abilio de nequete: os múltiplos caminhos de uma militância operária -

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  • 8/8/2019 Abilio de Nequete: os mltiplos caminhos de uma militncia operria -

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    ABLIO DE NEQUETE (1888-1960):OS MLTIPLOS CAMINHOS DEUMA MILITNCIA OPERRIA

    Artigo

    Frederico Duarte Bartz*

    Abstract:

    Ablio de Nequete was an importantmilitant of the Brazilian working classmovement. He participated of the greatmobilizations of 1917 in Porto Alegre,adhering to the ideals of the RussianRevolution and establishing the UnioMaximalista in 1918, one of the firstnucleus of the PCB, participating also inthe foundation of the Partido Comunistain 1922. Nequete was also an orthodoxchristian, a republican, a spiritist andwhen he left the working-classmovement, he created a political theoryof his own, the technocracy and itscorresponding religion, the evidentism.Studying his trajectory, I hope tounderstand more about the many waysof a militancy and the many possibilitiesof action of the working class too.

    Keywords: biography, militancy,communism.

    Resumo:

    Ablio de Nequete foi um importantemilitante do movimento operriobrasileiro. Participou das grandesmobilizaes de 1917 em Porto Alegre,aderindo aos ideais da revoluo russae fundando a Unio Maximalista em 1918,um dos primeiros ncleos do PCB, almde participar da fundao do PartidoComunista em 1922. Nequete foi tambmortodoxo, republicano, esprita e,quando saiu do movimento operrio,criou uma teoria poltica prpria,a tecnocracia, e uma religiocorrespondente, o evidentismo.Estudando sua trajetria, esperocompreender mais sobre os diversoscaminhos de uma militncia e tambm asdiversas possibilidades de ao daclasse operria.

    Palavras-chave: biografia, militncia,comunismo.

    HISTRIA SOCIAL Campinas SP NO 14/15 2008157173

    * Mestre em histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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    Ablio de Nequete foi um destacado militante do movimento operriogacho. Imigrante libans, barbeiro de profisso, se destacou por ter fundadoum dos primeiros grupos que dariam origem ao PCB e tambm por ter sido oprimeiro Secretrio Geral do Partido Comunista do Brasil. A trajetria de Nequete,entretanto, no se resume a estes fatos, pois ele foi tambm mascate e professorda Escola de Comrcio; foi ortodoxo, esprita e evidentista; foi republicano,maximalista e criou a tecnocracia, ou seja, sua vida foi marcada por mltiploscaminhos, assim como sua militncia, o que resultou em uma apreenso bastante

    contraditria da figura de Ablio de Nequete. Alguns o consideraram um homemconfuso, um ingnuo ou mesmo um farsante. De forma muito diferente, o prprioNequete tentou fazer um balano da sua trajetria, quando escreveu suasmemrias nos anos 40, mas nestas no havia contradies, sendo sua trajetriacompreendida como uma evoluo contnua at formas melhores de conscincia.

    No meu objetivo aqui tentar descobrir o verdadeiro Ablio de Nequete,nem desmentir ou confirmar as verses que foram contadas, mas fazer umestudo de sua trajetria. Para tanto, usarei como principal fio condutor asreferncias que esto em seus cadernos de memrias, atualmente perdidos,mas que chegaram at ns pelas pesquisas feitas sobre ele por Slvia Petersen

    e Irene Haas Rosito.1Alm disso, para fazer um contraponto viso de Nequetesobre si mesmo, recorri a diversos documentos do perodo em que ele militouno movimento operrio, muitos dos quais de sua prpria autoria. Acredito que aanlise dos caminhos que Nequete percorreu podem dizer muito sobre aspossibilidades ou mesmo as limitaes de uma militncia operria, assim comopode informar sobre as formas de ao do movimento operrio gacho ebrasileiro no comeo do sculo.

    1 Tanto Irene Haas Rosito quanto Slvia Petersen consultaram os manuscritos, queestavam sob os cuidados dos filhos de Nequete. Infelizmente estes volumes seperderam com o tempo.

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    Ablio Imigrante

    Em 15 de fevereiro de 1888 nasceu Ablio de Nequete, na aldeia deFih-el-Khoura, no norte do Lbano, com o nome de Obdo Nakat, no seio de umafamlia crist ortodoxa. Perdeu a me muito cedo e aos dois anos seu pai,Miguel Nakat, imigrou para o Brasil, ficando o jovem Obdo com uma irm maisvelha, que tambm imigraria alguns anos depois. Aos 14 anos, em 1903, semnotcias do pai, ele decidiu viajar a fim de encontr-lo, embarcando em um

    navio cargueiro em direo s terras brasileiras.Chegando cidade de Rio Grande, Nequete tomou contato com acomunidade rabe do lugar e, com as informaes que obteve, se dirigiu paraSo Feliciano (atual cidade de Dom Feliciano), distrito de Encruzilhada do Sul.Neste local, Ablio de Nequete se tornou mascate, trabalhando junto a seu pai,mas a relao que tinha com ele parece ter sido muito conflituosa, at mesmopoliticamente, j que Miguel era federalista e Ablio aderiu ao PartidoRepublicano. Em 1907 ou 1908 (quando ele tinha 19 ou 20 anos), Ablio mudou-se para Porto Alegre, onde aprendeu o ofcio e comeou a exercer a profissode barbeiro (ROSITO, 1972, p. 2)..2

    A vivncia na capital do estado e a nova profisso proporcionaram aoimigrante libans uma profunda mudana de vida. So Feliciano, onde Nequeteprimeiro se estabeleceu, era uma pequena localidade entre as Serras do Sudestee as Vrzeas da Lagoa dos Patos, uma regio economicamente depreciada, depopulao rarefeita e com pequenos ncleos urbanos. Na capital, Nequete foiviver na Rua Conde de Porto Alegre, em pleno Quarto Distrito, ncleo industrialda cidade, local de morada dos operrios fabris e sede dos principais sindicatos.3

    2 As anotaes de Slvia Petersen sobre os cadernos de memrias de Nequete seguemas indicaes de Irene Haas Rosito, mas como no foram sistematizadas, no havendonelas datas nem referncias bibliogrficas, tomando forma de anotaes datilografadas,

    no farei referncias delas no texto.3 Sobre esta regio, ver a reportagem Uma cidade dentro da cidade publicada nA

    informao,Porto Alegre, 18. Out. 1921 (PETERSEN e LUCAS, 1992. p. 237-242).

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    O seu novo trabalho tambm contrastava em tudo com sua antiga atividade,pois transumncia e ao desarraigamento do mascate, estava seu trabalho nabarbearia; lugar de encontros, de convivncia, de conversas, de discussessobre os problemas do mundo, que aqueles que deixavam o cabelo e a barbaaos cuidados de Ablio traziam, entre os movimentos sincopados do seu pente eda sua tesoura. Foi em Porto Alegre, a propsito, onde lhe ocorreram duasgrandes transformaes: a converso ao espiritismo e a entrada no movimentooperrio.

    A primeira se deu a partir de dois episdios. Em 1913, caiu-lhe nas mosum livro sobre hinduismo, que comparava a vida de Krishna vida de Cristo. Asua leitura lhe causou uma forte impresso, que foi reforada pelas semelhanasque encontrava entre as diversas crenas religiosas, enquanto estudava histriauniversal. Em 1916, ele estava imerso em estudos sobre sociologia e encontrouum livro sobre sociologia hindu, na biblioteca da Sociedade Esprita AllanKardec (provavelmente a coleo de fbulas Calila e Dimna), que tinha emseu prefcio a biografia de um mdico e fillogo persa (provavelmente o filsofoBurzo). O que mais lhe marcou neste livro foi a atitude deste sbio em relao religio, pois, tendo sido um homem de tendncia religiosa: quis abraar a

    melhor, porque a dos pais podia estar errada. Argumentado a respeito, para nose conformar com a idia de seguir os pais, porque seria endossar aos que lheseguem os vcios e diz pretendem, aos que aconselham, evitar a discusso.A lgica de esmagar (NEQUETE, 1954, p. 19).4

    Para ele isto deveria ser muito significativo, tanto pela relao atribuladaque tinha com o seu pai, o que o faria admirar esta atitude de voltar-se contraas crenas dos progenitores, quanto pelo fato de ter entrando em contato comnovas idias e um novo modo de vida. Sua terra natal, seu pai, sua profisso demascate, sua religio: Porto Alegre ofereceu ao jovem imigrante libans a

    4 O episdio descrito em uma carta que Ablio de Nequete escreveu em 1933,reproduzida em um dos seusExtratos evidentinos , textos religiosos e filosficos queNequete passou a escrever a partir dos anos 40.

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    oportunidade de voltar as costas a tudo isso, abrindo-lhe portas para que eletrilhasse novos caminhos.

    A prpria forma como Ablio de Nequete se converteu ao espiritismo,por intermdio de exemplos da histria universal e o estudo da sociologia, nopode ser considerada totalmente estranha em Porto Alegre no incio do sculoXX. Neste mesmo perodo, militantes do movimento operrio gacho como osirmos Martins e Antnio Guedes Coutinho, seguiram o mesmo caminho deadeso ao espiritismo e, como aconteceu com Nequete, a f religiosa

    acompanhava o estudo das cincias sociais e da filosofia (SCHIMIDT, 2001,p. 1-2). Assim como estes militantes, Nequete tambm iria aderir s teorias dereforma social. Este processo, entretanto, no aconteceria somente porintermdio de suas leituras, mas deveu-se a uma grande mobilizao social.

    Ablio Militante

    No ano de 1917, Ablio de Nequete presenciou as violncias popularescontra os alemes em Porto Alegre, por ocasio da campanha pela entrada doBrasil na Primeira Guerra Mundial. Tais violncias o deixaram comovido e isto

    lhe convenceu da necessidade de organizar a populao. Sendo verdade ouno esta afirmao, certo que sua primeira incurso no movimento operriose deu em agosto daquele ano, durante a greve geral, quando fez parte da Ligade Defesa Popular, organismo criado adhoc pelos operrios grevistas paragerir aquela paralisao (SILVA JR, 1994, p. 302-340). Apesar de ser umnovato no movimento, Nequete ocupou um papel de destaque na novaorganizao, tornando-se editor doA Epocha, jornal editado pela referida Liga.Este fato pode indicar que, mesmo no tendo atuado antes em associaesoperrias, sua condio de barbeiro pode t-lo tornado um sujeito conhecido ecom capacidade de articular contatos pessoais; seu interesse por questes

    filosficas deve ter lhe conferido um status especial, como um trabalhadorletrado a quem poderia ser confiada a editoria de um jornal.

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    Com o fim da greve geral e a perda de combatividade da Liga, Nequetepartiu, em dezembro de 1917, para uma iniciativa pessoal de militncia,distribuindo panfletos entre os militares de baixa patente, tentando assimaproxim-los dos operrios. O panfleto, Ao povo rio grandense, vinhaassinado por um Grupo de Operrios e Soldados Brasileiros, tinha uma retricabastante nacionalista, mas procurava sensibilizar os soldados da situao depenria dos trabalhadores, sugerindo que estes suspendessem o pagamentodos seus aluguis, para doar 5% da quantia para a Cruz Vermelha Brasileira e

    para o desenvolvimento da aviao (Ao povo riograndense, 1917). O ato foiconsiderado subversivo e foi aberto contra ele um Inqurito Policial Militar.

    Foi neste momento que Nequete se aproximou da revoluo russa. Eleafirma, em suas memrias, que durante a Primeira Guerra Mundial, pela suaorigem crist ortodoxa, havia se solidarizado com a Rssia e que sofrera muitocom as suas derrotas (ROSITO, 1972, p. 3). Quando os bolchevistas vencerama revoluo, ele passou a admirar a Rssia dos Soviets, aderindo a seus ideais.Alguns dos depoimentos levantados no Inqurito de 1917 parecem confirmaresta aproximao. Apesar de ter sido acusado de apoiar o Imprio Alemo naguerra, Nequete foi descrito como um anarquista defensor da Rssia

    revolucionria e como um amigo da Srvia (principal aliada da Rssia naEuropa Oriental).

    Uma explicao plausvel do que pode ter acontecido com Ablio deNequete foi uma identificao com a revoluo feita atravs de uma lentetnico-religiosa. O Imprio Russo havia se constitudo como inimigo do ImprioOtomano e como protetor dos cristos do Oriente Mdio. Levando-se em contaa sua tradio cultural, o que Nequete deve ter feito foi transferir seu afeto daRssia redentora da cristandade oriental para uma nova Rssia, libertadora doproletariado mundial, transferncia feita justamente quando ele estava engajadonas lutas do proletariado portoalegrense.

    Ablio de Nequete continuou engajado nessas lutas, mesmo depois deseu proselitismo frustrado entre os militares, passando a atuar, em 1918, junto

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    aos anarquistas da Unio Operria Internacional. Entre estes militantes Nequeteno se sentiu bem porque algumas de suas concepes, como sua f esprita,se chocavam contra idias defendidas pelos anarquistas, como o atesmo. Devidoa estes atritos, Nequete decidiu sair da Unio Operria Internacional para fundar,com Francisco Merino e Otvio Hengist, a Unio Maximalista, no dia 1 denovembro de 1918.

    Em uma carta de 1922, Ablio de Nequete explica a fundao da UnioMaximalista como conseqncia da atitude dos anarquistas diante do seu apoio

    revoluo de outubro: Uma das causas principais do grupo usar o nomeUNIO MAXIMALISTA foi a hostilidade que j comeavam a desenvolveros anarquistas da UNIO OPERRIA INTERNACIONAL, a qual pertenciamos trs membros fundadores da UNIO MAXIMALISTA(NEQUETE, 1922,p. 5). Apesar de associar o surgimento do grupo hostilidade dos libertrios,isto no se confirma pelos textos publicados noA Luta (rgo de imprensa daUnio Operria Internacional), que davam total apoio quela causa. O estudode outros jornais operrios daquele mesmo perodo mostra, muito pelo contrrio,que a Unio Maximalista no tinha mais legitimidade que outros grupos parafalar em nome da revoluo, o que faz com que a imagem de Nequete como

    primeiro militante comunista do Rio Grande do Sul deva ser bastante matizada.O que pode se depreender pela explicao do nome dado Unio Maximalista que, por mais que Ablio se pensasse em oposio aos anarquistas, aconstituio da sua associao teve como modelo um grupo anarquista, o quemostra que sua convivncia com os libertrios no lhe trouxe somenteressentimentos, mas lhe deu tambm uma experincia de organizao poltica.

    Assim como as outras organizaes anarquistas, a Unio Maximalistaatuou entre os sindicatos e organizou greves operrias. Foi pela atuao dosmaximalistas na paralisao dos marceneiros e metalrgicos, em 1919, que aassociao ganhou novos adeptos, entre os quais Carlos Tffolo, presidente da

    Unio Metalrgica de Porto Alegre. Com estas aes, a Unio Maximalista setornou, ao longo daquele ano, uma pea importante no jogo de foras do

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    movimento operrio da capital, com Nequete participando das reunies daFORGS (sob hegemonia dos anarquistas da Unio Operria Internacional),mas tambm se relacionando com os militantes do Sindicato da Fora e Luz,liderados por Orlando de Arajo Silva, rival dos anarquistas da Federao.

    Nequete estava junto de Orlando de Arajo e Silva, inclusive, quandoocorreu o trgico comcio do Dia da Independncia. O Sindicato da Fora eLuz havia convocado um meetingem frente Intendncia, mas este foi proibidopela Brigada Militar, o que causou um grande confronto, com troca de tiros e

    um operrio morto. O resultado do confronto foi o fechamento das associaesde classe e a priso das principais lideranas operrias, entre as quais Ablio deNequete (PETERSEN, 2001, p. 361-370).

    Depois deste episdio, a represso se intensificou sobre os operriosorganizados de Porto Alegre. Neste momento, paradoxalmente, tanto a UnioMaximalista, quanto Ablio de Nequete, aumentaram sua presena dentro daFederao Operria do Rio Grande do Sul. Esta presena pode ser medida,por exemplo, pelas inseres nO Syndicalista, rgo oficial da FORGS: antesdo Sete de Setembro, a Unio Maximalista aparecera apenas em uma nota,publicada no dia 6 de julho, em que se pediam livros para a formao de uma

    biblioteca (O Syndicalista, 2/8/1919, p. 4); depois, quando se intensifica arepresso, Ablio ganha at uma coluna no jornal chamadaAs evidentinas5

    (O Syndicalista, 24/11/ 1919, p. 1).6 difcil encontrar uma explicao paraesta mudana, mas algo que pode justificar isto uma necessidade de autodefesa,ou seja, a formao de uma frente comum entre os principais grupos operriosda capital para enfrentar um Estado que se tornava mais violento.

    Alm desta insero nO Syndicalista, Nequete participou, em outubrode 1919, de uma reunio das lideranas operrias do estado com um dos redatores

    5 O nomeAs evidentinas se refere ao seu pseudnimo, Mximo Evidente.6 O jornal apresenta uma errata na 2 pgina indicando como data correta 24 de janeiro

    de 1920.

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    doA Plebe, que viera de So Paulo para conseguir a adeso dos militantesgachos a uma insurreio que iniciaria na capital paulista e envolveriaorganizaes operrias de vrias regies do pas.7 Ablio ficou com aincumbncia de viajar at a zona sul do estado para decretar uma greve geralem Pelotas e Rio Grande, mas a revoluo paulista acabou se frustrando, tendoele aproveitado a viagem para recolher endereos de publicaes marxistasargentinas.

    Outro indcio de um aumento de prestgio foi ter participado, juntamente

    com Friedrich Kniestedt e Carlos Tfollo (tambm da Unio Maximalista), dacomisso preparatria do 2 Congresso Operrio Regional de 1920. NesteCongresso, Nequete apresentou uma proposta de adeso da FORGS IIIInternacional, entrando em choque com o anarquista Friedrich Kniestedt, quefoi contra sua aprovao. Kniestedt era um operrio alemo que havia se definido,em sua experincia de militante, em contraposio aos marxistas do PartidoSocial Democrata.8 provvel que visse com maus olhos o crescimento daUnio Maximalista e, por ocasio do Congresso, aproveitou para tentar rechaarsua influncia. Ao fim e ao cabo, a proposta de Nequete foi rejeitada, o queteve como conseqncia o seu abandono da reunio e o afastamento da Unio

    Maximalista da rbita da Federao.9Este distanciamento da FORGS deve ter restringido muito o campo de

    ao dos maximalistas, j que se vivia um momento em que as portas para aatuao dos militantes se fechavam e as esperanas se perdiam sob o peso da

    7 Esta tentativa de insurreio pelos operrios de So Paulo, descrita por Nequete, confirmada por Everardo Dias na sua Histria das lutas sociais no Brasil (1977,p. 90-91).

    8 Mais informaes sobre a trajetria de Kniestedt e sobre o seu ponto de vista daqueleCongresso podem ser encontradas na sua autobiografia, publicada no jornalAktione organizada por Ren Gertz com o nome deMemrias de um imigrante anarquista.

    9 O boletim do Congresso relata uma longa discusso a partir de uma tese lanada porNequete, mas no esclarece sobre a proposta, nem indica que ele tenha abandonadoa FORGS (PETERSEN, 2001, p. 376-383).

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    reao. Este pode ter sido um dos motivos pelos quais Ablio de Nequete procurouum novo campo de ao para sua militncia: os grupos comunistas dos pasesplatinos.

    Nequete teria encontrado, em princpios de 1921,o peridicoJustcia,do Partido Socialista Uruguaio, e nele se informou do debate sobre a adesodaquele grupo III Internacional. Ao saber disso, Ablio de Nequete estabeleceucorrespondncia com o deputado Celestino Mibelli, que era favorvel adesoimediata, o que resultou na troca de informaes e na criao de um lao da

    Unio Maximalista com os comunistas do Uruguai. De forma concomitante,Nequete estabeleceu correspondncia com o Grupo Comunista do Rio deJaneiro, mudando o nome da Unio Maximalista para Grupo Comunista dePorto Alegre. Em fevereiro de 1922, Ablio de Nequete chamado capitaluruguaia e tem um encontro com um delegado sovitico para a Amrica Latina,o russo-argentino Alex Alexandrovsky (ROSITO, 1972.). Em sua estada emMontevidu, Nequete produziu um relatrio, bastante pessimista, sobre omovimento operrio brasileiro em que culpava a represso e a ao da militnciaanarquista pela desorganizao do movimento operrio brasileiro. Ablio voltoudo Uruguai com a incumbncia de ativar seus contatos com os outros grupos

    do pas para fundar um Partido Comunista no Brasil. O teor do relatrio,entretanto, j antecipava algumas das dificuldades que ele teria para levar adianteesta misso.

    O Partido Comunista do Brasil foi organizado entre 25 e 27 de maro de1922. Ablio de Nequete tornou-se Secretrio Geral do Partido, mas a relaoque estabeleceu com seus companheiros foi extremamente conflituosa (FOSTERDULLES, 1977, p. 148-149).10 Nas suas memrias, ele afirma ter se desgostadocom muitas coisas, como o preo do aluguel pago pela sede do Partido, a falncia

    10 Otvio Brando, em suas memrias, diz ter sido Nequete um fanfarro, covarde e umcharlato que nada fez pelo movimento operrio brasileiro; caracterizou-o, alm disso,como um antianarquista (1978. p. 243).

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    da sua tipografia, o sumio do dinheiro a ser enviado para os flagelados daRssia, mas, acima de tudo, com a orientao poltica de seus companheiros,impregnada de anarquismo. Em 1923, quando j havia se afastado do cargo deSecretrio Geral, o PC do Uruguai lhe pediu um relatrio sobre o comunismono Brasil, ocasio em que transcreveu todas estas denncias. Como resposta, acomisso executiva do PCB encarregou Otvio Brando de preparar outrorelatrio, sobre a atitude de Nequete. Ele acabou sendo expulso como traidor.11

    Ablio Tecnocrata e Evidentista

    Nequete conta sua sada do PCB de outra forma. Em 1923, ao recebera notcia da derrota dos trabalhistas britnicos, teria se convencidodefinitivamente que o operariado no era uma classe revolucionria, o que fezcom que ele abandonasse o comunismo. Qual seja a verso correta, este era osinal de que estava se completando um longo processo, em que Ablio de Nequetefoi se afastando das associaes operrias e foi fechando assim suaspossibilidades de atuao entre elas.Tal movimento pode ter decorrido de

    algumas caractersticas particulares da sua personalidade, como a intransigncia,a necessidade de disciplinar tudo ou a dificuldade de conviver com quem nopartilhasse das suas convices. Seria um erro, porm, culpar apenas Nequetepor este isolamento, j que se vivia um perodo em que o campo para a atuaodos militantes ia se restringindo cada vez mais, sob o peso do Estado de Stio dogoverno Artur Bernardes, das represlias contra as revoltas tenentistas e,no Rio Grande do Sul, com o clima de violncia despertado pela Guerra Civilde 1923.

    11 A expulso acabou sendo efetivada pelo Centro Comunista de Porto Alegre, como sepode ver na Resoluo de expulso de Ablio de Nequete do PCB. (Centro Comunistade Porto Alegre), Porto Alegre, 1924.

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    Depois de abandonar o PCB (ou de ter sido expulso), Nequete vai tentarse aproximar do Partido Republicano Riograndense; pelo menos o que parecepor um panfleto de fevereiro de 1924, em que Nequete, mesmo estando fora doPCB, conclamava os companheiros comunistas a votar na chapa republicanaem maio daquele ano.12 O apoio teria mais um carter moral do que oficial,mas com isso se esperava apoio para a libertao de Leopoldo Silva, presodurante a greve de 1919, alm de visar um espao noA Federao, rgo doPRR, para a divulgao das idias comunistas, enquanto no se editasse um

    jornal prprio.A dissidncia comunista parece no ter tido muita importncia, pois

    Nequete sequer fala dela em suas memrias; j a aproximao com o borgismoresultaria na sua adeso Liga dos Operrios Republicanos, da qual aparececomo filiado em 1925. Mas o panfleto de 1924 prenunciava algo mais importante,a necessidade de se atrair a classe dos tcnicos para se conseguir os objetivosde mudana social: Sem o elemento inteligente nenhum partido vencer. Bastasaber definir o operariado: mdicos, engenheiros, astrnomos, qumicos, militares,artistas e todos os trabalhadores, quer manuais, quer intelectuais, para que sedissipem muitas dvidas (NEQUETE Apud RODRIGUES, 2005, p. 237).

    Ablio de Nequete relata que, em novembro de 1924, estava conversandocom um amigo sobre a possibilidade de fundar um novo partido e recebeu comoresposta que tal plano s funcionaria se os tcnicos aderissem. A partir da,surgiu a idia da tecnocracia, uma teoria poltica que tinha na classe tcnica abase de apoio para as transformaes sociais. Mesmo que esta conversa comum amigo possa t-lo influenciado a concretizar a idia da tecnocracia, o panfletode fevereiro mostra que Nequete j estava tentando se aproximar dos tcnicos,

    12 O panfleto reproduzido por Edgar Rodrigues em seu livro Um sculo de histriapoltica e social em documentos. RODRIGUES, Edgar. Um Sculo de Histria Polticae Social em Documentos.Rio de Janeiro: Achiam,2005,p. 237.

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    fim das contas, acabou se tornando um tcnico, pois abandonou a profisso debarbeiro e passou a lecionar na Escola de Comrcio. Nos anos seguintes, ele sededicou a desenvolver a face espiritual da tecnocracia, o evidentismo, doutrinareligiosa que ligava a evoluo espiritual evoluo social da humanidade. Ocristianismo, o kardecismo, o bolchevismo, a tecnocracia...todas as correntesde pensamento foram amarradas em um feixe de idias que tinha como centroa esperana na evoluo da humanidade em direo um futuro melhor. Poucoscompanheiros sobraram nesta f quase solitria, a que Nequete dedicou os

    ltimos anos de sua vida.Ablio de Nequete faleceu no ano de 1960, depois de uma rpida

    enfermidade. Faleceu no incio de uma dcada em que a esperana da revoluoproletria voltaria a ser discutida com toda a fora no Brasil, onde o PCB teriaum de seus momentos de maior influncia na vida poltica da Repblica e ostrabalhadores de novo levantariam seus sindicatos na busca de reformas sociais.Como Ablio de Nequete teria visto esta intensa movimentao? Ser que, seNequete tivesse vivido essa dcada cheia de expectativa e desiluso, oconheceramos melhor? Qual seria a posio de sua doutrina sobre a ditadura,um regime que montou uma mquina tecno-burocrtica como nunca se viu no

    pas? Teria mudado de opinio ao ver como to pouco humanos foram ostcnicos? Sobre tudo isso s se pode fazer exerccios de imaginao histrica,j que as idias de Nequete morreram junto com seu autor, e a tecnocracia,diferente do partido poltico que ajudou a fundar 38 anos antes, no deixouseguidores.

    Consideraes finais

    Mais que um emaranhado de idias, a trajetria e as concepes de

    Ablio de Nequete so testemunhas de diversas tradies que se cruzaram.Desde a religiosidade dos cristos orientais at o desejo de revoluo social dos

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    socialistas do ocidente, passando pela crena em um mundo melhor, que poderiavir tanto por uma redeno do esprito, quanto pelo poder modernizador datcnica; sua militncia foi marcada pela tentativa de amarrar estes diversosfeixes de experincias que pareciam convergir, o que acabou por resultar noapenas em um amontoado disforme de influncias, mas em uma combinaobastante original, que certamente no encontraria expresso igual seno emAblio de Nequete. Mais que uma expresso original de um militante, porm, oscaminhos de Nequete pelo movimento operrio mostram como suas concepes

    foram postas a prova no terreno das lutas sociais, como se modificaram suasaes e sua insero entre os grupos de trabalhadores organizados quando daascenso ou da represso s suas mobilizaes. Desta forma, a trajetria deAblio de Nequete permite ver, na prtica, como podiam ser diversos os caminhosda militncia operria, nunca igual para todos, mas que, a partir de cada militante,permite ver um pouco do caminho trilhado pela prpria classe operria.

    Artigo recebido em setembro de 2008; aprovado em novembro de 2008.

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