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Terapia Nutrológica Enteral (TNE) para pacientes adultos
Guilherme T. Araújo, Me, MBA, MD
1. Introdução
A Resolução nº 63 -‐ 06 de julho de 2000 da Sec. Vig. San. -‐ M.S define nutrição enteral como
“Alimento para fins especiais, com ingestão controlada de nutrientes, na forma isolada ou
combinada, de composição definida ou estimada, especialmente formulada e elaborada para uso
por sondas ou via oral, industrializado ou não, utilizado exclusiva ou parcialmente para substituir
ou complementar a alimentação oral em pacientes desnutridos ou não, conforme suas
necessidades nutricionais, em regime hospitalar, ambulatorial e domiciliar, visando a síntese ou
manutenção dos tecidos, órgãos ou sistemas”.
2. Indicação
Sempre que há indicação de instituição de uma terapia nutrológica, a via enteral é sempre
preferida, por ser mais barata, ter menor incidência de complicações ameaçadoras à vida, menor
incidência de complicações biliares e hepáticas, ser mais fisiológica e ,teoricamente, preveniria a
translocação bacteriana. A figura 1 demonstra o fluxograma para escolha da melhor via de
administração da terapia nutrológica.
Figura 1: Fluxograma para escolha da melhor via de administração da terapia nutrológica
De forma geral, são indicações para uso da terapia nutrológica enteral (TNE):
• Pacientes que não satisfazem suas necessidades nutricionais com a alimentação
convencional;
• Que possuam a função do trato intestinal parcial ou totalmente íntegra;
• Desnutrição energético-‐proteica com diminuição da ingestão oral por pelo menos 7 dias;
• Diminuição da ingestão oral por 10 dias;
• Disfagia grave;
• Ressecção maciça de intestino delgado (em combinação com nutrição parenteral total);
• Fístula enterocutânea de baixo débito (< 500 ml/dia) .
3. Contraindicações
Apesar de poucas, existem algumas circunstâncias em que o uso da TNE encontra-‐se
contraindicada, a citar:
• Obstrução intestinal;
• Vômitos ou diarreia refratários ao tratamento médico;
• Síndrome do intestino curto grave (menos que 100 cm de intestino delgado
residual);
• Íleo paralítico;
• Sangramento grave do trato gastrointestinal;
• Má-‐absorção intestinal grave;
• Inviabilidade de acessar o trato digestivo
• Necessidade de aguardar acesso ao trato digestivo por mais que 5 a 7 dias em
pacientes desnutridos ou 7 a 9 dias em pacientes eutróficos;
• Não desejo do paciente ou de seus guardiões legais.
4. Classificação das dietas enterais
As dietas enterais podem ser classificadas de acordo com:
• Grau de complexidade (grau de hidrólise dos componentes da dieta):
o Dieta polimérica (sem processo de hidrólise)
o Dieta oligomérica (parte dos macronutrientes são hidrolisados facilitando sua
absorção)
o Dieta monomérica ou elementar (os nutrientes encontram-‐se totalmente
hidrolisados)
• Especialização: algumas dietas são especializadas para condições clínicas ou patologias
específicas, como diabetes mellitus, nefropatia em tratamento dialítico.
• Osmolaridade: podem ser divididas de acordo com a concentração das partículas
osmoticamente ativas na solução:
o Dieta Isotônica: ≤ 350 mOsm/L
o Dieta Moderadamente Hipertônicas: 350 -‐ 550 mOsm/L
o Dieta Hipertônica: ≥ 550 mosm/L
• Fornecimento da macro e micronutrientes:
o Dietas nutricionalmente completas
o Dietas nutricionalmente incompletas ou suplementos alimentares
o Módulos (fornecem apenas um tipo de macro ou micronutriente)
• Densidade calórica:
o Dieta hipocalórica: < 1,0 cal/ml
o Dieta Normocalórica: 1,0 cal/ml
o Dieta Hipercalórica: ≥ 1,5 cal/ml
5. Vias de administração
Uma vez que o paciente seja identificado como candidato ao uso de TNE, é necessário a
escolha da via de administração da mesma. O primeiro passo é decidir se a dieta enteral será
infundida por via gástrica ou pelo intestino delgado. De uma forma geral, a via gástrica é sempre
preferida a não ser que haja risco de aspiração. A tabela 1 cita os riscos de aspiração onde a via
intestinal deve ser preferida.
Tabela 1: Fatores de risco para broncoaspiração
ü Diminuição do nível de consciência ü Diasfagia (enfermidade neurológica, esofágicas, etc) ü Antecedente de broncoaspiração prévia ü Refluxo gastroesofágico importante ü Alteração do esvaziamento gástrico ü Gastroparesia
Outro aspecto importante é a decisão de manter uma via de acesso provisória ou
definitiva, através de uma estomia. Como regra geral, aqueles pacientes que utilizam ou possuem
previsão de utilizar sonda para TNE por mais de 8 semanas são candidatos à confecção de uma
via definitiva (estomia).
Apesar das sondas enterais serem mais comumente passadas por via nasal, a via oral
pode ser indicada em pacientes com cirurgia ou trauma envolvendo a face. Além disso, a
passagem por via oral diminui os riscos de desenvolvimento de sinusite e otite média associados
à TNE.
É mandatório a confirmação de posicionamento da sonda antes de se iniciar a infusão da
TNE. A confirmação pode ser feita por pHmetria do fluido retirado da sonda, fluoroscopia, raio-‐x
simples e ausculta de borborigmos causados pela infusão de ar pela sonda. De qualquer forma, a
verificação através de radiografias continuam sendo a melhor opção.
6. Técnicas de administração
6.1. Sistema aberto Vs sistema fechado
As dietas enterais podem ser administradas por um sistema aberto (onde a dieta é
manipulada e envasada) ou sistema fechado (dieta industrializada em que não há manipulação).
Apesar do sistema fechado ser mais caro por unidade de dieta, ele possui menor risco de
contaminação e dispensa um local apropriado para a manipulação das dietas, que porventura
pode aumentar os custos no fim do processo.
6.2. Infusão contínua Vs intermitente
A dieta enteral pode ser infundida de maneira contínua, através de uma bomba de infusão
(mais adequado) ou por gotejamento gravitacional, ou de maneira intermitente através de bolus,
bomba de infusão ou ainda gotejamento gravitacional.
Em termos de melhor desfecho clínico, a infusão in bolus, apesar de mais barata, está mais
associada à complicações gastrointestinais como vômitos e maior resíduo gástrico, entretanto os
estudos não demonstram diferença entre a infusão contínua ou intermitente, apesar que a
maioria dos artigos demonstram um maior volume infundido de maneira contínua que de
maneira intermitente.
7. Como prescrever
É importante que cada instituição crie seu protocolo de infusão de dieta. A seguir citamos as
maneiras mais usuais utilizadas.
7.1. Infusão in bolus
A infusão da dieta pode ser adaptada para os horários padrões de alimentação. Geralmente
são utilizadas seringas, bem higienizadas, de alto volume sendo ofertado volumes entre 240 a
480 ml por refeição, com duração de 10 a 15 minutos cada infusão.
Geralmente inicia-‐se com metade do alvo total de volume que se deseja infundir,
progredindo 25% a cada 1 ou 2 dias, dependendo da aceitação do paciente.
7.2. Infusão de dietas envasadas
No mercado existem envases de volume máximo de 300 e 500 ml. Estas dietas devem ser
manipuladas em um lactário conforme recomendação da Vigilancia Sanitária ou em casa, em um
ambiente mais higiênico possível, para evitar contaminações.
As dietas envasadas podem ser infundidas através de gotejamento gravitacional ou por
bomba de infusão.
De uma maneira geral, quando infundidas de maneira intermitente, inicia-‐se com 50 ml a
cada 03 horas 06 vezes ao dia, deixando-‐se 06 horas de repouso que podem ser usadas para
realização de exames, banho, etc. A cada 1 ou 2 dias progride-‐se o volume de cada horário até
atingir-‐se o volume final desejado.
Quando infundido através de bomba de infusão, usualmente, inicia-‐se com uma velocidade
de infusão de 20 a 30 ml/h, progredindo-‐se 10 a 20 ml/h a cada 4 a 8 horas, de acordo com a
tolerabilidade do paciente, até atingir a meta de volume.
7.3. Infusão de dietas em sistema fechado
As dietas em sistema fechado são melhor infundidas em bomba de infusão porém também
podem ser manejadas em gotejamento gravitacional, em que o método de início e progressão é o
mesmo descrito acima.
8. Complicações
As complicações relacionadas à TNE são mais frequentes que as relacionadas à terapia
nutrológica parenteral, porém tendem a ser menos graves. Podem ser divididas em infecciosas,
metabólicas, gastrointestinais e mecânicas.
8.1. Complicações mecânicas
Uma das complicações mecânicas mais frequentes é a obstrução da sonda. Isto pode ocorrer
pela viscosidade da dieta infundida, a administração de fármacos em conjunto da dieta ou pelo
pequeno calibre do lúmen da sonda. Uma maneira para se prevenir a obstrução da sonda é a
administração regular de água pela sonda, da preferencia à administração oral das medicações e
caso isto não seja possível, administrar abundantemente água antes e após a administração da
medicação suspendendo a infusão da dieta durante o procedimento.
Outra complicação mecânica é a necrose de aba nasal ou sinusite, que podem ser evitadas
passando-‐se a sonda enteral por via oral, realizando rodizio do lado de posicionamento da sonda
e indicando precocemente estomias para aqueles pacientes que possuem previsão de uso de
sonda maior que 8 semanas.
8.2. Complicações infecciosas
As complicações infecciosas que podem ocorrer relacionados à TNE são contaminação da
dieta enteral utilizada, que pode ser evitada utilizando-‐se dietas com sistema fechado ou
realizando controles de prevenção rigorosos nos lactários de preparo das dietas, e pneumonia
aspirativa.
A pneumonia aspirativa pode ser prevenida permanecendo a cabeceira do paciente em um
ângulo de 30 a 45°, indicando-‐se estomias precoces nos pacientes com previsão de uso de sonda por mais que 8 semanas, assegurar-‐se do posicionamento pós-‐pilórico da sonda em pacientes
com risco de broncoaspiração e evitar excesso de resíduo gástrico.
8.3. Complicações metabólicas
As complicações metabólicas da TNE geralmente associam-‐se ao quadro nosológico do
paciente. As mais frequentemente encontradas são desidratação, hipo/hiperglicemia,
hiponatremia, hipocalemia, déficits de vitaminas e oligoelementos e síndrome de realimentação.
A síndrome de realimentação é uma condição potencialmente fatal, caracterizada por
hipofosfatemia, hipocalemia, hipomagnesemia, acidose, aumento do volume intravascular,
hiperinsulinemia e hipoglicemia. A hipoinsulinemia crônica, observada em pacientes
subnutridos, determina um aumento compensatório na expressão de receptores insulínicos. Por
outro lado, a oferta de carboidratos estimula a produção de insulina, que promove o influxo de
carboidratos para o intracelular, carreando consigo o fósforo, o potássio e o magnésio, além de
determinar efluxo de íons H+ e aumento da síntese proteica. A hipofosfatemia extracelular ocorre
devido à depleção dos estoques de fósforo corporal total decorrentes da subnutrição e ao
aumento do influxo de fósforo durante a realimentação. A etiologia da hipomagnesemia e da
hipocalemia é semelhante àquela da hipofosfatemia e a deficiência de tiamina deve-‐se à carência
crônica associada, principalmente, ao rápido consumo dessa vitamina na glicólise. Em
consequência da deficiência de tiamina, o metabolismo da glicose fica alterado (reação que
envolve a piruvato desidrogenase), com subsequente acidose láctica. Pode ocorrer após terapia
nutrológica enteral ou parenteral em grupos de pacientes propensos, como os gravemente
subnutridos por neoplasias, doença inflamatória intestinal, síndrome do intestino curto, fístulas
intestinais, anorexia nervosa, alcoolismo crônico, além dos idosos e em pacientes submetidos ao
jejum prolongado.
8.4. Complicações gastrointestinais
As complicações gastrointestinais são as mais frequentes relacionadas à TNE. Dentre elas
podemos citar:
• Náuseas e vômitos: ocorre entre 12 e 20% dos pacientes que recebem TNE e aumenta o
risco de pneumonia aspirativa. Algumas causas potenciais são hipotensão, sepse,
neoplasias gástricas, medicações (anestésicos, opioides, anticolinérgicos, infusão rápida
da dieta enteral, infusão da dieta enteral em baixa temperatura ou contendo grande
quantidade de gordura);
• Diarreia: a definição de diarreia consiste em evacuações líquidas com volume maior que
500 ml a cada 8 horas ou mais que 3 evacuações líquidas diárias por dois dias
consecutivos. As principais causas são medicações (antibióticos, medicamentos que
contem sorbitol em sua base), infecção (C. difficile, por exemplo), intolerância às
características da fórmula enteral (osmolaridade, conteúdo lipídico) ou de componentes
específicos (lactose).
• Constipação: é difícil a definição de constipação em pacientes recebendo TNE pois a
variação normal de defecação pode ser de 4 evacuações ao dia a uma evacuação a cada 4
ou 5 dias, portanto a definição de constipação associada à TNE deve ser individualizada.
9. Exemplos de dietas enterais industrializadas
Abaixo listamos aguns tipos de dietas enterais industrializadas encontradas no mercado:
Tabela2: Exemplos de dietas enterais industrializadas
Dieta Marca Kcal/mL g de ptn/L Osm Características
Fresubin Original Fibre Frisenius Kabi
1.0 38 250 Betacaroteno + colina
Fresubin Original Frisenius Kabi
1.0 38 250 Betacaroteno + colina
Fresubin HP Energy Frisenius Kabi
1.5 75 300 Betacaroteno + colina
Fresubin Energy Fibre Frisenius Kabi
1.5 56 310 Betacaroteno + colina
Fresubin Energy Frisenius Kabi
1.5 56 330 Betacaroteno + colina
Survimed OPD Frisenius Kabi
1.0 45 400 Semi-‐elementar com glutamina
Osmolite Plus RTH Abbott 1,2 55 295 -‐
Perative Abbott 1.3 66,6 304 Semi-‐elementar com arginina
Alitraq Abbott 1.0 52,7 480 Semi-‐elementar com arginina e glutamina
Replena Abbott 2.0 30 427 Pobre em P, Mg, vit. A e D. Com 10% de sacarose
Glucerna Abbott 1.0 42 320 19% de frutose
Isosource STD Nestlé 1.2 44 360 52% de TCM, 12% de ptn de soja
Isosource 1.5 Nestlé 1.5 68 650 Com sacarose
Isosource Soya Nestlé 1.22 44 360 100% de ptn de soja
Peptamen Prebio Nestlé 1.0 40 270 Semi-‐elementar com 70% de FOS + 30% de inulina
Peptamen UTI Nestlé 1.52 94 490 Semi-‐elementar com arginina, glutamina, vit. A e C e ω-‐3
Dieta Marca Kcal/mL g de ptn/L Osm Características
Impact Nestlé 1.0 56 375 Com arginina, ω-‐3 e RNA
Novasource Renal Nestlé 2.0 74 960 Sem sacarose
Nutrison STD Danone 1.0 40 265 -‐
Nutrision Energy Plus Danone 1.5 60 385 -‐
Peptison Diet Danone 1.0 40 455 Semi-‐elementar com 50% de TCM
Diason Danone 1.0 42 328 19% de frutose
Cubison Danone 1.0 55 315 Com arginina, 51% de fibras insoluveis
Hepato Diet Danone 1.25 33 365 38% de AACR
10. Estudo de caso
Paciente masculino, 53 anos, apresenta-‐se com desconforto abdominal e vômitos nos últimos
4 meses. Ele iniciou com epigastralgia pós-‐prandial que vem evoluindo progressivamente até
para líquidos no momento. Atualmente ele faz uso apenas de um a dois packs de suplemento
nutricional por dia, engolindo vagarosamente.Ele mede 1,76 m e pesa atualmente 55 kg (seu peso
habitual é 70,3 kg).
Realizado endoscopia digestiva alta (EDA) que revelou uma grande úlcera na junção esôfago-‐
gástrica, que posteriormente a biópsia confirmou se tratar de um adenocarcinoma grau 2/3. O
estadiamento não demonstrou lesões à distancia. A programação terapêutica é composta
inicialmente de radioterapia.
Seus exames laboratoriais demosntravam albumina de 2,6 g/dL, sódio de 146 mEq/L, ureia
de 58 mg/dL, creatinina, potássio, magnésio e fósforo encontravam-‐se dentro dos valores de
normalidade.
Sobre o caso acima discuta:
1. Qual seria a terapia nutrológica e a via de acesso mais indicada para este paciente?
2. Calcule a quantidade a ser ofertada e explique como você iniciaria e progrediria a terapia
nutrológica deste paciente.
3. No terceiro dia de terapia nutrológica este paciente apresentou hipotensão sendo levado
à UTI onde foi diagnosticado uma disritmia ventricular do tipo Torsades de pointes. Qual
a sua hipótese diagnóstica e como você espera que esteja os exames laboratoriais neste
momento?
11. Bibliografia recomendada o A.S.P.E.N. Board of Directors and Standards Committee. American Society for Parenteral
and Enteral Nutrition. Definition of terms, style, and conventions used in A.S.P.E.N. guidelines and standards. Nutr Clin Pract. 2005;20:281–285.
o Scolapio JS. A review of the trends in the use of enteral and parenteral nutrition support. J Clin Gastroenterol. 2004;38:403–407.
o Lord L, Harrington M. Enteral nutrition implementation and management. In: Merritt R, ed. The A.S.P.E.N.
o Nutrition Support Practice Manual. 2nd ed. Silver Spring, MD: American Society for Parenteral and Enteral Nutrition; 2005:76–89.
o Machado JDC, Suen VMM, Chueire FB et al. Refeeding syndrome, an undiagnosed and forgotten potentially fatal condition. British Medical Journal, 2009a.