adorno violencia

Upload: eloisa-machado

Post on 18-Oct-2015

41 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 51

    1 Originalmente, este ca-ptulo teve por base paper apresentado no GT 08 Crime, Violncia e Punio (ANPOCS, 2009), sob o ttu-lo Estudo da impunidade penal no municpio de So Paulo: da criminalidade detectada criminalidade investigada. A presente verso foi revisada e par-cialmente modifi cada.

    Sergio AdornoCoordenador do Ncleo de Estudos da Violncia (NEV-Cepid/USP)

    Wnia Pasinato Pesquisadora colaboradora do Ncleo de Estudos de GneroPagu, da Unicamp

    Os crimes contra o patrimnio e a pessoa vm crescendo h quase quatro dcadas. Hoje, h profundas descrenas dos cidados na capacidade do poder pblico em ofere-cer segurana. Neste texto so apresentados resultados da primeira etapa da pesquisa Estudo da Impunidade. So Paulo, 1991-1997 (NEV/USP/Cepid), cujos objetivos principais so identifi car a magnitude da impunidade penal para crimes determinados e os mecanismos e processos institucionais que a produzem. O foco terico-metodolgico reside na performance institucional dos atores (policiais e judiciais) encarregados de apurar res-ponsabilidade nos crimes.Palavras-chave: violncia, impunidade penal, polcia, Judicirio

    Crimes against property and people have been on the rise for almost four decades. Today, citizens have a deep disbelief in the capacity of the public authorities to off er security. Violence and criminal impunity: From detected crime to investigated crime presents the results of the fi rst stage of the research Study into Impunity: So Paulo, 1991-1997 (NEV/USP/Cepid), the main objectives of which are to identify the magnitude of criminal impu-nity for certain crimes and the institutional processes and mechanisms that produce such impunity. The theoretical and methodological focus is on the institutional perfor-mance of the players (police and judicial offi cers) charged with determining the responsibility for crimes. Keywords: violence, impunity, police, Judiciary

    Recebido em: 01/07/09Aprovado em: 25/07/09

    Violncia e impunidade penal: Da criminalidade detectada criminalidade investigada1

    Introduo

    Diferentes modalidades de violncia tm revelado espiral acentuada de crescimento, no mundo inteiro, ao menos desde o ltimo quartel do sculo XX. No Brasil, no tem sido diferente a despeito das particularidades da evoluo da vio-lncia e da criminalidade. H quase quatro dcadas, vem crescen-do o crime contra o patrimnio e contra a pessoa, em especial os homicdios, associados ou no s formas organizadas de crimi-nalidade, a par de graves violaes de direitos humanos como execues sumrias praticadas por esquadres da morte e grupos de extermnio, linchamentos, abuso de fora coercitiva praticado por agentes da lei de que resulta, com frequncia, em mortes tan-to de autores de infrao penal quanto de inocentes.

    A evoluo dos crimes e da violncia estimulou a difuso de sentimentos coletivos de medo e insegurana diante da falta de

    DILEMAS: Revista de Estudos de Confl ito e Controle Social - Vol. 3 - no 7 - JAN/FEV/MAR 2010 - pp. 51-84

  • DILEMAS52 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    proteo de direitos fundamentais, como o direito vida, livre circulao das pessoas nos espaos pblicos, posse privada de bens patrimoniais. Independentemente de classe, riqueza, poder ou qualquer outra clivagem socioeconmica, muitos acreditam que os crimes cresceram, se tornaram mais violentos, porm no so punidos. Polcia e Justia mostram-se mais e mais incapazes de conter o crime consoante as leis penais vigentes. Sentimentos desta ordem revelam fortes descrenas nas instituies da socie-dade democrtica encarregadas de aplicar lei e ordem, proteger os direitos civis dos cidados, consagrados na Constituio, em particular o direito segurana.

    Estamos, portanto, diante de uma crise de legitimidade que, seno alcana todo o tecido social, compromete um dos eixos fundamentais das sociedades modernas: o monoplio estatal da violncia. Se os cidados suspeitam que os crimes no so punidos proporo de sua evoluo e gravidade, esperado que busquem proteo e justia por conta prpria. Ao faz-lo, disseminam modalidades privadas de aplicao de justia, in-centivando o ciclo interminvel de vinganas pessoais, o recurso violncia como imposio da vontade do mais forte aos des-providos da proteo das leis, a exacerbao de sentimentos de medo e insegurana coletivos. Em sociedades, como a brasileira, tradicional a suspeita, entre analistas sociais e polticos, segun-do a qual nunca se consolidou o monoplio estatal da violncia.

    Por um lado, convivemos, desde a poca colonial, com exr-citos privados a mando de proprietrios de terras, com grupos de extermnio congregando civis e agentes policiais, com a ar-bitrariedade das agncias policiais na imposio autoritria da ordem. Mais recentemente, a emergncia do crime organizado, espraiando-se pela sociedade e enraizando-se entre signifi cativos segmentos das classes trabalhadoras de baixa renda a par da r-pida disseminao das armas de fogo vieram acentuar os proble-mas de segurana pblica, em especial o controle estatal de par-tes do territrio urbano. Por outro lado, a transio da ditadura militar para a democracia e os anos que se seguiram de estabili-dade econmica e institucional no promoveram rupturas face s prticas tradicionais. Permanecem indistintas as fronteiras dos interesses privados e dos negcios pblicos, inclusive no terreno da segurana pblica devido, em grande parte, extraordinria expanso do mercado privado testa do qual no raro se encon-tram policiais civis e militares.2

    2 A bem da verdade, esse no um fenmeno restri-to sociedade brasileira. A rpida expanso do merca-do privado de segurana contribui para o recruta-mento de policiais e ex-po-liciais para essas empresas. Em algumas sociedades, nas quais as fronteiras en-tre o pblico e o privado em matria de segurana pblica ainda se apresen-tam indiferenciadas, poli-ciais alternam, nos horrios de repouso, atividades em empresas particulares com funes pblicas.

  • DILEMAS 53 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    Por fi m, verdade que, nesta primeira dcada do sculo XXI, o governo federal e alguns governos estaduais vm promovendo novas polticas pblicas mais afi nadas com conceitos contempo-rneos, como segurana cidad3 com o que se pretende refor-mular orientaes tradicionais voltadas exclusivamente para a represso aos crimes e caa de bandidos com efi ccia duvidosa. Porm, ainda cedo para saber o quanto essas novas diretrizes repercutiro na opinio pblica, enfraquecero os sentimentos coletivos de que os crimes no so punidos e aumentaro a pro-poro daqueles que depositaro confi ana nas instituies en-carregadas de aplicao das leis.

    Parece razovel supor que, na sociedade brasileira, esto em curso profundas descrenas dos cidados na capacidade do po-der pblico em oferecer segurana vida e ao patrimnio dos ci-dados. Prov-la cientifi camente , contudo, um grande desafi o. Antes de tudo, necessrio dispor de slidas evidncias em fatos de forma a estabelecer os nexos entre crenas e instituies, de resto um problema tanto para a sociologia clssica quanto con-tempornea.

    Embora no contemos com avaliaes consolidadas, os es-tudos disponveis (SOARES et al., 1996; ADORNO, 1994 e 1995; PINHEIRO et al., 1998; ZALUAR, 1998; LOPES, 2000; MISSE e VARGAS, 2007; VARGAS, 1999 e 2004; VARGAS e RIBEIRO, 2008; RIBEIRO e DUARTE, 2008; Rifi otis et al., 2007; SILVA, 2008; CIRENO e RATTON, 2008) sugerem que as taxas de im-punidade so mais elevadas no Brasil do que em outros pases, como na Frana (ROBERT et al., 1994); na Inglaterra (JEFFER-SON e SHAPLAND, 1994); nos Estados Unidos (GURR, 1989; DONZIGER, 1996). No Brasil, tudo parece indicar que as taxas de impunidade sejam mais elevadas para crimes que constituem graves violaes de direitos humanos, tais como: homicdios praticados pela polcia, por grupos de patrulha privada, por es-quadres da morte e /ou grupos de extermnio, ou ainda homi-cdios consumados durante linchamentos e naqueles casos que envolvem trabalhadores rurais e lideranas sindicais. Do mesmo modo, parecem altas as taxas de impunidade para crimes do co-larinho branco cometidos por cidados procedentes das classes mdias e altas da sociedade.

    Neste captulo so apresentados resultados da primeira eta-pa da pesquisa Estudo da impunidade. Municpio de So Paulo, 1991-1997 (NEV/USP/Cepid)4. Trata-se de um estudo sociolgi-

    3 Desde o governo FHC (1995-2002) e mais recente-mente no governo Lula da Silva (2003-2010) inegvel reconhecer mudanas na capacidade governamental de propor reformas em pra-ticamente todos os aspectos das polticas de segurana. Recentemente, a realizao da Conferncia Nacional de Segurana (2009) veio con-solidar e ampliar o leque de iniciativas inclusive em parceria com a sociedade civil organizada. Um outro exemplo o Pronasci, um programa do governo fede-ral que rene um conjunto diversifi cado de iniciativas do treinamento e apri-moramento dos recursos humanos para o trabalho policial ao reequipamento de instalaes e de instru-mentos para o exerccio das funes de policiamento preventivo e repressivo e de Polcia Judiciria. Conquanto com menor envergadura e alcance, em alguns estados da federao tambm tem sido formuladas e imple-mentadas reformas que no podem ser ignoradas ainda que se suspeite, com razo, de sua efi ccia institucional.

    4 O trabalho de coleta de dados contou com o apoio de uma equipe de pesquisa formada por Carlos Henrique Ferreira, Carlos Eduardo Bar-balarga, Cssia Santos Garcia, Cristiane Lamim de Souza Aguiar, Dalila Vasconcellos, Diego Jair Vicentin, Helena Bartolomeu, Joo Marcelo Gomes, Mariana Mendona Raupp, Marcelo Santana de Oliveira, Otvio Albuquer-que, Renato Oliveira de Faria e Ricardo Rosa, Patrcia Carla e Marcelo B. Nery. Projeto fi nanciado pela Fapesp (NEV-Cepid/USP, www.nevusp.org) e pelo CNPq. Agradecemos tambm o apoio do prof. dr. Marcelo Eduardo Giacaglia (FAU/USP) responsvel pela construo do sistema de dados.

  • DILEMAS54 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    co cujos objetivos principais pretendem identifi car a magnitu-de da impunidade penal para crimes determinados bem como os mecanismos e processos institucionais que a produzem. Seu foco terico-metodolgico reside na performance institucio-nal dos atores (policiais e judiciais) encarregados de apurar responsabilidade nos crimes. Empiricamente a pesquisa est fundada na observao do movimento de ocorrncias policiais determinadas (crimes violentos e no violentos selecionados) e no fl uxo do sistema paulista de justia criminal, desde o regis-tro da ocorrncia at a sentena judicial (modelo longitudinal). Neste captulo, os resultados esto circunscritos ao movimento que vai do registro da ocorrncia ao inqurito policial, indi-cando desde j um primeiro gargalo neste fl uxo. Concentra-se a ateno em dois aspectos: o primeiro trata dos problemas metodolgicos sob a perspectiva da organizao do sistema de justia criminal; no segundo, apresentam-se dados indicativos da pouca disposio das agncias policiais na investigao dos crimes detectados.

    Violncia, performance institucional e impunidade

    Desde o nascimento da sociologia clssica, colocou-se para seus pais fundadores a tarefa de explicar como uma sociedade no caso a sociedade moderna, fundamentada na diviso social do trabalho e na sua diferenciao interna, atravessada por confl itos de toda sorte, em especial a oposio entre interesses de classes , pode constituir-se como uma ordem social, caracterizada por certa unidade, pela regularidade das aes sociais desencadeadas por seus membros no mercado, na poltica e nas demais esferas de interveno social, pela estabilidade das instituies da vida civil e da vida poltica e, em particular, pela obedincia, seno de todos, ao menos de parcelas substantivas dos indivduos s normas que regem as suas relaes entre si e destes com as insti-tuies privadas e pblicas. Estamos diante do clssico problema certamente no inventado pela sociologia clssica da legiti-midade da ordem social.

    Independentemente das diferentes respostas oferecidas pe-las distintas tradies sociolgicas, todas elas convergiram para o mesmo ponto: estruturas e processos sociais, historicamente singulares da sociedade moderna, operam no sentido de asse-

  • DILEMAS 55 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    gurar, como vlidos e imperativos e, por conseguinte, legtimos, valores sobre bem e mal, certo e errado, justia e injustia, bom e mau governo, virtude e vcio etc., considerados como universais e universalizantes. Neste domnio, aspecto relevante diz respeito confi ana que os indivduos depositam nas instituies quer da sociedade civil quer da sociedade poltica.

    O tema da confi ana social amplo e foi tratado por um variado leque de perspectivas disciplinares. Grosso modo, o tema remete s ideias de reciprocidade e cooperao social, nos mais diversos campos da vida associativa: no mercado, nas relaes in-terpessoais e intersubjetivas (inclusive afetivas e passionais), nas relaes entre grupos sociais diversos (por exemplo, portadores de identidades prprias e singulares), inclusive entre classes so-ciais. Confi ana remete a uma espcie de f entre pessoas, en-sejando expectativa de previsibilidade nas relaes sociais, bem como estmulos participao social cooperativa (LEVI, 1998; PUTNAM, 1996; SZTOMPKA, 1996).

    Trs so os modelos tericos de explicao. O primeiro repu-ta a traos e caractersticas da personalidade individual, o apoio dos cidados s instituies civis e polticas. O segundo vale-se de explicaes culturalistas. Diferentes tradies culturais revela-riam maior ou menor inclinao para obedincia s leis e respeito s instituies. O terceiro o da performance institucional. Neste caso, a confi ana resultaria do funcionamento das instituies, no importa se civis ou polticas, e nomeadamente do desempe-nho de seus agentes em atender demandas e expectativas sociais. No so os traos psicossociais ou as heranas culturais dos ci-dados que os inclinam a apoiar o mundo regido por leis e ins-tituies; ao contrrio, so as instituies e as leis que se tornam confi veis junto aos cidados, medida que os agentes institu-cionais decidem e agem segundo regras previamente institudas, legitimamente reconhecidas como imperativas.

    So necessrias duas advertncias. Primeiramente, no se est falando de toda e qualquer instituio, porm de instituies inscritas no interior de um processo civilizatrio ocidental mo-derno. Em segundo lugar, o que nos interessa no a confi ana social em geral (um tema sociolgico por excelncia), mas a con-fi ana poltica nas instituies da moderna sociedade democr-tica, e mais propriamente ainda a confi ana depositada pelos cidados em um tipo especfi co de instituio: aquelas encarrega-das de aplicar leis penais.

  • DILEMAS56 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    A confi ana , por conseguinte, funo do modo como os atores institucionais no caso enfocado neste captulo, os policiais desempenham suas funes face s expectativas de segurana pblica experimentadas pelos cidados, em so-ciedades historicamente determinadas. No moderno estado de tradio ocidental, o cumprimento dessas tarefas de pro-teo dos cidados contra ofensas de toda ordem afetando sua pessoa, seu patrimnio e os valores compartilhados co-letivamente foi mais e mais demandando aperfeioamento tcnico e efi cincia operacional, ensejando a criao de enor-mes organizaes burocrticas alm de profi ssionalizao de quadros5. Guardadas as singularidades histricas, em todas as sociedades sob a rbita do processo civilizatrio ocidental foi sendo edifi cado sistema nacional de justia criminal, com seus rgos especializados e com a diviso de trabalho entre as tarefas de represso e apurao dos crimes (tarefas policiais) (MONET, 2001; MONJARDET, 2002; REINER, 1997 e 2004), alm daquelas afetas a imputao e julgamento de respon-sabilidade (tarefas judiciais sob incumbncia de promotores pblicos e magistrados) (SANDERS, 1997). neste contexto que se estabeleceram procedimentos administrativos desde o registro de ocorrncia policial at o cumprimento de senten-as judiciais, movimento temporal conhecido na literatura especializada como fl uxo do sistema de justia criminal.

    Esse modelo de justia ofi cial, prpria dos estados mo-dernos, requereu dos profi ssionais encarregados de aplicar as leis coercitivas o habitus (Bourdieu) ideal de agir em confor-midade com as leis, evitando apelos ao emprego arbitrrio (ou ameaa de emprego) de fora fsica ou violncia simb-lica, conivncia com os negcios criminais (corrupo de autoridades) ou tolerncia para com formas extralegais de resoluo de confl itos margem das leis ofi ciais. Ademais, re-quereu que nenhum crime deixasse de ser apurado e julgado consoante o devido processo legal. Tolerncia zero para com a impunidade penal constituiu assim uma espcie de ideal no imaginrio coletivo das sociedades modernas.

    Nessa arquitetura institucional, as tarefas de investigao policial so essenciais para a responsabilizao penal dos au-tores de crimes. As agncias policiais so o primeiro contato com vtimas, testemunhas, possveis agressores e os opera-dores do sistema de justia criminal. Em tese, todo registro

    5 Claro est que a especializa-o profi ssional e a formao de poderosos quadros buro-crticos no so processos restritos rbita do sistema de justia criminal. Em todas as reas de interveno esta-tal, tais processos estiveram presentes, ainda que, con-forme a rea de interveno, foram mais desenvolvidos e ensejaram maior especializa-o tcnica (por exemplo, em reas de fi nanas do Estado, promoo de infraestrutura urbana etc.)

  • DILEMAS 57 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    policial deveria ensejar a instaurao de correspondente in-vestigao. Na prtica, isso no acontece. Em todo o mundo, a investigao cobre to somente parte das ocorrncias que chega ao conhecimento da autoridade policial. Alguns cri-mes, sobretudo os mais graves como homicdios, tendem (ou ao menos deveriam) a merecer prioridade nas investigaes, comparativamente aos delitos de menor potencial agressivo. Mas no o que necessariamente ocorre, conforme aponta a literatura especializada. O chamado police discretion, o poder discricionrio da polcia, tema frequente nos estudos anglo-saxes. Como afi rma Monjardet (2003):

    Sob sua forma mais discreta, designa simplesmente um fato observa-do, como efeito universal e incontestvel da grande liberdade de ao de que dispe o policial de campo, o policial distrital em seu quar-teiro, o patrulheiro em sua ronda, a equipe durante seu servio, isto , as diferentes manifestaes do policial de uniforme na via pblica. Em seguida essas observaes foram estendidas a outras categorias: o civil que recebe as queixas, o inspetor que trata dos fl agrantes delitos etc. Grande liberdade de ao, autonomia, o que dizer? (pp. 43-44).

    Ainda, segundo Monjardet, essa autonomia do trabalho policial pode ser compreendida de trs diferentes maneiras. Pri-meiramente, uma certa liberalidade para com as regras manda-trias e que regulam a atividade profi ssional. No sem motivos, o termo discretion pode ser traduzido na lngua francesa (como igualmente em portugus) como discricionariedade, o que por sua vez remete ideia de arbitrariedade, um comportamento certamente censurado na conduta daqueles que devem agir com neutralidade, segundo regras universais e impessoais. Em segun-do lugar, autonomia pode ser entendida tambm como atributo do exerccio profi ssional qualifi cado. Enfi m, um conjunto de ha-bilidades consolidadas, em nome das quais o companheiro, uma vez atribuda a tarefa, escolhe suas ferramentas, programa suas operaes, verifi ca as cotas, em suma, organiza pessoalmente seu trabalho, o que ser avaliado por seus resultados. (idem, p. 45). No entanto, essa interpretao insufi ciente, pois discretion se re-fere, antes de tudo, natureza mesma da tarefa e no apenas sua execuo; trata-se de um conceito coletivo, antes de ser uma opo individual. Por isso, comum a literatura anglo-sax refe-rir-se a tais operaes como selection, uma propriedade essencial

  • DILEMAS58 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    na defi nio das atividades policiais. Diz Monjardet, por esse motivo, so os mecanismos desse processo de seleo que so os principais determinantes da defi nio, da organizao, e da anlise do trabalho policial (idem, ibidem, p. 45)6.

    No Brasil, a despeito dos avanos da pesquisa emprica no campo da sociologia da polcia, ainda pouco o que efetiva-mente se sabe a respeito desses mecanismos seletivos. Mesquita (2008) sugere pista para encaminhamento de hipteses. Segun-do ele, at a dcada de 1980 uma grande distncia separava os estudos sobre regimes polticos e os estudos, quase sempre sob o monoplio de juristas e profi ssionais da lei, sobre as instituies encarregadas de aplicar lei e ordem, entre as quais as agncias policiais. A literatura especializada em transio democrtica havia elegido, entre outros temas conexos, o papel das Foras Armadas como foco de ateno, j que esses atores haviam sido protagonistas essenciais na instaurao da ditadura militar. Essa mesma literatura dispensou pouca, ou nenhuma, preocupao para com o papel das foras policiais no contexto do crescimen-to dos crimes e da violncia no interior da sociedade civil. Nas palavras de Mesquita, essa conduta era consequncia, em parte, da percepo das polcias como instituies sem autonomia ou independncia, que operavam sob o controle de grupos e classes dominantes e orientavam suas aes na defesa dos interesses des-ses grupos ou classes, mais do que o controle da criminalidade e da violncia. Derivava tambm da percepo da criminalidade e da violncia como problemas resultantes da pobreza, desigual-dade econmica e social e do autoritarismo, sobre os quais as polcias no podiam exercer nenhuma infl uncia (MESQUITA, 2008, pp. 215-6).

    Esse cenrio comeou a mudar no fi nal dos anos 1980, com a proliferao de estudos e anlises apontando as relaes entre transio democrtica e instituies policiais. Tratou-se, como bem apontou Mesquita, de um cenrio estimulado pela necessidade de respostas persistncia da vioalncia policial, a despeito das exigncias de respeito s instituies democrticas e aos direitos humanos. Novos estudos, para alm dos crculos dos juristas e profi ssionais da lei, comeam a retifi car entendimentos quanto ao papel e desempenho das agncias e atores policiais no controle da ordem pblica. Esse desempenho tinha e tem conse-quncias polticas. certo que a polcia trata de forma desigual os crimes cometidos por indivduos procedentes dos grupos e

    6 Na sequncia do captulo, Monjardet analisa em por-menores esses mecanismos seletivos e suas consequn-cias para o trabalho policial.

  • DILEMAS 59 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    classes sociais hierarquicamente superiores, o que condiciona todo o sistema de proteo dos direitos dos cidados e afeta a es-tabilidade e qualidade dos regimes polticos (idem, p. 217)7. No entanto, sublinha Mesquita, os novos estudos comeam a cha-mar a ateno para os interesses e valores prprios das polcias que, face a circunstncias estruturais ou conjunturais, podem se aproximar dos interesses gerais da sociedade ou, alternativa-mente, de grupos polticos determinados. Mesquita faz meno s greves na Polcia Federal (1994) e nas polcias civis e militares (1997), que em sete estados da federao ensejaram de parte de governos estaduais o apelo s Foras Armadas para a restituio da ordem social. Essas greves e protestos mostraram, de forma dramtica, que as polcias tinham alto grau de autonomia em relao aos governos e tambm que as polcias tinham um alto grau de autonomia em relao aos chefes de polcia (MESQUITA, 2008, p. 218).

    Em outras palavras, Mesquita sugere que no curso do pro-cesso de transio democrtica parece ter se acentuado a au-tonomia das polcias em relao aos governos e aos dirigentes. Considerando que justamente esse o perodo coberto pela investigao da impunidade penal de que tratamos neste paper, essa hiptese parece fazer sentido. provvel que, no curso do processo de transio, tenha aumentado a autonomia dos agen-tes policiais, o que repercutiu em mecanismos de seletividade a que fazia meno Monjardet. Entre eles, a seletividade nos crimes a serem investigados. Pressionados, por um lado, pelo aumento dos crimes em especial contra o patrimnio e tambm os cri-mes violentos contra a pessoa e, por outro, diante da maior possibilidade de discricionariedade no encaminhamento para o esclarecimento de casos, as agncias e os agentes policiais inven-taram uma espcie de mapa cognitivo capaz de orient-los em situaes concretas. Esse mapa pode incluir elementos variados e combin-los segundo cenrios muito determinados. Elementos como natureza do crime, natureza da autoria e fl agrante podem ser fortes estmulos investigao. Em compensao, outros ele-mentos como desfecho (ato consumado ou tentado) podem ser irrelevantes. Em quaisquer combinaes possveis, a seletividade fato, os mecanismos operam e produzem resultados: poucos so os crimes investigados, poucos so os indiciados convertidos em rus de processos penais. Neste paper, apresentamos algumas das caractersticas desse processo de seleo.

    7 Mesquita no se refere a um dos mecanismos bsicos desse processo: a criminali-zao preferencial do com-portamento e dos crimes co metidos por indivduos per tencentes s classes tra-balhadoras pauperizadas, de baixa renda, que habitam es-pecilamente os bairros que compem a chamada peri-feria urbana das metrpoles brasileiras.

  • DILEMAS60 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    O estudo sociolgico da impunidade penal

    Entende-se por impunidade a desistncia de aplicao da lei penal para crimes reportados autoridade policial ou judicial (DAHRENDORF, 1987). Est fundada na observao emprica do movimento de crimes selecionados no fl uxo do sistema de justia criminal. Cuida-se de identifi car as razes que explicam a impunidade penal em sociedades, como a brasileira, sejam as de ordem estrutural, processual, ou rela-cionadas s motivaes inclusive o univer so simblico que regem o comportamento no apenas dos operadores tcni-cos ou no tcnicos do direito penal, como tambm dos de-mais protagonistas implicados nos acontecimentos criminais. Considera a pesquisa como um todo, isto a observao do percurso dos crimes no interior do fl uxo do sistema de justi-a criminal, constituiu objetivo geral mensurar a magnitude da impunidade penal. Esse objetivo foi alcanado mediante: 1) proporo daqueles que foram investigados, denunciados (e pronunciados, nos casos de homicdio) e condenados; 2) proporo dos condenados face queles que no obtiveram desfecho processual conclusivo; 3) proporo daqueles que, tendo cometido idntico crime, no obtiveram o mesmo des-fecho processual. Neste captulo, porm, os procedimentos metodolgicos e os resultados alcanados se restringem ao segmento ocorrncia-inqurito policial. Pretendeu-se carac-terizar o fl uxo e identifi car os principais fatores de reteno de ocorrncias sem abertura de correspondente inqurito. A seguir, so descritos os procedimentos metodolgicos nesta fase da investigao.

    Universo emprico de investigao

    O universo emprico de investigao compreendeu to-das as ocorrncias policiais registradas nas delegacias da 3 Seccional de Polcia, no perodo de 1 de janeiro de 1991 a 31 de dezembro de 1997. Limitaes decorrentes de oramento e do tempo estimado para concluso do trabalho de campo impediram que fosse conferida cobertura a todo o municpio de So Paulo. Optou-se por concentrar a observao em parte do territrio, justamente aquele abrigado pela 3 Seccional de

  • DILEMAS 61 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    Polcia, que recorta as regies noroeste do municpio, confor-me apontado no mapa abaixo.

    Figura 1: rea geogrfi ca abrangida pela3 Seccional de Polcia, municpio de So Paulo

    No perodo considerado, os habitantes dessa regio com-preendiam 15% da populao do municpio. No mesmo pero-do, a 3 Seccional de Polcia foi responsvel pelo registro de cerca de 18% de todas as ocorrncias criminais do municpio como um todo. Essa seccional foi escolhida em virtude de um crit-rio de natureza sociolgica. Ela alcana 21 distritos censitrios com caractersticas sociodemogrfi cas distintas, assim como dis-tintas condies de infraestrutura urbana, em especial de ofer-ta de servios pblicos, inclusive policiais e judiciais. A escolha dessa regio revelou-se privilegiada para a investigao, pois sua diversidade permitiu controlar a infl uncia de variveis socio-econmicas no desempenho das delegacias de polcia em suas

    Limites:

    Distritos Policiais Principais Vias Rios Matas

    Quilmetros

    0 4 8

  • DILEMAS62 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    tarefas de investigar os crimes8. Assim, embora no se possa ge-neralizar os resultados para o conjunto do municpio, o volume da populao (em 1996 eram 1.471.047 habitantes) e o volume de registros no perodo (603.083 boletins de ocorrncia policial) volume maior do que de qualquer outra cidade do estado de So Paulo , ao lado de sua diversidade econmica e social9 justi-fi cam o recorte geogrfi co e espacial adotado e sugerem padres e tendncias de investigao e punio para grandes conglome-rados populacionais.

    Quanto ao perodo, foi fi xado o lapso de sete anos como um tempo razovel desde o registro da ocorrncia at a provvel sen-tena judicial. Trata-se do tempo para condenao (ADORNO e PASINATO, 2007)10. O perodo coberto por uma conjuntura que tem incio na dcada anterior, com a transio da ditadura militar para o estado democrtico de direito, consagrada com a outorga da Constituio de 1988, considerada a mais demo-crtica da histria republicana brasileira pelo reconhecimento universal dos direitos civis, socioeconmicos e polticos. Em de-corrncia dos novos preceitos constitucionais, foi eleito, em 1989, o primeiro presidente civil por via direta, Fernando Collor de Mello, aps mais de 25 anos do golpe de Estado de 1964. No o caso de repertoriar os acontecimentos econmicos, sociais, pol-ticos e institucionais que afetaram o desempenho das agncias de segurana pblica e justia penal na conteno da violncia. Os crimes cresceram acentuadamente, em especial os homicdios e os crimes conectados com o trfi co de drogas. O aparato policial respondeu com violncia arbitrria desmedida, ocasionando ele-vado nmero de mortes de civis, como so exemplos o massacre do Carandiru, em So Paulo (outubro de 1992) e outros eventos como a chacina da Candelria, no Rio de Janeiro (julho de 1993), entre outras aes violentas recorrentes com desfecho de mor-tes entre civis, muitos sequer envolvidos com delinquncia ou crimes. Prticas tradicionais de represso aos crimes, herdadas do passado autoritrio, impediram que quaisquer iniciativas vi-sando modernizar o aparato policial, inclusive seu segmento na Polcia Judiciria responsvel pela investigao das ocorrncias, lograssem algum xito, mnimo que fosse11. nesse contexto que a questo da impunidade penal se colocou para a opinio pbli-ca, sequiosa de solues adequadas e capazes de restituir paz e tranquilidade cidade. nele tambm que a investigao socio-lgica sobre a impunidade se imps aos saberes acadmicos.

    8 Os resultados da investi-gao confi rmaram a infl u-ncia dessas variveis na disposio, maior ou menor das delegacias em converter registros de ocorrncias em inquritos policiais. Quanto mais favorveis as condies de infraestrutura e maior concentrao de populao pertencente aos estratos socioeconmicos elevados, maior a disposio das agn-cias policiais para investigar crimes. Esse assunto est sendo tratado em outro arti-go, em fase de preparao.

    9 Pode-se tambm dizer di-versidade cultural, conforme apontado por recente pes-quisa a respeito das relaes entre os paulistanos e sua cidade. A pesquisa cobriu 8 regies e os 96 distritos do municpio de So Paulo. Ver: DNA Paulistano. Datafolha e Folha de S. Paulo, 2009.

    10 Esse lapso de tempo um pouco alm da mdia (cinco anos) apontada em estudos anteriormente rea-lizados, con forme examina-mos no estudo acima refe-renciado, no qual inclusive justifi camos o termo tem-po de condenao.

    11 Ainda cedo para avaliar os resultados das polcias de segurana pblica em cur-so, tanto nas esferas federal quanto estaduais e muni-cipais. De qualquer forma, na dcada de 1990-2000 os resultados das polticas que vinham sendo experimenta-das desde o retorno do pas ao estado democrtico de direito ainda no pareciam produzir rupturas face s prticas policiais herdadas do passado autoritrio.

  • DILEMAS 63 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    Os crimes observados foram classifi cados em duas ca-tegorias. Crimes violentos so aqueles cuja ao representa grave ameaa integridade fsica ou vida das pessoas: es-tupro, homicdio, roubo (inclusive roubo seguido de morte) e trfi co de entorpecentes12. Estes so crimes que revelaram expressivo crescimento no perodo, suscitando apaixonado debate na mdia impressa e eletrnica, bem como alimen-tando os sentimentos de insegurana coletiva. H tambm os crimes no violentos, compostos por furtos (simples e qualifi cados) e uso de entorpecentes. Trata-se, neste caso, de um grupo de controle constitudo com o propsito de veri-fi car as semelhanas e diferenas nas tendncias da punio e impunidade para os crimes conforme sua natureza. Com-pletando o conjunto de ocorrncias observadas, foram co-letadas tambm informaes sobre registros de verifi caes de bito, morte a esclarecer, encontro de cadver e resistn-cia seguida de morte. Estes registros so classifi cados como ocorrncias no criminais e foram observados na pesquisa por sua proximidade com os crimes de homicdio13.

    Para o conjunto de crimes e ocorrncias no criminais observado, foram localizados 344.767 Boletins de Ocorrn-cia Policial registrados em 16 delegacias que compem a 3 Seccional de Polcia Civil14. Este nmero corresponde a 57,2% de todas as ocorrncias registradas nestas delegacias. No mesmo perodo e para os mesmos crimes e ocorrncias foram instaurados 21.886 inquritos policiais, o mesmo que 28,69% do total.

    O fl uxo dos crimes no segmento ocorrncia-inqurito policial: breves comentrios metodolgicos

    O estudo do fluxo um modo, certamente no o ni-co, de avaliar a magnitude da impunidade penal para cri-mes determinados, em sociedades historicamente cons-titudas, sobretudo quando h fortes suspeitas de que a evoluo da delinquncia e da violncia no foi acompa-nhada de respostas adequadas de parte do aparelho penal. Ainda assim, parte substantiva da literatura que realiza estudos empricos sobre impunidade penal tem se apoia-do na metodologia de fluxo de crimes no sistema de jus-

    12 Embora o trfi co de dro-gas no seja violento, sob o ponto de vista jurdico, socio-logicamente foi pertinente assim classifi c-lo dadas as suas conexes com a morte de adolescentes e jovens adultos, cujas vidas, direta ou indiretamente, gravitam em torno desta modalidade delituosa.

    13 O problema das classi-fi caes no particular realidade paulista. Cano (s/d) analisando as difi culdades de utilizao dos registros policiais efetuados pela po-lcia carioca observa que os homicdios podem ser clas-sifi cados como encontro de cadver, encontro de ossada, morte suspeita, morte sem assistncia mdica, auto de resistncia, leso seguida de morte e infanticdio. Da mes-ma forma como se observou nesta pesquisa, o autor cha-ma a ateno para a difi cul-dade de estabelecer critrio para o uso dessas classifi ca-es, fi cando claro que mui-tas dessas categorias no en-contram fundamentao no Cdigo Penal e que podem ser manipuladas com o intui-to de mostrar melhoras apa-rentes da situao ou abafar crises (CANO, s/d, p. 5)

    14 No Brasil, a organizao policial nos estados da fede-rao prev trs modalida-des: a) Polcia Militar, subor-dinada ao governo estadual, responsvel pelo policiamen-to ostensivo e preventivo. De acordo com a Constituio, fora auxiliar das Foras Armadas; b) Polcia Civil, igualmente subordinada ao governo federal, com as funes de Polcia Judiciria, isto , de investigao dos crimes e imputao de res-ponsabilidade a indiciados em inquritos; e c) guardas municipais, subordinadas s prefeituras, encarregadas de proteger edifcios e patrim-nio pblicos.

  • DILEMAS64 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    tia criminal, a despeito de sua complexidade. No Brasil, apesar dos avanos nos ltimos anos, so ainda poucos os estudos. Seu alcance ainda muito local e regional. Adotam diferentes perspectivas metodolgicas estudos transversais ou longetudinais, razo por que seus resulta-dos nem sempre podem ser comparados ou compatibili-zados em um estoque uniforme de descobertas15.

    A pesquisa Estudo da impunidade penal utilizou o m-todo longitudinal e adotou o modelo de fl uxo da justia representado aqui sob a forma de um funil (fi gura 1). Isto , a partir de marcadores individualizados de crimes se-lecionados, foi acompanhada a biografi a ou performan-ce (follow-up) caso a caso da entrada sada. Procurou-se verifi car quais permanecem no fl uxo, quais so excludas, em quais momentos ou etapas e quais fatores atuam mais fortemente para assegurar permanncia ou estimular ex-cluso. Sua confi gurao obtida a partir do acompa-nhamento da interveno das agncias e atores que fazem parte desse sistema: Polcia Judiciria, Ministrio Pblico e o Judicirio (aqui compreendido como os juzes e toda a mquina cartorria)16. A transmisso de dados e docu-mentos no interior do sistema, formalizado no registro dos boletins de ocorrncia, dos inquritos policiais e dos processos penais, d a extenso e o dimetro das diferentes partes desse funil .17

    Um dos objetivos da pesquisa consiste em identifi car, ao longo desse percurso, onde esto situadas as (possveis) rotas de fuga que podem ser defi nidas como aquelas situaes nas quais um boletim de ocorrncia, um inqurito policial ou um processo excludo do fl uxo em decorrncia da ausncia do cumprimento dos procedimentos que se encontram formal-mente prescritos, para cada etapa no Cdigo de Processo Penal Brasileiro, e demais conjuntos de leis e normas que orientam o curso natural no interior do sistema de justia criminal. Um exemplo pode ser tomado nos boletins de ocorrncia que so arquivados nas delegacias sem que haja a instaurao dos procedimentos para a investigao policial.

    A fase inicial desta pesquisa concentrou-se na anlise do primeiro gargalo: a converso de boletins de ocorrn-cia em inquritos policiais. A metodologia adotada foi do follow-up, que compreende a identifi cao individualizada

    15 No paper apresentado no 33 Encontro Anual da ANPOCS (Caxamb, MG, 26-30 outubro), fazemos uma anlise das virtudes e limites desses mtodos. Trata-se, no entanto, de uma exposio mais apropriada apresen-tao dos resultados do fl uxo desde o registro da ocorrn-cia at a sentena judicial. Dados os objetivos deste captulo, achamos oportuno extrair essa exposio que poder ser consultada no pa-per apresentado no encontro anual.

    16 Campos Coelho (1986; 2005), analisando a admi-nistrao da justia criminal argumenta que os subsiste-mas que a integram polcia, MP e Judicirio so frouxa-mente interligados e que os gargalos so calibrados, ao menos em parte, pela capa-cidade do sistema carcerrio em absorver os condenados pelas prticas de determina-dos crimes e contravenes.

    17 Nesta fi gura identifi ca-se a existncia de pontos de es-treitamento (gargalos) que correspondem a diferentes etapas que formam a inves-tigao de crimes e seu pro-cessamento no interior do sistema de justia criminal. Para esta pesquisa, foram identifi cados trs gargalos: o primeiro corresponde con verso de boletins de ocor rncia em inquritos po liciais. O segundo est localizado na passagem da esfera propriamente de investigao policial para a esfera judicial, ou seja, na converso de inquritos po-liciais em processos penais a partir da denncia pelo Ministrio Pblico. O terceiro gargalo est situado na eta-pa fi nal do processo, ou seja, no momento da sentena decisria.

  • DILEMAS 65 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    de cada ocorrncia e seu acompanhamento fsico nas eta-pas subsequentes. Dessa forma, tornou-se possvel isolar o conjunto de boletins de ocorrncia que se converteram em inquritos policiais e descrev-los segundo as variveis: na-tureza do crime, desfecho e autoria, bem como conhecer as taxas de converso de boletins em inquritos policiais e de esclarecimento da autoria durante as investigaes18.

    A coleta de dados nas delegacias consistiu uma atividade morosa e consumiu boa parte do tempo de trabalho da equi-pe. Alm de garantir a qualidade dos dados, a permanncia dos pesquisadores nas delegacias e o acesso s fontes prim-rias de informaes possibilitaram uma melhor compreenso a respeito do modo como os registros so produzidos, inclusi-ve permitindo identifi car a variedade de procedimentos

    Figura 2: Fluxo da Justia

    que fazem parte das prticas policiais, muitas das quais no se encontram normatizadas em portarias ou resolues da Delegacia-Geral de Polcia ou da Secretaria de Segurana Pblica. Estas observaes ajudaram a compor as primeiras hipteses a respeito da produo do desconhecimento que cerca os registros policiais e determinam o desenho e a com-posio do fl uxo da justia criminal.

    Na primeira etapa foram coletadas informaes a respeito de todos os boletins de ocorrncia e inquritos policiais registrados e instaurados relativos aos crimes selecionados para a pesquisa. As variveis contempla-das foram: nmeros de identificao, natureza do cri-me, desfecho (se tentado ou consumado), tipo de auto-ria (conhecida ou desconhecida), providncias adotadas (instaurao de inqurito policial, auto de priso em

    18 A pesquisa no trabalhou com os conceitos de esclare-cimento de caso ou soluo do crime. Esses conceitos esto impregnados de ele-mentos extrados da cultura organizacional dos policiais. Quando a polcia indicia al-gum suspeito como respon-svel por um crime, sob a tica da agncia o caso est esclarecido ou solucionado. Ocorre que, mesmo quando inquritos policiais indiciam possveis autores, inquritos policiais so arquivados pois, sob o ponto de vista das leis penais vigentes, manipula-das por outros operadores tcnicos do sistema de justi-a criminal que no policiais, isto , promotores pblicos, advogados e juzes, nem sem pre o esclarecimento do caso signifi ca responsabiliza-o penal. Muitas vezes, re-quisitos previstos em leis no foram observados, turvando a coleo de provas e preju-dicando a trade materialida-de do delito/autoria/conexo causal entre materialidade e autoria que resulta ou deve resultar em sano penal.

    Ocorrnciaspoliciais

    Inquritospoliciais Processos

    penaisSentena

  • DILEMAS66 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    flagrante, remessa para outras delegacias de polcia, averiguao da existncia do fato criminal etc.). Dada a impossibilidade de coletar dados diretamente dos bole-tins de ocorrncia19, a fonte primria foi consultada nos livros de registros de ocorrncia e nos livros de registros de inqurito. Todas as informaes foram armazenadas em bancos de dados especialmente construdos para a pesquisa. Programas eletrnicos foram especificamente desenhados para atender aos objetivos da pesquisa, de forma a estabelecer conexes entre ocorrncias e seus respectivos inquritos, quando abertos. Tanto quanto possvel, foram tomadas todas as precaues tcnicas para evitar duplicidade de registros e perdas na corres-pondncia entre ocorrncia e inqurito policial.

    Simultaneidade e transversalidade do movimento de ocorrncias

    No segmento ocorrncia-inqurito policial, um dos achados da pesquisa refere-se organizao interna do fl uxo. A utilizao do mtodo longitudinal permitiu veri-fi car que a passagem no interior do fl uxo no linear, nem obedece a uma nica e mesma direo e lgica. O movi-mento identifi cado aponta para a convivncia de fl uxos internos que deslocam boletins de ocorrncia e inquritos policiais de uma delegacia para outra, de forma que estes registros no so imediatamente excludos do fl uxo, mas alteram o percurso de converso de BOs em IPs e, segu-ramente, repercutem na aplicao da lei e distribuio da impunidade/punio.

    Guardadas as diferenas, o estudo do fl uxo do sistema da justia criminal assemelha-se a um estudo de origem-destino, por exemplo, como aqueles que acompanham o movimento de transeuntes pela cidade procura de trans-porte pblico. No caso do fl uxo da justia, em especial em sua primeira etapa, foi possvel verifi car que aqueles conjuntos aos quais denominamos Boletins de Ocorrn-cia e Inquritos Policiais, na verdade so formados por subgrupos de documentos que correspondem a situaes particulares de registro e obedecem a dinmicas institu-

    19 Em algumas delegacias, os boletins de ocorrncia eram incinerados aps deter-minado tempo, o que impos-sibilitou cobrir o perodo de observao (1991-1997).

  • DILEMAS 67 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    cionais prprias que, de algum modo, afetam sua circula-o no interior do fl uxo e, consequentemente, constituem problema para a precisa delimitao do universo emprico de uma investigao cientfi ca sobre o funcionamento do sistema de justia criminal.

    Este mapeamento inicial da circulao de boletins de ocorrncia e inquritos policiais permitiu verifi car que en-quanto alguns BOs podem ser prematuramente excludos do fl uxo da justia criminal sem nem mesmo se conver-terem em inquritos policiais, outros podem permanecer no fl uxo, mas agora direcionados para outros servios po-liciais. H tambm aqueles que permanecem no fl uxo, mas deixam de ser uma unidade e passam a ser tratados coleti-vamente sob um mesmo inqurito policial. Em particular, o acompanhamento dos deslocamentos entre os distritos policiais que formam a 3 Seccional serviu para evitar, tan-to quanto possvel, quer a duplicao de registros (com seus efeitos infl acionrios sobre o universo), quer a excluso de crimes de interesse da pesquisa.

    Deslocamentos entre delegacias

    Utilizando as informaes coletadas a respeito dos procedimentos adotados aps a efetivao do registro policial20, foi possvel isolar e conhecer aquelas ocorrn-cias que foram encaminhadas para outros distritos po-liciais ou delegacias especializadas. Pelo que foi possvel observar, esse procedimento atende a diversas motiva-es, por exemplo, o crime ter ocorrido fora da circuns-crio da delegacia onde o registro est sendo efetuado; a prpria vtima solicitar o envio do registro para outra delegacia, situao comum aos crimes sexuais que so enviados para as delegacias de defesa da mulher, por exemplo; h tambm casos em que a competncia de investigao pertence a delegacias especializadas, como nos homicdios com autoria desconhecida (DHPP)21.

    Dos 344.767 boletins de ocorrncia computados pela pesquisa, 7.147 (2,07%) foram registrados e enviados para outros distritos policiais e delegacias especializadas, como se observa no grfi co abaixo representado.

    20 A maior parte das infor-maes referia-se a: repre-sentao criminal (sendo aguardada ou recebida); ave riguao de existncia de crime; aguarda laudo, instau-rao de IP; registro de fl a-grante; e encaminhamento para outros DPs.

    21 No signifi ca que a com-petncia seja exclusiva, mas sabidamente as delegacias especializadas, como DHPP (Delegacia de Homicdios e Proteo da Pessoa) e Denarc (Delegacia de Narcticos), possuem melhores condi-es materiais e de pessoal para empreender a investiga-o de alguns crimes.

  • DILEMAS68 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    Grfi co 1: Movimento de boletins de ocorrnciaaps o registro inicial. Fluxos internos

    Fonte: Livros de registros de boletins de ocorrncia. Distritos Policiais e DDMs. 3 Seccio-nal/ SSP-SP. 1991-1997. Pesquisa: Estudo da impunidade penal. Municpio de So Paulo, 1991-1997. NEV/USP

    Dentre as ocorrncias que foram remetidas para distri-tos policiais situados em outras seccionais de polcia ou para delegacias especializadas foi possvel observar que o deslo-camento dos BOs parecia determinado por dois critrios: diviso territorial e competncia para investigao (espe-cializao). De acordo com o primeiro critrio, embora o registro de uma ocorrncia policial possa ser efetuado em qualquer distrito policial, a competncia pela investigao delimitada segundo a rea onde o crime ocorreu.

    J o segundo critrio, da competncia, refere-se dis-tribuio de atribuies entre as delegacias especializadas. Entre os BOs analisados o maior fl uxo identifi cado ocor-reu nos casos de homicdio enviados para o DHPP. O total de registros de homicdio foi de 4.913 boletins de ocor-rncia, dos quais 1.009 foram enviados ao DHPP e 41 para distritos policiais situados fora da 3 Seccional (totalizan-

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    43,9

    58,3

    41,7

    56,1

    Outros dps Outros dps_3S

    Sada Entrada

    0

    5000

    10000

    Fluxo de Sada Fluxo de Entrada

    3134

    4013

    7147

    3574

    2553

    6127

  • DILEMAS 69 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    do 1.050 BOs que no foram investigados na 3 Seccional). Para o DHPP tambm foram enviados registros de roubo seguido de morte (latrocnio) e outras ocorrncias que re-sultaram em morte (especialmente, encontro de cadver e morte a esclarecer).

    Como se observa no grfi co 1, a maior parte dos bo-letins no fl uxo de sada foi enviada para as delegacias da 3 Seccional (4013, 56,1%). Durante os trabalhos nas delega-cias, foi possvel obter algumas explicaes para este deslo-camento. Por exemplo, entre os anos de 1996 e 1997, por razes administrativas, um dos distritos policiais perma-neceu fechado no perodo noturno e nos fi nais de semana. Todos os registros policiais de sua rea foram ento efetu-ados em outro distrito da regio e, posteriormente, enca-minhados para o distrito responsvel pela rea. No mesmo perodo observou-se intensa remessa de ocorrncia entre outros dois distritos, resultado de uma mudana na diviso da rea de abrangncia dessas duas delegacias. Finalmente, h um movimento rotineiro entre os distritos policiais e as Delegacias da Mulher. Dentre os crimes observados na pesquisa, a quase totalidade de registros de estupro foram investigados por estas delegacias.

    Na tentativa de conhecer e explicar a dinmica interna do fl uxo de justia, procurou-se tambm identifi car aqueles boletins de ocorrncia que so recebidos de outras delega-cias. Como j afi rmado, a difi culdade neste caso resulta da diversidade de encaminhamentos que podem ocorrer a partir do recebimento do BO nas dependncias de uma delegacia. Comparando os fl uxos de sada de boletins para os distritos policiais da 3 Seccional com aquele de entrada nos mesmos distritos, verifi ca-se que o segundo fl uxo bem menor do que o primeiro, ou seja, enquanto os livros de registro de boletins de ocorrncia informavam que 4.013 BOs haviam sido envia-dos para outros distritos policiais e delegacias especializadas da mesma seccional, o movimento de entrada indica a locali-zao de apenas 2.553 boletins de ocorrncia. Para os outros 1.460 no foi possvel saber o destino que tiveram. possvel que tenham sido anexados a outros boletins de ocorrncia ou tenham sido reenviados para outros distritos policiais de ou-tra circunscrio policial situaes em que, como j vimos, no so feitos registros sobre os procedimentos adotados, mas

  • DILEMAS70 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    podem tambm ter sido arquivados sem qualquer desdobra-mento na esfera policial, caso em que teriam sido excludos do fl uxo da justia.

    Por fi m, foi possvel perceber ainda que estes encami-nhamentos se expressam de modo diferente segundo a na-tureza dos crimes, sendo que os furtos e roubos so os que apresentam maior nmero de perdas neste movimento, mas chama a ateno a existncia de 84 boletins de ocor-rncia de homicdio que se perdem no interior dessa movi-mentao interna.

    Tabela 1: Diferena nos movimentos de entrada e sadade boletins de ocorrncia nas delegacias de polcia da 3 Seccional

    segundo a natureza dos crimes (1991-1997)

    Fonte: Livros de registros de boletins de ocorrncia. Distritos Policiais e DDMs. 3 Seccio-nal/ SSP-SP. 1991-1997. Pesquisa: Estudo da impunidade penal. Municpio de So Paulo, 1991-1997. NEV/USP

    Conhecer os deslocamentos internos aos fluxos da justia ajuda a demonstrar as limitaes de pesquisa transversais, ou seja, aquelas que comparam totais de boletins de ocorrncia com totais de inquritos policiais de um mesmo crime. A movimentao interna ao fluxo no linear nem progressiva, sofrendo alteraes e in-terrupes em seu percurso que afetam a aplicao das leis. Alm disso, importante perceber que este procedi-mento que aparentemente se d sem qualquer padroni-zao ou controle pelas instncias superiores pode estar

    Crimes Fluxo de sada Fluxo de entrada Diferena

    Furto 1.293 769 -514

    Furto qualifi cado 79 40 -39

    Roubo 1.709 1.078 -631

    Latrocnio 11 8 -3

    Estupro 102 81 -21

    Trfi co de entorpecentes

    3 6 3

    Uso de entorpecentes

    7 6 -1

    Homicdios 247 163 -84

    Outras ocorrncias com morte

    562 406 -156

    Total 4.013 2.553 -1.460

  • DILEMAS 71 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    abrigando uma das rotas de fuga do fluxo do sistema judicial, cujo resultado um crime noticiado polcia que fica sem punio.

    Investigao policial: escolhas e seletividade dos crimes

    Nesta fase da pesquisa (fase policial), foi avaliada a infl u-ncia de trs variveis desfecho (tentativa ou ato consumado), autoria (conhecida, desconhecida ou indeterminada) e fl agrante delito. A Tabela 2 a seguir contm informaes a respeito.

    Do total de BOs, 61,4% so registros de crimes no violentos (furto, furto qualifi cado e uso de entorpecentes) e 34,1% so de delitos violentos (homicdios, latrocnios, roubos, estupros e trfi co de drogas). Dos delitos registra-dos nos DPs 320.646 (93,0%) foram delitos contra o patri-mnio (roubos, furtos, furtos qualifi cados). J os homic-dios representam 1,4% dos registros, com 4.913. As outras ocorrncias com morte somam 15.517 BOs, 4,5% do total. A maioria dos registros (93,2%) de delito consumado, e em 90,1% dos casos a autoria desconhecida. H ocorrn-cia de fl agrante em apenas 2,1% dos registros.

    A leitura desses dados permite algumas observaes. Em primeiro lugar, em cada trs crimes registrados, apenas um de natureza violenta. Em segundo lugar, fl agrante a maior concentrao de crimes contra o patrimnio, com-parativamente aos crimes contra a vida. Em terceiro lugar, trs vezes maior o nmero de ocorrncias com morte no classifi cadas como homicdio, o que pode sugerir que o n-mero destas ocorrncias seja maior se nesta categoria fossem includas todas as demais (verifi cao de bito, resistncia seguida de morte, encontro de cadver e morte a esclarecer). Em quarto lugar, o volume de registros com autoria desco-nhecida elevado, o que indiretamente traduz a magnitude das tarefas policiais caso seus agentes pretendam fazer valer os preceitos legais. Por fi m, o fl agrante representa uma par-te pouco signifi cativa das operaes policiais. Convm lem-brar que o fl agrante no , em tese, uma atribuio regular da Polcia Civil (embora ela tambm esteja investida dessa prerrogativa legal), mas da Polcia Militar em suas tarefas de policiamento repressivo e ostensivo.

  • DILEMAS72 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    Tabela 2: Distribuio dos BOs segundo tipo, desfecho, autoria e fl agrante

    Total de BOs

    Variveis n %

    Total 344.767 100,0

    tipo de delito

    no violentos 211.832 61,4

    violentos 117.418 34.1

    outras ocorrncias 15.517 4,5

    contra o patrimnio

    furto 202.632 58,8

    furto qualifi cado 7.811 2,3

    roubo 109.831 31,9

    latrocnio 372 0,1

    320.646 93.0

    Contra a vida

    homcdio 4.913 1,4

    Outras ocorrncias com morte

    verifi cao de bito 13.650 4,0

    resistncia seguida de morte 82 0,0

    encontro de cadver 167 0,0

    morte a esclarecer 1.618 0,5

    15.517 4,5

    entorpecente

    uso de entorpecentes 1.389 0,4

    trfi co de entorpecentes 672 0,5

    2.061 0,6

    contra os costumes

    estupro 1.630 0,5

    desfecho do delito

    consumado 321.173 93,2

    tentado 8.097 2,3

    no se aplica 15.497 4,5

    autoria do delito

    desconhecida 310.703 90,1

    conhecida 14.039 4,1

    indeterminada 545 0,2

    no informa 19.480 5,7

    fl agrante

    no 337.517 97,9

    Fonte: Livros de registro de boletins de ocorrncia e Livros de registro de inqurito policial 3 Seccional/ SSP-SP; Pesquisa: Estudo da Impunidade Penal. Municpio de So Paulo, 1991-1997.

  • DILEMAS 73 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    A avaliao do desempenho da Polcia Civil em suas atri-buies de Polcia Judiciria verifi cada atravs da converso de boletins de ocorrncia policiais (BOs) em inquritos poli-ciais (IPs). Apenas 5,5% desses registros se converteram em in-qurito policial, conforme Tabela 3, abaixo.

    Tabela 3: Total de boletins de ocorrncia registrados, totalde boletins de ocorrncia convertidos em Inquritos Policiais distribudos segundo

    o grupo de classifi cao e a natureza do crime

    Essa proporo maior (8,1%) para crimes violentos. E, entre os crimes violentos, as maiores propores de registros converti-dos em inquritos correspondem a trfi co de drogas (92,7%), em geral resultado de fl agrante; a latrocnio, isto , roubo seguido de morte (67,2%); e a homicdio (60,1%). portanto quase trs ve-zes maior a proporo de ocorrncias violentas que se convertem em inqurito do que no violentas (3,9%). fl agrante a pouca disposio das agncias policiais civis em investigar crimes22.

    Como se v, distintos crimes revelam maior probabilidade de serem investigados do que outros. As razes para explicar essa tendncia so ainda pouco claras. A par da natureza do crime, a natureza da autoria e o fl agrante desempenham infl uncia considervel na conduta da autoridade policial quando tem que selecionar entre o que investigar ou no. No Grfi co 2, tem-se a proporo do total de BOs e dos BOs convertidos segundo auto-

    22 Explicar as razes dessa baixa disposio para inves-tigar crimes tarefa que ul-trapassa os propsitos deste paper. Certamente, h razes que devem ser buscadas nas condies de trabalho. No de hoje que a insufi cincia de recursos e a precariedade dos meios e condies de tra-balho so denunciadas, em especial pelas associaes corporativas. Mas, certamen-te, h razes relacionadas com o universo de represen-taes sociais, mais propria-mente aos valores presentes na cultura organizacional das agncias policiais. Trata-se do modo como entendem e jus-tifi cam o baixo desempenho, para o qual concorrem vises acerca do crime, da criminali-dade e dos criminosos, como j o demonstraram no pou-cos estudos (PAIXO, 1988). Reconstruir o mapa cogniti-vo que orienta as motivaes para investigar ou no os cri-mes tarefa que vem sendo realizada presentemente.

    Grupo / Natureza Total de BOs Total BOs convertidos %

    no violentos 211.832 8.216 3,9

    furto 202.632 6.553 3,2

    furto qualifi cado 7.811 414 5,3

    uso de entorpecentes 1.389 1.249 89,9

    Violentos 117.418 9553 8,1

    estupro 1.630 364 22,3

    homicdio 4.913 2.954 60,1

    roubo 109.831 5.362 4,9

    latrocnio 372 250 67,2

    trfi co de ebtorpecentes 672 623 92,7

    Outras ocorrncias 15.517 1.139 6,0

    verifi cao de bito 13.650 466 3,4

    resistncia seguida de morte 82 68 82,9

    encontro de cadver 167 105 62,9

    morte a esclarecer 1.618 500 30,9

    34.767 18.908 5,5

    Fonte: Livros de registro de boletins de ocorrncia e Livros de registro de inqurito policial 3 Seccional/ SSP-SP; Pesquisa: Estudo da Impunidade Penal. Municpio de So Paulo, 1991-1997.

  • DILEMAS74 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    ria conhecida, delito consumado e ocorrncia de fl agrante. Ve-mos que tanto para autoria quanto para fl agrante a proporo maior para os boletins convertidos em IP. No entanto, a propor-o de delitos consumados diminui na fase de inqurito.

    Mais do que a autoria o fl agrante que exerce maior infl un-cia na converso de boletins de ocorrncia em inquritos. De acor-do com o art. 302 do Cdigo de Processo Penal considera-se em fl agrante delito quem: i) est cometendo a infrao penal; ii) aca-ba de comet-la; iii) perseguido, logo aps, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situao que faa presumir ser autor da infrao; iv) encontrado, logo depois, com instru-mentos, armas, objetos ou papis que faam presumir ser ele autor da infrao. A Tabela 4, a seguir, ilustra melhor essa tendncia.

    120

    100

    80

    60

    40

    20

    0

    Total de BOs

    BOs convertidos

    4,1

    74,793,2

    4,3 2,1

    96,7

    Fonte: Livros de Registro de Boletins de Ocorrncia e Livros de Registro de Inqurito Policial 3 Seccional/ SSP-SP

    autoria conhecida consumado

    Variveis

    Total dos BOs

    BOs convertidos

    em IP

    Taxa de converso

    Total dos BOs

    BOs convertidos

    em IP

    Taxa de converso

    Total dos BOs

    BOs convertidos

    em IP

    Taxa de converso

    n n % n n % n n %Total

    Total

    14039 10482 74,7 321173 13686 4,3 7250 7011 96,7

    violentos

    no violentosoutras ocorrncias

    6089 4952 81,3

    7902 5487 69,448 43 89,6

    113087 7217 6,4208016 6409 3,1

    70 60 85,7

    3468 3376 97,33771 3632 96,3

    11 3 27,3

    6194 3981 64,3

    356 281 78,965 58 89,2

    198992 4831 2,47637 331 4,3

    256 177 69,1

    2611 2533 97,0180 174 96,7

    35 36 102,9

    3826 3221 84,2 107181 4180 3,9 2502 2398 95,810441 7541 72,2 314066 9519 3,0 5328 5141 96,5

    975 848 87,0 3553 1923 54,1 296 369 124,7

    0 0 -

    48 43 89,60 0 -

    0 0 -70 60 85,7

    0 0 -

    8 2 25,01 0 0,00 0 -

    0 0 - 0 0 - 2 1 50,01023 891 87,1 3623 1983 54,7 307 372 121,2

    1352 1217 90,0

    654 604 92,4

    1387 1247 89,9

    670 621 92,7

    980 925 94,4579 513 88,6

    2006 1821 90,8 2057 1868 90,8 1559 1438 92,2

    569 207 36,4 1427 316 22,1 56 60 107,1

    contra o patrimnio

    furto

    latrocniorouboTotal

    contra a vidahomicdio

    outras ocorrncias com morte

    resistncia seguida de morteencontyro de cadvermorte a esclarecer

    Total

    entorpecentesuso de entorpecentes

    Total

    contra os costumes

    estupro

    Tabela 4: Distribuio dos BOs e dos BOs convertidos e taxas de conversosegundo autoria conhecida, consumao do delito e ocorrncia de fl agrante

    Fonte: Livros de Registro de Boletins de Ocorrncia e Livros de Registro de Inqurito Policial - 3 Seccional/SSP-SPPesquisa: Estudo da Impunidade Penal. Municpio de So Paulo, 1991-1997

  • DILEMAS 75 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    Na Tabela 4, constam as taxas de converso de BOs em IPs segundo autoria, consumao do delito e fl agrante por tipo e na-tureza do delito. A taxa de converso de BOs em IPs em que hou-ve fl agrante delito maior (96,7%) do que em autoria conhecida (74,7%), comparativamente proporo de crimes consumados (4,3%). Nos casos em que houve fl agrante, as taxas de converso so elevadas tanto para crimes violentos quanto no violentos (97,3 e 96,3%, respectivamente). Para latrocnio e homicdios, ambos envolvendo desfechos fatais, como tambm para estupro, as propores superam os 100%. Tudo indica que o fl agrante poderoso estmulo investigao policial.

    Nos crimes de autoria conhecida, a taxa de converso maior para crimes violentos (81,3%) do que no violentos (69,4%). Entre os crimes contra o patrimnio no roubo segui-do de morte (latrocnio) que recai a maior ateno da investi-gao policial. Nos homicdios com autoria conhecida, 87% das ocorrncias se converteram em inquritos. Convm destacar que 13% de ocorrncias dessa natureza e qualidade no mereceram a mesma considerao da autoridade policial. No uso e trfi co de entorpecente, as propores so elevadas, pois compreendem crimes necessariamente com fl agrante. Contrariamente, no caso dos estupros, mesmo com autoria conhecida, apenas 36,4% das ocorrncias se transformam em inqurito policial.

    Entre os BOs em que houve fl agrante, so maiores as taxas de converso para crimes com autoria conhecida comparativa-mente aos crimes consumados, conforme aponta a Tabela 5. Do total (7.011 BOs), ocorrncias com autoria conhecida represen-tam 95,4%, enquanto crimes consumados, 69%. Esses valores sugerem que a natureza da autoria estmulo maior para a inves-tigao policial do que a gravidade do delito. Trata-se de consta-tao surpreendente pois, segundo as leis penais, atos consuma-dos tendem a merecer sanes mais elevadas do que as tentativas. No obstante, crimes violentos so mais investigados (71,7%) do que no violentos (62,7%). Entre os crimes contra o patrimnio com fl agrante, roubo (70,6%) e furto qualifi cado (68,4%) re-presentam os de maior ateno dos agentes policiais. Flagrantes de uso e trfi co de drogas so integralmente investigados, o que revela provavelmente o foco privilegiado das polticas pblicas de segurana implementadas no perodo e, ao que tudo indica, observadas com rigor pelos agentes policiais. Por fi m, no menos surpreendente o que se passa com os fl agrantes de homicdio.

  • DILEMAS76 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    Embora, 79,4% desses registros representem crimes com autoria conhecida, apenas 42,8% dos inquritos correspondem a crimes consumados. Uma vez mais, o fato de ter sido ou no consuma-do no estmulo investigao, mesmo em crimes to graves como homicdios.

    A Tabela 6 aponta a correlao entre as trs variveis para os 18.908 BOs convertidos em IP. A correlao entre fl agrante e autoria 0,618, ou seja, positiva e alta. Entre as variveis fl agran-te e delito consumado temos uma correlao negativa e fraca (-0,089). H uma correlao positiva, porm quase nulas entre as variveis autoria e consumao do delito (0,03).

    Variveis total autoria conhecida consumado

    n n % n %

    Total 7.011 6.918 95,4 4.841 69

    Tipo de delito

    no violentos 3.632 3.473 95,6 2.276 62,7

    violentos 3.376 3.153 93,4 2.422 71,7

    contra o patrimnio

    furto 2.533 2.410 95,1 1.232 48,6

    furto qualifi cado 174 157 90,2 119 68,4

    latrocnio 36 30 83,3 20 55,6

    roubo 2,398 2.256 94,5 1.693 70,6

    conta a vida

    homicdio 369 293 79,4 158 42,8

    entorpecentes

    uso de entorpecentes 925 906 97,9 925 100,0

    trfi co de entorpecentes 513 509 99,2 513 100,0

    contra os costumes

    estupro 60 56 93,3 39 65,0

    Flagrante Autoria consumado

    r Flagrante 1,000 ,618 -,089

    Autoriua ,618 1,000 ,030

    Consumado -,089 ,030 1,000

    p-valor Flagrante - ,000 ,000

    Autoruia ,000 - ,000

    Consumado ,000 ,000 -

    Tabela 6: Correlao de Spearman

    Tabela 5: Total de BOs com ocorrncia de fl agrante convertidos eminqurito policial segundo autoria conhecida e a consumao do delito

    Fonte: Livros de registro de boletins de ocorrncia e Livros de registro de inqurito policial 3 Seccional/ SSP- SP . Pesquisa: Estudo da Impunidade Penal. Municpio de So Paulo, 1991-1997

  • DILEMAS 77 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    A Tabela 7 apresenta os coefi cientes de correlao de Spe-arman (r) entre a varivel converso de BOs em IP e as variveis autoria, consumao do delito e fl agrante, que nos ajuda a explicar a importncia destas variveis na converso de um BO em inqu-rito policial. O coefi ciente de 0,583 para a varivel fl agrante nos diz que h alta correlao positiva com a converso de BOs em IP. H tambm uma correlao positiva (0,376) entre converso de BOs em IP e autoria, mas a relao no to forte. A relao entre converso em IP e consumao do delito negativa e fraca (-0,194). O p-valor inferior a 0,01 nos mostra que tais valores de r so estatisticamente signifi cantes ao nvel de 1%.

    Assim, o fl agrante seguido da natureza da autoria cons-tituem, sob o ponto de vista da agncia e dos atores policiais, normas orientadoras da conduta do que deve prosseguir no fl uxo do sistema de justia e o que deve ser desprezado.

    Seletividade dos crimes e impunidade penal

    Tudo indica que seja menor a inclinao das vtimas em denunciar tentativas s autoridades policiais e/ou menor a motivao destas em promover seu registro e a consequen-te investigao. Essa tendncia pode estar refl etindo, por um lado, a desconfi ana dos cidados nas agncias policiais encar-regadas de investigar crimes e apurar responsabilidade penal, ou ainda o medo do contato com a agncia policial. Ao mesmo tempo, revela a seletividade dos agentes e das agncias policiais na resoluo de casos.

    Predominam os crimes de autoria desconhecida. Em metrpoles caracterizadas por grandes contingentes popu-lacionais e intenso fl uxo de pessoas, de mercadorias, de ati-vidades e de servios, o anonimato um trao marcante de comportamento coletivo. de se esperar, por conseguinte, que essa caracterstica tambm se manifeste nos crimes, cuja autoria no pode ser imediatamente identifi cada.

    r p-valor

    autoria 0,376 0,000

    fl agrante 0,583 0,000

    desfecho -0,194 0,000

    Tabela 7: Correlao de Spearman entre converso de BOs em IP, autoria e fl agrante

  • DILEMAS78 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    Considerando que a maioria dos crimes com autoria des-conhecida so consumados, que representam srios prejuzos s vtimas (monetrios, fsicos, psicolgicos), razovel esperar que as agncias policiais confi ram maior prioridade ao esclareci-mento desses crimes, mediante a abertura imediata do inqurito policial correspondente. Os cidados esperam que os agressores sejam identifi cados e os crimes sejam punidos.

    No entanto, a evoluo dos inquritos penais abertos no parece seguir as mesmas tendncias observadas para as ocor-rncias policiais. maior a inclinao da agncia policial para a investigao de crimes violentos, porm os agentes e a agncia policiais privilegiam os de autoria conhecida. Crimes violentos de autoria desconhecida no constituem meta a ser alcana-da pelos agentes policiais em suas tarefas de esclarecimento de casos e de apurao de responsabilidade criminal. A exceo a essa forte tendncia representada pelo homicdio, pois, como se viu, maior a proporo de inquritos abertos para apurar responsabilidade em crimes com autoria desconhecida do que conhecida. possvel que tal se deva interveno de polcia es-pecializada (DHPP Departamento de Homicdios e Proteo Pessoa, da SSP/SP) que se encarrega justamente desses casos.

    Tudo indica que a natureza da autoria , sob o ponto de vis-ta da agncia e dos atores policiais, uma norma orientadora da conduta do que deve prosseguir no fl uxo do sistema de justia e o que deve ser desprezado. Mais do que isso, traduz o entendi-mento, de parte desse segmento corporativo do sistema de justi-a criminal, de como deve operar o aparelho policial, o quanto e quais energias devem ser mobilizadas, o que vale a pena ou no investir. No limite, pode traduzir uma concepo do que, sob a tica dessa agncia e de seus atores, merece ser objeto de investi-gao e, no fi nal da cadeia, punio.

    Em reforo a esta observao, observou-se tambm que o fl agrante tem peso at maior do que a autoria conhecida. O fl agrante necessariamente est associado autoria conhecida. Ocorre que o fl agrante, em regra, praticado pela Polcia Mili-tar, em suas tarefas de represso aos crimes mediante vigilncia das ruas. Por conseguinte, em ltima instncia, o que est em grande medida regulando a entrada, no fl uxo do sistema de jus-tia criminal, de ocorrncias policiais com maior probabilidade de permanecerem at o fi nal do processo e merecerem sentena judicial, pouco importando se condenatria ou absolutria, a

  • DILEMAS 79 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    atividade de vigilncia das ruas e dos espaos pblicos. Como a Polcia Militar no onipresente, nem poderia s-lo, o desem-penho desta agncia do sistema de justia criminal que deve me-recer maior ateno, inclusive de parte da pesquisa.

    Seja o que for, as rotinas de investigao policial parecem estar habituadas e burocraticamente conformadas em investi-gar crimes de agressores j conhecidos do aparelho repressivo. Agentes e agncias policiais limitam seu raio de ao aos estrei-tos domnios ditados pela cultura organizacional, constituda, modelada e reproduzida segundo a lgica de caar bandidos. Essas rotinas exploram o bvio, so pouco permeveis aos desa-fi os enfrentados no apenas pelo crescimento dos crimes como tambm pela mudana de qualidade da violncia, representada pela emergncia do crime organizado e pela exploso de graves violaes de direitos humanos. Ao preterir o massivo volume de ocorrncias com autoria desconhecida, agentes e agncias poli-ciais contribuem para produzir elevadas taxas de impunidade penal. E, como revelam os resultados da pesquisa, tm elevada responsabilidade institucional nesse processo.

    Essas rotinas no so fortuitas obras do acaso ou mesmo de certa desorganizao administrativa e funcional dos apare-lhos repressivos. Tudo sugere que est em curso e certamente j h longo tempo um processo de produo do desconhe-cimento penal (BOURDIEU, 1999), materializado na repro-duo da fi gura da autoria desconhecida. Suas razes ainda no so completamente conhecidas. Nossas hipteses indicam que, por um lado, a sociedade civil, atravessada por graves vio-laes de direitos econmicos e sociais, encontra-se fragiliza-da, incapaz de exercer com efi cincia e efi ccia simblica seu papel de accountability das instituies de controle social. Seus cidados, imersos nas lutas cotidianas pela garantia da sobre-vivncia mnima, no encontram foras organizadas capazes de fazer valer seu direito segurana e, por essa via, exigir das autoridades policiais a resoluo dos casos criminais, em par-ticular os de maior gravidade. Alm do mais, em no poucos bairros que compem a chamada periferia metropolitana, o medo da polcia to acentuado quanto o medo do trafi can-te. A imagem da polcia, entre esses cidados ambgua. Se, ora protege a populao exercendo tarefas que no so de sua competncia (como prestar assistncia em casos de parto), ora aparece associada ao crime e violncia desmedida.

  • DILEMAS80 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    Por outro lado, agentes e agncias sob baixa ou nenhuma presso da sociedade civil organizada encontram espao para ampliar sua margem de arbitrariedade e de abuso na conteno da violncia. a confl uncia desses processos que resultam em elevada seletividade na apurao de casos e em arbitrria aplica-o de sanes. No limite, essa confl uncia coloca em evidncia a desigualdade de direitos, mais propriamente a isonomia dos cidados perante s leis.

    Por sua vez, elevadas taxas de impunidade penal e desigual-dade na distribuio de direitos e deveres reforam o sentimen-to de insegurana coletiva, as suspeies contra as polticas de proteo dos direitos humanos, as desconfi anas na capacidade e efi cincia das instituies encarregadas de aplicar lei e ordem. Essa cadeia de motivaes vem confi rmar hiptese presente na historiografi a brasileira, segundo a qual nunca houve no Bra-sil efetivo monoplio estatal da violncia. Se verdade que o Estado brasileiro sempre enfrentou tanto o poder armado dos grupos particulares na garantia de ordem, concorrendo com as foras da ordem, quanto habitual abuso no emprego da fora f-sica na conteno repressiva dos crimes e da desobedincia civil, esse cenrio pode estar se agravando com a progressiva perda do monoplio na aplicao das sanes e das leis, inclusive no con-texto internacional de progressiva desestatizao dos controles institucionais sobre o mercado e sobre a sociedade.

    Ainda no possvel, neste estgio do conhecimento, ava-liar o quanto essa cadeia de motivaes compromete a crena dos cidados na democracia brasileira, mais propriamente na capacidade do Estado de garantir lei e ordem e ao mesmo tem-po proteger direitos humanos. Mas a hiptese no pode deixar de ser considerada quando se discute a persistncia da violncia no Brasil a despeito da legitimidade que a democracia formal adquiriu no pas na ltima dcada.

  • DILEMAS 81 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    Referncias

    ADORNO, Sergio. (1994), Crime, justia penal e igualdade jur-dica: os crimes que se contam no tribunal do jri. Revista USP, 21, pp. 133-51.

    ______. (1995), Discriminao racial e justia criminal. Novos Estudos. Cebrap. So Paulo, Cebrap, 43, pp. 45-63, nov.

    ______. (2005), Le monopole tatique de la violence: le Brsil face lhritage occidental. Cultures & Confl icts (Sociologie Politique de lInternational), n. 59, pp. 149-174.

    ADORNO, Sergio [e] PASINATO, Wnia. (2007), A justia no tempo, o tempo da justia. Tempo Social, Rev. de Sociologia da USP, 19(2), pp. 132-155.

    ASHWORTH, Andrew. (1997), Sentencing. Em: MAGUIRE, Mike; Rod Morgan e Robert Reiner. The Oxford Handbook of Criminology. 2. ed. Oxford, Clarendon Press, pp. 1095-1135.

    BENDIX, Reinhard. (1996), Estado nacional e cidadania. So Paulo, EDUSP.

    BOURDIEU, Pierre. (1999), A economia das trocas simblicas. So Paulo, Perspectiva.

    CAMPOS COELHO, Edmundo. (1986), A administrao da Jus-tia Criminal no Rio de Janeiro: 1942-1967. Dados. Revista de Cincias Sociais, vol. 29(1), pp. 61-81.

    CANO, Igncio. (2006), Mensurando a Impunidade no Sistema de justia criminal no Rio de Janeiro. Paper apresentado no Seminrio da ALACIP. Campinas: Unicamp, setembro 27p.

    ______. (s/data), Registros Criminais da Polcia no Rio de Janei-ro: problemas de confi abilidade e validade. 11p.

    CIRENO, Flavio [e] RATTON, Jose Luiz. (2008), Homicdios no fl uxo do sistema de justia criminal em Pernambuco (2003-2004). Paper preparado para o GT Crime, Violncia e Pu-nio. ANPOCS, 32. Encontro Anual, 28p.

    DAHRENDORF, Ralph. (1985; 1987), Lei e ordem. Braslia, Insti-tuto Tancredo Neves.

    DNA Paulistano/ Datafolha/ Caderno Cotidiano. 2009. Publifo-lha. So Paulo: Publifolha.

  • DILEMAS82 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato

    DOZINGER, Steven. (ed.) (1996), The real war on crime. The report of the National Criminal Justice Comission. New York, National Center on Institutions and Alternatives.

    ELIAS, Nobert. (1990), O processo civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 2v.

    FEIGUIN, Dora, BORDINI, Eliana Blumer Trindade [e] ADOR-NO, Sergio. (1990), Da (im)punio: anlise do percurso da criminalizao. Relatrio de pesquisa. out/ NEV/USP. (mimeo). 21p.

    GURR, Ted. (1989), (ed.) (1989), Violence in America. The his-tory of crime. Newbury Park, Sage Publications, v.1.

    HOBSBAWN, Eric. (1997), A era dos extremos. So Paulo, Com-panhia das Letras.

    JEFFERSON, T. [e] SHAPLAND, J. (1994), Criminal Justice: or-der and control. British Journal of Criminology, 34(3), pp. 265-290.

    LANDREVILLE, Pierre [e] PIRES, lvaro. (1985), Les recherches sur les sentences et le culte de la loi. LAnne Sociologique, 35, pp. 83-113.

    LEMGRUBER, Julita. (2001), Controle da Criminalidade: mitos e fatos. Revista Think Tank. Instituto Liberal do Rio de Ja-neiro. 28p. Disponvel na pgina eletrnica do Centro de Estudos de Segurana e Cidadania da Universidade Candi-do Mendes (CeSeC/UCAM). www.cesec_ucam.com.br

    LEVI, Margaret. (1998), Trust and governance. Nova York, Rus-sell Sage Foundation.

    LOPES, Jose Reinaldo de Lima. (2000), Direitos humanos, tra-tamento igualitrio: questes de impunidade, dignidade e liberdade. RBCS, 15(42), fev, pp. 77-100.

    MESQUITA, Paulo de. (2008), Ensayos sobre seguridad ciuda-dana. Quito, FLACSO.

    MISSE, Michel [e] VARGAS, Joana Domingues. (1997), A pro-duo decisria do sistema de justia criminal no Rio de Janeiro ontem e hoje: um estudo preliminar. Paper prepa-rado para o Seminrio Temtico Confl itualidade social, acesso justia e reformas coercitivas no sistem,a de segu-rana pblica. ANPOCS, 31. Encontro Anual, Caxambu, 2007, 22p.

  • DILEMAS 83 Sergio Adorno e Wnia Pasinato Violncia e impunidade penal

    MONET, Jean-Claude. (2001), Polcias e sociedades na Europa. So Paulo, EDUSP e NEV/USP (Srie Polcia e Sociedade, 3).

    MONJARDET, Dominique. (2002), O que faz a polcia. So Pau-lo, EDUSP e NEV/USP (Srie Polcia e Sociedade, 10).

    PAIXO, Antonio Luiz. (1988), Crime, controle social e conso-lidao da democracia. Em: ODONNELL, Guilhermo [e] Fbio Wanderley Reis. A democracia no Brasil. Dilemas e perspectivas. So Paulo, Vrtice; Editora Revista dos Tribu-nais. pp. 166-99.

    PINHEIRO, Paulo Srgio et al. (1999), Continuidade Autoritria e a Consolidao da Democracia. Relatrio Final de Pesquisa. NEV/USP-FAPESP, 828p. www.nevusp.org

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, 2005. Relatrio de Desenvolvimento Humano. Racismo, po-breza, violncia. PNUD 2005, 253p.

    PUTNAM, Robert D. (1996), Comunidade e democracia. A ex-perincia da Itlia moderna. Rio de Janeiro, Fundao Ge-tlio Vargas.

    RAINER, Robert. (1997). Policing and the police. Em: MAGUI-RE, Mike; Rod Morgan [e] Robert Reiner. The Oxford Han-dbook of Criminology. 2. ed. Oxford, Clarendon Press, pp. 997-1050.

    ______. (2004), A poltica da polcia. So Paulo, EDUSP e NEV/USP (Srie Polcia e Sociedade), 2004.

    RIBEIRO, Ludmila [e] DUARTE, Thais. (2008), Padres de seleo no processamento dos homicdios dolosos: o tempo dos ca-sos julgados pelo Tribunal de Justia do Rio de Janeiro entre os anos 2000 e 2007. Paper preparado para o GT Crime, Violncia e Punio. ANPOCS, 32. Encontro Anual, 31p.

    RIFIOTIS, Theophilus [e] VENTURA, Andresa B. (2007), Fluxo da Justia Criminal em Casos de Homicdios Dolosos na Regio Metropolitana de Florianpolis Santa Catarina (20002003). Em: VII Reunin de Antropologa del Merco-sur, 2007, Porto Alegre. VII Reunio de Antropologia. De-safi os Antropolgicos. Porto Alegre, PPGAS-UFRGS, 2007. pp. 1-19.

  • ROBERT, Philippe [e] VAN OUTRIVE, Lode. (1993), Crime et justice en Europe. tat des recherches, valuations et re-commandations. Paris, LHarmattan.

    SANDERS, Andrew. (1997), From suspect to trial. Em: MA-GUIRE, Mike; Rod Morgan [e] Robert Reiner. The Oxford Handbook of Criminology. 2. ed. Oxford, Clarendon Press, pp. 1051-1093.

    SILVA, K. (2008), Construo social dos crimes de homicdios dolosos: compreendendo fl uxo dos papis e impunidade dos indivduos a partir da anlise de tipologias. Paper pre-parado para o GT Crime, Violncia e Punio. ANPOCS, 32. Encontro Anual, Caxambu, outubro. 20p.

    SOARES, L.E. et al. (1996), Violncia e poltica no Rio de Janei-ro. Rio de Janeiro, ISER/Relume Dumar.

    SZTOMPKA, Piotr. (1999), Trust: a sociological theory. Cam-bridge; Nova York, Cambridge University Press.

    TILLY, Charles. (1975), The formation of national States in Wes-tern Europe. Princeton, Princeton University Press.

    VARGAS, Joana Domingues. (1999), Familiares ou desco-nhecidos? A relao entre os protagonistas do estupro no fl uxo do sistema de justia criminal. RBCS, 14(40), junho, pp. 63-82.

    ______. (2004), Estupro: que justia? Tese de Doutorado, IU-PERJ.

    ______. [e] RIBEIRO, L. (2008), Estudos de fl uxos do sistema de justia criminal. Paper preparado para o GT Crime, violncia e punio. ANPOCS, 32. Encontro Anual. Ca-xambu, outubro.

    WEBER, Max. (1981), A tica protestante e o esprito do capita-lismo. Braslia, UnB.

    ______. (1974), Economia y sociedad. Mxico, Fondo de Cul-tura Econmica, 2v.

    WIEVIORKA, Michel. (2004), La violence. Voix et regards. Paris, Ballard.

    ______. (2005), Penser la violence: em rponse Sergio Adorno. Cultures & Confl icts (Sociologie Politique de lInternational), n. 59, 2005, pp. 175-184.

    DILEMAS84 Violncia e impunidade penal Sergio Adorno e Wnia Pasinato