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Neal Bascomb A fortaleza de inverno A missão épica para sabotar a bomba atômica de Hitler tradução Cássio de Arantes Leite

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Neal Bascomb

A fortaleza de invernoA missão épica para sabotar a bomba

atômica de Hitler

tradução Cássio de Arantes Leite

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Copyright © 2016 by Neal Bascomb. Todos os direitos reservados.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original The Winter Fortress: The Epic Mission to Sabotage Hitler's Atomic Bomb

Capa André Kavakama

Foto de capa Kaja Pedersen/ Norsk Industriarbeidermuseum

Preparação Diogo Henriques

Índice remissivo Probo Poletti

Revisão Márcia Moura Clara Diament

[2017] Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz s.a. Praça Floriano, 19 – Sala, 3001 20031-050 – Rio de Janeiro – rj Telefone: (21) 3993-7510 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br facebook.com/editoraobjetiva instagram.com/editora_objetiva twitter.com/edobjetiva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Bascomb, NealA fortaleza de inverno: a missão épica para sabotar

a bomba atômica de Hitler / Neal Bascomb; tradução Cássio de Arantes Leite. – 1a ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

Título original: The Winter Fortress: The Epic Mission to Sabotage Hitler's Atomic Bomb. isbn 978-85-470-0039-4

1. Bomba atômica – Alemanha – História. 2. Guer-ra Mundial – 1939-1945 – Alemanha – Tecnologia 3. Guerra Mundial, 1939-1945 – Operações de co-mando – Noruega 4. Sabotagem – Noruega – História – Século 20. i. Título.

17-03097 cdd-940.54

Índice para catálogo sistemático:1. Guerra Mundial: 1939-1945: Operações de

comando: História 940.54

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Àqueles que enfrentam a luta

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Você tem de lutar por sua liberdade. E pela paz. Você tem de lutar por elas todos os dias, para mantê-las.

É como um barco de vidro; é fácil de quebrar. É fácil de perder.joachim rønneberg, líder da gunnerside

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Sumário

Mapas ................................................................................................................. 11Lista de participantes ........................................................................................ 17Prólogo ................................................................................................................ 19

parte i1. A água ........................................................................................................ 252. O professor ............................................................................................. 403. Bonzo ....................................................................................................... 544. O filho do zelador .................................................................................. 695. Uma estrada aberta ................................................................................. 82

parte ii6. Ordem de comando ............................................................................... 1017. Façam um bom trabalho ......................................................................... 1128. Loucos para entrar em ação .................................................................. 1209. Um destino incerto ................................................................................ 13410. Perdas ..................................................................................................... 146

parte iii11. O instrutor ............................................................................................. 16112. Aqueles boçais não vão pegar a gente ................................................ 17113. Regras de um caçador ........................................................................... 183

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14. A guerra solitária, sombria ................................................................... 19415. A tempestade ......................................................................................... 20516. Planejamento ......................................................................................... 21817. A escalada ............................................................................................... 22818. Sabotagem .............................................................................................. 238

parte iv19. O feito mais esplêndido ...................................................................... 24920. A caçada ................................................................................................. 26121. Os fantasmas do Vidda ........................................................................ 27122. Um passatempo nacional .................................................................... 28223. Lista de alvos......................................................................................... 29224. A missão do Caubói ............................................................................. 302

parte v25. Nada vem sem sacrifício ...................................................................... 31526. Cinco quilos de peixe .......................................................................... 32427. O homem do violino ............................................................................ 33528. Despertador para as 10h45 ................................................................ 34429. Vitória .................................................................................................... 356

Epílogo ............................................................................................................... 367

Agradecimentos ................................................................................................. 371Notas .................................................................................................................. 375Referências bibliográficas .................................................................................. 423Índice remissivo .................................................................................................. 433

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Lista de participantes

Operação Grouse/SwallowJens-Anton Poulsson, líder da GrouseKnut Haugland, operador de rádioClaus HelbergArne KjelstrupEinar Skinnarland

Operação GunnersideJoachim Rønneberg, líder da GunnersideKnut Haukelid, segundo em comandoBirger StrømsheimFredrik KayserKasper IdlandHans Storhaug

Sabotagem da D/F HydroAlf Larsen, engenheiro em VemorkKnut Lier-Hansen, combatente de resistência da MilorgGunnar Syverstad, assistente de laboratório em VemorkRolf Sørlie, engenheiro civil em VemorkKjell Nielsen, gerente de transporte em VemorkDitlev Diseth, aposentado da Norsk Hydro

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NorueguesesLeif Tronstad, cientista e líder da Kompani LingeJomar Brun, engenheiro-chefe em VemorkTorstein Skinnarland, irmão de EinarOlav Skogen, líder da Milorg local de RjukanLillian Syverstad, mensageira para Einar SkinnarlandFamílias Hamaren, Hovden e Skindalen, fazendeiros que ajudaram Skinnarland

AliadosWinston Churchill, primeiro-ministro da Grã-BretanhaFranklin D. Roosevelt, presidente dos Estados UnidosEric Welsh, diretor da agência norueguesa do Secret Intelligence Service (sis) britânicoJohn Wilson, chefe da seção norueguesa da Special Operations Executive (soe) britânicaWallace Akers, chefe do Directorate of Tube AlloysMark Henniker, oficial comandante da Operação FreshmanOwen Roane, piloto da Força Aérea Americana

Nazistas e colaboracionistasJosef Terboven, Reichskommissar na NoruegaGeneral Nikolaus von Falkenhorst, chefe das forças militares alemãs na NoruegaTenente-coronel Heinrich Fehlis, chefe da Gestapo e das forças de segurança na NoruegaCapitão Siegfried Fehmer, investigador da Gestapo em OsloSegundo-tenente Muggenthaler, oficial da ss de Fehlis em RjukanVidkun Quisling, líder do Nasjonal Samling, o partido fascista norueguês

Cientistas alemãesKurt DiebnerWerner HeisenbergPaul HarteckAbraham EsauWalther Gerlach

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Prólogo

noruegA ocuPAdA PeLoS nAziStAS, 27 de fevereiro de 1943

Numa fila cambaleante, os nove sabotadores deslizavam pela encosta monta-nhosa.1 O instinto, mais do que o fraco luar, os orientava. Cruzavam bosques de pinheiros e atravessavam o terreno íngreme e acidentado, na maior parte composto de pequenos vales estéreis e densos montes de neve. Vestindo tra-jes camuflados brancos sobre os uniformes do Exército britânico, pareciam fantasmas assombrando a floresta. Moviam-se em silêncio como espectros, a quietude quebrada apenas pelo chiado leve de seus esquis e o ocasional cho-que de um bastão contra algum galho. O vento quente e regular que soprava pelo vale do Vestfjord amortecia até esses ruídos. O mesmo vento que, assim esperavam, apagaria seus rastros.

Após um quilômetro e meio pelo trajeto desde a cabana-base, a flores-ta ficou fechada demais para prosseguirem de alguma outra maneira que não a pé. Os jovens noruegueses tiraram os esquis e os puseram sobre os ombros. O avanço continuou sendo árduo. Carregando mochilas com mais de quinze quilos de equipamento e armados de submetralhadoras, grana-das, pistolas, explosivos e facas, afundavam, escorregavam e precisavam usar as mãos e os pés para descer pela neve pesada e úmida. Sob o peso do equipamento, por vezes viam-se afundados nela até a cintura. A escu-ridão ainda mais espessa quando nuvens baixas ocultavam a lua também não ajudava em nada.

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Finalmente, o trecho de mata terminou. Os homens chegaram à estrada que percorria o lado norte do vale do Vestfjord, em direção ao lago Møs, a oeste, e à cidade de Rjukan, poucos quilômetros a leste. Diretamente ao sul, um mergulho de águia sobre o escarpado desfiladeiro do rio Måna, ficava Vemork, seu alvo.

A despeito da distância através do desfiladeiro e do vento uivando em seus ouvidos, os comandos podiam escutar o zumbido grave das instalações hidre-létricas.2 A usina de energia e a fábrica de hidrogênio de oito andares diante dela ficavam empoleiradas numa saliência suspensa acima do desfiladeiro. Dali era uma queda de quase duzentos metros até o rio Måna, que serpenteava no vale abaixo. O vale era tão fundo que o sol raramente tocava o chão.

Se Hitler não tivesse invadido a Noruega, se os alemães não tivessem to-mado o controle da usina hidrelétrica, Vemork estaria iluminada como um farol. Mas agora as janelas da cidade estavam escuras para impedir os raides noturnos dos bombardeiros aliados. Três conjuntos de cabos se estendiam através do vale para desencorajar ataques aéreos rasantes também durante o dia.

O vulto recortado das instalações parecia uma fortaleza imponente no topo de um despenhadeiro. Uma ponte suspensa de pista única provia o úni-co ponto de entrada para os trabalhadores e veículos, e era cuidadosamente vigiada. Havia minas espalhadas pelas encostas em torno. Patrulhas frequentes percorriam os arredores. Holofotes, sirenes, ninhos de metralhadoras e uma caserna com soldados também ficavam de prontidão.

E agora os comandos se preparavam para invadi-la.Chegando à beira da estrada, pararam hipnotizados à primeira visão de

Vemork.3 Não precisavam da luz brilhante do dia para saber de suas incon-táveis defesas. Tinham estudado dezenas de fotografias de reconhecimento, lido pilhas de relatórios de inteligência, memorizado plantas e praticado a colocação de cargas explosivas inúmeras vezes em um modelo que simulava seu alvo. Todos aqueles homens eram capazes de se situar por cada caminho, corredor e escada da fábrica, visualizando-os em sua mente.

Não eram os primeiros a tentar explodir Vemork. Muitos já haviam morrido na tentativa. Embora a guerra varresse a Europa, a Rússia, o Norte da África e o Pacífico, embora os batalhões de tanques, esquadrões de bombardeiros, frotas de submarinos e destróieres e milhões de soldados se enfrentassem em um conflito global, era nessa usina, escondida nos recessos profundos da

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acidentada paisagem selvagem norueguesa, que os Aliados acreditavam residir a tênue linha que separava a vitória da derrota.

Apesar de todo o minucioso conhecimento que possuíam de Vemork, os nove homens ainda não tinham muita certeza sobre como aquele alvo podia ser tão valioso. Haviam sido informados de que a usina produzia algo chamado água pesada e que com essa misteriosa substância os nazistas talvez fossem capazes de “explodir boa parte de Londres”.4 Os sabotadores presumiram que isso fosse um exagero, visando assegurar seu pleno comprometimento com a missão.

E estavam de fato comprometidos, qualquer que fosse o preço, que prova-velmente incluiria suas próprias vidas. Desde o início já sabiam que as chances de saírem ilesos eram escassas. Podiam conseguir entrar na usina e completar a missão, mas sair e escapar seriam outros quinhentos. Se necessário, tenta-riam lutar para deixar o local, mas uma fuga era improvável. Determinados a não serem capturados com vida, cada um deles portava um comprimido de cianeto num invólucro emborrachado, escondido na lapela ou no cós da calça.

Havia bravura envolvida na operação, sem dúvida, mas prevalecia uma sensação de fatalismo. Haviam ficado longe de casa por muitos meses, trei-nando, planejando e se preparando. Agora, enfim, estavam prestes a agir. Se perecessem, como acontecera com muitos em sua companhia especial, em operações anteriores, paciência.5 Pelo menos teriam tido uma oportunidade de lutar. Numa guerra como aquela, a maioria esperava morrer, mais cedo ou mais tarde.

Na Inglaterra, o cérebro da missão, Leif Tronstad, aguardava notícias da operação. Antes da partida dos comandos, ele lhes prometera que seus feitos seriam lembrados por uma centena de anos.6 Mas nenhum daqueles homens estava ali para entrar para a história. Se alguém quisesse mesmo saber, nenhum deles estava ali por causa da água pesada ou de Londres. Tinham visto seu país sendo invadido pelos alemães, seus amigos sendo mortos e humilhados, suas famílias passando fome, seus direitos sendo roubados. Estavam ali pela Noruega, pela liberdade de seu território e de seu povo da dominação nazista.

Agora que o momento se apresentava a eles, os sabotadores voltaram a calçar os esquis e começaram a descer a estrada sob a escuridão.

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1. A água

Em 14 de fevereiro de 1940, Jacques Allier, um banqueiro de meia-idade, vestindo roupas elegantes, entrou apressado pelas portas do hotel Majestic, na rue la Pérouse.1 Situado perto do Arco do Triunfo, o famoso hotel hospedara todo tipo de pessoas, dos diplomatas presentes para a conferência de paz de Versalhes em 1919 ao influxo de artistas que eternizou a Cidade Luz na dé-cada seguinte. Agora, com toda a França se preparando para a invasão alemã, que provavelmente começaria com uma investida pela Bélgica, e com Paris na maior parte evacuada, uma mera sombra do que um dia já fora, a conversa no hotel era mais uma vez apenas sobre a guerra. Allier atravessou o saguão. Não estava ali para assuntos financeiros, mas antes como um agente do Deuxième Bureau, a agência de espionagem doméstica francesa. Raoul Dautry, ministro de Armamentos, e o físico Frédéric Joliot-Curie o aguardavam, e a conversa entre eles envolvia travar uma guerra de natureza bem diferente.

Joliot-Curie, que com sua esposa Irène ganhara o prêmio Nobel ao descobrir que elementos estáveis podiam se tornar radioativos por métodos artificiais ou induzidos, explicou para Allier que estava no momento plenamente empenhado na construção de uma máquina destinada a explorar a energia contida dentro dos átomos. Mais provavelmente, ela serviria para alimentar submarinos, mas tinha o potencial para desenvolver um explosivo insuperável. Ele precisava da ajuda de Allier. Era o mesmo discurso que Joliot-Curie apresentara a Dautry meses antes, e tornado ainda mais convincente pela sugestão de que a ener-gia contida numa mesa de cozinha comum, se liberada, podia transformar o

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mundo numa bola de fogo. Allier se ofereceu para fazer o que estivesse ao seu alcance e ajudar o cientista.

Joliot-Curie explicou que precisava de um ingrediente especial para seus experimentos — água pesada — e que havia uma única empresa no mundo produzindo-a em alguma quantidade: a Norsk Hydro, na Noruega. Como funcionário do Banque de Paris et des Pays-Bas, acionista majoritário na companhia norueguesa, Allier estava em posição ideal para obter quaisquer fornecimentos que a Norsk Hydro tivesse em sua usina de Vemork com a maior rapidez e discrição possíveis. O próprio primeiro-ministro francês, Édouard Daladier, já se comprometera com a missão.

Havia só um problema, disse Allier. Apenas um mês antes, o principal ad-vogado da Norsk Hydro, Bjarne Eriksen, o visitara em seu escritório em Paris. Segundo Eriksen, os alemães também estavam interessados na produção em Vemork. Eles haviam feito uma série de pedidos e sugerido que talvez pre-cisassem de até duas toneladas de água pesada no futuro próximo. Alarmada com a demanda por quantidades tão vastas — e sem dispor de informações sobre como o material poderia ser usado —, a Norsk Hydro ainda tinha de fornecer mais de 25 quilos desses pedidos.2

A notícia deixou Dautry e Joliot-Curie profundamente preocupados. Os alemães deviam estar na mesma pista com sua pesquisa. Allier precisava se mexer — e rápido — para se apoderar da mercadoria antes que os alemães o fizessem. Se houvesse dificuldade em tirar a água pesada da Noruega, ele tomaria as providências para contaminá-la e inutilizá-la para experimentos.

Duas semanas mais tarde, Allier atravessava o enorme saguão da Gare du Nord, em Paris, e embarcava em um trem para Amsterdam. Viajava com o nome de solteira de sua mãe, Freiss. Escondidos em sua valise iam dois do-cumentos. Um deles era uma carta de crédito no valor de mais de 1,5 milhão de coroas para a água pesada. O outro lhe dava a autoridade para recrutar quaisquer agentes franceses necessários para contrabandear o fornecimento. À exceção da barba falsa, Allier sentia dispor de todos os acessórios de um herói nos romances de espionagem que tanto apreciava.3

De Amsterdam ele tomou um avião para Malmö, na Suécia, depois seguiu de trem até Estocolmo. Ali, se reuniu com três agentes da inteligência fran-cesa, incumbindo-os de se encontrar com ele em Oslo alguns dias depois. No dia 4 de março pela manhã, Allier viajou de trem para a capital norueguesa,

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chegando à Estação Central do Leste. Na Legação Francesa, descobriu que seu disfarce já fora por água abaixo. Uma mensagem interceptada da agência de espionagem de Berlim, a Abwehr, fora decifrada. “A todo custo”, dizia, “detenham um francês suspeito viajando sob o nome de Freiss.”4

Allier não se intimidou. Deixou a legação e ligou para a Norsk Hydro de uma cabine pública. Uma hora depois, entrava na sede da companhia, na Solligata, 7, a uma curta distância da residência oficial do rei Haakon vii. Em uma reu-nião com o dr. Axel Aubert, Allier fez sua oferta de comprar os suprimentos de água pesada da empresa. Não disse nada sobre como pretendiam utilizá-la, sem saber se poderia confiar em Aubert. O antigo diretor-geral da companhia, um homem rijo que parecia comer pedra no café da manhã, deixou claro: suas simpatias estavam com a França; ele recusara aos alemães quaisquer quantidades volumosas de água pesada e providenciaria para Allier tudo de que precisasse.

No dia seguinte, Allier viajou de carro para Vemork, a 150 quilômetros da capital norueguesa. Aubert foi junto. A chegada deles foi inesperada.

Por milhares de anos, a água correra abundante pelo elevado planalto desa-bitado do Hardangervidda, em Telemark, uma região a oeste de Oslo.5 Grande parte dessa água, um vasto fluxo, descia do Vidda para seu reservatório natural no lago Møs. Então o rio Måna carregava a água por trinta quilômetros através do íngreme vale do Vestfjord até o lago Tinn, ou Tinnsjø.

O curso do rio mudou quando a Norsk Hydro, uma próspera gigante in-dustrial, construiu um dique na saída do lago, em 1906.6 A companhia redi-recionou a água por túneis abertos com explosivos na rocha, que corriam por cinco quilômetros sob o solo antes de chegarem à usina elétrica de Vemork. Dali, a água se precipitava numa queda de 280 metros por onze tubulações de aço para os turbogeradores que produziam 145 mil quilowatts de eletricidade. Era a maior usina hidrelétrica do mundo.

Uma fração da água, cerca de dezesseis toneladas por hora, era então dire-cionada a uma fábrica de hidrogênio, também a maior do mundo, a dez metros de distância, na beirada do penhasco. Ali ela fluía para dezenas de milhares de células eletrolíticas de aço, que consumiam quase toda a energia gerada na usina. Correntes elétricas percorrendo as células cindiam as moléculas de água, separando os dois átomos de hidrogênio do átomo isolado de oxigênio.

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Os diferentes gases eram então bombeados para usinas químicas em Rjukan, na base do vale. Uma cidade operária, Rjukan tinha 7 mil moradores, a maioria trabalhando para a Norsk Hydro. O hidrogênio era usado primordialmente para a fabricação de fertilizante — um mercado imenso.

Uma fração dessa água, que nesse ponto correra do Vidda para o lago Møs por túneis, depois tubulações, depois células eletrolíticas, era enviada por uma cascata de células eletrolíticas especializadas que terminavam em um subsolo em Vemork. A água era então reduzida e reduzida novamente até corresponder a um gotejamento regular, parecido com uma torneira pingando. Essa água era agora uma coisa única e valiosa. Era água pesada.

O químico americano Harold Urey ganhou o prêmio Nobel por sua des-coberta da água pesada em 1931.7 Embora a maioria dos átomos de hidrogênio consista em um elétron isolado orbitando um próton isolado no núcleo do átomo, Urey demonstrou que havia uma variante, ou isótopo, de hidrogênio que transportava um nêutron também em seu núcleo. Ele chamou esse isótopo de deutério, ou hidrogênio pesado, porque seu peso atômico (a soma dos pró-tons e nêutrons de um átomo) era 2 em vez de 1. O isótopo era extremamente raro na natureza (0,015% de todo hidrogênio), e havia uma única molécula de água pesada (D2O) para cada 41 milhões de moléculas de água comum (H2O).

Com base no trabalho de Urey, vários cientistas descobriram que o melhor método para produzir água pesada era a eletrólise. A substância não se degra-dava com tanta facilidade quanto a água comum quando percorrida por uma corrente elétrica, de modo que toda a água remanescente numa célula após o gás de hidrogênio ter sido removido ficava com uma concentração mais elevada de água pesada. Mas produzir a substância em quantidade demandava recursos imensos. Um cientista notou que, a fim de produzir um único quilo de água pesada, “cinquenta toneladas de água comum tinham de ser tratadas durante um ano, consumindo 320 mil quilowatts-hora [de eletricidade], e mesmo assim a pureza do resultado não era melhor do que cerca de 10%”.8 Isso era um bocado de eletricidade para um baixo nível de pureza numa quantidade muito pequena de deutério.

Em 1933, Leif Tronstad, um jovem mas célebre professor norueguês, e seu ex-colega de classe na faculdade, Jomar Brun, que dirigia a usina de hidrogênio em Vemork, propuseram à Norsk Hydro a ideia de uma instalação industrial de água pesada.9 Eles não tinham muita certeza de como a substância poderia

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vir a ser utilizada, mas, como Tronstad dizia com frequência para seus alunos, “a tecnologia primeiro, depois a indústria e suas aplicações!”.10 Eles sabiam que Vemork, com seu suprimento inexaurível e barato de energia e água, constituía o arranjo perfeito para uma fábrica dessas.

Tronstad e Brun combinaram as vantagens naturais da usina com um enge-nhoso novo projeto para o equipamento. Uma primeira instalação de trabalho, projetada por eles, tinha seis estágios.11 Pense numa série de latas empilhadas em pirâmide. Agora imagine essa pirâmide de cabeça para baixo, com uma única lata na base. No projeto Tronstad/Brun, a água fluía para a fileira superior de latas — na realidade, 1824 células eletrolíticas, que tratavam a água (mistu-rada a potassa cáustica como condutor) com uma corrente. Parte da água era decomposta em bolhas de hidrogênio e oxigênio gasosos que eram eliminados das células, e o restante, agora contendo uma porcentagem mais elevada de água pesada, descia em cascata para a fileira seguinte de latas na pirâmide (570 células). Então o processo era repetido pela terceira (228 células), quarta (20 células) e quinta (3 células) fileiras de células eletrolíticas. Entretanto, ao final do quinto estágio, com uma quantidade imensa de tempo e energia gastos, as células ainda continham apenas 10% de água rica em deutério.

Em seguida a água descia em cascata para a lata no fundo da pirâmide. Essa sexta e última fase era chamada de estágio de alta concentração. Montada no subsolo cavernoso, brilhantemente iluminado, da fábrica de hidrogênio, a sala onde ocorria esse processo na verdade consistia em sete células eletrolíticas de aço, de um tipo único, dispostas em fileira. Essas células especializadas seguiam um modelo em cascata semelhante para concentrar a água pesada em cada célula. Mas podiam também reciclar o estado gasoso do deutério para que voltasse ao processo produtivo, enquanto nos outros estágios ele era es-sencialmente desperdiçado. Como resultado, a concentração de água pesada aumentava rapidamente de uma célula para a seguinte. Na sétima e última célula desse estágio de alta concentração, o gotejamento lento e regular fora purificado para 99,5% de água pesada.

Quando a usina de Vemork começou a produção para valer usando esse método, cientistas do mundo todo o saudaram como um marco, ainda que a aplicação da água pesada permanecesse incerta. Como ela congelava a quatro graus Celsius, e não a zero, alguns gracejaram, dizendo que só servia para criar rinques de patinação melhores. Tronstad, que atuou como consultor

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para a Norsk Hydro e deixou a condução da usina para Brun, acreditava no potencial da água pesada. Ele falou apaixonadamente sobre seu uso para o florescente campo da física atômica e seu futuro promissor para a pesquisa química e biomédica. Pesquisadores descobriram que os processos vitais de camundongos eram desacelerados quando recebiam quantidades minúsculas de água pesada.12 As sementes germinavam mais gradualmente numa solução diluída — e, numa pura, não chegavam a germinar. Alguns acreditavam que a água pesada pudesse levar à cura do câncer.

Vemork enviou seus primeiros recipientes de água pesada em janeiro de 1935 em levas de dez a cem gramas, mas o negócio não decolou.13 Os labo-ratórios na França, Noruega, Grã-Bretanha, Alemanha, nos Estados Unidos, Escandinávia e no Japão não pediram mais que algumas centenas de gramas por vez. Em 1936, Vemork produziu apenas quarenta quilos para venda. Dois anos mais tarde, esse número aumentara para oitenta quilos, uma quantida-de ínfima avaliada em cerca de 40 mil dólares. Os anúncios publicados pela companhia nas revistas da indústria pouco adiantaram: simplesmente, não havia demanda o bastante.

Em junho de 1939, uma auditoria na Norsk Hydro desse pequeno negócio secundário mostrou que ele não tinha futuro.14 Ninguém queria água pesada, pelo menos não o suficiente para fazer com que o investimento valesse a pena, e a empresa abandonou a produção.

Mas apenas alguns meses depois de Brun apagar as luzes no subsolo e a poeira começar a se juntar nas sete células especializadas da sala de alta con-centração, tudo mudou — e rápido —, assim como acontecera no campo da física atômica.

Por décadas, os cientistas haviam sondado os mistérios “dos átomos e do vácuo”, que era como os antigos gregos descreviam a composição do universo.15 Em salas escuras, os experimentadores bombardeavam elementos com partí-culas subatômicas. Teóricos extraíam deduções brilhantes no quadro-negro. Pierre e Marie Curie, Max Planck, Albert Einstein, Enrico Fermi, Niels Bohr e outros descobriram um mundo atômico cheio de energia e possibilidades.

O físico inglês Ernest Rutherford observou que elementos pesados, ins-táveis, como o urânio, decaíam naturalmente em elementos mais leves, como

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o argônio. Quando calculou a imensa quantidade de energia emitida durante esse processo, percebeu o que estava em jogo. “Caso um detonador apropriado fosse encontrado”, sugeriu a um membro de seu laboratório, “uma onda de desintegração atômica poderia ser iniciada por meio da matéria, o que efeti-vamente faria este velho mundo virar fumaça […]. Algum tolo num laboratório pode explodir o universo sem se dar conta.”16

Então, em 1932, outro cientista inglês, James Chadwick, descobriu esse detonador apropriado: o nêutron.17 O nêutron tinha massa, mas, ao contrário dos prótons e elétrons, que apresentavam cargas positiva e negativa, respec-tivamente, não possuía carga para estorvar seu movimento. Isso o tornava a partícula perfeita para ser enviada ao núcleo do átomo. Às vezes o nêutron era absorvido; às vezes, expulsava um próton, transformando o elemento químico. Os físicos haviam descoberto um jeito de manipular a trama básica do mundo e, com isso, podiam investigar mais a fundo os inúmeros fios separadamente — e até criar alguns próprios.

Utilizando radônio ou berílio como fontes de nêutron, começaram a ar-remessar nêutrons em todo tipo de elemento para produzir mudanças em sua natureza. Chefiados pelo italiano Fermi, descobriram que o processo era particularmente eficaz quando os nêutrons tinham de passar por um “mode-rador” de algum tipo, o que retardava seu progresso. Parafina e água comum, no começo, se revelaram os melhores moderadores. Ambas continham muito hidrogênio, e quando esses átomos de hidrogênio colidiam com os nêutrons (que tinham a mesma massa), roubavam parte de sua velocidade, de um modo muito parecido com duas bolas de bilhar colidindo. Bombardear urânio com nêutrons dessa maneira gerou os resultados mais misteriosos, incluindo a presença inesperada de elementos bem mais leves.

Em dezembro de 1938, dois químicos alemães, o pioneiro Otto Hahn e seu jovem assistente Fritz Strassman, provaram que um nêutron colidindo com um átomo de urânio podia fazer mais do que tirar uma parte de seu núcleo ou ser absorvido por ele.18 O nêutron podia dividir o átomo em dois — pro-cesso chamado fissão. No início de janeiro de 1939, a notícia da descoberta se espalhara, levando grande empolgação ao campo da pesquisa atômica: por que, como e com que efeitos o átomo de urânio se dividira?

Partindo de uma observação feita pelo teórico dinamarquês Niels Bohr, os físicos perceberam que o núcleo do átomo de urânio agira como um ba-

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