a dimensão política do pensamento de josé de alencar (1865...
TRANSCRIPT
-
Rogrio Natal Afonso
A dimenso poltica do pensamento de Jos de Alencar (1865-1868)
Liberalismo e escravido nas cartas de Erasmo
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria Social na Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Histria Social das Relaes Polticas.
Orientao: Prof. Dr. Mrcia Barros Ferreira Rodrigues.
Vitria 2013
-
Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)
Afonso, Rogrio Natal, 1969- A257d A dimenso poltica do pensamento de Jos de Alencar
(1865-1868). Liberalismo e escravido nas cartas de Erasmo / Rogrio Natal Afonso. 2013.
153 f. : il. Orientadora: Mrcia Barros Ferreira Rodrigues. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal
do Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais. 1. Alencar, Jos de, 1829-1877. 2. Escravido Brasil. 3.
Brasil - Histria - Imprio, 1822-1889. I. Rodrigues, Mrcia Barros Ferreira. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.
CDU: 93/99
-
Rogrio Natal Afonso
A dimenso poltica do pensamento de Jos de Alencar (1865-1868)
Liberalismo e escravido nas cartas de Erasmo
Dissertao apresentada ao Mestrado em Histria Social das Relaes Polticas na
Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para Obteno do
Grau de Mestre em Histria Social.
COMISSO EXAMINADORA
___________________________________________________________________Profa. Dra. Mrcia Barros Ferreira Rodrigues
Universidade Federal do Esprito Santo (orientadora)
Profa. Dra. Maria Cristina Dadalto
Universidade Federal do Esprito Santo (membro titular)
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Thiago Lima Nicodemo
Universidade Federal do Esprito Santo (membro titular)
Prof. Dr. Jorge Luiz do Nascimento
Universidade federal do esprito Santo (membro externo)
Vitria,______ de _______________ de 2013.
-
Agradeo a todos que me ajudaram na construo deste trabalho.
A minha famlia.
Aos professores; todos.
A minha orientadora, em particular.
Aos amigos que me fizeram sugestes e crticas.
queles que dedicaram um pouco de seu tempo me ajudando.
E a Deus...
-
RESUMO
Partindo dos textos que compem uma srie de cartas abertas de Jos de Alencar,
endereadas ao Imperador D. Pedro II e a alguns entes polticos da administrao
do Estado, escritas entre 1865 e 1868, busca-se discutir a defesa paradoxal entre a
formao de uma sociedade liberal dentro de um pas de economia agroexportadora
sustentada pela mo de obra escrava.
Tomaremos o texto de Alencar como um discurso poltico ideolgico das elites
presentes na corte imperial. Entendemos a dimenso ideolgica do discurso poltico
de Alencar no sentido marxista de corte gramsciano, ou seja, como uma concepo
de mundo que perpassa desde o discurso comum at formas mais elaboradas de
discurso filosfico. A partir da, buscaremos compreender o modo de vida, as
representaes polticas e as formas de dominao presentes no perodo sob a tica
do pensamento poltico conservador de Jos de Alencar, dando nfase a anlise de
sua defesa do liberalismo e da escravido.
PALAVRAS CHAVE: Poltica, discurso, liberalismo, escravido.
-
ABSTRACT
Based on the texts that make up a series of open letters addressed to Jos de
Alencar to Emperor D. Pedro II and some political entities of state administration and
written between 1865 and 1868 seek to discuss the defense of the paradox between
a liberal society within a country agro-export economy sustained by slave labor.
.
We will take the text of a speech Alencar as ideological political elites present at the
imperial court. We understand the ideological dimension of political discourse of Jos
de Alencar in the sense of cutting Gramscian Marxist; as a world view that permeates
from the common speech even more elaborate forms of philosophical discourse.
From there, we will seek to understand the way of life, political representations and
forms of domination present in the period from the perspective of political speech of
Jos de Alencar, emphasizing the analysis of his defense of liberalism and slavery.
KEYWORDS: politics, speech, liberalism, slavery.
-
LISTA DE IMAGENS
FIGURA 1 Fac-smile da segunda edio das cartas ao Imperador.....................183
FIGURA 2 Fac-smile da primeira edio das Cartas os povo..............,...............184
FIGURA 3 Folha de rosto da edio das Cartas ao Marqus de Olinda..............185
FIGURA 4 Pgina do Dirio do Rio de Janeiro registrando a abolio...............186
-
SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................10
1. A TRAJETRIA POLTICA DE ALENCAR...........................................................22
1.1 PRIMEIROS ANOS..............................................................................................24
1.2 VIDA NA CORTE..................................................................................................27
1.3 MILITNCIA POLTICA.......................................................................................34
1.4. LTIMOS ANOS.................................................................................................49
2. CONJUNTURA POLTICA DO II REINADO.........................................................55
2.1 UMA VISO GERAL............................................................................................56
2.2 O ESTADO DA ARTE DA IMPRENSA NO OITOCENTOS............................... 64
2.3 SOBRE AS ELITES NO PODER........................................................................ 70
2.4 INTELECTUAIS E OPINIO PBLICA................................................................77
3. LIBERALISMO E ESCRAVIDO NAS CARTAS DE ERASMO.......................... 82
3.1 LIBERALISMO E ESCRAVIDO..........................................................................82
3.2 LIBERALISMO E ESCRAVIDO: O MODELO BRASILEIRO..........................86
3.3 AS CARTAS DE ERASMO...................................................................................95
3.3.1 AO IMPERADOR.............................................................................................103
3.3.2 AO POVO; AO REDATOR DO DIRIO DO RIO DE JANEIRO......................121
3.3.3 AO MARQUS DE OLINDA; AO VISCONDE DE ITABORAHY.....................133
3.3.4 NOVAS CARTAS AO IMPERADOR...............................................................138
4. CONSIDERAES FINAIS.................................................................................162
-
5. BIBLIOGRAFIA....................................................................................................174
6. ANEXOS..............................................................................................................183
-
INTRODUO
O Brasil do sculo XIX, com a chegada da famlia real nos primeiros anos at, e
particularmente, o perodo imperial, caracterizado por um desenvolvimento
econmico, social e poltico intenso e relativamente acelerado, se comparado a
outras naes da Amrica Latina (COSTA, 1999). Tal desenvolvimento se deve a
construo de um projeto poltico para o pas que, deixando de ser uma colnia de
Portugal, necessitava afirmar sua nova identidade - agora como uma nao
independente - tanto interna quanto externamente. O processo tem incio com a
transferncia para a cidade do Rio de Janeiro do Prncipe Regente D. Joo VI, a
famlia real portuguesa e sua Corte em 1808, gerando um considervel aumento na
populao residente e a consequente transformao da cidade, com a construo
de escolas, museus, teatros, faculdades e, dentre outras novidades, a imprensa.
A emancipao poltica em 1822 mantm o sistema monrquico ainda sob a casa
de Bragana, com D. Pedro I agora pelo modelo constitucional, tendo por base as
ideias liberais importadas da Europa iluminista. A presumida liberdade que o pas
vem a construir, garantida na constituio outorgada pelo governante, j encontra
um terreno poltico e econmico bastante diverso daquele onde surgiu o liberalismo
europeu, tendo por base a agricultura de produtos de exportao assentada na
escravido - tanto a lavoura tradicional aucareira do nordeste como as novas e
prsperas plantaes de caf do Vale do Paraba dependiam do escravo. O Brasil,
logo depois da emancipao politica em 1822, possui uma das maiores populaes
escravas da Amrica e tambm a maior populao de afrodescendentes livres no
continente (MATTOS, H., 2000), a quem no eram concedidos os direitos polticos
de cidado. E uma minoria, tida como aristocrtica, dominava, assentados seus
privilgios nas relaes que possuam com a coroa uma administrao do Estado
de modelo conservador, com D. Pedro e a herana do absolutismo portugus.
Liberalismo e conservadorismo convivem ento na sociedade brasileira em
formao como os dois lados de uma realidade complexa e contraditria. Liberal, no
sentido de que as lideranas que surgem se mobilizaram nesse sentido para
-
justificar a separao da metrpole, e ao mesmo tempo conservador, por precisar
manter a escravido e a dominao do senhoriato (NOVAIS, 1996).
Para a manuteno da organizao do Estado, a monarquia refora os laos j
seculares do estamento portugus presentes desde a colnia, criando tambm
inspirado na tradio portuguesa o modelo brasileiro de nobreza, de gentleman;
este emerge como um segmento, que se solidifica na figura do intelectual: morador
da cidade, bacharel em direito (tambm alguns poucos mdicos, raros engenheiros
e matemticos), filho do fazendeiro ou do comerciante enriquecido, filho do
funcionrio portugus fixado no Brasil, neto e bisneto dos donos da terra, e
representante ltimo das famlias que viriam compor esta elite da terra, garantindo
uma continuidade na estabilidade poltica. Observa-se assim, com a absoro
destes elementos pelo Estado, um crescimento de algumas cidades porturias e
principalmente no Rio de Janeiro onde se instala a Corte, e o consequente
desenvolvimento de uma burocracia especializada, necessria administrao do
reino. Um conjunto de instituies, baseadas no modelo portugus quando no
copiadas integralmente de seus pares em Lisboa de funcionalismo pblico, para
uma monarquia de moldes absolutistas que recebe poucas adaptaes no Brasil
(FAORO, 2004).
Boris Fausto, em sua Histria do Brasil (FAUSTO, 2001) defende certa estabilidade
no perodo, sustentada pelo desenvolvimento das cidades e o aumento de pessoas
com nvel superior. Costa (1999) afirma que os ncleos urbanos mais importantes,
em sua maioria, estavam ao longo da costa brasileira, coincidindo com os principais
portos exportadores, e o desenvolvimento destes tem por conta de sua localizao
caractersticas especficas das ideias trazidas da Europa pelos jornais e livros que
chegam pelos portos. Nas demais reas o crescimento urbano era limitado,
prevalecendo a grande propriedade rural. Mas, com as faculdades de direito em So
Paulo e Recife sendo construdas na primeira metade do oitocentos, o processo de
composio de uma intelectualidade local j tem incio tendo como palco os ncleos
urbanos. Tal perodo marcado tambm pelo desenvolvimento da imprensa, onde
as ideias liberais so proclamadas aos quatro ventos pelos diversos jornais e
pasquins, que surgem e desaparecem todos os dias (BAHIA, 1990); os homens que
se formam de uma maneira integral, certo - naquele novo cotidiano iro,
-
inspirados em um perodo recente de administrao j dissemos, moldado no
estamento portugus - desenvolver certa predileo pelo cargo pblico e pelas
letras. Segundo Faoro (2004), o funcionrio pblico que se forma um dos
responsveis diretos seno o nico tecnocrata pela reorganizao (reinveno)
do antigo modelo no novo pas. Leitores dos jornais e ao mesmo tempo formadores
de opinio, estes homens so os comentadores e partcipes do desenvolvimento
poltico e econmico das cidades, enquanto inspirados pelas ideias liberais que j
tomam corpo por aqui. Estes homens, que tem acesso informao e fazem de sua
prxis um elemento transformador da sociedade (GRAMSCI, 1976), alguns sendo
sustentados pelo abrao do cargo pblico, outros escrevendo para os jornais, onde
apresentam e defendem suas ideias (liberais ou no) para os outros homens - que
vem a constituir uma opinio pblica, representada pelos vidos leitores desses
mesmos jornais.
Isto posto, destacamos que essa dissertao que tem como tema o liberalismo no
Brasil e sua relao com a escravido no perodo do segundo reinado, apresenta
como seu objetivo geral discutir as dificuldades de implantao deste sistema
poltico - o liberalismo - em uma sociedade dominada por uma elite assentada na
economia agroexportadora, baseada na mo de obra do escravo, percebendo como
paradoxal esta relao, entendendo ser o liberalismo uma doutrina poltica que tem
por base a defesa da liberdade individual nos campos poltico, econmico religioso e
intelectual, conquistada por meio de lutas da sociedade civil contra o absolutismo do
Estado caracterstico do Antigo regime na Europa. Acreditamos, com Gramsci
(1989), que o discurso que sustenta tal relao e tenta justifica-la mediado entre as
elites e o povo por meio dos intelectuais. Portanto, cabem aqui mais algumas
questes: qual era a viso dos intelectuais sobre a relao entre liberalismo e
escravido no Brasil? Os intelectuais comungariam com tais ideias? Elas esto
presentes em seu discurso?
Nossa dvida fundamental, a qual a pesquisa busca explicar : ser que estes
intelectuais, que se formam nas primeiras faculdades de direito do Brasil, filhos de
fazendeiros, comerciantes, muitos dos quais ligados direta ou indiretamente
economia agroexportadora baseada no trabalho escravo, assumiram o discurso
liberal? Estaria este discurso presente em suas representaes e em seus textos?
-
Para tanto, nosso objetivo especfico ser analisar o trabalho de um intelectual do
perodo e uma parte de sua produo: Jos de Alencar.
Dessa forma, partimos da seguinte hiptese: por meio de um discurso poltico
conservador vinculado as propostas ideolgicas das elites escravocratas,
disseminado pelos jornais e panfletos do perodo, que os intelectuais construram
uma imagem paradoxal do liberalismo para o Brasil no segundo reinado.
Para construirmos nossa narrativa histrica, tomamos como fonte para analisarmos
nossa hiptese, as cartas de Erasmo: Um conjunto de cartas abertas, publicadas
sob a forma de folhetins no perodo de 1865 a 1868, dirigidas ao Imperador e a
vrios outros entes polticos. Nossa hiptese de que, neste texto, possamos
identificar a tentativa de Alencar sustentar uma viso liberal para o desenvolvimento
poltico e econmico da nao, ao mesmo tempo em que faz uma defesa da
manuteno do sistema escravista no Brasil, o que nos faz crer que exista uma
postura liberal/conservadora como modelo ideolgico a ser construdo pelas elites
atravs de alguns setores da imprensa. Buscaremos nas cartas polticas de Alencar
indcios da sustentao de um discurso liberal que tambm apresenta caractersticas
conservadoras, e admite (e reafirma) a manuteno da escravido no Brasil. Para
tanto, nos propomos a uma anlise de todo o texto das cartas, em uma perspectiva
hermenutica, baseada nos princpios da anlise do discurso. Como sustenta
Iiguez (2005) a anlise de discurso, como aparentemente possa parecer, no
uma rea restrita da lingustica, e comporta contribuies de vrias reas de estudo.
Ao mesmo tempo, considerando que uma das caractersticas da histria poltica
renovada, segundo Remond (2003), ser um ponto de convergncia de diversas
disciplinas como a sociologia, a lingustica, o direito, dentre vrias outras, o que lhe
possibilita um ganho analtico consistente e consolida sua natureza interdisciplinar, a
anlise de discurso apresenta-se como um caminho consistente para a abordagem
de textos polticos do perodo. Neste caso, nossa pesquisa busca entender a relao
do modelo de liberalismo poltico implantado no Brasil com a escravido, e se a
justificao para tal discurso est presente nos textos de intelectuais do perodo,
tendo como fonte o texto das Cartas Polticas de Jos de Alencar.
Nossa pesquisa se justifica pela necessidade de entender a dimenso poltica do
-
segundo reinado por meio de uma fonte impressa que teve grande circulao no
perodo de nosso recorte, e que pode criar uma inter-relao entre os pontos
descritos. Na anlise do texto de um dos mais importantes intelectuais do perodo,
Jos de Alencar - poltico atuante, jornalista, romancista e dramaturgo -
conseguimos um elo entre intelectuais, imprensa e elites, e a confluncia desses
partidos no projeto ideolgico de construo da nao (GRAMCI, 1989). Tais
elementos so comunmente tomados em separado. Com Alencar, nas cartas de
Erasmo temos um intelectual que usa do seu texto literrio/jornalstico1 em uma
mdia alternativa no momento, para se dirigir a segmentos da elite poltica e
econmica na Corte no Rio de Janeiro. Essa confluncia, portanto, a prpria
ao do objeto enquanto veculo de comunicao.
A discusso historiogrfica sobre nosso tema apresenta estudos por vezes
coincidentes, por vezes conflitantes. Bosi (1988) afirma que o paradoxo entre
liberalismo e escravido no existiu no Brasil no perodo que se segue
Independncia e vai at os anos centrais do Segundo Reinado (BOSI, 1998, p. 05).
O autor tambm afirma que para entender a articulao do liberalismo pregado e
assumido no Brasil com o regime escravagista necessrio compreender o modo
de pensar das classes polticas dominantes no imprio a partir da independncia.
Neves (2001) sustenta que o liberalismo no Brasil se alavanca a partir da revoluo
vintista em Portugal, que vem propondo reformas que pudessem garantir ao
indivduo direitos de cidadania e liberdade de expresso, e buscando o fim do
despotismo como uma soluo para o imprio. O movimento, segundo a autora,
assimilado sem dificuldade pelos elementos das elites poltica e intelectuais no
Brasil. A proposta era buscar o novo, mas sem abrir mo dos antigos privilgios
econmicos.
Para Gorender (2002) os princpios liberais levados adiante pelos comerciantes e
plantadores visava o direito de ter uma representao no estado, fora das limitaes
impostas pela poltica colonial que terminaria com o processo de independncia. Tal
1 Antnio Cndido (1999) sustenta ser uma das caractersticas do perodo (segundo reinado) a
influncia do texto literrio nos jornais, que temos vrios exemplos em Machado de Assis, Jos de
Alencar, Joaquim Nabuco, Capistrano de Abreu, para citar alguns.
-
processo, segundo ele, tem inicio com a abdicao em 1831. Este autor afirma que
o liberalismo europeu defende o trabalho livre, mas lembra tambm que o prprio
Adam Smith no era contra a escravido nas colnias. Ou seja, o liberalismo
europeu, segundo um de seus mais importantes representantes, j nasce sob esta
contradio. O autor lembra que, mesmo com a Revoluo Francesa tendo
decretado a libertao dos escravos em suas colnias francesas, Napoleo
restabelece a escravido oito anos depois. Apesar da pregao pela liberdade na
Europa, nas colnias a poltica praticada no era a mesma. O que nos leva a
entender melhor a relao liberalismo/escravido no Brasil.
Entendemos ento que no processo de formao do Estado Imperial Brasileiro,
havia diferentes leituras e objetivos para o uso do liberalismo, ligadas a interesses
especficos. Por um lado, como enfatiza Mattos (1987), a ao do grupo conservador
no imprio seguia no sentido da construo de monoplios, uma continuidade do
praticado no perodo colonial, enfatizando as relaes de dominao sustentadas
pela coroa. Costa (1999) identifica certa originalidade no movimento poltico liberal
brasileiro do perodo, tentando interpreta-lo como uma figura hbrida, onde os
elementos conservadores permanecem e so amalgamados com as prticas liberais
aceitas, estruturando as instituies e a viso de mundo pelas elites dominantes,
sustentados pelas classes intermedirias que se desenvolvia nas cidades mas que,
ao mesmo tempo, viam no sistema agroexportador baseado na escravido uma
dificuldade para o desenvolvimento do capitalismo. Por outro lado, Carvalho (2007)
chega a subestimar o aspecto liberal, sustentando haver um pensamento
conservador dominante, sendo a conciliao entre as correntes de pensamento e os
partidos a poltica da coroa, com o intuito de administrar interesses e evitar conflitos.
Bosi (1988) sustenta ainda que o trfico se apoia, por vezes, nas prprias
autoridades a quem cabia fazer cessar o trfico. So homens ligados a
administrao e a poltica que mantm o controle terras, do caf e dos escravos, o
que faz com que uma defesa da escravido seja a proposta corrente. Nesse
aspecto, Prado (2001) concorda que com a produo organizada sob a explorao
do trabalho escravo, sendo muito lucrativa at ento, dificilmente teria por parte da
elite qualquer movimento estimulando o seu trmino.
-
O liberalismo poltico proposto para o Brasil apresenta assim caractersticas
diversas, conforme os interesses dos diversos grupos das elites polticas e
econmicas no poder. Mattos (1987) enxerga no grupo conservador, representado
pelos senhores, traficantes de escravos e grandes comerciantes, um pensamento
contrrio s ideias liberais e a favor da centralizao poltica. A anlise do sistema
econmico agroexportador brasileiro no perodo Imperial tambm nos revela as
muitas contradies da sociedade escravista do sculo XIX: o liberalismo econmico
e o aumento do fluxo de escravos para o Brasil, a defesa da liberdade e o
incremento da escravido, o desenvolvimento do consumo e a pobreza. Tmis
Parron (2008) sustenta que durante o sc. XIX toda a defesa do trfico e da prpria
escravido como uma instituio se sustentaram em ideias liberais. medida que,
na Europa, o sistema econmico pregava um livre mercado com o trabalho livre, nas
Amricas a escravido permanecia forte em pases como os Estados Unidos, em
Cuba e no Brasil. Emilia Viotti (1999) sustenta para o perodo uma viso hbrida,
onde os elementos conservadores presentes no Brasil servem como um equilbrio a
prticas e ideias liberais que poderiam tomar formas mais radicais se acaso
atingissem grupos da populao; estruturando dessa forma as instituies e a viso
de mundo dos principais agentes polticos no poder no perodo, dando ao liberalismo
aqui sua caracterstica cor local. Dessa feita, entendemos que o liberalismo
representa distintos interesses da sociedade brasileira e caracteriza-se
diversamente nas diferentes regies do pas, e um dos agentes mais importantes na
divulgao de tais ideias e praticas justamente a imprensa, que muito se
desenvolve no perodo como arena de debates de polticos e intelectuais.
Concordando com Bosi (1988), que afirma que o paradoxo entre liberalismo e
escravido foi somente verbal, que o liberalismo simplesmente no existiu enquanto
uma ideologia dominante. Segundo ele, o que dominou em todo esse perodo no
Brasil foi um iderio de fundo conservador. Um conjunto de normas jurdico-polticas
capazes de garantir a propriedade fundiria e a escravido negra at o seu limite. E
em nosso entender, essa ideologia era difundida por meio dos intelectuais, nos
veculos de comunicao do perodo como os panfletos, pasquins e jornais em
geral.
-
Portanto, nosso objetivo aqui, para testar nossa hiptese, estudar as formas do
discurso poltico em meados do sculo XIX, analisando o texto jornalstico/literrio
de Jos de Alencar nas Cartas de Erasmo. Acreditamos que Alencar usava seu
texto como um meio para difundir, fortalecer e consolidar a ideologia das elites
presentes na corte imperial, suas representaes e as formas de dominao
presentes no perodo. Alencar toma do discurso liberal alguns princpios para
sustentar a ideologia de grupos vinculados a uma proposta de conservadorismo
poltico, em que a manuteno dos privilgios desta aristocracia bem como a
continuidade da escravido no Brasil so seus pontos principais.
A pesquisa se fundamenta, tambm, na premissa de que a proposta de Alencar era
a de criar um modelo (segundo ele, melhor) para a sociedade. De tal maneira,
podemos design-lo o texto, as cartas de Erasmo - como um discurso ideolgico.
Um conceito formulado por Chau (revendo Gramsci) nos ajuda de forma elucidativa:
Fundamentalmente, a ideologia um corpo sistemtico de representaes e de normas que nos 'ensinam' a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerncia ideolgicas nascem de uma determinao muito precisa: o discurso ideolgico aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferena entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lgica da identificao que unifique pensamento, linguagem e realidade para atravs dessa lgica, obter a identificao de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto , a imagem da classe dominante. (CHAUI, 1997. p. 03)
Dessa feita, entendemos a dimenso ideolgica do discurso poltico, construdo por
meio das cartas de Erasmo, no sentido marxista de corte gramsciano, ou seja, como
uma concepo de mundo que perpassa desde o discurso comum at formas mais
elaboradas de discurso filosfico. Nesse sentido, as cartas de Erasmo sero
tomadas como pea de anlise enquanto uma dimenso do discurso de Alencar
como ator poltico de seu tempo, para uma discusso sobre a relao entre
liberalismo e escravido no Brasil. Gramsci (1989) nos mostra que os intelectuais se
formaram historicamente em associao com as elites econmicas. Seu papel,
dentro dos diversos partidos2 a de organizao e disseminao da ideologia.
Alencar, por meio de seu texto, busca criticar a administrao vigente e sua relao
2 Entendendo partido no sentido mesmo que Gramsci o determinou. GRAMSCI, Antnio.
Intelectuais e a Organizao da Cultura. So Paulo: Civilizao Brasileira, 1989.
-
com a coroa, por meio de recriminaes a poltica econmica, a administrao da
guerra do Paraguai, ao descaso dos polticos, e em nosso caso quanto s
propostas para o fim da escravido.
Buscamos nos textos de Gramsci o referencial terico que acreditamos nos
apresenta uma melhor adequao a proposta metodolgica aplicada, de uma
discusso hipottico-dedutiva dos textos que se seguem. Gramsci nos fornece um
material terico que - como ele mesmo comenta em sua organizao inicial para a
escritura dos cadernos - so apontamentos, sem uma ligao serial linear, mas que
podem nos fornecer uma base terica rica conquanto estejam mesmo permitindo-se
uma interpretao mais heterodoxa das fontes.
Gramsci prope uma viso ampliada do conceito de Estado em que a relao entre
sociedade civil e sociedade poltica dialtica. A sociedade civil o lugar da luta de
classes pela hegemonia, e junto com a sociedade poltica um dos fatores que a
constituem. O Estado um elemento aglutinador e, como tal, formado pela
diversidade de instituies da sociedade civil. uma combinao de fora e
consenso, fazendo parecer que os caminhos traados pelo Estado sejam vistos
como consensuais pela maioria, expressos pela opinio pblica em seus diversos
rgos (GRAMSCI, 1999). Neste conceito ampliado de Estado, a sociedade poltica
a definio de uma esfera na qual se situam os mecanismos de coero e
dominao como o aparato policial-militar e a burocracia, e a sociedade civil, que
formada pelas organizaes responsveis pela elaborao e difuso das ideologias,
como a escola, a igreja, os partidos polticos, os sindicatos, as organizaes
profissionais e a mdia. A cultura, para Gramsci, est relacionada com a
transformao da realidade, atravs de uma busca e consequente conquista de uma
conscincia superior, onde cada indivduo precisa conseguir compreender o seu
valor na sociedade (GRAMSCI, 1976). dessa forma que se d a passagem do
momento corporativo ao momento tico-poltico, da estrutura superestrutura. Isto
expresso por Gramsci atravs do seu conceito ampliado de poltica, a "catarse". O
momento em que a esfera dos interesses corporativos e particulares eleva-se ao
nvel da conscincia universal, e as classes conseguem elaborar um projeto para
toda a sociedade atravs de uma ao coletiva. Assim, sair da passividade, para
Gramsci, deixar de aceitar a subordinao que o sistema capitalista impe a
-
alguns estratos da populao. Nesse processo, que dialtico, podemos observar
um Alencar, em sua posio de aristocrata, mas ao mesmo tempo como um
intelectual - um elo para a divulgao das ideias da elite e a sociedade como um
todo que opta pela reafirmao de valores tradicionalmente aceitos, reafirmando
um modelo adequado que deve perpetuar-se, tanto para a famlia como para a
administrao pblica, por meio da divulgao de suas ideias em um veculo de
comunicao, em detrimento das transformaes que acusa como degradadoras
dos valores; temos aqui a prpria constituio do bloco histrico. a partir destes
conceitos, formulados por Gramsci, que buscamos encontrar uma melhor
compreenso do texto de Alencar.
No primeiro captulo, nosso trabalho apresenta uma sucinta biografia de Jos de
Alencar, tentando situar em sua trajetria os interesses e as escolhas polticas nas
quais estava inserido e o contexto a que se referia e de certa forma pretendia
criar.
No segundo captulo, buscamos mostrar a conjuntura poltica do segundo reinado,
junto ao processo de formao das elites e intelectuais, bem como da imprensa no
Brasil. A diviso, aparentemente estanque, tem como elemento agregador a prpria
biografia de Alencar. Ali, se buscam esmiuar os elementos formadores do
intelectual Alencar apresentados anteriormente, e como ele se apresenta em seu
campo de batalha:
. A conjuntura poltica do perodo, junto a alguns elementos relevantes que so
tomados pela crtica feroz de Alencar.
. A imprensa -, seus primeiros anos no Brasil - na qual Alencar milita como crtico e
jornalista, sendo este o seu veculo principal de divulgao de ideias.
. As elites que disputam o poder no perodo e tem nos intelectuais seu ponto de
ligao com as camadas populares.
. E os intelectuais em si, que comeam a se formar nesse perodo no pas,
influenciados pelas ideias liberais vindas da Europa, e mesmo em parte
compartilhada com os grupos no poder. Alencar se apresenta como um intelectual
surgido em uma das primeiras escolas de direito do pas, no Largo de So
Francisco, portanto compartilhando de uma relao direta com os outros elementos
-
da elite local que estava se formando.
Estes elementos apresentados, a opinio pblica, a imprensa e as elites formam, em
um conjunto, o arcabouo do que seria o campo de atuao do intelectual Alencar, e
a proposta de pontuar o estado da arte em que se apresentam tais segmentos
pode nos auxiliar na construo de um retrato mais ntido da superestrutura
(GRAMSCI, 1999) no recorte.
No terceiro captulo, analisaremos as Cartas de Erasmo, dando nfase s propostas
de Alencar sobre o problema da escravido no perodo. No nosso objetivo
debater (ou defender) as questes do trfico, do abolicionismo e das reaes em
oposio dos diversos grupos envolvidos nas questes, mas, a partir da
investigao da fonte apresentar a questo sob uma tica especfica, a de Jos de
Alencar como um ator poltico do perodo, e seu modelo de representao poltico e
ideolgico para o Brasil, se ou no influenciado pelos ideais do liberalismo.
Para tanto, apresentamos uma breve exposio do pensamento de seus principais
representantes na Europa, com o intuito de comparar uma possvel similaridade com
o texto das cartas.
No quarto e ltimo captulo nos reservamos a um conjunto de consideraes finais,
com vistas a uma compreenso do que foi apresentado.
As fontes usadas na pesquisa so: As cartas de Erasmo, publicadas semanalmente
no perodo de 1865 a 1868 e vendidas pelas ruas da Corte do Rio de Janeiro. A
publicao3 com a qual trabalhamos foi organizada por Jos Murillo de Carvalho e
contm as seguintes edies:
. Ao Imperador, Cartas de Erasmo, de 1865; no caso, a segunda edio, de 1866;
. Uma carta Ao Redator do Dirio (do Rio de Janeiro) de 1865;
. Ao Povo, Cartas Polticas de Erasmo de 1866, acompanhadas das cartas Ao
Marqus de Olinda, 1866 e Ao Visconde de Itabora, Carta de Erasmo Sobre a
3 ALENCAR, Jos de, Cartas de Erasmo / Jos de Alencar ; organizador, Jos Murilo de Carvalho.
Rio de Janeiro : ABL, 2009.
-
Crise Financeira, tambm de 1866;
. Ao Imperador, Novas Cartas Polticas de Erasmo, de 1867-68.
Tambm foram de grande auxlio s biografias4 pesquisadas e a bibliografia
composta de obras especializadas, e baseadas em recentes pesquisas e em textos
de consolidado valor. Uma das finalidades da histria conhecer melhor os
sistemas de representao das sociedades, passando pela literatura e filosofia, e
sempre atentando para a produo intelectual (REMOND, 2003). Com as cartas de
Erasmo nos apropriamos de um texto criativo, coerente e esteticamente belo, o que
s vem facilitar o trabalho interpretativo. Frente a isto, aqui temos o Alencar no
comeo da vida pblica, se consolidando tanto como artista como um poltico
atuante na Corte - um intelectual. Um Alencar que tem muito a nos dizer sobre o
perodo.
4 MENEZES, Raimundo de. Jos de Alencar: literato e poltico. 2a. Ed. Rio de Janeiro, livros tcnicos e
cientficos, 1965. NETO, Lira. O inimigo do rei: uma biografia de Jos de Alencar, ou, a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. So Paulo. Globo, 2006. RODRIGUES, Antnio Edmilson Martins. Jos de Alencar: O poeta armado do Sculo XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
-
1. A TRAJETRIA POLTICA DE ALENCAR
um homem de valor, porm, muito mal educado!
D. Pedro II, referindo-se ao Alencar.
Partindo para um esboo sobre a vida de Alencar, preferimos trabalhar com uma
biografia crtica, buscando enfatizar o agente poltico em detrimento do artista. Mas
no podemos deixar de ressaltar ser o poltico Jos de Alencar tambm um dos
maiores representantes das letras do Brasil no oitocentos. Ele, ao lado de Machado
de Assis, Castro Alves, Gonalves Dias e alguns outros no to notrios, tem seu
trabalho caracterizado pela construo de um projeto de modernizao e a
constituio de uma identidade para o Brasil. O desenvolvimento tecnolgico,
cientfico, intelectual promovido na Europa era, em seu entender, um modelo para o
mundo civilizado, e o Brasil no poderia ficar fora de to significativo projeto.
A proposta de nossa biografia se d na medida em que a pesquisa busca enfatizar
Jos de Alencar enquanto poltico. O escritor consagrado deixado por um
momento de lado, em detrimento dos rumos a que as questes relativas histria
poltica so colocados. No caso aqui, a histria da literatura somente um apndice.
Tendo tambm em mente as advertncias deixadas por Remond (2003) sobre o uso
da narrativa factual e subjetivista, eminente na biografia de notveis, que cruzavam
o perigoso caminho de avaliar um perodo pelos olhos de um homem apenas
caracterstica da histria poltica recriminada j pela Escola dos Annales -
buscamos pelo caminho biogrfico integrar o Alencar aos diversos agentes polticos,
a fim de desenhar um retrato mais consistente do perodo, mas sempre nos
acautelando quanto a direo seguida. Neto (2006) e Menezes (1965) sustentam tal
-
proposta, afirmando que o temperamento reservado de Alencar fator determinante
para a anlise de seu texto que, no caso das Cartas de Erasmo, apresenta
caractersticas que transitam entre o romantismo literrio e um jornalismo crtico,
como poderemos ver mais adiante. Pocock (2003), justificando uma proposta
biogrfica, comenta que se [temos de ter] uma histria do pensamento poltico
construda sobre princpios autenticamente histricos, precisamos ter meios de
saber o que um autor estava fazendo quando escrevia, ou publicava um texto
(POCOCK, 2003, p.28). Ainda na corrente citao, explica que em ingls coloquial
perguntar o que um autor estava fazendo o mesmo que perguntar o que ele
pretendia, ou seja, o que estava tramando ou o que pretendia obter. Quais
seriam as intenes de tal autor quando da escritura de seu texto? Quais as suas
pretenses com tal trabalho? (POCOCK, 2003, p.28). Philippe Levilain (2003) indica
o fim da dcada de 1980 como o momento do florescer da biografia na Frana,
havendo esta sendo reabilitada no meio universitrio ainda na dcada de 1960 e j
na dcada de 1980 ultrapassa as fronteiras do pas. Michael Winock (2003) nos
lembra da emergncia de pesquisas sobre os intelectuais e suas ideias no sculo
XX, bem como a sua importncia para a difuso de modelos polticos, que tem
atrado ateno de inmeros pesquisadores. Com Jos de Alencar, ampliamos o
horizonte da pesquisa dos intelectuais no Brasil at meados s sculo XIX, onde
est nosso recorte temporal.
J existem biografias consistentes sobre o Alencar. Destaco o trabalho beneditino de
Raimundo de Menezes (1965), Jos de Alencar, literato e poltico, que recolheu
desde documentos pessoais at fotografias e caricaturas do perodo, mas que tenta
no traar uma crtica ao trabalho de Alencar, sendo um texto predominantemente
factual. para aonde me remeto, como uma fonte bsica do estudo, e que
determina a linha mestra da descrio, mas me apoiando tambm em alguns outros
textos5. Ressaltamos aqui que nosso recorte ir enfatizar tambm o contexto das
relaes sociais que so (ou podem ser) determinadas pelo texto.
5Outras biografias so: MAGALHES, Raimundo Jr. Jos de Alencar e sua poca. So Paulo. Ed.
Lisa, 1971. ; FILHO, Luiz Viana. A vida de Jos de Alencar. So Paulo: Ed. UNESP/Salvador: Edufba, 2008 e NETO, Lira. O inimigo do rei: uma biografia de Jos de Alencar, ou, a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. So Paulo. Globo, 2006.
-
1.1 PRIMEIROS ANOS
No dia 1 de Maio de 1829, em uma pequena casa no stio Alagadio Novo, na vila
de Nossa Senhora da Conceio de Messejana, periferia de Fortaleza, provncia do
Cear, nasce Jos Martiniano de Alencar Filho. Seu pai, um padre que h pouco
deixara a batina para se envolver na poltica6, junto com D. Brbara de Alencar, sua
me, o irmo Tristo de Alencar e o tio Leonel Pereira de Alencar, foi figura de
destaque na revoluo pernambucana. Um revolucionrio liberal exaltado pr-
repblica, que posteriormente foi eleito deputado constituinte para o congresso
lusitano7. Alencar mantinha relaes prximas com os liberais de Minas Gerais e de
So Paulo, como o Padre Jos Bento e com Custdio Dias.
Os (chamados) rebeldes de Pernambuco eram militares de alta patente,
comerciantes, senhores de engenho e, sobretudo, padres (calcula-se em 45 o
nmero de padres envolvidos). Apesar de ter em suas linhas elementos do povo e
escravos, no era uma revoluo que pudesse ser chamada de popular. Antes,
tentava afirmar a dominao de alguns grupos de elite local. Sobe forte influncia da
maonaria, que disseminava as ideias liberais entre seus grupos, os rebeldes
proclamaram uma repblica independente que inclua, alm de Pernambuco, as
capitanias da Paraba e do Rio Grande do Norte, chegando com Alencar at o
Cear. O movimento chega a controlar o governo durante dois meses. Alguns de
seus lderes, inclusive padres, foram fuzilados; Alencar consegue o perdo.
(CARVALHO, 2002)
Com a abdicao, havendo o Senador pelo Cear, Joo Carlos Augusto de
Oeynhausen e Gravenburg, marqus de Aracati, acompanhado D. Pedro I em sua
volta a Portugal, declara o senado a vacncia de sua cadeira. O nome de Jos
Martiniano, o pai, indicado em lista trplice entregue a apreciao da Regncia-
6 Um padre longe da igreja. Menezes (1965) cita em nota que no foram encontrados os registros de
Alencar na arquidiocese de Fortaleza. 7 O pai de Alencar, poltico ativo e um dos participantes do movimento republicano proclamado no
Cear em 1817, j forneceria uma sedutora monografia. Preferimos aqui, em funo da metodologia exigida e dos limites da pesquisa, buscar uma anlise coerente apesar de firmada em caminhos mais sintticos.
-
trina. Aprovado, toma posse em 02 de Maio de 1832. A vida na corte do Rio de
Janeiro o esperava, mas no por muito tempo. Em 23 de agosto de 1834 nomeado
presidente da provncia do Cear, e retorna terra natal com a famlia. Passados
alguns anos de uma administrao exemplar, com a renncia do Regente Feij
com quem mantinha agora relaes prximas - foi exonerado do cargo. Alencar e
Feij, desde o golpe de estado de 1832, em que se reuniam nas sesses do Partido
Moderado, j admitiam certa cumplicidade de ideias.
A famlia deixa o Cear e ruma novamente corte em meados de 1838, onde o
Alencar reassume sua cadeira no senado. O pequeno Jos de Alencar, ento com
11 anos, passa a frequentar o colgio elementar.
O pai de Jos de Alencar, o senador Jos Martiniano de Alencar, figura chave no
processo de maioridade de D. Pedro II. Enquanto orador oficial do Senado faz um
discurso, durante a coroao e sagrao do imperador no Pao da cidade, clamando
ao povo e a divina providncia para que iluminem o futuro monarca (SCHWARCZ,
1998). Com a posse de D. Pedro II nomeado, logo a seguir, presidente do Cear.
Toma a administrao da provncia por alguns meses, mas depois de enfrentar
algumas revoltas populares, deixa o governo e retorna Corte em 1841. Neste
ponto, o senador Alencar - agora cooptado pelo Estado - provavelmente j estava
bem distante das ideias que proclamava nos movimentos revolucionrios.
Jos de Alencar, o filho, tem no Cear - d'onde passa a infncia nessas idas e
vindas - a vida tranquila do interior. Ali encontra as imagens que o seguiram pela
vida inteira e ajudaro a criar as representaes para uma nao nova, esplndida,
como tudo o mais que havia a sua volta naquele momento.
Alencar desembarca em So Paulo em maio de 1843. Um mirrado rapazola de
catorze anos. Vem completar os exames preparatrios. (MENEZES, 1965, p.49). A
falta de livrarias e gabinetes de leitura e a dificuldade de comunicaes com a
Europa torna o acesso aos livros uma dificuldade, j naquela poca. Os livreiros, em
sua maioria, se estabelecem no Rio de Janeiro, e vendem majoritariamente ttulos
em ingls visto a quantidade de residentes ingleses - e francs, e alguns romances
adaptados e traduzidos, mas ainda pouco material (RENAULT, 1976)
-
Alencar uma figura que passaria despercebida em qualquer local. Alto, magro,
moreno, de culos. De jeito acanhado; at mesmo silencioso. No frequentava as
tabernas ou sales, o que produzia certo estranhamento no s dos colegas da
repblica, mas nos estudantes em geral. Durante o Imprio, como os cursos
regulares de medicina, direito e engenharia ainda no se proliferassem no perodo,
tais escolas no se configuravam apenas como um centro de produo de uma
cultura intelectual no Brasil. Eram, antes, espaos para uma consolidao do poder
nas mos de uma elite citadina que comeava a se sobressair (COSTA, 1999). A
frequentao s escolas de Direito era a antessala necessria ao jovem que
buscava a ocupao em algum cargo pblico. A criao de cursos de nvel superior
tambm busca a criao de um funcionalismo que possa assumir os cargos da
burocracia do Estado. Tambm uma parte da formao da Corte, e uma carreira
possvel dentro de um escasso mercado de trabalho.
Durante o perodo do curso os estudantes bagunavam a cidade promovendo
reunies, serenatas e bebedeiras, num tributo a Lord Byron8, em noitadas
satanistas. Quando Alencar se transfere para So Paulo esse Byronismo est na
moda (MENEZES, 1977, p. 50); os estudantes saem pelas ruas blasfemando contra
a vida e o amor, de capa e cabeleira 9, virando a vida de pernas para o ar. Alencar
nunca foi dado a esses arroubos da juventude, preferindo levar uma vida mais
absorta em seus pensamentos.
Em 1846 Alencar se matricula na Academia. Ali tem suas primeiras experincias
jornalstico-literrias onde funda, junto a alguns colegas primeiranistas, a revista
semanal Ensaios Literrios. Em comeos de 48, depois de tirar frias em Fortaleza e
no stio Messejana, embarca para a cidade de Olinda, onde se matricula no 3 ano
do curso Jurdico. A companhia de Alencar ali so os passeios pelas ruas solitrias e
a biblioteca do mosteiro de So Bento, onde funcionava o curso, e aonde tem
acesso a exemplares dos cronistas coloniais. No fica ali por muito tempo, voltando
8 Poeta romntico ingls que veio a morrer na primeira metade do sc. XIX. 9 A expresso, recolhida por Menezes de um comentrio de Brito Broca, est indefinida. Parece remeter aos juristas ingleses e americanos modelos para esta juventude da elite da corte, portanto de usarem perucas como um smbolo de poder. Renault (1976) indica a partir de uma fonte de 1816 - que cada profisso recorre a determinado tipo de cabeleira, como forma de distino.
-
posteriormente para So Paulo. Alencar comea j a sentir os primeiros sintomas da
doena que o acompanharia at o fim da vida, e o clima do Nordeste possivelmente
seria um alivio para a tuberculose.
Por fim, consegue se formar em Direito em 1849 (na turma de 50) na Faculdade de
Direito do Largo de So Francisco. So Paulo uma cidadezinha de terceira ordem,
tristonha e brumosa: no possui cerca de 12 a 14 mil almas, se tanto (MENEZES,
1965, p. 60). O espao dividido entre os estudantes, grupo ento numerosssimo,
e o resto, como diziam. Meretrizes, gente pobre nos cortios, alguns emigrantes
que vinham tentar a vida fora do campo e artistas mambembes que buscavam levar
alegria para ali. Carvalho (2007) sustenta que a escolha por So Paulo e Olinda para
o estabelecimento dos cursos de Direito foi uma maneira de unificar os laos entre
as elites dispersas pelas vrias regies, para posteriormente associa-las a Corte.
Alencar no foge a regra e muda-se para o Rio de Janeiro, cidade mais promissora
economicamente, onde comea a trabalhar como praticante no escritrio de
advocacia do Dr. Caetano Alberto Soares, um dos mais procurados, chegando a
representar em certas ocasies a Casa Imperial. Alencar trabalha ali por quatro
anos, onde se inicia nos estudos mais ridos do Direito, mas no esquece o
jornalismo.
1.2 VIDA NA CORTE
Em 09 de agosto de 1853 Alencar comea a trabalhar, a convite de um amigo, na
redao do jornal Correio Mercantil - chamado o grande jornal das ideias liberais -
com a obrigao de promover mudanas em sua estrutura que viessem a torn-lo
um pouco mais popular. Era tido como um abrigo dos letrados e o mais importante
dos dirios da Corte a poca. At 1852, o Correio Mercantil era um dos jornais
cariocas com eventual tiragem em francs (MENEZES, 1965). Alencar passar a
analisar os acontecimentos da semana no rodap da primeira pgina da revista
hebdomadria Pgina Menor, publicada sempre aos domingos. No sculo XIX, tais
revistas - em formato de folhetins - j so comuns na imprensa nacional.
-
O trabalho de Alencar era reunir diversos assuntos, com uma escrita leve e que
chamasse a ateno do pblico. Agora, mesmo avesso a festas e sales de baile -
como o do Cassino Fluminense, famoso ponto de encontro onde fluam amizades e
intrigas, liberais e conservadores conversavam serenamente; com seu jeito sisudo, o
jovem e acanhado jornalista comea a frequentar a sociedade a procura de ideias e,
tambm, de amigos.
Alencar sabia, como bom jornalista, que por vezes seria preciso no s relatar os
fatos, mas tambm cri-los; o caso do desfile de carnaval. Desde 1854 a polcia
probe a prtica do entrudo10 no carnaval. Em 1855, um grupo de folies animados
por jornalistas do Correio Mercantil, em sua maioria, resolve por na rua um carnaval
diferente, com desfile de banda de msica, carros alegricos e cavaleiros, nos
moldes do carnaval de Veneza. A moda de peras italianas pelos teatros da cidade
faz com que o estranhamento seja menor pela populao, j familiarizada com os
tipos da comdia italiana como arlequins e colombinas. Alencar, acompanhando o
ento coronel Polidoro da Fonseca11 e Muniz Barreto, proprietrio do Correio
Mercantil, vai ao Pao da Quinta da Boa Vista convidar a famlia imperial para o
desfile, que viria a passar tambm no Largo do Pao. Seria o primeiro destes
desfiles a se apresentar no Rio de Janeiro. O imperador comparece e aprecia o
espetculo. D. Pedro II, poucos anos mais velho que Alencar, reconhece naquele
filho de padre um pouco da convico e do ativismo do velho senador Alencar.
Porm, o fato de Alencar assumir-se a favor do imprio no quer dizer que morria
de amores por D. Pedro II.
Em 1855, devido a alguns desentendimentos com a direo do jornal, abandona o
Correio Mercantil e sua coluna Ao correr da pena, que um sucesso na poca,
voltando a militar na advocacia por algum tempo. Em outubro do mesmo ano
assume os cargos de gerente e redator-chefe do Dirio do Rio de Janeiro com a
10 O entrudo era uma festa popular oriunda de Portugal. Significa literalmente introduo e remonta antigas prticas pags. Carnaval de rua que, desde os tempos da colnia, vem sendo proibido pelas autoridades constitudas devido aos constantes excessos do povo. Ver, por exemplo, DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro. Rocco, 1997. 11 Os Fonseca eram uma famlia, alm de influente, vasta nos quadros do exrcito. Podemos citar desde alguns heris da guerra do Paraguai at o grupo que sustenta Deodoro na proclamao da repblica. Ver, para um melhor esclarecimento, nota em CARVALHO, Jos Murilo de, A formao das almas: o imaginrio da repblica no Brasil. So Paulo, companhia das letras, 1990. p. 144.
-
tarefa de reerguer o ento decadente jornal (o primeiro jornal dirio surgido no Rio
de Janeiro12) alavancando suas vendas. J era, naquele momento, um jornalista com
certo renome e seus textos sugerem influncias de autores europeus. O modelo
civilizacional francs - e isto de comum acordo com a grande maioria dos bacharis
que frequentavam a corte - eram de seu agrado e como muitos outros redatores do
perodo, foi dele tambm um divulgador. o afrancesamento da sociedade
carioca, que se manifestava tambm no uso da linguagem pelos jornais. Alencar
grande apreciador de Lamartine, e leitor de Balzac e Voltaire desde os tempos da
academia em que passava as tardes junto ao dicionrio de francs.
Nos fins de 1854 vem ao Rio de Janeiro, em frias das funes de cnsul geral na
regio da Sardenha, na atual Itlia, o poeta Domingos Jos Gonalves de
Magalhes - futuro visconde de Araguaia. Traz consigo os originais do poema A
confederao dos Tamoios; obra que, dizia ele, revolucionaria as letras nacionais.
Grande amigo de D. Pedro II, este manda imprimir uma edio do poema na
conhecida tipografia de Paula Brito13, em rica encadernao, o que j era um motivo
para que o proclamado poema fosse lido. O assunto gira em torna das lutas dos
Tamoios com portugueses em meados do sculo XVI no litoral fluminense e paulista,
exaltando o quanto podia as figuras histricas do perodo. As crticas foram
unnimes, o poema era segundo comentadores do perodo, como Alexandre
Herculano e Gonalves Dias uma grande decepo. Alencar, oculto pelo
pseudnimo Ig14, investe criticamente sobre o poema classificando-o de medocre,
em uma srie de oito cartas publicadas em sua coluna no Jornal. Seria este o
primeiro debate substancioso sobre literatura travado no Brasil, e, de certa forma, a
primeira querela envolvendo o artista e o imperador.
12 Interessante lembrar que o Dirio do Rio de Janeiro chega a ser apontado como subversivo por
Jos Bonifcio, que manda averiguar o teor do escritos incendirios ali publicados em 1822(COSTA, 1999. p.71). No Dirio seriam publicados artigos contrrios monarquia constitucional. Alencar era assumidamente um conservador. 13 Paula Brito editor e dono de tipografia, um conhecido ponto de encontro de intelectuais e polticos do perodo. Mulato, de origem pobre assim como Machado de Assis, mais um indicativo de que nas letras nacionais a poltica de segmentao racial era mais amena. 14 Menezes comenta em uma nota que, tendo o Imperador 'esquecido' de convidar o Alencar para a leitura da Confederao dos Tamoios em seo no gabinete imperial, este viria a se tornar um crtico ferrenho de Magalhes. Nos parece um reducionismo; a implicncia do Alencar no chega a tanto e sua capacidade como escritor e poltico mostra bem sua capacidade.
-
A carta aberta comum na imprensa do perodo. Um comentador coloca suas
opinies, de maneira direta e sbria, com o intuito de publicitar um assunto. Um
debate aberto; por vezes uma provocao. E o direito de resposta era concedido
prontamente. O assunto, se tornado interessante, era esperado pelos leitores.
A maior parte das crticas se refere gramtica e a metrificao. O poeta Arajo
Porto-Alegre, cognominado O amigo do poeta, sai em defesa de Magalhes.
Alencar rebate e, a esta altura, Ig no seria mais um desconhecido. Porto-Alegre
chega a transparecer que a peleja do Alencar no seria contra o preterido poeta,
mas um ataque indireto ao seu protetor: D. Pedro II. Alguns outros aparecem pelas
pginas do jornal, apoiando tropegamente poema e poeta. Alencar segue firme e o
imperador assume a pena sob o codinome de Outro amigo do poeta. Escreve seis
artigos que Alencar responde com airosidade. O imperador pede a opinio favorvel
de alguns amigos sobre o poema, mas nem as crticas encaminhadas por Gonalves
Dias e Alexandre Herculano conseguem convencer D. Pedro II do contrrio, que
Magalhes no era to bom assim. Torna-se ento uma guerra pblica de teimosos.
Alencar, no mesmo ano, rene em livro as cartas publicadas sobre A confederao
dos tamoios. No ano seguinte, Magalhes publica uma segunda edio do poema
que D. Pedro II promove, agora chegando a pagar a publicao de duas tradues
para o idioma italiano da obra. O imperador incentiva a pesquisa e publicitao de
trabalhos que enfatizam essa mitologia romntica do indigensmo, mas no significa
que esteja preocupado com a esttica literria. Suas razes esto mais prximas do
campo poltico, como tambm o seria com sua relao com o instituto histrico e
geogrfico, ao qual era o maior patrocinador. Era o momento de solidificar os
smbolos da nova nao e o indigensmo, alm de tudo, se caracteriza por ser um
movimento antilusitano (ROMANCINI, 2007).
Sobre o texto de Magalhes, o pblico aparentemente se cansa da peleja, e Alencar,
como redator do jornal, precisa procurar matria mais interessante e a contenda se
dissipa no tempo. Mas esta seria a primeira de uma srie de desavenas
envolvendo o Imperador e Alencar.
Em dezembro de 1856 Alencar termina seu primeiro livro, distribudo para os leitores
do Dirio do Rio de Janeiro como um presente no Natal. No ano seguinte publica o
-
primeiro folhetim15 de O guarani, no Dirio, e depois em livro, organizado em quatro
volumes; e os primeiros captulos de A viuvinha em folhetim. O sucesso de O
guarani tamanho que vrias portas so abertas para o escritor. neste ano que
Alencar ingressa no teatro, com sua pea: O Rio de Janeiro, verso e reverso; em
novembro estreia com O demnio familiar e, ainda em dezembro do mesmo ano, a
comdia O crdito. A sociedade apresentada nos palcos do Rio de Janeiro, para
Alencar, no seria aquela que ele via nas ruas. Seu modelo era a sociedade
francesa. Comenta assim em uma crnica:
() a verdadeira comdia, a reproduo exata e natural dos costumes de uma poca, a vida em ao no existe no teatro brasileiro. No achando pois em nossa literatura um modelo, fui busc-lo no pas mais adiantado em civilizao, e cujo esprito tanto se harmoniza com a sociedade brasileira; na Frana. Fui feliz; o pblico ilustrado foi mais benvolo do que eu esperava e merecia; O Demnio Familiar, escrito conforme a escola de Dumas Filho, sem lances cedios, sem gritos, sem pretenso teatral, agradou. (MENEZES, 1977. p. 135)
No exposto, entendemos que Alencar buscava um modelo melhor, segundo ele,
para a sociedade carioca. O modelo francs, de certa forma j impregnado na
sociedade da Corte, agora validado pela arte e aplaudido pelo grupo. Tal modelo,
como afirma, no estava na literatura dramtica nacional. A vida em ao no existe
no teatro. A questo : qual seria essa vida que Alencar buscava? A das ruas
imundas do Rio de Janeiro, dos escravos que recolhiam os dejetos na cidade, da
incipiente indstria nacional? Certamente no.
A pea de maior aceitao pblica O demnio familiar, e a mais divulgada de
suas comdias. Machado de Assis em um artigo qualifica a pea O demnio
familiar como um retrato da famlia brasileira no perodo, com sua caracterstica
segundo ele paz domstica. O texto circula tambm em verso impressa, com uma
dedicatria imperatriz D. Teresa Cristina, o que chega a ser considerado uma gafe
de Alencar, sendo a personagem principal o referido demnio familiar, um moleque
chamado Pedro, assim como D. Pedro II (e tambm D. Pedro I ?). Na estreia do
espetculo no Teatro do Ginsio comparecem D. Teresa e D. Pedro II, que chega a
se irritar com os olhares maliciosos e risadas do pblico a cada travessura do
15
Alencar estava - de certa forma - na vanguarda da mdia. O folhetim foi uma inveno de Gustave Planche, no decnio de 1820 na Frana, introduzindo uma forma diferenciada narrativa do romance. Era um modelo que agradou e ajudou a construir popularidade para Alencar. Ver CNDIDO, Antnio. Literatura e Sociedade. 9. Ed. Rio de Janeiro. Ouro sobre Azul. 2006. p. 43.
-
escravo no palco. Segundo esse autor, se origina da, e no do episdio da
Confederao dos Tamoios, as diferenas entre o imperador e Alencar. De qualquer
forma, no se pode deixar de ver Jos de Alencar como um implicante.
Em 30 de maio de 1858, no teatro do Ginsio Dramtico, estreia a comedia As asas
de um anjo. Depois da terceira apresentao pblica, o texto proibido pelo chefe
de polcia. Alencar vem a pblico, atravs do Dirio, questionar a arbitrariedade e
apresentar sua defesa. Questiona como um espetculo aprovado anteriormente pela
censura (apresenta-las anteriormente aos censores era o procedimento padro)
poderia ser logo depois proibido. Diz o autor ter se baseado em uma pea de
Alexandre Dums Filho sobre uma prostituta; j tendo sido o espetculo
apresentado no mesmo teatro semanas a fio, sendo assim bem conhecida do
pblico. Apresenta ali seus argumentos e motivos, repetindo que no entende como
um texto que, ele mesmo admite, adaptado de um romance europeu a dama das
camlias - que apresenta j a poca relativo sucesso de pblico no teatro, pde ser
censurado. ali que Alencar entende, da pior maneira, que a sociedade carioca de
ento no aceita ser confrontada com uma caracterizao to realista de seus
costumes. Havia assuntos ainda difceis de discutir. interessante nos determos um
pouco aqui, para analisar o confronto do autor com a censura. Alencar se sente
intimamente ofendido com a proibio, e parte para sua defesa pblica, fazendo o
que sabe fazer: mobilizar a opinio pblica atravs do jornal...
Em 28 de junho de 1858, Alencar pblica no Dirio do Rio de Janeiro um artigo que
viria a ser uma espcie de direito de defesa a censura do espetculo16.
interessante no sentido de que podemos ter uma viso ampla da censura praticada
pelas instituies pblicas no perodo imperial. inicia a carta indicando o seu
direito e dever como escritor. Alencar se diz indiferente a punio e explica que tal
somente servir para excitar a curiosidade pblica, por isso vem a pblico
defender-se apenas por que se diz um defensor da moral e no quer manchar sua
imagem aceitando passivamente a (afirma) injustia. No pretende fugir a punio e
afirma que se quiser dar-lhe maior publicidade, tenho ainda um meio, a imprensa,
16
Artigo transcrito na seo ensaios literrios em ALENCAR, Jos de. Teatro completo. Rio de Janeiro. Servio Nacional de Teatro, 1977. As referncias entre aspas so todas do artigo
-
que no est sujeita censura policial. A pea, conta, havia sido liberada por meio
de despacho especfico pela polcia em 25 de maio e pelo Conservatrio Dramtico
ainda em janeiro, o que j indica uma contradio. Dentre as causas estipuladas
pela lei para a proibio de espetculo teatral estavam: o ataque s autoridades
constitudas, o desrespeito religio, e a ofensa moral pblica que, no entender do
jornalista, seria o motivo da proibio.
Alencar afirma ter pensado bastante na reao que o pblico teria sobre o tema, e
afiana ter se baseado em obras dramticas filhas da chamada escola realista que
vem de Paris e que tm sido representadas em nossos teatros, sende ele mesmo
um dos espectadores. Mas, sustenta, esqueci-me que o vu que para certas
pessoas encobre a chaga da sociedade estrangeira, rompia-se quando se tratava de
esboar a nossa prpria sociedade (ALENCAR, 1977, p. 227). Afirma que o pblico
da Corte, assistindo a A dama das Camlias ou s Mulheres de Mrmore, cada
um toma Margarida Gauthier e Marce so apenas duas moas um pouco
estravagantes, mas quando se transpe a questo para o Brasil em As asas de um
anjo, o espectador encontra a realidade diante de seus olhos, e espanta-se sem
razo de ver no teatro, sobre a cena, o que v todos os dias na rua e nos passeios.
Mas, o que seria imoral? O que motivaria tal ato da polcia? Alencar explica que
imoralidade o ato que a moral reprova. Alencar se defende dizendo que sua inteno
era a preteno de mostrar uma lio para os pais de famlia sobre a necessidade
de cuidarem da educao moral de seus filhos, de constiturem-se enquanto famias.
Sustenta que em sua tese no h a uma s personagem que no represente uma
ideia social, que no tenha uma misso moralizadora. No ele quem nos
apresenta, diz, a prpria sociedade. E as instituies pblicas criam um
impedimento para que o grupo possa comfrontar sua realidade; mais uma barreira
constrda, como podemos observar, entre o povo (rebelde, inculto, imoral) e a elite,
que s observa isso de sua cadeira ou camarote, estando distante de tudo.
Alencar se desgosta com aquilo e abandona, logo depois, o Dirio do Rio de Janeiro
e a dramaturgia (pelo menos, por enquanto), voltando a se dedicar ao Direito e a seu
trabalho como advogado no escritrio do Dr. Caetano Alberto. E agora com clientela
vasta. Ao longo do perodo imperial, com a estabilidade da economia e um maior
-
(ainda pouco) desenvolvimentos das cidades aparecem outros caminhos para o
trabalho que no somente a burocracia, mas a grande maioria dos profissionais
liberais no consegue manter-se. Apesar do desenvolvimento da advocacia, do
magistrio, da medicina, do jornalismo, muitos destes profissionais liberais o caso
de Alencar encampam duas profisses ao mesmo tempo como forma de
sobrevivncia ou de esperar ser alcanado pelo brao sedutor do emprego pblico.
Para Neto (2006) a produo literria de Alencar no est desvinculada de sua
personalidade, um tanto depressiva, e afastada da vida noturna da capital, lugar
comum para polticos e jornalistas - vrios deles conhecidos por Alencar, que
preferia a tranquilidade de sua propriedade na periferia onde recebia alguns poucos
amigos. Ali entre seus livros, dedicava-se a leitura de cronistas e historiadores e a
pesquisa sobre a histria poltica dos sculos XVIII e XIX. Tais leituras teriam levado
Alencar a um aprofundamento de sua reflexo crtica sobre a realidade brasileira e
os padres de comportamento da sociedade e das instituies que a constituem, e
da famlia burguesa em particular.
1.3 MILITNCIA POLTICA
Em dezembro de 1858, quando Nabuco de Arajo assume o cargo de Ministro e
Secretrio de Estado dos Negcios da Justia trata logo de promover uma reforma
interna neste, e o nome de Alencar lembrado para uma diretoria de Seo na
Secretaria de Estado dos Negcios da Justia. Depois de alguns meses no cargo,
solicita a um amigo do partido conservador, o ento conselheiro Eusbio de Queiroz,
uma melhoria em seu cargo. Em maio de 1859 seu pedido aceito e, agora como
consultor, recebe o ttulo de conselheiro com seus 30 anos. Comea o gosto pela
poltica que estava desde sempre, segundo Alencar, em sua famlia. No mesmo ano
que entra para o ministrio nomeado professor de direito mercantil do Instituto
Mercantil no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, publica vrios trabalhos jurdicos de
reconhecido valor que alcanam segundas e terceiras edies, o que prova que o
texto de Alencar era procurado e lido; que conseguiu sucesso como autor ainda em
sua juventude (algo dificilmente alcanado mesmo hoje).
-
A poltica, assim dizia o Alencar, era como uma religio em sua famlia, e o desejo
por uma cadeira na Assembleia j latente. Mas em sua primeira candidatura, em
1856, para uma cadeira de deputado geral pela provncia do Cear, na primeira
eleio por distritos, no eleito na ocasio (ALENCAR, 2009). Em 15 de maro de
1860 tem outro desgosto, falece o velho senador Alencar, seu pai. Talvez a ltima
chance de associao aos quadros do Partido liberal. No ms seguinte, comea
uma correspondncia com amigos no Cear j no intuito de buscar uma candidatura
para deputado. Em novembro, e ainda trajando luto17, embarca para Fortaleza onde
busca amigos e correligionrios para iniciar sua campanha pelo partido conservador
nas periferias da capital cearense. Com a quantidade limitada de eleitores pela
legislao vigente, em poucos dias consegue-se conversar com um significativo
percentual de eleitores. Apesar de seu pai ser um grande nome do partido liberal e
mesmo Alencar sendo o redator-chefe do Dirio do Rio de Janeiro, folha
declaradamente liberal, o partido no sugeriu uma filiao ou a possibilidade de
concorrer a algum cargo pblico, fato que ser lembrado posteriormente com certa
amargura. Talvez, com os liberais, Alencar pudesse exercitar melhor sua ojeriza por
D. Pedro II, que j era manifesta a poca. Talvez, pelo mesmo motivo, o partido no
o desejasse em suas linhas. A to falada homogeneidade de pensamento entre
liberais e conservadores se aplica aqui, onde algum que pudesse desagradar o
imperador seria um filho sem pai. O que Alencar j sabia era que se no
conseguisse apoio de alguma liderana poltica de um lado ou de outro -
provavelmente no seria eleito. Foi o que aconteceu no primeiro pleito. Alencar
ento se apadrinha de Eusbio de Queiroz e, com o apoio deste e do grupo
conservador, eleito para a Cmara em 1861.
Os principais partidos do perodo, o liberal e o conservador, apresentavam algumas
diferenas importantes. O professor Bonavides consegue uma caracterizao
abrangente para o perodo de nosso recorte:
17 O traje de luto para meados do sculo XIX era conservado por um tempo relativamente grande,
quando se tratava de um familiar prximo. Porm, pode ter funcionado como uma ferramenta
importante na construo de um personagem para sua campanha poltica. Ele praticamente um
desconhecido no Cear. preciso mostrar-se como cristo, bom filho, etc.
-
Os liberais do Imprio exprimiam na sociedade do tempo os interesses urbanos da burguesia comercial, o idealismo dos bacharis, o reformismo progressista das classes sem compromissos diretos com a escravido e o feudo.
Os conservadores, pelo contrrio, formava o partido da ordem, o ncleo das elites satisfeitas e reacionrias, a fortaleza dos grupos econmicos mais poderosos da poca, os da lavoura e pecuria, compreendendo plantadores de cana-de-acar, cafeicultores e criadores de gado. (BONAVIDES, 2000, p.491)
Tambm Ilmar Mattos (1987) afirma que a diferena entre Luzias e Saquaremas j
estava demarcada desde as revoltas liberais do perodo regencial. Porm, como os
partidos polticos ainda no havia desenvolvido suficiente fora enquanto instituio
e ainda no haviam desenvolvido sua configurao atual, geralmente os interesses
pessoais (e as ideias) determinavam as aes dos polticos. Jos Murillo de
Carvalho (2007) sustenta a posio dos magistrados tipicamente centrados no
partido conservador, tanto quanto o clero no partido liberal, tendo o grupo dos
militares preferido manter certa neutralidade e, por fim, um grupo ascendente de
profissionais liberais formando a ala ideolgica do Partido Liberal e o ncleo do
Partido Republicano do Rio de Janeiro (CARVALHO, 2007, p. 225). Nas cartas,
Alencar sustenta que era do comrcio portugus e aderncias que o partido
conservador tirava principalmente sua fora e os recursos com que sustentava a
luta. e mais adiante afirma que o partido conservador servia-se da indstria para
subir (...) (ALENCAR, 2011, p.63). Em sua quase totalidade estes homens eram
representantes de uma sociedade patriarcal, europeizada, escravagista e machista.
Tais homens partilhavam desse universo cultural que, inclusive, os caracterizava
independente do partido a que estavam filiados. E quantas vezes tais interesses no
se confundiam com a vontade do imperador - figura maior, que muitos queriam
agradar e poucos tinham coragem de desagradar. Bonavides (2000), citando Rui
Barbosa, diz que os dois partidos, na prtica, se resumiriam em um s: o partido do
poder. Faoro (2004) tambm sustenta que, no segundo reinado, a partir de 1836, a
histria poltica brasileira se resumiria aos dois grandes partidos: o liberal e o
conservador. . A conciliao foi algo como uma orientao, um acordo intrapartidrio
ou mesmo uma coligao, e no outro partido. A liga, que tida como a associao
geradora do partido progressista, foi uma organizao primria dessa liderana, que
tem seu trmino com a deposio de Zacarias de Gis em 1868, tendo seus filiados
-
se rearranjado entre liberais e conservadores. As discusses entre as diferenas
ideolgicas dentro dos partidos excedem a pretenso deste trabalho. O que
modestamente se sustenta aqui que a filiao partidria se dava, a princpio, no
como resultado de um aceite pelo ator poltico da base ideolgica do partido se
que houvesse uma. O partido conservador, por exemplo, nunca chegou a escrever
um manifesto ou coisa que o valha mas a suas necessidades pessoais, suas
pretenses sociais e para seu favorecimento econmico. Para efeito geral,
acompanharemos a anlise de Carvalho:
A complexidade dos partidos se refletia naturalmente na ideologia e no comportamento poltico de seus membros, dando s vezes ao observador desatento a impresso de ausncia de distino entre eles. Um exame, embora sumrio, de alguns problemas cruciais enfrentados pelos polticos do Imprio pode, no entanto, mostrar tanto as divergncias interpartidrias como intrapartidrias. (CARVALHO, 2007, p. 219)
Em Janeiro, ao se realizarem as eleies secundrias, Jos Martiniano de Alencar
Filho eleito pelo 1 distrito (tendo, segundo um comentrio seu, obtido tambm 30
votos dos cerca de 220 eleitores liberais) no Cear, junto a outros seis candidatos de
seu partido. Em 23 de maio inicia seus trabalhos na corte. O cargo de deputado
um importante comeo para a vida pblica:
Apesar de eleitos por um perodo de quatro anos, frequentemente conseguiam ser reeleitos para vrias legislaturas ou detinham importantes cargos administrativos. Muitos encontraram na Cmara um caminho fcil para o Senado e o Conselho de Estado. Assim como os conselheiros de Estado e os senadores, os deputados pertenciam a uma rede poltica de clientela e patronagem, que utilizavam tanto em seu prprio benefcio quanto no de seus amigos e protegidos. (COSTA, 1999, p. 141)
Ainda sobre o assunto, uma interessante anotao de Tavares Bastos em seu dirio
pessoal nos ilustra bem a posio de clientela a que os deputados estavam
submetidos. Referindo-se ao fim de setembro 1869, comenta sobre uma reunio dos
senadores liberais autorizando Zacarias de Gis a prosseguir negociaes sobre o
oramento com Cotegipe, ministro da Marinha. Ao redigir a informao, refere-se
aos senadores que compe uma frao do partido denominada progressista critica
ou ceticamente - como os nossos chefes (ABREU, 2007, p.122). Disto podemos
deduzir, e ainda segundo o depoimento de Costa, que Alencar tambm no
-
nenhum heri do Brasil. Quer o cargo pblico como uma segurana, que garanta
uma rede de relacionamentos necessria a permanncia nesta periferia da elite,
com vistas a uma posterior promoo.
Quando do incio dos trabalhos, todos os olhares estavam postos sobre Alencar.
Romancista e dramaturgo j famoso, jornalista respeitado, filho de importante
Senador que chegara a orador do Senado na coroao do Imperador; a casa estava
cheia de expectativa para a fala inicial. No calor da hora a emoo lhe sobe a
cabea. O discurso proferido, to aguardado, foi um grande fiasco, com momentos
de indeciso e certa disfemia. aos poucos que a palavra lhe vai acontecendo, vai
achando seu lugar na tribuna durante o mandato. Os argumentos, a rplica sempre
pronta, o exerccio parlamentar vai construindo o personagem poltico Jos de
Alencar que chega a ser um dos mais respeitados oradores da cmara. A
humilhao nos primeiros dias arranha um pouco do orgulho e da habitual
arrogncia do escritor, para depois se constituir em um aprendizado decisivo do
poltico.
Em 13 de maio de 1863 dissolvida a Cmara. Alencar, sentindo a doena, faz
algumas viagens de repouso fora do Rio de Janeiro. De volta Corte, passa a morar
na Tijuca e diminui o ritmo da produo literria, atendendo a conselhos mdicos. Ali
conhece aquele que viria a ser um grande amigo, o mdico Dr. Thomaz Cochrane18,
de quem posteriormente toma a filha em casamento, Georgiana Augusta Cochrane.
Em 1865 nasce seu primeiro filho, Augusto.
De temperamento arredio, dado mesmo a solido, com a dedicao ao trabalho
redobrada agora pela necessidade de sustentar uma casa; no sendo um associado
do Instituto Histrico e Geogrfico, no sendo frequentador assduo de sales ou da
livraria do Paula Brito como outros literatos, vai desligar-se ainda das poucas
relaes sociais que tem. Fecha-se na famlia e para si. o ano em que publica as
primeiras cartas de Erasmo, dirigidas ao Imperador.
18
Que no o Almirante Cochrane; militar contratado por D. Pedro I para massacrar rebeldes revolucionrios pelo Brasil afora.
-
Em novembro de 1865 comeam a aparecer nas livrarias do Rio de janeiro uma
srie de cartas abertas, publicadas sempre as teras-feiras, endereadas ao D.
Pedro II e assinadas com o pseudnimo de Erasmo, mas logo se soube que o autor
era o deputado Alencar. A procura pelos folhetins era imensa. Havia quem
esperasse a chegada de um vendedor pelas ruas para adquirir seu exemplar19. O
prprio imperador no deixava de estar atento a cada nova carta; era como mais um
sucesso literrio. Publica tambm, em 1866, Os partidos, em formato de livro, mas
discutindo as mesmas questes e de forma menos informal.
As cartas continham um conjunto de denuncias sobre as irregularidades na poltica e
no procedimento tico dos polticos. Falam do poder moderador, da situao
financeira do pas; no h assunto que escape ao jornalista. Posteriormente,
enderea outra carta, esta ao Visconde de Itabora, ex-Ministro dos Negcios e da
Fazenda, uma carta sobre a crise financeira, em que tece vrios elogios a este, e
mais uma, endereada ao Marqus de Olinda. De julho a agosto publica uma srie
de cartas ao povo20. Alencar se coloca sempre, e antes, como um pensador da
poltica. Algum que observa e indica um caminho para a nao, e sua condio de
jornalista decisiva passa isso. Deve-se ter em conta que um pensador poltico
algum que observa contextos, comportamentos e instituies e a partir de disputas
retricas em torno de tais conceitos, e que busca criticar o poder institudo e as
justificativas que este toma para continuar no poder.
Alguns fatos so modelares para mostrar o desinteresse de Alencar pela sua
valorizao enquanto uma personagem social, preferindo ser identificado enquanto
escritor. Prefere as letras e a tranquilidade de seu recanto vida social que poderia
ter na Corte. Um exemplo disto o episdio da condecorao. Em 1867 o Alencar,
por decreto imperial, agraciado com o oficialato da Ordem da Rosa, pelos
relevantes servios prestados s letras no pas. Um agrado da parte de D. Pedro II,
feito sem que houvesse uma solicitao ou concurso. A poltica de condecoraes
19 o depoimento de Barros Pimentel, que demonstra como o o folhetim foi um meio importante de
divulgao no perodo.
20 As cartas sero analisadas em captulo a parte.
-
basicamente a mesma dos ttulos nobilirquicos brasileiros: formas de cooptao de
elementos da elite para o partido do Imperador. Nos anos finais do imprio, D.
Pedro II agraciaria vrios fazendeiros com a ordem da Rosa pela iniciativa destes
em libertar seus escravos (NOVAIS, 1997). Alencar, sem um motivo aparente,
recusa a condecorao publicamente, solicitando ao redator do Jornal do Comrcio
que publicite sua deciso. mais uma alfinetada em D. Pedro II que, a princpio,
busca trazer Alencar para seu grupo mais prximo. A caminhada na carreira poltica
vai se tornando complicada com tais atitudes de intransigncia, pelo menos para
algum dentro do partido conservador que almeja seguir adiante.
Em 1868 est frente do governo o gabinete liberal presidido por Zacarias de Gis e
Vasconcelos. Por conta de alguns desentendimentos entre Zacarias e o marqus de
Caxias, j tomado como um heri por sua atuao na guerra do Paraguai, D. Pedro
II impelido pela imprensa a tomar algum lado na rinha, e cai o gabinete. Sobem
ento os conservadores, sob a chefia do visconde de Itabora. O nome de Alencar
proposto para o Ministrio da Justia e, sob o espanto de muitos, aprovado pelo
imperador. D. Pedro estaria tentando amarrar uma ponta da corda que tinha s
mos no pescoo do teimoso literato? Alencar reluta num primeiro momento, mas
depois de seu ego ter sido acariciado por algumas visitas de partidrios, como o
baro de Muritiba e o Conselheiro Paulino de Souza - falando em nome do Futuro
presidente do Conselho -, resolve por bem aceitar o cargo. O ministrio, apelidado
gabinete-bomba, toma posse em 16 de julho. composto por, alm da figura do
Presidente do Conselho e Ministro da Fazenda o Visconde de Itabora, Joaquim
Rodrigues Torres; Paulino Jos Soares de Souza como Ministro do Imprio; Jos de
Alencar, Ministro da Justia; Jos Maria Paranhos, o visconde do Rio Branco,
Ministro dos Estrangeiros; Joo Maurcio Mariani Wanderley, o baro de Cotegipe,
Ministro da Marinha; Manoel Vieira Tosta, o visconde de Muritiba, Ministro da Guerra
e Joaquim Anto Fernandes Leo, Ministro da Agricultura, Comrcio e Obras
Pblicas. A ascenso dos conservadores um fato consumado. Alencar , alm de
tudo, o ministro mais jovem do gabinete, mas aos olhos do Imperador no era um
inexperiente. D. Pedro II parece no se importar com a presena do autor das
Cartas de Erasmo; antes, se comporta como um admirador da obra de Alencar.
Mudanas h, mas nem tanto. As figuras de Rodrigues Torres e Paulino que
-
segundo Ilmar Mattos (1987) seriam o brao forte da chamada trindade saquarema
- por tanto tempo estiveram a frente do poder, retornam agora com a
responsabilidade de reorganizar a casa. Ao mesmo tempo, e at como uma forma
de equilbrio de foras, D. Pedro II tambm tinha seu jeito de se resguardar das
presses exercidas pelas elites no poder e da influncia de seus associados e
apadrinhados. Em muitos momentos, leva a liderana do gabinete homens sem
propriedades, lideres com ascendncia humilde, portanto no diretamente atrelados
aos interesses de grupos poderosos, desatados dos laos familiares ou
patronagem com fazendeiros e comerciantes ligados ao trfico e a exportao,
como Saraiva, Zacarias, o Visconde de Ouro Preto, o marqus de Paran, entre
outros. Eles, que estariam mais prximos ao imperador, seriam tambm uma ultima
barreira de conteno dos movimentos em prol da diminuio dos poderes da
monarquia (COSTA, 1999). O movimento republicano s toma corpo em 1873 e
adiante, mas as rusgas que o poder moderador incita no parlamento j se fazem
presentes. Alencar no ministrio trabalha com o afinco que sempre d a seus
afazeres. Isso no uma novidade. No ano de 1868 publica tambm O systema
representativo, obra em que discute o processo eleitoral como a base de um
governo representativo. Nem seria tambm uma novidade o ministro colecionar
desafetos no perodo em que est no cargo. Deputados, colegas ministros, oficiais
no esto livres do temperamento singular de Alencar.
As relaes do imperador com seu ministro da justia so cordiais, porm
complicadas. Alencar reclama que D. Pedro II em tudo se intromete mais tarde dir
que um hbito deste e tambm dos outros ministros nos assuntos do Estado. s
vezes, como um menino curioso que de tudo quer saber, outras vezes, como um pai
zeloso que se preocupa com seus filhos sendo maltratados pelo ministro, chegado
em alguns casos extremos a lembrar de que ele o imperador, e quem manda na
casa (MENESES, 1977). Um dos hbitos de D. Pedro o envio de bilhetes para o
ministro. So comentrios, questes relevantes (ou no), indiscries e
apontamentos que constantemente acompanham os despachos de Alencar.
Algumas vezes se diz preocupado com a imprensa e os assuntos gerais, em outras
solicita informaes sobre processos de funcionrios pblicos e sobre o andamento
das eleies. Alencar no faz por menos, redigindo tambm os seus bilhetes, em
-
tom cordial e respeitoso, mas sempre como um embate de foras, tentando
demarcar seu campo de atuao ou impor limites ao outro. No esta uma prtica
do restante do grupo, que na acomodao burocrtica a que o partido conservador
se acostuma acaba deixando reverter uma formula antiga para o imperador, que
recostado na condio que lhe permitia o poder moderador, apesar de dizer que
deixa a mquina andar, ainda reina, governa e administra (FAORO, 2004). A
tambm o fato de que D. Pedro II prefere morar no pao de So Cristvo ao Pao
da cidade, e os ministros precisavam cavalgam at l duas vezes na semana para
os despachos, coisa que Alencar abomina - considera uma perda de tempo - alm
de reclamar das futilidades que so obrigados a discutir no lugar de tomar o tempo
com alguma providncia importante para o pas, como os rumos da Guerra do
Paraguai.
Certa feita o imperador encaminha, preocupado, um bilhete pedindo esclarecimentos
de notcias vinculadas nos jornais sobre o recrutamento de (in)voluntrios para a
guerra do Paraguai pelo pas afora. A priso para recrutamento era uma realidade e
por vezes usada como uma forma do partido da situao desaparecer com
elementos da oposio. Com tal pretexto, so escolhidos no perodo
propositalmente os indivduos simpatizantes do partido liberal. Alencar, dias depois,
encaminha circular tentando normalizar as coisas e coibir abusos por parte dos
presidentes das provncias e autoridades policiais que usavam de tal artifcio para
uma faxina poltica no eleitorado. As preocupaes do imperador se
fundamentavam nestas aes correntes, como bem sugeria em outro bilhete onde
dizia: (...) eu sei infelizmente o que so as eleies entre ns., buscando sempre
providen