a moeda

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Conto de Gonçalo M. Tavares. Published November 10th 2012 by DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora

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— • —Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa | AfonsoCruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho | Dulce Maria Cardoso |Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado | JP Simões | Rui Cardoso

Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio | David Soares | Pedro Santo |Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira | Patrícia Portela | Nuno Costa

Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DNinesmassas_icqmail.com===zfMekNpd4ySncFK7H22LEv5ECOvQt3yBKCIe5UJ5Z9Y=

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Contos Digitais DNA coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo

Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.

Autor: Gonçalo M. TavaresTítulo: A Moeda

Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel NetoDesign e conceção técnica de ebooks: Dania AfonsoESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com

© 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora

ISBN: 978-989-8507-05-1

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, doDiário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será

passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.inesmassas_icqmail.com===zfMekNpd4ySncFK7H22LEv5ECOvQt3yBKCIe5UJ5Z9Y=

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sobre o autor— • —

Gonçalo M. TavaresNasceu em Luanda, em 1970, mas vive em Portugal desde os 3 anos de idade. A sua estreia literária deu-se em 2001, com O Livro daDança, e desde aí não tem parado de publicar, de granjear leitores e reconhecimento nacional e internacional: 30 livros numa década,do romance à poesia, passando pelos contos, o ensaio e o teatro; variadíssimos prémios; edições em mais de 40 países.Recebeu, entre outros, o Prémio José Saramago 2005, o Prémio LER/Millennium bcp 2004 e o Prémio Portugal Telecom de Literatura2007 (Brasil) pelo romance Jerusalém (2004); o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco com água, cão, cavalo, cabeça(2006); o Prémio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian e do jornal Expresso com o livro O Senhor Valéry(2002); o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com Investigações. Novalis (2002). Maisrecentemente, pelo romance Aprender a Rezar na Era da Técnica (2007) recebeu o Prémio de Melhor Livro Estrangeiro publicadoem França em 2010, e com Uma Viagem à Índia (2010) o Grande Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Autores2011.Em termos internacionais, podemos ainda destacar o Prémio Internacional Trieste 2008 (Itália) e o Prémio Belgrado Poesia 2009(Sérvia).Um pouco por todo o mundo, os seus livros têm dado origem a variadíssimos projetos artísticos, arquitetónicos e académicos.inesmassas_icqmail.com===zfMekNpd4ySncFK7H22LEv5ECOvQt3yBKCIe5UJ5Z9Y=

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A Moeda— • —

Gonçalo M. Tavares

Vass Kartopeck dobrou-se pela segunda vez para pegar na moedinha.De novo! — exclamou.A rapariga riu-se.

Num certo sentido, Vass Kartopeck estava doente. Manchas incómodas espalhavam-se por baixodos olhos e ao nível do pescoço, obrigando-o a pequenos gestos para acalmar aquilo que designavacomo sendo “um espantoso fervor no rosto”.

Numa noite já afastada no tempo — há alguns meses — a rapariga, depois do amor, e com umacerta perversidade controlada, começou a contar as pequenas manchas escuras: um, dois, três, quatro...

Está rico, senhor! — troçara — Mais de catorze manchas!Kartopeck não parava agora de esfregar com a mão direita, sobretudo as manchas debaixo dos

olhos.Na presença da sua mãe, na consulta anterior, o médico dissera:São manchas, simplesmente, que quer que faça? Se considerar que a boa apresentação física é

sintoma de saúde, então vossa excelência estará doente. Se não, esqueça: as manchas são feias, é claro,mas há quem, sem elas, esteja mais marcado.

Nessa altura, saiu do consultório ajudando a mãe; esta nada compreendera: há muito havia perdidoas capacidades mínimas que permitem a uma existência ser autónoma. Um homem de rosto deformadoajuda uma velha — pensou, instintivamente, Vass Kartopeck, tentando abstrair-se do olhar dossenhores da cidade com que se iam cruzando.

Dias depois começara o tal fervor na pele: as manchas ardiam calmamente, em lume brando, diziaKartopeck.

A rapariga, no entanto, não parara de troçar. Depois de mais uma oferta generosa, ainda no quarto,ela experimentara os limites da paciência do senhor Kartopeck. Primeiro contara as moedas recebidasem voz alta, colocando-as num pequeno monte: um, dois, três, quatro, cinco... Quando o montedesmoronava — o que aconteceu várias vezes — a rapariga retomava a contagem: um, dois, três,quatro... Eram catorze moedas.

Esta contagem seguira-se — com um pequeno intervalo — à contagem das manchas no rosto, daí osorriso obsceno da rapariga.

Onze manchas — disse ela, primeiro.E segundos mais tarde, disse:14 moedinhas! — E sorriu para o senhor Vass Kartopeck.Kartopeck trajava de um modo rude e era evidente que não permitia influências excessivas da

cidade no seu modo de vestir. Tudo o resto poderia ser visto como causa ou efeito deste pormenor.Kartopeck raramente descia ao centro, e quando o fazia não deixava de se sentir indisposto,prolongando acidamente um discurso negativo sobre os movimentos e os hábitos que a turbulência do

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centro exigia aos cidadãos.Algumas pessoas com quem se cruzava multiplicavam-se em gestos de uma rapidez quieta e não

produtiva que espantava o seu olhar observador. Aqueles homens tentavam resistir à desordem e aofacto de não dominarem o tempo — nem o seu século, nem aquele dia em particular — afundando-senum conjunto de rituais que envolviam braços levantados, dedos esticados a chamar a atenção de ummeio de transporte mais rápido, tanto burburinho, mas no fundo tudo aquilo não passava de umaespécie de exibição de possibilidades, vindas de corpos claramente habituados a aceitar, e não a exigir.Assim pensava Vass Kartopeck, que no seu pequeno mundo — insignificante para aquela gente, écerto — se habituara a mandar.

Pela segunda vez estava em frente do médico. Tinham passado apenas seis meses e entretantoocorrera um facto absolutamente relevante: o falecimento da sua mãe.

Kartopeck entrou no consultório com a rapariga e os dois sentaram-se à espera.A empregada reconheceu-o e, depois de um rápido olhar, perguntou:Está pior?Sim, murmurou Kartopeck.As manchas haviam aumentado de tamanho e uma cor acinzentada — sem paralelo no mundo da

saúde — surgia desde o ponto central de cada mancha. Por estar treinada a ver o que assusta, afuncionária do consultório disfarçou perfeitamente o esgar de rejeição que todos, por instinto, faziam,quando, pela primeira vez, e de surpresa, contactavam com aquele rosto. A desordem de há mesesganhara uma forma, digamos, monstruosa. Como se o desarranjo da pele, após uma hesitação inicial,tivesse finalmente avançado para uma outra forma de expressão, que já não era humanamenteeducada. O rosto de Kartopeck tornara-se horrendo, impróprio, como se de facto ele cometesse umaindelicadeza em relação às outras pessoas. Se estivesse nu, em plena sala de espera, Kartopeck nãocausaria maior rejeição moral. A fealdade do seu rosto entrara já no campo do pecado, abandonara odas falhas físicas.

Claro que a rapariga que o acompanhava também não passou despercebida. O modo de vestirevidenciava duas coisas: não era da cidade e era uma prostituta. Mesmo sentada ela não parava de semexer, de compor a saia, num gesto perfeitamente despropositado de pudor, gesto que cheirava afalso, pois era sincronizado com um olhar excitado que varria toda a sala de espera; e todos os que alise encontravam eram envolvidos por esse olhar. Ela sentia-se radiante por estar ali.

O desconforto que aquele casal provocava nas outras pessoas ganhou em pouco tempo umadimensão significativa. Com uma desculpa de última hora, uma das senhoras que esperava consultalevantou-se e saiu.

A sua mãe?Morreu — respondeu Kartopeck, que estava já em pé, preparado para entrar. — Há dois meses —

acrescentou.A funcionária baixou os olhos, por inabilidade cometera uma indiscrição.Mas de dentro chamaram. Chegara a vez de Vass Kartopeck.A rapariga ficou à espera na sala, por ordem do médico. Ela sorria. O médico ter-se dirigido a si,

especificamente, causara-lhe um enorme impacto — mesmo que proibindo-a de entrar.Esse rosto está pior! — disse, de imediato, lá dentro, o especialista.E sentaram-se.Mas tenho aqui as suas análises — continuou. — Não há qualquer problema de saúde. O senhor

Kartopeck não está doente. Isso é claramente um problema exterior que não veio de dentro doorganismo, nem há qualquer motivo para suspeitar que caminhe para lá. É desagradável estar a ficarcom o rosto deformado, mas da parte da medicina só lhe podemos recomendar alguns produtos paraacalmar a irritação da pele, e só o podemos tranquilizar: não morrerá um minuto mais cedo por ter

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assim o rosto.Kartopeck estava aliviado: nas últimas semanas construíra um cenário mental onde a degradação do

seu exterior correspondia a uma sentença de morte. Tinha mesmo ensaiado o modo corajoso de reagirà frase que previa ouvir: Tem apenas seis meses de vida!

Os comentários apaziguadores do médico foram assim recebidos como quem recebe uma grandenotícia. Uma vitória!

A consulta foi rápida. À saída, antes de o médico abrir a porta, Vass Kartopeck, tentando mostrar asua gratidão, enfiou a mão direita no bolso e tirou uma moeda que estendeu na direcção do médico.Este recusou, com um afastamento delicado do braço, e, controlando a vontade de soltar umagargalhada, sorriu.

Na cidade não se oferecem moedas aos médicos — disse. — Guarde-a para si.Vass Kartopeck, envergonhado, escondeu logo a moeda na sua própria mão fechada: era um

labrego, absolutamente um labrego!, e mais uma vez isso ficara à vista de todos. Sou um imbecil,murmurou para si próprio.

Felicidades — disse o médico, para os dois.Foi depois já em plena rua, a menos de duzentos metros do ponto onde, no chão, estava assinalado o

centro da cidade, que Kartopeck deixou cair pela segunda vez a moeda que trazia na mão.De novo! — exclamou Kartopeck, irritado consigo próprio.E a rapariga riu-se.

fim

in Best European Fiction 2011( Dalkey Archive Press — Versão traduzida para Inglês)

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

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