módulo i - crônica

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PIBID Programa de Iniciacção à Docência PROJETO BASE ARTÍSTICA E REFLEXIVA PROFESSORAS: BRUNA MARIA DÉBORAH CORREIA GORETTE ANDRADE HAIANY LEÔNCIO STEFANIE NASCIMENTO MÓDULO I

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Page 1: Módulo I - Crônica

PIBIDPrograma de Iniciacção à Docência

PROJETO

BASE ARTÍSTICA E REFLEXIVA

PROFESSORAS:

BRUNA MARIA

DÉBORAH CORREIA

GORETTE ANDRADE

HAIANY LEÔNCIO

STEFANIE NASCIMENTO

MÓDULO I

ALUNO:____________________________________________________

Page 2: Módulo I - Crônica

O homem nu

Fernando Sabino

Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a

prestação da televisão, vem aí o sujeito com a

conta, na certa. Mas acontece que ontem eu

não trouxe dinheiro da cidade, estou a

nenhum.

— Explique isso ao homem — ponderou a

mulher.

— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as

minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz

barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã

eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um

banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um

café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse

completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a

dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito.

Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam

o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera,

olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro

interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era

o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro

subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

Page 3: Módulo I - Crônica

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o

elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos

nervosas o embrulho de pão:

— Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares,

vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim

despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os

passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador,

apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa,

encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor

da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em

pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava

sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um

verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e

desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares,

obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão

de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo

continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito

bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência,

largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma

cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente

cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

Page 4: Módulo I - Crônica

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu

finalmente a porta para ver o que era. Ele

entrou como um foguete e vestiu-se

precipitadamente, sem nem se lembrar do

banho. Poucos minutos depois, restabelecida

a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda

ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.

Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.

Cobrança

Moacyr Scliar

“Cobrador usa intimidação como estratégia. Empresas de cobrança usam técnicas abusivas,

como tornar pública a dívida”.

Page 5: Módulo I - Crônica

Cotidiano, 10.set.2001 Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa,

caminhando de um lado para outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a

atenção dos passantes: "Aqui mora uma devedora inadimplente".

- Você não pode fazer isso comigo -protestou ela.

- Claro que posso -replicou ele.- Você comprou, não pagou. Você é uma devedora

inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.

- Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...

- Já sei - ironizou ele. Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York

seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema

é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.

- Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...

- Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia.

Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de

conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência

foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou

ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua

dívida.

Neste momento começou a chuviscar.

- Você vai se molhar -advertiu ela.- Vai acabar ficando

doente.

Ele riu, amargo:

- E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.

- Posso lhe dar um guarda-chuva...

- Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.

Ela agora estava irritada:

- Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora

aqui.

Page 6: Módulo I - Crônica

- Sou seu marido -retrucou ele- e você é minha mulher, mas eu sou cobrador

profissional e você é devedora. Eu a avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o

suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá

da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca o meu

emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.

Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso

pouco importava: continuava andando de um lado para o outro, diante da casa,

carregando o seu cartaz.

Folha de São Paulo, 24/09/2001

O padeiro

Rubem Braga

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e

abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante

me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão

dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que

suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da

manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E

enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci

antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a

campainha, mas, para não incomodar os

moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a

idéia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou

que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma

casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que

Page 7: Módulo I - Crônica

vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para

dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era

ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não

quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos

importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era

pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem

pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares

rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava

importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu

escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão

estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de

humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o

padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Aí, galera

Luís Fernando Veríssimo

Jogadores de futebol podem ser vítimas de

estereotipação. Por exemplo, você pode

imaginar um jogador de futebol dizendo

"estereotipação"? E, no entanto, por que não?

- Aí, campeão. Uma palavrinha pra galera.

- Minha saudação aos aficionados do clube e

aos demais esportistas, aqui presentes ou no

recesso dos seus lares.

- Como é?

Page 8: Módulo I - Crônica

- Aí galera.

- Quais são as instruções do técnico?

- Nosso treinador vaticinou que, com um trabalho de contenção coordenada, com

energia otimizada, na zona de preparação, aumentam as probabilidades de, recuperado o

esférico, concatenarmos um contragolpe agudo com parcimônia de meios e extrema

objetividade, valendo-nos da desestruturação momentânea do sistema oposto,

surpreendido pela reversão inesperada do fluxo da ação.

- Ahn?

- É pra dividir no meio e ir pra cima pra pega eles sem calça.

- Certo. Você quer dizer mais alguma coisa?

- Posso dirigir uma mensagem de caráter

sentimental, algo banal, talvez mesmo previsível e

piegas, a uma pessoa à qual sou ligado por razões,

inclusive, genéticas?

- Pode.

- Uma saudação para a minha progenitora.

- Como é?

- Alô, mamãe!

- Estou vendo que você é um, um...

- Um jogador que confunde o entrevistador, pois não corresponde a expectativa de que o

atleta seja um ser algo primitivo com dificuldade de expressão e assim sabota a

estereotipação?

- Estereoquê?

- Um chato?

- Isso.

Correio Braziliense, 13 maio 1998

Page 9: Módulo I - Crônica

Contra a pirataria

Moacyr Scliar

Dupla assalta joalheria e escolhe marcas de relógio para levar. Um dos ladrões abordou uma

vendedora de uma joalheria que inspecionava a vitrine; o assaltante levantou sua blusa,

mostrando uma arma à vendedora. Dentro da loja, outras vendedoras foram rendidas e

obrigadas a recolher relógios das marcas Breitling, Omega e Mont Blanc da vitrine.

(Folha Online, 18 de outubro de 2005)

Os dois assaltantes, um alto e robusto,

outro baixo e magrinho, eram experientes e

organizados. Sabiam exatamente as marcas de

relógio que queriam; coisa fina, nada de despertadores baratos. Examinavam cada

relógio que era trazido da vitrine pelas vendedoras, antes de colocá-los numa valise. Lá

pelas tantas surgiu um problema. Olhando um caríssimo relógio Breitling, o alto e

robusto, que aparentemente era o chefe, teve uma súbita suspeição:

- Acho que este aqui é falso.

Mostrou ao colega, que ficou em dúvida: podia ser falso ou não. Na dúvida

chamaram a vendedora-chefe. Que ficou indignada:

- Falso, em nossa relojoaria? A loja mais famosa da cidade? Uma loja que está

há 30 anos no ramo, que tem clientes famosos? Ora, façam-me o favor, amigos. Assalto,

sim; ofensa, não. Levem tudo, mas nos respeitem.

Os assaltantes não se deixaram impressionar pela retórica. Afinal, como disse o

baixinho, a pirataria campeava. Se CDs eram pirateados, por que não relógios,

mercadoria mais valiosa e cobiçada? Queriam provas de que o Breitling era verdadeiro.

A vendedora-chefe pediu licença, foi até o escritório e voltou com um documento

escrito em inglês. - O que é isto, perguntou o alto.

- É um certificado de autenticidade. Acompanha o relógio.

Os dois miraram o papel com desconfiança. Não sabiam inglês; além disso,

quem lhes garantia que o certificado de autenticidade era autêntico, e não uma

falsificação? Resolveram convocar o dono da relojoaria para esclarecer a questão. A

Page 10: Módulo I - Crônica

vendedora-chefe resistiu o quanto pôde, mas, com um revólver encostado no crânio, não

teve outro jeito: ligou para o dono, que aliás morava ali perto, pediu que viesse para

atender "dois clientes muito importantes". Vinte minutos depois o homem chegava,

esbaforido. Apesar da visível perturbação das vendedoras, não desconfiou de nada,

mesmo porque os assaltantes, bem vestidos, e com as armas agora ocultas, pareciam

mesmo clientes, e clientes muito cordiais.

- Eu tenho este relógio Breitling -disse o alto- que estou pretendendo trocar.

Queria sua valiosa opinião: é falso ou verdadeiro?

Para o dono da loja, um veterano no ramo, bastou um olhar: é falso, proclamou.

E aí mostrou o relógio que tinha no pulso:

- Este, sim, é verdadeiro.

Escusado dizer que os assaltantes levaram o Breitling verdadeiro. E o fizeram

com absoluta tranqüilidade. Deve-se confiar na palavra de quem entende do assunto.

Folha de São Paulo 24/10/2005

Já li isto em algum lugar

Moacyr Scliar

Ele era um rapaz sério, trabalhador. Ela era uma moça séria, trabalhadora.

Namoravam havia muitos anos. Desde a infância, na verdade. Porque as famílias se

conheciam e faziam gosto de que os dois namorassem. E, assim, eles namoravam e até

falavam em noivar e em casar.

A verdade, porém, é que o relacionamento entre ambos era, no máximo,

morno. Muito respeito mútuo, bastante afeto, tratamento cordial; mas paixão, paixão

arrebatadora, isso não havia. De qualquer modo foram levando. Até que ele conheceu

outra garota. Encontro casual, num supermercado. Ela deixou cair um objeto qualquer,

ele a ajudou, começaram a conversar, saíram para tomar alguma coisa, marcaram um

encontro -e quando deu por si, ele estava, aí sim, apaixonado.

Page 11: Módulo I - Crônica

O que representava um tremendo problema de consciência. Como contar à sua

namorada de tantos anos o que estava acontecendo? Como terminar aquela antiga

ligação?

Foi então que ouviu falar do site que dava dicas para romper. De imediato

entrou ali. Havia numerosos modelos de cartas, desde as curtas e brutais ("Estou cheio

de sua cara, desapareça") até as mais sofisticadas e elegantes. Destas, escolheu uma que

lhe pareceu particularmente satisfatória: "Durante muitos anos convivemos com afeto e

alegria. Durante muitos anos nossa existência foi iluminada pela lâmpada do amor. Mas

seja por falta de energia, seja por outra razão qualquer, a lâmpada do amor está se

apagando. Antes que fiquemos totalmente no escuro é

melhor que terminemos nossa relação como amigos. É

melhor que busquemos a luz em outros amores.

Guardaremos, um do outro, uma terna lembrança; é isso

o que importa."

Imprimiu a carta, assinou-a e telefonou para a

namorada marcando um encontro naquela mesma noite.

Era uma segunda-feira, e ela não gostava de sair nas

segundas-feiras, mas, para surpresa dele, aceitou o

convite de imediato: eu também precisava falar com

você, é muita coincidência.

Foi mais fácil do que ele esperava, muito mais fácil. Disse que algo tinha

acontecido, algo que uma carta explicaria, e entregou-lhe o envelope fechado. Ela

replicou que também tinha uma carta para ele. Despediram-se, numa boa.

Ele entrou num bar, abriu o envelope, e leu: "Durante muitos anos convivemos

com afeto e alegria. Durante muitos anos nossa existência foi iluminada pela lâmpada

do amor. Mas seja por falta de energia, seja por outra razão qualquer, a lâmpada do

amor está se apagando. Antes que fiquemos totalmente no escuro é melhor que

terminemos nossa relação como amigos. É melhor que busquemos a luz em outros

amores. Guardaremos, um do outro, uma terna lembrança; é isso o que importa."

Page 12: Módulo I - Crônica

Com o que ele concluiu: grandes amores são

para poucos. Mas sites na internet estão ao alcance de

todos.

Folha de São Paulo, 14 de março de 2005.

A velha contrabandista

Stanislaw Ponte Preta

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava na

fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da

alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.

Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da alfândega

mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:

- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí

atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que

lhe restavam e mais os outros, que ela adquirira no

odontólogo, e respondeu:

- É areia!

Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não

era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da

lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o

fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito

encabulado, ordenou à velhinha fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora,

com o saco de areia atrás.

Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com

areia e no outro com moamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela

passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é

Page 13: Módulo I - Crônica

que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era

mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que

ela levava no saco era areia.

Diz

que foi aí que o

fiscal se

chateou:

- Olha,

vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com quarenta anos de serviço. Manjo essa coisa

de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.

- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta,

quando o fiscal propôs:

- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não

apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando

que a senhora está passando por aqui todos os dias?

- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.

- Juro - respondeu o fiscal.

- É lambreta.

De quem são os meninos de rua?

Marina Colasanti

Page 14: Módulo I - Crônica

Eu, na rua, com pressa, e o menino segurou no meu braço, falou qualquer coisa

que não entendi. Fui logo dizendo que não tinha, certa de que ele estava pedindo

dinheiro. Não estava. Queria saber a hora.

Talvez não fosse um Menino De Família, mas também não era um Menino De

Rua. É assim que a gente divide. Menino De Família é aquele bem-vestido com tênis da

moda e camiseta de marca, que usa relógio e a mãe dá outro se o dele for roubado por

um Menino De Rua. Menino De Rua é aquele que quando a gente passa perto segura a

bolsa com força porque pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão.

Ouvindo essas expressões tem-se a impressão de que as coisas se passam muito

naturalmente, uns nascendo De Família, outros nascendo De Rua. Como se a rua, e não

uma família, não um pai e uma mãe, ou mesmo apenas uma mãe os tivesse gerado,

sendo eles filhos diretos dos paralelepípedos e das calçadas, diferentes, portanto, das

outras crianças, e excluídos das preocupações que temos com elas. É por isso, talvez,

que, se vemos uma criança bem-vestida chorando sozinha num shopping center ou num

supermercado, logo nos acercamos protetores, perguntando se está perdida, ou

precisando de alguma coisa.

Mas se vemos uma criança maltrapilha chorando num sinal com uma caixa de

chicletes na mão, engrenamos a primeira no carro e nos afastamos pensando vagamente

no seu abandono.

Na verdade, não existem meninos De Rua. Existem meninos NA rua. E toda

vez que um menino está NA rua é porque alguém o botou lá. Os meninos não vão

sozinhos aos lugares. Assim como são postos no mundo, durante muitos anos também

são postos onde quer que estejam. Resta ver quem os põe na rua. E por quê.

Page 15: Módulo I - Crônica

No Brasil temos 36 milhões de crianças carentes. Na China existem 35 milhões

de crianças superprotegidas. São filhos únicos resultantes da campanha Cada Casal um

Filho, criada pelo governo em 1979 para evitar o crescimento populacional. O filho

único, por receber afeto "em demasia", torna-se egoísta, preguiçoso, dependente, e seu

rendimento é inferior ao de uma criança com irmãos. Para contornar o problema, já

existem na China 30 mil escolas especiais. Mas

os educadores admitem que "ainda não foram

desenvolvidos métodos eficazes para eliminar as

deficiências dos filhos únicos".

O Brasil está mais adiantado. Nossos

educadores sabem perfeitamente o que seria

necessário para eliminar as deficiências das

crianças carentes. Mas aqui também os "métodos

ainda não foram desenvolvidos".

Quando eu era criança, ouvi contar muitas vezes a história de João e Maria,

dois irmãos filhos de pobres lenhadores, em cuja casa a fome chegou a um ponto em

que, não havendo mais comida nenhuma, foram levados pelo pai ao bosque, e ali

abandonados. Não creio que os 7 milhões de crianças brasileiras abandonadas conheçam

a história de João e Maria. Se conhecessem talvez nem vissem a semelhança. Pois João

e Maria tinham uma casa de verdade, um casal de pais, roupas e sapatos. João e Maria

tinham começado a vida como Meninos De Família, e pelas mãos do pai foram levados

ao abandono.

Quem leva nossas crianças ao abandono? Quando dizemos "crianças

abandonadas" subentendemos que foram abandonadas pela família, pelos pais. E,

embora penalizados, circunscrevemos o problema ao âmbito familiar, de uma família

gigantesca e generalizada, à qual não pertencemos e com a qual não queremos nos

meter. Apaziguamos assim nossa consciência, enquanto tratamos, isso sim, de cuidar

amorosamente de nossos próprios filhos, aqueles que "nos pertencem".

Mas, embora uma criança possa ser abandonada pelos pais, ou duas ou dez

crianças possam ser abandonadas pela família, 7 milhões de crianças só podem ser

abandonadas pela coletividade. Até recentemente, tínhamos o direito de atribuir esse

abandono ao governo, e responsabilizá-lo. Mas, em tempos de Nova República*,

Page 16: Módulo I - Crônica

quando queremos que os cidadãos sejam o governo, já não podemos apenas passar

adiante a responsabilidade. A hora chegou, portanto, de irmos ao bosque, buscar as

crianças brasileiras que ali foram deixadas.

(COLASANTI, Marina. A casa das palavras. São Paulo: Ática, 2002).

A última crônica

Fernando Sabino

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao

balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta.

Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco

ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária

algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da

convivência, que a faz mais digna de ser vivida.

Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta

perseguição do acidental, quer num flagrante de

esquina, quer nas palavras de uma criança ou num

acidente doméstico, torno-me simples espectador e

perco a noção do essencial. Sem mais nada para

contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o

verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu

quereria o meu último poema". Não sou poeta e

estou sem assunto. Lanço então um último olhar

fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas

mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na

contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de

seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou

também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de

curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição

tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo

mais que matar a fome.

Page 17: Módulo I - Crônica

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente

retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão

um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente

ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido

do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a

reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a

ordem do freguês.

O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no

pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A

negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o

garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e

filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico

preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e

espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os

observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na

fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas.

Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com

força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada,

cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns

pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha

agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está

olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de

bolo que lhe cai ao colo.

O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer

intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos

se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas

acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Até quando?

Page 18: Módulo I - Crônica

Valéria Vanda Xavier Nunes

Não sei se já aconteceu o mesmo com você, caro leitor, mas ultimamente,

sempre que vou ligar a televisão sinto inconcientemente uma vontade de voltar atrás e

não completar a ação; deixando que ela pernameça ali, desligada, caladinha. Todavia,

infelizmente, este é um hábito que está tão arraigado em nós, que, involuntariamente,

chego a completar o movimento, e quando me dou conta, ela já está ali de novo, ligada,

falando comigo,me mostrando coisas que não quero ver nem ouvir.

Como sempre, as notícias que ela dá são as mesmas. Nada acontece de bom nem

de novo, continua tudo igual. Dia após dia, ouvimos as notícias de corrupção do

governo, continuam as CPIs, nada se resolve nos aeroportos, o caos aéreo continua,

continuamos vendo aviões que caem aqui, caem acolá, escolas desabando, greves por

toda parte, hospitais fechados, desastres horríveis nas estradas, enfim, nada muda...

E aí fico me perguntando... Até quando... Até quando meu Deus! Até quando

nós, povo brasileiro, vamos ficar assim, passivos? Fico me perguntando de quem

teremos herdado tanta passividade, tanta lassidão, tanta alegria, tanta letargia... Até

quando vamos permitir que nos façam de capachos, de panos de chão e de tolos para

toda essa turma de corruptos que nos pisam sem dó nem piedade? Até quando? Será que

só sabemos gritar e para as ruas quando é para correr atrás de trios elétricos, de bandas

de rock, de pagodeiros, de funkeiros ou de paradas gay? Será?

Quando é que vamos criar coragem de ir às ruas para gritar, transgredir,

reivindicar nossos direitos, vaiar também se for preciso, mas ir lá sim, mostrar para o

mundo toda a nossa tristeza, nossa extrema indignação, nossa impotência diante de toda

essa falta de respeito para com o cidadão decente que paga direitinho, os seus impostos.

Page 19: Módulo I - Crônica

Temos de ir às ruas sim, mostrar nossa insatisfação para com todos esses maus

governantes, maus administradores que usam e abusam do dinheiro píblico em favor

deles próprios!

Chega povo brasileiro! Acordemos! Vamos nos unir e tentar sair dessa letargia e

ver se juntos conseguimos dar um basta em toda essa corrupção gritante que toma conta

do nosso pobre país.

Lutemos, gente, para ver se um dia, ao chegarmos a nossas casas cansados de

mais uma jornada de trabalho honesto, possamos ligar as nossas televisões sem

sobressaltos, sem medo do que vamos ver ou ouvir, mas, que ao contrário, possamos ver

e ouvir notícias de que o nosso país finalmente está mudando, está se tornando um país

melhor; um país decente, onde as pessoas se sentem bem em morar, em fazer parte dele;

em dizer para qualquer pessoa, ou qualquer lugar, orgulhosamente: Eu sou Brasileiro!

Ela

Luís Fernando Veríssimo

Ainda me lembro do dia em que ela chegou lá em casa. Tão pequenininha! Foi

uma festa. Botamos ela num quartinho dos fundos. Nosso Filho – Naquele tempo só

tinha o mais velho – ficou maravilhado com ela. Era um custo tirá-lo da frente dela para

ir dormir. Combinamos que ele só poderia ir para o quarto dos fundos depois de fazer

todas as lições.

- Certo, certo.

- Eu não ligava muito para ela. Só

para ver um futebol ou política. Naquele

tempo, tinha política. Minha mulher também

não via muito. Um programa humorístico, de

vez em quando. Noites Cariocas… Lembra de

Noites Cariocas?

- Lembro vagamente. O senhor vai querer mais alguma coisa?

Page 20: Módulo I - Crônica

- E me serve mais um destes. Depois decidimos que ela podia ficar na copa. Aí

ela já estava mais crescidinha. Jantávamos com ela ligada, porque tinha um programa

que o garoto não queria perder. Capitão Qualquer Coisa. A empregada também gostava

de dar uma espiada. José Roberto Kely. Não tinha um José Roberto Kely?

- Não me lembro bem. O senhor não me leva a mal, mas não posso servir mais

nada depois deste. Vamos fechar.

- Minha mulher nem sonhava em botar ela na sala. Arruinaria toda a decoração.

Nessa época já tinha nascido o nosso segundo filho e ele só ficava quieto, para comer,

com ela ligada. Quer dizer, aos pouco ela foi afetando os hábitos da casa. E então surgiu

um personagem novo nas nossas casas que iria mudar tudo.

Sabe quem foi?

- Quem?

- O Sheik de Agadir. Eu, se quizesse, poderia

processar o Sheik de Agadir. Ele arruinou o meu lar.

- Certo. Vai querer a conta?

- Minha mulher se apaixonou pelo Sheik de

Agadir. Por causa dele, decidimos que ela poderia ir para a sala de visitas. Desde que

ficasse num canto, escondida, e só aparecesse quando estivesse ligada. Nós tinhamos

uma vida social intensa. Sempre iam visitas lá em casa. Também saíamos muito.

Cinema, Teatro, jantar fora. Eu continuava só vendo futebol e notícia. Mas minha

mulher estava sucumbindo depois do Sheik de Agadir, nao queria perder nenhuma

novela.

- Certo. Aqui está a sua conta. Infelizmente temos que fechar o bar.

- Eu não quero a conta. Quero outra bebida. Só mais uma.

- Está bem… Só mais uma.

- Nosso filho menor, o que nesceu depois do Sheik de Agadir, não saía de

frente dela. Foi praticamente criado por ela. É mais apegado à ela do que a própria mãe.

Quando a mãe briga com ele, ele corre pra perto dela pra se proteger. Mas onde é que eu

estava? Nas novelas. Minha mulher sucumbiu às novelas. Não queria mais sair de casa.

Page 21: Módulo I - Crônica

Quando chegava visita, ela fazia cara feia. E as crianças, claro só faltavam bater em

visita que chegasse em horário nobre. Ninguém mais conversava dentro de casa. Todo

mundo de olho grudado nela. E então aconteceu outra coisa fatal. Se arrependimento

matasse…

- Termine a sua bebida, por favor. Temos que fechar.

- Foi a copa do mundo. A de 74. Decidi

que para as transmissões da copa do mundo ela

deveria ser bem maior. E colorida. Foi a minha

ruína. Perdemos a copa, mas ela continua lá, no

meio da sala. Gigantesca. É o móvel mais

importante da casa. Minha mulher mudou a

decoração da casa para combinar com ela.

Antigamente ela ficava na copa para acompanhar o

jantar. Agora todos jantam na sala para acompanhá-

la.

- Aqui está a conta.

- E, então, acontecu o pior. Foi ontem, hora do Dancin'Days e bateram na

porta. Visitas. Ninguém se mexeu. Falei para a empregada abrir a porta, mas ela fez

“Shhh!” sem tirar os olhos da novela. Mandei os filhos, um por um, abrirem a a porta,

mas eles nem me responderam. Comecei a me levantar. E então todos pularam em cima

de mim. Sentaram no meu peito. Quando comecei a protestar, abafaram o meu rosto

com a almofada cor de tijolo que minha mulher comprou para combinar com a

maquiagem da Júlia. Só na hora do comercial, consegui recuperar o ar e aí sentenciei,

apontando para ela ali, impávida no meio da sala: “Ou ela, ou eu!”. O silêncio foi

terrível.

- Está bem… mas agora vá para casa que precisamos fechar. Já está quase

clereando o dia…

- Mais tarde, depois da Sessão Coruja, quando todos estava dormindo, entrei na

sala, pé ante pé. Com a chave de parafuso na mão. Meu plano era atacá-la por trás, abri-

lá e retirar uma válvula qualquer. Não iria adiantar muita coisa, eu sei. Eles chamariam

um técnico às pressas. Mas era um gesto simbólico. Ela precisava saber quem é que

Page 22: Módulo I - Crônica

mandava dentro de casa. Precisava saber que alguém não se entregava completamente a

ela, que alguém resistia. E então, quando me preparava para soltar o

primeiro parafuso, ouvi a sua voz. “Se tocar em mim você morre”.

Assim com toda a clareza. “Se tocar em mim você morre”. Uma voz

feminina, mas autoritária, dura. Tremi. Ela podia estar blefando, mas

podia não estar. Agi depressa. Dei um chute no fio, desligando-a da

tomada e pulei para longe antes que ela revidasse. Durante alguns

minutos, nada aconteceu. Então ela falou outra vez. “Se não me ligar

outra vez em um minuto, você vai se arrepender”. Eu não tinha alternativa. Conhecia o

seu poder. Ela chegara lá em casa pequenininha e aos poucos foi crescendo e tomando

conta. Passiva, humilde, obediente. E vencera. Agora chegara a hora da conquista

definitiva. Eu era o único empecilho à sua dominação completa. Só esperava um

pretexto para me eliminar com um raio catótico. Ainda tentei parlamentar. Pedi que ela

poupasse a minha vida. Perguntei o que ela queria, afinal. Nada. Só o que ela disse foi

“Você tem 30 segundos”.

- Muito bem. Mas preciso fechar. Vá para casa.

- Não posso.

-Por quê?

- Ela me proibiu de voltar lá.

Ditadura da TelevisãoPonto De Equilibrio

Na infância você chora, te colocam em frente da TVTrocando as suas raízes por um modo artificial de se viver.Ninguém questiona mais nada, os homens do "poder" agora contam sua piada

Page 23: Módulo I - Crônica

Onde só eles acham graça, abandonando o povo na desgraçaVidrados na tv, perdendo tempo em vão

Ditadura da televisão, ditando as regras, contaminando a nação!

O interesse dos "grandes" é imposto de forma sutilFazendo o pensamento do povo se resumir a algo imbecil:Fofocas, ofensas, pornografiasPornografias, ofensas, fofocasFutilidades ao longo da programação

Ditadura da televisão, ditando as regras, contaminando a nação!

Numa manhã de Sol, ao ver a luzVocê percebe que o seu papel é resistir, não é?Mas o sistema é quem constrói as arapucasE você está prestes a cairDa infância a velhice, modo artificial de se viverAlienação, ainda vivemos aquela velha escravidão.

Ditadura da televisão, ditando as regras, contaminando a nação!

TelevisãoTitãs

A TelevisãoMe deixou burroMuito burro demaisOi! Oi! Oi!Agora todas coisasQue eu pensoMe parecem iguaisOi! Oi! Oi!...

O sorvete me deixou gripadoPelo resto da vidaE agora toda noiteQuando deitoÉ boa noite, querida....

Oh! Cride, fala pra mãeQue eu nunca li num livroQue o espirroFosse um vírus sem cura

Page 24: Módulo I - Crônica

Vê se me entendePelo menas uma vezCriatura!Oh! Cride, fala pra mãe!...

A mãe diz pra eu fazerAlguma coisaMas eu não faço nadaOi! Oi! Oi!A luz do sol me incomodaEntão deixaA cortina fechadaOi! Oi! Oi!

É que a televisãoMe deixou burraMuito burra demaisE agora eu vivoDentro dessa jaulaJunto dos animais...

Oh! Cride, fala pra mãeQue tudo que a antena captarMeu coração capturaVê se me entendePelo menos uma vezCriatura!Oh! Cride, fala pra mãe!...

A mãe diz pra eu fazerAlguma coisaMas eu não faço nadaOi! Oi! Oi!A luz do sol me incomodaEntão deixoA cortina fechadaOi! Oi! Oi!...

É que a televisãoMe deixou burraMuito burra demaisE agora eu vivoDentro dessa jaulaJunto dos animais...

E eu digo:Oh! Cride, fala pra mãeQue tudo que a antena captarMeu coração capturaVê se me entendePelo menos uma vez

Page 25: Módulo I - Crônica

Criatura!Oh! Cride, fala pra mãe...

Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh!Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh!Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh!Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh!

Eu Adoro Minha TelevisãoCapital Inicial

Eu adoro a minha televisãoEla me conta as coisas como elas sãoSe as coisas vão malÉ só mudar de canalEu adoro minha televisãoEla é: meus olhos, meu coraçãoEstando triste ou contenteO que eu sinto, ela senteEu prefiro ficarDeitado no sofáOlhando a maravilhosa vida dos outrosPassarEu adoro minha televisãoDiante dela eu fico sem açãoEla me faz muito bemEu não preciso de mais ninguémEu adoro a minha televisãoFelicidade apertando um botãoVejo o que eu nunca vou terVejo quem eu nunca vou serEu prefiro ficar......

ATÉ QUE A SORTE NOS SEPARE

Page 26: Módulo I - Crônica

Tino (Leandro Hassum) é um pai de família comum que vê sua vida virar de ponta a

cabeça após ganhar na loteria. Levando uma

vida de ostentação ao lado da mulher, Jane

(Danielle Winits), ele gasta todo o dinheiro

em 15 anos. Ao se ver quebrado, Tino

aceita a ajuda do vizinho Amauri (Kiko

Mascarenhas), um consultor de finanças

super burocrático e que por sinal vive seu

próprio drama ao enfrentar uma crise no

casamento com Laura (Rita Elmôr).

Tentando evitar que Jane descubra a nova situação financeira, afinal ela está grávida do

terceiro filho não pode passar por fortes emoções, Tino se envolve em várias confusões

para fingir que tudo continua bem. Para isso, conta com ajuda do melhor amigo,

Adelson (Aílton Graça), e dos filhos.

Heróis! Será?

Valéria Vanda Xavier Nunes

Dias atrás, recebi através de um e-mail – desses que chegam aos montes em

nossa caixa de correio eletrônico – uma mensagem que

falava sobre a maneira como Pedro Bial sempre se refere

aos "Brothers" do famosa programa BBB da Rede Globo

chamando-os de "Meus Heróis". Aquela mensagem me

levou a pensar no quanto esta referência está

completamente fora do contexto em que se encontram os

"famosos brothers" da casa do BBB.

Fico pensando aqui com os meus botões, o

porquê de Pedro Bial chamá-los assim. Heróis? Será que

eles são chamados de heróis porque passam o dia todo

noo bem bom, sem baterem um prego numa barra de sabão? Ou será que é por passarem

todo o dia se divertindo com o que há de melhor em termos de lazer, sendo premiados

Page 27: Módulo I - Crônica

com boas comidas, boas bebidas, lindas roupas, festas quase todos os dias, presentes,

altas farras, piscinas, academias e tudo que há de bom? Será que é tudo isso que faz

deles "heróis"?

Sei não, caro leitor, mas o conceito que tenho de herói e que talvez seja o seu

também, é completamente diferente do conceito do apresentador do BBB, pois, pra

mim, "Heróis" com letra maiúscula sim, são todos os professores desse imenso país que

têm que trabalhar muitas vezes em três turnos para receberem um salário compatível

com as suas necessidades mais urgentes. Tendo que dar aulas para uma maioria de

alunos malcriados, rebeldes, que não querem nada com a vida, que não se respeitam,

que perderam a noção do que seja disciplina e respeito pelo professor, chegando muitas

vezes a humilhá-lo diante de todos e que não estão nem um pouco preocupados com o

aprender para se tornarem gente.

Heróis pra mim, são todos os médicos voluntários que deixam tudo para trás e

vão para lugares distantes como a África e para países em guerra, com a missão única

de salvar vidas. Heróis são os médicos que trabalham em hospitais públicos de um país

que não está nem aí para dar condições de tratamento digno para a população. Heróis

pra mim, são todos os assalariados que trabalham incansavelmente por um salário de

miséria, enquanto os grandes escalões sobem os seus próprios salários como e quando

querem. Heróis são todos os que de uma maneira ou de outra lutam para tirar crianças e

jovens do mundo da marginalização e das drogas. Heróis são todos os que precisam

passar horas e até mesmo dias em filas do INSS para marcar uma consulta médica; para

conseguir uma vaga numa escola sucateada, ou num concurso para um emprego

público.

Esses sim, podem e devem ser chamados de heróis.

Para sair bem na foto, seria bom que o apresentador desse programa desse

primeiro uma olhada no dicionário antes de chamar os componentes desse "Reality

show" de heróis, pois, definitivamente, esta é uma palavra que, na minha opinião, não se

encaixa no perfil dos BBBs.

Brasil: Pátria amada?

Page 28: Módulo I - Crônica

Valéria Vanda Xavier Nunes

É impressionante como o tempo passa depressa. Ao preparar minhas aulas de

hoje me deparei com o calendário e tomei um susto ao me dar conta de que já

estávamos no dia 03 de setembro e que logo estaríamos no final do ano letivo. 03 de

setembro? Como, se não escutei ainda nenhum som das "fanfarras" ensaiadas pelos

alunos nas ruas da cidade? Pois é, foi aí que perdi alguns minutos do meu tempo

divagando sobre os antigos "Sete de Setembro".

Lembrei-me das escolas da minha infância e juventude. Da ansiedade que os

acometia pela chegada do "Dia da Independência". Quanta euforia! Quanto

"patriotismo", quando ainda se acreditava e se tinha fé no Brasil. Lembrei-me de como

as escolas de todas as cidades se empenhavam em comemorar o dia da Pátria. Era uma

semana ou até, quem sabe, um mês de preparativos para o grande desfile. Nós, as

meninas, íamos para a escola toda a semana com fitas verde e amarela nos cabelos ou na

blusa da farda. Eram tempos de ideais e de ilusões.

Ao chegarmos à escola, éramos levados ao pátio onde hasteávamos a bandeira

e cantávamos o Hino Nacional em meio a muito respeito e emoção. Os desfiles do dia

Sete de Setembro eram um acontecimento nas cidades, principalmente nas do interior.

As pessoas se emocionavam até as lágrimas ao ouvir as bandas marciais do exército e

das escolas e verem seus filhos desfilando pelas ruas enfeitadas de bandeirolas verde e

amarela.

O fato é que tudo mudou.

Page 29: Módulo I - Crônica

Já não vemos alunos ensaiando pelas ruas, nem escolas preocupadas com

desfiles nem com bandeiras nacionais. Já não se ouvem mais o som das "fanfarras", nem

o canto do Hino Nacional pelos alunos. As ecolas não tem mais nem bandeiras, nem

fanfarras. As bandeiras não são vistas nem nas repartições públicas. As escolas estão em

silêncio. Onde foi parar o "patriotismo"? Será que os jovens de hoje morreriam pela sua

pátria? É verdade que nosso país sempre esteve envolvido em falcatruas e corrupções e

em safadezas, mas, era tudo muito camuflado naquela época, e a maioria das pessoas

não tinha conhecimento dos desmandos do poder.

Atualmente, o orgulho que talvez tivéssemos do Brasil se transformou em

queixas e desilusões. Hoje, estas mesmas falcatruas, corrupções, mazelas, impunidades

estão escancaradas para todos verem e tomarem conhecimento, nada é mais camuflado,

está tudo aí, às claras. É uma pena, mas o que vemos e ouvimos todos os dias faz com

que não tenhamos nem um pouco de orgulho nem de esperanças no nosso país. É isto. O

Sete de Setembro está chegando. No entanto, certamente acho que não vejo sentido em

irmos desfilar pelas ruas para homenagear um país tão desacreditado como este.

Silenciaram os ideais. Silenciaram as ilusões.

O QUE É CRÔNICA?

Antes de começar, vamos conhecer alguns segredos de uma boa crônica!

Um dos prazeres da vida é abrir um jornal num

domingo preguiçoso, pular as seções de política

e economia e ler, sem compromisso, uma

crônica, que pode nos emocionar, fazer rir,

pensar... e, às vezes, até as pazes com certos

desastres da vida.

Mas, o que é uma crônica? É um ensaio?

Um tipo de conto? Seria literatura? Ou

apenas jornalismo com toque de poesia?

Page 30: Módulo I - Crônica

HISTÓRIA DAS CRÔNICAS

A palavra “crônica”, em sua origem, está associada ao vocábulo “khrónos” (grego) ou “chronos” (latim), que significa “tempo”. Para os antigos romanos a palavra “chronica” designava o gênero que fazia registros de acontecimentos históricos, verídicos, na ordem em que aconteciam, sem pretender se aprofundar neles ou interpretá-los. Com esse sentido ela foi usada nos países europeus.

A crônica contemporânea brasileira, também voltada para o registro jornalístico do cotidiano, surgiu por volta do século XIX, com a expansão dos jornais no país. Nessa época, importantes escritores como José de Alencar e Machado de Assis, começam a usar as crônicas para registrar de modo ora mais literário, ora mais jornalístico, os fatos corriqueiros de seu tempo.

DE GÊNERO JORNALÍSTICO A GÊNERO LITERÁRIO

Nem todas as crônicas resistem ao tempo. Publicadas em jornais e revistas, são lidas apenas uma veze, em geral, esquecidas pelo leitor. A crônica literária, no entanto, tem longa duração e é sempre apreciada pelo estilo de quem a escreve e pelo tema abordado.

Em geral, na crônica, a narração capta um momento, um flagrante do dia a dia; o desfecho, embora possa ser conclusivo, nem sempre representa a solução do conflito, e a imaginação do leitor é estimulada a tirar suas próprias conclusões. Os fatos cotidianos e as personagens descritas podem ser fictícias ou reais, embora nunca se espere da crônica a objetividade de uma notícia de jornal, de uma reportagem ou de um ensaio.

A crônica é um gênero de texto tão flexível que pode usar a máscara de outros gêneros, como o conto, a dissertação, a memória, o ensaio ou a poesia. É leve, como uma conversa entre velhos amigos, e tem a capacidade de nos fazer enxergar coisas belas e grandiosas em pequenos detalhes do cotidiano que costumam passar despercebidos.

Page 31: Módulo I - Crônica

Crônicas Contemporâneas

Nelson Motta

O drama dos cronistas sempre foi o assunto. Mas hoje, embora eles abundem, parece que todos embarcam sempre nas mesmas canoas. Começa a ficar bem chato e previsível. Tudo sempre parece girar em torno do governo, do oficial, do institucional, para o bem e para o mal, como se o mundo em volta não existisse.

Os grandes cronistas, como Rubem Braga e Fernando Sabino, também tinham seus problemas com os assuntos, e encontravam em seu talento e sua sabedoria as formas de entreter e divertir o leitor. Mas, se escrevessem hoje, coitados, como todos nós nessa árdua atividade, seriam quase obrigados a comentar os escândalos políticos, as falcatruas, mentiras e sem-vergonhices que explodem todos os dias nos jornais, rádios, TVs e blogs.

Não que exista mais corrupção hoje do que nos tempos dos grandes cronistas, mas a eficiência da PF e a do Ministério Público na democracia a trouxeram à luz e levaram-na ao centro das atenções.

Será que Rubem Braga, autor de célebre crônica apocalíptica sobre a devassidão de Copacabana na virada dos anos 60, não escreveria nada sobre mensaleiros, sanguessugas e aloprados? Ou sobre o novo mundo do clepto-sindicalismo?

Mas também seria muito divertido ler crônicas de Nelson Rodrigues sobre o MST, os quilombolas, as elites sindicais, os ecochatos, a “bolsa-ditadura”, as cotas raciais, o politicamente correto. Quantas gargalhadas perdemos, sem a veia tragicômica de Nelson, durante os dias inesquecíveis do caso Renan Calheiros.

Hoje há cronistas por toda a parte, cada um pode ter o seu próprio blog. Mas os melhores e os piores se aproximam quando todos escrevemos variações sobre o mesmo tema: escândalos e baixarias no país da piada pronta.

Está difícil mudar de assunto.

Folha de São Paulo, 16/05/2008

Agora você é o autor!Aluno (a):

Page 32: Módulo I - Crônica

Como vimos, a crônica pode narrar diversas histórias e, geralmente, trata de um fato do cotidiano, nos fazendo rir e refletir sobre as situações mais simples do nosso dia-a-dia. A partir disso, escolha uma notícia retirada de um jornal, observe aquilo que mais lhe chamou a atenção e, em seguida, escreva a sua própria crônica. Lembre-se que sua crônica será publicada em nosso blog.

Título:

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Reescrever é sobreviver!

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Aluno (a):

Releia atentamente o seu texto e, a partir das observações feitas e discutidas em sala, reescreva a sua crônica.

Título:

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