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www.franklingoldgrub.com A máquina do Fantasma - franklin goldgrub Primeiro capítulo - (acesso parcial) Chomsky e o inatismo "Portanto, gostaríamos de saber como as pessoas que adquiriram uma língua utilizam o seu conhecimento para compreender o que ouvem e expressar os seus pensamentos. No presente ciclo de conferências tratei do aspecto preceptivo dessa questão. Mas não disse nada até agora sobre o aspecto da produção, que chamei de "o problema de Descartes", problema colocado pelo aspecto criativo do uso da linguagem, um fenômeno normal e corriqueiro, mas mesmo assim notável (...) O problema de Descartes, porém, suscita outras questões que vão além de tudo o que já discutimos". [Noam Chomsky, Manágua Lectures.] 1. Chomsky vs Skinner ou inato vs adquirido A palavra "revolução" de tal maneira se incorporou ao vocabu-lário das apresentações e intro-duções da obra de Chomsky que já deixou de ser um indício de adesão para representar cada vez mais algo próximo da constatação quase obrigatória. E, de fato, tudo leva a crer que tal juízo de

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A máquina do Fantasma -

franklin goldgrub

Primeiro capítulo - (acesso parcial)

Chomsky e o inatismo

"Portanto, gostaríamos de saber como as pessoas que adquiriram uma

língua utilizam o seu conhecimento para compreender o que ouvem e

expressar os seus pensamentos. No presente ciclo de conferências tratei

do aspecto preceptivo dessa questão. Mas não disse nada até agora

sobre o aspecto da produção, que chamei de "o problema de Descartes",

problema colocado pelo aspecto criativo do uso da linguagem, um

fenômeno normal e corriqueiro, mas mesmo assim notável (...) O

problema de Descartes, porém, suscita outras questões que vão além de

tudo o que já discutimos". [Noam Chomsky, Manágua Lectures.]

1. Chomsky vs Skinner ou inato vs adquirido

A palavra "revolução" de tal maneira se incorporou ao vocabu­lário das

apresentações e intro­duções da obra de Chomsky que já deixou de ser

um indício de adesão para representar cada vez mais algo próximo da

constatação quase obrigatória. E, de fato, tudo leva a crer que tal juízo de

valor tenha sua razão de ser. Pode-se dizer que Syntactic Structures

(1957) já inaugura uma reação contra a concepção de linguagem então

dominante - sobretudo nos Estados Unidos mas cer­tamente não restrita

a esse país- e caracterizada principalmente pela adoção de postulados

tomados de empréstimo á doutrina behavio­rista da aprendizagem,

acrescidos de um enfoque funcionalista predo­mi­nante na teoria da co­municação.

Uma tal influência sobre a lingüística não era meramente exercida a

distância; B. F. Skinner abordou o tema dire­tamente em Verbal

Behaviour, publicado em 1957, que reúne trabalhos escritos ao longo de

um razoável tempo de elaboração (desde meados da década de 30).

Com esse livro, o expoente da psicologia comporta­mental empenhava

um prestígio considerável na ambiciosa empreitada de anexar o território

lingüístico, verdadeiro teste para o poder explicativo da sua teoria.

Tratava-se de tomar a úl­tima cidadela importante do racionalismo - de­signável pela expressão "função simbólica"-  para decidir o rumo do

conflito epistemológico  - espécie de guerra dos dois mil e quinhen­tos

anos-   entre os descendentes de Platão e Aristóteles.

A ocasião se afigurava mais do que propícia. O behaviorismo cons­truíra

laboriosamente suas posições através de um trabalho experimental

considerá­vel, amadurecido durante as três dé­cadas anteriores, com

resultados face aos quais pou­cos conseguiram manter-se indiferen­tes:

as implicações, afinal de contas, nunca foram escondidas e abrangiam

tanto os fundamentos da conduta individual - ads­critos ao

condicionamento - como uma concepção de cultura coe­rentemente

definida em termos de controle externo[1]. Escolhido um tal percurso, a

tra­jetória seguida pela cruzada ambientalista in­cursiona inevitavelmente

em te­rritório sob jurisdição fi­losófica, o que ex­plica a considerável

polêmica ex­tramuros susci­tada pelos ino­centes ra­tos al­binos

apertadores de barra.

O tom ca­te­górico e com­promissado de Verbal Behaviour mostra que

Skinner, como sem­pre, assu­miu resolu­tamente os riscos da aven­tura. Os conhe­­cidos con­ceitos do arsenal behaviorista -‘estímulo',

‘resposta', ‘privação', ‘re­forço' e sobretudo, no caso do comportamento

simbólico,  ‘generalização'- fo­ram convocados para dar conta da aqui­sição e do emprego da linguagem no quadro geral de uma teoria da

aprendizagem. Cabem poucas dúvi­das quanto ao prin­cipal objetivo da

empresa: de qualquer forma, não poderia deixar de incluir a de­monstração de que a fala deve ser en­tendida como qualquer outro ato

não reflexo, ficando sujeita portanto a uma probabilidade fu­tura de

ocorrência regida pe­los efeitos da estimulação prévia sobre o organismo

[2].

Essa hipótese, por sua vez, se com­pro­vada, não pode­ria senão es­tar

destinada a de­cretar um desequilí­brio fundamen­tal no acir­rado e até

então in­de­finido debate epistemológico. O êxito do esforço reducio­nista seria ne­cessariamente coroado pela ex­tinção da fron­teira dis­tintiva entre o homo loquens e as demais criaturas da natu­reza, dan­do

ganho de causa à tese segundo a qual o meio seleciona o

comportamento, nu­ma espécie de transposição da ló­gica evolucio­nista. O aval de Darwin -invocado constante­mente- tinha a vantagem

suplementar de impingir aos ad­versários o ônus de uma anacrônica

postura meta­física[3]. Aliás, a apropriação dos presti­giosos emble­mas

científicos pelo behavio­rismo constituiu talvez uma das razões mais

fortes para expli­car a receptividade obtida nos meios acadêmicos e a

influência exercida mesmo sobre teorias to­talmente incompatíveis -

como, por exemplo, a psi­canálise, que em sua versão norte-ameri­cana

acatou parcialmente o enfoque comportamental.

Chomsky não perdeu a oportunidade e fez suas primeiras ar­mas num

duelo em que mediu forças com o consagrado teórico da cor­rente

hegemônica em psicologia. Retrospectivamente, o embate pode ser

conside­rado como a batalha de Poitiers do racionalismo; o avanço po­siti­vista foi finalmente detido. Na ocasião, as dimensões do em­preendimento skinneriano, o al­cance do que estava em jogo e o sur­preendente resultado ofuscaram a constatação de que um certo des­gaste, lento mas in­cessante, já produzia seus efeitos sobre o ambien­talismo. Esse ines­perado refluxo que teve como conseqüência mais

evidente a perda de influência do behaviorismo e o ostracismo das

posições gno­siológicas nas quais se apoiava, talvez possa ser melhor

compreendido con­tra o pano de fundo dos crescentes avanços feitos

pelas teorias fun­dadas sobre o eixo da signifi­cação[4]. Independente­mente de ou­tras conside­rações, não é im­provável que escrevendo A

Review of B. F. Skinner's Verbal Beha­viour, o jovem paladino tenha

solidificado suas po­sições teóricas, além de construir todo um con­junto

de argumentos que desde então farão parte inse­parável dos fu­tu­ros

arrazoados.

Uma tema comum subjaz às críticas veiculadas por Chomsky na referida

resenha, particulamente em sua análise dos conceitos de reforço e pri­vação. Trata-se da questão da motivação. Para os adeptos da teoria do

re­forço, o organismo age em função de um estado de carência atribuí­vel em úl­tima instância ao desequilíbrio orgâ­nico. Os estímulos aversi­vos (ou reforçadores negativos) sempre indicam alguma espécie de pri­vação. Portanto, não im­porta quão longa seja a cadeia de verbali­zações, o psicólogo comportamenta­lista confia na presença de uma fi­

nalidade reitora ine­lutável, a saber, a redução senão extinção da esti­mulação aver­siva vigente ou, o que vem a dar no mesmo, a produção de

uma situação positivamente refor­çadora. Chomsky percebe a vulne­rabilidade extrema desse pres­suposto e propõe exem­plos

embaraçado­res. Desde a análise de enunciados como "passe-me o sal,

por fa­vor" até a existência de árduos traba­lhos de pesquisa acadêmica

que atestariam uma relação custo-benefício (em termos da teoria do

reforçamento) altamente prejudicial ao autor, o lingüista es­colhe suas

ilus­trações entre o quotidiano mais banal e o campo da criatividade

auto-motivada para abalar uma das colunas mes­tras da doutrina

behavio­rista, a relação privação-reforço[5].

Obviamente, o universo do comportamento lingüístico  - mesmo se

definido estritamente em termos de conduta verbal - desafia cons­tantemente enfoques guiados pela noção de condicionamento. Sem ir

mais longe, a previsibilidade, "prova documental" do controle ex­terno, é

impraticável até em situações totalmente estereotipadas (os protocolos

mais rígidos podem ser perfeitamente transgredidos) e, por outro lado, a

noção de privação perde totalmente o sentido quando aplicada a

diálogos, tanto triviais como significativos.

Por outro lado, mais importante ainda, a redução de linguagem a

comportamento - em termos genéricos - faz com que Skinner passe por

alto as propriedades mais específicas do signo. Por não levar em conta o

aspecto sintático dos enunciados - as exi­gências subja­centes à

concatenação das "partes do discurso"- o autor de Verbal Beha­viour

desconsidera o contraste entre a complexidade das condições

imprescindí­veis à construção da mais ele­mentar das sentenças e a

surpreendente rapidez com que a cri­ança ad­quire a língua materna.

Poupa-se, assim, uma perplexidade de ou­tra maneira inevitável. Não

surpreende então que  o acesso infantil ao universo simbólico permaneça

idêntico a qual­quer outro pro­cesso de aprendizagem, submetido à

mesma ins­tância deci­siva das recompensas e punições, agenciadas

por pais interessa­dos num melhor controle da progênie. Atualmente,

duas ou três déca­das após o auge do prestígio al­cançado pelo

comportamenta­lismo, torna-se di­fícil entender as razões da sua

populari­dade. Ainda não decor­reu o tempo suficiente para uma

avaliação mais ponde­rada das contri­buições skinnerianas, mas é

provável que o au­tor de Walden II venha a ser saudado pela de­monstração involuntária, via reduc­tio ad ab­surdum, da impos­sibilidade

de outorgar ao ambiente o papel de fator ab­soluto.

Entretanto, talvez a escola behaviorista faça jus a outro mérito, de

natureza bastante di­versa. Poucas vezes uma corrente me­todológica

foi tão coerente e radical a ponto de sustentar suas hi­póteses até as

últimas conseqüências. De fato, Skinner professou abertamente o

positivismo ambientalista compatível com o seu enfoque. Pode-se dizer

que Chomsky é igualmente conseqüente e radical na adoção de uma

posição epistemológica situada nos antí­podas do am­bientalismo,

embora igualmente positivista.

Pois não há outra maneira de focalizar o inatismo chomskyano, ad­vogado com veemência similar. Para o lingüista norte-americano, trata-se

da única alternativa capaz de fazer frente às teorias da aprendiza­gem.

Por outro lado, Chomsky admite sem reservas que a rede de cir­cuitos

neuronais, através dos quais se materializaria a "faculdade da lin­guagem", permanece uma su­posição, mesmo se em seu entender ab­solutamente necessária[6]. Não será inútil descrever o dilema entre o inato

e o adquirido, quer na versão da incompatibilidade, quer incluindo a

possibilidade de uma conciliação entre ambos os fatores[7].

"Inatismo" é, evidentemente, um termo suficientemente gené­rico para

prestar-se a várias in­terpretações e pode facilmente, quando usado com

essa finalidade precípua por adversários declara­dos, dar lugar a

descrições de teor pejorativo. Como diz Mitsou Ro­nat, "...antes de recu­sar o inatismo, seria preciso responder a várias questões: - O que

Chomsky entende realmente por "inatismo"? Que me­lhor hipótese

poderia ser proposta para dar uma explicação do que o levou a postular o

inatismo? Em que medida a "teoria de que se fala" seria modificada se o

inatismo fosse verdadeiro? Etc."[8]

Poder-se-ia perguntar também, aproveitando o "etcétera", em que medida

a teoria chomskyana seria modificada se o inatismo "caducasse" ou se a

alternati­va interno/externo deixasse de consti­tuir o único

enquadramento possível pa­ra essa questão.

Em princípio, as críticas formuladas a Skinner e aos estru­turalistas

americanos podem constituir um bom ponto de partida para tomar

contato com a argumentação inatista chomskyana. Tais críticas são

complementares como, de certa maneira, o são o behaviorismo e o

descritivismo de Zellig Harris. Harris, que orientou os primeiros passos de

Chomsky em lingüística, considera a lingua­gem como uma somatória de

mecanis­mos frouxamente articulados en­tre si, cuja integração se daria

muito mais em obediência às exigên­cias funcio­nais de cada cultura em

particular. Essa posição relativista apóia-se nas dife­renças existentes

entre famílias lingüísticas tão distantes como a indo-eu­ropéia e a amerín­dia.

A essa concepção Chomsky opõe a noção de uma faculdade simbó­lica

inerente à condição humana e portanto univer­sal, desdobrável em dois

níveis, um observável (desempenho) e outro simulta­neamente profundo e

complexo (competência). O último forneceria as condições de pos­sibilidade ao primeiro e seria refratário à metodologia indutiva.

Compreende-se então por que a lingüística se presta admiravelmente ao

papel de sediar a liça entre os tradicionais e irreconciliáveis pon­tos de

vista representados em teoria do conheci­mento (empirismo vs

racionalismo): é que nessa ciência a questão se co­loca de imediato. A

perspectiva assumida quanto à natureza do objeto é responsável pela

definição do próprio objeto[9], com as devidas implicações

epistemológicas e metodológicas.

2. Chomsky e Saussure ou a busca dos universais

A estratégia de Chomsky guarda uma notável se­melhança com a

decisão saussureana de romper com a tradição comparatista dominante

nos estudos de gramática his­tórica e filologia. Sabe-se que a célebre

dis­tinção entre os eixos diacrônico e sincrônico decorre diretamente do

esforço de depu­ração destinado a traçar o contorno definido da nova

disciplina[10]. Chomsky, que não desautoriza o estudo da linguagem pelo

prisma social, repete não obstante o gesto de restringir delibera­damente

o campo da in­ves­tigação, circunscrevendo-o à dimensão sintá­tica,

cuja autonomia fica assim proclamada [11].

Tal como Saussure privilegia a língua e ao fazê-lo implicita­mente pretere

a questão da diversidade dos idiomas para concentrar-se nos universais

do sistema, estrutura abstrata onde as relações valem mais que os

termos, Chomsky preco­niza a inquirição vertical - de preferên­cia em

relação à língua materna - para atingir igualmente a dimensão onde se

situam os invariantes.

As razões são similares; privilegia-se o estabelecimento dos princípios, ou

seja, a distinção do que é imprescindível à existência e ao funcionamento

da língua - de toda e qualquer língua. Chomsky considera que uma vez

construída a fonologia científica, teste rigoroso no qual foi aprovada a

supo­sição da existência de uma estrutura universal, o passo seguinte é a

formalização da mecânica sintática. A natureza da proposta exige

preliminarmente a dis­secação de um idioma particular; os achados serão

poste­riormente comparados com os de seus con­gêneres. O objetivo é

encontrar uma estrutura comum subjacente a todos os idiomas humanos

existentes e possíveis.

É interessante notar que a suposição da existência de um idioma

ancestral, tronco comum de todas as ramificações lingüísticas posteriores

(objeto da gramática histórica, corrente que dominou a lingüística no

século XIX), cede lugar à idéia de uma estrutura única, subjacente à

enorme diversidade vernacular (estruturalismo saussuriano, gramática

gerativa choskyana).-

Um dos primeiros re­sultados dessa interrogação radical con­siste na

aferição de que as gramáticas tradicionais não possuem re­gras para dar

conta da aceita­bilidade ou não de inúmeras frases, enquanto a intuição

do falante permite-lhe distinguir as inteligí­veis daquelas que não fa­zem

sentido. Em seguida, constata-se que a compreensão ou incompreensão

por parte do ouvinte independem da se­mântica, mas encontram-se

subordina­das à seqüência em que estão ordena­das as palavras, ou

seja, à ordem sintática; uma frase pode ser semantica­mente ab­surda e

mesmo assim conservar pleno sentido, en­quanto outra, se a ordem dos

termos não obedecer à hierarquia de constituintes, será ininteligível.

Talvez bastem esses achados elementares para abalar irremedia­velmente a base lógica das teorias da aprendizagem. De fato, na

terminologia behaviorista, o verbo "apren­der" está vin­culado ao

exercício do controle so­bre infor­mações (ou estímulos). A única

alternativa possível, segundo essa definição de aprendiza­gem, seria

pensar a aquisição de linguagem como análoga a um processo de con­dicionamento suposto idêntico ao efe­tuado com animais não humanos.

Se, entretanto, a criança é capaz de proferir enun­ciados sintaticamente

organizados muito antes de poder estudar gra­mática, se o adulto fala

sem precisar preocupar-se com o ar­ca­bouço fonoló­gico e sintático

subjacente, se pais analfabe­tos ou so­ciedades ágra­fas não so­frem

de qualquer desvantagem que im­plique em algum dé­ficit na

transmissão, expressão ou co­municação, impõe-se a constatação de

que a aquisição da linguagem constitui um pro­cesso para o qual a

palavra ‘aprendizagem' constitui uma descrição totalmente inade­quada.

Talvez a confusão entre sintaxe e léxico constitua um dos principais

motivos do entusiasmo despertado pelas expe­riências de ensino da

linguagem a chimpanzés e gorilas; se a semântica for definida pela

associação entre sons (ou gestos) e objetos (ações, qualidades), e se a

linguagem puder ser reduzida a essa definição de semântica, então de

fato caberia admitir que os primatas "falam".

O fa­tor apren­dizagem, cer­tamente presente em tal domínio, parece

res­tringir-se ao nível mais superficial da aquisição -isto é, o lé­xico, ou

seja, o as­pecto no­minal e designativo da linguagem, que de fato estará

obriga­toriamente vincu­lado à experiência particular do adquirente numa

determinada comunidade lingüística. Na perspectiva chomskyana, é

possível afirmar categoricamente que a sintaxe se reveste de impor­tância

fundamental, enquanto o léxico (a semântica referencial) constitui um nível

lingüístico secundário. Em conseqüência, perderia toda impor­tância o

argumento segundo o qual o fato de que a criança fala o idioma de sua

comuni­dade lingüística comprova o caráter ambiental da aquisição.

Diante dessas constatações, restaria talvez um último argu­mento para

os defensores da tese ambientalista: a aprendizagem se daria por

generalização a partir da amostragem fornecida pelos adultos. Chomsky

opõe a isso a afirmação de que a fala quotidiana dificil­mente cons­tituiria

um bom modelo para tanto, já que se compõe muito freqüentemente de

frases inconclusas e enunciados truncados. A gene­ralização pode

constituir um conceito explicativo útil apenas quando se ob­serva um

grau de proporcionalidade razoável entre o pa­râmetro ori­ginal e o de­rivado. Entretanto, percebe-se facilmente que a fala de qualquer indivíduo

contem um número ínfimo de repe­tições e con­siste basicamente de

proferimentos inéditos, enquanto re­ciproca­mente é-se capaz de

compreender frases nunca ouvidas ante­riormente ou mesmo aquelas

integradas por algumas palavras desconhe­cidas, ainda que no último

caso esse en­ten­dimento se restrinja ao sentido gené­rico.

Chomsky recorre a uma constatação que con­traria frontalmente o

princípio básico da argumentação ambienta­lista: a criatividade. Os

aspectos repetiti­vos do discurso indivi­dual são estatisticamente tão

insignifi­cantes como, no caso do vocabulário, as onomatopéias e inter­jeições. Assim, quem quisesse defender a tese de uma origem mo­tivada

da linguagem (imitação de sons da natu­reza, por exemplo), precisa­ria,

da mesma maneira que os teóricos da aprendiza­gem, enfrentar o

problema da enorme dis­crepância existente entre a riqueza da língua e

essas exíguas ma­trizes origi­nais das quais su­postamente ter-se-ia

originado.

Seriam esses argumentos conclusivos? A interrogação pode ser

encaminhada por uma via aparentemente mais sólida indagando sobre o

grau de receptividade alcançado e o interesse despertado pela gra­mática gerativa na comunidade acadêmica - sem deixar de lembrar que

se trata de um crité­rio igualmente controverso. Mas, apesar de tudo, e

embora a indefinição permaneça, é possível chegar a certo consenso em

re­lação a alguns aspectos.

3. Alcances e limitações do chomskysmo

Pode-se dizer a esse respeito que a gramática gerativa alcan­çou uma

aceitabilidade relativamente alta. Mesmo se não imune a crí­ticas, parece

constituir o enfoque mais promissor e se desco­nhece qualquer

abordagem alternativa com reconhecimento semelhante no que se refere

à sin­taxe. Tampouco são oferecidas objeções de peso com relação à

fina­lidade declarada de descobrir os prin­cípios, leis e regras que

operam sob a "estrutura superfi­cial" do discurso. A avaliação tende a ser

espe­cialmente positiva em relação aos fenômenos intrín­secos evi­denciados pela pesquisa desenvolvida por Chomsky e seus co­laboradores. As­sim, a postulação de que a sentença é consti­tuída por

sub-uni­da­des (sintagmas) alta­mente or­ganizadas, cujos constituintes

só poderiam ser deslocados conjuntamente, as hipóteses relativas a mo­vimentos que explicariam transformações subjacentes à formação das

frases in­ter­rogativa, nega­tiva, passiva e reflexiva, a análise do

mecanismo das anáforas, en­tre outros, ilustram adequadamente a preo­cupação dos gerativistas com a explicitação de regras rara ou preca­riamente in­vestigadas an­teriormente pelas gramáticas tradicionais.

Em compensação, a idéia de que a complexidade das operações

sintáticas exige o corolário do inatismo é amplamente contestada. Em

seus livros menos técnicos, Chomsky dedica uma boa parte (geralmente

os capítulos finais) à consideração de tais críticas. A proveniên­cia das

mesmas não se restringe aos defensores do empirismo; mesmo en­tre os

racionalistas a discordância é patente, princi­palmente no que se refere à

afirmação que apresenta o substrato cerebral como a sede da linguagem.

Finalmente, os próprios adeptos do gerativismo manifestam dúvidas

quanto à premência de uma decisão a esse res­peito, quando inúmeros

as­pectos da questão permanecem irresolutos e não se vislumbram

procedimentos através dos quais possa ser testada a validade da

postulação nativista. Por outro lado, como já foi visto, o próprio Chomsky

admite o caráter puramente dedutivo dos ar­gumentos favoráveis ao

inatismo, cuja plausibilidade residiria principalmente no argumento de que

constituiria  a  única alternativa diante das diversas formas de

ambientalismo exis­tentes. O racionalismo chomskyano aparece, pois,

como uma modifi­cação das formas anteriores em que se expressou

essa posição episte­mo­ló­gi­ca; na nova concepção, por assim dizer

atualizada, "cérebro" substitui "es­píri­to" e/ou "mente" enquanto a

expressão "orgão mental" afirma que, se cada parte do corpo tem uma

fun­ção, então caberia às células do córtex sediar a simbolização.

(Entretanto, como se procurará demonstrar adiante, o papel do substrato

cerebral pode ser concebido de forma mais restritiva; por exemplo, com

base na analogia de um arquivo de informações cujas características

seriam muito semelhantes às de um computador, ressalvadas as devidas

proporções quanto à complexidade. Essa espécie de memória - por mais

sofisticados que sejam seus mecanismos - diferiria consideravelmente da

noção de um órgão produtor de linguagem. A diferença entre as

dimensões  do córtex  humano e o dos primatas não parece capaz de

justificar a atribuição da produção lingüística ao substrato cerebral. O

exemplo de certas patologias, como o autismo e a esquizofrenia, nas

quais convivem a integridade funcional do órgão e a ausência de

comportamento lingüístico, parece demonstrar que ao córtex cerebral

pode ser adscrito o papel de "condição necessária mas não suficiente".

Resta, é claro, saber o que significa nesse caso "condição necessária" e

quais seriam as hipóteses relativas à "condição suficiente").

Um reducionismo tão extremo não poderia deixar de suscitar re­servas.

Chomsky se justifica constantemente quanto ao teor de sua hipótese e

para tanto recorre a argumentos que podem ser assim resu­midos: 1)

Uma certa participação do meio se faz necessária para que a faculdade

simbólica se concretize efetivamente e 2) As predispo­sições lingüísticas

mencionadas, não de­vem, obviamente, ser entendi­das no sentido de

um conhecimento específico de determinada língua ou gramática, mas

sim abstratamente, enquanto posse de uma potencialidade, a qual, di­ante de alguns poucos dados colocados à disposição ("pobreza de

estímulo"), resultará na rá­pida elaboração de uma com­petência (teoria

gramatical) com relação à língua em questão.

O meio recupera, dessa maneira, alguma importância, mas não há dúvida

que a ênfase per­manece situada no componente interno. Em um artigo

em que comenta as contribuições de Eric Lenneberg ao estudo das

relações entre linguagem e organismo, ("Sobre la base bioló­gica de las

capacidades lin­güís­ticas"), Chomsky afirma sem reservas que "O que

muitos lingüistas denominam "gramática universal" pode ser considerado

como uma teoria de mecanismos inatos, uma matriz biológica subjacente

que proporciona um quadro no âmbito do qual se daria o

desenvolvimento da linguagem (...) Os princípios propostos para a

gramática universal podem ser considerados como uma especificação

abstrata e parcial do programa genético que permite à criança interpretar

determinados acontecimentos como experiência linguística e construir

com base na mesma um sistema de regras e princípios"[12]). Mas,

simultaneamente, admite que em comparação com os físicos, dedicados

a processos cuja materialidade é um dado pri­mário, os lingüistas se

ocupam "(...) das condições abstratas que devem ser explicadas por

mecanismos desconhecidos. Poderíamos, por outro lado, sugerir esses

mecanismos, mas sabemos que não seria o caso de fazê-lo visto nossa

atual ignorância com relação ao funcionamento cerebral"[13]. As

perspectivas, nesse terreno, também não são muito animadoras: "Há

muitos obstáculos ao progresso no estudo da base biológica das

capacidades lingüísticas humanas, entre as quais a impossibilidade de

efetuar experimentos diretos com seres humanos para responder às

muitas perguntas existentes"[14].

Ter-se-ia chegado, portanto, a um impasse. A argumentação pa­rece

suficiente para refutar ou pelo menos comprometer seriamente as te­ses

sustentadas pelas diversas teorias da aprendiza­gem sem, entretanto,

conseguir ser convincentes a ponto de poder substitui-las pelos próprios

pontos de vista chomskyanos. Mas há algo além, e trata-se de uma

questão cru­cial: refletindo sobre a propriedade da criatividade, o lingüista

norte-americano é como que conduzido a questionar os próprios fato­res

que habitualmente invoca.

"O fato é que, até onde posso ver, simplesmente carecemos de uma

compreensão razoável do problema geral da autonomia. Menciono o fato

para distinguir o mistério relacionado ao aspecto criativo do uso da língua

dos difíceis mas ainda inteligíveis problemas que surgem na investigação

relativa ao alcance ilimitado da gramática e do conhecimento humano em

geral"[15].

Com efeito, parece haver uma con­tradição entre a postulação de que

um dado comportamento é regido por estrutu­ras orgâni­cas e a

constatação de sua im­previsibilidade.  Muito freqüentemente Chomsky

argumenta em favor do inatismo fazendo apelo à analogia entre certas

funções or­gânicas - como a da visão e a da ambulação - e o

comportamento simbólico. Mas a criatividade inerente à fala parece

incompatível com essa so­lução, já que a variação possível em fisiologia é

mínima (salvo pa­tologia), enquanto o conceito de criatividade

(absolutamente não patológico) atesta por si só a ilimitada gama de ações

desencadeadas a partir do emprego de signos.

Cabe suspeitar que mediante tal constatação a teoria choms­kyana se

aproxima de um ponto de inflexão. É plausível que ao impasse an­teriormente citado, decorrente da impossibilidade de demonstrar di­retamente a ancoragem cerebral da linguagem, se acrescente agora um

ele­mento de questiona­mento em relação à pró­pria abrangência da

hipó­tese ina­tista, pelo menos na medida em que esta é indissociável da

postulação de um substrato orgâ­nico.

Essa análise parece confirmada quando se consideram as afir­mações

feitas pelo próprio Chomsky com relação à função da lin­guagem.

Coerentemente, ele recusa a idéia de que "...a função da linguagem é a

comunicação, que sua ‘finalidade essencial' é permitir que as pessoas se

comuniquem entre si"[16]. Um raciocínio semelhante é empre­gado para

impugnar outras definições teleológi­cas: "Pode-se dizer o mesmo da

ideéia de que a finalidade essencial da linguagem é alcançar certos fins

instrumentais, satisfazer necessidades ou algo semelhante". Finalmente, a

própria idéia de que a linguagem serve ao pensamento é questionada ("é

dificil dizer o que seria "a finalidade" da linguagem, a exceção talvez de

expresssar o pensamento, mas trata-se igualmente de uma afirmação

bastante vaga"). Resta uma constatação marcada pelo relativismo: "As

funções da linguagem são muitas. Não fica claro o que se quer dizer com

a declaração de que algumas delas são ‘centrais' ou ‘essenciais' " [17].

Os comentários acima citados são obviamente incon­ciliáveis com o

argumento mais usado por Chomsky em defesa do ina­tismo; de fato, a

existência de um órgão, em termos biológicos, sem­pre (ou quase

sempre; há órgãos tidos como resquiciais) denota o cumprimento de uma

determinada função (ou funções). Conseqüente­mente, um

comportamento cuja fun­ção desafia as definições só pode empurrar a

expressão "órgão mental" para uma região conceitual metafórica.

Chomsky mostra-se atento às derivações da questão e preocupado em

evitar o que poderia ser cha­mado de "perigo metafí­sico": "Podemos

falar do estudo abstrato das capacidades intelectuais humanas e de seu

funcionamento como o estudo da mente, sem por isso autorizar a

dedução de que existe uma res cogitans como ‘segunda substancia'

separada do corpo". E como que exorci­zando o fantasma da "segunda

substância", ele acrescenta em seguida: "Podemos também tentar

investigar as bases físicas da mente até onde isso fôr possível"[18].

Entretanto, há boas razões para crer que a "assombração" da "segunda

substância" não pôde ser expulsa do cenário com uma mera declaração

de fidelidade aos princípios consagrados pela teoria do conhecimento,

embora as res­trições mencionadas lhe dêem uma forma conceitual

aparentemente mais aceitável. Assim, a "res cogitans" cartesiana passa

pela mesma transformação que já metamorfose­ara espírito em mente e

mente em cérebro; correspondentemente, a noção de incons­ciente

ganha vulto na argumen­tação do lingüista. Em compensação, passa a

constituir-se no novo alvo dos críticos, o que não deixa de ser revelador.

Em Language and Mind, um texto de síntese relativamente antigo (1968),

ti­do por Lyons (em l970) como "sem comparação a mais clara apresen­tação da filosofia da linguagem de Chomsky", depa­ramos com uma sé­rie de menções ao inconsciente -em função adjetiva. "Esta percepção re­pre­senta algumas de suas conclusões (em geral incons­cientes) sobre o

estímulo"[19] (...) "O falante nativo os inter­preta instantânea e

uniformemente, de acordo com princípios estrutu­rais que são conheci­dos de maneira tá­cita, intuitiva e inconsciente"[20] (...) "Podemos

empregar o termo gramática de uma língua ambi­guamente, com

referên­cia não apenas ao conhecimento internalizado e subconsciente

do fa­lante (...)".[21]

Por outro lado, há uma conotação ligeiramente diferente na frase "O

conhecimento, em grande parte além do consciente imediato, é rico em

estrutura, envolve universais e é altamente organizado"[22], na medida em

que a palavra consciente aparece em forma substantiva, embora esteja

particularizando "conhecimen­to". Seria o caso de perguntar acerca da

presença nocional de um "inconscien­te lingüístico" em Chomsky, tal

como em Lévi-Strauss seria possível discernir um "inconsciente

cognitivo", subjacente à manifestação das estruturas de paren­tesco e

dos mi­tos. Antes de ceder à tentação de responder, é preciso considerar

uma questão prévia.

Ela já se configura na seqüência da frase anteriormente men­cionada,

seguida de uma citação de Leibniz: "Os princípios gerais inatos que

subjazem e organizam o con­hecimento, segundo Leibniz, ‘estão pre­sentes   nos nossos pensamentos, dos quais constituem a forma e as co­nexões... embora nós neles não pensemos' " [23]. Parece portanto muito

provável que Chomsky entenda "inato" e "inconsciente" como con­­­ceitos contíguos, o primeiro na condição de postulado indemons­trá­vel

e o segundo constituindo seu aspecto fenomenal com­probatório. Nada

mais lógico, desde que se aceite a inqüestionabilidade das alternativas

organismo/am­biente, inato/adquirido, organização in­terna/estímulo

externo, órgãos sensoriais/órgãos mentais (ou razão).

Tal enfo­que, po­rém, está longe de ter inquestionável; para tanto, basta

colocar sob suspeita o postulado que associa intrinsecamente os

conceitos de orgânico e inconsciente (postulado invariavelmente seguido

pela su­bor­dinação do segundo ao primeiro...), pergun­tando pelas

suas evidências. Ao fazê-lo, imediatamente se constata que se trata de

uma petição de princípio. O problema não é inédito. Em psicaná­lise,

campo teó­rico onde surge pela primeira vez, a referida aporia associa-se

a uma espécie de para­doxo; que o inconsciente constitua o próprio

objeto de estudo da ciência dos sonhos sur­preendentemente não tem

por conseqüência uma clara afirmação da sua autonomia face ao

biológico. Muitas vezes, o conceito "pulsão" é definido, pelo próprio

Freud, com referência às respectivas "fontes somáti­cas".

Tudo o que Freud parece haver obtido tratando do espinhoso tema foi

uma espécie de moratória epistemológica no sentido de dei­xar a

questão da natureza do inconsciente em aberto até um momento mais

propício. Quando isso não acontece, e a tentação de fornecer um pa­norama glo­bal da weltanschauung psicanalítica prevalece, a cons­ciência é apresentada como o exercício de uma falsa soberania

manipulada pela emi­nência parda dos impulsos e de­sejos

subterrâneos; mas, em compen­sação, es­tes, por sua vez, não seriam

senão a tradução de premên­cias orgâni­cas visando descarga.

Uma espécie de hierarquia decres­cente acaba por diluir o mental no

biológico e o biológico em seus componentes físico-químicos [24]. Toda e

qualquer manifestação que se dê através do pensamento, não só em

relação aos sintomas mas também à sublimação, ficariam assim votados

a um futuro descarte, promovido pelos esperados avanços científicos.

Entre­tanto, a profissão de fé reducionista ocorre apenas em momentos

de espe­culação, nos quais um Freud ci­oso de coerência a qualquer

preço se penitencia diante do altar cientificista e augura para sua pró­pria

teoria o mesmo destino ao qual a psicanálise condenara a reli­gião, o

puritanismo e a ingênua crença na razão pura.

En­tretanto, no dia a dia da démarche investi­gativa, da qual o ar­tigo

metapsicoló­gico consagrado ao inconsciente é um bom exemplo,

prevalece outra atitude. O autor se contenta em for­necer uma descrição

cautelosa do modus ope­randi característico da instância do saber que

não se sabe, uma de cujas peculiaridades é a lógica sui gene­ris imune

ao prin­cípio da não-con­tra­di­ção. O mesmo se passa na clínica, onde

o orgâ­nico é progressivamente con­duzido à irrelevância e as

experiências são reinterpretadas em função do desejo - incons­ciente,

por definição - que as anima. Borges dizia que em nossa vida de vi­gília

vemos um ti­gre e temos medo, enquanto no sonho temos me­do e

vemos um tigre; Freud poderia perfeitamente acrescentar, com Calderón

de la Barca a seu lado, que a vi­gília é uma forma pecu­liar de produção

oní­rica... e a diferença entre ambos consistiria em que, com relação ao

sonho, julgamos saber que sonhamos.

4. Chomsky e Piaget

Feliz o artista, dizia Freud, jubilosamente livre dos com­promissos que

obrigam o pesquisador a curvar-se perante as exigências conceituais.

Nesse sentido, parece haver certa semelhança entre religião e ciência,

dominadas por um monoteísmo solene que contrasta com o alegre

paganismo dos cultos celebrados nesses outros altares ateológicos e

ateóricos... onde a intuição certamente não é objeto de sacrifício e nem

precisa justificar-se. Skinner, Chomsky e Freud mostram-se muito mais

conseqüentes, sob esse aspecto, que a maio­ria de seus pares; não são

crentes dominicais nem muito menos adeptos do sincretismo, mas, pelo

contrário, professam conscienciosamente o credo científico.

Se há boas razões para considerar o apoliti­cismo como uma

impossibilidade na vida social, a inexistência de uma posição em teoria do

conhecimento se afigura igualmente inexeqüível na esfera da ciência. Uma

das críticas mais contundentes de Chomsky à epistemologia gené­tica

toma justamente por alvo a postura dessa escola em relação ao problema

em questão[25]. Para o lingüista norte-americano, a falta de definição de

Piaget e seus seguidores acaba por gerar uma estra­tégia conciliadora

porém vaga, cujo mérito principal reside na ob­servação meticulosa que

entretanto não tem como conseqüência os compromissos julgados

necessários com o estabe­lecimento dos respectivos princípios reitores.

A Escola de Genebra obteria assim a aquies­cência geral ao preço de

certo isolamento e falta de interesse fora das fronteiras de uma

problemática quase to­talmente restrita à psicologia educacional;

entende-se facilmente que evoque respeito e reverência, mas pouco

entu­siasmo e raramente polêmica. Os conceitos assimilação e

acomodação, centrais na obra piagetiana, denotam a ação recíproca dos

fatores interno e externo (cuja interação está a serviço de um processo de

desenvolvimento auto-regulado); sua definição parece feita à medida para

jus­tifi­car, per se, a reivindicação de um equi­líbrio inerentemente su­perior ao ambientalismo skinneriano e ao inatismo chomskyano.

O in medium sed virtus piagetiano talvez seja um lema compre­ensivelmente celebrado por aque­les para quem a solução de compro­misso por si só se afigura como desejável. Certamente não se trata de

uma atitude unânime nem mesmo majoritária no campo da re­flexão

científica, onde o rigor muitas vezes se alia ao radicalismo. Os avanços no

conhecimento de­correm muito freqüente­mente da admissão clara da

irreconciliabili­dade entre certas hi­póteses e do embate frontal entre as

mesmas. A esse respeito, é ins­trutivo revisitar as atas do colóquio de

Royau­mont referente ao ano de l975[26], cujos protagonistas prin­cipais

fo­ram justamente os fundadores da epistemologia genética e da gramá­tica gera­tiva.

O prefácio de Massimo Piattelli-Palmarini estabelece com reve­rência,

espírito crítico e isenção as circunstâncias que presidiram o único

encontro entre Chomsky e Piaget, considerados res­ponsáveis por obras

que permitem colocar em pauta, na área das ciências huma­nas, as

questões epistemológicas mais candentes. "Levando em conta o status

‘paradigmático' atribuido, de um modo geral, às teo­rias de Piaget e de

Chomsky por quantos se dedicam a averiguar as relações entre inato e

ad­quirido, entre estrutura biológica e estru­turas cog­nitivas, pensamos

que o Centro (Centre Royaumont pour une science de l'homme) prestaria

um serviço à comunidade científica se susci­tasse um confronto direto e

profundo entre Piaget e Choms­ky"[27].

Além do lingüista e do psicólogo, participaram do encontro cientistas e

filósofos em cujo tra­balho a incidência da temática epistemológica se faz

sentir diretamente, entre eles François Jacob, Jacques Monod, Gregory

Bateson, Hilary Putnam, David Premack, além de colaboradores próximos

dos polemistas, como Bärbel Inhelder e Jerry Fodor. Todos os cuidados

foram compreensivelmente tomados para que a ocasião não fosse

desperdiçada; ela­borou-se assim um plano que incluiu como medida

prévia a redação de textos, por parte de Piaget e Chomsky, destinados

aos participantes do colóquio. A in­trodução, a cargo do referido

Massimo Piatelli-Palmarini, procura fornecer um panorama geral, no

âmbito da história das idéias, com o intuito de situar a tradição na qual se

inscrevem as teorias em de­bate, bem como as afinidades e

discordâncias que ambas mantém com relação a obras científicas de

campos tão diversos como a fí­sica quântica, a biologia molecular, a

cristalografia e a termodinâmica. Para Piattelli-Palma­rini, trata-se de

identificar o núcleo central ("hard-core") dos pensa­mentos piagetiano e

choms­kyano, o aspecto mais original e mais polê­mico das respectivas

obras, a ser diferenciado das afirmações gené­ricas e acessórias,

facilmente assimiláveis e quase triviais.

"Piaget propõe-nos aqui a adoção de um ponto de vista que pode abrir

uma dupla perspec­tiva. Existem, com efeito, duas interpre­tações

possíveis do compromisso ontológico assumido por Piaget: uma, ‘simples

e de uma completa banalidade', exatamente como ele pró­prio afirma,

mas des­provida de verdadeiro poder heurístico; a outra, que seria, pelo

contrário, não-banal mas suscetível de refutação (provavelmente sem que

Piaget esteja consciente disso)"[28].

A idéia de que todo organismo (como todo mecanismo) é regido por

processos de regulação, constitui um truísmo e pode ser aceita sem

discussão mas também sem conseqüências; não é nessa afir­mação que

se poderia encontrar a especificidade da opção piagetiana. O leit-motiv da

epistemologia genética, escreve Piattelli-Palma­rini, reside no postulado

de que a interação or­ganismo-ambiente constitui o eixo (o fenômeno

central) responsável pelo de­senvol­vi­men­­to dos pa­drões

cognitivos, a partir de um estágio inicial caracterizado pela pura presença

de estruturas orgânicas. "...a interpretação mais forte a que Piaget pa­rece in­citar-nos é a de que os esquemas de regu­lação, assim como as

estruturas que os materializam, são "englobados" pelo organismo, em seu

próprio proveito, a partir dos elementos pre­sentes no meio ambiente,

através de uma cadeia de operações chamada assimi­lação,

reorganização, acomodação".[29]

Mas, obviamente, a presença decisiva do ambiente não faz da

epistemologia genética uma va­riante das teorias do condicionamento.

Palavras e expressões como "estímulo" e "situação es­timuladora" não

comparecem aos textos piagetianos; tampouco se faz menção a qualquer

"reforço" necessário para a eficácia do processo de desenvolvimento; em

compensação, "es­quemas" e "estruturas" são termos contumazes e

denotam o enfoque anti-atomista, articulado e dir-se-ia sintático do

epistemó­logo suíço, o qual nos apresenta um sujeito que cons­truiria os

seus padrões cognitivos independentemente de recompensas ou

punições, mas mediante apropriação da lógica subjacente às inter­relações pre­sentes no mundo fenomenal. O ser hu­mano emerge dessa

descrição como uma verdadeira máquina de aprender, acionada pela in­teração com o ambiente para poder desenvolver toda a sua

potencialidade lógica. O papel concedido ao ambiente, porém, excede

totalmente o que seria considerado razoável ou aceitável na perspectiva

chomskyana.

As raízes epistemológicas dessa opção expressam um desacordo com

relação a Darwin (de quem Piaget diverge a ponto de buscar uma "terceira

via" entre o naturalista inglês e Lamarck), à genética e à biologia molecular,

áreas científicas onde o "externo" só compa­rece para selecionar fe­nótipos produzidos em estrita obediência às possibilidades oferecidas

pela matriz recôndita. Em compensação, a diretriz piagetiana coin­cide

com uma posição denominada "ordem pelo ruído", que basicamente

defende a plausibilidade de uma desestabili­zação das estruturas

internas, proporcionada pela interação com o meio; o organismo fica

então retratado pelo ângulo de uma incomple­tude constitutiva, destinada

a as­segurar às informações am­bientais um papel essen­cial no

processo de aprendizagem... e adap­tação. E se os adeptos da "ordem

pelo ruído" não gozam da celebri­dade do autor da teoria da evolução,

em compensação nomes como Schrödin­ger avali­zariam um programa

que dá lugar às duas verten­tes, metaforizadas pelo cristal (representante

do paradigma da ordem interna imutável) e a chama (depen­dente da

"turbu­lên­cia" cir­cundante). Mais ainda, e sempre segundo Piattelli-

Palmerini, a termodinâmica testemunha a possibilidade de invocar uma

lógica diferente daquela que parecia ter-se imposto gra­ças à bi­olo­gia

molecular: "A termodinâmica clás­sica aceitava um com­promisso se­melhante e complementar, formulando o princípio, no iní­cio puramente

fenomenológico (macroscópico), de conservação de ener­gia, e postu­lando, por outro lado, um recrudesci­mento constante da entropia em

todo sistema isolado, princípio que se pode interpretar em termos de

crescimento global médio da desor­dem no universo"[30].

A teoria da informação, formulada por Shannon em l939 e a sub­seqüente reinterpretação das estruturas orgânicas como aparelhos in­formáticos (do­ta­dos de características internas precisas mas não

obstante suficientemente hos­pitaleiros em relação às informações ex­ternas), proporcionam o apoio necessário à plausibilidade de uma teoria

da aprendizagem tal como a defendida por Piaget. Piattelli-Palmerini pode

então concluir que "‘O núcleo sólido' bio­cibernético e a ‘hipótese

diretora' de Piaget são apenas, como se vê, duas versões ligeiramente

diferentes de um mesmo projeto. Tanto uma como outra fazem-nos crer

que a vida é um gigantesco fluxo de informações agindo como mediador

(ou regulador) de uma transição do ‘universo inteiro', de um estado inicial

menos organizado, para uma seqüência de estados estacionários cada

vez mais organizados. Os atos cognitivos (especialmente os de seres

humanos) representam os mediadores mais eficazes no seio desse fluxo

informativo, os catali­sadores mais aperfeiçoados de uma cadeia de

transferências de ordem, ligando entre si os compartimentos desse

universo".[31]

Evidentemente, o interesse maior de Piattelli-Palmarini con­siste em

estabelecer o estatuto epistemológico das teorias em lití­gio e descrever

o quadro de alianças e beligerâncias em que ingres­sam ao fazer as

respectivas escolhas gnosiológicas; decorre necessaria­mente disso que

sua análise é ampliada de forma a in­cluir as manifestações da mesma

problemática tal como se dão em ciências exatas, incluindo as

cosmovisões resul­tantes. Termos como "vida" e "universo" percorrem o

texto lado a lado com discussões deta­lhadas acerca de hipóteses

pertencentes á biologia molecular e á termodinâmica, e o resultado não

destoa do rigor presente no restante da introdução. Por outro lado, o

escrutí­nio a que submete os pressupostos gerativistas e cognitivistas

com o intuito de ressaltar os compromissos epistemológicos assumidos

por am­bas as teorias produz um panorama propício para

    [1] A esse respeito ver O mito da liberdade, do próprio Skinner.

    [2] Trata-se da versão skinneriana (revista e ampliada, por assim dizer)

da conhecida Lei do Efeito, de Thorndike.

    [3] Mas pode funcionar como uma espécie de bumerangue. O

resultado das tentativas de ensinar chimpanzés e gorilas a falar é mais

denotativo de uma fronteira qualitativa do que quantitativa entre natureza e

cultura. A questão será abordada detalhadamente no capítulo VI.-

    [4] Tais como a psicanálise lacaniana (preconizando o retorno a Freud),

a antropologia estrutural de Lévi-Strauss e a lingüística européia inspirada

-mais ou menos diretamente- em Saussure, por exemplo. Um tal

movimento pode ser pensado como parte do pro­cesso de emancipação

das ciências humanas da tutela exercida pela epistemologia positivista, a

cuja vertente empirista o beha­viorismo se filia abertamente.

    [5] Chomsky detecta entre os próprios adeptos do behaviorismo uma

divisão a respeito dessa questão. Experimentos fei­tos com ratos em

labirintos teriam deixado resultados inconclusivos quanto ao papel da

"drive reduction" para a eficácia da aprendizagem. A dúvida representa

um golpe para a teoria do reforço; admitir que o comportamento pode ter

outras razões, mesmo em organismos não humanos, entre as quais

"curiosidade, tendências lúdicas, ex­ploração e manipulação" [a propósito

de primatas, conforme Harlow, mencionado por Chomsky, pg. 560, op.

cit.] arruinaria a base da argumentação skinneriana.

    [6] "...não digo que tenhamos uma caixa na cabeça...sabemos poucas

coisas sobre a realização física dos sistemas abs­tratos que postulamos".

[Diálogos, 10/11]. "...não supomos que exista uma caixa no cérebro.

Muitas vezes, entendeu-se mal o que significava tal idealização".

[Diálogos, l74.]

    [7] Chomsky de fato parece não ter muita simpatia pelas tentativas de

compatibilização. "Naturalmente, podem ser considerados enfoques

mistos de diversa índole, mas creio que é muito útil ter em mente estes

dois modelos, cada um com suas variáveis possíveis, como pontos de

referência". [Reglas y representaciones, pg. 245.]

[8]   (Diálogos, pg. l2).

    [9] Saussure talvez tenha sido o primeiro a chamar a atenção para a

dificuldade. "Qual é o objeto, ao mesmo tempo in­tegral e concreto, da

lingüística? A questão é particularmente difícil... Outras ciências trabalham

com objetos dados previamente e que se podem considerar, em seguida,

de vários pontos de vista; em nosso campo, nada de se­melhante

ocorre". [Curso de Lingüística Geral, pg. 15.]

[10]   "...se estudarmos a linguagem sob vários aspectos ao mesmo

tempo, o objeto da Lingüística nos aparecerá como um aglomerado

confuso de coisas heteróclitas, sem liame entre si. Quando se procede

assim, abre-se a porta a vá­rias ciências -Psicologia, Antropologia,

Gramática normativa, Filologia, etc..." [F. de Saussure, op. cit., pg. 16.]

  [11] "Parece que os elementos da sintaxe não são estabelecidos sobre

bases semânticas e que os mecanismos da sintaxe, uma vez construídos,

funcionam independentemente dos outros componentes da gramática,

que são componentes "interpretativos". [Diálogos, l27.]

[12] Reglas y representa­ciones, 200/20l.

[13] Op.cit., pg. 211.

[14] Idem, pg. 228.

[15] Idem, pgs. 234/235.

[16] Idem, pg. 240

[17] Idem, Pg. 241.

[18] Idem, pg. 238.

[19] Pg. 31.

[20] Pg. 34.

[21] Pg. 5.

[22] Idem, pg. 29.

[23] Idem, ibidem.

  [24] O mesmo raciocínio vale para Lévi-Strauss. (Cf. Claude Lépine, O

inconsciente na antropologia de Lévi-Strauss).

  [25] "Os estudos efetuados pela Escola de Genebra tem sido

extremamente esclarecedores, mas o modelo interacionista-construtivista

é em si difícil de avaliar, visto que permaneceu no nível da metáfora.

Afirma-se que a criança se desenvolve através de uma seqüência

bastante regular de estágios cognitivos, mas não é proposto nenhum

mecanismo nem princípio para explicar por que a criança passa de um

estágio ao seguinte em vez de dirigir-se a um estágio muito diferente (...) A

pergunta crucial permanece sem resposta, sem pistas que conduzam a

uma resposta. (...) No âmbito da psicologia do desenvolvimento não

conheço qualquer princípio geral que realmente tenha esclarecido essas

interrogações." [Reglas y representaciones, pgs. 245/246.]

  [26] Teorias da linguagem, teorias da aprendizagem - O debate entre

Jean Piaget & Noam Chomsky.

[27]  Op.cit., pg. 2.

[28] Idem, pg. 11.

[29] Idem, ibidem.

[30] Idem, ibidem.

[31] Op.cit.,pg. 17.

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