aída carla rangel de sousa (pget-ufsc) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas...
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Dilma Beatriz Juliano Organizadoras
Eliane Debus
Nelita Bortolotto
Jilvania Bazzo
VII SLIJ
II SELIPRAM
Seminário de Literatura Infantil e Juvenil
Seminário Internacional de Literatura Infantil
e Juvenil e Práticas de Mediação Literária
Linguagens poéticas
pelas frestas do contemporâneo
Florianópolis,
de 26 a 28 de setembro de 2016
ANAIS
Realização
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/CED/UFSC)
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização e Língua Portuguesa (NEPALP/CED/UFSC)
Grupo de Pesquisa sobre Literatura Infantil e Juvenil e Práticas de Mediação Literária
(LITERALISE/CED/UFSC)
Programa de Educação Tutorial – Pedagogia (PET/CED/UFSC)
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL)
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Grupo Prolinguagem
Apoio
CAPES | FAPESC | SECARTE/UFSC | PPGET/UFSC
Editora Positivo | Pulo do Gato | Paulus | Paulinas| Editora Record | Livros e Livros
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A BELA E A FERA: DOS SALÕES LITERÁRIOS PARA A
LITERATURA INFANTIL E JUVENIL
Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC)
Resumo: O presente trabalho refere-se a um recorte de nossa tese de doutorado em
andamento, na qual propomos uma tradução comentada do conto de fadas literário La Belle
et la Bête (1740) de Mme de Villeneuve, até momento, ainda desconhecido no Brasil. Aqui
apresentamos as duas versões francesas do conto, ambas publicadas no século XVIII,
procurando resgatar brevemente o contexto histórico em que foram produzidas. É sabido
que muitos contos de origem folclórica ganharam desde o final do século XVII, na França,
novos elementos que os transformaram em contos literários, mais adequados ao ambiente
dos salões aristocráticos. O tema do cônjuge-monstro explorado neste conto, por exemplo,
é encontrado em diversas narrativas pelo mundo ao longo da história, como atestado no
índice de Aerne-Thopsom. Apesar de o conto ter integrado o sistema literário francês em
1740, foi através da versão simplificada de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, em 1757,
que o conto ganhou projeção mundial e veio a se tornar um clássico da literatura infantil,
traduzido em diversos países. No Brasil, ficou conhecido com o título A Bela e a Fera. O
cotejo entre as duas versões nos auxilia no esboço de um projeto de tradução que seja
coerente com o objetivo de (re)introduzir no sistema literário brasileiro contemporâneo essa
narrativa, buscando a preservação de suas características essenciais, ao mesmo tempo em
que instiga a (re)descoberta desse conto de fadas literário por um público juvenil
contemporâneo. Tal projeto ampara-se nas reflexões de Antoine Berman a respeito da
tradução não etnocêntrica.
Palavras-chave: A Bela e a Fera. Mme de Villeneuve. Mme Leprince de Beaumont. Tradução
literária.
INTRODUÇÃO
Apresentamos aqui um recorte de nossa tese de doutorado que vem sendo realizada desde
2014 no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal
de Santa Catarina. Em síntese, traçamos um breve percurso histórico que fornece elementos para
um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740),
de Mme de Villeneuve, para o português brasileiro. Em primeiro lugar, resgatamos circunstâncias
históricas quando do surgimento do conto de fadas literário francês e da expressão “conte de fées”,
que lhe faz referência. Em segundo lugar, explicitamos as diferenças essenciais existentes entre
as duas versões francesas do conto no século XVIII – 1740 e 1757 – de Mme de Villeneuve e
Mme Leprince de Beaumont respectivamente, de maneira a esclarecer o projeto de cada uma. Por
último, justificamos algumas escolhas tradutórias ao longo do processo, com base no cotejo das
duas versões, desse conto de fadas no sistema literário brasileiro, considerando o público leitor
juvenil contemporâneo.
Cumpre notar que a escolha deste conto para a pesquisa se deu justamente porque, embora
tenhamos a impressão de estarmos familiarizados com ele, graças a traduções e adaptações
disponíveis na literatura infanto-juvenil, além de adaptações para o cinema, como as de Jean
Cocteau em 1946 e, mais tarde, dos estúdios Disney em 1991, não havia, até o momento, nenhuma
tradução brasileira do conto de 1740. Na verdade, o que se constata é que as traduções em
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português existentes procedem da versão abreviada do conto, em 1757. Também estimulou nosso
interesse o fato de se conhecer tão pouco a respeito de Mme de Villeneuve que, detentora de uma
obra de 80 títulos, escrita durante um período em que o direito das mulheres à educação formal e
ao espaço público ainda estavam sendo conquistados, deixou um vasto legado literário (COOPER,
1985). Se Mme Leprince de Beaumont ganhou notoriedade por ter vulgarizado o conto em sua
versão breve e didática, não resta dúvida de que o conto precedente, o qual apresenta um universo
feérico ricamente construído em mais de cem páginas de narrativa por Mme de Villeneuve,
tratando de temáticas universais e atemporais como o amor e a inveja, merece ser (re)descoberto.
1 O SURGIMENTO DO “CONTE DE FÉES”,
OU CONTO DE FADAS À FRANCESA
Na França, o conto de fadas havia ganhado impulso desde o final do século XVII e
conheceu duas fases de grande produção: uma de 1690 a 1715 e outra de 1730 a 1757
(BARCHILON, 1968; RAYNARD, 2002; ROBERT, 2002; SERMAIN, 2005; ZIPES, 2013),
com uma grande participação de escritoras, as chamadas conteuses, como Mme L’Héritier, Mlle
Bernard, Mlle de la Force, Mme de Murat, Mme Durand e Mme d’Auneuil (RAYNARD, 2002),
algumas das quais eram também salonnières. Já havia na França a tradição da contação de
histórias, alimentadas de motivos do folclore francês. As narrativas orais circulavam entre os
camponeses, que se reuniam com suas famílias (adultos e crianças juntos) a fim de compartilhá-
las. Muitos elementos representavam o universo árduo e inclemente da vida dos camponeses,
como o abandono dos filhos devido à penúria de alimentos, a orfandade e a figura da madrasta na
nova família, a violência, etc., misturados a elementos do universo maravilhoso, que estavam
presentes na literatura francesa desde pelo menos a Idade Média (COELHO, 2003). Esses temas
e outros motivos da tradição oral foram incorporados a narrativas mais elaboradas, tanto de forma
como de conteúdo, que transitavam nos salões literários. De acordo com alguns pesquisadores,
como Sophie Raynard (2002) e Jack Zipes (2013), a expressão “conte des fées” passou a designar
esse gênero após a publicação dos três primeiros volumes da obra Contes de fées por Madame
d’Aulnoy em 1697. No mesmo ano, Perrault, já membro da Academia Francesa de Letras,
publicou Contos da Mamãe Gansa (Histoires ou contes du temps passé or Les Contes de ma Mère
l’Oye), que se distinguia fortemente de toda a produção de contos de fadas das chamadas
“conteuses”, por manter a narrativa mais próxima de sua origem folclórica, explica Raynard.
Antes disso, Mme de Aulnoy, já havia publicado “L’île de la félicité”, considerado o primeiro
conto de fadas literário, em uma obra intitulada l’Histoire d’Hippolyte, Comte de Duglas em 1690.
Mme de Villeneuve e Mme Leprince de Beaumont foram das últimas escritoras a publicar
contos de fadas literários. Esta última retomava contos já existentes e os simplificava, sem citar
suas fontes, como aconteceu com La Belle et la Bête de Mme de Villeneuve. Já ao final do século,
a grande coletânea de contos em 41 tomos chamada Le cabinet de fées (1785-1789), organizada
por Charles Joseph Mayer, reuniu a maior parte da produção de contos, dentre os quais apenas a
versão de Mme de Villeneuve aparece no volume 26.
2 MME DE VILLENEUVE (1695?-1755), MME LEPRINCE DE BEAUMONT (1711-1780):
DUAS VERSÕES DIFERENTES DE LA BELLE ET LA BÊTE.
Consideramos o registro da maioria dos documentos a respeito de Gabrielle-Suzanne
Barbot que ela tenha nascido em La Rochelle, lugar de origem de sua família, em 1695, embora
haja dados divergentes, que registram o nascimento em Paris, 1685 (GIROU-SWIDERSKI,
1994). De família aristocrática, casou-se, em 1706, com o militar Jean-Baptiste Gallon de
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Villeneuve, que lhe deu o sobrenome. Mudou-se para Paris após a viuvez em 1711 e lá viveu de
seus escritos sob a proteção do ilustre poeta trágico M. de Crébillon, tendo falecido em sua casa
em 1755. Escreveu mais de 80 títulos, muitos deles anonimamente. Foi considerada sua obra-
prima à época um romance intitulado La Jardinière de Vincennes em 1753.
La Belle et la Bête foi publicado na coletânea La jeune amériquaine et les contes marins
em 1740, na qual uma dama de companhia relata a história de amor entre a Bela e a Fera a um
jovem casal em viagem de navio à ilha de São Domingos. Essa estrutura segue a técnica do récit-
cadre/récit-enchassé, na qual uma narrativa-moldura antecede e apresenta encaixadas outras
narrativas, mimetizando assim a transmissão oral dos contos de outrora.
O enredo principal é aquele que se tornou tão conhecido através da versão de 1757: ao
tentar obter uma rosa do castelo encantado da Fera para agradar sua filha mais nova, um mercador
é surpreendido pelo monstro e recebe como punição do monstro a entrega da moça. Para salvar a
vida do pai, Bela então parte para o castelo com a certeza de que será devorada; no entanto, a Fera
a mantém como “a única soberana” do lugar; ao final, o amor de Bela desfaz a metamorfose do
príncipe e eles vivem felizes por muito tempo. Na versão de Mme de Villeneuve, porém, múltiplos
outros episódios enriquecem a trama principal, dos quais destacamos a origem genealógica de
Bela, a explicação do encantamento da Fera, os episódios oníricos em que se revela o conflito
psicológico de Bela sobre amor e desejo.
A narrativa também é marcada pela presença das fadas, mulheres de poderes sobrenaturais
que interferem na vida dos humanos; há passagens detalhadas sobre como funciona a hierarquia
das fadas, o que elas discutem, decidem e como participam dos destinos de cada personagem. Se
lembrarmos que etimologicamente “fada” vem do latim fata, que significa “oráculo”, “predição”,
derivada de fatum, que significa “destino, fatalidade” (COELHO, 2003), percebemos a força
simbólica dessa presença, perante o racionalismo crescente e tradição patriarcal da sociedade
francesa do século 18.
Outro aspecto que importa frisar é que Mme de Villeneuve escreveu essa versão para seus
pares em plena moda dos salões parisienses, onde os contos de fadas literários foram gestados
desde o século anterior, com Mme de Aulnoy. Ou seja, seu público-alvo era principalmente moças
e mulheres da aristocracia francesa. O conto preserva a estética preciosa, quanto à forma, na
utilização de um estilo rebuscado, figuras de linguagem vinculadas à amplificação e extravagância
que permitem tratar os eventos maravilhosos (“une beauté surnaturelle”), à hipérbole lexical
(“terrible”, “effroyable”, advérbios em -ment) e descritiva. Dessa forma, torna o luxo ainda mais
exagerado e praticamente inalcançável no mundo real. Quanto ao conteúdo, um dos principais
elementos é a idealização do amor, não sem o tom moralizante que permeia todo o conto,
conforme destaca Barchilon (1968). Por outro lado, com sutileza, Mme de Villeneuve, constrói
uma protagonista forte, resiliente e bem instruída, amante dos livros, da música, dos melhores
espetáculos de ópera e do teatro, como oferecidos na “cidade mais bela do mundo”
(VILLENEUVE, 1996, p. 57). Também é sutil o erotismo do conto, em que a Fera pede para
“deitar-se” com Bela todas as noites, convite que ela recusa e somente aceita quando se casa com
o monstro. Além disso, apesar de viver com a Fera, ela deseja a companhia do belo
“Desconhecido” que aparece em seus sonhos sem saber que aquela é a figura do príncipe livre da
metamorfose.
Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, por sua vez, engendrou um projeto diferente, apenas
17 anos após a publicação da primeira versão do conto, sem que tenha mencionado sua existência.
Nascida em Rouen, ela ficou órfã de mãe e seguiu para um convento aos 11 anos, onde se formou
educadora cristã. Casou-se duas vezes: a primeira, com o oficial Antoine Grimard de Beaumont,
e a segunda vez em Londres com Thomas Pichon-Tyrrel, com quem teve seis filhos
(BIANCARDI, 2008). Na capital inglesa trabalhou como governanta de jovens nobres inglesas e
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publicou sua versão do conto no célebre Magasin des Enfants em 1757, projeto didático destinado
a instruir meninas e moças. À maneira de Mme de Villeneuve, a técnica da narrativa-moldura
também é empregada, e, nessa versão, a narradora é Mlle Bonne, uma instrutora que dá lições de
conduta social e de conteúdo escolar às suas pupilas. Ali, o conto é fortemente encurtado e
adaptado ao formato dessa revista feita para instruir. Como resultado, a linguagem é simplificada,
os episódios múltiplos são eliminados, e apenas o enredo principal é resumido e narrado de
maneira linear. Muitas marcas culturais da versão que lhe antecede estão ausentes, assim como
as referências espaço-temporais; os personagens são caracterizados apenas por alguns adjetivos,
como é típico do gênero. Não há conflito interno de Bela ou de qualquer outro personagem, muito
menos qualquer sinal de erotismo, pois para a autora trata-se de um conto moralizante. A ideia do
casamento tradicional do sistema patriarcal e cristão à época é mantida. A Fera pede a mão de
Bela em casamento, e a união acontece ao final do conto.
Em seu cotejo das duas versões, Paul Remy (1957) conclui que “o conto de Mme Leprince
de Beaumont é: 1°) mais simples, mais concreto, mais próximo da realidade cotidiana; 2°) mais
deliberadamente moralizante; 3°) mais conciso.”
De nossa parte, resumimos as diferenças mais marcantes entre as duas versões conforme o
quadro abaixo:
Quadro 1: diferenças essenciais entre as duas versões francesas do conto de fadas literário La Belle et la Bête.
O conto de Mme Leprince de Beaumont (1757) O conto de Mme de Villeneuve (1740)
•Obra: Magasin des enfants ou dialogues d’une sage
gouvernante avec ses élèves (1756/1757);
•Público: infantil feminino inglês;
•Volume: conto curto com cerca de 20 páginas;
•Moralidade cristã predominante, ausência de erotismo;
•Ausência de conflitos internos e descrição dos personagens;
•Linearidade temporal;
•Indeterminação espacial;
•Presença atenuada de fadas; o “maravilhoso” do conto é
atenuado em detrimento do tom moralizante;
•A exuberância e a extravagância são atenuadas;
•Simplificação da narrativa: forma (ritmo, sintaxe, léxico) e
conteúdo (trama curta, censura, pouca ênfase em assuntos
como o amor galante).•Obra: La jeune amériquaine et les
contes marins (1740);
•Público: jovens moças e mulheres aristocratas;
•Volume: conto longo de quase 200 páginas;
•Presença de erotismo concomitantemente à moralidade cristã;
•Conflitos internos de Bela;
•Ruptura da linearidade temporal (inserções oníricas, volta à
origem dos protagonistas);
•Narrativa datada; marcas culturais da época (e.g. topônimos
referentes à Paris);
•Presença marcante do mundo das fadas; o “maravilhoso” é
bem explorado, apesar de certo tom moralizante;
•Presença de figuras de linguagem vinculadas à amplificação e
extravagância, como a hipérbole;
•Estilo rebuscado, ritmo lento, frases longas.
3 ALGUMAS ESCOLHAS TRADUTÓRIAS PARA
UM PÚBLICO-LEITOR BRASILEIRO JUVENIL CONTEMPORÂNEO
Vários são os desafios de traduzir a versão de Mme de Villeneuve para o sistema literário
brasileiro contemporâneo. A primeira questão que se coloca é: propor ou não uma tradução
arcaizante e que grau de arcaísmo usar: léxico em desuso, manter a sintaxe com estrutura de frases
longas, manter pontuação anacrônica? Outra questão seria que público-alvo escolher a fim de
resolver o erotismo presente no conto? Além disso, que aspectos mais relevantes do estilo de
Mme de Villeneuve privilegiar? Sem dúvida, merecem atenção as figuras de linguagem que
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favorecem a exuberância, e que na versão de Leprince de Beaumont aparecem atenuadas, pois
esta prioriza o tom moralizante no conto e reduz o efeito do “maravilhoso”, algo que para ela
podia ser pernicioso às crianças (BIANCARDI, 2008). Estas são algumas das questões que nos
levaram a refletir sobre o projeto de tradução (BERMAN, 1995), na medida em que procuramos
respeitar as particularidades do texto, sobretudo no que concerne a estética preciosa desse conto
de fadas literário, à luz das reflexões sobre tradução não etnocêntrica de Antoine Berman (2013).
Assim, por falta de espaço para discussão de todos esses itens no presente trabalho, procuramos
apenas delinear algumas ideias do projeto de tradução em andamento, através de alguns trechos
exemplificadores.
Por exemplo, no tocante ao ritmo, conciso em uma, expandido em outra, desde o incipit:
La Belle et la Bête (Mme Leprince de Beaumont)La Belle et la Bête (Mme de Villeneuve)Nossa
tradução
« Il y avait une fois un marchand, qui était extrêmement riche. »
(BEAUMONT, 2011, p. 20)« Dans un pays fort éloigné de celui-ci, l’on voit une grande ville, où le
commerce florissant entretient l’abon-dance. Elle a compté parmi ses citoyens un marchand heu¬reux
dans ses entreprises, et sur qui la fortune, au gré de ses désirs, avait toujours répandu ses plus belles
faveurs. »
(VILLENEUVE, 1996, p. 13)Em um país muito distante daqui, existe uma grande cidade onde o
comércio prospera abundantemente. Havia entre seus cidadãos um mercador bem-sucedido em seus
negócios, e para quem a Fortuna, em resposta aos seus desejos, havia concedido seus melhores favores.
Na abertura da narrativa, percebe-se claramente que Mme Leprince de Beaumont prioriza
a linguagem simplificada na breve introdução do mercador, enquanto a narração da primeira
versão apresenta o mercador por um processo de afunilamento, do espaço maior para o menor,
até que focaliza no mercador: primeiramente um país, depois uma cidade, os cidadãos, e então
aquele homem, aqui já privilegiado por uma figura feminina, a Fortuna, que não é fada, mas uma
figura mitológica com o poder de conceder dons ou favores aos humanos. As referências à
mitologia são, aliás, recorrentes na versão de Mme de Villeneuve. Escolhemos manter o ritmo da
versão de 1740, tanto quanto possível, pela riqueza de detalhes que acrescenta. Também é possível
notar desde já o emprego de elementos hiperbólicos (“muito distante”, “grande cidade”,
“abundantemente”, “melhores favores”) em um parágrafo curto.
A hipérbole também é amplamente utilizada em descrições espaciais, como a primeira vista
do castelo:
La Belle et la Bête (Mme Leprince de Beaumont)La Belle et la Bête (Mme de Villeneuve)Nossa
tradução
Tout d’un coup, en regardant au bout d’une longue allée d’arbres, il vit une grande lumière, mais qui
paraissait bien éloignée. Il marcha de ce côté-là, et vit que cette lumière sortait d’un grand palais qui
était tout illuminé. Le marchand remercia Dieu du secours qu’il envoyait, et se hâta d’arriver á ce
château; (…) et marcha vers la maison, où il ne trouva personne; mais étant entré dans une grande salle,
il y trouva un bon feu (…). (BEAUMONT, 2011, p. 23)En avançant sans le savoir, le hasard conduisit
ses pas dans l’avenue d’un très beau château, que la neige avait paru respecter. Elle était composée de
quatre rangs d’orangers d’une extrême hauteur, chargés de fleurs et de fruits. (…)Un escalier d’agate à
rampe d’or ciselé, d’abord s’offrit à sa vue: il traversa plusieurs chambres magnifiquement meublées,
une chaleur douce qu’il y respira le remit de ses fatigues. (VILLENEUVE, 1996, p. 22)Avançando sem
sabê-lo, o acaso conduziu seus passos por uma alameda de um castelo muito belo, que a neve parecia
ter respeitado. Era composta de quatro filas de laranjeiras extremamente altas, carregadas de flores e
frutos. [...]Uma escadaria de ágata, com corrimão de ouro talhado, se ofertou à sua vista: ele atravessou
vários cômodos magnificamente mobiliados, um calor suave que sentia ali o fez restabelecer-se do
cansaço.
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Sendo esta a primeira vez que se avista o castelo da Fera, a narrativa conduz o leitor junto
ao mercador pelo caminho. Na versão de Mme de Villeneuve, tudo é abundante e com riqueza de
detalhes, as árvores do caminho são “extremamente altas e carregadas”, os detalhes do rico castelo
estão presentes. Na versão de Leprince de Beaumont, a descrição é mais próxima da realidade,
como dizia Paul Remy. Os adjetivos são de grandeza, porém, sem exagero: “uma longa alameda”,
“um grande palácio” que ganha uma dimensão ainda mais próxima do mundo real (“la maison”).
Dentro do palácio, “uma grande sala” e um “bom fogo”. Os adjetivos são repetidos, há pouca
variação lexical (e.g., “grand”), enquanto na versão de Villeneuve, há emprego de estratégias
variadas além dos adjetivos, como os advérbios formados com o sufixo –ment (e.g.,
“magnificamente”) e o detalhamento descritivo. Em um gesto do mercador, aparece o elemento
cristão na versão de Leprince de Beaumont, que está ausente no trecho de Villeneuve: “O
mercador agradeceu a Deus do socorro que lhe enviara”. Não é mais o maravilhoso, a mágica que
explicam os fatos, mas sim a religião (BIANCARDI, 2008).
É importante ressaltar que o hábito da contação de histórias era compartilhado por adultos
e crianças indistintamente até o séc. XIX. Embora os contos não fossem destinados a elas, as
crianças tinham participação no mundo dos adultos e, portanto, tinham acesso a eles. Conforme
os hábitos foram modificando-se e se tornando mais refinados, principalmente nas classes mais
privilegiadas, os contos populares foram sendo segregados às classes mais desfavorecidas. De
maneira que os contos populares não foram completamente excluídos das classes dominantes,
mas transformados. É o que Raymonde Robert (2002) chama de conto de fadas literário. Zohar
Shavit (1999) considera também que apesar de ter havido a moda dos contos de fadas, eles
estavam vinculados mais às classes mais pobres e às crianças, percebidas como fonte de
divertimento para os adultos. Quando a percepção sobre o conceito de criança mudou, os textos
começaram a ser destinados a elas e também sofreram mudanças na maneira como foram sendo
escritos. De certa forma, é o que ocorre com a versão escrita por Mme Leprince de Beaumont.
Sem dúvida, é preciso reconhecer o pioneirismo de Mme Leprince de Beaumont em ter escrito
exclusivamente para crianças, em um período em que a noção de infância ainda não estava bem
estabelecida e a literatura infantil não existia. Shavit (1986) aponta para o caráter ambivalente da
literatura infantil, ou seja, ela pode ser lida tanto pelas crianças quanto pelos adultos. Porém,
acreditamos que a versão escrita por Mme de Villeneuve não pode ser reconhecida como
ambivalente justamente porque, embora a noção de infância não estivesse bem delimitada à época,
fica claro que a autora escrevia para as mulheres, sobretudo quando nos deparamos com a
presença do erotismo, ainda que sutil, como no trecho a seguir:
La Belle et la Bête (Mme Leprince de Beaumont)La Belle et la Bête (Mme de Villeneuve)Nossa
tradução
« La Belle soupa de bon appétit. Elle n’avait presque plus peur du monstre; mais elle manqua mourir
de frayeur, lorsqu’il lui dit:
« La Belle, voulez-vous être ma femme? »
« Elle lui demanda sans détour si elle voulait la laisser coucher avec elle. À cette demande imprévue,
ses craintes se renouvelèrent, et pous¬sant un cri terrible, elle ne put s’empêcher de dire: Ah Ciel! je
suis perdue.
Nullement, reprit tranquillement la Bête. »Sem rodeios, indagou se a jovem a deixaria deitar-se com
ela. Diante dessa demanda inesperada, seus temores retornaram, e com um terrível grito, ela não se
conteve ao dizer: Ah, Céus! Estou perdida.
De modo algum, retomou a Fera tranquilamente.
Os trechos acima se referem à primeira demanda da Fera de se relacionar maritalmente com
Bela, o que ela responde negativamente nessa e noutras vezes. Nota-se a neutralidade da pergunta
na versão moralizante, enquanto na versão de Villeneuve, há uma ambiguidade na expressão
“coucher avec” que, de fato, pode designar a conjunção carnal, mas também no sentido literal
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torna-se neutra. A expressão torna-se tanto mais ambígua quando ao final do conto, a Fera
finalmente é aceita por Bela e deita-se ao seu lado no leito nupcial e dorme serenamente, sem que
de fato aconteça mais nada. Ao se valer dessa ambiguidade, Mme de Villeneuve parece sinalizar
para o público adulto e feminino a mensagem de que a união com o cônjuge deve ser consentida
pela mulher. Portanto, a tradução por “deitar” reflete, a nosso ver, essa ambiguidade no trecho
citado.
CONCLUSÃO
Tentamos, neste trabalho, resgatar alguns dados históricos a respeito do conto de fadas
literário, em especial, do conto intitulado La Belle et la Bête, escrito por Mme de Villeneuve em
1740 e, mais tarde, retomado e adaptado por Mme Leprince de Beaumont em 1757. Por se tratar
de duas versões destinadas a públicos diferentes, procuramos apontar diferenças essenciais entre
elas, para refletir, em primeiro lugar, sobre as manipulações operadas no texto por Leprince de
Beaumont de maneira a didatizá-lo, e, em segundo lugar, para utilizar os dados encontrados na
elaboração de um projeto de tradução coerente com o objetivo de manter as características
essenciais da estética preciosa no conto de Mme de Villeneuve, notadamente no amplo uso de
elementos que favorecem o exagero, a exuberância, através de um efeito “maravilhoso”, mágico,
próprio do gênero. Os trechos apresentados serviram para exemplificar alguns desses aspectos e
sobre como pensamos nosso projeto de tradução conduzido no trabalho da tese em andamento,
considerando um público-alvo juvenil e adulto contemporâneo.
REFERÊNCIAS
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BERMAN, A. A prova do estrangeiro. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002.
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ROBERT, R. Le conte de fées littéraire en France de la fin du XVIIe à la fin du XVIIIe siècle. Paris:
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