a crônica em drummond_maria helena da silva correa pinho
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO - PUC-SP
MARIA HELENA DA SILVA CORRA PINHO
A Crnica em Drummond: um gnero em trnsito
MESTRADO EM LITERATURA E CRTICA LITERRIA
So Paulo
2011
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MARIA HELENA DA SILVA CORRA PINHO
A Crnica em Drummond: um gnero em trnsito
MESTRADO EM LITERATURA E CRTICA LITERRIA
Dissertao apresentada Banca Examinadora daPontifcia Universidade Catlicade So Paulo, como exigncia
parcial para obteno do ttulode MESTRE em Literatura eCrtica Literria, sob aorientao do Prof. DoutorFernando Segolin.
So Paulo2011
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Banca Examinadora
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DEDICATRIA
Ao meu pai (in memriam), minha me, pelo amor incondicional.
Aos meus filhos Janana e Thiago, para que nunca recuem diante das
adversidades.
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AGRADECIMENTOS
Aos meus familiares, me, irmos, filhos e ao meu companheiro
Francisco Luiz, incentivo e compreenso.
amiga Mrcia Denser, leituras e por partilhar a paixo por Drummond.
Ao Professor Dr. Fernando Segolin, estmulo pesquisa e orientao
permanente.
Professora Dr. Maria Aparecida Junqueira, disponibilidade e
dedicao Docncia.
Ana Albertina, apoio tcnico.
Aos colegas do Centro Cultural So Paulo,
Muito obrigada!
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Enquanto discutem com erudio
os entendidos
que bicho a crnica--- gnero literrio ou nmero de show,
mescla de conto e testemunho,
alienao ou radar ---
meu amigo Joo Brando
vive sua vida entre a rotina palpvel
e a aventura imaginria,
e eu vou cronicando seu viver
com a simpatia cmplice que me inspiram
o ser comum e sua pinta de loucura
mansa,
pois na terra alucinada que nos tocou,
ainda virtude (at quando?)
cumprir sem violncia
o mandamento de existir.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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RESUMO
PINHO, Maria Helena da Silva Corra. A Crnica em Drummond: um
gnero em trnsito. Dissertao de Mestrado. Programa de Estudos
Ps-Graduados em Literatura e Crtica Literria. Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo, SP, Brasil, 2011. 98p.
Esta dissertao de Mestrado analisa a obra de Carlos Drummond
de Andrade, em particular a crnica - um gnero em trnsito. Para anlise
do corpus, escolhemos as crnicas: Divagao sobre as ilhas, Carta
aos nascidos em maio , do livro Passeios na ilha(1962); Lembra-se de
maio, Caso de escolha e Caso de ceguinho, do livro Cadeira de
Balano(1966) e Surge o poeta da flor do livro Caminhos de Joo
Brando(1970).
Como objetivos especficos procuramos demonstrar a maestria
com que Drummond transita entre os diversos gneros literrios. Na sua
obra h um entrelaamento da prosa ficcional, estudos de natureza
ensastica e critica literria, tudo numa dimenso potica e
metalingstica.
Propusemo-nos identificao e exame critico dos fenmenos
estticos da intertextualidade, da metalinguagem e de elementos da
oralidade, caractersticos da prosa moderna.
Como embasamento terico recorremos conceitos da funo
potica da linguagem de Roman Jakobson, incorporao do meios de
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comunicao de massa, ruptura dos gneros, fuso entre a prosa e a
poesia, problematizados por Haroldo de Campos e Otvio Paz.
Contudo, observamos que a crnica drummondiana cumpre suafuno, pois ao relatar os fatos do cotidiano, o faz de uma forma leve
aparentemente descompromissada, mas que deixa transparecer uma
personalidade literria intensa e reflexiva.
Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade, crnica brasileira,
gneros literrios, trnsito entre gneros, hibridizao da linguagem.
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ABSTRACT
Chronicle in Drummond: a genre in transit.
This Master's thesis examines the work of Carlos Drummond de
Andrade, in particular chronic - a genre in transit. For analysis of the
corpus, we chose the chronicles, "Divagao sobre as ilhas, Carta aos
nascidos em maio, from the book Passeios na ilha (1962); Lembra-se
de maio, Caso de escolha and Caso de ceguinho, from the
book Cadeira de Balano (1966)and Surge o poeta da flor from the
book Caminhos de Joo Brando(1970).
The specific objectives sought to demonstrate Drummonds
skillfulness at moving between the various literary genres. In his work
there is an intermingling of prose fiction, nature studies, literary criticism
and essays, all in a poetic and metalinguistic dimension.
We set out to identify and critically examine the aesthetic
phenomena of intertextuality, the meta-language and elements of orality,
characteristic of modern prose.
As theoretical basis we resort to concepts of the poetic function of
language of Roman Jakobson, the incorporation of mass media, the
breakdown of genres, the merger between prose and poetry,
problematized by Haroldo de Campos and Octavio Paz.
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However, we found that drummondiana chronic fulfills its function,
as in reporting the facts of daily life, makes for a seemingly
uncompromising light, but reveals an intense and thoughtful literary figure.
Key words: Carlos Drummond de Andrade, brazilian chronicles,
literary genres, transit between genres, hybridization of language.
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SUMRIO
Introduo 13
Captulo 1: O pensamento moderno como causa da hibridizao
dos gneros.
1.1 Dcadas de 1920 e 1930 17
1.2 Diluio entre prosa e poesia 24
1.3 Ruptura dos gneros 28
1.4 Apagamento do limite entre prosa e poesia 31
Captulo 2: A crnica em seu contexto modernista.
2.1 O gnero crnica e sua linguagem particular 35
2.2 A crnica a partir de 1930 39
2.3 A crnica em Carlos Drummond de Andrade 43
2.4 Drummond cronista e a crtica 45
Capitulo 3: Anlise do corpus A hibridizao dos gneros em
Drummond
3.1 Metalinguagem e reflexo do fazer potico na crnica
drummondiana
3.1.1 Divagao sobre as ilhas: Insularidade como crculo mgico dacriao 48
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3.1.2 Lembra-se de Maio: Tradio e modernidade - a temporalidade
drummondiana como fluir contnuo. 55
3.1.3 Carta aos nascidos em Maio:o sagrado e o profano 59
3.1.4 Surge o poeta da flor - Metalinguagem e o fazer potico 61
3.2 Fragmentos narrativos na crnica de Drummond
3.2.1 Caso de escolha 64
3.2.2 Caso de ceguinho 66
Consideraes finais 68
Referncias Bibliogrficas 73
ANEXOS 79
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Introduo
Neste estudo, enfocamos a obra de Carlos Drummond de Andrade,em particular a crnica, um gnero essencialmente brasileiro, segundo
Antonio Candido. Partimos, ento, do pressuposto de que sua obra,
dentro da perspectiva cultural do sculo xx, relevante para a formao
dos leitores e tambm para a apreciao da arte literria, como um dos
elementos fundamentais da cultura brasileira.
Com a diluio das fronteiras entre os gneros, na Modernidade,
parte considervel das obras literrias no se enquadram na concepo
tradicional dos gneros, visto haver um entrelaamento entre eles e uma
constante transformao na maneira de analisar esse assunto. Desse
modo, propusemo-nos a aprofundar algumas questes sobre essas
formas de expresso, em especial a crnica drummondiana, no sentido
de investigar aspectos que caracterizam este gnero e, assim, dar uma
contribuio cientfica aos estudos da literatura brasileira.
No universo da educao e da cultura, em especial nas reas de
literatura e leitura, importante ter em mente a necessidade maior de
promover a formao de leitores,misso que atualmente torna-se mais e
mais complexa e difcil devido difuso da internet, criao de apostilas e
rebaixamento da qualidade do ensino, entre outros fatores. Sem contar
que a grande parte do povo brasileiro, segundo Candido, passou da
audio de discursos e poemas recitados no rdio e na tev, isto , da
oralidade, ao meio eletrnico, sem ter desenvolvido o tempo lento da
leitura.
Nesse sentido, as crnicas de Drummond, escritas essencialmente
para circular na imprensa, embora muitas vezes demandassem
investigaes documentrias, interpretaes e reflexes sobre a vida,
sem perder o encanto e a leveza, so atraentes para o leitor, pois trazem
sempre uma pitada de humor, de lirismo, pois ele precisava ser lido eno ser complexo.( cf. CANDIDO, 1993, p.17)
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Na obra de Carlos Drummond de Andrade, o que nos interessou
particularmente foi a seleo feita pelo autor de sua obra em prosa, em
1982, ano em que completou 80 anos, intituladaProsa Seleta, publicada
pela Editora Nova Aguilar. Nessa obra, os ttulos dos livros solo e
antologias de crnicas esto dispostos por ordem cronolgica:
Confisses de Minas: ensaios e crnicas; Passeios na ilha: ensaios
e crnicas; Fala, amendoeira; A bolsa e a vida: crnicas; Cadeira de
balano: crnicas; Caminhos de Joo Brando: crnicas; O poder
ultrajovem; De notcias & no-notcias faz-se a crnica; Os dias
lindos; O avesso das coisas; O observador no escritrio; A moa
deitada na grama; Tempo vida poesia; Boca de luar (pstuma, 1988).
Mas, em se tratando da vasta obra de Drummond, percebemos ser
necessrio fazer um recorte, pretendendo lanar um olhar mais
aprofundado a respeito de parte da obra. Assim, como objeto de estudo,
destacamos para uma investigao as crnicas : Divagao sobre as
ilhas, Carta aos nascidos em maio , do livro Passeios na ilha(1962);
Lembra-se de maio, Caso de escolha e Caso de ceguinho, do livro
Cadeira de Balano(1966)e Surge o poeta da flordo livro Caminhos
de Joo Brando(1970).
Entretanto, ao pesquisar a fortuna crtica de sua obra, deparamo-
nos com um grande nmero de trabalhos a respeito de sua poesia e de
sua prosa, ressaltando a leitura do ensaio de Antonio Candido,
Drummond Prosador (1993), que aponta a livre circulao do escritor
entre gneros: sendo altssimo poeta e no menos alto prosador, pode
transitar entre os diversos gneros e acima deles. Assim, Candido nos
revelou um Drummond uno e mltiplo, quando disse: talvez s haja um
Drummond, nem poeta, nem ficcionista, nem cronista, instalado na
posio-chave da sua competncia soberana ... (1993, p.18) . Tais
afirmaes, em particular, estimulou-nos a elaborar esta dissertao.
Assim, o objetivo central deste trabalho investigar como
Drummond transita entre os gneros, rompendo com as tradicionais
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conceituaes de gnero, na medida em que, na sua poesia, h
elementos referenciais da prosa e h poeticidade em sua prosa, em
especial na crnica, vista como prosa de raiz potica , cuja marca
caracteriza-se pela nfase da mensagem na funo potica, conforme
terminologia jakobsoniana, ou seja, a nfase da mensagem nela mesma,
no aspecto material do signo, inclusive quando faz aquilo que
convencionalmente se chama prosa.
Como fundamentos tericos a serem utilizados na anlise esttica
dos arranjos da linguagem em seus elementos sonoros e sintticos
presentes em nosso objeto de estudo, sero fundamentais os conceitos
de funo potica, de Roman Jakobson (2003), para a caracterizao da
poeticidade da linguagem.
Para uma abordagem discursiva da linguagem, investigando as
aproximaes da linguagem potica com a linguagem prosaica,
partiremos de um referencial terico embasado na Anlise do Discurso,
formulada por Bakhtin, via Irene Machado.
No primeiro captulo, sero analisadas as conexes e a diluio
entre prosa e poesia de Carlos Drummond de Andrade na Modernidade,
a ruptura dos gneros, o apagamento das fronteiras entre a prosa e a
poesia, sob as perspectivas tericas de Haroldo de Campos (1972),
Walter Benjamin (1989), talo Moriconi (2004), Davi Arrigucci (1987,2002),
Antnio Cndido (1983,1993,2002), Octvio Paz (2006), Irene Machado
(1995), alm de formulaes crticas de Jlio Cortzar(1974).
No segundo captulo, abordando o tema especfico de nossa
pesquisa, vamos discorrer sobre o gnero crnica no contexto modernista
e seu desenvolvimento a partir de 1930 e, particularmente, sobre a
linguagem da crnica em Drummond, abordando tambm aspectos da
crtica em relao ao cronista.
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Com o propsito de adentrarmos de fato nosso objetivo especfico,
no terceiro captulo realizaremos a anlise do corpus nas crnicas
escolhidas, em que pretendemos investigar o trnsito entre os gneros e
a presena de fenmenos estticos, isto , de elementos que
caracterizam a linguagem de raiz potica na obra prosaica de Drummond.
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Captulo 1
ETERNO
E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.
Eterno! Eterno!
O pensamento moderno como causa da hibridizao dos
gneros.
1.1 Dcadas de 1920 e 1930
No cenrio mundial, a Primeira Guerra (1914-1918) influiu no s
no crescimento da nossa indstria e no conjunto da economia, bem como
nos costumes e nas relaes polticas. Assim, no apenas surgiu uma
mentalidade renovadora na educao e nas artes, como se principiou a
questionar seriamente a legitimidade do sistema poltico, dominado pela
oligarquia rural. (Cf. CNDIDO, 1983, p.9).
Foi nesse clima que, na dcada de 1920, iniciou-se um dos mais
importantes movimentos de renovao da literatura brasileira, o
Modernismo, que, conforme Cndido (1983, p.9), compreendeu trs
elementos estreitamente ligados: um movimento, uma esttica e um
perodo.
A obra de Carlos Drummond de Andrade principiou-se, justamente,
nesses anos 20, quando o escritor colaborava como jornalista no Dirio
de Minas,em Belo Horizonte, mas a conscincia literria se tornou mais
firme com a publicao de A Revista, em 1925, da qual faziam parte um
grupo de poetas mineiros, cuja proposta era a renovao potica no
mbito da literatura brasileira, em sintonia com o que j fazia o grupo
paulista em A Semana a partir de 1922, editando tambm a revista
Klaxon,cujo primeiro nmero data de 15 de maio de 1922.
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impossvel citar Klaxonsem recuar para o movimento surgido em
So Paulo, em 1922: a Semana de Arte Moderna, que se difundiu a
seguir por todo o pas, com o propsito de superar os resqucios
passadistas e artificiosos do Parnasianismo, Simbolismo, incluindo o
Naturalismo. Tal Semana significou uma teoria esttica em aberto, no
rgida nem claramente esboada e, muito menos nica, visando
renovao dos conceitos tradicionais de literatura e de escritor.
Os modernistas de 1922 no se consideravam integrantes de uma
escola, porque o que os reunia era a vontade de expressar-se livremente,
sem os entraves dos modelos acadmicos, instalados no pas entre 1890e 1920. A liberao modernista ocorreu no vocabulrio, sintaxe, escolha
de temas, viso de mundo. Do ponto de vista estilstico, propunham a
rejeio dos padres portugueses, instaurando o coloquial ou o modo de
falar brasileiro, a exemplo de Mrio de Andrade, que comeava os
perodos pelo pronome oblquo, adotava a funo subjetiva do pronome
se, eliminava a segunda pessoa do singular, acolhendo expresses da
prosa corrente e procurando incorporar escrita o ritmo da fala, alm deconsagrar literariamente o vocabulrio usual. Ainda para Cndido: 1922
um ano simblico do Brasil moderno, coincidindo com o Centenrio da
Independncia. (1983, p.9)
Tais fatos culminaram at cerca de 1930 (ano, alis, em que
Drummond estreou com Alguma Poesia) inaugurando, a partir da, uma
nova etapa de maturao, cujo trmino ocorreu em 1945. O Modernismo,
portanto, dizia respeito a certas transformaes da sociedade, em geral
determinadas pela repercusso local de fenmenos exteriores.
Alm da subverso da gramtica, os modernistas promoveram uma
valorizao diferente do lxico paralela renovao dos assuntos. O seu
desejo principal era atualizar e exprimir o cotidiano, transformar em alta
literatura os fatos corriqueiros, enfim, revelar o sublime oculto nas
pequenas coisas. (ARRIGUCCI JR, 1987, p.25).
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Ainda mais. Inspirados em Marinetti, futurista italiano, os
modernistas festejavam a mquina, o progresso, combatiam a literatura
pomposa, o estilo retrico e sonoro, tendendo ao estilo epigramtico,
conciso elptica, visando justamente corrigir a orientao grandiloquente
da literatura tradicional. Drummond, por exemplo, escreveu um poema em
que fez referncia a outro poema de Gonzaga a fim de plasmar um novo
conceito estilstico. Gonzaga escreveu: Eu tenho um corao maior que o
mundo. E Drummond replicou. No, meu corao no maior que o
mundo. muito menor. (CANDIDO, 1983, p.10). Aqui, o poeta confessou
a sua fragilidade, mas com versos de grande fora potica.
Em artigo no 1. nmero de A Revista, de julho de 1925, Carlos
Drummond de Andrade exps a misso que entendia caber ao escritor:
O excesso de crtica dominante nos anos anteriores de 1914 se resolveu
no excesso contrrio, de extrema passividade ante os fenmenos do
mundo exterior ao paroxismo das doutrinas estticas, que chegou a
DAD; repetiu-se o descalabro da Torre de Babel. Agora, o escritor foge
de teorias e construes abstratas para trabalhar a realidade com mospuras.(COUTINHO, 2001, p.128). Nesse caso, vale a pena relembrar um
dos versos mais famosos de Drummond, de Sentimentos do mundo,
publicado em 1940 : S tenho duas mos e o sentimento do
mundo(ANDRADE, 2008, p.154), representando o que ele ps em prtica
em sua teoria ntima sobre o fazer potico.
Afinal, ainda oscilantes, os modernistas queriam encontrar uma
espcie de equilbrio entre a poesia clssica e a nova linguagem que
emergia. Num tempo de reao ao conservadorismo literrio, ideais de
modernizao predispunham formao de grupos, quase sempre
representados por revistas, e os moos de Belo Horizonte no fugiam
regra. (cf. FERRAZ, apud ANDRADE, 2010, p.11).
Foi assim queA Revista,que contou com apenas trs nmeros, fez
barulho suficiente para se firmar como primeiro veculo de divulgao do
iderio modernista em Minas Gerais. Drummond, um de seus fundadores,
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j apresentava uma produo bastante diversificada: publicou crnicas,
ensaios, artigos, resenhas e um poema em prosa A estrela e trs
poemas que viriam a fazer parte de Alguma Poesia: Corao
numeroso, Msica e Igreja. A reduzida presena da poesia, nesse
momento, explica-se, talvez, pela prioridade que o poeta atribua ao texto
jornalstico, o que atendia s necessidades de avaliar o quadro literrio da
poca, explicitar escolhas e demarcar posies, que ele iria desenvolver,
mais tarde, escrevendo crnicas.
Mas, havia um quadro precrio de desenvolvimento da atividade
literria numa cidade como Belo Horizonte, nos meados de 1920.
Problemas tcnicos de impresso e necessidades de negociar
com os passadistas eram, na verdade, conseqncias menos
graves de um ambiente hostil, que desabonava ou
simplesmente ignorava as ambies intelectuais dos amigos
necessitados de Mrio de Andrade. A este coube, por sua
vez, constituir-se em reserva inesgotvel de opinies e
conselhos, textos. O pedido que lhe fora feito no se pautava
por menos: D conselhos, indique, avise, previna. Se,
portanto, parece no ser possvel falar em autonomia ou
iseno do grupo mineiro, tambm no h como ajuizar a
relao estabelecida entre os jovens de Belo Horizonte e a
figura tutelar de Mrio de Andrade simplesmente como de
submisso. Tudo era bem mais complexo. (FERRAZ apud
ANDRADE, 2010, p. 25).
A convite de Mrio de Andrade, Carlos Drummond participaria de
O ms modernista, iniciativa do dirio A Noite, do Rio de Janeiro, que,
de dezembro de 1925 a janeiro de 1926, exibiu uma coluna de primeira
pgina, com o intuito de mostrar a excntrica produo dos escritores
nomeados como futuristas. Servindo-se do sensacionalismo que o
acontecimento aparentava, a edio do dia 12 de dezembro anunciava:
Futurismo!...Futuristas! Que vem a ser aquilo? No sabemos e
acreditamos que os leitores tambm no saibam. Para ns, os leigos, o
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Futurismo tudo quanto extravagante e futurista, todo indivduo que,
escrevendo, pintando, esculpindo e compondo pratica a extravagncia.
(2010, p.27)
Drummond participou com poesia e prosa, alternando-as em quatro
edies: na primeira, colaborou com um texto de crtica, O homem do
pau-brasil; na segunda, com os poemas Nota social e Sabar
(includos em Alguma Poesia, com algumas modificaes); na terceira,
com outro artigo, Ta; na quarta, com os poemas Buclica no caminho
do Pontal, Poltica e Itabira (o primeiro permaneceu indito em livro, e
os outros dois, com pequenas alteraes, foram inseridos em Algumapoesia).
Em 1928, Drummond publicou na primeira pgina deA Revista de
Antropofagiao seu poema No meio do caminho. J nesse perodo, o
poeta demonstrava uma tendncia no muito tradicional de fazer poesia,
utilizando o verso livre, no metrificado, e a linguagem coloquial.
Causando polmica durante dcadas entre os conservadores, jamais aliberdade potica incomodou tanto. Mas foi tomado como divisa pelos
defensores da ousadia modernista. Os novos poetas cultivavam essa
forma aparentemente elementar de poesia, com a repetio enftica
como uma descrio fotogrfica, o que se tornou emblemtico na poesia
brasileira. Diramos mais: buscavam antes o talento puro e simples, pois
genialidade sempre incomodou. S isso bastaria para abrir atalhos por
fmbrias insuspeitadas pelos poetas mdios. (cf. FERRAZ, apud
ANDRADE, 2010, p.35 )
Drummond era um talento advindo duma tcnica rigorosa, uma
poesia reflexiva que, segundo Afrnio Coutinho, seguia o seguinte lema:
Trabalhar a realidade com mos puras. Esta, a diretriz do
poeta que, inversamente, como pessoa , era um ser complexo:
da o carter de seu primeiro livro, Alguma poesia (1930),
composto de 1925 a 1930. Ao lado de simples anotaes, de
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poemas de quem v e registra o que v, como v, afastado de
todos os prejuzos literrios anteriores ou como se formulando
pela primeira vez a poesia, com a ingnua simplicidade das
descobertas, h tambm peas cujos temas correspondem asentimentos inominados, a canhestrice, a reserva, a timidez, a
algo que no se resolve ou ento se resolve em humor. (2001,
p. 129)
Mas, a partir de 1929, segundo Cndido, com a crise mundial,
poltica e econmica, instalou-se uma dcada de depresso que permitiu
a vitria dos liberais na Revoluo de outubro de 1930. No Brasil, o
panorama histrico, poltico e econmico era propcio s transformaes
ao descarte dos velhos padres e acolhimento de novas idias,
costumes e posturas. Um grande alento percorreu o pas, criando um
clima favorvel s renovaes, arte e literatura, que foram
reconhecidas como expresso legtima da sociedade da poca. (1983,
p.9)
O escritor talo Moriconi (2004) fez uma singular periodizao da
poesia na modernidade, quando disse
... que considera o Modernismo, abrangendo trs fases: o
primeiro modernismo, dos anos 20, marcado
emblematicamente pela Paulicia Desvairada de Mrio de
Andrade, pela Semana de Arte Moderna de 22 e pela
participao dos vanguardistas paulistas: Oswald de Andrade,
Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Srgio Milliet, LusAranha, ; no Rio, com Ronald de Carvalho, lvaro Moreira, e a
participao fundamental de Manuel Bandeira ao novo modo,
no fundamental Libertinagem; em seguida, o modernismo dos
anos 30, em que toda uma gerao entra em cena e consolida
a nova linguagem: Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima,
Ceclia, Vincius de Moraes, entre muitos outros; finalmente, o
modernismo cannico, de meados dos anos 40 at fins dos
60, momento de nosso alto modernismo. ( MORICONI, 2004,p.2-3).
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Desenvolvendo a exposio acima, observamos que o Modernismo
desdobrou historicamente uma dialtica que levou o pensamento do
impulso para a dessacralizao a um processo de progressiva
ressublimao da linguagem artstica. Nos anos 20, o Modernismo
emergente era iconoclasta e vanguardista, parodstico e realista. Ao longo
do processo de ressublimao esttica (a poesia como expresso
elevada e modelar), as obras modernistas tornaram-se clssicas no
cnone literrio da lngua brasileira. Tal dialtica histrica inerente ao
Modernismo no exclusividade brasileira. Pode-se mesmo consider-la
uma lei geral desse movimento na literatura universal. Onde houve
Modernismo, ocorreu essa dialtica. A conquista do sublime literriopela potica modernista corresponde sua progressiva pedagogizao,
oficializao, da porque se usa a palavra cnone e a expresso
modernismo cannico.(cf. 2004, p. 4)
O movimento de renovao, em curso a partir de 1922, no chegou
a ser quebrado pelo regime de fora instaurado no final de 1937, pois a
Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939 e finda em 1945, forou uma
tomada de posio poltica de grande parte de artistas e intelectuais do
pas no que diz respeito defesa da democracia. O ano de 1945
corresponde ao fim do conflito mundial e se imps como uma nova fase
poltica, social e cultural brasileira.
Como ocorrera no perodo entre 1914 e 1918, o ps-guerra influiu
decisivamente em nossa economia e mentalidade, fazendo-nos entrar na
era industrial, formando um proletariado numeroso, que passou a exigirsua efetiva participao na vida poltica. Ao voltarem as liberdades
democrticas, abafadas pelo regime ditatorial de 1937, inclusive as da
imprensa, o pas ingressou numa fase de industrializao e progresso
econmico e social acelerado, transformando-se rapidamente em
potncia moderna, apesar dos graves problemas do subdesenvolvimento.
Seja como movimento renovador, seja como nova esttica, ousinnimo da literatura dos ltimos quarenta anos, portanto, o Modernismo
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revelou historicamente uma adeso profunda problemtica do Brasil
contemporneo. De fato, nenhum outro momento da literatura brasileira
to vivo sob esse aspecto; nenhum outro reflete, com tamanha fidelidade,
e ao mesmo tempo com tanta liberdade criadora, os movimentos da alma
nacional. (Cf. CNDIDO, 1983, p. 11)
A fase do Modernismo, hoje cannico, j havia se extinguido, mas
muitos escritores continuaram se renovando e produzindo, tais como
Murilo Mendes, Carlos Drummond, Jorge Amado, rico Verssimo etc.
Nessa altura, a crnica se imps como uma forma eminentementebrasileirao fato de se publicar e difundir na imprensa a linguagem dos
modernos e da alta literatura e a crtica literria se renovou e alcanou
uma influncia preponderante, que no possua anteriormente. (DENSER,
2003, p.45)
1.2 Diluio entre prosa e poesia
A partir da Modernidade, podemos observar maior liberdade e
autonomia na literatura, tanto na forma quanto na estrutura da linguagem.
H o surgimento de obras literrias que no se enquadram na concepo
tradicional dos gneros, mas revelam uma mistura, podendo ser inseridas
em um gnero, embora possuam simultaneamente as caractersticas dos
demais. Num certo momento, os elementos da poesia, como o ritmo e as
aproximaes pelo som e sentido, so incorporados linguagem daprosa, fundindo-se numa linguagem potica.
Diversos tericos ocuparam-se deste fenmeno literrio e de sua
sistematizao em gneros. Nessa perspectiva, Haroldo de Campos, no
ensaio Rupturas dos gneros na Literatura Latino-Americana, abordou
questes esclarecedoras referentes crise de normatividade, influncia
dos meios de comunicao de massa incorporao dos gnerosinfraliterrios grande literatura, ao processo de destruio dos gneros
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em si, ruptura e correlao dos modernismos na Amrica Hispnica e
no Brasil, ao apagamento do limite entre prosa e poesia e dimenso
metalingustica. Tais questes, procuraremos detalhar neste captulo.
A fuso entre a prosa e a poesia foi tambm problematizada por
Octvio Paz (2006), que considerava o ritmo como elemento permanente
e natural da linguagem, anterior fala. Dessa forma, todas as
expresses verbais eram ritmo, incluindo as da prosa ensastica e didtica
(discursiva). O ritmo se daria espontaneamente em toda a forma verbal,
mas s no poema se manifestaria plenamente. Assim, para ele, a
linguagem tendia a ser ritmo de forma natural, e as palavras tornar-se-iampoesia espontaneamente. O autor ressaltou tambm que,
... no fundo de toda prosa, circula, de forma quase invisvel,
uma corrente rtmica. O pensamento livre, que linguagem,
tambm tem seu ritmo prprio; as razes se transformam em
correspondncias, os silogismos em analogias e a marcha
intelectual em fluir de imagens. (2006, p.12).
As linguagens da prosa e do poema interpenetram-se, fundindo-se
numa linguagem potica, isto , so incorporados na prosa os elementos
constitutivos do poema, conforme Paz:
(...) o carter artificial da prosa se comprova cada vez que o
prosador se abandona ao fluir do idioma. Logo que se volta
sobre seus passos, maneira do poeta ou do msico, e sedeixa seduzir pelas foras de atrao e repulsa do idioma, viola
as leis do pensamento racional e penetra no mbito de ecos e
correspondncias do poema. Foi isto o que ocorreu com boa
parte do romance contemporneo..(2006, p.13).
Segundo Walter Benjamin (1989), em Baudelaire, h a
incorporao da linguagem prosaica na literatura, - um dos propsitos
perseguidos pelo poeta em Spleen de Paris, foi trazer essas
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experincias prosdicas a seus poemas. Na dedicatria dessa coletnea,
ao redator-chefe de La Presse,Arsne Houssaye, Baudelaire expressa o
que realmente fundamentava suas experincias na prosa:
Quem dentre ns j no ter sonhado, em dias de ambio,
com a maravilha de uma prosa potica? Deveria ser ainda
musical, mas sem ritmo ou rima; e resistente para se adaptar
s emoes lricas da alma, s ondulaes do devaneio, aos
choques da conscincia. Esse ideal, que se pode tornar idia
fixa, se apossar, sobretudo, daquele que, nas cidades
gigantescas, est afeito trama de suas inmeras relaesentrecortantes. (BAUDELAIRE apud BENJAMIN,1989,p.68)
Para Benjamin, a intimidade de Baudelaire com a linguagem
prosdica se devia sua experincia de vida, nas ruas e becos das
cidades:
(...) Naquela poca aspirava, simbolicamente, conquista da
rua. Mais tarde, ao abandonar paulatinamente sua existncia
burguesa, a rua se tornou cada vez mais um refgio. Desde o
incio, porm, havia na flnerie a conscincia da fragilidade
dessa existncia. Ela faz da necessidade uma virtude e nisso
mostra a estrutura que, em todas as partes, caracterstica da
concepo do heri em Baudelaire. (BENJAMIM, 1989,p.70).
(...) Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no
prprio lixo o seu assunto herico .Com isso, no tipo ilustre do
poeta aparece a cpia de um tipo vulgar. (idem, p.78).
Ainda conforme Walter Benjamin, a obra As Flores do Mal foi o
primeiro livro de Baudelaire a usar, na lrica, palavras no s de
provenincia prosaica, mas tambm da linguagem urbana.
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O Modernismo abriu, assim, a via de interpenetrao entre prosa e
verso: a linguagem falada, o vocbulo tcnico e cientfico, a expresso em
outras lnguas, enfim tudo o que constitui a prosa do mundo. Surgem o
humor, o monlogo, a conversao, acollageverbal, os chamados fluxode conscincia (Proust) e o fluxo de fala (D.J. Salinger, O Apanhador
em Campo de Centeio), algo que surgiu como necessidade de fazer da
representao do pensamento algo distinto da verbalizao. (BAKHTIN
apudMACHADO, 1995, p.157)
Da a introduo, na literatura, do stream of consciousness, uma
tcnica narrativa essencialmente prosaica. Alis, o fluxo de conscincia
deve abranger todo o mtodo narrativo, no s na esfera da linguagem,
como de toda conscincia, incluindo pensamentos no verbalizados e
impresses sensoriais no suscetveis de verbalizao, forma de
construo lingustica que vai ao encontro da materialidade do signo
verbal.
Machado (1995) ressalta ainda que, para Bakhtin, a poeticidade do
discurso, aps o surgimento do romance, no podia ser pensada fora docontexto da dialogia interna da linguagem, que conta, inclusive, com os
gneros inferiores da cultura oral iletrada; alis, esta dialogia a
expresso maior da artisticidade do romance. (MACHADO, 1995, p.157-
161)
Mas no caso especfico da literatura brasileira, o crtico Antonio
Candido fala da competncia dos poetas ao exercitarem a prosa
ensastica ou crtica, isto , da diferena entre os poetas e osromancistas, quando praticavam a escrita fora da fico.
... Quase todos os romancistas ficavam abaixo do que eram
capazes de fazer no plano do imaginrio, enquanto os poetas
produziam invariavelmente prosa da melhor qualidade, desde a
seca de Manuel Bandeira at a mida de Vinicius de Moraes,
passando pelo alto maneirismo de Mrio de Andrade e a
limpidez contida de Drummond. (CANDIDO, 1993, p.14).
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1.3 Ruptura dos gneros
A classificao rgida das obras literrias em gneros
caracterstica do Classicismo. Segundo Haroldo de Campos, o
estruturalista Jan Mukarovsk, nas famosas Teses de 1929, no Crculo
Lingustico de Praga, fez um importante estudo desse problema, em
Esttica da Linguagem. Mukarovsk, referindo-se a Buffon, disse:
aqueles que escrevem como falam escrevem pobremente, embora
possam estar falando bem. A teoria cannica dos gneros nada mais ,
ento, do que a projeo dessa atitude na literatura, uma vez que, cadagnero literrio representa tambm um certo ramo funcional da
linguagem.(CAMPOS, 1972, p.282)
Mas, j no Romantismo, se configurou uma revoluo contra o
carter predominante das normas estticas clssicas, que se observa,
segundo Campos, no campo do lxico, na discriminao entre palavras
nobres e baixas, sendo estas ltimas excludas da linguagem padro.
Vitor Hugo rebelou-se contra essa segregao de palavras castas.
Assim, foram principalmente os romnticos, via simbolismo e a
poesia moderna, que vo de Novalis a Poe, Nerval, Baudelaire, que
fizeram da esttica de sua poesia uma esttica de ruptura, que implicava
a interveno da materialidade da linguagem, quer dizer, a funo potica
ou configuradora da linguagem, aquela que se volta para o aspecto
material dos signos lingusticos em si mesmos, como ensina Roman
Jakobson.
Superada a rgida tipologia intemporal, com propenses
absolutistas e prescritivas, a teoria dos gneros passa assim,
na potica moderna, a constituir um instrumento operacional,
descritivo, dotado de relatividade histrica, que no tem por
escopo impor limites s livres manifestaes da produo
textual em suas inovaes e variantes combinatrias. E onde
se dissolve a idia de gnero como categoria impositiva, se
relativiza tambm, concomitantemente, a noo de linguagem
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que lhe seria exclusiva, que lhe serviria de atributo distintivo.
Mas as reflexes tericas que hoje podemos fazer munidos de
novas perspectivas, sobre a teoria dos gneros, outra coisa
no representam seno o aspecto metalingstico de umarevoluo que se processou longamente no campo da
linguagem da literatura, na prxis por assim dizer. (CAMPOS,
1972, p.283)
Tambm importante ressaltar como a fora e a influncia dos
meios de comunicao de massa contriburam para tal rarefao dos
gneros, que se deu, de forma decisiva, com a incorporao poesia dos
elementos da linguagem prosaica e conversacional, no apenas no
campo lxico, como tambm na sintaxe. Assim, a linguagem literria
falada a que mais se aproxima da linguagem popular, embora conserve
limites ntidos em relao a esta ltima. A linguagem contnua (de
discursos, conferncias, etc.) se mantm distanciada da linguagem do
cotidiano. A linguagem alternativa e descontnua (conversao) constitui
uma transio entre as formas cannicas da lngua literria e a linguagem
popular.
A essa altura, cumpre-nos lembrar a importncia que a grande
imprensa desempenha nos rumos da literatura. Tal linguagem
descontnua e alternativa, caracterstica da conversao, vai encontrar, na
simultaneidade e no fragmentarismo do jornal, sua convergncia.
A grande imprensa, a partir sobretudo da inveno do telgrafoe sua influncia, sob a forma de mosaico de notcias, no estilo
e na apresentao dos jornais, aproxima-se da cultura oral, que
no linear, mas sinestsica, tctil, simultnea, tribal. O
aparente paradoxo explicado por um fenmeno de
hibridizao de cruzamento. Assim, o principio alfabtico,
guttenberguiano, como sua unidade de ponto de vista e sua
cadeia linear, superado exatamente quando, ao culminar no
jornal cotidiano,, o mdium telegrfico se encontra com ele ede ambos nasce uma forma hbrida. (o hbrido ou o encontro de
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dois media um encontro de verdade e revelao, do qual
nasce a forma nova ( CAMPOS, 1972, p.285).
Ainda na esteira do hibridismo, Campos(1972) remeteu-nos
questo da relao da literatura com os gneros primitivos. Trata-se de
uma espcie de elevao dos gneros inferiores ou infraliterrios,
segundo Warren e Wellek. Ressalta-se aqui o uso dos gneros hbridos,
tais como memrias, cartas, reportagens, folhetins produtos da cultura
popular que vivem uma existncia precria na periferia da literatura,
prprios do jornalismo, vaudeville, cano gitana e da histria policial ,
podendo-se explicar, atravs deles, as inovaes de autores como
Pchkin, Dostoivski e Blok. (CAMPOS, 1972, p.284).
O processo de ruptura dos gneros e abolio dos limites entre
prosa e poesia se fez presente na poesia vanguardista pau-brasil, de
Oswald de Andrade. Caracteriza-se tal poesia pela linguagem reduzida,
pela extrema economia de meios, pela interveno da imagem direta e da
linguagem coloquial; e tambm pela poesia de Mrio de Andrade,
polifnica, simultanesta, marcada pelos ritmos desconexos da
civilizao moderna e pela espontaneidade da lngua falada, o portugus
do Brasil, com a contribuio milionria de todos os erros, e no na
lngua portuguesa dos lusitanos. Podemos deste modo inferir que existe,
em nosso meio, aquilo que se poderia denominar uma congenialidade
em relao aos novos experimentos, e que se explica apenas em parte
pelo processo de industrializao desencadeado em So Paulo e Rio de
Janeiro. Antonio Candido elucidou o fenmeno:
No Brasil, as culturas primitivas se misturam vida cotidiana ou
so reminiscncias ainda vivas de um passado recente. As
terrveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob,
um Triztan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa
herana cultural do que com a deles. O hbito em que
estavam,os do fetichismo negro, dos calungas, dos ex-votos,
da poesia folclrica, nos predispunha a aceitar e assimilar
processos artsticos que na Europa representavam ruptura
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profunda com o meio social e as tradies espirituais. Os
nossos modernistas se informaram, pois, rapidamente da arte
europia de vanguarda, aprenderam a psicanlise e
plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal deexpresso, reencontrando a influncia europia por um
mergulho no detalhe brasileiro. (CANDIDO, apud CAMPOS,
1972, p.293).
Para Campos (1972), o que Oswald teorizou sob o nome de
antropofagia se traduz na aceitao no passiva, mas sob forma de
devorao crtica, da contribuio europia e a sua transformao em um
produto novo, dotado de caractersticas prprias, que, por sua vez,
passava a ter uma nova universalidade, uma nova capacidade de ser
exportado para o mundo. Tudo isso se configurou na poesia pau-brasil.
(1972, p.293)
1.4 Apagamento do limite entre prosa e poesia
Segundo Campos (1972), o apagamento das fronteiras entre a
poesia e a prosa, com a introduo, no romance, de tcnicas de
construo do poema (e vice-versa), apareceu, contemporaneamente, a
partir de Joyce e Proust.
Conforme observou Campos, o importante legado que nos deixa
esta linha de poesia e romance uma clara conscincia da abolio de
fronteiras falsas, de categorias retricas. No existe mais o romance e o
poema, mas situaes literrias que se resolvem com uma ordem verbal
prpria. Estabelecem-se, ento, dois tipos de linguagem: a linguagem de
raiz potica e a de raiz discursiva. (1972, p. 295)
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Mais categoricamente, Cortzar (1974), no ensaio A Situao do
Romance, levantou a questo da prosa de raiz potica como fenmeno
esttico que surge como uma das conquistas do romance no sculo XX
(Proust, Joyce). Uma prosa que no conta explicando ou explica
contando, como a que era feita at o sculo XIX, pois,
(...) a partir de um certo momento os escritores arremessam
fora a linguagem mediadora e substituem a frmula pela
ensalmo, a descrio pela viso, a cincia pela magia, j no
h fundo e forma: o fundo da forma a forma. Pela primeira
vez e de maneira explcita, o romance renuncia a utilizar
valores poticos como meros adornos e complementos daprosa e admite um fato fundamental: que a linguagem esttica
(ou discursiva) no apta para expressar valores poticos.
(CORTZAR, 1974, p. 71-3).
Como um voltar-se incessante do escritor para a materialidade da
linguagem, a funo potica aquela que se volta para o aspecto material
dos signos, inclusive quando esteja, aparentemente, fazendo aquilo queconvencionalmente se chamaria prosa. A funo potica, que resulta da
superposio do paradigma sobre o sintagma, isto , da coincidncia do
eixo da similaridade (vertical) com o eixo da contigidade (horizontal),
deriva da operao de submeter o signo verbal a tratamento icnico. (Cf.
JAKOBSON, 2003, p.130)
Na literatura brasileira, temos como exemplo a prosa lrica eintrospectiva de Clarice Lispector, em Perto do Corao Selvagem (1943),
e em Grande Serto: Veredas (1956), de Guimares Rosa, cuja obra
surge com invenes vocabulares, sintaxe inovadora e hibridismo lxico,
construes oximorescas de barbrie e refinamento, classificada como
uma obra neobarroca. (cf. CAMPOS, 1972, p. 295)
importante assinalar tambm a dimenso metalingustica como
fenmeno esttico, que contribuiu sobremaneira para a ruptura dos
gneros na literatura moderna. Como exemplo, recorremos a Mallarm e
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ao seu poema Um coup de Ds, (Um lance de dados). Trata-se de um
poema que se questiona a si mesmo sobre a essncia de poetar, mas o
que est em causa no o modo de como fazer poesia, mas uma
indagao mais profunda da prpria razo do poema. Dessa forma,
Mallarm introduziu a dimenso metalingstica do exerccio da
linguagem, uma dimenso antes reservada esttica e cincia da
literatura. Mas, para o esprito moderno, a reflexo sobre a arte acabava
sendo mais interessante do que a prpria arte. (cf.CAMPOS,1972, p. 296)
Assim, a linguagem do ensaio e da especulao terico-filosfica
(langage de formulation), conforme terminologia das Teses do Crculo dePraga, passou a integrar-se no poema, que se faz metalinguagem de sua
prpria linguagem-objeto.
A incorporao de uma dimenso metalingustica literatura de
imaginao corresponde, tambm, ao que os formalistas russos
designavam de desnudamento do processo e, que outra coisa no
seno um pr a descoberto a arquitetura mesma da obra medida queela vai sendo feita, num permanente circuito auto-crtico.(CAMPOS,
1972, p. 297 ).
Na literatura brasileira, a questo da metalinguagem apareceu pela
primeira vez na obra de Machado de Assis, em especial em Memrias
Pstumas de Brs Cubas(1881), Quincas Borba (1891) e Dom
Casmurro (1899).
Antonio Cndido, durante o I Ciclo de Debates da Cultura
Contempornea no Rio de Janeiro, em 1975, destacou modificaes
estruturais da linguagem literria, caractersticas, alis, que
predominariam em nossa literatura at os dias de hoje:
A primeira caracterstica que vejo na literatura de nosso tempo,
no Brasil e em outros lugares, a supresso ou ocultamento
dos nexos sintticos, quer dizer, a passagem de um discurso
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contnuo para um discurso descontnuo. Em segundo lugar, a
busca de uma ordem espao-temporal no linear, a narrativa
com princpio, meio e fim. A para Z, substituda por uma
ordem que altera esses nexos, que parece sair do tempo parase projetar no espao. Em terceiro lugar, a substituio da
metfora pela paronomsia. Tnhamos uma literatura dominada
em imagem, pela analogia tu s bela como uma rosa ,
hoje por aquela figura que junta palavras pela sonoridade
semelhante, mas de significado diferente. Ento, quando Murilo
Mendes diz: as tmporas da ma, as tmporas da hortel, as
tmporas da rom, as tmporas do tempo, o tempo tempor,
ele est fazendo uma srie de paronomsias. Em quarto lugar,eu chamaria a ateno para o cultivo intensivo da ambigidade
do discurso. At ento a literatura procurava diminu-la, hoje,
ao contrrio, essa ambiguidade reforada ao mximo.
Finalmente em quinto, vivemos um tempo de fico no
mimtica, ou deliberadamente antimimtica, com explorao
acentuada da pardia. (CANDIDO, 2002, p. 214-6).
Ele tambm enfatizou que essa ocultao dos nexos sintticos,
essa descontinuidade do discurso, deveu-se tendncia crescente para a
fragmentao, na contemporaneidade, revelando um mundo mais
complexo. A perda do senso de totalidade, que ntida em toda a
sociedade, no discurso literrio, foi traduzida pela fragmentao. H
tambm uma busca de signos no verbais, que est ligada ao impacto
dos novos meios visuais. Nessa era industrial em que vivemos, quando
se criam objetos sem parar, tendemos literariamente criao de mundosparalelos. Hoje, preciso que a obra seja sobretudo aberta, com a
criao dos sentidos desmontveis, como em Cortzar, e a invaso pelo
inslito, como em Guimares Rosa.(2002, p. 216 )
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Captulo 2
A crnica em seu contexto modernista
Na crnica drummondiana, segundo o crtico Arrigucci Jr. (1987),
comum retornar ao rigor narrativo e preciso de fatos histricos que faz
lembrar o antigo significado da palavra, como j notou Antonio
Cndido (Drummond prosador: singularidade no trao). (Cf.
ARRIGUCCI JR., 1987)
2.1 O gnero crnica e sua linguagem particular
Drummond chamou de crnica ao resto dos seus escritos em
prosa, mas consideremos tal designao demasiado modesta. Talvez ele
no desse conta, na poca, da grande beleza formal e
consequentemente absolutade suas prosas menores. A partir de Fala,
Amendoeira,o cronista foi se decantando para um texto mais complexo,
comparativamente s iniciais Confisses de Minas e Passeios na Ilha,
constitudas por uma srie de escritos de natureza meramente variada,
portanto aparentemente superficial.
H alguns ensaios com solidez de informao, que o escritor
atenuou atravs do tom casual. No caso da Carta aos nascidos em maio
(Passeios na ilha), ele reuniu sabiamente um conhecimento erudito
gratuidade coloquial. Existe em Drummond uma vocao monogrfica,
isto , um trabalho de pesquisa aprofundado, encoberto pelo relato
impressionista. Podemos comprov-lo na longa e admirvel
Contemplao de Ouro Preto, de Passeios na Ilha, que, segundo
Antonio Candido, so relatos e investigaes documentrias de sua terra,
nos aspectos histrico, artstico, social e religioso. Eis um fragmento:
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(...) onde o leitor dificilmente pensaria noutra coisa alm do
simples registro de uma excurso, mas que traduz a realidade
passada e presente, artstica e social, religiosa e ldica da
velha cidade. Alis, todos os escritos desta parte do livro, a quechamou Provncia, minha sombra, formam um ciclo de
interpretao da sua terra, com um discernimento lcido e um
saber que nem sempre consegue ficar latente.
Na verdade, deve haver lembrana individual, informao de
terceiros, investigao documentria e interpretao da vida de
uma comunidade um certo momento do tempo perdido, dando
a idia de que o escritor parou, consultou papis, verificou
datas e ocorrncias a fim de elaborar um escrito que vai almda crnica sem perder o encanto da sua leveza.(...) (1993,
p.17)
Drummond, como escrevia essencialmente para a imprensa,
precisava ser lido e no ser complexo. Assim, mesmo em escritos
rotulados de crnica, muitos textos perderam o toque dominante da
gratuidade ocasional (que costumamos associar ao gnero ) e
caminharam para outra coisa: poema, estudo, autobiografia - ou um certo
tipo de reflexo, em geral disfarada, que deixa para trs o pretexto
imediato e mostra uma dimenso imprevista. Segundo Candido,
Esta ltima modalidade leva a pensar que ele pratica ao seu
modo aquilo que Montaigne chamava ensaio, ou seja, o
exerccio em profundidade do pensamento, a partir de
estmulos aparentemente fteis ou desligados do que acabasendo a matria central. Em Drummond, encontramos uma
prosa que se apresenta como algo irrelevante, que pode
deslizar do papo para reflexes de um alcance e densidade
que nos fazem inclu-lo na famlia mental dos que ensaiam o
pensamento, a pretextos de motivos inesperados; mesmo
quando ele volta de repente a algo que parece insignificante,
como se quisesse, por meio desse particular corriqueiro,
quebrar o ensaio e refazer a crnica, mostrando o livre
trnsito entre gnerospoesia & prosa. (1993, p.18).
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Como Drummond, por um lado, Candido tambm considerava a
crnica um gnero menor, ao qual ningum pensaria atribuir o Prmio
Nobel. Por outro lado, ele tambm observou, em muitos ensaios, que ela um gnero tipicamente brasileiro de uma sociedade do aberto, do
jornal, da livre circulao de informaes simples e fugazes.
Em outras palavras, isso tem a ver com o clima e meio geogrfico
brasileiros, onde o transeunte, leitor de jornal, se encontra com o outro e
comenta a crnica dos fatos dirios, entre um caf, um conhaque ou o
chope nos calades. Afinal, a esttua de Drummond se imortaliza nocalado de Copacabana. A crnica amiga da verdade e da poesia nas
suas formas mais diretas e tambm nas suas formas mais fantsticas,
sobretudo porque quase sempre utiliza o humor. Isto acontece porque
no tem pretenses a durar, uma vez que filha do jornal e da era da
mquina, onde tudo acaba to depressa.
justamente por seu carter efmero que, na crnica, a linguagemse torna mais leve, mais descompromissada e importante -- afasta-se
da lgica argumentativa ou da crtica poltica, para penetrar poesia
adentro. que a crnica brasileira bem realizada participa de uma lngua-
geral lrica, irnica, casual, ora precisa, ora vaga, amparada por um
dilogo rpido e certeiro, ou por uma espcie de monlogo comunicativo.
Mas nesse ponto, poderamos tambm pensar num Drummond
metafsico, a exemplo de poemas como A Folha, e A suposta
existncia, cuja temtica indica a dissoluo da mitificao da existncia
tanto do real, quanto do sobrenatural, porm tal estudo exigiria
elaboraes filosficas a serem objeto de uma outra pesquisa .
A crnica aparece, inicialmente, ligada ao jornal e, segundo o
critico Arrigucci Jr.(1987), pode ser considerada um gnero literrioessencialmente brasileiro. A palavra crnica, etimologicamente, implica a
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noo de tempo, presente no prprio termo, que vem do grego chronos.
Esse vnculo de origem faz dela um meio de representao temporal dos
eventos passados, um registro da vida escoada. (1987, p. 51).
Do ponto de vista histrico, o cronista um narrador da histria.
Como notou Benjamin, o historiador escreve os fatos, buscando-lhes
uma explicao, enquanto o cronista, que o precedeu, se limitava a narr-
los, de uma perspectiva religiosa, tomando-os como modelos da histria
do mundo e deixando toda explicao na sombra da divindade, com seus
desgnios insondveis.(BENJAMIN, 1989, p. 209)
Hoje, a crnica ocupa-se de fatos do dia a dia, dos faits divers,fatos de atualidade que alimentam o noticirio dos jornais. Mas no Brasil,
ela no se constituiu apenas num apndice do jornal; assumiu um
desenvolvimento prprio, conquistando uma dimenso esttica com
relativa autonomia, constituindo um gnero propriamente literrio.
Compreendida desse modo, a crnica , ela prpria, um fato moderno,
submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato, s
inquietaes de um desejo sempre insatisfeito, rpida transformao e fugacidade da vida moderna. (ARRIGUCCI JR., 1987, p.52-3)
A crnica moderna situa-se no cotidiano da cidade moderna e
escolhe a linguagem simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo
entre amigos, para tratar das pequenas coisas que formam a vida diria,
onde s vezes encontra a mais alta poesia. (1987, p.57)
No Modernismo, grandes escritores ocuparam-se da crnica:
Mrio de Andrade, Bandeira, Oswald, Alcntara Machado, Carlos
Drummond de Andrade, Vincius de Moraes e muitos outros. Embora haja
grandes diferenas de estilo entre eles, o que existe em comum a
incorporao da fala coloquial brasileira, que se molda observao dos
fatos da vida cotidiana, espao preferido da crnica, o que a torna cada
vez mais comunicativa e prxima do leitor.
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2.2 A crnica a partir de 1930
Foi no decnio de 1930 que a crnica moderna se consolidou noBrasil, como gnero nosso cultivado por um nmero crescente de
escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e seus mestres. Nos anos
30, Mrio de Andrade e Manuel Bandeira se afirmaram tambm como
cronistas e apareceu aquele que seria, na poca, o principal cultor do
gnero: Rubem Braga.
Tanto em Drummond quanto em Rubem Braga, observa-se um
trao que no raro na configurao da moderna crnica brasileira: a
confluncia, na maneira de escrever, da tradio, digamos, clssica com
a prosa modernista. Essa frmula foi bem manipulada em Minas (onde
Rubem Braga viveu alguns anos decisivos) e dela se beneficiaram os que
surgiram nos anos 40 e 50, como Fernando Sabino e Paulo Mendes
Campos. como se (imaginemos) a linguagem seca e lmpida de Manuel
Bandeira, coloquial e corretssima, se misturasse ao ritmo falado da de
Mrio de Andrade, com uma pitada do arcasmo programado pelos
mineiros. O que foi confirmado por Candido, quando disse:
Parece s vezes que escrever crnica obriga a uma certa
comunho, produz um ar de famlia que aproxima os autores
num nvel acima da sua singularidade e das suas diferenas.
que a crnica brasileira bem realizada participa de uma lngua-geral lrica, irnica, casual, ora precisa, ora vaga, amparada por
um dilogo rpido e certeiro, ou por uma espcie de monlogo
comunicativo. Muito embora houvesse essa conjuno de
fatores, os cronistas daquele perodo escreviam como se este
fosse o seu veculo predileto, mas podemos perceber as
especificidades de cada um : a preciso de Drummond, o
movimento nervoso de Fernando Sabino, a larga onda lrica de
Paulo Mendes Campos. Provindos de trs geraes, eles seencontram aqui numa espcie de espetculo fraterno,
mostrando a fora da crnica brasileira e sugerindo a sua
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capacidade de traar o perfil do mundo e dos homens. (1993,
p.29).
H tambm um trao comum neles todos e nalguns outros, como
Rachel de Queiroz: deixando de ser comentrio, mais ou menos
argumentativo e expositivo, vira conversa aparentemente fiada, como se a
crnica pusesse de lado qualquer seriedade no tratamento de problemas.
curioso como seu texto mantm o ar despreocupado, de quem est
falando coisas sem a maior consequncia e, no entanto, no apenas
entra fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, como pode
levar longe a crtica social.
Para o crtico Arrigucci Jr. (1987), a linguagem da crnica, mais
livre, mais flexvel, vem no Modernismo adequar-se necessidade de
pesquisa da realidade brasileira, que passara a se impor conscincia
dos intelectuais a partir da revoluo de 30, atingindo tambm a
conscincia do grande pblico dos jornais. O crtico observou ainda que,
...seguindo a tendncia do momento e de outros gneros, a
crnica se convertia num meio de mapear um pasheterogneo e complexo, caracterizado pelo desenvolvimento
histrico desigual, desvendando assim um mundo moderno
que parecia nascer da mistura de velhas estruturas da
sociedade tradicional.
E, ao mesmo tempo, ela o registro dos instantneos da vida
moderna, das novidades avassaladoras, dos rpidos
acontecimentos, dos encontros casuais, dos estmulos sempre
chocantes do cotidiano das grandes cidades, frutos da
acelerao do processo de urbanizao e industrializao da
dcada de 30. Provinciana e moderna a uma s vez, a crnica
modernista revela uma tenso continua entre tempos diversos
e espaos heterogneos. Muitas pginas inesquecveis no
gnero foram escritas na esteira do movimento modernista,...
(1987, p.63)
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Na gerao de 40, apareceram alguns cronistas contumazes, como
Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. A crnica ainda continua, de
certo modo, como um gnero lateral em relao poesia e fico. Com
Rubem Braga, porm, h uma diferena essencial em relao aos outros
cronistas: para ele, a crnica a forma complexa e nica de uma relao
do Eu com o mundo, um modo de expresso pessoal e um meio de
apreender e exprimir certos valores. (idem) Digamos que Braga
contribuiu para consolidao da linguagem da crnica moderna brasileira,
fazendo a sntese perfeita da expresso moderna sem desprezar a
essncia das nossas tradies. Ele se deu conta do desgaste rpido das
novidades, a matria-prima do jornal e da crnica, ideia por eledesenvolvida num de seus melhores livros, A borboleta amarela. (cf.
ARRIGUCCI Jr., 1987, p. 66).
Alm de Arrigucci Jr. e Antonio Candido, muito citados at ento,
no nos esqueamos do crtico e escritor mineiro Fbio Lucas (1989), que
tambm se referiu aos nossos grandes cronistas, dizendo que, ao lado do
conto, a crnica um gnero que teve grande desenvolvimento no Brasil,
sobretudo pela grande arte de seus cronistas, destacando Rubem Braga,
Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos,
Raquel de Queirs e Srgio Porto (Stanislaw Ponte Preta).
A linguagem da crnica e a leitura dos cronistas, no perodo dos
anos 40 a 50, foram determinantes e influenciaram toda uma gerao de
novos escritores, com a formao de uma base comum de dico ou
estilo das novas linguagens; uma espcie de potica informal e
irreverente que impregnaria as primeiras obras nascidas deste impulso
irresistvel, mgico o bastante para que se mantivesse a f nos difceis
primeiros anos de aprendizado do ofcio.
Em que consistia a base comum de dico ou estilo? Digamos
que, de maneira geral, nossos cronistas faziam a literatura valer como
palavra viva, porque, publicada nos jornais e revistas, eles difundiam a
moderna linguagem literria caracterizada pela oralidade, pela fala docotidiano, a revelar o sublime oculto nas pequenas coisas(Arrigucci Jr.,
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1987, p.25) atravs das crnicas que estavam em toda parte e ao alcance
de todos o que nem sempre ocorre com o livro , contribuindo
efetivamente para que o padro esttico perdesse a rigidez e
possibilitasse os avanos posteriores. Segundo Denser,
Rubem Braga escrevia sereiazinha de todas as copenhagens
assim, em minsculas, ento pensava-se: pode-se escrever
assim? permitido? Nossos olhos adolescentes se
deslumbravam, resistentes que ramos aos pesados, lentos,
formais, intrincados romances franceses e russos. Isso at ler
os brasileiros. Porque a fico portuguesa tem outro ritmo,outra temperatura, outra alma, outra dico. As primeiras obras
de Rubem Fonseca foram como uma lufada de ar fresco na
fico contempornea; num campo j minado pelos cronistas,
estas despojam drasticamente a prosa brasileira ps-moderna
dos pseudo-ornamentos retricos. (2003, p.44).
No perodo de 1940 a 1950, ocorreu tambm o que se poderiachamar de intensificao dos gneros complementares: a crnica se
imps e atingiu alto grau de expressividade; a crtica literria se difundiu,
se renovou e alcanou influncia antes desconhecida; comearam a
definir-se e atuar os estudos literrios de tipo universitrio. De modo geral,
ocorreu uma intelectualizao da vida literria, que se ampliou e adquiriu
padres de maior exigncia. Embora no tenham aparecido tantos
grandes escritores quanto os anteriormente vistos, a mdia da produo
melhorou, adquirindo um nvel revelador de consolidao e vitalidade.
Candido observou ainda que, na crnica, a linguagem se tornou mais
leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lgica
argumentativa ou da crtica poltica, para penetrar pela poesia.
(CANDIDO, 1983, p. 30) Tal como Candido, cremos que a frmula
moderna, na qual entra um fato mido e um toque humorstico, com seus
matizes e suas pinceladas de poesia, representa o amadurecimento e o
encontro mais puro da crnica consigo mesma.
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2.3 A crnica em Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade teve suas primeiras publicaes na
dcada de 1920, em A Revista, as quais foram fundamentais para o
perodo modernista brasileiro. Atuou tambm como jornalista profissional
no Correio da Manh,no perodo de 1954 a 1968, escrevendo crnicas
que aparecem, s vezes, em versos, publicadas depois em livros:
Versiprosa e Caminhos de Joo Brando. Em 1975, suas crnicas
foram publicadas no Jornal do Brasil.
Geralmente, as crnicas no so feitas para serem publicadas de
pronto em livro; aparecem em primeira mo em jornais e revistas e, s
depois de um certo nmero, que so reunidas e selecionadas pelo
escritor para compor um volume. Isso afirmou Drummond, ao publicar
Passeios na Ilha:
Este livro, no o escrevi: foi-se escrevendo ao sabor dos
domingos , no suplemento literrio do Correio da Manh. Sua
ausncia de pretenso quase insolente. No prova nada,
seno que continuamos vivendo; poucas iluses resistem, mas
cabe ao homem descobrir e usar suas razes de viver. Suas
razes, e no as que lhe sejam inculcadas, como exemplares.
Em conjunto, estas pginas falam, talvez, de uma tentativa de
convivncia literria: divagaes e reaes do cronista, no
exerccio sem mtodo, misturadas ao eco de obras alheias,
recolhido com a necessria simpatia.... Rio de janeiro, 1952.
(ANDRADE, 2003, p.231).
Drummond, ao explicar os ttulos de seus livros, fazia uma
comparao com o significado da crnica, como nas Notas do editor,
contidas na obra De Noticias & No Noticias Faz-se a Crnica: Ela
feita de notcias (o real comentado) e de no-notcias (a livre imaginao
do cronista). (ANDRADE, 1975). E no prefcio de Cadeira de Balano:
Cadeira de balano um mvel da tradio brasileira que no fica mal em
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apartamento moderno. Favorece o repouso e estimula a contemplao
serena da vida, sem abolir o prazer do movimento. Quem nela se instale
poder ler estas pginas mais a seu cmodo ... Vamos sentar. ( 1970, p.
xvi)
Os dois exemplos abordam situaes do cotidiano, notcias da
vida urbana do homem moderno, mas, numa linguagem potica,
preserva a sensibilidade acumulada pela tradio. Entretanto, o que se
observa que Drummond no deixou nunca de exercitar o pensamento
crtico com relao ao fazer literrio, e o fez sempre numa dimenso
metalingstica.
Em Versiprosa, Drummond narrou, de forma potica, os
acontecimentos da vida cotidiana no Rio de Janeiro, no perodo de 1956 a
1959. Na obra, apresentou-se uma ntida mistura de gneros, como ele
prprio disse: nem verso nem prosa:
Versiprosa, palavra no encontrada no dicionrio, que qualifica
matria deste livro. Crnicas que foram publicadas no Correio
da Manh e em outros jornais do pas, algumas no MundoIlustrado. Crnicas que transferem para o verso comentrios e
divagaes da prosa. No me anima cham-las de poesia.
Prosa a rigor, deixaram de ser. Ento Versiprosa. (...)
(ANDRADE, 2002, p.508)
Drummond, desde o incio, teve sua vida de escritor e poeta ligada
crnica do jornal, mas sempre cedendo ao apelo de poetizar a funo
jornalstica. O que vemos no Poema do jornal, publicado em Alguma
poesia (1930), no qual revela a sua intimidade com o veculo dirio: Vem
da sala de linotipos a doce msica mecnica (LUCAS, 2003). Numa
viso tpica do mundo moderno, o jornal passa a fazer parte essencial do
estilo de vida burgus, incorporando-se ao consumo dirio.
Nas crnicas drummondianas, as emoes so presentificadas
pela imprensa diria, como reflexo dos tempos modernos, como ele
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expressa em Passagem da noite - Chupar o gosto do dia!/ Clara
manh, obrigado,? O essencial viver. (ANDRADE apud LUCAS, 2003)
Segundo, LUCAS (2003) na crnica Ciao, publicada no
Shopping News-City News Jornal da Semana (1984), Drummond se
despede aps 64 anos de colaborao:
A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha
de pertencero extinto Correio da Manh,de valente memria
, e o Jornal do Brasil, por seu conceito humanstico da funo
da imprensa no mundo. Quinze anos de atividade no primeiro,
e mais quinze , atuais, no segundo, alimentaro as melhores
lembranas do velho jornalista. (ANDRADE, 1984, apud
LUCAS, 2003)
2.4 Drummond cronista e a crtica
Consideramos importantes as formulaes levantadas pelo crtico
Antonio Candido, que aponta um aspecto que o impressionou em
Drummond: foi a maneira como o autor traduziu sua viso de mundo
numa linguagem coloquial, cotidiana, oral. A observao atenta de alguns
textoscomo o poema A folha, ou o conto O prespio, porexemplo ---
revela-nos o poder que o poeta tem de poetizar a prosa e proisificar o
verso. Sua matria se constitui num hbrido da linguagem referencial e da
linguagem figurada. Na poesia de Drummond, h ainda a presena do
elemento narrativo, como no poema A morte do leiteiro, em que ele
narrou de forma potica um acontecimento, ou, ainda, no relato de
projeo pessoal, A morte no avio.
Tambm no conto Beira-Rio, Drummond apresentou uma
linguagem hbrida, utilizando o sentido figurado, a metfora da teia: o fio
do som gera a idia de tecido formado por ele, como se um sentido
prprio se materializasse a partir do sentido figurado (CANDIDO,1993,
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p.15) . Mas igualmente forte a referncia ao real, quando utilizou o
relato de notcia reiterando a nfase na funo potica do signo
(JAKOBSON, 2003, p.150). Nesse caso, em especial, h a diluio de
fronteiras e a aproximao dos estilos, do conto-reportagem e da crnica.
Desde as primeiras publicaes de Drummond, h em sua obra a
confluncia de diversos estilos, como em Confisses de Minas, o seu
primeiro livro de prosa, que revela uma elaborao textual de grande
virtuosidade fora do verso.
H crtica literria, estudos de personalidade, comentrio lrico
e anedtico sobre o quotidiano, mostrando que ele no
cronista no sentido estrito, como Rubem Braga ou Rachel de
Queiroz e Fernando Sabino quando fazem crnica. O que ele
prprio chama assim so escritos de latitude maior, e por isso
no houve espanto quando pouco depois publicou a novela O
Gerente, que parecia pura fico, mas traz tambm um
universo de penetrao analtica. (CNDIDO, 1993, p.14)
Embora a obra do Autor tenha visitado tantos estilos, sua prosa de
fico parece ter um papel fundamental no conjunto, na medida em que
constitui o ponto intermedirio entre a poesia, a crnica e o conto, o que
propicia um trnsito privilegiado entre os diversos gneros literrios.
Muito de sua obra constituda de uma via de mo dupla, isto , h uma
mistura de gneros, h a presena do elemento narrativo em sua poesia,
e sua prosa carregada de linguagem potica. .
Ao relatar fatos cotidianos ou histricos, apesar da solidez das
informaes, ele o fez por meio do tom casual, onde o conhecimento
erudito aparece em forma de linguagem coloquial, que um modo de
exprimir a viso de si mesmo e do mundo, variando segundo a ocasio e
os desgnios pessoais. (CANDIDO, 1993, p.18). Em uma entrevista a um
jornal, ele disse: ... So circunstncias nas quais me parece que a poesia
pode ser aproveitada; ela tem um certo dom de vibrao, de comunicao
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intensa pela emoo que, s vezes, a prosa no pode transmitir.
(LUCAS, 2003, p.21).
Tais afirmaes nos levam a ratificar o que disse Candido: no h
um Drummond, nem ficcionista, nem cronista ou poeta, mas uma
personalidade literria movida por um grande impulso criador, transitando
entre os diversos gneros.
Muito embora a crnica de Drummond traga reflexes, elas
ocorrem de modo leve, carregadas apenas de humor lrico. Quero dizer
que por serem leves e acessveis talvez elas comuniquem, mais do que
poderia fazer um estudo intencional, a viso humana do homem na suavida de todo o dia. (CANDIDO, 1993, p.27). Exemplo dessa anlise
encontra-se no texto Frvolo cronista, em que h a falsa idia de
seriedade, uma noo duvidosa de que as coisas srias so graves,
pesadas e que, consequentemente, a leveza superficial. Na verdade,
aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traos constitutivos da
crnica so um veculo privilegiado para mostrar de modo persuasivo
muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visodas coisas. (1993, p.28)
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Captulo 3
Anlise do corpus A hibridizao dos gneros emDrummond
3.1 Metalinguagem e reflexo do fazer potico na crnica
drummondiana
3.1.1 Divagao sobre as ilhas: Insularidade como crculo mgico
da criao
(...) Assim, a linguagem do ensaio e da especulao
terico-filosfica (langage de formulation), conforme
terminologia das Teses do Crculo de Praga, passou a integrar-
se no poema, que se faz metalinguagem de sua prpria
linguagem-objeto. (Haroldo de Campos, 1972, pg. 297)
Ao ler parte considervel da obra em prosa e verso de Carlos
Drummond de Andrade, deparamo-nos com a recorrncia da metfora da
ilha em algumas de suas crnicas e poemas, o que aguou nossa
curiosidade para um exame crtico sobre o assunto. Desse modo,
escolhemos para anlise, inicialmente, a crnica Divagao sobre as
ilhas, de Passeios na ilha. (ANDRADE, 2003, p.231-234)
Na epgrafe do livro, Drummond declara, modestamente, ser
apenas um tentativa de convivncia literria, divagaes e reaes, mas
no texto observamos reflexes profundas sobre a criao literria,
preocupaes que vm de longe, presentes tambm no poema Infncia
e nas crnicas Mal, obrigado, Opinies de Robinson; enfim o texto se
constitui num hbrido da linguagem discursiva, ensastica e potica. Alis,como j enfatizamos, os recursos metalingsticos esto presentes nas
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referncias ao fazer potico, quando a nfase da mensagem sobre ela
mesma. (cf. JAKOBSON, 2003, p.149 ).
Em resumo, a crnica, propondo-se a narrar os fatos de forma
levee explorando a funo potica da linguagem, abre a possibilidade
de discutir importantes temas da literatura, justamente devido ao uso
desta linguagem coloquial, supostamente superficial, possibilitando o
acesso quase imperceptvel aos nveis mais profundos da alma.
Diferentemente do conto, que narra um acontecimento, com comeo,
meio e fim, a crnica cumpre a funo de ensaio: no h tenso e o
cronista divaga, j desde o ttulo.
Celebrando o fenmeno metalingustico por excelncia ilha
igual a espao/tempo da criao literria do autor -- o uso da metfora
(ilha) , sem dvida, um recurso esttico recorrente no texto, contribuindo
sobremaneira para a sua alta qualidade potica. A ilha, em Drummond,
como espao de reflexo e interiorizao, necessrio criao literria,
conforme sugere Arrigucci Jr, uma vez que o pensamento desempenha
um papel decisivo na sua lrica reflexiva, pois define a atitude bsica dosujeito lrico, interferindo na relao que este mantm com o mundo
exterior, ao mesmo tempo que cava mais fundo na prpria subjetividade.
( 2002,p16).
QUANDO ME ACONTECER alguma pecnia, passante de ummilho de cruzeiros, compro uma ilha; no muito longe dolitoral que o litoral faz falta; nem to perto, tambm, que de lpossa eu aspirar a fumaa e a graxa do porto. (..). A ilha mesatisfaz por ser uma poro curta de terra(falo de ilhas
individuais, no me tentam aventuras marajoaras), um resumoprtico, substantivo, dos estires deste vasto mundo, sem osinconvenientes dele, e com a vantagem de ser quase ficosem deixar de constituir uma realidade. (ANDRADE, 2003,p.231/232)
A metfora da ilha tambm uma forma de buscar sua essncia,
reafirmada na linguagem figurada, existente nas coisas simples da vida,
conforme fragmento pgina 231: a gratuidade dos gestos naturais, o
cultivo das formas espontneas, o gosto de ser um como os bichos,...
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A construo do texto sugere uma circularidade, pois a repetio
do vocbulo (ilha) produz um efeito acumulado no leitor: repetio,
acumulao de analogias, descrio estendida do objeto). O discurso
apresenta um com contedo reflexivo sobre o ser e estar no mundo. O
recurso da circularidade, como elemento de diferenciao das linguagens
da poesia e da prosa, tambm explicitado por Paz:
(...) A figura geomtrica que simboliza a prosa a linha: reta,sinuosa, espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diantee como uma meta precisa. Da que os arqutipos da prosasejam o discurso e o relato, a especulao e a histria. Opoema, pelo contrrio, apresenta-se como um crculo ou como
uma esfera: algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente e no qual o fim tambm um princpio que volta, serepete e se recria. E esta constante repetio e recriao no seno ritmo. (2006, 12-13)
A propsito, considera-se que h uma clara intertextualidade entre
a iIha de Drummond e a Pasrgada de Bandeira, ambos
contemporneos, poetas e cronistas. Como Pasrgada, a ilha tambm
metaforiza o espao/tempo ideal para a criao literria, em que h o
reencontro do poeta com sua essncia, a exemplo do trecho:
Resta ainda o argumento da felicidade aqui eu no sou feliz,declara o poeta, para enaltecer , pelo contraste, a suaPasrgada: mas ser que se procura realmente nas ilhas aocasio de ser feliz, ou um modo de s-lo? (ANDRADE, 2003,p. 232)
Utilizando o recurso da metalinguagem, o autor reafirma a palavra
enquanto jogo simblico, comparando a ilha idealizada, irreal, como as
da literatura, ficcional, fruto de sua imaginao e traada pela linguagem
potica, a ilha mimetiza o texto literrio:
Nessa ilha to irreal, ao cabo, como as da literatura, eleconstri a sua cidade de ouro, e nela reside por efeito daimaginao, administra-a, e at mesmo a tiraniza..... A ilha que
trao agora a lpis neste papel materialmente uma ilha, eorgulha-se de s-lo. Pode ser abordada. (ANDRADE, 2003,p.231)
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Est tambm presente o fenmeno esttico da visualidade na
nfase aos elementos da natureza, ao onrico, crtica falsa fantasia
colorida do cinema, bem s cores do vesturio:
....A ilha deve ser um o quantum satis selvagem, sem bichossuperiores fora e ao medo do homem. Mas precisa terbichos, principalmente, os de plumagem gloriosa, com algunsexemplares mais meigos. As cores do cinema enjoam-nos docolorido, e s uma cura de autenticidade nos reconciliar comos nossos olhos doentes. J no h mais vestidos de corespuras e naturais (de que m pintura moderna se vestem asmulheres do nosso tempo?),(ANDRADE, 2003, p. 233)
H um jogo de contradies, isto , a presena de imagens
opostas, uma busca do poeta por um ponto de equilbrio, no processo de
criao, reafirmadas nas figuras de linguagem, que conferem poeticidade
linguagem :
Minha ilha(...) ficar no justo ponto de latitude e longitude que,pondo-me a coberto dos ventos, sereias e pestes, nem meafaste demasiado dos homens nem me obrigue a pratic-los
diuturnamente. Porque esta a cincia e, direi, a arte do bemviver; uma fuga relativa, e uma no muito estouvadaconfraternizao. (ANDRADE, 2003, p.231)
H referncia intertextual a Baudelaire, em Flores do Mal, ao fazer
a crtica ao mundo burgus: E, contemptor do mundo burgus, que outra
coisa faz seno aplicar a tcnica do sonho, que os sensveis dentre os
burgueses se acomodam realidade, elidindo-a? (cf. BENJAMIN, 1989)
Para o poeta, fazer literatura nada tem a ver com felicidade ou
bem-estar, pois, segundo Faulkner(1966), o processo de criao literria
uma mistura de inquietao, euforia e desespero. A ilha no um
den, ou paraso, ou musa, a sua palavra potica.
(...) Emerge do plago (mar) com a graa de uma flor criada
para reproduzir-se sobre a gua. Marca assim o seu
isolamento, e... A solido, carrego-a no bolso, e... E a
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felicidade no em rigor o que eu procuro. No. Procuro uma
ilha, como j procurei uma noiva. (ANDRADE, 2003, p.231)
Desse modo, entendemos que o poeta faz uma analogia - o ato
de criao exige um estado de insularidade ( como estar numa ilha
espao sagrado) o estar consigo mesmo, totalmente focalizado no
acima e abaixo do espao literriono fundo do inconsciente e nos altos
cumes do sublime a pr-condio do processo criativo para o autor.
Nessa linha de pensamento, Bakhtin(1998) observou que o discurso
potico pressupe uma voz solitria:
A polissemia do smbolo potico pressupe a unidade e aidentidade da voz consigo mesma, e a sua total solido nodiscurso. Logo que uma voz alheia, um acento alheio, umponto de vista eventual irrompem nesse jogo do smbolo, oplano potico destrudo e o smbolo transferido para o planoda prosa . Deste modo, todo acontecimento, todo o jogo dossmbolos poticos, depende da relao entre o discurso eobjeto. (1998, p. 130)
Drummond compara o espao de criao literria a uma pequenailha, que quase fico, sem deixar de constituir uma realidade, no
sentido da necessidade da unio entre linguagem referencial e potica,
ambas se interpenetrando e alimentando mutuamente.(cf. CANDIDO,
1993, p.15-16)
Contrariamente, faz uma comparao com a casa de campo e a
ilha de mar. Aqui nos valemos dos conceitos de Jung - (mar como
sinnimo de inconsciente coletivo, na expresso Mare Nostrum),representando o processo de criao ligado ao universo onrico,
totalmente oposto casa de campo, que representa o real, posto que
taxada (por impostos), mesquinha, alheia, etc. Reafirmando tambm a
idia de coisa possuda, nas imagens poticas abaixo: (JUNG,1984, p.
149-150).
A casa de campo diferente. A continuidade do solo torna-aum pobre complemento dessas propriedades, individuais ou
coletivas, pblicas ou particulares, em que todo o desgosto,toda a execrabilidade, toda a mesquinhez da coisapossuda,taxada, fiscalizada, trafegada, beneficiada, herdada,conspurcada, se nos apresenta antes que a vista repare em
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qualquer de seus eventuais encantos. (ANDRADE, 2003,p.232)
Emergindo alguns elementos da sua fase socialista, Drummonddeflagra tambm uma crtica ao progresso devorador, que torna o homem
escravo e dependente do mesmo, destruindo a possibilidade de amar as
coisas essenciais da vida, obliterando a capacidade de estar consigo
mesmo, de buscar a sua essncia:
O progresso tcnico teve isto de retrgado: esqueceu-secompletamente do fim a que se propusera, ou devia ter-seproposto. Acabou com qualquer veleidade de amar a vida, que
ele tornou muito confortvel, mais invisvel... (ANDRADE, 2003p.232)
A casa junto ao mar, que j foi um refgio da natureza, tambm
invadida pelo progresso, o que podemos visualizar nas aliteraes que
atribuem poeticidade linguagem: Tudo forma uma cidade s, torpe e
triste, mais triste talvez do que torpe.
Em razo do isolamento requerido no espao de criao literria,segundo Drummond, no devem estar presentes elementos da cultura e
da pesquisa ( s h permisso para os jornais: No vejo inconveniente
na entrada sub-reptcia de jornais.), pois a pura criao literria precisa
dispens-los se se quiser inveno:
Numa referncia intertextual a Plato, que baniu o poeta da
Repblica ideal, pois considerava a poesia desequilibradora, tomada pela
emoo. Drummond admite os poetas nesta ilha de recreio, pois para opoeta o ato de criao exige reflexo, meditao, embora aparentemente
a mente permanea num estado de divagao, livre, sem excessiva
preocupao literria, para que possa reinar a liberdade de criao:
Sero admitidos os poetas? (...) Se foram proscritos das repblicas
ideais e das outras, pareceria cruel bani-los tambm da ilha de recreio.
No bani-los como Plato.
Numa aluso aos problemas dos bastidores literrios, tambm nodevem estar presentes os problemas de hegemonia e cime. O poeta
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7/25/2019 A Crnica Em Drummond_Maria Helena Da Silva Correa Pinho
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traz a idia da literatura como uma realizao, como o fato em si, e a ilha,
como criao literria, deve representar renncia e despojamento. Assim
o prprio desejo de influenciar e atrair, significaria a no realizao
literria, pois, para o poeta, o ato de criao a uma condio vital, em
que ele comunica seu sentimento de mundo. Por outro lado, h certo
gosto em pensar sozinho. ato individual, como nascer e morrer. A ilha
, afinal de contas, o refgio ltimo da liberdade, que em toda a parte se
busca destruir. Amemos a ilha.
Sim, amemos nossa voz interior. O recurso da repetio da
metfora ilha traz o que chamamos de e