a surdez e a educaÇÃo matemÁtica nas lembranÇas de...
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A SURDEZ E A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NAS LEMBRANÇAS
DE UM ALUNO DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Lizmari Greca1
Universidade Federal do Paraná
Anna Carolina Galhart2
Universidade Federal do Paraná
Viviane Aparecida Bagio3
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Illoine Maria Hartmann Martins4
Universidade Federal do Paraná
Resumo: Essa comunicação científica tem como objetivo apresentar uma entrevista que foi realizada para
a disciplina História da Educação Matemática no Brasil, ministrada pelo Prof. Dr. Carlos
Roberto Vianna, durante o primeiro semestre de 2014, no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Matemática, da Universidade Federal do Paraná. A entrevista foi
realizada com um aluno surdo, que frequenta a Educação de Jovens e Adultos, a partir da
metodologia da História Oral. A temática da entrevista proposta por uma das pesquisadoras era
de resgatar as lembranças sobre as experiências escolares nos anos iniciais, a respeito da Educação Matemática como também as dificuldades e facilidades em relação à comunicação,
aos professores, a escola, aos colegas e também as práticas pedagógicas dos professores.
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Matemática da Universidade
Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Vianna. Pedagoga com Especialização em
Educação Especial e Educação Bilíngue para Surdos. Professora intérprete e Formada do Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa - Curitiba – PR. 2 Mestre em Educação em Ciências e em Matemática pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em
Letras Português-Espanhol e Pedagogia. Coordenadora de Língua Portuguesa e Literatura e Co-coordenadora do Projeto Ler e Pensar da Secretaria Municipal de Educação Cultura e Esporte do
município de Campo Largo. Cursa a Especialização Docência do Ensino Superior. Orientadora de
Estudos do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - Campo Largo - PR. 3 Mestre em Educação em Ciências e em Matemática pela Universidade Federal do Paraná. Professora
colaboradora da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Graduada em Matemática. 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Matemática da Universidade
Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Vianna. Pedagoga com Especialização em
Gestão Educacional e Educação Especial. Acadêmica em Psicologia e Formada do Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa - Curitiba – PR.
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Através desse estudo, conclui-se que na leitura do depoente, a Matemática é difícil, associada a problemas e contas, e que para ser bem apreendida, necessita de manipulação, de vivência e de
experiência, bem como a importância da língua de sinais para a efetiva comunicação e suas
experiências com as professoras surdas, contribuindo assim de certa forma para as atuais discussões sobre a escola para surdos e a escola inclusiva.
Palavras-chave: Educação Matemática. Surdez. História Oral. Narrativa.
Introdução
Este estudo consiste em uma entrevista piloto para a disciplina de História da
Educação Matemática no Brasil, do Programa de Pós-Graduação em Educação em
Ciências e em Matemática da Universidade Federal do Paraná – PPGECM – UFPR,
ministrada pelo Prof. Dr. Carlos Roberto Vianna, durante o 1º semestre de 2014, tendo
em vista a metodologia da História Oral. Para Portelli (1997, p. 26), a História Oral trata
da subjetividade, memória, discurso e diálogo, consequentemente o que criamos é um
texto dialógico de múltiplas vozes e múltiplas interpretações.
A temática da entrevista realizada é resgatar as lembranças de uma pessoa surda
sobre as experiências escolares nos anos iniciais a respeito da alfabetização matemática,
instigando o entrevistado a contar as suas dificuldades e facilidades em relação à
comunicação, aos professores, à escola, aos colegas e também às práticas pedagógicas
dos professores. A História Oral Temática é quase sempre usada como técnica, pois,
frequentemente, articula diálogos com outros documentos históricos ou teóricos
(MEIHY, 2002, p. 145).
Neste trabalho não serão apresentados outros documentos ou fontes teóricas
sobre o tema proposto para a entrevista, somente o depoimento do aluno, a partir da
entrevista realizada por uma das autoras dessa comunicação científica.
A análise da entrevista se dá através de um conto, ou seja, é uma leitura das
pesquisadoras sobre a leitura do depoente. É uma narrativa sobre uma narrativa. “Na
análise narrativa de narrativas, o pesquisador desempenha o papel de constituir
significados às experiências dos narradores mediante a busca de elementos unificadores
e de alteridade, supondo que, mediante esse procedimento, estaria desvelando o modo
autêntico da vida individual” (CURY, 2011, p.164). No conto exprime-se o olhar do
depoente sobre as suas experiências com a surdez, o qual foi possível, por intermédio da
História Oral, contribuindo assim, com suas vivências para a comunidade surda.
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Metodologia da pesquisa e da coleta de dados
Segundo Meihy (2002, p. 51), a História Oral se apresenta como forma de
captação de experiências de pessoas dispostas a falar sobre aspectos de sua vida. Para o
autor, quanto mais elas os contarem a seu modo, mais eficiente será seu depoimento. As
narrativas orais posteriormente passam a materializar-se em documentos escritos.
A História Oral garante o seu status como metodologia, porque requer
procedimentos específicos, tais como: seleção dos depoentes, planejamento e
agendamento das entrevistas, gravação em áudio (ou vídeo), o moroso processo de
transcrição das gravações e o delicado processo de textualização, ou seja, a produção de
uma narrativa (GALHART, 2015; BAGIO, 2014).
Os depoimentos tornam-se, desta forma, as fontes para construir a compreensão
e a reflexão do seu interesse de estudo, não há preocupação com a verdade, mas sim
com as experiências vividas pelas pessoas.
Antes da entrevista com o aluno Jeam5, ocorreram dois momentos que
esclareceram ao depoente a importância de seu relato. Primeiramente foi encaminhada
uma carta de apresentação com o objetivo de esclarecer o motivo da entrevista. Em
seguida, a explicação de que a entrevista faria parte de um trabalho na disciplina de
mestrado e que, possivelmente, o trabalho poderia ter continuidade com a intenção de
ser apresentada na versão final da dissertação da pesquisadora.
Diante do exposto, a estratégia metodológica parte da entrevista inicial,
conduzida por perguntas relativas ao tema, a qual está apresentada na íntegra, com a
tradução6 feita das Libras – Língua Brasileira de Sinais – para a Língua Portuguesa,
gravada em vídeo por uma câmera fotográfica7. O vídeo foi traduzido para o português
escrito, sendo este momento caracterizado como a transcrição da entrevista, ou seja, a
5 Nome real de um dos participantes do trabalho de dissertação de Lizmari Merlin Greca, uma das autoras
do artigo. O nome não foi substituído, por escolha do entrevistado. 6 Favoreto da Silva (2011) esclarece em sua dissertação sobre o processo de tradução das entrevistas “não
é uma tarefa simples e neste trabalho há uma especificidade a se considerar devido ao fato de que os
entrevistados são usuários de outra língua – a Libras – o texto se constitui numa tradução interlingual, ou
seja, uma tradução realizada de uma língua de partida para uma língua alvo. Neste caso, a língua de
partida é a Libras e a língua alvo é a Língua Portuguesa, na modalidade escrita. Destacamos que, toda
tradução, por mais que seja fiel e/ou fidedigna, possui parte da subjetividade do tradutor”. 7 Pelo fato de a Língua Brasileira de Sinais, utilizar-se dos movimentos com as mãos e gestos, a entrevista
necessitou ser gravada em vídeo (e não em áudio como normalmente acontece), para que, na transcrição
fosse traduzida para a Língua Portuguesa.
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conferência do vídeo com o texto escrito. Após a transcrição do vídeo, foi elaborada a
textualização. Esta consiste em reescrever a entrevista deixando-a mais clara, sem as
marcas da língua oral (neste caso, a entrevista é em língua de sinais e, posteriormente,
traduzida e transcrita para o português escrito) e a escrita coerente para o leitor.
A História Oral tem contribuído em diversas áreas relacionadas à educação. Essa
abordagem metodológica tem sido utilizada para os estudos referentes à História da
Educação Matemática. O grupo de pesquisa em História Oral e Educação Matemática –
GHOEM (Grupo de História Oral e Educação Matemática) tem como intenção estudar
as possibilidades de utilização da História Oral como um recurso teórico-metodológico
para as pesquisas em Educação Matemática (GARNICA, 2006).
A História Oral contribui especialmente nas áreas pouco estudadas ou ainda
setores obscuros da sociedade, como é o caso da história da Educação dos Surdos. Esta
é contada nos livros por educadores e profissionais que se envolveram nesta área,
contudo há poucas narrativas em trabalhos acadêmicos de sujeitos que não obtiveram o
sucesso esperado na sua vida acadêmica e profissional. Diante disso, fez-se a escolha do
aluno Jeam8 para compor o cenário principal desse trabalho e também por ser um
estudante surdo, com passagem por escolas inclusivas e em escolas especiais para
surdo. Como a entrevistadora atuou em duas das escolas que o Jeam frequentou, pode-
se afirmar que faz parte da trajetória escolar deste jovem.
No quadro abaixo, temos uma descrição sobre a realização das entrevistas com o
aluno Jeam:
Quadro 1: Dados das entrevistas realizadas com o aluno Jeam
ENTREVISTAS COM O ALUNO JEAM
Data Local da entrevista Duração da entrevista
1ª ENTREVISTA 14/05/2014 Sala de aula do
CEEBJA em que estuda 14’25”
2ª ENTREVISTA 02/06/2014 Sala de aula do
CEEBJA em que estuda 21’
Fonte: Adaptado de GRECA (2015)
As duas entrevistas foram realizadas em uma sala de aula do CEEBJA Paulo
Freire, com a presença das professoras de Ciências e Matemática, e dois alunos dessas
8 Jeam tem 22 anos, atualmente é estudante de um EJA. Na data da entrevista, o depoente estava cursando
as disciplinas de Língua Portuguesa e Ciências – Ensino Fundamental.
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disciplinas. É importante ressaltar que Jeam não se sentiu constrangido na presença
dessas pessoas, pois ele está sempre nesta sala e conhece muito bem as pessoas. É
importante destacar que não houveram interrupções nas entrevistas.
É relevante informar que Jeam possui dificuldades para a leitura em Língua
Portuguesa, pelo fato de ser a sua segunda língua. Por essa razão, optou-se por usar
perguntas em Libras e as respostas espontâneas também na sua língua. Não seria
adequado utilizar das fichas com palavras-chave, por Jeam desconhecer algumas
palavras e a tradução das fichas poderia interferir em suas respostas. Segue um trecho
do depoimento da entrevistadora, sobre a sua relação com o aluno:
Quando conheci Jeam ele estava matriculado em uma escola para surdos em Curitiba na 5°
série, nesta ocasião eu estava como Pedagoga da escola, muitos anos depois reencontro Jeam
ainda em busca da sua certificação do Ensino Fundamental, na educação de jovens e adultos.
Atualmente Jeam é aluno da EJA, tem 22 anos, está cursando o Ensino Fundamental nas
disciplinas de Língua Portuguesa e Ciências e eu sou a tradutora e intérprete de Libras e
Língua Portuguesa. Jeam finalizou as seguintes disciplinas: História, Geografia, Educação
Física e Artes. (Depoimento de Lizmari, que além de pesquisar o tema é intérprete do aluno
atualmente).
Nessa seção abordou-se a metodologia para a coleta de dados. Na sequência será
realizada uma breve explanação sobre a surdez como experiência visual e a atual
legislação que dispõe da garantia do ensino bilíngue para os surdos no Brasil, a fim de
proporcionar ao leitor uma compreensão sobre o tema.
A surdez como experiência visual
A história da educação dos surdos se constitui por conflitos polêmicos em
relação às questões linguísticas, considerando que por muitos anos as propostas
educacionais direcionadas a esses sujeitos estavam voltadas às terapias de fala. A partir
do Decreto Federal Nº 5626/05 que regulamenta a Lei Federal N° 10.436/2002
(BRASIL, 2005), houve então o fortalecimento das políticas públicas que envolvem a
educação de surdos, trazendo para os contextos educacionais a proposta educacional
bilíngue, tanto nas escolas inclusivas, bem como nas escolas para surdos.
Atualmente, no Brasil, a educação bilíngue é garantida pela legislação tanto nas
escolas para surdos como nas escolas inclusivas. O Decreto 5626/05, no artigo 2º,
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conceitua a pessoa surda como a que se comunica através de experiências visuais e de
Libras: “Considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e
interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura
principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras” (BRASIL, 2005).
Atualmente a surdez é entendida como uma diferença linguística e não como a
deficiência pela falta do não ouvir ou falar. Segundo Strobel (2008), as pessoas surdas
participam de “experiências visuais” e percebem o mundo de maneira diferente. A
língua de sinais é o meio e o fim da interação social, cultural e científica da comunidade
surda (QUADROS; SCHMIEDT, 2006).
Na abordagem bilíngue é através da língua de sinais que o sujeito surdo participa
efetivamente das interações sociais. Entretanto, ocorre que muitos alunos surdos
(independentemente da idade) chegam à escola sem contato anterior com a língua de
sinais, pelo fato de que muitas dessas crianças são filhas de pais ouvintes e têm o seu
primeiro contato com as Libras no contexto escolar. Dessa forma, vale considerar que
nem sempre é possível encontrar alunos fluentes em Libras nos anos iniciais do Ensino
Fundamental em escolas inclusivas e escolas para surdos.
De acordo com Luria (2014a), desde pequena o desenvolvimento mental da
criança ocorre por influência da realidade objetiva e pela comunicação com os adultos.
As crianças surdas as quais não tem acesso ao ambiente claro e completo ao fluxo
contínuo da língua são privadas de acesso às compreensões do legado cultural e
maneiras de pensar, afirma Daniels (2011).
Assim sendo, cabe à escola promover o acesso e o desenvolvimento da língua,
através da participação nas atividades permanentes com profissionais fluentes nesta
língua porque é por ela que terá acesso ao conhecimento historicamente produzido. O
contato com o ambiente sociocultural na relação com os outros, com oportunidades
apropriadas de aprendizagem, o potencial superior das crianças se manifesta. Para
Vigotski9 (2007), as funções psíquicas superiores não nascem com as pessoas, elas se
desenvolvem a partir de condições disponibilizadas para cada sujeito em atividade, em
ação, em tarefas, em desafio, em problemas.
9 Devido às diversas grafias do nome de Vigotski, optamos por manter a escrita com “i”. No entanto, nas
consultas feitas em referenciais, temos livros nos quais seu nome aparece com “y” e, por serem parte das
referências essa escrita foi mantida.
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Goldfeld (2002) afirma que se a criança estiver inserida em uma comunidade e
interagir com seus membros ela poderá empregar essa língua tanto para a comunicação
como para o desenvolvimento cognitivo. Levando em consideração a criança surda, a
língua de sinais pode resolver dificuldades no desenvolvimento das funções superiores
que necessitam da linguagem como mediadora.
Isto é observado na entrevista com Jeam, que construiu memórias com seus
professores que lhe ensinaram a Libras e por ela aprendeu que os objetos e as pessoas
tinham nomes, sinais e com eles podia se comunicar. Na primeira infância existe uma
união íntima entre a palavra e o objeto, ou entre o sinal e o objeto. De acordo com
Vigotski (apud MINICK, 2002), a criança pequena está presa aos campos perceptivos,
assim como “os significados das palavras estão igualmente presos a seus objetos para a
criança pequena” (MINICK, 2002, p. 51), mas pela atividade lúdica, “o pensamento e os
significados são libertados de suas origens no campo perceptivo” (MINICK, 2002,
p.51).
Abordou-se em linhas gerais a surdez como experiência visual. Na seção
seguinte apresenta-se uma breve discussão sobre a Educação Matemática.
Educação Matemática
O aprendizado da Matemática, de acordo com a teoria Histórico-Cultural,
também começa muito antes da criança entrar na escola. Antes de entrar na escola as
crianças já tiveram experiências com a contagem, já desenvolveram atividades de
contagem, estabeleceram relações, talvez no simples ato de arrumar a mesa colocando
pratos para todos os membros da família fazendo relação termo a termo, já fazendo
operações de divisão e adição. Para Buriasco (1988, p.34), as noções de quantidade
estão presentes no ambiente em que vivem as crianças, como por exemplo, “quantos
anos têm, quantos irmãos têm, quantos cômodos tem a casa onde moram, etc.”.
Pela sua importância, este processo de aprendizagem, que só produz
antes que a criança entre na escola, difere do modo essencial do
domínio de noções que se adquirem durante o ensino escolar. Todavia, quando a criança, com suas perguntas, consegue apoderar-se dos
nomes dos objetos que a rodeiam, já está inserida numa etapa
especifica de aprendizagem. Aprendizagem e desenvolvimento não entram em contato pela primeira vez, na idade escolar, portanto, mas
estão ligadas entre si desde os primeiros dias de vida da criança
(VIGOTSKI, 2014, p.110).
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O conceito de número é abstrato e surge pela necessidade do contar e é no
período escolar que a criança desenvolve as habilidades e os conceitos abstratos
necessários para a contagem. Para Luria (2014b), os conhecimentos pré-escolares não
garantem uma continuidade no desenvolvimento aritmético da criança na escola. A
Matemática pré-escolar, aquela aprendida pela criança antes de entrar na escola, sempre
entra em choque com a Matemática aprendida na escola10
. O professor deve saber que a
assimilação da Matemática cultural pela criança é sempre conflitiva (VYGOTSKY,
2012). Dito de outro modo, o desenvolvimento produz uma ruptura, um choque entre as
formas de operar com quantidades elaboradas pelas crianças e aquelas que os adultos
propõem. Para o autor, a Matemática escolar constitui um momento de mudança, pois os
conhecimentos matemáticos pré-escolares entram em conflito com os escolares. Isso
não significa que a escola aborde um ensino de maneira puramente mecânica. Nesse
choque tem lugar uma etapa nova, ulterior, de desenvolvimento do cálculo
(VYGOTSKY, 2012)11
.
A temática da entrevista proposta pela pesquisadora Lizmari era resgatar as
lembranças sobre as experiências escolares nos anos iniciais a respeito da Educação
Matemática como também as dificuldades e facilidades em relação à comunicação, aos
professores, a escola, aos colegas e também às práticas pedagógicas dos professores.
Nesse processo Jeam rememora a relação com a mãe, irmãos, amigos, professores,
inclusive aspectos físicos das pessoas como também os sentimentos que estas pessoas e
a interação com elas lhe provocava. Jeam também sinaliza outras palavras e, entre elas,
a palavra Matemática, mas nada além dela. Nossos questionamentos iniciais se voltaram
para a questão da memória. A memória "é um processo criador de elaboração de reações
percebidas e alimenta todos os campos do nosso psiquismo" (VIGOTSKY, 2010,
p.195).
De acordo com Luria (2014b), a história da criança fora da escola tem grande
peso no desenvolvimento da escrita. Não é na escola que se inicia o processo de
aprendizagem da linguagem escrita e tampouco o aprendizado da Matemática, mas é
nela que os conceitos de origem superior se desenvolvem.
10 Segundo Luria (2014b), a Matemática aprendida na escola é chamada de Matemática Cultural, pois se
refere ao conhecimento científico aprendido nas instituições de ensino. A Matemática natural seria
considerada como todo conhecimento espontâneo nessa área de conhecimento. 11 Tradução nossa.
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Apresentou-se um debate sobre a Educação Matemática. Na sequência
apresentaremos a entrevista textualizada do aluno Jean. Em negrito deixamos
destacados alguns trechos que serão utilizados na análise do seu depoimento.
Jeam e a surdez
Nasci surdo, tenho quatro irmãos ouvintes, meu pai saiu de casa quando eu era
pequeno.
Lembro me quando os meus irmãos falavam e eu me sentia isolado, mas eu brincava
com meus amigos. Estava sempre junto com a minha mãe. Meus irmãos sabiam um pouquinho
de Libras, eles usavam a linguagem gestual. Era muito difícil.
Frequentei uma escola próxima à prefeitura de Piraquara com outros surdos era muito
bom. A professora sabia um pouco de Libras.
Quando passei a frequentar o CRESA12,
eu aprendi muito com a professora Karin, ela
me ensinava Libras e Português e eu compreendia tudo. Fazíamos teatro, era muito legal!
A melhor escola que frequentei foi o CRESA. Eu fazia muitas coisas boas,
brincadeiras, festas, passeios, etc. As professoras eram carinhosas.
Depois eu fui para outra escola, e lá foi mais difícil, a escola tinha mais alunos. Eu
copiava o mau comportamento dos alunos, muitas brigas e desentendimentos. Eu gostava da
professora de Educação Física que era loura de cabelo encaracolado, brincava e jogava bola.
Nesta escola a professora me entregava cópias para pintar, muitas cópias.
Não sei bem o que significa a educação bilíngue, acho que deve ser algo com o
Português.
Eu acho que podemos ensinar uma pessoa, mostrando alguns sinais como, por
exemplo: oi, nome, sinais das frutas e assim por diante.
Para o ensino do Português podemos explicar como se constrói a frase, exercícios de
ligar o desenho à palavra, caça-palavras e cruzadinhas.
As professoras surdas Karin no CRESA e, Elizanete na outra escola me ensinavam o
Português e a Matemática e eu entendia tudo. Com o professor ouvinte é diferente, ele
ensinava diferente e eu não entendia, às vezes eu aprendia um pouquinho.
Quanto às aulas de Matemática, eu aprendia a escrever os números e desenhar as
quantidades, por exemplo: 8. A Matemática não é fácil, principalmente as continhas
horizontais. O melhor é a criança desenhar, usar peças de encaixe, movimentar as peças e
saber responder quantas peças tem em cada lugar.
Aprendo muito com a professora Eliana no CAES13
. Ela me ensina os verbos e as
frases em Língua Portuguesa, levo os textos daqui da escola para ela me explicar. Também
aprendo sobre temas como a escravidão, Páscoa, etc. E também sobre a criação do Jardim
Botânico. Gostaria que no CAES estivessem frequentando mais surdos, talvez jovens e
crianças. Eu sei que é difícil para os jovens frequentarem o CAES comigo e a com a Glaci,
12
CRESA – Centro de Reabilitação Sydnei Antonio, esta instituição encerrou suas atividades no
município. 13 CAES – Centro de Atendimento Especializado na Área da Surdez.
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pois já somos adultos. Já convidei o meu amigo César e outros também.
Não gosto de aprender a falar, em minha opinião o surdo tem que ir direto para o
aprendizado da Libras, a Libras é visual, ela é a minha língua. Em casa eu tenho vários
vídeos em Libras. Gosto também da presença do intérprete.
Também não compreendo a fala das pessoas, esse movimento dos lábios, realmente
não gosto da oralidade.
Atualmente frequento a EJA, gosto do professor de História, Educação Física e a
professora Kátia de Ciências, não gostava do jeito da professora de Ciências do ano passado.
O professor de Geografia tem o jeito dele, eu respeito. Eram legais as aulas de Artes, eu
desenhava e recortava gravuras.
Na semana passada a intérprete estava fazendo um curso e não compareceu, fiquei
com vergonha quando a professora de Português dava as atividades para fazer, tudo bem eu
tive paciência.
Nesta escola têm intérpretes de Libras, ano passado estava a Rute e a Lizmari. Neste
ano a minha intérprete é a Lizmari, tem também a Daniele e o Reginaldo.
Quando acabar a disciplina de Ciências, vou fazer Inglês e para o próximo ano a
última disciplina, a Matemática. A Matemática é difícil tem problemas para resolver e a
também a multiplicação. Talvez no próximo ano tenha uma nova professora de Matemática.
Análise narrativa de narrativa
Nas seções anteriores percebe-se que a História Oral é uma metodologia
qualitativa que possibilita trazer à tona as histórias desconhecidas das pessoas.
Apresentamos, a seguir, uma análise narrativa da narrativa de Jeam, na ótica das
pesquisadoras. Não é a intenção buscar elementos de justificativa ou contradição, mas
apresentar uma leitura da narrativa do depoente.
Nas mãos: o mundo14
...
Silêncio! O silêncio fez parte da vida de Jeam.
14 Optou-se por uma análise em forma de conto, uma vez que não é objeto da História Oral analisar a
veracidade ou não de sua fala ou inferir sobre ela, mas proporcionar contribuições à comunidade ao qual
o depoente pertence, a fim de constituir novas histórias sobre aqueles que nem sempre são ouvidos. Além
disso, ao apresentarmos um conto podemos recriar os espaços e os acontecimentos retratados na
entrevista de forma diferenciada.
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Surdo de nascença em uma família de ouvintes. Desde muito pequeno conheceu
o significado da diferença, mas não da indiferença, pois entre gestos e brincadeiras, a
acolhida! Do pai recorda-se a ausência. Da mãe, a paciência.
Na segunda instituição que frequentou, conheceu Karin, a professora surda,
mediadora da primeira e da segunda língua. Escola boa, da Libras, de interação,
passeios, brincadeiras e afeto!
Na outra escola, maus exemplo, muitos alunos, conheceu a professora Elizanete
e a professora loura de Educação Física que jogava bola. Jeam pintou folhas e folhas
para conter a indisciplina.
Karin, Elizanete, e Eliana, as professoras surdas, e as intérpretes Lizmari e Rute
compreenderam o seu calar e o seu comunicar-se. Proporcionaram-lhe dispositivos de
boas lembranças.
Jeam conhece o que seja educação bilíngue, na sua forma de compreensão.
Refuta a oralidade e não compreende a leitura labial. É fluente em sua primeira língua.
E para quem tem o mundo nas mãos, realmente precisa de outra língua?
***
Qual é a importância das lembranças de um surdo? Qual é?
As minhas lembranças da escola não são muitas! Recordo-me das brincadeiras,
das cruzadinhas, das datas comemorativas, da história do Jardim Botânico, dos colegas
e das professoras surdas.
Um surdo deve ter o direito de se comunicar em sua língua, a Libras. Tenho
muitos vídeos em minha casa, eu os vejo.
A Matemática não é fácil, principalmente as continhas horizontais. A
Matemática através de objetos manuseados é mais fácil, pois é visual.
Na EJA, vou cursar a Matemática por último, por que é mais difícil. Há
problemas para resolver.
O meu mundo é visual. É assim que leio o mundo! Compreendo o mundo com
os olhos e também com as mãos!
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Considerações
Essa comunicação científica tem como objetivo apresentar uma entrevista
apresentada para a disciplina História da Educação Matemática no Brasil, ministrada
pelo Prof. Dr. Carlos Roberto Vianna, durante o primeiro semestre de 2014, no
Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Matemática, da
Universidade Federal do Paraná. A entrevista foi realizada com um aluno surdo, que
frequenta a Educação de Jovens e Adultos, a partir da metodologia da História Oral. A
temática da entrevista proposta, com base nos direcionamentos da disciplina cursada foi
o resgate das lembranças sobre as experiências escolares nos anos iniciais a respeito da
Educação Matemática como também as dificuldades e facilidades em relação à
comunicação, aos professores, a escola, aos colegas e também as práticas pedagógicas
dos professores.
Apresentou-se uma discussão sobre a educação dos surdos, e a Educação
Matemática pautadas em teóricos que subsidiaram as leituras. A análise da narrativa se
constituiu através de uma narrativa, ou seja, narrativa de narrativa, pois não foi a
proposta desse estudo analisar o depoimento do entrevistado, pois esse fala por si.
Alguns aspectos da entrevista de Jeam são relevantes e possibilitam reflexões.
Na frase em que Jeam trata da Matemática, especificamente, é breve, mas nos
proporciona diversos entendimentos. Quando ele afirma: “As professoras surdas [...] me
ensinavam Português e Matemática e eu entendia tudo. Com o professor ouvinte é
diferente, ele ensinava diferente e eu não entendia, às vezes eu aprendia um pouquinho”.
É importante esse destaque entre o professor que é surdo e o ouvinte. A aprendizagem
se torna mais fácil com o ensino sendo feito por um professor surdo, pois a
comunicação é direta, assim os conteúdos são melhores apreendidos. Por outro lado,
quando o aluno possui um professor específico da disciplina e o intérprete de Libras
(TILS), seu foco tem de se dividir entre a interpretação do profissional intérprete e as
explicações. Este tema está presente nas atuais discussões da comunidade surda a favor
da escola bilíngue para surdos.
Na leitura de Jeam, a Matemática é algo de difícil compreensão. Ele a associa a
problemas e contas, contas difíceis na horizontal. Tanto que durante o curso na
Educação de Jovens e Adultos irá cursá-la por último. No entanto, Jeam alerta, em seu
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depoimento que a Matemática para ser bem apreendida, necessita de manipulação, de
vivência e de experiência. Além de ressaltar a importância da língua de sinais para a
efetiva comunicação e o quanto foram significativas as suas experiências com as
professoras surdas, contribuindo assim de certa forma para as atuais discussões sobre a
escola para surdos e a escola inclusiva.
Espera-se que essa comunicação científica possibilite um debate acerca da
relação entre surdez e Educação Matemática e venha a contribuir e a dialogar com
pesquisas futuras.
REFERÊNCIAS
BAGIO, V. A. Da escrita à implementação das DCE/PR: um retrato feito a cinco
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