alfabetização - ceel

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  • Alfabetizaoe letramento

    conceitos e relaes

    Carmi Ferraz SantosMrcia Mendona

    Alfabetizaoapropriao do sistema

    de escrita alfabtica

    Andra Galvo, Marlia de Lucena Coutinho,

    Tnia Maria Rios Leite e Roseane Pereira da Silva

    Artur Gomes de MoraisEliana Borges Correia de Albuquerque

    Telma Ferraz Leal(orgs.)

  • Alfabetizao: apropriao dosistema de escrita alfabtica

  • Presidente: Luis Incio Lula da SilvaMinistro da Educao: Tarso GenroSecretrio de Educao Bsica: Francisco das Chagas FernandesDiretora do Departamento de Polticas da Educao Infantil e EnsinoFundamental: Jeanete BeauchampCoordenadora Geral de Poltica de Formao: Lydia Bechara

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOReitor: Amaro Henrique Pessoa LinsPr-Reitora para Assuntos Acadmicos: Lcia Souza Leo MaiaDiretor do Centro de Educao: Srgio AbranchesCoordenadora do Centro de Estudos em Educao e Linguagem CEEL: Eliana Borges Correia de AlbuquerqueVice-Coordenadora do Centro de Estudos em Educao e Lingua-gem: Telma Ferraz Leal

  • ORGANIZAO

    Artur Gomes de Morais

    Eliana Borges Correia de Albuquerque

    Telma Ferraz Leal

    Alfabetizao: apropriao dosistema de escrita alfabtica

  • Copyright 2005 by Os autores

    CapaVictor Bittow

    Editorao eletrnicaWaldnia Alvarenga Santos Atade

    RevisoVera Lcia de Sinome Castro

    2005

    Todos os direitos reservados ao MEC e UFPE/CEEL.Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida, seja pormeios mecnicos, eletrnicos, seja via cpia xerogrfica sem a

    autorizao prvia do MEC e UFPE/CEEL.

    CEELAvenida Acadmico Hlio Ramos, sn. Cidade Universitria.

    Recife Pernambuco CEP 50670-901Centro de Educao Sala 100.

    Tel. (81) 2126-8921

    A385Alfabetizao: apropriao do sistema de escrita alfabtica /

    organizado por Artur Gomes Morais, /Eliana Borges Correiade Albuquerque, Telma Ferraz Leal . Belo Horizonte: Au-tntica, 2005.168p.ISBN 85-7526-153-31.Educao. 2.Alfabetizao. I. Morais, Artur Gomes. II. Al-buquerque, Eliana Borges Correira de. III. Leal, Telma Fer-raz. IV.Ttulo.

    CDU 372.4Ficha catalogrfica elaborada por Rinaldo de Moura Faria CRB6-1006

  • SUMRIO

    07

    11

    29

    47

    71

    89

    111

    133

    Apresentao

    H lugar ainda para mtodos de alfabetizao? Conversacom professores (as)Andra Galvo e Telma Ferraz Leal

    Se a escrita alfabtica um sistema notacional (e no umcdigo), que implicaes isto tem para a alfabetizao?Artur Gomes de Morais

    Psicognese da lngua escrita: O que ? Como intervir emcada uma das hipteses? Uma conversa entre professoresMarlia de Lucena Coutinho

    Como promover o desenvolvimento das habilidades de refle-xo fonolgica dos alfabetizandos?Artur Gomes de Morais e Tnia Maria Rios Leite

    Fazendo acontecer: o ensino da escrita alfabtica na escolaTelma Ferraz Leal

    Jogos: alternativas didticas para brincar alfabetizando(ou alfabetizar brincando?)Telma Ferraz Leal; Eliana Borges Albuquerque e Tnia Ma-ria Rios Leite

    Leitura e escrita na alfabetizaoRoseane Pereira da Silva

  • 6O livro didtico de alfabetizao: mudanas e perspectivasde trabalhoEliana Borges Correia de Albuquerque e Artur Gomes deMorais

    Os autores

    147

    167

  • 7APRESENTAO

    Com o objetivo de contribuir para a ampliao do debate so-bre um tema to complexo e instigante, a alfabetizao, o Centro deEstudos em Educao e Linguagem (CEEL) entrega ao pblico leitormais uma produo coletiva por ele coordenada. Ela resulta da expe-rincia de diferentes educadores e pesquisadores preocupados coma formao de professores e os descaminhos da alfabetizao emnosso pas nas ltimas dcadas. Os conhecimentos produzidos pelaspesquisas relativas a Apropriao do Sistema de Notao Alfabticanortearam as reflexes presentes nessa publicao.

    Seu objetivo principal teorizar sobre a prtica de professoresalfabetizadores, fornecendo-lhes subsdios para melhor compreen-der concepes, conceitos, procedimentos, atividades e atitudes quesubjazem ao seu fazer pedaggico. A premissa aqui de que a refle-xo contnua e fundamentada que o docente faz sobre sua prpriaprtica docente tem um papel importante a desempenhar na formaode professores.

    No h dvida de que esse um grande desafio, e que a superaodos problemas do analfabetismo no Brasil no depende unicamente do

  • 8professor, mas de um conjunto de fatores que dizem respeito tanto ainstituies, modelos e prticas de formao inicial e continuada quan-to organizao do sistema de ensino, da escola, do currculo, dentreoutros aspectos que priorizem um trabalho pedaggico de naturezacooperativa, solidria e comprometida com a educao de qualidade.Dentre esses vrios aspectos que envolvem a questo, os saberesespecficos sobre a aprendizagem da leitura e da escrita constitueminstrumentos fundamentais para a atuao dos docentes envolvidosno processo de ensino, na perspectiva de alfabetizar letrando.

    A coletnea de textos ora publicada em livro trouxe discussotemas emergentes, relevantes e fundamentais para a formao cont-nua do(a) professor(a) alfabetizador(a).

    No primeiro captulo, Andra Galvo e Telma Ferraz Leal, sem apretenso de oferecer uma resposta definitiva, propem a discussode um tema bastante controverso para a alfabetizao: o uso ou node mtodos nas classes de alfabetizao.

    No segundo captulo, Artur Morais discorre sobre a escrita alfa-btica como um sistema notacional, que necessita ser entendido comoferramenta simblica e no um simples cdigo de transcrio da fala.

    Marlia Coutinho revisita, no terceiro captulo, situaes da salade aula luz das contribuies da Psicognese da Lngua Escrita,objetivando a compreenso da aquisio da escrita pelos alunos.

    Artur Morais e Tnia Rios discutem, no quarto captulo, sobreas habilidades de reflexo fonolgica, abordando suas limitaes epotencialidades. Analisando como a conscincia fonolgica se re-laciona compreenso da escrita alfabtica, enfocam a evoluo deuma criana durante a srie de alfabetizao e examinam alguns enca-minhamentos didticos relatados por professores.

    O quinto capitulo, elaborado por Telma Ferraz Leal, traz dis-cusso a temtica da organizao do trabalho didtico, pondo emrelevo a diversidade que caracteriza os saberes dos alunos. A autorafaz uma reflexo centrada nas intervenes didticas destinadas apropriao do sistema alfabtico de escrita que, sem dvida, mere-cem uma ateno especial por parte do(a) professor(a).

  • 9Telma Ferraz Leal, Eliana Borges Albuquerque e Tnia Rios soas responsveis pelo sexto captulo, que se dedica discusso sobrejogos no processo da alfabetizao. As autoras focalizam tal estrat-gia didtica como um poderoso instrumento de interao social emsituaes de aprendizagem conceitual e de ludicidade, dimenses tonecessrias nas sries iniciais.

    Tendo em vista os marcos da perspectiva de alfabetizar letran-do, Roseane Pereira da Silva escreve o stimo captulo sobre a leiturae a escrita na alfabetizao, chamando a ateno para a necessidadedo processo de alfabetizao oportunizar ao aluno um contato siste-mtico com diferentes gneros textuais e com a anlise de materiaisdiversificados de leitura e escrita.

    Encerra a publicao a abordagem de Eliana Borges de Albu-querque e Artur Morais sobre um importante instrumento para oprofessor: o livro didtico. Os autores discutem sobre as mudanasnos livros de alfabetizao, desde as tradicionais cartilhas aos li-vros de alfabetizao recomendados pelo Programa Nacional doLivro Didtico, e sobre alternativas de uso em sala de aula pelosprofessores.

    Desejamos a todos uma boa leitura.

    Centro de Estudos em Educao e Linguagem CEEL

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    Para comeo de conversa

    Ao sermos solicitadas para escrever este artigo veio-nos logoa idia de podermos refletir com os professores e as professorassobre um tema to atual e instigante quanto os caminhos e descami-nhos da alfabetizao. Conhecer ou revisitar alguns mtodos de alfa-betizao nos lanar a questo: possvel alfabetizar sem mto-do? Ou, Qual o melhor caminho a trilhar para a aquisio da leiturae da escrita por nossos alunos?

    Muito se escreveu sobre esse tema e muito conhecimento foi pro-duzido acerca da aprendizagem dos alunos, sobretudo com as pesquisassobre a psicognese da lngua escrita, desde os trabalhos de Ferreiro eTeberosky a partir dos anos 1980. No entanto, como indica Ferreiro (2005)1

    H lugar ainda para mtodosde alfabetizao? Conversa

    com professores(as)

    Andra Galvo e Telma Ferraz Leal

    A alfabetizao algo que deveria ser ensinadode forma sistemtica, ela no deve ficar diluda

    no processo de letramento.Magda Soares

    1 Alfabetizao, letramento e construo de unidades lingsticas. In: SeminrioInternacional de Leitura e Escrita Letra e Vida, promovido pela SecretariaEstadual de Educao do Estado de So Paulo, 2005.

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    Os dados da pesquisa psicogentica no resolvem os proble-mas do ensino, mas colocam novos desafios relativos aosproblemas clssicos da didtica: o que ensinar, como ensinar,quando ensinar, o que, como, quando e por que avaliar.

    O que temos, nos dias atuais no nosso pas, segundo recentesavaliaes2, so patamares inaceitveis de analfabetismo, e o que mais grave, alunos sados do nosso sistema de ensino e que, noentanto, no conseguem ler e escrever um texto simples aps quatroou cinco anos de escolaridade!

    No raro ouvirmos da boca de pais e professores as idias deque antigamente as crianas aprendiam a ler e a escrever com facili-dade ou ainda no meu tempo que era bom: a gente aprendia aescrever o alfabeto e se no soubesse, tinha que repetir cem vezes nocaderno ou mais comum ainda, a culpa desses mtodos3 moder-nos. Os alunos no aprendem!

    Salientamos que nossa inteno, neste artigo, no fazer a defesada volta aos mtodos tradicionais de ensino da lngua ou da utilizaode prticas que tratavam, e ainda tratam, o aprendizado da lngua mater-na de forma fragmentada e descontextualizada. Entendemos, porm,ser necessrio conhecer alguns mtodos de alfabetizao e refletirmossobre seus limites e possibilidades, ajustando-os s mudanas concei-tuais produzidas pelas pesquisas e s exigncias da sociedade contem-pornea. pertinente e urgente ainda pensar sobre a necessidade deorganizarmos estratgias ordenadas e sistematizadas para o ensino e aaprendizagem do sistema de notao alfabtico, j que esse um obje-to de conhecimento que tem suas especificidades.

    Magda Soares (2003) prope um tema oportuno para o debate: aperda de especificidade do processo de alfabetizao nas prticasescolares. A argumentao que desenvolve para tratar o tema partedo pressuposto de que a aprendizagem da leitura e da escrita umprocesso que se faz por meio de duas vias, uma tcnica e outra que

    2 Para conhecer esses dados ver ltimo SAEB e PISA (2004).3 Referindo-se, em geral, ao construtivismo de forma equvoca como mtodo de

    ensino.

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    diz respeito ao uso social. No seria recomendvel consider-las deforma dissociada, j que essas se estruturam uma simultnea a outrae mantm entre si relao de interdependncia. O que Magda Soaresnos ensina que, de um lado, esse processo implica o indispensvelaprendizado de uma tcnica que consiste, entre outras coisas, emlevar o indivduo a ser capaz de estabelecer relaes entre sons eletras, de fonemas com grafemas.

    A justo ttulo, a autora defende que o domnio dos princpiostcnicos da escrita alfabtica supe compreender, sobretudo, que asrepresentaes grficas esto associadas ao som que elas represen-tam, aprender a pegar no lpis e, ao mesmo tempo, que, no Ocidente,se escreve da esquerda para a direita e de cima para baixo, na quasetotalidade das situaes.

    Por outro lado, o aprendizado da tcnica s far sentido se ele sefizer em situaes sociais que propiciem prticas de uso. No adian-ta aprender uma tcnica e no saber us-la, afirma Soares. Nessesentido, o uso social que d sentido ao domnio da tcnica.

    No entanto, o domnio da tcnica (relacionar som/grafia, reco-nhecer letras, codificar, usar o papel, usar o lpis, etc.), mas tambm odomnio do uso nas prticas sociais, as mais variadas, importam emduas aprendizagens distintas, em termos de processos cognitivos ede objetos de conhecimento. Esses processos so distintos, masindissociveis, porque as duas aprendizagens se fazem ao mesmotempo, uma no pr-requisito da outra.

    Nessa perspectiva, diferentes pesquisas tm demonstrado que possvel e necessrio alfabetizar com uma diversidade de textos deuso social, sem o uso de cartilha, incentivando os alunos a produzir ea interpretar textos de circulao social, estimulando-os a compreen-der seu uso, colocando enfim os aprendizes em interao entre si detal forma que todos os alunos possam ditar textos, corrigir, refazerseus textos e os de seus companheiros.

    Ao professor cumpriria organizar e socializar as informa-es que os alunos trazem consigo e, progressivamente, criar assituaes necessrias em que eles assumam os papis de leitor ede escritor.

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    As recentes investigaes alertam ainda que apropriar-se de talobjeto de conhecimento, fazendo uso das suas prticas sociais, re-quer da escola, e no somente dela, um lugar especfico para se pen-sar a lngua escrita e a leitura.

    Diferentemente, a escola tem desenvolvido prticas alfabetiza-doras que se estruturam com base em uma lgica linear e seqencial,segundo a qual s se passa a aprender uma coisa ao se aprenderoutra. Primeiro se aprende a ler e a escrever, depois que se aprendeseus usos por prticas sociais. Ou ento, ao revs, as prticas alfabe-tizadoras mergulham direto nos usos, esquecendo-se de consideraras especificidades do processo de apropriao do Sistema de EscritaAlfabtica (SEA), processo esse que Soares nomeia de desinven-o da alfabetizao.

    ...a alfabetizao uma parte constituinte da prtica da leitu-ra e da escrita, ela tem uma especificidade, que no pode serdesprezada. a esse desprezo que chamo de desinventar aalfabetizao. abandonar, esquecer, desprezar a especifici-dade do processo de alfabetizao.

    A autora defende a idia de que, em razo da crtica aos mtodosde alfabetizao, protagonizada por certo discurso didtico-pedag-gico, terminou-se por se desconstruir a idia, inscrita na tradioda educao escolar e da formao de professores no Pas, de queno seria preciso haver mtodo de alfabetizao, julgando-se im-portante, em substituio, o contato com material de leitura e deescrita. Magda Soares argumenta que por equvocos e por infern-cias falsas, passou-se a ignorar ou a menosprezar a especificidadeda aquisio da tcnica da escrita, indicando que a concepoconstrutivista de ensino e aprendizagem ajudou a difundir, erronea-mente, tais idias.

    Com efeito, a alfabetizao um processo de construo dehipteses sobre o funcionamento do sistema alfabtico de escrita.Para aprender a ler e a escrever, o aluno precisa participar de situaesque o desafiem, que coloquem a necessidade da reflexo sobre a ln-gua, que o leve enfim a transformar informaes em conhecimento

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    prprio. utilizando-se de textos reais, tais como listas, poemas, bi-lhetes, receitas, contos, piadas, entre outros gneros, que os alunospodem aprender muito sobre a escrita.

    Por que to difcil, porm, apesar de os conhecimentos aquiabordados j serem to difundidos e repetidos por professores eprofessoras, criar as condies para que esse processo flua de ma-neira favorvel a esses que esto implicados nessa batalha: alunose professores?

    Nesse ponto, retomamos a questo central deste artigo: pos-svel alfabetizar sem mtodo?

    Batista et al (2003), em um texto recente, tece algumas conside-raes sobre a questo do mtodo dentro de uma perspectiva querelaciona as dimenses macro e microescolar, que julgamos importan-tes recuperar aqui, uma vez que elas ajudam a balizar a abordagemque pretendemos adotar para tratar a questo acima.

    Seria timo se os problemas da alfabetizao no Pas pu-dessem ser resolvidos por um mtodo seguro e eficaz.Mas as metodologias mesmas no so suficientes paraassegurar resultados positivos, pois dependem sempre doprofessor, de sua sensibilidade para interpretar as neces-sidades dos alunos particularmente daqueles que apre-sentam dificuldades no processo de aprendizagem. De-pendem tambm de uma organizao coletiva da escola edas redes de ensino, por meios dos quais so definidos ospatamares mnimos de aprendizagem numa srie ou ciclo,estabelecendo formas diagnsticas e desenvolvidos pro-cessos de interveno.

    As reflexes do autor so, sem dvida, pertinentes, por noslevar a entender que a questo do mtodo de alfabetizao nopode ser tratada de forma isolada nem separada do contexto maisamplo (a escola, as redes de ensino, a sociedade) em que sesitua. Elas tm o mrito ainda de por em relevo o papel que oprofessor tem a desempenhar na busca de resultados positivos,o que exige do docente sensibilidade para agir como intrprete

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    das necessidades dos alunos (particularmente daqueles queapresentam dificuldades no processo de aprendizagem). Estaltima idia nos leva direto s proposies atuais do alfabetizarletrando, implicando que tratemos da questo do mtodo de al-fabetizao, na sua perspectiva microescolar. Essas proposiessituam a questo no plano da reflexo sobre a sala de aula esobre o desenvolvimento das atividades da classe, com as suasespecificidades. Situam-na ainda no plano da reflexo sobre asunidades menores que compem o nosso sistema de escrita (pa-lavras, slabas, letras), no necessariamente nessa ordem; no pla-no do desenvolvimento das capacidades de anlise fonolgicadas palavras4, da busca de semelhanas e diferenas na escritadas palavras, etc. Isso sem perder de vista o sentido do que lere escrever e o fato de que os textos que circularo no espaoescolar podem e devem ter vinculao com as prticas sociais deleitura e escrita. Textos reais para alunos reais que necessitamconhecer e se apropriar desses instrumentos produzidos pornossa sociedade para conhecer e dar sentido ao mundo.

    Esse parece ser um desafio para a organizao do trabalhodo(a) professor(a) alfabetizador(a). Como bem aponta Batista et al(2003, p. 22), o desafio coloca problemas de concepo e de organiza-o escolar que necessitam ser enfrentados coletivamente.

    [...] preciso que as redes de ensino enfrentem trs proble-mas que tm evitado enfrentar: o professor alfabetizadorprecisa ser um dos mais capacitados da escola (ele precisa,portanto, de uma adequada formao); precisa tambm serum dos mais valorizados da escola (ele precisa, portanto,de um estatuto diferenciado). necessrio reorganizar aescola e os tempos destinados ao trabalho coletivo, em equi-pes de professores e coordenadores (o professor no odono de sua sala, mas algum que responde, com o conjuntoda escola, pela alfabetizao de suas crianas).

    4 A esse respeito, ver o artigo de Morais e Rios.

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    A conversa chega ao seu ponto central:os mtodos de alfabetizao

    Para melhor contextualizarmos nossa discusso, apresentare-mos, a seguir, os principais mtodos de alfabetizao repertoriadospela literatura. Tal conhecimento importante para que nos apoiemosna histria para conduzirmos novos rumos e traarmos novas metase estratgias de ensino.

    Sem o interesse de sermos exaustivos, traaremos as caracte-rsticas de cada um e algumas consideraes sobre seus limites,com o objetivo de responder questo que estamos examinando.

    Achamos conveniente, antes de apresentarmos alguns dos m-todos mais utilizados, comearmos por definir melhor o que entende-mos por mtodo. No sentido amplo, mtodo um caminho que con-duz a um fim determinado. O mtodo pode ser compreendido tambmcomo maneira determinada de procedimentos para ordenar a ativida-de, a fim de se chegar a um objetivo. No campo cientfico, ele enten-dido como um conjunto de procedimentos sistemticos que visa aodesenvolvimento de uma cincia ou parte dela. No sentido aqui em-pregado, o mtodo de alfabetizao compreende o caminho (entendi-do como direo e significado) e um conjunto de procedimentos sis-temticos que possibilitam o ensino e a aprendizagem da leitura e daescrita. Assim, precisamos explicitar que no temos a inteno denegar a importncia dos mtodos. Ao contrrio, acreditamos que oensino sistemtico do sistema alfabtico no s desejvel comotambm necessrio.

    Vejamos ento os mtodos de alfabetizao mais utilizados emdeterminados momentos histricos no Brasil.

    Grosso modo, podemos afirmar que os mtodos de alfabetiza-o se dividem em trs grandes grupos: os mtodos sintticos, osmtodos analticos e os mtodos analtico-sintticos. Por serem cons-trues heterogneas, esses grandes grupos possuem, cada um, va-riaes que denotam seu dinamismo.

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    Mtodos sintticos

    Os mtodos sintticos so os mtodos que prevem o incio daaprendizagem a partir dos elementos estruturalmente mais simples,isto , letras, fonemas ou slabas, que, atravs de sucessivas ligaes,levam os aprendizes a ler palavras, frases e textos. Ou seja, parte-sedas unidades menores (letras, fonemas ou slabas) para passar a ana-lisar unidades maiores (palavras, frases, textos). Propostas de ensinobaseadas nesses mtodos partem do pressuposto de que a aprendi-zagem mais fcil quando se parte das unidades mais elementares esimples (em geral sem sentido), para, em seguida, apresentar unida-des inteiras e significativas. Ou seja, acredita-se que as coisas maissimples do ponto de vista lgico devem ser, tambm, mais simples doponto de vista psicolgico.

    Como foi historiado por Roazzi, Leal e Carvalho (1996, p. 7):

    Os mtodos sintticos foram os primeiros a serem utilizados(Mialaret, 1967; Matthews, 1966). Pode-se dizer que estesmtodos, sob forma dos mtodos alfabticos, so os maisantigos, sendo utilizados, sem outros competidores, desde aantiga Grcia e o Imprio Romano at o incio do sculoXVIII. O mtodo assim descrito por Dionigi de Alicarnas-so: Quando aprendemos a ler, antes de tudo aprendemos osnomes das letras, em seguida suas formas e seus valores,ento as slabas e suas modificaes, e depois disso as pala-vras e suas propriedades, isto , os alongamentos, a acentu-ao e outras coisas deste tipo. Quando chegamos a conheceristo, enfim, comeamos a ler e escrever, slaba por slaba,inicialmente de forma lenta; em seguida, quando passado umtempo considervel, esto impressas no nosso mago suasformas determinadas. Fazemos o mesmo exerccio na for-ma mais fcil possvel, de modo a poder ler com seguranae prontido inacreditveis, sem encontrar obstculos emqualquer livro com que nos encontramos. (citado emMATTHEWS, 1966, p. 6).

    A idia de que o treino do nome das letras era pr-requisitopara a aprendizagem da leitura fundamentava a tcnica da soletrao,

  • 19

    em que os alunos pronunciavam os nomes das letras, unindo-as emslabas e depois em palavras (b com a, ba, te com a, ta, bata).

    A crtica a esse modelo de alfabetizao fez-se no prprio interi-or da perspectiva sinttica. Os adeptos dos mtodos fnicos acusa-ram que tal procedimento artificializava o processo, criando proble-mas na oralizao das palavras (os nomes das letras no correspondiamaos sons que elas representavam). Assim, os defensores dos mto-dos fnicos adotaram o pressuposto de que cada letra dispe decerta autonomia fontica e se baseia nas intuies fonticas da crian-a e em sua capacidade de imitao de sons especficos.

    Basicamente, trata-se de fazer pronunciar as letras, aprendi-das uma de cada vez, de acordo com seu valor fnico, comose pronunciam enquanto unidades das palavras. Desta for-ma, o mtodo fnico possuiria a vantagem de no criar inter-ferncias entre o conhecimento dos nomes das letras e oconhecimento do som correspondente. Apesar do avanoapresentado pelo mtodo fnico em relao ao mtodo alfa-btico, no so eliminados os problemas do mecanicismo erepetitividade da aprendizagem, obrigando ainda a criana aestar longe por um longo perodo de tempo dos significadosdas palavras e dos textos, verdadeiro objetivo da aprendiza-gem da leitura (ROAZZI, LEAL e CARVALHO, 1996, p. 8).

    Acrescentamos a essa crtica, a preocupao com a passividade doaluno diante da aprendizagem do sistema de escrita. Se prestarmos aten-o lngua falada, fcil percebermos que essa se apresenta como algoque flui continuamente. Esse fluxo sonoro dificilmente apresenta interva-los entre as palavras. Concebemos que a exposio a situaes dereflexo sobre as palavras que pode ajudar as crianas e adultos emprocesso de alfabetizao a perceber essas unidades menores.

    Os mtodos silbicos tambm podem ser lembrados nesse gru-po. As abordagens baseadas nos mtodos silbicos promovem oensino, de modo que os alunos so levados a memorizar padressilbicos (partindo dos mais simples, com estrutura consoante-vogal) e, depois, a uni-los em palavras. Nesse sentido, os alunoss eram chamados a formar palavras que fossem compostas dos

  • 20

    padres silbicos trabalhados. A concepo bsica que a aprendi-zagem ocorre por memorizao, bem como a alfabetizao tambmassim ocorre.

    Em concluso, as abordagens sintticas parecem ignorar, defini-tivamente, o carter significativo da escrita no seu processo de aqui-sio, o que provavelmente implica uma desmotivao para tal apren-dizagem, alm de no contribuir para auxiliar a criana a perceber afuncionalidade desse objeto para o cotidiano.

    Mtodos analticos

    Os mtodos analticos so aqueles que propem um ensino queparte das unidades significativas da linguagem, isto , palavras, fra-ses ou pequenos textos, para depois conduzir anlise das partes me-nores que as constituem (letras e slabas). Como salientam ROAZZI,LEAL e CARVALHO (1996, p. 9):

    A anlise das unidades mais simples e elementares das pala-vras no feita fora do significado que estas partes contribu-em para formar. Estes mtodos se fundamentam no fato deque os mecanismos formais da leitura no so necessriosnas fases iniciais, podendo at tornarem-se um obstculo.Nessa abordagem, concebe-se que a habilidade da criana emextrair o sentido do mundo da escrita implicitamente a capa-citar a utilizar seus mecanismos. A explicao lgica do m-todo analtico que a criana no reconhece que as letrasrepresentam unidades de sons, de forma que o inteiro con-junto de letras ensinado em sua totalidade como se repre-sentasse uma palavra especfica.

    No ensino que parte das palavras, coloca-se a criana diante deum conjunto de palavras que elas reconhecem globalmente, atravs damemorizao, e, aos poucos, quando a criana aprende uma pequenaquantidade de palavras, essas so apresentadas em combinaes dife-rentes para construir sentenas significativas. Aps as crianas domi-narem um conjunto de palavras de forma estvel, passa-se a enfatizarque os smbolos das letras representam determinado som especfico.

  • 21

    Cada fonema passa a ser trabalhado at que a criana se torne capaz deoperar converses letras-sons de maneira quase automtica.

    De modo similar, nos mtodos que se parte de sentenas, prope-se que os alunos memorizem sentenas e faam a leitura global atque passem a reconhecer partes dessas sentenas em outras sen-tenas. Assim,

    Esses mtodos prevem, no incio da aprendizagem, um pe-rodo bastante longo dedicado atividade de memorizao deunidades estruturalmente mais complexas da lngua escrita(palavras e frases), para somente em seguida, atravs de umprocesso espontneo de descoberta, as crianas passarem asubdividi-las e a prestar ateno s suas peculiaridades (fo-nemas, slabas e letras). Por sua vez, a partir das letras eslabas aprendidas, a criana passaria a ler e escrever as ou-tras palavras e frases ainda no memorizadas. Desta forma, acriana alcanaria uma compreenso da correspondncia en-tre sons e letras (fonemas/grafemas) e, em seguida, tornar-se-ia capaz de ler qualquer palavra nova, atravs de um proces-so de anlise e sntese. Nessa perspectiva, concebe-se quenos mtodos analticos parte-se da palavra, das frases e tex-tos a partir dos interesses das crianas. A anlise da crianaacerca da estrutura da palavra e seus elementos componentesser realizada, neste ponto de vista, alguns meses depois emfuno de um interesse espontneo da criana (ROAZZI,LEAL e CARVALHO, 1996, p. 9).

    Um dos primeiros pedagogos a fornecer uma definio e carac-terizao desse tipo de perspectiva foi Nicholas Adams, em 1787 (ci-tado em Titone, 1963): Quando voc quer fazer conhecer um objetoa uma criana, por exemplo, um vestido, passou pela vossa mentemostrar-lhe separadamente as mangas, a frente? No, certamente.Pelo contrrio, voc mostra o vestido todo e diz: eis aqui um vestido. tambm desta forma que as crianas aprendem a falar; por que nofazer o mesmo para ensinar a ler e escrever? (p. 102).

    Na proposta de Adams, so fornecidas criana palavras co-nhecidas e com certa conotao emocional, como mame, papai,

  • 22

    prato, etc. Aos poucos, aumenta-se o nmero de palavras e pede-se criana para discriminar entre eles:

    A experincia ir vos convencer que o pequeno aluno neces-sitar de muito menos tempo para reconhecer estas seis pa-lavras, do tempo que seria necessrio para torn-lo capaz dedistinguir com segurana um /a/ de um /b/ ou de um /c/. Quan-do ele tiver em sua caixa duas ou trs dzias de folhas depapel, escreva novamente estas mesmas palavras em cartasde jogos iguais e procure que a criana emparelhe as folhascom as cartas correspondentes; em muito pouco tempo asfolhas de papel se tornaro inteis, e s o aspecto das letrasque compem as palavras ser suficiente para l-las.

    Adams continua dizendo:

    Pensem que enquanto vocs esto lendo, no lem seno palavrase frases inteiras e no letras e slabas; e que quando cantam vocspercebem um todo musical e no as simples notas. Supe-se,como a razo e a experincia provam, que a criana depois de trsmeses saiba pelo menos ler uma pequena estria. (p. 103)

    Outro educador que tambm caracterizou os mtodos analticos foiDecroly, que colaborou para elaborao do mtodo analtico, mais espe-cificamente denominado de mtodo global (ver DECROLY & DEGAND,1906). Os pressupostos tericos so oriundos das abordagens deo-visuais, ou naturais. A base de sustentao terica era a Psicologia, que,no final da sculo XIX e comeo do sculo XX, destacava que o primeiromomento no processo de aprendizagem fosse do tipo sincrtico ou glo-bal, e a leitura era vista como um processo eminentemente visual. Decro-ly defendia que era necessrio partir das frases: Significa ir do compos-to concreto para chegar aos detalhes abstratos (slabas, letras) (p. 294).

    Os critrios que caracterizavam esse mtodo eram basicamentequatro: 1) a adoo de um procedimento basicamente visual; 2) a utili-zao de uma frase ou de uma palavra concreta inserida em uma ao aser executada; 3) inmeras repeties facilitadas pelo interesse e pelo

    5 Para maior aprofundamento da contribuio pedaggica de Decroly no ensinoda leitura e da escrita, ver DALHEM (1932).

  • 23

    jogo; 4) decomposio natural das palavras elaboradas pela mesmacriana. Para Decroly, a centralizao do processo de aprendizagem emfrases ou palavras satisfaria exigncias motivacionais e emocionais5.

    Nessa mesma linha, Dottrens & Margairaz (1951) afirmavam que:

    A leitura deve se tornar ocasional, a necessidade de sua apren-dizagem deve aparecer com o propsito de uma necessidadeda criana, deve responder aos seus interesses... A comparao(entre slabas e letras iguais) se estabelece espontaneamente,sem precisar que o professor intervenha. Insistimos sobre ofato de que para ter todo o seu valor, este trabalho de anliseseja espontneo e no provocado. (p. 59-60)

    Essa nfase na espontaneidade do processo de aprendizagempode ser encontrada tambm em Mialaret:

    Seria prefervel falar em decodificao e anlise porque odesejo de ler uma palavra nova que conduz atividade deanlise, mas existem, tambm, anlises espontneas que nopodem ser negligenciadas. (p. 85)

    Resumindo, podemos destacar, com Roazzi, Leal e Carvalho(1996), que:

    Uma caracterstica fundamental dos mtodos analticos re-fere-se no s preocupao com aspectos motivacionais,mas tambm no diretividade do professor na conduodo processo de aprendizagem. Isto , a aquisio das letrase do valor da relao espao-temporal entre elas feitoatravs de um processo de anlise-sntese espontneo eocasional de palavras inteiras anteriormente memorizadas.Desta forma, privilegia-se, neste processo, o carter de es-pontaneidade e ocasionalidade, isto , o interesse ocasionalespontneo da criana.

    Mtodos analtico-sintticos

    Os mtodos analtico-sintticos partem de um processo quecomea em um estgio de conhecimento global (palavras, frases,

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    textos), para, logo em seguida, passar a um estgio analtico-sintti-co, caracterizado pela decomposio das palavras em letras ou emslabas. Roazzi, Leal e Carvalho (1996, 13-14) destacam que:

    Os mtodos analtico-sintticos derivam de um modelo deaprendizagem que, apesar de partir de conjuntos complexosda lngua escrita, como palavras ou frases breves, focalizasua ateno, de forma mais especfica, nas fases de anlise-sntese. Do ponto de vista cognitivo, estas fases so conside-radas como as mais complexas e difceis para a criana. Con-seqentemente, estas fases de anlise-sntese devem ser,dentro dessa perspectiva metodolgica, organizadas de for-ma sistemtica sem deix-las merc de descobertas ocasio-nais e espontneas por parte das crianas. As crianas soguiadas de forma intencional, atravs de exerccios sistemti-cos e de ajuda direta. Na prtica, necessrio que sejamescolhidas algumas palavras, frases ou textos simples, cujaanlise, comparao e sntese, praticadas simultaneamentedesde o comeo, devem fazer conhecer criana, na sucessodesejada, os elementos da lngua que lhe permitem aprendero mecanismo da leitura.

    O mtodo Le sablier, elaborado por Gisle Prefontaine (1969),e explicitamente denominado pela autora como mtodo analtico-sinttico; o mtodo proposto por Correl, em 1967 (ver SKINNER &CORREL, 1974), de orientao comportamentalista, atravs da ins-truo programada; o mtodo elaborado por Kratzmeier (1971), nofinal dos anos sessenta; e ainda o mtodo elaborado por Sullivan(1986), denominado Language experience approach (LEA: Abor-dagem da Experincia da Linguagem) podem ser usados para exem-plificar tal abordagem.

    Entre as variaes do mtodo analtico-sinttico, encontra-mos a Palavrao. Com ele, o aluno aprende palavras e depois assepara em slabas para com estas formar novas palavras. Um exem-plo bem prximo de ns o chamado Mtodo Paulo Freire, Eleconsiste em um mtodo de palavrao global no-fontico, noqual as palavras so selecionadas dentro do universo vocabular

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    dos alunos. Paulo Freire inovou quando props alfabetizar adul-tos partindo de palavras que estivessem fortemente ligadas suarealidade. Um dos seus mritos est em reconhecer que a relaoafetiva com as palavras impulsiona a aprendizagem: no h dvi-da de que a conotao poltica e libertria do trabalho de PauloFreire fizeram dele um dos educadores mais conhecidos no Brasile no mundo.

    Todos os mtodos at agora apresentados guardam entre sisemelhanas que precisamos salientar. Conforme abordaram Roazzi,Leal e Carvalho (1996, p. 19-20), h:

    uma certa predisposio a no considerar os conhecimen-tos informais que a criana desenvolve acerca da escrita.Nenhum dos diferentes mtodos acima apresentados tmconsiderado a bagagem de conhecimentos adquiridos pelacriana, isto , suas idias e hipteses sobre a escrita, antesdesta entrar na escola e ser alfabetizada. Estudos recentes(FERREIRO, 1988) tm demonstrado que a criana temconhecimentos e concepes acerca da escrita antes de in-gressar na escola, adquiridos em seus contatos dirios como mundo da escrita. Pode-se observar tambm, nas anlisesdessas abordagens, que h uma desconsiderao da capaci-dade que os aprendizes tm de formular hipteses, analisaro sistema da lngua escrita (FERREIRO & TEBEROSKY,1985; FERREIRO, 1991), e usar diferentes estratgias eindcios auxiliares no seu processo de descoberta.

    Alertamos, ainda, que no h, na maior parte dessas propostas,preocupao com a insero dos alunos em eventos em que a escritaaparea de forma dinmica, com textos lidos ou escritos para atendera diferentes finalidades sociais. A alfabetizao na perspectiva doletramento no , assim, foco de reflexo e, conseqentemente, deao pedaggica.

    Considerando esses limites, propomos no uma rejeio ao usode mtodos, e sim, como diz Magda Soares, uma reinveno da alfa-betizao, com estratgias didticas sistemticas para ensinar os alu-nos a ler e a produzir textos com autonomia.

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    Algumas palavras finais dessa ponta de conversa

    [...] os mtodos viraram palavres. Ningum podia mais falarem mtodo fnico, mtodo silbico, mtodo global, pois todoseles caram no purgatrio, se no no inferno. Isso foi uma conse-qncia errnea dessa mudana de concepo de alfabetizao.

    Magda Soares

    Como j foi dito, nosso interesse aqui no o de defender avolta aos antigos mtodos de alfabetizao. Acreditamos, porm,que o professor necessita trilhar um caminho em que ele seja capazde compreender que a maioria das situaes de produo do discur-so oral e escrito nova e estranha aos alunos na fase inicial daalfabetizao e exige novas construes e organizao do profes-sor e da professora em sala de aula. Exigem, portanto, o domnio deprticas e mtodos pedagogicamente ajustados aos contextos emque, para que e por que se aplicam. Exige ainda a capacidade deorganizar seqncias didticas especificas apropriao do siste-ma de escrita alfabtica, buscando, sempre que possvel, incluir asprticas e usos sociais da nossa lngua. Nunca demais lembrarque a apropriao do sistema de escrita alfabtica comporta especi-ficidades que demandam um professor com capacidade de entenderque a aprendizagem da leitura e da escrita se faz, por exemplo, se oaluno reconhecer as relaes entre fonemas e grafemas.

    Estamos assim retomando a questo inicial proposta. Com pro-priedade e sabedoria, Magda Soares (op. cit.) afirma o que acredita-mos ser um caminho para pensarmos a prtica e a metodologia dealfabetizao, sem termos medo de nos apoiar nos conhecimentosque j dispomos para tornar eficaz o aprendizado da leitura e daescrita na escola,

    Ora, absurdo no ter mtodo na educao. Educao , pordefinio, um processo dirigido a objetivos. S vamos educaros outros se quisermos que eles fiquem diferentes, pois educar

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    um processo de transformao das pessoas. Se existem obje-tivos, temos de caminhar para eles e, para isso, temos de saberqual o melhor caminho. Ento, de qualquer teoria educacionaltem de derivar um mtodo que d um caminho ao professor. uma falsa inferncia achar que a teoria construtivista no podeter mtodo assim como falso o pressuposto de que a crianavai aprender a ler e escrever s pelo convvio com textos.O ambiente alfabetizador no suficiente.

    E tudo isso apenas o incio de uma longa conversa.

    REFERNCIASBATISTA, Batista, A.A.G.; PAIVA, A.; RIBAS, C. Frade, I.C.; VAL, M.G.C.;BREGUNCI, M.G. Castanheira, M.L. & Monteiro, S.M. Ciclo inicial dealfabetizao. Belo Horizonte: Secretaria Estadual de Educao de MinasGerais; UFMG/CEALE, 2003.

    DECROLY, O.; DEGAND, J. Quelques considrations sur la psychologie etla pdagogie de la lecture. Revue Scientifique, 10, 290-299, 1906.

    DOTTRENS, R.; MARGAIRAZ, E. Lappressintage de la lecture par lamthode globale. Neuchtel, 1951.

    FERREIRO, E. ; TEBEROSKY, A. Psicognese da lngua escrita. PortoAlegre: Artes Mdicas, 1985.

    FERREIRO, E. Reflexes sobre alfabetizao. So Paulo: Cortez; AutoresAssociados, 1988.

    FERREIRO, E. Alfabetizao em processo. So Paulo: Cortez, 1991.

    KRATZMEIER, H. Reading in pre-school age. AVTO Periodico di VitaScolastica e Amministrativa, 15 (9), 35-46, 1971.

    MATTHEWS, M. M. Teaching to read historically considered. Chicago:The University of Chicago Press, 1966.

    MIALARET, G. Lapprendimento della lettura. Roma: Armando, 1967.

    PREFONTAINE, G. Les tecnique du sablier. Socit A. Binet et T. Simon, 69,(510), 270-281, 1969.

    ROAZZI, A.; Leal, T. F.; CARVALHO, M. R. A questo do mtodo noensino da leitura e da escrita. Teresina: APECH / UFPI, 1996.

  • 28

    SKINNER, B.F.; CORREL, W. Pensare e apprendere. Roma: Armando, 1974.

    SOARES, Magda. Letramento e alfabetizao: as muitas facetas. In: Anais da26a. Reunio Anual da ANPEd, em outubro de 2003.

    SULLIVAN, J. Language experience in the content reas. The Reading Tea-cher, 39 (7), 665-667, 1986.

    TITONE, R. Linsegnamento delle materie linguistiche e artistiche. Zurich:Pas Verlag, 1963.

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    Se a escrita alfabtica umsistema notacional (e no um

    cdigo), que implicaes isso tempara a alfabetizao?

    Artur Gomes de Morais

    At hoje a maioria dos que se dedicam alfabetizao pro-fessores, psiclogos ou lingistas usa de forma corriqueira trsexpresses para referir-se ao sistema de escrita alfabtica, leitura e escrita dos alunos principiantes. Estamos falando das palavras c-digo, decodificar e codificar. Elas parecem ter se cristalizadocom o tempo, de modo a impedir que busquemos formas mais ade-quadas para nomearmos o mesmo objeto e fenmenos a que se refe-rem. Vemos que hoje, apesar de muitos terem incorporado a idia deque alfabetizar-se no s saber codificar e decodificar, isto , queo indivduo precisa dispor de um mnimo de conhecimentos letradospara atuar como sujeito alfabetizado, o uso das trs expresses, gi-rando em torno da idia de cdigo, parece inarredvel.

    Nosso intuito neste captulo discutir o quanto precisamos revisaraquelas trs expresses, pelo que contm de equvoco na forma comoconcebem a escrita alfabtica, seu aprendizado e, conseqentemente,

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    seu ensino. Num primeiro momento, depois de examinar em que consisteum cdigo, enfocaremos por que a escrita alfabtica um sistema notaci-onal. Veremos que na histria os diferentes tipos de notao escrita quea humanidade inventou optaram por registrar aspectos distintos da lin-guagem (ou os significados ou as seqncias sonoras que constituemas palavras) e que a escrita alfabtica, ao filiar-se ao segundo grupo quesimboliza as seqncias sonoras ou significantes orais , organizou-seem torno de uma srie de propriedades ou restries.

    Demonstraremos, ento, que tais propriedades constituem oenigma que o aprendiz ter que descobrir, para poder beneficiar-se damemorizao dos nomes das letras, do conhecimento de seus valoressonoros, etc. Debateremos o quanto certas dificuldades que tnha-mos (ou continuamos tendo) para explicar o aprendizado da escritaalfabtica devem-se ao fato de no trat-la como um objeto de conhe-cimento em si. Ilustraremos esse ponto contrastando o enfoque tradici-onal, que pressupunha o desenvolvimento de habilidades de memriaou perceptivo-motoras como condio para o aluno alcanar uma pron-tido para a alfabetizao, com o enfoque da teoria da Psicognese daEscrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986), que revela o quanto a tarefado alfabetizando muito mais complexa e conceitual.

    Para finalizar, defenderemos que o enfoque da escrita alfabticacomo sistema notacional necessrio para construirmos didticas daalfabetizao que, libertando-se dos velhos mtodos associacionis-tas (globais, fnicos, silbicos, etc.), permitam alfabetizar letrando.Ou seja, para que possamos ensinar, de forma sistemtica, tanto aescrita da linguagem (o Sistema de Escrita Alfabtica) como a lin-guagem que se usa para escrever os muitos gneros textuais quecirculam em nossa sociedade.

    Cdigos: o que so?

    Quando criana por volta da terceira srie eu gostava debrincar de cartas enigmticas. Para isso, eu e uma colegacolocvamos, numa folha dos cadernos de cada uma, as letras

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    do alfabeto e, ao lado delas, a gente combinava e anotava osnossos smbolos secretos, que iam substituir as letras. As-sim, por exemplo:

    Como s a gente conhecia aqueles smbolos, podia escrever,durante a aula, mensagens secretas, que nem a professoranem os outros colegas conseguiam ler.Penso que essa foi a primeira vez que eu usei um cdigo paraescrever. Eu achava muito fcil. Mas eu j estava muito avan-ada na escrita. J estava na 3 srie.

    (depoimento de lida Santos, professora alfabetizadora)

    Esse exemplo pode nos ajudar a abrir a discusso que queremosdesenvolver neste captulo: a compreenso de que nosso sistema deescrita no um cdigo, mas um sistema notacional.

    Alm de burlar as regras da disciplina escolar, a brincadeira pra-ticada pela professora lida e sua colega tinha algo peculiar: aquelasalunas transgressoras estavam exercitando o uso de um cdigo. Es-tavam usando um conjunto de sinais que substituam os sinais de umoutro sistema notacional, no caso, o sistema alfabtico.

    Isso fica evidente, se considerarmos alguns cdigos reais, comoo cdigo Morse, empregado h muito nas comunicaes telegrficas.Nesse caso, o que preciso para aprender a usar o cdigo? Cremosque a resposta simples: 1) j ter compreendido como funciona osistema notacional (sistema alfabtico) cujos smbolos foram substi-tudos; e 2) memorizar os novos smbolos substitutos. A aparentefacilidade da resposta no deve ser confundida com o que acontececom quem est aprendendo a ler e a escrever pela primeira vez. Nessecaso, a tarefa 1 (compreender como funciona o sistema notacional)envolver um complexo trabalho cognitivo, para dominar as proprie-dades do sistema notacional em foco.

    Antes de avanarmos na conceituao de notao e sistema nota-cional, gostaramos de exemplificar, mais uma vez, a diferena entre cdi-go e sistema notacional, tomando como referncia a escrita em Braille.

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    Do ponto de vista da histria coletiva, o Braille um cdigo, jque seus 64 sinais, criados no sculo XIX, substituem as letras, n-meros e alguns outros smbolos j existentes em outros sistemasnotacionais (alfabtico e numrico decimal), usados h sculos pelosindivduos com viso normal. Do ponto de vista individual, para umportador de deficincia visual, aprender a ler e a escrever pela primei-ra vez em Braille implica compreender o funcionamento dos sistemasde notao alfabtica e numrica decimal, como exigido para todosos seus pares videntes. Nesse sentido, seria inadequado referir-se aoobjeto que o aprendiz vai dominar como um cdigo. Se, no entanto,para atuar como professora daquele aluno, uma pessoa com visonormal e j alfabetizada vai aprender a escrever em Braille, vemos queseu processo ser bem distinto: ela ter apenas que adquirir o cdigo,memorizando e automatizando smbolos substitutos para os sistemas(alfabtico; de numerao decimal) com os quais est h tempos mui-to familiarizada.

    Notao, representao esistemas notacionais

    Diferentemente dos outros animais, ns, os seres humanos,temos uma capacidade cognitiva especial: a de produzir notaes,marcas externas, smbolos registrados sobre superfcies, que atuamem substituio a objetos ou eventos do mundo real. uma capaci-dade exclusiva de nossa espcie, que transmite s geraes seguin-tes os princpios de uso e habilidades para tratarmos a realidade atra-vs de sistemas simblicos to complexos como a notao alfabtica,a notao numrica, a cartogrfica e a musical.

    Se Vygotsky (1937/1978) j enfatizava o papel especial que es-sas ferramentas psicolgicas tm sobre nosso funcionamento men-tal, s mais recentemente (cf. KARMILOFF-SMITH, 1992; TEBE-ROSKY; TOLCHINSKY, 1992; TOLCHINSKY, 1995) a psicologiacognitiva vem tratando com mais ateno esse domnio de conheci-mentos que passamos a designar como notacional.

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    Tambm no campo da alfabetizao, o uso dos termos notaoe sistema notacional parece ser recente. Em nosso pas, cremos queeles apareceram, pela primeira vez, na obra A produo de notaesna criana linguagem, nmero, ritmo e melodias, organizada porHermine Sinclair e aqui publicada pela Editora Cortez, em 1990.

    Nas ltimas dcadas, tanto no debate acadmico como na mdia,o termo representao tem assumido significados diversos, dos quaisdestacaremos dois. Por um lado, usado como sinnimo amplo deconhecimentos, concepes, referindo-se ento a representaes in-ternas, que construmos na mente e que, segundo a psicologia cogni-tiva, adotamos em nossas interaes com a realidade. Por outro lado,a palavra representao tem tambm sido usada como sinnimo deregistro externo, registro simblico materializado numa superfcieexterior (folha de papel, tela de computador, etc), quando ento as-sume sentido equivalente ao da palavra notao.

    Embora no queiramos brigar por palavras, temos optado,sempre que possvel, por fazer uma distino entre os dois termos(notao e representao) porque, como justificamos em outrotrabalho (MORAIS, 1995), interpretamos que o termo representa-o muito ambguo e que seu uso indiscriminado no ajuda adiferenciar o que so processos mentais internos e formas exter-nas de registro simblico.

    Se considerarmos, por exemplo, dois aprendizes com rendimen-tos bem diferentes numa mesma turma de alfabetizao, veremos queem algumas ocasies, apesar de produzirem notaes idnticas naaparncia (ambos escrevem corretamente o nome da professora),possuem representaes ou conhecimentos bem diferenciados so-bre aquelas notaes (um apenas reproduz o nome de memria e ooutro, j alfabetizado, sabe por que colocou aquelas letras, naquelaordem, etc.). Para dominar um sistema notacional, o indivduo precisadesenvolver representaes adequadas sobre como ele funciona, isto, sobre suas propriedades.

    Antes de avanarmos nesse tema, retomemos o que estamosconcebendo como sistemas notacionais. Os principais exemplos des-ses sistemas que a humanidade inventou, j mencionados, so os

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    sistemas de notao alfabtica, o de numerao decimal, a notaomusical e a cartografia.

    Segundo Nelson Goodman (1976), estudioso do tema, a ativida-de humana de notar com aqueles sistemas corresponde a usar carac-teres (smbolos como letras, algarismos, notas musicais, etc.) de umsistema simblico convencionalizado, que atende a certas proprie-dades, para poder substituir objetos da realidade de modo fiel.

    Para funcionar como notaes substitutas, as marcas do sistemasimblico tero que escolher quais propriedades dos objetos seropreservadas e quais sero omitidas. Ferreiro (1985) analisa isso, obser-vando que, se a notao contivesse todas as caractersticas ou propri-edades do objeto que substitui, seria uma cpia ou rplica do objeto eno uma simbolizao dele. Ao fazer opes quando criamos um siste-ma notacional, priorizamos certas caractersticas dos objetos que voser simbolizados, enquanto outras no so levadas em conta.

    Assim, por exemplo, os mapas usam o princpio de analogia, aofazer o contorno do litoral de uma regio, tentando desenh-lo deforma idntica. Mas esquecem outras propriedades, ao simbolizar/notar aquela costa. Deixam, conseqentemente, de indicar detalhesde cada trecho, desconsideram muitas variaes no relevo, etc. Nomesmo tipo de notao, para registrar a presena de capitais, cidadesou fronteiras, a cartografia moderna usa smbolos completamente ar-bitrrios (bolinhas de tamanhos e cores diferentes, quadradinhos,linhas pontilhadas, etc.), cujos significados so convencionalizadosnuma legenda, mas que nada guardam da aparncia das cidades ouvilas que substituem (FERREIRO, 1985).

    O que esta escolha do que colocar na simbolizao tem a vercom a notao alfabtica? Trataremos essa questo na seo seguin-te, fazendo uma breve viagem na histria da escrita da linguagem.

    Os sistemas de escritaao longo da histria

    Antes de inventar os alfabetos, a humanidade criou outros sis-temas de escrita com propriedades ou princpios distintos. A questo

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    a ser decidida, sempre, era o que colocar no suporte (parede, placa deargila, pergaminho, etc.) como marcas que simbolizassem as palavrasda lngua oral.

    A partir de Saussure (1916/1978), entendemos que as palavrasde uma lngua ou signos lingsticos, para usar o termo tcnico tm dois componentes essenciais. Por um lado, elas encerram signifi-cados, isto , remetem a conceitos, idias que formulamos em nossasmentes. Por outro, elas se materializam atravs de significantes, que,no caso da modalidade oral de uma lngua, correspondem s seqn-cias de sons que pronunciamos ao falar cada palavra. Na hora de criarum sistema de notao escrita para a lngua oral, o ser humano teveque tomar/criar algumas decises (cf. COULMAS, 1989): tentar regis-trar a palavra toda (seu significado) ou as partes sonoras que acompem (seu significante).

    Assim, as primeiras formas de escrita da humanidade privilegia-ram o registro dos significados das palavras. Num sistema logogr-fico mais antigo, isso fica muito claro: os desenhos (ou cones) usa-dos para escrever buscavam reproduzir de forma simplificada aspectosda forma fsica externa dos objetos, de modo que a palavra peixepodia ser notada mediante o desenho do contorno externo do corpodaqueles animais, idealizando-se certo formato de peixe. Veja-se queoutras caractersticas do objeto real (como o tamanho, o peso, a tex-tura, etc.) no foram levadas em conta na notao, como tampouco seregistrou a seqncia de sons pronunciada (pelos falantes da lnguaem questo), para referir-se ao animal. A ligao entre o cone (dese-nho usado para notar) e a palavra oral se fazia remetendo diretamenteo leitor ao significado da palavra, sem traduzir partes do traado dodesenho em partes sonoras da palavra. O difcil num sistema dessetipo era notar palavras que no correspondiam a objetos isolados econcretos no mundo real (por exemplo, sentir ou beleza).

    Ainda entre os sistemas que representavam a palavra como unida-de, encontramos escritas muitas vezes chamadas de ideogrficas, comoo sistema kanji, at hoje usado pelos chineses. Naquele sistema tam-bm optou-se por notar o significado em lugar dos significantes orais.Mas, para faz-lo, abriu-se mo de desenhos estritamente vinculados

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    aos objetos do mundo real e passou-se a usar smbolos simples oucompostos, socialmente convencionalizados como substitutos daspalavras em questo. Desse modo, por exemplo, a escrita da palavrahoje composta por uma juno dos caracteres usados para notaras palavras dia e agora (ver Fig. 1). Tal como no caso dos sistemasmais pictogrficos, o leitor se deparava com um registro do signi-ficado da palavra em pauta, j que a pronncia dos segmentos oraisque a compem (seus fonemas ou suas slabas) nada tinha a vercom os caracteres usados.

    Aps essas solues iniciais, observamos na histria humanauma tendncia a criar sistemas de escrita que passaram a notar aspartes sonoras que compem as palavras, isto , seus significantesorais. Em alguns casos, sobretudo em lnguas com um repertrio deslabas pouco complexo (cf. COULMAS, 1989), a soluo foi criar umcaractere para cada slaba oral. Isso ocorre com o sistema kana, usadoat hoje no Japo. Para compreendermos como funciona uma escritasilbica, consideremos o seguinte exemplo fictcio: Se as slabas orais /ba/ e /ta/ de nossa lngua fossem notadas pelos smbolos e mmmmm, entoa palavra que pronunciamos como /batata/ seria notada como mmmmmmmmmm.

    Se aplicado ao portugus, um silabrio teria um nmero bemgrande de smbolos a ser memorizados (centenas), j que as slabasorais que constituem as palavras de nossa lngua apresentam diver-sos tipos de combinao entre sons voclicos e consonantais.

    Depois de usar vrios sistemas que continham sobretudo con-soantes, conseguimos, na Grcia antiga, chegar a um sistema de escrita

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    no qual, alm de notar a seqncia de sons menores das palavras(que depois passamos a chamar de fonemas), utilizvamos tanto ca-racteres para os sons equivalentes aos sons voclicos como paraaqueles equivalentes s consoantes pronunciadas. Os alfabetos, talcomo o usado para escrever nossa lngua portuguesa, derivado doalfabeto latino, difundiram-se e foram adaptados pelos falantes dediferentes idiomas. Observe-se que, nesse ponto da evoluo de nos-sos sistemas de escrita, a unidade que se optou por notar ou registrarexternamente mudou radicalmente em relao s antigas escritas pic-togrficas ou ideogrficas Chegamos ento a um modo de substituiros objetos do mundo, atravs da escrita, no qual a unidade deixou deser o significado global (a palavra oral inteira, a idia ou significado aque ela remete) e passamos a registrar a cadeia ou seqncia de sonsque formam seu nome e que, isoladamente, no tm significado.

    Essa muito breve reviso histrica teve por objetivo ressaltaralguns aspectos para os quais precisamos estar atentos, quando con-sideramos a tarefa de um aprendiz, ao iniciar-se nos mistrios da es-crita alfabtica. Se a humanidade demorou tanto em construir umasoluo complexa como o alfabeto, para quem vai comear a aprend-lo h muito o que descobrir:

    como que essas coisas estranhas que chamam de letras,funcionam juntas umas das outras?,

    o que que elas tm a ver com os objetos (ou aes, ousentimentos, etc.) que esto registrando no papel?

    por que essas letras e no outras que esto a? etc.... etc.

    Dito de outro modo, para aprender o Sistema de Escrita Alfab-tica (SEA), o sujeito tem que reelaborar, em sua mente, uma srie dedecises que a humanidade tomou, ao criar esse tipo de notao. Taisdecises envolvem conhecimentos que ns, adultos j superalfabe-tizados, dominamos de forma no-consciente, o que nos leva a jul-gar que so noes ou informaes j dadas, das quais qualquerprincipiante j disporia, bastando memorizar os nomes e os traadosdas letras junto aos sons a que elas se referem. Isto , concebemos,

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    erroneamente, que a tarefa do aprendiz consistiria em dominar umcdigo e subestimamos a fascinante empreitada cognitiva que eleter que assumir.

    O aprendizado do SEA visto como umcdigo: os equvocos da interpretao

    e suas conseqncias

    Lembro bem de um aluno, Pedro, que no final do ano aindano tinha conseguido aprender a ler e escrever. Ele era ummenino esperto e se relacionava bem comigo e com oscolegas.

    Mas Pedro fazia parte dos alunos que, como a gente dizia,sabiam tirar do quadro. Ele conseguia copiar no cadernotudo que eu colocava no quadro. Tinha uma caligrafia boa, atbem legvel.

    Lembro que ele gostava de escrever seu nome. Fazia bemdevagar e depois passava o dedo por cima, sem parar nasletras e dizia que ali estava escrito /pedru/.

    No final do ano ele tinha conseguido tambm decorar osnomes de todas as letras do alfabeto e os nomes de muitasslabas. Na escola a gente usava naquela poca uma cartilhado mtodo silbico e ele passava o dedo por cima da famliae dizia o BA, o BE, o BI, ... tudinho. Ele sabia at dizerde cor vrias palavras e frases (da cartilha), mas no tinha sealfabetizado.

    (depoimento de Angelita Lima, alfabetizadora, ao sersolicitada a recordar um caso de aluno que no

    tinha tido sucesso na 1. srie)

    O aluno do exemplo acima um caso emblemtico e no raro,sobre o qual precisamos refletir. Como membro do grupo dos quetiravam do quadro, ele demonstrava ter excelente percepo ou dis-criminao visual: catando agulha num palheiro, transpunha do

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    quadro para seu caderno, letra aps letra, as palavras que no conse-guia ler. Parecia um estrangeiro copiando, com perfeio, uma lnguaque no era a sua.

    Pedro tinha tambm timas coordenao motora e memria. De-senhava (bordava) palavras em letra cursiva e memorizava o queestava escrito em cada pgina de seu livro didtico. Enfim, se seuproblema no era a carncia de certas habilidades mnemnicas ouperceptivo-motoras, o que lhe faltava?

    At pouco tempo atrs, acreditou-se que, para aprender a ler e aescrever os aprendizes precisariam desenvolver uma srie de habili-dades psiconeurolgicas ou perceptivo-motoras. Como a escritaalfabtica era concebida como um cdigo, para memorizar e associaras letras aos sons, os alunos deveriam alcanar um estado de pron-tido, no tocante a habilidades como: coordenao motora fina egrossa, discriminao visual, discriminao auditiva, memriavisual, memria auditiva, equilbrio, lateralidade, etc.

    O fracasso na alfabetizao tendeu ento a ser atribudo ausncia de prontido naquelas habilidades, vistas como a cha-ve explicativa para o aprendizado da escrita alfabtica, e o treina-mento das mesmas habilidades, especialmente para os alunos oriun-dos de meios populares, passou a ser prescrito como a receita mgicapara o sucesso. A histria recente atesta o quanto isso tudo foidesastroso.

    Desconsiderando o ponto de vista do aprendiz principiante,julgvamos que, para aprender a escrever, era preciso apenas dis-criminar uma letra de outra, traando-as de modo legvel e decoraros sons a que elas se referiam. Como observaram as autoras dateoria da psicognese da escrita (cf. FERREIRO, 1985; FERREIRO,TEBEROSKY, 1986; ver tambm o captulo 3 neste volume), na inter-pretao at ento vigente, tudo era concebido como se no hou-vesse um crebro mediando o que a mo traava e o que a bocapronunciava. Mais que isso, no se considerava que a escrita alfa-btica consistia num sistema com propriedades que o aluno preci-saria compreender.

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    Assim, acreditava-se que a tal prontido seria o requisito parao aluno usufruir do ensino que lhe era oferecido, o qual, por sua vez,dependeria do emprego de um bom mtodo.

    Para alcanar a prontido, treinava-se o aluno, na educaoinfantil ou no comeo da primeira srie, nas j mencionadas habilidadesde memria e perceptivo-motoras. Diariamente os alunos eram sub-metidos a atividades como cobrir pontinhos ou copiar linhas sinuo-sas, cobrir vogais com feijes, etc. Na realidade, a escola no permitiaque o aluno convivesse com a linguagem escrita no se liam textosdos diversos gneros que circulam socialmente nem criava situa-es para o aluno refletir sobre como a escrita alfabtica funciona.No havia uma reflexo sobre as palavras em si.

    Sabemos hoje que os famosos testes de prontido (como oABC, de Loureno Filho ou o Metropolitano) avaliavam habilidadesno-centrais para algum aprender a ler e a escrever. Pesquisas cons-tataram que crianas j alfabetizadas eram avaliadas como imaturaspara a alfabetizao (cf. CORRA; SANTOS, 1986), o que atesta oquanto aqueles instrumentos e a concepo em que estavam base-ados eram promotores de excluso.

    Quanto aos tradicionais mtodos de alfabetizao (ver o cap.1, neste volume), independentemente de serem sintticos (alfabti-co, fnico, silbico) ou analticos (global, sentenciao, palavra-o), sempre adotaram a concepo de escrita alfabtica como cdi-go. Sempre viram a tarefa do aprendiz como restrita a memorizarinformaes dadas prontas pelo adulto. Cabia ento ao aluno copiare copiar... para poder memorizar.

    Os adultos que no deixavam os principiantes escreverem comoacham que se escreve pensavam que na mente do alfabetizando umasrie de conhecimentos j estariam disponveis (cf. FERREIRO,2003). Por exemplo, acreditavam que ele j seria capaz de, mentalmen-te, tratar como unidades uma srie de elementos da lngua (palavras,slabas, fonemas). O aprendiz tambm j compreenderia que as letrasregistram os sons que falamos, razo pela qual, para aprender, basta-ria repetir, em doses homeopticas, as tarefas no-reflexivas que obom mtodo lhe impunha.

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    O aprendizado da escrita alfabtica tomadacomo um sistema notacional: compreendendoas propriedades do sistema e memorizando/

    automatizando suas convenes

    muito gratificante, para uma professora, ver quando o alu-no d o estalo. super-emocionante. Parece uma coisamgica. Aquele menino que vinha fazendo as tarefinhas, de-corando as famlias (silbicas), mas que no conseguia lersozinho, de repente se desarna e consegue escrever. Escrevesem copiar. Consegue escrever palavras novas, fica pergun-tando pelas letras que a gente ainda no ensinou. verdadeque ele escreve com erros, mas uma nova fase. Eu achonatural se ele no escreve tudo certo.

    Quando o aluno d o estalo, a gente fica tranqila, porquesabe que ele vai fechar o ano alfabetizado ou bem avanado.O problema que nem todos conseguem isso. Mas muitoemocionante, quando a coisa acontece.

    (depoimento de Helosa Nascimento, professora alfabetizadora)

    Apesar de muitas vezes serem levados apenas a copiar e a me-morizar coisas, os alfabetizandos crianas, jovens ou adultos pensam. Sim, enquanto, por exemplo, esto copiando e memorizandoos traados das palavras ou slabas que lhes so apresentadas, vorealizando, solitariamente, todo um trabalho cognitivo, interno, deresoluo de um enigma: desvendar como a escrita alfabtica funcio-na. E finalmente, um dia, para surpresa de quem s lhe pedia paracopiar e repetir coisas dadas prontas, acontece algo aparentementemisterioso: o aluno comea a entender como as letras se combinam epassa a escrever de um modo bem prximo do convencional. preci-so percebermos, contudo, que essa conquista no obra de nenhu-ma entidade ou esprito especial que baixasse no aprendiz.

    Quando deixamos o aluno expressar espontaneamente suasidias sobre como se escreve (ver. neste volume os captulos 3, sobrea teoria da Psicognese da Escrita e 4 sobre o desenvolvimento de

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    habilidades metafonolgicas), verificamos que o estalo mencio-nado por muitos professores no se d de uma hora para outra, mas fruto de uma trajetria. a culminncia de um percurso evolutivono qual, como demonstra Ferreiro (1985), o esforo vivido pelo apren-diz envolve a resoluo de duas grandes questes conceituais:

    O que a escrita representa/nota ? (O que se nota/registra nopapel tem a ver com caractersticas fsicas/funcionais dos ob-jetos ou tem a ver com a seqncia de sons que formam osnomes dos objetos?) e

    Como a escrita cria representaes/notaes? (Cada letra subs-titui o qu? o significado ou idia da palavra como um todo?Partes que pronunciamos como as slabas? segmentos sono-ros menores que a slaba?)

    Para desvendar esse enigma, o aprendiz vai ter que compreen-der as propriedades do sistema notacional com o qual est se defron-tando. Isso implica compreender (reconstruir mentalmente):

    1) que se escreve com letras, que as letras no podem ser inven-tadas, que para notar as palavras de uma lngua existe um repertriofinito (26, no caso do portugus); que letras, nmeros e outros sm-bolos so diferentes;

    2) que as letras tm formatos fixos (isto , embora p, q, b e dtenham o mesmo formato, a posio no pode variar, seno a letramuda); mas, tambm que uma mesma letra tem formatos variados (p tambm P, P, p, P, p, etc.), sem que elas, as letras, se confundam;

    3) quais combinaes de letras esto permitidas na lngua (quaispodem vir juntas) e que posio elas podem ocupar nas palavras (porexemplo, Q vem sempre junto de U e no existe palavra terminandocom QU em portugus);

    4) que as letras tm valores sonoros fixos, convencionalizados,mas vrias letras tm mais de um valor sonoro (a letra O vale por //,//, // e /u/, por exemplo) e, por outro lado, alguns sons so notadospor letras diferentes (o som /s/ em portugus se escreve com S, C, SS,, X, Z, SC, S, etc)

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    importante observarmos que a maioria desses detalhes, tobvios e no-conscientes para os adultos letrados nunca envol-vem s memorizao. So questes conceituais. Sua complexidadefica mais evidente, se nos dermos conta de que a compreenso (oureconstruo !!!) de outras propriedades fundamentais para o dom-nio da lgica da notao alfabtica precisa ser feita internamente peloaprendiz, para que ele possa avanar em seu aprendizado do sistema.

    Como tem enfatizado Ferreiro (1985, 1989, 2003) compreender ofuncionamento das letras implica dominar uma srie de propriedadeslgicas da notao escrita.

    Por um lado, o aprendiz vai ter que elaborar mentalmente a no-o de unidades de linguagem (palavra, slaba, sons menores que aslaba) para vir a entender as relaes entre partes faladas e partesescritas, entre o todo escrito (a palavra) e as partes (letras) que ocompem. Na lngua oral, falamos as palavras juntas (por exemplo, /kazamarela/) e no pensamos em seus segmentos sonoros internos,quer no nvel da slaba, quer no dos fonemas. Segundo Ferreiro (2003), o contato com a notao escrita, em que as palavras so separadaspor espaos em branco, o que vai provocar essa descoberta deunidades nas palavras orais e permitir ao aprendiz desvendar como que um todo (palavra falada) tem a ver com outro todo (palavra escri-ta) e com suas partes (letras).

    Ao mesmo tempo, para entender essas relaes parte-todo oaprendiz precisa vir a tratar as letras como classes de objetos substitu-tos, cujo funcionamento pressupe a considerao de relaes deordem, de permanncia e de relaes termo a termo. Ilustrando demaneira resumida, poderamos dizer, por exemplo, que aos poucos oaluno vir a entender que CA no pode ser o mesmo que AC. Compre-ender tambm que C um caractere que substitui algo (/k/ ou /s/),independentemente de o C aparecer manuscrito ou com outro forma-to autorizado para ser C.

    A essa lista de descobertas, verificadas por Ferreiro, cremos que preciso acrescentar algo: o aprendiz descobre que o CA de casa igual ao CA de cavalo, porque /kaza/ e /kavalu/ comeam parecido,quando falamos (MORAIS, 2004).

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    Em sntese, dispomos hoje de uma explicao extremamente di-ferente e a nosso ver mais adequada para o que a tarefa deaprender uma escrita alfabtica. Ao conceb-la como um sistema no-tacional, passamos a ver que habilidades como a memria e a destrezamotora, necessrias ao ato fsico de notar (registrar palavras comletras no papel, ou noutro suporte) esto subordinadas compreen-so, ou seja, s representaes mentais que o indivduo elabora so-bre as propriedades do sistema. Passamos ento a entender por queaprendizes como Pedro, citado no depoimento da professora Angeli-ta, no incio da seo anterior, no conseguiram ainda se alfabetizar.

    Concluindo: se a escrita alfabticano um cdigo...

    Quando descobrimos, a partir do final dos anos 1970, que aempreitada de dominar a escrita alfabtica envolve profundo traba-lho conceitual, surgiram muitas dvidas diante da questo comoalfabetizar?.

    Como o leitor poder ver nos prximos captulos, o intuito destelivro responder a essa questo, partindo da perspectiva de que preciso alfabetizar letrando e de que para faz-lo necessrio teruma metodologia de ensino, sem recorrer, no entanto, aos velhosmtodos de alfabetizao.

    Com o desenvolvimento da noo de letramento, a partir dosanos 1980, muitos pesquisadores e professores passaram a defen-der, como tarefa primordial da alfabetizao, inserir os alunos nomundo da escrita, permitindo que, desde cedo, vivam prticas deleitura e produo textuais, um princpio com o qual estamos total-mente de acordo. O problema que muitos daqueles defensores dadimenso letradora da alfabetizao continuaram a enxergar a es-crita alfabtica como um cdigo e a apostar num suposto aprendiza-do espontneo, sem um ensino que ajude o aprendiz a desvendaros enigmas do alfabeto. Muitas vezes, at acham/achavam que se

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    poderia continuar usando qualquer um dos velhos mtodos de alfa-betizao, desde que, na sala de aula, ocorressem prticas de leitura eproduo de variados gneros textuais.

    A realidade tem mostrado o quanto isso perigoso e ineficaz.Numa perspectiva diferente, defendemos que, para alfabetizar letran-do, preciso reconhecer que a escrita alfabtica em si um objeto deconhecimento: um sistema notacional. Na esteira desse posiciona-mento, alm de buscarmos abandonar o emprego das palavras cdi-go, codificar e decodificar, parece-nos necessrio criar um ensi-no sistemtico que auxilie, dia aps dia, nossos alunos a refletirconscientemente sobre as palavras, para que venham a compreendercomo esse objeto de conhecimento funciona e possam memorizarsuas convenes.

    Nada impede que, paralelamente, desenvolvamos, na sala deaula, todo dia, as prticas letradas de explorao dos textos de nossomundo. Mas, cremos, preciso ajudar os alunos a no viver, solitari-amente, a coisa misteriosa que alguns pensavam ser um estalo.

    REFERNCIAS

    CORRA, N. ; SANTOS, A. Em busca da maturidade: o fracasso escolar esuas bases psicolgicas. Educao em Revista, 3:4-7, 1986.

    COULMAS, F.1 The writing systems of the world. Oxford, Basil Bla-ckwell, 1989.

    FERREIRO, E. Reflexo sobre alfabetizao. So Paulo: Cortez, 1985.

    __________. A escrita antes das letras. In: SINCLAIR, H. (Org). A produode notaes na criana. So Paulo: Cortez, 1989.

    __________.Escrita e oralidade: unidades, nveis e conscincia metalingsti-ca. In: FERREIRO, E. (Org.). Relaes de (in)dependncia entre oralidade eescrita. Porto Alegre: Artmed, 2003.

    FERREIRO, E.; TEBEROSKY. A psicognese da lngua escrita. Porto Ale-gre: Artes Mdicas, 1986.

  • 46

    GOODMAN, N. Los estdios del arte. Barecelona: Seix Barrel, 1976.

    KARMILOFF-SMITH, A Beyond modularity: a developmental perspectiveon cognitive science. Cambridge, MA:MIT Press/Brasford Books,1992.

    MORAIS, A. Representaciones infantiles sobre la ortografia del portugus.Universidad de Barcelona, tesis doctoral no publicada, 1995.

    MORAIS, A. G. A apropriao do sistema de notao alfabtica e o desenvol-vimento de habilidades de reflexo fonolgica. In: Letras de Hoje. 137:175-192, 2004.

    SAUSSURE, F. Curso de Lingstica Geral. So Paulo: Abril, 1916/1978.

    TOLCHINSKY, L.; TEBEROSKY; A; Al pie de la letra. Infancia y Aprendi-zaje, 59-60:101-130, 1992.

    TOLCHINSKY, L. Aprendizagem da linguagem escrita: processos evoluti-vos e implicaes didticas. So Paulo: tica, 1995.

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    O que geralmente acontecia quando as crianas entravam paraa escola? Nas sries iniciais, elas eram submetidas a inmeras ativida-des de preparao para a escrita, principalmente cpia ou ditado depalavras que j foram memorizadas. Primeiro elas copiavam slabas,depois palavras e frases e s mais tarde eram solicitadas a produzirescritas de forma autnoma. Atividades como essas s aconteciam (eainda acontecem!) na escola, porque no dia-a-dia as pessoas aprendemde outro modo: fazendo, errando, tentando novamente at acertar.

    A concepo tradicional de alfabetizao priorizava o domnioda tcnica de escrever, no importando propriamente o contedo. Eracomum as crianas terem de copiar escritos que no faziam para elaso menor sentido: O boi bebe, Ivo viu a uva e tantas outras semsentido, mas sempre presente em cartilhas e nos textos artificializa-dos criados com o nico objetivo de ensinar a ler e escrever, poisse acreditava que se aprendia a ler e a escrever memorizando sons,slabas e letras. Tudo que era produzido pelos alunos precisava sercontrolado: os aprendizes no eram autorizados a produzir livremente

    Psicognese da lngua escrita:O que ? Como intervir em cada

    uma das hipteses?Uma conversa entre professores

    Marlia de Lucena Coutinho

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    e, para escrever qualquer palavra, era preciso que primeiro as crianasconhecessem as letras e famlias silbicas necessrias para escrev-las.

    Era muito comum as crianas afirmarem coisas como: No pos-so ler (ou escrever) esta palavra porque minha professora ainda noensinou esta letra. Alm disso, escritas espontneas no eram per-mitidas, uma vez que as crianas deveriam escrever exclusivamentepara acertar, sem nenhuma inteno de refletir sobre a escrita. Toda aproduo deveria ser constantemente corrigida.

    Os aprendizes no se lanaro ao desafio de escrever se houvera expectativa de que produzam textos escritos de forma totalmenteconvencional, exatamente porque no incio da alfabetizao isso ain-da no possvel.

    Ferreiro e Teberosky (1979) apontam que, tradicionalmente, oproblema da alfabetizao tem sido exposto como uma questo demtodo, e a preocupao seria a de buscar o melhor e mais eficazmtodo para ensinar a ler e escrever. Como discutido no captuloanterior, convivemos durante vrias dcadas (e talvez ainda hoje noespao de muitas escolas) com trs tipos fundamentais de mtodos:os sintticos (que centravam a interveno didtica no ensino daspartes menores para depois partir para as unidades maiores), os ana-lticos (que centravam o ensino na memorizao de unidades maiorespara depois chegar s unidades menores) e os analtico-sintticos(que conduziam atividades de anlise e sntese das unidades maiorese menores no mesmo perodo letivo). Embora houvesse divergnciaentre os trs, ambos percebiam a aprendizagem do sistema de escritaalfabtica como uma questo mecnica, a aquisio de uma tcnicapara a realizao do deciframento. A escrita era concebida como umatranscrio grfica da linguagem oral (codificao), e a leitura, comouma associao de respostas sonoras a estmulos grficos, uma trans-formao do escrito em som (decodificao). Essas prticas de ensi-no da lngua escrita pressupunham uma relao quase que direta como oral; as progresses clssicas, comeando pelas vogais, depoiscombinaes com consoantes, at chegar formao das primeiraspalavras por duplicao dessas slabas, era o que podemos chamarde processo ideal para se alfabetizar.

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    As autoras supracitadas tambm apontam que, nas dcadas de1960/1970, surgiram mudanas significativas no que concernia ma-neira de compreender os processos de aquisio/construo do co-nhecimento e da linguagem na criana. Foi nessa poca que se pas-sou a considerar que a escrita era uma maneira particular de notara linguagem e que o sujeito em processo de alfabetizao j possuaconsidervel conhecimento de sua lngua materna. At ento, a al-fabetizao muito pouco tinha a ver com as experincias de vida ede linguagem das crianas, estando essencialmente baseada na re-petio, memorizao e era tida apenas como objeto de conheci-mento na escola.

    Para aprender a escrever, fundamental que o aluno tenha mui-tas oportunidades de faz-lo, mesmo antes de saber grafar correta-mente as palavras: quanto mais fizer isso, mais aprender sobre ofuncionamento da escrita.

    A oportunidade de escrever quando ainda no se sabe permiteque a criana confronte hipteses sobre a escrita e pense em comoela se organiza, o que representa, para que serve. Mesmo quando ascrianas ainda no sabem escrever convencionalmente, elas j apre-sentam hipteses sobre como faz-lo.

    Aqui no Brasil, a teoria do conhecimento empirista dominou (eem muitas situaes ainda continua dominando, j que pesquisastm evidenciado que muitos professores alfabetizadores ainda traba-lham com as mesmas cartilhas que usavam antes das verses maismodernizadas surgidas com o advento do PNLD1) tudo o que se fezem alfabetizao at a publicao do livro Psicognese da lnguaescrita (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979). A teoria empirista conside-ra que os alunos chegam escola todos iguais e completamente igno-rantes, no que se refere escrita, e que bastaria ensinar quais letras

    1 O Programa Nacional do Livro Didtico uma iniciativa do MEC, e seusobjetivos bsicos so a aquisio e distribuio, universal e gratuita de livrosdidticos para os alunos das escolas pblicas do ensino fundamental. Desde 1995,esse objetivo foi ampliado, e o PNLD passou, tambm, a avaliar os livrosdidticos inscritos no programa. Em 1996, foi publicado o 1 Guia do LivroDidtico, que contm pareceres e recomendaes sobre os livros inscritos.

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    correspondem a quais segmentos sonoros para que eles compreen-dessem o modo de funcionamento do sistema alfabtico.

    Contrariando os fundamentos empiristas dos mtodos de alfa-betizao, que viam o aprendizado da leitura e da escrita como umprocesso de associao entre grafemas e fonemas, no qual a crianaevoluiria por receber e fixar informaes transmitidas pelos adultos,Ferreiro e Teberosky (op.cit.) demonstraram que as crianas formu-lam uma srie de idias prprias sobre a escrita alfabtica, enquantoaprendem a ler e a escrever. Considerando que a escrita no umcdigo, mas um sistema notacional, as autoras observaram que oaprendiz, no processo de apropriao do sistema de escrita alfabti-ca, formula respostas para duas questes bsicas: I) o que a escritanota (significado das palavras? O significante?); II) como a escritaalfabtica cria notaes? (Utilizando smbolos quaisquer ou conven-cionados? Empregando smbolos para representar sons das palavras?Ao nvel da slaba ou do fonema? etc.)2

    Segundo Teberosky e Colomer (2003), os diversos trabalhosresultantes daquela linha terica evidenciaram que:

    As crianas, antes de poderem ler e escrever sozinhas e con-vencionalmente, formulam uma srie de idias prprias ou hi-pteses, atribuindo aos smbolos da escrita alfabtica signifi-cados bastante distintos dos que lhes transmitem os adultosque as alfabetizam;

    As hipteses elaboradas pela criana seguem uma ordem deevoluo em que, a princpio, no se estabelece uma relaoentre as formas grficas da escrita e os significantes das pala-vras (hiptese pr-silbica). Em seguida a criana constri hi-pteses de fonetizao da escrita, inicialmente, relacionandoos smbolos grficos s slabas orais das palavras (hiptese

    2 Na realidade, o emprego do termo notao por Ferreiro e demais adeptos dapsicognese da escrita mais recente. Antes se referiam a representaes,no lugar de notaes. Fazemos noutro trabalho (MORAIS, 1995) uma dis-cusso conceitual sobre a adequao de usar-se os termos notao, notaci-onal e notar para nos referirmos ao aprendizado da escrita alfabtica.

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    silbica) e finalmente compreende que as letras representamunidades menores que as slabas: os fonemas da lngua (hip-tese alfabtica). Entre esses dois momentos, haveria um pero-do de transio (hiptese silbico-alfabtica)3.

    Esse processo de evoluo conceitual se d entre crianas dediferentes classes sociais, e a possibilidade de vivenci-lo ou o ritmoem que ocorre estariam provavelmente relacionados ao maior/menorcontato que os aprendizes tm com a lngua escrita na escola e em seumeio e possibilidade de vivenciarem situaes em que essa empre-gada socialmente.

    Para saber o que pensa o aprendiz sobre o sistema de escrita, preciso solicitar que ele escreva palavras, frases ou textos que nolhe foram ensinados previamente e pedir que ele os leia logo depoisde graf-los. Pesquisas transversais e longitudinais (FERREIRO, 1988;GMEZ PALCIO, 1982) mostram que essas produes escritas tmevoluo perfeitamente previsvel e que, para a maioria dos autores epesquisadores, se organizam em quatro hipteses ou nveis. Descre-veremos cada um desses nveis, buscando partir da etapa mais inicialdas hipteses de escrita (nvel pr-silbico) at a mais avanada (n-vel alfabtico), quando os alunos j conseguem compreender os prin-cpios que baseiam a escrita alfabtica. Buscaremos, em cada nvel,abordar: (1) as hipteses que os alunos j construram; (2) os conhe-cimentos que ainda precisam ser construdos; (3) como o professor,de posse dos dados apontados por seus alunos, pode intervir, orga-nizando seu planejamento e lanando desafios para que o aluno pas-se para outro nvel; (4) sugestes de atividades adequadas s hipte-ses de escrita apontadas pelos alunos.

    Para tal anlise, baseamo-nos em um conjunto de diagnsticosde escrita colhidos entre crianas com idades que variam entre 5 e 6anos. Solicitamos que as crianas escrevessem determinadas palavras

    3 Estudos realizados no Brasil (CARRAHER; REGO, 1984; GROSSI, 1986,1987;MORAIS; LIMA, 1989) encontraram resultados semelhantes, quanto aos es-tgios conceituais que a criana vive enquanto aprende a ler e a escrever.

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    (boi, formiga, gato, cavalo, elefante, sapo, perereca e r, e algunsalunos escreveram essas nove palavras e mais a palavra banana) eque as lessem, apontando com seus dedinhos cada um dos pedaoslido. Tais palavras foram escolhidas em funo de alguns critrios: a)todas faziam parte do mesmo campo semntico (animais); b) as duasprimeiras (boi e formiga) possibilitariam que pudssemos percebercomo os alunos haviam avanado no que se refere ao realismo nomi-nal; c) algumas palavras (como gato e sapo) poderiam estar estabili-zadas, mas tambm possuam o mesmo conjunto de vogais e issoserviria para observarmos como as crianas, nos nveis silbico esilbico-alfabtico, estavam grafando-as; d) selecionamos palavrasmonosslabas, disslabas, trisslabas e polisslabas para analisarmoscomo os alunos grafavam palavras com slabas diferentes e, por fim,e) solicitamos que apenas o silbico-qualitativo grafasse banana paraanalisarmos como ele estava representando as slabas que possuemletras repetidas.

    Para facilitar a compreenso, optamos por primeiro apresentara hiptese que o aprendiz possui em cada um dos nveis e s, pos-teriormente, discutiremos os protocolos de escrita, j que assim acre-ditamos que o leitor ter mais subsdios para analisar e compreen-der as escritas infantis.

    Nvel pr-silbico e suas hipteses

    Neste nvel, as crianas possuem hipteses bastante elemen-tares sobre a escrita. Em uma etapa inicial, os alunos consideram queescrever a mesma coisa que desenhar. Sendo assim, em muitas situ-aes, se solicitarmos que um aluno escreva determinada palavra(como bola, por exemplo), ser muito provvel que ele desenhe umabola, acreditando que ali est escrita a palavra.

    Nesta fase, as crianas tm dificuldades em diferenciar letras enmeros e muitas vezes escrevem usando desenhos, rabiscos, gara-tujas, pseudoletras, nmeros ou alguns desses elementos misturados.

    Os alunos tambm acreditam que s possvel escrever nomesde objetos porque para eles a escrita serve para nomear as coisas.

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    Aes (como pular, correr, etc.) e sentimentos (amor, carinho, tristeza,entre outros) no podem ser escritos.

    Para os alunos, a escrita uma representao direta do objeto;eles ainda no conseguiram perceber que o que a escrita representa(nota) no papel so os sons da fala. As crianas tm tendncia aacreditar que se escreve guardando as caractersticas do objeto a serescrito. Logo, se a criana solicitada a escrever a palavra BOI, pro-vavelmente ela o far utilizando muitas letras, porque o boi umanimal grande e, na concepo do aprendiz, essa caracterstica preci-sa ser grafada. Esse fenmeno denominado de realismo nominal.

    Vejamos como Thales escreveu as palavras que ns ditamos:

    Como podemos observar, aescrita de Thales (6 anos)refere-se hiptese pr-si-lbica. O aluno no faz cor-respondncia entre escrita epauta sonora nem no eixoda quantidade, pois o nme-ro de letras no equivale aonmero de slabas nem defonemas, nem no eixo daqualidade, uma vez que asletras escolhidas no corres-pondem aos fonemas que eleprecisaria representar.

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    Ns j pudemos discutir quais os conhecimentos construdospelos alunos na hiptese pr-silbica. No entanto, para que o profes-sor possa organizar sua prtica de alfabetizao de forma a ajudar osalunos a avanar, precisamos tambm destacar quais conhecimentosnecessitam ser construdos. Assim, em seu trabalho pedaggico, elepode organizar atividades que levem em conta esses conhecimentos.

    O principal desafio para este nvel auxiliar os alunos a perceberque a escrita representa os sons das fala, e no os objetos em si comsuas caractersticas. Para tal, atividades de anlise fonolgica, emque os alunos sero desafiados a perceber que palavras que come-am (aliterao) ou terminam com o mesmo som (rima) tm a tendnciaa ser escritas com o mesmo grupo de slabas ou letras. A exploraooral, mas, sobretudo, escrita de poemas, trava-lnguas, parlendas eoutros textos que possibilitem a explorao de sons iniciais e finaisso bastante interessantes nesta fase.

    O trabalho com palavras estveis, como os nomes dos alunos daturma, tambm pode auxiliar na percepo de que partes iguais se escre-vem de forma semelhante, e partes (slabas ou letras) presentes no nomede um aluno tambm podem ser encontradas nos nomes de outros cole-gas. Alm das palavras estveis, a explorao de textos conhecidos dememria ajudar na construo da base alfabtica, uma vez que, ao leremtextos de cor, as crianas podem ajustar a pauta sonora pauta escrita e,assim, podem perceber que eles lem o que est grafado no papel.

    Consideramos fundamental destacar que no estamos aqui de-sejando criar uma metodologia para ser implementada em cada nvelde escrita. Nosso desejo o de refletir, juntamente com o professor,sobre os conhecimentos de cada um dos nveis e de criar um trabalhosistemtico de reflexo sobre a escrita.

    Nvel silbico e suas hipteses

    Neste nvel, o primeiro dos desafios (entender o que a escritanota) j foi vencido, porque os alunos comeam a perceber que aescrita est relacionada com a pauta sonora da palavra. No entanto,eles desenvolveram a hiptese de que a quantidade de letras a ser

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    grafada corresponde quantidade de segmentos silbicos pronuncia-dos. Sendo assim, quando desejam escrever, os alunos o fazem utili-zando uma letra para cada slaba presente na palavra. Logo, se oaluno deseja escrever uma palavra que possui trs slabas (como, porexemplo, martelo), muito provavelmente ele o far colocando umaletra para cada uma das slaba: PFV ou, em um nvel mais avanado,AEO, grafando as vogais e ou consoantes presentes na palavra.

    Nesta fase, os alunos podem, inicialmente, preocupar-se apenascom o aspecto quantitativo, marcando uma letra qualquer para represen-tar cada slaba da palavra, o que corresponde a um estgio silbico dequantidade. medida que comeam a utilizar, na escrita das slabas daspalavras, letras que possuem uma correspondncia com os sons repre-sentados, eles entram na fase silbica de qualidade. Segundo Leal (2004), possvel que alguns alunos, ao ingressar na hiptese silbica, j ofaam atravs de uma anlise qualitativa (silbico de qualidade).

    medida que passam a escrever um grafema para cada slaba,os alunos comeam a vivenciar alguns conflitos e vo criando novashipteses, como a de que existe uma quantidade mnima de l