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A TRAMA URBANA DA CIDADE DE PARIS... SE TRANSFORMA EM MODA! Sylvia Demetresco (Ecole Supérieuer de Visual Merchandising de Vevey) Marcelo Machado Martins (Universidade Federal de Pernambuco) Resumo: Consumir a cidade de Paris por sua trama urbana pode ser uma visão de um corpo que anda pelas ruas à procura de seu espaço. Consumir a cidade é transformá-la em produto, desde sua arquitetura até seu mobiliário urbano passando, sem perdão, pela moda. As pessoas que circulam por suas ruas acabam consumido esta cidade de alguma forma na busca de consumir moda no seu mais amplo sentido: quer seja assistindo a um filme, quer ser caminhando em busca de um lugar para comer ou procurando por uma roupa ou um acessório de moda, uma exposição ou um jornal. Cada elemento pelo qual o corpo passa se transforma em um objeto consumível. Cada detalhe da cidade passa a ser homenageado por todas as áreas, e por conseqüência, tudo é devorado pela moda. Palavras-chave: Consumo. Moda. Cidade. Abstract: Consuming Paris through the urban web or the street construction can be the vision of a body moving through the streets looking for his space. To consume the city is to transform it in a product, from the architecture up to the urban furniture passing, without forgiveness, through fashion. People walking around the streets are consuming the city in a wide sense: watching a film, walking to find a place to eat or to buy a fashion element, an exposition or a newspaper. Each element where a body passes can be transformed in a consumable object. Each city detail can be honored by all areas; therefore, everything is devoured by fashion. Antes de qualquer coisa é preciso fazer algumas perguntas a si própria para saber aonde as tramas da cidade se confundem ou se sobrepõem às imagens de moda. Paris uma cidade cinza? Para todas as pessoas a quem perguntamos qual é a cor de Paris, a resposta é: - Cinza! Com certeza esta é maioria das respostas por causa da cor dos telhados, das ruas, das pontes e 245

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A TRAMA URBANA DA CIDADE DE PARIS... SE TRANSFORMA EM MODA!

Sylvia Demetresco (Ecole Supérieuer de Visual Merchandising de Vevey) Marcelo Machado Martins (Universidade Federal de Pernambuco)

Resumo: Consumir a cidade de Paris por sua trama urbana pode ser uma visão de um corpo que anda pelas ruas à procura de seu espaço. Consumir a cidade é transformá-la em produto, desde sua arquitetura até seu mobiliário urbano passando, sem perdão, pela moda. As pessoas que circulam por suas ruas acabam consumido esta cidade de alguma forma na busca de consumir moda no seu mais amplo sentido: quer seja assistindo a um filme, quer ser caminhando em busca de um lugar para comer ou procurando por uma roupa ou um acessório de moda, uma exposição ou um jornal. Cada elemento pelo qual o corpo passa se transforma em um objeto consumível. Cada detalhe da cidade passa a ser homenageado por todas as áreas, e por conseqüência, tudo é devorado pela moda. Palavras-chave: Consumo. Moda. Cidade.

Abstract: Consuming Paris through the urban web or the street construction can be the vision of a body moving through the streets looking for his space. To consume the city is to transform it in a product, from the architecture up to the urban furniture passing, without forgiveness, through fashion. People walking around the streets are consuming the city in a wide sense: watching a film, walking to find a place to eat or to buy a fashion element, an exposition or a newspaper. Each element where a body passes can be transformed in a consumable object. Each city detail can be honored by all areas; therefore, everything is devoured by fashion.

Antes de qualquer coisa é preciso fazer algumas perguntas a si própria para saber

aonde as tramas da cidade se confundem ou se sobrepõem às imagens de moda. Paris uma cidade cinza? Para todas as pessoas a quem perguntamos qual é a cor de Paris, a resposta é: - Cinza!

Com certeza esta é maioria das respostas por causa da cor dos telhados, das ruas, das pontes e

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da neblina, com suas nuvens baixas, que reina sobre a cidade, durante muitos meses do ano. Mas será que ela é mesmo cinza? Há uma leitura da cidade que data dos anos pós-guerra e das fotos antigas que nos diz que a cidade é cinza. Foi-se o tempo em que todas as construções estavam pretas de poluição, os telhados cheios de pó negro do carvão e com iluminação precária. Tempos de guerra, de repressão, de abandono!

Paris uma cidade branca? Sim, desde os tempos mais antigos a cidade tende mais a ser uma cidade clara. A pedra

branca colhida no subsolo da cidade, nas minas de gipsita, edificou a maioria das construções que ainda existem. Hoje várias igrejas, mansões, torres e pontes foram restauradas e percebe-se que a cor da pedra amanteigada reina pela cidade. No tempo dos romanos era considerada a cidade branca e todos a invadiam para roubar a gipsita, um dos grandes comércios da ilha da Lutécia.

Paris uma cidade de cores difusas? Paris é uma cidade que tem uma luz muito sutil, muito clara no inverno por causa do

reflexo do sol nas águas do rio Sena; mais esverdeada no início da primavera com todas as árvores verdes clarinho que dominam a cidade; mais contrastante ao sol do verão; e, no outono a luz do céu e da água se confunde e um brilho constante sobrevoa a cidade deixando-a como um lugar de sonho, em que não sabemos se é real ou irreal, ou como descreve Breton, no livro Nadja, uma sensação de poder realizar tudo.

Paris uma cidade que se colore? Se domina o creme ou se domina o cinza, não posso dizer, mas por todos os lados a

cidade coloca pequenas manchas de cores que lhe dão um toque especial. Um restaurante, uma fachada ou um jardim que se impõe entre ruas diagonais e prédios baixos, tem cor! Aos poucos e em determinados lugares a cor toma conta do espaço e a cidade que inicialmente se vestia de cinzas saboreia manchas aqui e acolá de pedacinhos de cor: um elefante rosa na Galeria du Grand Cerf; um escargot dourado num dos restaurantes mais tradicionais parisiense; uma torre vermelha de carros Citroën na avenida Champs Elysée; uma bandeira da França que mede 15 metros bem debaixo do Arco do Triunfo; em todo caso o ouro impera em todos os monumentos como nos telhados da Ópera de Paris, nos cavalos da Ponte Alexandre III, no cupido no alto da coluna da Bastille! Ouro que faz brilhar a luz do sol a qualquer época do ano e que dá certa nobreza à cidade luz. Azul, branco e vermelho são as cores da bandeira da cidade que dominam em alguns setores; como nos eventos do dia 14 de julho, do dia do armistício, das festas locais, das competições como Roland Garros, milhares de bandeirolas enfeitam desde a prefeitura até os ônibus, e assim o bleu, blanc, rouge, assina sua presença. Nas três cores as paixões dos

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parisienses aparecem por todo os lugares em diversas ocasiões: no azul, o rio Sena, e seus jogadores de futebol e rúgbi - les bleues, que sempre vestem azul, cujas roupas esportivas são desenhadas especialmente; no branco da pedra das casas da cidade, das noivas do mundo de branco vestidas, que querem ser fotografadas na Place de la Concorde, e nas vestimentas da monarquia ainda presente, impregnados de sua – fleurs de lys: e, no vermelho do amor, o Moulin Rouge com suas dançarinas de vermelho da cabeça aos pés (roupa, maquiagem, calçados e unhas em vermelho), ou do seu costureiro Lacroix que exulta o vermelho e a rosa vermelha a marca das rainhas francesas. Marcas da cidade que se reencontram nas coleções de designers, nas estampas dos tapetes, nos brasões dos nobres, nos tecidos, nas escadarias dos palacetes.

Paris uma cidade verde? Muitas árvores, muitas praças e parques fazem a cidade ser muito verde, mas estes

espaços são concentrados, nada de espaços grandes ou contíguos. Somente pequenos espaços para que os olhos e o corpo de todo transeunte descansem. Pontes, bancos, arandelas, postes, fontes, pontos de ônibus em que muitas pessoas se cruzam, também são verdes. Sempre cercadas por grades verdes, as praças recebem todo tipo de público que de algum modo se comunicam com seus corpos consumindo cada detalhe da natureza. O maior de todos eles, o Bois de Boulogne, mantém uma vegetação nativa, é o pulmão da cidade. Dentro dele estão alojados dois hipódromos: o Hipódromo de Longchamps, em que se reúne a alta sociedade internacional há algumas dezenas de anos, no qual desfilam, desde os tempos de Worth, Poiret e Chanel, as milionárias com trajes elegantes, chapéus espetaculares e bolsas inusitadas, no evento Arco do Triunfo, durante o qual apostas e jantares fazem parte do evento que não é só um passeio pelo bosque. Ao contrário, no lado oposto do Bois de Boulogne, no Hipódromo de Auteuil reina o povo, na sua maioria homens que gostam das apostas, com seus casquetes negros, blazer xadrez (pied de poule) marrom e bege, sapatos de camurça bicudos. Dois tipos se diferenciam por gostos, vestimentas e aparições!

Paris uma cidade arquitetônica? Se não fossem os reis urbanistas, desde Henri IV (1553 assassinado em Paris em

1610), que se dispuseram a regularizar as ruas, os castelos, os edifícios, os jardins, as praças e as passagens da cidade, Paris não seria a que vemos hoje. O barão Haussmann (1809/1891) foi o que mais alterou a velha cidade com suas ruas tortuosas para a cidade raiada de hoje: determinando as medidas, as alturas, as grades das sacadas, para que as casas se alinhassem em todos os bairros, criando linhas de fuga ao longo dos bulevares e perpendiculares para

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embelezar e unificar a cidade. Séculos de condicionamento facilitam hoje a criação de qualquer obra arquitetônica, como um conjunto bem pensado.

Paris uma cidade dominada pela cultura? Bibliotecas dominam a cidade! Modernas ou antigas, permitem aos nossos corpos de

sentir a essência dos livros que se vendem desde a beira do rio até o interior das livrarias. Todas as formas de cultura estão presentes nas exposições, nos eventos, nos teatros, nos museus por onde circulamos onde cada esquina tem sua história, cada rua nos lembra do movimento de outros tempos e cada muro nos conta algo.

Paris uma cidade com um subsolo ativo? E então, o subsolo tem uma vida que fervilha! O metrô é claro, dá a possibilidade de

transitar por toda a cidade, uma trama complexa e vasta se avizinha dos túneis do esgoto, dos canais subterrâneos, das pedreiras antigas e das catacumbas. Embaixo da cidade toda existe uma enorme quantidade de labirintos que já foram utilizados como esconderijos, túmulos, retirada de pedra e plantações de cogumelos, por isso o nome champignon de Paris, pois até bem pouco tempo as cavernas escuras e úmidas eram lotadas desse cultivo. Cada rua de cima tem sua igual no subsolo que é identificável, igrejas tem suas necrópoles, castelos suas saídas de fuga, e assim por diante. É preciso pensar que por muito tempo nesta cidade subterrânea é que se programaram fugas, assaltos, chantagens e festas.

Paris uma cidade multicultural? Em Paris se diluem mil raças e todas trazem um pouco de seus corpos por breves

momentos. Corpos que ora se diluem e ora sobressaem conforme o momento. No metrô todos viajam seja a mulher de burca, a francesa elegante, o cantor de rap, o executivo ou a criança, não há diferenças exageradas. Mas no momento em que cada um encontra seu meio as regras mudam, a cultura do indivíduo domina o espaço e cada um consome a cidade do seu modo: no bairro chinês bem-vindo à China e no bairro de Passy seja um nobre francês, católico, tradicional e discreto. Cada bairro se torna um gueto com seu estilo de vida e obriga o uso de uma certa moda.

Paris uma cidade apaixonada? A paixão está presente! Seja pela cidade, seja pelos encontros, seja pelos momentos!

Se o vermelho já é a cor da bandeira da cidade e é a cor da paixão, é a cor do coração, a cor do brasão de Paris. Cada parisiense tem Paris em seu coração. Até mesmo um percurso em forma de coração é possível em Paris conectando alguns dos pontos mais visitados da cidade. Brincando com palavras, basta anexar um A e um D na palavra Paris e teremos Paradis (paraíso em francês). O que mais a dizer se Paris é um paraíso apaixonante para poucos ou como me

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disse um dia Marc Jacobs: “I am envious of anyone discovering Paris for the first time.... A thrill

for all the senses! (Tenho inveja das pessoas que forem descobrir Paris pela primeira vez.....

Todos os sentidos a flor da pele!” Se um designer desse porte pensa assim, como poderíamos ir de encontro a tudo isso... mas é esta cidade que se torna a grande metrópole por onde todos absorvem pelos porros a moda, as novas versões da modernidade, o que se faz, o que se pode criar!

Paris uma cidade cheia de tramas? Das tramas da cidade às criações de modas e marcas o caminho é curto. Percebe-se

que cada elemento desta cidade se presta a ser desenvolvido para criar produtos novos. A tradição da sua arquitetura, as pequenas pedras do chão, até mesmo o mapa da cidade se presta a criar. Numa releitura minha eis que a Étoile poderia ter sido o ponto de partida para criar a bolsa Kelly da Hermès; ou o calçamento das ruas de Paris poderia ter sido a criação da costura da bolsa Chanel. Ideias, perguntas, criação ou visão... tudo isso junto faz de Paris uma cidade em que ... Todos os sentidos estão a flor da pele!”

Paris é a cidade em que são feitos o maior número de filmes: La traversée de Paris de

Gabin 1959, Paris de Cédric Klapish 2008, Renaissance de Volckman 2006, Amélie Poulin de J.P. Jeunet 2001, Ratatouille de Disney e Pixar 2007 são alguns exemplos. Mas em todos esses

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cenários surge a moda como a grande vedete de cada um desses filmes. Jean Gabin com suas roupas de décadas passadas versus roupas futuristas em Renaissance; roupas de uma pequena francesa Amélie que se encanta com seu bairro versus a roupa de vários atores atuais circulando por Paris atual como cria Klapish; e um rato chefe de cozinha que adoça o coração do crítico inconsolável... roupas e mais roupas, e mais outras tantas como a real Antoniette no filme de Sofia Coppola que deu origem a uma certa moda e que consumia costureiras, chapeleiros e sapateiros para criar a sua moda copiada por muitos, mesmo arruinando a realeza.

Paris é o sonho de cada ser humano... passar por ela uma vez na vida. Ela é mesmo maravilhosa, soberba e sofisticada. As marcas de luxo e a vida luxuosa se entrelaçam ao cotidiano de turistas, burgueses e estrelas que se acotovelam pelas ruas da cidade, cada um desfilando ao seu modo. Corpos que vão e vem que não veem as mesmas coisas, mas sentem a cidade ao seu modo e a consomem conforme seus sonhos! Mas é a moda que mais marca esta cidade. E é nas coleções de alguns estilistas que surgem as tramas da cidade. Nas lojas das grandes marcas a moda é ditada para o mundo. Cartier, Hermès, Dior e Chanel ditam as regras do luxo, mas também ditam a moda para milhares de consumidoras e consumidores. Não é só a cidade, mas o que vem intrinsicamente colada a ela.

Referências BRETON, A. Nadja. Ed Lazuli, 1980. NOURY, Larissa. La couleur de la ville. Ed le Moniteur. Paris, 2008. AUGÉ, Marc. L’impossible Voyage. Ed Payot & Rivages Poche, Paris, 1997. P 139 a 184.

Musee Galliera. Les années folles. Musée Galliera. Paris, 2008. SCACAKRIDER, F. Leche Vitrines. Ed IFM, Paris, 2008. Shoah memorial. La nuit de cristal. Paris 2008.

www.crunchwear.com/ www.warmx.com/ www.inspiration-press.com/flash5.html http://fr.wikipedia.org/wiki/Utilisateur:Clicsouris/Photos_du_m%C3%A9tro_de_Paris

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