima, que renuncia a denncia polcia e se limita a maldizer.

    O pesadelo das comunidades-fortaleza Durante o sc. XX, na reflexo sociolgica sobre a cidade, afirma

    Amendola, o conceito de comunidade foi focado nostalgicamente como um mundo perdido que permite, por oposio, analisar a realidade urbana actual fragmentada e diversificada e reconstitu-la sob a forma das utopias regressivas e restauradoras do vizindrio ou nas igualmente retricas da pequena cidade. A utopia da cidade-jardim de Ebenezer Howard, onde se sente uma certa ressonncia progressiva mas em que a preocupao com a higiene e o progresso esto subordinadas ao ideal de pequenas comunidades limitadas no espao e dotadas de um esprito comunitrio (Choay, 1992: 220), sofreu uma adaptao ao atravessar o Atlntico e misturar-se com a ideologia norte-americana da defesa at morte da propriedade privada. A comunidade "risonha" de Howard transformou-se numa comunidade purificada e blindada, acentua Amendola.

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    Este novo tipo de fenmeno urbano-residencial visualiza-se bem nas duas siglas que nos E.U.A. marcam e organizam recentemente a segmentao urbana -o C.I.D. e o B.I.D.. Os C.I.D. -Common Interest District- so uma comunidade na qual os residentes possuem ou dispem de reas ou de equipamentos comuns e que implica direitos e obrigaes recprocas garantidas e cumpridas por um rgo de governo privado, refere Amendola citando D. R. Judd. O C.I.D. uma etiqueta que cobre new tows inteiras, complexos residenciais ou urbanizaes de casas unifamiliares, os condomnios e as casas de apartamentos cooperativos. A outra sigla, o B.I.D. -Business Improvement District- foi criada em 1983 no estado de Nova Iorque, para controlar as ruas comerciais com polticas de relanamento, limpeza, segurana e regulamentao. O xito foi imediato e ampliado a outras grandes cidades, constituindo para alguns polticos norte-americanos uma forma de governo local feita medida.

    As associaes de proprietrios que controlam activamente a vida da prpria rea constituem o modelo habitacional maioritrio nas reas metropolitanas dos E.U.A.. Segundo Amendola, um norte-americano em cada oito vive num C.I.D.; isto sucede sobretudo nos subrbios, onde habita principalmente a classe mdia ancorada a algumas certezas indiscutveis, como a da propriedade, assumida como critrio fundamental e regulador da vida colectiva, e da confiana na segurana que pode vir de uma comunidade socialmente homognea, purificada e fortificada -purified or walled communities. O subrbio privado pode reduzir ao mnimo a interveno do governo, confiando aos proprietrios os gastos e o cuidado das polticas escolares, os servios pblicos e, sobretudo, a segurana. Uma rea pblica conservada como simulacro e , no obstante, controlada, virrualizada e domesticada.

    O subrbio o lugar onde, graas s enormes possibilidades normativas do C.I.D., a realidade plasmada para garantir segurana e homogeneidade social, continua Amendola. Devido a estas possibilidades nasce uma nova utopia segundo a qual os cidados podem fixar regras -convertidas em valor vinculante e legal- s quais aderem e incluso as regras que definem a admisso a este mundo privado. Existe e amplamente praticada, a possibilidade de admitir residentes segundo um critrio de idade, sexo, raa e etnia. Normas rigorosas regulam estilos de vida e tipologias arquitectnicas, comportamento, acesso e caractersticas dos hspedes. As normas podem ainda fixar a idade dos residentes, os horrios de visitas, a presena de crianas, os estilos e cores das casas, os tipos de toldos exteriores. uma subtil forma de limpeza e purificao tnica que tende, simultaneamente, a criar uma comunidade social

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  • Recenso crtica obra La Ciudad Postmoderna de Giandomenico Amendola

    e culturalmente homognea e a separ-la, defendendo-a do mundo hostil. Os habitantes dos subrbios e das "ilhas residenciais" esto de tal modo habituados s condies de homogeneidade no interior dos prprios segmentos blindados da cidade, que j no sabem viver com o que diferente.

    Nesta forma absoluta de segregao, a separao em vez de ser dissimulada exibe-se, a maioria das vezes, como um signo de riqueza e de estatuto social e simblico, por vezes imbudo em justificaes ecolgicas nos argumentos publicitrios dos promotores destas vilas privadas (Bind, 2000: 66). Eficientes sistemas de defesa garantem a comunidade purificada e os seus habitantes, evidencia Amendola. Tambm a nvel visual, as novas comunidades blindadas manifestam e enfatizam a sua prpria natureza de ilhas defendidas, erguendo grades e muros: a ideia que a comunidade uma ilha num mundo hostil e que ela preservada e defendida porque representa algo nico. A sua legitimao, na ideologia corrente, est na qualidade dos valores que contm e nos quais se inspira, no sonho da comunidade perfeita.

    A este propsito, desfolhe-se um qualquer jornal ao fm-de-semana na seco de imobilirio. Nas recentes estratgias de promoo urbana pode observar-se o recurso a imagens e metforas de uma ruralidade encantada, verdejante e de sonho, sempre localizada no centro urbano: quinta da... onde a cidade casa com o campo, campo da... um espao que privilegia a vida... o conforto e a qualidade... tudo em famlia, edifcio villa..., entre outros.

    Para garantir este sonho esto os sistemas de segurana e alta tecnologia e, sobretudo, uma cultura cada vez mais privada, que enfatizada pela diversidade das formas arquitectnicas e protegida pelas normas que ela mesmo criou, logra ter afastado o outro e com ele, a prpria ideia de cidade, conclui Amendola. Estendendo o problema da diluio do conceito de cidade s questes de cidadania ou citadania, como refere Ascher, Bind (2000: 66-68) alerta que os muros do isolamento, do silncio e da hostilidade devero ser derrubados. o futuro da democracia, a renovao do contrato social e o prprio destino dos ideais da UNESCO que esto em causa: que sentido, com efeito, ter a educao para todos, ao longo da vida, num regime de apartheid social e urbano? Mudar a cidade, mudar a vida.

    Bibliografia consultada

    AMENDOLA, Giandomenico (2000). La Ciudad Postmoderna. Magia y Miedo de Ia MetrpoUs Contempornea, Madrid, Celeste Ediciones.

    ASCHER, Franois (1998). Metapolis. Acerca do Futuro da Cidade, Oeiras, Celta Editora.

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