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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA - MESTRADO REA DE CONCENTRAO: HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORNEA
DISSERTAO DE MESTRADO
A CRTICA HEIDEGGERIANA DE SER E TEMPO AO
CONCEITO DE SER DA TRADIO FILOSFICA
Sobre a ontologia da Vorhandenheit e o fundamento existencial da transgresso categorial
Marcel Albiero da Silva Santos
CURITIBA
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA - MESTRADO REA DE CONCENTRAO: HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORNEA
Marcel Albiero da Silva Santos
A CRTICA HEIDEGGERIANA DE SER E TEMPO AO
CONCEITO DE SER DA TRADIO FILOSFICA
Sobre a ontologia da Vorhandenheit e o fundamento existencial da transgresso categorial
Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Filosofia. Curso de Mestrado em Filosofia do Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Pedro Costa Rego.
CURITIBA
2008
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Agradecimentos
Se eu pudesse manifestar a quantos sou grato no curso desse mestrado,
tantos seriam os nomes (e tamanho seria o receio de algum esquecer-me) que
talvez, em verdade, no pudesse completar lista nenhuma, nem nada manifestar...
Para no perder o nimo, resolvo listar, ento, os nomes daqueles apenas a quem
agradeo por motivos o mais diretamente possvel relacionados a esse trabalho:
Prof. Dr. Pedro Costa Rego, pela orientao e pelo patrocnio intelectual,
desde antes desse mestrado. No fosse o dilogo encetado ainda em meus tempos
de disciplinas da graduao, talvez no me tivesse havido o flego para uma
dissertao.
Prof. Dr. Andr de Macedo Duarte, de inmeros encontros para inmeras
discusses e interpretaes da obra de Heidegger: a muito de minha formao
filosfica se deu. Agradeo-lhe pelas valiosas e cuidadosas observaes crticas que
me ajudaram a escrever este texto, e por participar da banca de defesa.
Prof. Dr. Alexandre de Oliveira Ferreira, por gentilmente se dispor a participar
da banca de defesa.
Prof. Dr. Marco Antonio Valentim, pelas sempre acertadas sugestes
aquando da qualificao, e pelo desvelo dedicado a meu trabalho e a meus projetos.
Fernando e Laura e Ronny, amigos com quem muito debati acerca do que,
nesse trabalho, pensava escrever, acerca do que escrevi, acerca do que ento
deixei de escrever. Ao Ronny, ainda tenho de honr-lo tanto pela prontido com que
se disps a ler meu texto antes mesmo que estivesse concludo, como pelas
sugestes todas que ento fui recebendo, o que bem demonstra o esmero de um
verdadeiro amigo.
Luciana, em especial. Porque sim, porque quem .
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Resumo
A presente dissertao versa a crtica heideggeriana, em Ser e tempo, ao
conceito de ser dominante ao longo da tradio filosfica. Primeiramente
mostraremos como Heidegger caracteriza a filosofia como projeto de ontologia
fundamental. Tal projeto necessita, como tarefa preliminar, de uma analtica
existencial do ser-a. Em seguida, mostraremos que, para Heidegger, uma tal
ontologia no pde se desenvolver ao longo da tradio filosfica justamente porque
o ser-a foi interpretado segundo um padro ontolgico a ele inadequado: o padro
ontolgico categorial. O ser-a possui peculiaridades tais, do ponto de vista
ontolgico, que no admite uma interpretao orientada pelo padro categorial do
ente intramundano. Finalizando nosso texto, discutiremos o fundamento existencial
dessa tendncia do ser-a para se compreender a partir do padro ontolgico do
ente intramundano: a decadncia.
Palavras-chave:
1. Heidegger 2. Ser e tempo 3. Vorhandenheit 4. decadncia 5. proposio
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Abstract
This dissertation is about the heideggerian criticism, in Being and Time, of the
concept of being predominant in the philosophical tradition. First, we will show how
Heidegger characterizes philosophy as a project of fundamental ontology. One such
project needs, as its preliminary task, to engage in an existential analysis of the
Dasein. Next, we will show that, for Heidegger, one such ontology could not be
developed in the philosophical tradition precisely because in it the Dasein was
interpreted in accordance with an ontological pattern that was inadequate to it: the
categorial ontological pattern. The Dasein has such peculiarities as, from an
ontological point of view, it does not admit an interpretation in terms of categorial
pattern of the entity inside the world. To finish our text, we shall discuss the
existential fundament of the tendency the Dasein has to understand itself in terms of
the ontological pattern of the entity inside the world: the falling.
Key-words:
1. Heidegger 2. Being and time 3. Vorhandenheit 4. falling 5. proposition
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Abreviaturas das obras de Heidegger
Sein und Zeit = SZ
Wegmarken = WM
Vortrge und Aufstze = VA
Observao: as tradues de Sein und Zeit e dos demais textos alemes, ingleses
e espanhis citados sero sempre nossas. Inseriremos nas citaes, sempre entre
colchetes, os termos cuja traduo seja problemtica ou cujo destaque seja decisivo
(obs: substantivos formados de adjetivos ou de particpios sero citados, quando
isolados, declinados no nominativo definido).
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Sumrio
Introduo...................................................................................................................8
Captulo I: O projeto de uma ontologia fundamental e a necessidade de uma
analtica existencial
1.1. Apresentao sumria do tema de Ser e tempo.................................................12
1.2 A tarefa preparatria e provisria de uma analtica ontolgica do ser-a.............22
Captulo II: A tese da primazia da Vorhandenheit e a distino ntico-
ontolgica do ser-a
2.1 A tese da primazia da ontologia da Vorhandenheit; a necessidade de uma
destruio da ontologia..............................................................................................35
2.2 A peculiaridade ontolgica do ser-a em relao ao ente intramundano; as
dificuldades conceituais e investigativas decorrentes de seu modo de ser...............49
Captulo III: A gnese existencial da Vorhandenheit e o fundamento existencial da transgresso categorial
3.1 A gnese ontolgico-existencial da Vorhandenheit na ocupao cotidiana e no
comportamento terico...............................................................................................63
3.2 O fundamento existencial da transgresso categorial: a decadncia, em ato no
comportamento terico...............................................................................................75
Consideraes finais...............................................................................................90
Bibliografia................................................................................................................97
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Introduo
A presente dissertao trata da crtica heideggeriana de Ser e tempo ao
conceito de ser dominante ao longo da tradio filosfica ser como Vorhandenheit.
No pretenderemos, contudo, oferecer um estudo exaustivo do tema. Queremos,
antes, focar a problemtica da tendncia para a transgresso categorial, isto , da
tendncia que tem o ser-a para interpretar-se tematicamente a partir do padro
ontolgico-categorial do ente intramundano, consumando assim a obliterao de sua
constituio ontolgico-existencial especfica. Segundo Heidegger, a tradio
filosfica interpretou desde sempre o ser-a de uma maneira ontologicamente
inadequada porque teve por base do que fosse o ente como tal o ente
intramundano, e por fio condutor da descoberta do ser do ente, o logos, a
proposio. Como pretendemos deixar claro, o fundamento de tal transgresso
categorial existencial, ou seja, funda-se no modo de ser do ente temtico: o ser-a.
Tal fundamento a decadncia, o movimento essencial da estrutura ontolgica do
existir que se caracteriza por uma tendncia para compreender-se a partir do
mundo. A transgresso categorial, desse modo, ampara-se numa tendncia do ser-
a; o conceito de ser legado no , pois, casual. Ser na anlise do comportamento
terico do ser-a em especial na anlise a respeito da proposio que
poderemos surpreender em ato a decadncia.
No primeiro captulo de nosso trabalho, comearemos por caracterizar, na
primeira seo desse captulo, o intento da ontologia fundamental de Ser e tempo:
desenvolver a questo do ser. Mostraremos que Heidegger define a filosofia, quanto
a seu contedo, como ontologia. Mas a questo do ser requer uma dupla tarefa:
uma analtica existencial do ser-a prvia e provisria e uma destruio da histria da
ontologia legada. Na segunda seo desse captulo, mostraremos que o propsito
de Heidegger com a analtica existencial chegar liberao do horizonte
transcendental da questo do ser. somente por meio de uma elaborao
conceitual da existencialidade da existncia do ser-a, caracterizada por ser a prpria
compreenso do ser, que se pode chegar temporalidade ecsttico-existencial que
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funda, enraza, em ltima instncia, toda e qualquer compreenso (seja ela
conceitual, temtica, ou no) de ser.
Mas, como mostraremos ento na primeira seo do segundo captulo de
nosso texto, uma ontologia radical no teria sido elaborada ao longo da tradio
porque esta esteve presa a um conceito predominante e estreito de ser que obstava
o deslinde da questo do ser: o conceito de ser como Vorhandenheit. Tal conceito
de ser, de provenincia grega, aquele que foi obtido tendo-se por parmetro do
que fosse o ente em sua totalidade aquele domnio do ente chamado por Heidegger
de intramundano (nicht daseinsmige Seiende). O bice que tal conceito de ser
representa consiste no seguinte: tendo sido aplicado ao fenmeno do ser-a,
vitimando-o com a aplicao indevida de caracteres ontolgicos que no lhe
pertenciam, o modo de ser da Vorhandenheit funcionaria como um entrave
conceitualizao apropriada do ente que tem que ser analisado para o deslinde da
questo do ser. Porque o ser-a no pde ser compreendido conceitualmente pela
filosofia, o horizonte transcendental a partir do qual a questo do ser encontraria o
seu lugar e o seu sentido no teria sido liberado: o resultado o esquecimento do
ser caracterstico da tradio filosfica, ou seja, a falta de colocao da questo do
ser aps as primeiras tentativas gregas. A fim de evitar o predomnio furtivo da
ontologia da Vorhandenheit, Heidegger tem de instituir, de par com a analtica
existencial, a tarefa de uma destruio da histria da ontologia. Tal tarefa constitui-
se numa atividade de vigilncia crtica que procuraria denunciar as transgresses
categoriais todas que vitimaram o fenmeno do ser-a, a fim de delimitar o domnio
em que tal ontologia categorial seria aplicvel de forma vlida, que o do ente
intramundano, e com isso preservar o ser-a de uma conceitualizao ou
investigao a ele inapropriada. Na segunda seo desse captulo, comearemos
por analisar o modo de ser existencial do ser-a, a fim de acirrar a distino desse
ente em relao ao ente intramundano. Nosso objetivo , com isso, mostrar como os
recursos conceituais legados pela tradio filosfica so tidos por inadequados, por
Heidegger, para a expresso temtica (conceitual) do modo de ser do ente que o
objeto da analtica existencial. Tais recursos conceituais e investigativos so
inapropriados para a tarefa de uma ontologia fundamental porque so tributrios da
ontologia da Vorhandenheit. Ora, dado o peculiar modo de ser do ser-a, os
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expedientes que se tem mo de modo geral no prestam para a tarefa colimada
por Heidegger.
Em seguida, em nosso terceiro captulo, procuraremos caracterizar a anlise
que Heidegger realiza sobretudo da atitude temtica ou terica do ser-a. Em nossa
primeira seo, mostraremos, a partir de um estudo dos captulos de Ser e tempo
referentes mundanidade do mundo, como Heidegger expe a gnese da
Vorhandenheit como fundada ontologicamente no modo de ser do ser-a.
Mostraremos ento como o ente intramundano pode surgir em sua possvel
Vorhandenheit tanto na lida cotidiana ocupada com instrumentos como na atitude
terica do ser-a. Num caso e noutro, h diferenas significativas no modo como o
ente surge em sua Vorhandenheit: pois no primeiro h, com uma certa explicitao
do ente intramundano, um anunciar-se do fenmeno do mundo; j no segundo caso,
com o surgimento do ente intramundano em sua pura Vorhandenheit, ocorre uma
completa desmundanizao do ente e uma obliterao do fenmeno do mundo.
Com isso avanamos para uma primeira caracterizao do comportamento terico, e
para uma primeira constatao de que nesse modo fundado de comportamento a
decadncia do ser-a encontra-se operante: pois o fenmeno do mundo tende a
obliterar-se, de tal modo que o ser-a tende a se interpretar tematicamente como um
ente desmundanizado. , pois, no comportamento terico que podemos encontrar o
fundamento existencial da transgresso categorial caracterstica da ontologia da
Vorhandenheit. Nisso chegamos segunda seo desse captulo, concentrando
nossas anlises nos 32, 33 e 44 de Ser e tempo, nfase dada ao assunto da
proposio: alm de caracterizar a atitude terica como gnese ontolgico-
existencial do acesso ao ente em sua pura Vorhandenheit, Heidegger no deixa de
apontar o fato de a tradio ter se orientado, de modo predominante, pelo logos
como fio condutor para a exegese do ser em geral, de tal modo que aqui se
mostraria um dos elementos fundamentais para se compreender o porqu da
primazia da ontologia da Vorhandenheit que marca a tradio filosfica. Da
interpretao que Heidegger faz da proposio, portanto, ficar manifesto que: se a
tradio filosfica de fato orientou-se fundamentalmente pelo modo de o ente
intramundano se fazer acessvel na proposio (ou seja, em sua Vorhandenheit), o
fenmeno do ser-a como ser-descobridor (isto , cuja existncia, cuja estrutura-
como, a condio de possibilidade da descoberta, do encontro, do ente
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intramundano) necessariamente teve que se manter encoberto. Pois, na medida em
que, na atitude terica, o como do ser-a nivelado com aquilo que categorial, o
ser-a mesmo tende a se interpretar categorialmente, ou seja, a no se compreender
em seu carter propriamente existencial.
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Captulo I: O projeto de uma ontologia fundamental e a necessidade
de uma analtica existencial
1.1 Apresentao sumria do tema de Ser e tempo
s coisas elas mesmas! (Zu den Sachen selbst!). Ao encampar o lema
fenomenolgico, Heidegger, em Ser e tempo, apresenta a tarefa que prope para a
filosofia: dizer os fenmenos tal como eles se fazem fenmenos. Mas quais seriam
esses fenmenos? E por que se torna necessrio fazer tal apelo: s coisas elas
mesmas, aos fenmenos como tais?
O que se deve fazer fenmeno para a pesquisa fenomenolgica (ou seja, o
que deve ser o objeto ou contedo1, o assunto die Sache , de tal pesquisa),
diz Heidegger, o ser do ente [...] o que determina o ente como ente, aquilo em
vista de que o ente, como quer que seja discutido, j est sempre compreendido [je
schon verstanden ist]2 (SZ, p. 6). Heidegger no pretende, com isso, to somente
desenvolver uma disciplina filosfica entre outras, de rica histria, chamada
ontologia (cf. SZ, p.27); numa palavra, o que est em causa aqui uma
determinao do que venha a ser a prpria filosofia: filosofia , quanto ao mtodo, o
mesmo que fenomenologia, e, quanto ao contedo, o mesmo que ontologia. Com
a questo condutora sobre o sentido do ser, a pesquisa se encontra decidida pela
questo fundamental da filosofia em geral (SZ, p. 27). A ontologia fenomenolgica
1 Utilizamos aqui entre aspas os termos objeto e contedo para indicar que eles no podem ser tomados no mesmo sentido em que o poderiam no caso de uma cincia particular; com efeito, conforme ainda ser visto no decorrer da presente dissertao: Quanto a seu sentido, o ttulo fenomenologia , portanto, diferente de designaes como teologia, etc. Estas nomeiam os objetos [Gegenstnde] da respectiva cincia em sua objetividade [Sachhaltigkeit]. Fenomenologia no nomeia nem o objeto de suas pesquisas, nem caracteriza a objetividade delas (SZ, p. 34). 2 Notamos aqui, na expresso destacada (j sempre compreendido), a aprioridade do ser.
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de Ser e tempo, portanto, determina toda a extenso possvel daquilo que constitui o
filosofar como tal; filosofar deslindar a questo do ser (Seinsfrage).3
Ontologia, em Ser e tempo, desse modo, no o desenvolvimento de uma
disciplina filosfica j constituda entre outras; com isso Heidegger estaria acaso
pensando numa disciplina totalmente nova, que, com aquela que fez poca na
tradio filosfica, teria em comum apenas o nome? No no se trata nem de uma
reprise, nem de uma nova disciplina que nenhum contato tivesse com a tradio
filosfica ocidental4, mas, consoante o ttulo do 1., de uma repetio da questo
sobre o ser (Wiederholung der Frage nach dem Sein SZ, p. 2). Por repetio,
Heidegger compreende a tarefa de [...] elaborar suficientemente a colocao da
questo (SZ, p. 4). Se Heidegger pretende se inserir na
(luta de gigantes em torno da essncia), porque pretende deslindar a questo do
ser em franco confronto com as teses sobre o ser legadas pela tradio. Uma vez
que a grande tradio filosfica ocidental teria por pressuposio fundamental um
conceito dominante de ser cuja provenincia no teria sido suficientemente pensada
por estar acobertada pela obviedade (Selbstverstndlichkeit), a repetio a que se
refere Heidegger entrelaa-se com a tarefa mesma de uma destruio (Destruktion)
da histria da ontologia, ou seja, com a tarefa de pr a salvo da autoridade do bvio
as certides de nascimento dos conceitos ontolgicos fundamentais (cf. SZ, p. 21).
Como veremos adiante, tal conceito dominante ao qual sucumbe a ontologia antiga
e tradio filosfica o de Vorhandenheit grosso modo, e em sentido amplo, o
modo de ser do que est, literalmente, diante da mo, do que est vista,
disponvel; num sentido amplo, em Ser e tempo, Vorhandenheit designa, pois, o
modo de ser categorial, modo de ser do ente que no tem o modo de ser do ser-a
(nicht daseinsmige Seinsart), modo de ser do ente que possui um carter de qu
(Was), um quid cf. SZ, p. 44 e p. 54. A elaborao (repetio, recolocao) da 3 Uma vez que nosso trabalho tem por objetivo uma anlise sobretudo textual e interna da obra fundamental de Heidegger, Sein und Zeit, prescindiremos aqui de uma exposio do cenrio acadmico-filosfico da poca da publicao dessa obra. certo que essa determinao acerca do que venha a ser a filosofia, tal como proposta por Heidegger, faz-se mediante um confronto dialgico com a tradio filosfica vigente, em sentido amplo, e mesmo com o meio acadmico-filosfico de formao e de trabalho do autor; considerando os propsitos e limites de uma dissertao de mestrado, partiremos do princpio, contudo, de que o texto de Ser e tempo possa mostrar, independentemente do auxlio de um estudo detalhado sobre esse pano de fundo de sua confeco, em que consiste tal determinao do que venha a ser a filosofia. 4 Ou, ainda: No se trata, para Heidegger, nem de empreender uma investigao no interior de um programa previamente dado de fenomenologia, nem de acolher uma vez mais um questionamento herdado (FIGAL, 2005, p. 33).
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questo do ser depende, pois, de uma escavao dos pressupostos (escudados
pela obviedade) que informam as teses ontolgico-filosficas essenciais que deram
flego tradio filosfica ocidental desde a Antigidade grega. Como veremos
adiante, em 1.3, a relao de Heidegger com a tradio filosfica ser sempre
crtica; como bem observa Brague, mesmo em relao aos louvveis gregos, a
pretenso heideggeriana sempre foi a de ultrapass-los, isto , de pensar de modo
mais grego que eles prprios o puderam fazer (cf. 1991, p. 402).
Mas o que o ser? O ser do ente no ele mesmo um ente (SZ, p. 6). Tal
como ficou obra inacabada, Ser e tempo apresenta escassas determinaes
positivas de como , afinal, que se deve compreender algo que j no seja um ente
entre outros melhor: algo que j no seja em absoluto (um ente). Aqui comeamos
a vislumbrar algo da aporia (Verlegenheit) essencial em que cai um tal
empreendimento ontolgico, tal como Heidegger mesmo o percebe desde a citao
do texto platnico que abre a epgrafe de Ser e tempo: sim, pois se considerarmos
que Ente [Seiende] tudo sobre o que discursamos, tudo que ns pensamos, tudo
com que nos comportamos de um modo ou de outro, ente tambm o que e como
ns mesmos somos (SZ, p. 6-7), se, portanto, pura e simplesmente podemos
dizer que ente tudo, que ente o que , ento o que pode ser isso (o ser) que
j no se confunde em absoluto com o ente? Nada?
Dentre as poucas caracterizaes desta obra do que seja ser, contemos trs:
a de que, se se pode falar numa universalidade (Allgemeinheit, entre aspas no
original cf. SZ, p. 3) do ser, esta no da ordem (ntica) do gnero; a de que, se a
tarefa da ontologia consiste em no contar mitos (cf. SZ, p. 6), o ser no se deixa
explicar por meio do ente, porque radicalmente distinto deste; por fim, a
caracterizao de que O ser o transcendens puro e simples (SZ, p. 38). Como
observa Dastur, com essa ltima afirmao, Heidegger estaria dizendo que O ser
enquanto tal no um dos transcendentais a par do unum, bonum, verum, etc.
[...] (1990, p. 45), no tem nenhum tipo, pois, de trao ou contedo ntico ou
qididativo (no , enfim, determinao ntica, relativa a ente). Mas o que ser?
Em textos posteriores, podemos encontrar caracterizaes positivas mais
completas e esclarecedoras sobre o que seja ser do que as que so apresentadas
em Ser e tempo. Tomemos o Posfcio a O que metafsica?, de 1943:
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O ser, contudo, no nenhuma propriedade ntica junto do ente. O ser no se deixa objetivamente representar e produzir semelhana do ente. O absolutamente outro relativo a todo ente o no-ente [Nicht-Seiende]. Mas esse nada [Nichts] vigora [west] como o ser (WM, p. 101-2).
Desse modo, Heidegger faz do ser o tema por excelncia da filosofia, e isso
na exata medida em que o ser o perfeito a priori5 do ente (de tudo o que ), sua
derradeira condio de possibilidade, o pressuposto essencial do ente (ou: aquilo
que de antemo est compreendido quando se compreende algo como ente).
Apesar de constituir o que h de conspcuo do que quer que seja isto : do ente ,
e mesmo justamente por isso, o ser o que j no se confunde em absoluto com o
ente, o que de modo nenhum ente. O ser o totalmente outro do ente, o
totalmente diferente do ente, o no-ente. Essa radical alteridade do ser, quando
comparado com o ente, no pode ser compreendida como um atributo que o
diferenciaria do ente, de modo que ele se pudesse encontrar colocado ao lado do
ente; o ser tambm no um outro essencialmente (segundo o conceito tradicional
de essncia, portanto) que se pe ao lado do ente, apartado deste; antes, Ser
cada vez o ser de um ente (SZ, p. 9). Ressaltemos: ser ser do ente pertence-lhe
(no fundo, pressupor que o ser pudesse se encontrar apartado do ente, pressupor
que no lhe pertence, seria compreend-lo como mais um ente). A tese kantiana,
segundo a qual Ser evidentemente no um predicado real [...] (KANT, 1983, p.
626), desde que a compreendamos restritivamente6, encontra-se aplicada aqui: o ser
no nada que, em si mesmo, seja dotado de realidade, isto , de contedo ntico
ou qididativo; a famosa tese da mtua pertena de nada e ser, apresentada por
Heidegger logo aps a publicao de Ser e tempo, em O que metafsica (cf. WM,
p. 17) no deixa de indicar essa irredutibilidade do ser ao ente, essa sua alteridade:
antes, ressalta-a de modo dramtico. O decisivo compreender essa alteridade e
transitividade do ser (isto , tanto o ser-outro do ser em relao ao ente como o 5 Sobre a aprioridade do ser, cf. nossa nota 2. 6 Ou seja: desde que no assumamos a soluo kantiana de propor que ser seja o mesmo que posio [Setzung] de uma coisa [Ding], o que Heidegger no endossaria, por considerar tal afirmao tributria da ontologia da Vorhandenheit, na medida em que posio, ser posto, designa objetividade, realidade objetiva, presena que dura (whrende Anwesenheit), mesmo no texto de 1962, Kants These ber das Sein (cf. WM, p. 304).
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pertencimento do ser ao ente): o ser, sendo do ente, o ter-lugar do ente (que ente
nenhum ), a conspicuidade do que (ele mesmo inconspcuo, nada sendo de
visivelmente ntico), o acontecer do que acontece (ele mesmo no tendo
onticamente acontecido).
Mas se, segundo Heidegger, o ser o tema da filosofia, h de haver razes
para isso, razes que ultrapassem o mero fato de uma investigao sobre o ser
(ontologia) possuir venervel tradio. As razes para a eleio do tema da
pesquisa, apresentadas ao longo do primeiro captulo de Ser e tempo, em apertada
sntese, so essencialmente as quatro seguintes.
A primeira a falta de uma resposta questo sobre o sentido do ser, de que
se ressentiria a filosofia desde o seu incio na Grcia. Se, por um lado, foi a questo
do ser que deu flego s pesquisas de Plato e de Aristteles, e se foi a que teve
gnese toda a tradio do pensamento ocidental, tal questo, por outro lado, ainda
que no tivesse experimentado um desenvolvimento ulterior significativo,
encontrava-se proscrita do meio acadmico filosfico das primeiras dcadas do
sculo passado, como se o ser no fosse mais digno de ser posto em questo.
Como a questo do ser teria sido a responsvel pela gnese do pensamento
ocidental, os resultados da pesquisa grega ainda subsistiriam base de toda a
tradio filosfica posterior, mesmo quando no explicitados (teriam vigncia como
pressupostos ontolgicos incontornveis, portanto), mas deturpados de tal modo que
restaram convertidos em dogmas que obstaculizaram a recolocao ou repetio da
questo. A questo, enfim, tornou-se muda, sem resposta; e pode-se mesmo dizer
que se tenha tornado tambm surda, isto , sem a possibilidade de ter ouvidos para
o ser como problema e com isso chegamos razo seguinte.
A segunda razo, desse modo, a falta da elaborao adequada da questo,
que se motiva, sobretudo, por preconceitos metodolgicos infundados que imputam
ao ser a mxima universalidade, a impossibilidade de definio e a obviedade de
seu sentido. de notar que tais preconceitos metodolgicos caracterizam-se
justamente por obstruir o acesso investigativo quilo que j no mais um ente
entre outros, nem sequer um ente supremo (deus) pois, retomando os
preconceitos acima relacionados, a universalidade um atributo do ente; a
definio, o modo apropriado de se dizer o que seja um ente qualquer; e a
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obviedade, nada alm do corolrio da [...] superfluidade de simplesmente
compreender um tal retorno [s fontes de onde provm as categorias e os conceitos
tradicionais] em sua necessidade (SZ, p. 21)7. Objetar pesquisa que se pe no
encalo da questo do ser a necessidade de obedincia a tais preconceitos
metodolgicos impede o seu deslinde.
A terceira razo o primado ontolgico da questo. Tal primado consiste no
fato de que o recorte do setor de entes que constitui o objeto temtico das vrias
cincias positivas e que pode vir a ser objeto de ontologias regionais sempre
pressupe uma determinada compreenso do ente em sua constituio fundamental
de ser, ou seja, pressupe o conceito de ser em geral j parte de uma determinada
compreenso do que seja o ente e sua entidade, j parte de uma concepo do que
seja ser. Uma ontologia, pura e simplesmente, portanto, tem primazia em relao s
possveis ontologias regionais; por isso mesmo, a empreitada de quaisquer
ontologias (Heidegger aqui se refere s regionais) permanece ingnua se no
compreender que a tarefa fundamental de uma ontologia deve ser esclarecer o
sentido do ser:
Toda ontologia, por mais rico e estruturado que possa ser o seu sistema de categorias, permanece, no fundo, cega e uma distoro de seu propsito mais prprio se, antes, no houver esclarecido, de maneira suficiente, o sentido do ser nem tiver compreendido esse esclarecimento como sua tarefa fundamental (SZ, p. 11; itlico do autor).
Por fim, como quarta razo, temos o primado ntico da questo. Por tal
primado Heidegger compreende o fato de que a compreenso de ser
(Seinsverstndnis) seja essencialmente constitutiva deste ente que ns mesmos, os
que questionam sobre o sentido do ser, somos do ser-a (Dasein), do ente que se
distingue dos demais e se define por estar aberto para o seu prprio ser (que neste
7 Inserimos o que est entre colchetes, em portugus, para tornar clara a referncia anafrica a um perodo anterior ao citado, no qual Heidegger tratava do modo essencialmente deturpado pelo qual a tradio lega os conceitos fundamentais que jazem base de toda histria da filosofia dentre os quais, o conceito de ser. Lanaremos mo do mesmo expediente nas demais citaes sempre que for necessrio.
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sentido apreendido terminologicamente como existncia, Existenz) e que, entre
outras possibilidades, possui a de questionar. Como veremos adiante, a questo
sobre o sentido do ser no nada seno a radicalizao de uma possibilidade
essencial desse ente de uma possibilidade, portanto, ntica (ou seja, que diz
respeito a um ente em especial, a um ente distinto, ausgezeichnet): a compreenso
de ser na qual o ser-a sempre j se encontra, mesmo que de forma no temtica,
ou seja, mesmo que de forma pr-ontolgica (vorontologisch isto : anterior
elaborao explcita de uma ontologia). o ser-a que propriamente (pr-)
ontolgico, ou seja, que essencialmente constitudo por uma compreenso de ser
implcita ou pr-conceitual: nele mesmo que reside, pois, a possibilidade de toda e
qualquer ontologia explcita (ou temtica, conceitual) da Heidegger chamar de
ontologia fundamental (Fundamentalontologie) ontologia que tem por tema o ser
do ser-a, ontologia da qual toda e qualquer outra ontologia (regional) pode surgir.
Notamos aqui o seguinte, acompanhando a indicao de Inwood: [...]
Fundamentalontologie certas vezes denota a ontologia ou analtica de Dasein (ST,
13), certas vezes a investigao do ser para o [sic] qual a analtica de Dasein
meramente preparatria (ST, 154, 182s, 436s) (2002, p. 132). De fato, h uma
ambigidade da parte de Heidegger no emprego da expresso; mas, de todo modo,
compreendendo ontologia fundamental tanto em sentido amplo (como a prpria
questo do ser) como em estrito (como a analtica do ser-a), o decisivo que ela
ultrapassa as ontologias regionais em radicalidade, em busca de uma
fundamentao ontolgica a elas inacessvel.
Com isso, o questionar sobre o sentido do ser , de todo questionar possvel
desse ente, o mais concreto e mesmo o principal: o questionar no qual o ser-a
atingido essencial e radicalmente por aquilo sobre que questiona, experimentando
uma referncia circular do questionado (o ser) ao questionar (como modo de ser, ou
possibilidade existenciariamente assumida, deste ente que se define
existencialmente por compreender o ser: o ser-a).
Com essa ltima razo apresentada por Heidegger para justificar o tema de
Ser e tempo, portanto, chega-se implicao do modo de ser caracterstico do ser-
a na recolocao da questo do ser, e de uma maneira tal que as dificuldades com
que tal projeto filosfico tem de se deparar fundam-se no modo de ser desse ente. O
19
ser-a, como veremos adiante, ser mostrado em sua essencial tendncia para a
impropriedade isto , em seu compreender-se como aquilo que ele prprio no .
claro que, se levarmos em conta a referncia circular, acima comentada, do ser ao
questionar, foroso concluir que impropriedade do ser-a j deve ter
correspondido um manifestar-se do ser como aquilo que ele no . De fato, a tese
fundamental de Ser e tempo a de que o ser-a suporta8 a incompreenso na qual o
ser cai h muito tempo, pois Heidegger afirma que a resposta questo do ser no
ter chegado a seu fim ltimo:
[...] se no compreender [aus ihr selbst (...) zur Einsicht kommt] o modo de ser da ontologia feita at agora, o destino de suas questes, de seus achados e fracassos, como uma necessidade conforme ao modo de ser do ser-a [als daseinmig Notwendiges] (SZ, p. 19).
Isto , graas a seu modo de ser mesmo, o ser-a o ente responsvel pela
(in-) compreenso do ser segundo o esquema da disponibilidade9 (Vorhandenheit);
8 Suportar no sentido de responder por. 9 Traduzimos aqui Vorhandenheit por disponibilidade, mas em geral evitaremos tal traduo, bem como outra traduo qualquer, nas demais menes a este termo, dada a dificuldade de trazer numa palavra a riqueza conotativa do termo alemo. Nossa escolha por disponibilidade deve ser entendida em sentido amplo e em sentido estrito, tal como Heidegger emprega o termo original. Em sentido amplo, algo est disponvel indica simplesmente: algo est j a: Heidegger compreende o termo Vorhanden, que significa a presena simplesmente disponvel, no sentido forte do que est j presente, do que est constantemente disponvel sem estar j numa relao com um Dasein singular (GA, 20, p. 270) (DASTUR, 1990, p. 105 desta afirmao de Dastur ponderamos, porm, que, a rigor, o ente vorhandene sempre tem de estar j numa determinada relao com um ser-a singular, uma vez que este distinguido pela compreenso ou abertura do ser). Nesse sentido amplo, portanto, disponibilidade indica intramundanidade,ou seja, o modo de ser do nicht daseinsmige Seiende, como observa Brague (cf. 1991, p. 407). Por outro lado, em sentido estrito, dizemos algo est disponvel quando ningum utiliza algo ainda ou no o utiliza mais, quando algo est na simples possibilidade de vir ao uso, e no no uso mesmo; no, portanto, quando j est na mo (zuhanden), mas quando est diante da mo (vorhanden). Tal sentido de disponibilidade contrasta com o de manualidade (Zuhandenheit), portanto. De fato, embasando nossa opo de traduo interpretativa, o Deutsches Wrterbuch dos irmos Grimm obra, como se sabe, muito estimada e consultada por Heidegger reserva para Vorhanden (cf. GRIMM, 2004) equivalentes latinos tais como restare (opor-se, resistir, restar, manter-se), in promptu ( mo, ao alcance da mo, pronto, preparado, expedito, rpido), ad manum (em prontido, mo), praesto (pronto, disposio), e paratus (proviso, preparado, o que se encontra disponvel); cita tambm as expresses italianas alla mano pronto (pronto para vir mo) e alla mana, cio presto, in pronto ( mo, isto , pronto, disposio); e ainda o germnico gegenwrtig (presente, atual), associado semanticamente aos termos latinos, tambm citados, praesens (presente) e instans (que aperta, que insta, iminente, presente; o particpio presente de insto: apoiar-se em, insistir, estar presente, urgir, ser iminente). Sobretudo nesse ltimo sentido temporal de vorhanden como praesens, gegenwrtig, fica explcito, j na palavra
20
ou seja, o ser-a o responsvel pela primazia da ontologia da Vorhandenheit o
fundamento mesmo de tal primazia. Como ser mostrado no decorrer da presente
dissertao, o ser-a o fundamento existencial de tal interpretao do ser, graas a
sua dupla tendncia ou inclinao (Tendenz, Geneigtheit) para compreender o seu
prprio ser (e, nisso implicado, o ser em geral) a partir do mundo (cf. SZ, p.15 e
p.19) e a partir da tradio (cf. SZ, p. 21)10. Tal tendncia o que Heidegger chama
de decadncia (Verfallen)11.
Ser apenas em textos posteriores que a tradio filosfica ocidental no ser
mais pensada como devendo ao modo de ser do ser-a o seu conceito de ser,
quando Heidegger comear a pensar a histria do ser (Seinsgeschichte ou
Geschichte des Seins) como responsvel pelo destino ou envio (Geschick ou Ge-
schick) da interpretao metafsica12 do ser. Em meados dos anos 1930, ele
[Heidegger] descobriu que o infinitismo13 no era fruto de um projeto humano, mas
um destinamento do prprio ser (LOPARIC, 2004, p. 13).14
mesma, que a crtica heideggeriana ontologia que se orientou pela Vorhandenheit seja, no fundo, o mesmo que crtica ontologia da presena ou da presentidade. Notamos, a propsito, que Loparic traduz Vorhandenheit por presentidade (cf. 2004, p. 47). 10 No elaboraremos, no presente trabalho, o estudo dessa tendncia para decair na tradio, o que exigiria uma considerao detalhada sobre a historicidade do ser-a. 11 Notemos o seguinte: Heidegger, para exprimir essa inclinao do ser-a para decair na tradio, utiliza o verbo verfallen regendo o dativo: [...] Dasein verfllt [...] seiner [...] Tradition (SZ, p. 21). Tal verbo, regendo o dativo, significa: ser completamente dependente de algo, ser viciado em algo (o uso comum, no alemo, justamente para indicar o estado de dependncia qumica de algum). Ou seja, o ser-a de todo dependente da tradio; no h existente humano que j no tenha por vcio o legado da tradio. Essa inescapvel heteronomia , pois, a marca da existncia. 12 O que, neste contexto, significa: filosfica, isto , que abarca toda a tradio ocidental do esquecimento do ser (Seinsvergessenheit) Cf., por exemplo, VA, berwindung der Metaphysik. 13 O infinitismo o princpio organizador da metafsica ocidental (LOPARIC, 2004, p. 9). Nesta obra, Loparic interpreta a obra do primeiro Heidegger como uma desconstruo (destruio) do infinitismo metafsico (ontolgico e tico), isto , das concepes filosficas que se centram no princpio de razo suficiente (ou princpio do fundamento, princpio de causalidade), em busca de um pensamento da finitude fundado no sem-fundamento do ser-a. 14 Ainda que s venha a se encontrar plenamente desenvolvida em torno da dcada de 40 (cf., por exemplo, VA, berwindung der Metaphysik redigido de 1936 a 1946), a tese da histria do ser j se deixa entrever em Da essncia da verdade, de 1930. Nesse texto, j vemos Heidegger pensar que, se no ente que se mostra o ser, e apenas no ente, o mostrar-se (ou: o ser-conspcuo como tal, o fato de o ente ser) s o do que mostrado, ou seja, do ente. Agora: ele nele mesmo, o ser, o mostrar-se, no ente nenhum, no se encontra mostrado como ente entre outros. Em relao, pois, ao ente ou seja, totalidade daquilo que , o ser a diferena propriamente dita (ser como Seyn): [...] o ser [Seyn] como a diferena imperante de ser [Sein] e ente (WM, p.96). O ente se mostra na medida em que, diferentemente dele (sendo a diferena), o ser constitui o seu mostrar-se que se encobre em si mesmo, que no se mostra seno no ente, como o mostrar-se do ente. Em si mesmo, ser, mostrar-se, significa: dar vez a que o ente surja como manifesto. O ser, como o ser-conspcuo do ente em seu todo, retrai-se em favor do ente tornado manifesto; o retrado nada de manifesto. Pertence ao ser o velar-se; o fazer-se esquecido o constitui como tal. O ser esquece. No , afinal, gratuito que o interesse pela questo do ser, a compreenso de sua necessidade, tenha cado no
21
Mas o nosso contexto de discusso, no presente trabalho, ser o de Ser e
tempo ou seja, ser aquele no qual a tese da histria do ser ainda no se encontra
explorada em toda a sua amplitude possvel, restando ao ser-a o papel de
protagonista da interpretao ou exegese do ser segundo o modelo categorial
(Vorhandenheit), que caracterizaria a compreenso conceitual predominante ao
longo de toda a tradio filosfica.
Em suma, para encerrarmos essa primeira seo: a repetio da questo do
ser tem por pressuposto uma dupla tarefa: de um lado uma analtica ontolgica do
ser-a; de outro, uma destruio da histria da ontologia. No decorrer do presente
trabalho comentaremos de modo mais detido cada uma dessas etapas requeridas
para o deslinde da ontologia proposta em Ser e tempo, apontando-lhes a
articulao.
Desse modo, o que se deve fazer fenmeno em Ser e tempo (fenmeno em
sentido fenomenolgico) o ser do ente, o seu sentido, de modo que a filosofia, no
que diz respeito a seu contedo ou objeto, ontologia; e, na medida em que o
tema da filosofia o ser de tal modo que sempre j se retrai para dar vez ao
ente, torna-se necessria uma via de acesso que sempre de novo o arranque de seu
velamento (esquecimento) essencial, que sempre de novo o ponha mostra, que o
deixe se fazer fenmeno, que o desvele e isso contra a sua prpria tendncia para
mais silencioso esquecimento, diz-nos Heidegger: tal esquecimento o ser quem o envia, o seu destino. Mas importante frisarmos um aspecto fundamental desse projeto filosfico de repetir a questo do ser: recolocao da questo do ser pertencer no algo como um rememorar que poria fim ao esquecimento pois, se este, o esquecimento, pertence ao ser (se, afinal, , como pensar o Heidegger tardio, ratificando Herclito cf. VA, p. 270 ss.), pretender elimin-lo seria descaracteriz-lo, tom-lo por um outro , seno o rememorar a necessidade (Notwendigkeit) de questionar o ser necessidade primeiramente compreendida pelos gregos como necessidade do ser como questo fundamental. A histria (Geschichte) mesma experimentada e tem o seu comeo a partir do momento em que o pensamento deixa-se atingir pelo ente em seu desvelamento e pergunta-se pelo todo do ente como , como ecloso, brotamento, surgimento: Apenas onde o ente mesmo propriamente elevado e conservado em seu desvelamento, apenas onde essa conservao concebida a partir da questo sobre o ente como tal, comea a histria. A desocultao inicial do ente no todo, a questo sobre o ente como tal e o comeo da histria ocidental so o mesmo e se do simultaneamente em um tempo que, no sendo ele mesmo mensurvel, inaugura a abertura para qualquer medida (WM, p. 85). Tal foi o modo como os gregos teriam experimentado o ser do ente como a coisa (Sache) do pensamento; tal foi o incio da histria do ocidente. Contudo, o retrair-se do ser para dar vez ao ente (ou seja: a no-verdade cooriginria do ser, Unwahrheit ou Un-wahrheit, que vige como encobrimento e errncia, Verbergung e Irre ou, tambm poderamos dizer, arriscando-nos a pensar com o Heidegger tardio, o , o amar esconder-se, o tender a ocultar-se) o que teria permanecido impensado desde os gregos (Cf. WM, Vom Wesen der Wahrheit). Por isso o ocidente a histria da errncia do homem no ente e do encobrimento do ser numa palavra: a histria do esquecimento do ser (ou histria da metafsica).
22
o velamento (tendncia que, em Ser e tempo, suportada pelo ser-a, que lhe
pertence constitutivamente): essa via a fenomenologia, o ir s coisas elas
mesmas. A palavra coisa (Sache, em alemo) aqui empregada no sentido
originariamente jurdico de: o que est em causa numa lide, o que possui
legitimidade bastante para ser digno de pronunciamento a respeito. Ora, o que
digno de pronunciamento, o que est em causa para a filosofia, como foi visto, o
ser. Por isso, diz Heidegger, a filosofia s possvel como ontologia
fenomenolgica, pois Ontologia apenas possvel como fenomenologia [...] (SZ, p.
35) e Ambos os ttulos [a saber, ontologia e fenomenologia] caracterizam a filosofia
mesma segundo objeto [Gegenstand]15 e modo de abordagem [Behandlungsart]
(SZ, p.38).
1.2 A tarefa preparatria e provisria de uma analtica ontolgica do ser-a
Aqui nos deteremos especificamente na anlise do papel que desempenha a
analtica do ser-a no projeto filosfico de Ser e tempo, como etapa provisria e
preparatria (ou: que opera como condio necessria) para o deslinde da questo
do ser. De fato, notamos, a respeito da tarefa de deslinde da questo do ser
proposta em Ser e tempo, que, fazendo nossas as palavras de Dostal16:
Como bem conhecido, esta obra se prope a tarefa de estabelecer uma anlise uma anlise fenomenolgica e existencial da estrutura do Dasein, a fim de preparar o solo para um tratamento renovado da questo do ser, da Seinsfrage. [] A anlise chamada
15 Tal conceito (objeto) soa estranho em Heidegger, pois Fenomenologia no nomeia nem o objeto [Gegenstand] de suas pesquisas, nem caracteriza a objetividade [Sachhaltigkeit] delas (SZ, p. 34). claro, pois, que Gegenstand, na citao que consta no corpo do nosso texto, deve ser lida cum grano salis, como sinnimo de Sache. 16 Ainda que o autor no nos aclare os pontos que aqui investigamos.
23
preparatria e provisria (1982, p. 44 grifos nossos na ltima orao).
A analtica possui, portanto, um carter tanto preparatrio (vorbereitend)
quanto provisrio (vorlufig). A primeira caracterstica fica apontada no ttulo do
primeiro captulo da obra (Die Exposition der Aufgabe einer vorbereitenden Analyse
des Daseins, SZ, p. 41). A segunda fica patente desde a breve nota de Heidegger a
O sofista de Plato, na epgrafe da obra, no momento em que afirma se tratar a
interpretao do tempo, entendida como horizonte transcendental da compreenso
do ser, a ser conquistada a partir da analtica existencial, de uma meta provisria
(vorlufige Ziel, SZ p. 1).
Impe-se, desse modo, como tarefa preliminar, relativamente ao
desencadeamento da questo sobre o sentido do ser, a elaborao de uma analtica
existencial, a fim de tornar transparente em seu ser o ente cuja distino
(Auszeichnung) a abertura (Erschlossenheit) para o ser, ou compreenso de ser
(Seinsverstndnis). De outro lado, tal analtica no abandona o estatuto provisional.
Nesse captulo estaremos ocupados com as seguintes questes principais:
1. Qual a relao entre esta distino do ser-a e o deslindamento da questo
do ser, uma vez que a analtica existencial deve ser uma tarefa preparatria?
2. E por que Heidegger nos diz que, alm de preparatria, a tarefa da
analtica provisria?
Faz-se importante que delimitemos ambas as caractersticas da analtica
pelas razes seguintes. Com o carter preparatrio da analtica, compreendemos a
sua necessidade estratgica para o deslinde da questo do ser: sem uma prvia
analtica do ser-a, pensa Heidegger, a questo do ser no pode ser concretamente
colocada. Com o carter provisrio, por sua vez, deve ficar j indicada uma nota
essencial de sua concepo de filosofia como fenomenologia: que a filosofia, para
Heidegger, no consiste num todo fechado, pronto e acabado, de proposies. Tal
carter essencial do logos fenomenolgico se funda no modo de ser do ente
investigador ou questionador: o ser-a, ente cuja compreenso de ser
24
caracterizada por uma circularidade hermenutica; dadas as razes existencirias ou
nticas da analtica, segue-se que a investigao de uma ontologia fundamental,
como possibilidade existencial assumida, tem de seguir essencialmente o modo de
ser desse ente: ou seja, tem de se mover numa circularidade. Disso se segue que o
logos fenomenolgico da analtica essencialmente algo in fieri, vale dizer, sempre
exposto a repeties, a revises, dos resultados obtidos, jamais feito em definitivo.
Para enveredarmos pelas questes principais desta seo, principiaremos
comentando o enraizamento ntico-existencirio da analtica existencial, inicialmente
nos reportando aos conceitos de existencirio (existenziell) e existencial
(existenzial). compreenso de sua prpria existncia, que perfaz o ser-a no que
ele , Heidegger chamou de existenciria: Existenziell aplica-se ao leque de
possibilidades aberto para o Dasein, a [sic] compreenso que delas possui e a [sic]
escolha que faz (ou recusa) entre elas (INWOOD, 2002, p. 60). O existencirio ,
pois, aquele domnio do prprio ser como questo inescapvel ou incontornvel: no
h como a prpria existncia deixar de ser assunto contnuo, permanente, para o
ser-a. Como diz Heidegger em Introduo Metafsica: Ningum salta a prpria
sombra (1958, p. 152)17. O seu prprio ser a questo incontornvel do ser-a;
como conseqncia, ele tem sempre de j ter decidido quem ele , o que ele faz,
quais so suas possibilidades agarradas, quais as depostas, etc. Tal o sentido em
que Heidegger diz do ser-a que ele responde por seu ser, ou seja, que est
entregue responsabilidade (ist... berantwortet, cf. SZ, p. 42) de seu ser ou
entregue responsabilidade de ter que ser (zu sein, cf. SZ, p. 42 e p. 134)18.
questo do existir o ser-a responde o tempo todo, desde que exista e at que cesse
de existir. Tal responsabilidade tal estar j sempre respondendo questo: quem
sou? , tal ter que ser o que se , a marca do ser-a, a sua distino constitutiva.
Mas tal compreenso de seu prprio ser ainda no corresponde,
necessariamente, ao esforo filosfico de uma elaborao (Ausarbeitung) ontolgica
explcita ou seja: de uma explicitao conceitual da existencialidade
(Existenzialitt), isto , da estrutura existencial da existncia humana. Eis o porqu
17 bem verdade que Heidegger menciona tal provrbio em outro contexto; mas, de todo modo, a sentena elucidativa no nosso caso. 18 Heidegger chega a falar do ser-responsvel do ser-a (berantwortetsein, SZ, p. 135). Uma determinao mais completa do ser-responsvel do ser-a Heidegger nos oferece no 58, ao discutir o fundamento nulo do projeto lanado. No nos ocuparemos aqui, porm, de tais desdobramentos.
25
de Heidegger dizer que o ser-a seja essencialmente pr-ontolgico (vorontologisch,
cf. SZ p. 12): pois se, por um lado, nele reside a possibilidade de elaborao
temtica de uma ontologia uma vez que ele o ente cuja distino consiste em
compreender o ser, em ser a prpria compreenso de ser , por outro, ele bem pode
to-somente ocupar-se de coisas outras no curso da sua existncia que no essa
tarefa ontolgica ou filosfica. Ou seja: do ponto de vista existencirio, o mais das
vezes o ser-a caracterizado por uma compreenso de ser implcita ou pr-
conceitual, isto , no elaborada tematicamente. A falta de uma elaborao
conceitual acerca de seu modo de ser no lhe afasta o carter (pr-) ontolgico;
mesmo que no se aplique a trazer a conceito sua constituio ontolgica
especfica, o ser-a no deixa de ser o lugar, o a (Da), de onde irromperia todo o
conhecimento ontolgico possvel.
Se o ser-a a fonte de onde h de brotar uma ontologia fundamental, isso
significa basicamente que uma tal ontologia dever ser elaborada por ele mesmo; ou
seja, o ser-a tem de se aplicar, comportando-se da maneira apropriada para tanto, a
tornar explcito no que consista o seu prprio ser se ele quiser ver de fato uma tal
ontologia fazer-se pesquisa efetiva. A pesquisa filosfica, assim, uma possibilidade
a ser escolhida, uma possibilidade que o ser-a tem de existenciariamente assumir,
ou no ter conquistado conhecimento ontolgico nenhum. Comentando a
peculiaridade do projeto filosfico heideggeriano, Reis nos aclara o que afirmamos,
ao notar que:
[...] a filosofia mais um comportamento do que um sistema de enunciados, teses e argumentos. O filosofar, assim como todo comportamento na vida fctica, tambm manifestao da vida. Nesse sentido, [...] tambm o filosofar execuo (Vollzug), consumao do viver. Em Ser e tempo, essa afirmao posta em termos de possibilidade existencial: a filosofia , como qualquer outra possibilidade constitutiva do existir, uma possibilidade que apenas tem subsistncia quando algum se projeta e sustenta nela (2001, p. 611).
A filosofia concebida por Heidegger essencialmente como filosofar, como
um movimento mesmo no qual a existncia pode se projetar, como um modo de
26
existir, como um comportamento possvel. Enfim, o decisivo aqui compreender em
toda a envergadura a afirmao de Heidegger de que:
A analtica existencial, por sua vez, est, em ltima instncia, enraizada existenciariamente, i. , onticamente. Apenas se o prprio questionar filosfico-investigativo for existenciariamente assumido como possibilidade de ser de cada ser-a existente, haver a possibilidade de uma abertura da existencialidade da existncia e, com isso, a possibilidade da apreenso conceitual de uma problemtica em geral suficientemente fundada em sentido ontolgico (SZ, p. 13-14).
O filosofar s se funda, pois, existenciariamente, como possibilidade
assumida; Heidegger, porm, no pe o filosofar apenas como mais uma
possibilidade do existir entre inmeras outras, a qual poderia ser indiferentemente
alinhada ao lado de qualquer outra, nivelando-se a toda e qualquer outra
possibilidade do existir. No; como dissemos em 1.1, o questionar o sentido do ser
, de todo questionar possvel desse ente, o mais concreto e mesmo o principal (cf.
SZ, p. 9): e isso porque tal possibilidade existenciariamente assumida de questionar
o ser aquela na qual o ser-a atingido essencial e radicalmente por aquilo sobre
que questiona, experimentando uma retrorreferncia ou referncia prvia (Rck-
oder Vorbezogenheit, cf. SZ, p. 8) isto , em nossas palavras, uma referncia
circular do questionado (o ser) ao questionar (como possibilidade
existenciariamente assumida deste ente que se define por compreender o ser: o ser-
a). O ser-a , existe: constitui-lhe o ser a compreenso do ser; se ele faz do ser em
geral a sua questo, isto significa que o que ele encontra-se essencialmente em
jogo ou em questo nessa sua possibilidade em que se sustenta, uma vez que o que
compreendemos como ser de um ente em especial encontra-se implicado no
conceito de ser em geral. Desse modo, o ser-a no poder colocar-se a salvo do
que pretende descobrir no caso de uma tal investigao circular: ser atingido por
aquilo sobre que se questiona, ser tomado de assalto pelo que est em questo,
peculiar a um tal projeto filosfico.
27
, pois, preciso tornar explcito o ser do ente cuja distino a prpria
possibilidade do questionar (filosfico) sobre o sentido do ser radicalizando e
explicitando seu modo de ser essencial: a compreenso de ser em princpio no
temtica. Diz-nos Heidegger: A questo do ser no seno a radicalizao de uma
tendncia de ser [Seinstendenz] essencialmente pertencente ao ser-a mesmo, a da
compreenso de ser pr-ontolgica (SZ, p. 15)19.
A elaborao explcita da existencialidade consiste, desse modo, na
apreenso conceitual dos caracteres ontolgicos prprios do ser-a: ou seja, consiste
na apreenso dos existenciais. Como veremos adiante, os existenciais no podem
ser confundidos com as categorias, que so os caracteres ontolgicos pertencentes
ao ente intramundano. Portanto, porque em sua condio existenciria j est
compreendido o princpio (ou: a condio de possibilidade) de toda ontologia que
a compreenso do ser em geral , justamente por isso que a colocao da
questo do ser depende de uma elaborao temtica, ou seja, explcita, dessa
compreenso de ser constitutiva do ser-a. , pois, da do fato de o ser-a ser a
abertura para o ser que o deslindamento da questo do ser reclama uma prvia,
preparatria, analtica ontolgica desse ente.
No que ento diz respeito ao carter preparatrio da analtica existencial,
devemos notar que no , pois, por acaso ou arbtrio infundado que o acesso a uma
ontologia fundamental se d na elaborao temtica da compreenso de ser do ser-
a: antes, porque o ser-a pr-ontolgico. A colocao explcita e transparente
da questo sobre o sentido do ser exige a prvia e adequada explicao de um ente 19 de se notar que mesmo em 1957, por ocasio da conferncia O princpio da identidade (Der Satz der Identitt), Heidegger continua pensando o homem no segundo a representao metafsica do animal rationale, que na modernidade torna-se subiectum, mas como ser-a, como abertura para o ser, como clareira (Lichtung, termo que surge j em Ser e tempo cf. SZ, p. 133): Manifestamente, o homem um ente. Como tal, pertence, como a pedra, a rvore e a guia, ao todo do ser. Pertencer significa aqui ainda: inserido [eingeordnet] no ser. Mas o elemento distintivo do homem consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser, est posto em face dele, permanece relacionado com o ser e assim lhe corresponde [entspricht]. O homem propriamente esta relao de correspondncia [Bezugentsprechung] e somente isto. Somente [nur] no significa limitao, mas uma plenitude [berma]. No homem impera um pertencer ao ser; este pertencer escuta o ser, porque a ele est entregue como propriedade. E o ser? Pensemos o ser em seu sentido primordial como presena [Anwesen]. O ser se presenta [anwest] ao homem, nem por acidente nem por exceo. Ser somente e permanece enquanto aborda o homem pelo apelo [Anspruch]. Pois somente o homem, aberto para o ser, propicia-lhe o advento enquanto presentar. Tal presentar necessita do aberto de uma clareira [Lichtung] e permanece assim, por esta necessidade, entregue ao ser humano, como propriedade. Isto no significa absolutamente que o ser primeira e unicamente posto pelo homem. Pelo contrrio, torna-se claro (1957, udio da conferncia por ns traduzido e transcrito).
28
(o ser-a) no que diz respeito ao seu ser (SZ, p. 7). por isso que na elaborao
temtica da existencialidade da existncia (isto , na explicitao das estruturas
constitutivas da existncia, do modo de ser do ser-a), chamada analtica do ser-a
(ou: analtica existencial, analtica ontolgica do ser-a), que est o caminho ou a via
para o desenvolvimento concreto da questo do ser; ou seja, a reside a condio de
possibilidade metdica (a conditio sine qua non) do deslinde dessa questo. Desse
modo, o caminho metdico de Ser e tempo parte de uma elaborao ou explicitao
conceitual da compreenso de ser do ser-a, visando com isso a deslindar o
questionamento do ser enquanto tal.
A crtica que Heidegger dirige tradio ontolgica consistir na denncia da
falta de uma analtica do ser-a: a tradio pretendeu interpretar o ser tomando por
referencial, por modelo ontolgico, o ser do ente intramundano (a Vorhandenheit em
sentido amplo), no conseguindo, desse modo, alcanar o horizonte adequado para
uma pesquisa ontolgica radical:
O problema da interpretao do ser do ente j no se levanta, com efeito, a partir de uma orientao unilateral para o ente pr-dado, o que Heidegger denomina a Vorhandenheit, e passa a incluir uma investigao sobre o acontecimento da prpria doao (sobre o dar-se do es gibt Sein) que no advm seno com a abertura da existncia humana. A interpretao do ser implica, assim, necessariamente a analtica do Dasein (DASTUR, 1990, p. 53).
De modo mais preciso, o que podemos dizer acerca desse fim da analtica
existencial que lhe compete liberar, fixando-o conceitualmente, o horizonte
transcendental para o deslindamento da questo do ser. Por horizonte
transcendental, sem que nos alonguemos em discusses que nos remeteriam a
distncias inalcanveis para os limites do presente trabalho20, entendemos a
instituio conceitual ou exegese (Interpretation) da condio de possibilidade da
colocao da questo do ser. Tal ser o conceito de temporalidade ecsttico- 20 Referimo-nos discusso acerca do carter propriamente transcendental do projeto filosfico de Ser e tempo (ou da autoconcepo filosfico-transcendental dessa obra, segundo a expresso de Gadamer cf. 2002, p. 18), o que envolveria uma avaliao tanto da recepo, por parte de Heidegger, da filosofia kantiana, da tradio do neokantismo e da filosofia husserliana, como do conceito heideggeriano de transcendncia, coisa que no poderemos fazer aqui.
29
existencial (Zeitlichkeit), que constitui, de modo fundamental, o sentido do ser do ser-
a: Mas com essa interpretao do ser-a como temporalidade, a resposta questo
condutora sobre o sentido do ser em geral ainda no est dada. Antes o que est
preparado o solo [Boden] para a conquista dessa resposta (SZ, p. 17). Heidegger
chama horizonte a tal solo por pretender com tal palavra, presumimos, evocar o
timo grego (limite, separao; horizonte; significativo sobretudo quando
temos em mente a conexo da palavra com o verbo , dividir, separar, delimitar,
definir). O horizonte sempre o que divisa a viso, ou seja, o que delimita o
alcance da vista; analogamente, a compreenso do ser em geral encontra sua divisa
no tempo. De fato, a tese de Heidegger acerca do tempo bem essa, uma vez que
afirma:
[...] deve-se mostrar, a partir do solo da questo elaborada sobre o sentido do ser, que e como a problemtica central de toda ontologia est enraizada no fenmeno do tempo devidamente visto e explicado.
Se o ser deve ser concebido a partir do tempo, e os diferentes modos e derivados de ser em suas modificaes e derivaes de fato so compreensveis a partir da perspectiva do tempo, ento assim o ser mesmo e no apenas o ente enquanto est no tempo que se fez visvel em seu carter temporal (SZ, p. 18).
Ser, portanto, apenas a partir da considerao, primeiramente, da
temporalidade do ser-a que ento permitir compreender a temporariedade
(Temporalitt) do prprio ser que uma primeira resposta concreta questo do ser
poder ser dada. Resposta, em Heidegger, no significa uma sentena cega e
isolada que pode circular como moeda lastreada por uma verdade dogmtica;
antes, A resposta fornece, segundo o seu sentido mais prprio, uma prescrio para
a pesquisa ontolgica concreta [...] e apenas isso (SZ, p. 19). Ou seja, o que uma
resposta fornece, no caso da ontologia fundamental, to-somente uma indicao
concreta para o prosseguimento da pesquisa, no um resultado com o qual devesse
a filosofia se contentar.
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Daqui, da tese da temporariedade do ser, que Heidegger compreender o
motivo do primado de uma determinada interpretao do ser desde a Antigidade
a saber: o motivo do primado da Vorhandenheit como medida da interpretao do
ser. Pois ele nota que, comentando o projeto filosfico de Ser e tempo21, este:
[...] se v posto diante da tarefa de exegese [Interpretation]22 do solo da ontologia antiga luz da problemtica da temporariedade. Daqui fica patente que a antiga interpretao [Auslegung] do ser do ente orientou-se pelo mundo ou natureza em sentido amplo, e que ela de fato conquistou a compreenso do ser a partir do tempo. O documento exterior do que afirmamos ainda que certamente apenas exterior a determinao do sentido do ser como ou , que, do ponto de vista ontolgico-temporal, significa presena [Anwesenheit]. O ente apreendido em seu ser como presena, isto , ele compreendido por referncia a um determinado modo do tempo o presente [Gegenwart, em itlico, entre aspas] (SZ, p. 25).
Ou seja: amparando a primazia da Vorhandenheit como o conceito de ser por
excelncia, est a interpretao temtica do tempo (pretendendo-se originria) como
sinnimo de presena. Por tal razo que podemos dizer que a crtica de Heidegger
ao conceito tradicional de ser seja tanto uma crtica tese de que ser sinnimo de
Vorhandenheit, como uma crtica orientao temporal pelo presente (como o
horizonte que delimita tal conceito de ser mesmo), que constitui tal conceito de ser.
Consideremos, agora, o carter provisrio da analtica. Em estgio j bastante
avanado de Ser e tempo, Heidegger reconhece estar partindo de uma certa
pressuposio ontolgica na elaborao da analtica existencial, que no dever ser
contestada ou desmentida, mas, antes, explicitamente discutida. A filosofia nunca
querer desmentir seus pressupostos, mas tambm no dever se limitar a
confess-los. Ela concebe os pressupostos e os leva, em conexo com aquilo de
21 Especificamente, Heidegger refere-se aqui etapa de destruio (Destruktion) da histria da ontologia. 22 Traduzimos Interpretation por exegese para no permitir confuso com o conceito existencial de Auslegung, interpretao, largamente utilizado por Heidegger em Ser e tempo, fiando-nos em Joo Paisana: Quando Heidegger fala de uma interpretao temtica, expressa isto , explcita , utiliza no o termo Auslegung, mas Interpretation (que traduzimos por exegese) [...] (1992, p. 286, nota 92).
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que so pressupostos, a um desdobramento mais penetrante (SZ, p. 310).
Referindo-se distino fundamental estabelecida no 43 de Ser e tempo entre os
modos de ser, respectivamente, do ser-a (existncia) e do ente intramundano
(chamado aqui de realidade, Realitt), Heidegger nota a a presena de um certo
contedo ontolgico j necessariamente pressuposto, e que dever ento ser
criticamente discutido:
Mesmo, porm, essa idia de existncia [...] j abriga em si um determinado contedo ontolgico [ontologische Gehalt], se bem que no explcito, que, tanto quanto a idia de realidade [Realitt] que lhe contraposta, pressupe uma idia de ser em geral. [...] Com efeito, ambas dizem ser (SZ, p. 314).
Um conceito de ser em geral precede a compreenso e a explicitao
conceitual de possveis modos de ser, pois, na considerao desses, no possvel
abrir mo de j compreender, ainda que de modo implcito, o que significa ser. Ou
seja: a analtica existencial , por um lado, a etapa preparatria para o deslinde da
questo sobre o ser em geral; por outro lado, a analtica, ao principiar, no tem como
suspender o juzo (ontolgico), na considerao do modo de ser de seu ente
temtico (o ser-a), para deixar de j pressupor um determinado conceito de ser em
geral. Com efeito, desde o incio de Ser e tempo, Heidegger notara que a questo do
ser, tendo por tarefa preparatria a analtica de um ente (ou seja: tendo de, para
considerar o ser em geral, principiar pela considerao do modo de ser de um ente
em especial), seria positivamente caracterizada por uma circularidade. Que tal
circularidade seja viciosa que seja, enfim, uma falcia demonstrativa coisa
que Heidegger rejeita, no 2., como objeo formal estril (cf. SZ, p. 7 e 8). Mesmo
na altura do 63 da obra, o problema da circularidade notado:
Mas a idia de ser ontologicamente esclarecida no dever ser conquistada apenas por meio da elaborao da compreenso de ser pertencente ao ser-a? Esta, contudo, no se deixa originariamente apreender seno sobre o solo de uma exegese originria do ser-a, seguindo-se o fio condutor da idia de existncia. No se torna,
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enfim, totalmente manifesto que o problema da ontologia fundamental colocado se move num crculo? (SZ, p. 314).
A pergunta de Heidegger na ltima frase claramente retrica, pois se trata
de uma afirmao: dada a peculiaridade investigativa da analtica do ser-a, uma tal
circularidade na investigao incontornvel. Ser somente com a apresentao
dos existenciais da compreenso (Verstehen) e da interpretao (Auslegung), nos
31 e 32, que a circularidade hermenutica ser explicitamente avaliada como
caracterstica do modo de ser do ser-a. Ora, dadas as razes existencirias ou
nticas da analtica, assunto j aqui comentado, segue-se que a investigao de
uma ontologia fundamental, como possibilidade existencial assumida, tem de seguir
essencialmente o modo de ser desse ente: ou seja, tem de se mover nessa
circularidade essencial:
Sendo, ele [o ser-a] j sempre se projetou para possibilidades determinadas de sua existncia e, em tais projetos [Entwrfen] existencirios, projetou junto [mitentworfen], de modo pr-ontolgico, isso que chamamos de [os conceitos de] existncia e ser. Pode ento esse projetar-se essencial do ser-a ser recusado pesquisa que na medida em que , como toda pesquisa, tambm ela, um modo de ser do ser-a que se abre quer elaborar e trazer a conceito a compreenso de ser pertencente existncia? (SZ, p. 315).
Outra pergunta retrica.
Dessa circularidade inescapvel, portanto, que resulta que a tarefa de uma
analtica do ser-a deve ser provisria: interpretar um ente em seu ser no pode
prescindir j de um prvio conceito de ser em geral; a analtica deve, pois, estar
exposta essencialmente possibilidade de uma reviso futura dos resultados
obtidos, porque a obteno (futura) do conceito de ser em geral dever ento
repercutir no que j foi conquistado. No por outra razo que Heidegger afirma que
[...] a analtica preparatria do ser-a exige uma repetio em bases ontolgicas
mais elevadas e prprias (SZ, p. 17), nisso consistindo, pois, o fato de que a
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analtica [...] no apenas incompleta23, seno em primeiro lugar tambm
provisria (SZ, p. 17, grifo no original). A repetio mencionada o ndice desse
carter provisrio da analtica. De fato, em um ponto bastante avanado da obra,
Heidegger nota que:
A exegese das variantes de ser de tudo de que dizemos que necessita, porm, de uma idia suficientemente clara de ser em geral. Enquanto esta no for conquistada, a anlise temporal do ser-a que est sendo repetida permanece incompleta e crivada de obscuridades [...]. A anlise existencial e temporal do ser-a exige, por seu turno, uma nova repetio no mbito da discusso fundamental do conceito de ser (SZ, p. 333).
H, pois, a exigncia de uma dupla repetio da analtica: primeiramente no
mbito temporal (repetio do obtido na primeira seo da obra), e, em segundo
lugar, to logo se chegue a uma primeira explicitao do conceito de ser em geral
evidenciando-se, assim, o seu carter provisrio. Com efeito, por tal razo que
Heidegger nos adverte no encerramento de Ser e tempo ( 83): o que se conquistou
ao longo de toda a obra no passa de um ponto de partida [Ausgang] da
problemtica ontolgica (cf. p. 437). O que foi conquistado no nada que deva
consistir em motivo para a filosofia se tranqilizar. Sem dvida, Heidegger reconhece
como meritrio ter estabelecido conceitualmente, na analtica empreendida, a
diferena entre o ser do ser-a existente e o ser do ente no dotado do carter de
ser-a (nichtdaseinsmige Seiende, cf. SZ, p. 436-7), do ente intramundano; mas,
com isso, o decisivo que a pesquisa ontolgica da analtica compreendida como
estando ainda e apenas a caminho (unterwegs, cf. SZ, p. 437). O estabelecimento
da diferena entre os modos de ser do ser-a e do ente intramundano, enfim, tal
como foi feito, , tambm ele, provisrio.
Logo, a analtica no eterna quanto aos seus resultados; antes,
transiente, vale dizer, algo sempre em via de se tornar. Ademais, podemos chamar
tambm provisria analtica pelo fato de que ela no um fim em si mesmo, mas
23 Incompleta no sentido de no esgotar todo o conhecimento ontolgico que se possa ter do ser-a, ao contrrio do que se pensaria no caso de uma antropologia propriamente filosfica.
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est em funo da colocao da questo do ser, de tal modo que ela [...] encontra-
se totalmente orientada para a tarefa condutora da elaborao da questo do ser
(SZ, p. 17).
importante notar que as duas caractersticas da analtica (o carter
preparatrio e o carter provisrio) articulam-se de modo inerente. De um lado, a
analtica do ser-a a condio de possibilidade de uma investigao ontolgica
radical, de modo que s por meio dela que se pode preparar a liberao do
horizonte transcendental da compreenso do ser em geral, que o tempo; por outro
lado, to logo este [...] horizonte para a mais originria interpretao do ser [...] (SZ,
p. 17) tenha sido por ela liberado, alcanado, a analtica preparatria do ser-a
carecer de uma repetio em bases ontolgicas mais elevadas e prprias nisso
consistindo, pois, como enfatiza Heidegger, o fato de que a analtica em seu todo
seja provisria (cf. SZ, p. 17).
, portanto, a partir de uma explicitao ou descrio fenomenolgica da
auto-interpretao implcita (explicitao ou descrio da compreenso de ser pr-
ontolgica) do ser-a, ou seja, de uma hermenutica ou exegese (Interpretation) do
ser-a, que a questo do ser poder ser concretamente colocada. Tal explicitao
deve ser descritiva porque tem de perseguir o fenmeno do ser-a de modo
fenomenolgico, isto , sem lhe impor conceitos prvios de modo desavisado, mas
sim o descrevendo tal como se mostra, seguindo-lhe o modo de aparecer, o modo
no qual se faz fenmeno. Urge, pois, que se empreenda, antes de pr de modo
decisivo a questo do ser, a seguinte investigao: quem o ser-a?24
24 Ou: quem o homem? desde que tomemos a palavra homem numa acepo no-antropolgica (no-emprica, no-positiva), mas propriamente transcendental (cf. STEIN, 1993, p. 34).
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Captulo II: A tese da primazia da Vorhandenheit e a distino
ntico-ontolgica do ser-a
2.1 A tese da primazia da ontologia da Vorhandenheit; a necessidade de uma destruio da ontologia
Comentando o fato de que o Conde York Von Wartenburg, em
correspondncia trocada com seu amigo Wilhelm Dilthey, chamava o ente no-
histrico ou seja, para Heidegger, o nicht daseinsmige Seiende, o
Vorhandensein, o ente restante, ente que no tem o modo de ser do ser-a pura e
simplesmente de ntico, para diferenci-lo do histrico (a vida), o autor de Ser e
tempo diz: Isso apenas o reflexo do inquebrantvel domnio da ontologia
tradicional, que, proveniente da antiga colocao da questo sobre o ser, mantm a
problemtica ontolgica numa estreiteza [Verengung] fundamental (SZ, p. 403).
Dessa citao, o que nos importa aqui perguntar: qual a estreiteza fundamental
que marca a ontologia antiga? E o que significa o inquebrantvel domnio que ainda
exerce tal estreiteza ontolgica?
De sada, devemos notar que Heidegger nos diz ser essa estreiteza um
domnio inquebrantvel; tal domnio exerce-se sobre toda a tradio filosfica, da
Antigidade at, nomeadamente aqui, pelo menos as reflexes de York. Tal domnio
a prevalncia da idia segundo a qual o que (isto , o ente, o ntico) aquilo que
tem o modo de ser da Vorhandenheit, aquilo, portanto, que no o histrico, que
no a vida. Em que pese sua tendncia para compreender a historicidade, York
mesmo flagrado por Heidegger tendo de admitir que o propriamente histrico no
, seno vive (cf. SZ, p. 401). justamente essa recusa de admitir que o histrico
seja que denuncia, para Heidegger, o fato de que a tradio filosfica tenha um
conceito estreito do que seja ser: o conceito de Vorhandenheit. Quando algo como o
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fenmeno do ser-a comeou a despontar numa reflexo de cunho ontolgico (pois
Heidegger v em Dilthey nomeadamente, mas tambm, provvel, em York, uma
ontologia do ser-a in nuce, ou, ao menos, o impulso para uma tal investigao), a
sada encontrada, dada a atual fora, vigncia, primazia, da ontologia antiga, foi
dizer desse fenmeno que ele no , mas to-somente vive.
Ora, tal observao de Heidegger no deixa de se fazer acompanhada da
constatao de que os conceitos tradicionais da ontologia revelam-se de todo
inadequados para exprimir a realidade propriamente histrica, isto , para exprimir
a consistncia ontolgica do ente que propriamente histrico do ser-a. O
histrico, de fato, no , se ser define-se como Vorhandensein der Natur (cf. SZ, p.
401). A estreiteza do conceito de ser da ontologia antiga representa, desse modo,
um verdadeiro bice a uma investigao ontolgica que tenha por tema o ser-a.
Esse bice no significaria, contudo, apenas que o ser-a tivesse sido
vislumbrado uma vez em seu carter de ser especfico, mas, em seguida (ou nesse
instante mesmo), tivesse sido deixado de lado devido a preconceitos metodolgicos.
No podemos compreender assim o papel que a tese da primazia da ontologia da
Vorhandenheit desempenha na obra de Heidegger, pois a tese de Ser e tempo ser
a de que, dada tal primazia, o ser-a no tenha podido ser concebido em sua
especificidade ontolgica (em seu carter de ser especfico) pela tradio. Isso
porque tal tese pretende que o ente como um todo, o ente como tal, tenha sido
interrogado e concebido a partir do registro interpretativo, metodolgico e conceitual
da Vorhandenheit. Desse modo, Heidegger no estaria apenas dizendo que o ser-a
tenha sido descurado por uma investigao ontolgica desde a Antigidade, mas
sobretudo que esse ente foi concebido como um Vorhandenes, como
Vorhandensein, como mais um ente entre outros, possuindo essencialmente um
mesmo e nico modo de ser fundamental e hegemnico: o da Vorhandenheit.
Com isso, podemos dizer que, no diagnstico heideggeriano, a tradio tenha
operado uma verdadeira transgresso categorial25 no que diz respeito ao ser-a:
aplicou a ele conceitos (ontolgicos) que no lhe cabiam, porque hauridos de outro
domnio do ente (de outro modo de ser). Seria como se a ontologia antiga tivesse
25 Valemo-nos da expresso no sentido em que Reis a emprega (cf. 2000, p. 281), para designar a atribuio inapropriada de caracteres categoriais ao ser-a.
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pensado: se o ente em geral vorhanden, ento o ente que ns somos tambm h
de o ser; se as categorias so os caracteres ontolgicos do ente em geral, ento o
ser-a deve ser compreendido e explicitado categorialmente, com os mesmos meios
de que se deve servir na compreenso e conceituao do ente em geral. Tal
conceituao do ser como Vorhandenheit inflecte, portanto, sobre a determinao
conceitual mesma do fenmeno do ser-a:
E, ademais, porque a compreenso vulgar de ser compreende ser indiferentemente como Vorhandenheit, o ser do histrico-mundano26 [Welt-Geschichtliche] experimentado e interpretado no sentido do Vorhandene que vem, se apresenta e desaparece [ankommende, anwesende und verschwindende Vorhandene] (SZ, p. 389).
Por transgresso categorial, portanto, queremos aqui indicar a atribuio de
caracteres categoriais ao ser-a. a tese de Heidegger: o ser-a foi sempre, ao longo
da tradio metafsica, interpretado categorialmente isto , segundo o modo de
interrogao e concepo do ente intramundano, categorial , e no
existencialmente.
digno de nota mencionar que Heidegger compreende que essa hegemonia
da Vorhandenheit de origem grega; com isso deve ficar indicado que o
relacionamento de Heidegger com a tradio filosfica grega essencialmente
crtico. Se, de um lado, foram os gregos que puseram em marcha pela primeira vez
um questionamento filosfico autntico isto : ontolgico , e, com isso, as teses
ontolgicas gregas encontram-se, muitas delas, contempladas respeitosamente em
Ser e tempo, de outro lado, Heidegger nota que na nascente mesma da ontologia a
fonte j secou to logo tenha jorrado: os gregos mesmos no teriam tido olhos para
outro conceito de ser que no fosse esse que at hoje predomina. Como bem
observa Brague, o retorno aos gregos que Heidegger empreende nada tem que ver
com o zurck zu Kant dos neokantianos; antes, trata-se de um retorno crtico: trata-
se de, indo na sua direo, ultrapass-los, entender os gregos melhor do que eles
entenderam a si mesmos (cf. 1991, p. 401-2). Talvez seja forte e mesmo
26 O histrico-mundano, nessa citao, o ser-a.
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exagerada, mas no deixa de ter l a sua verdade, a afirmao desse comentador
de que Heidegger pretendesse, com Ser e tempo, escrever o texto original da
filosofia jamais escrito e puramente possvel do qual a tradio toda no foi
seno cpia, parfrase (cf. p. 419-420). De todo modo, fato que, mesmo no caso
da ontologia do ente intramundano (do nicht daseinsmige Seiende), a estreiteza
da ontologia antiga patente para Heidegger:
Os gregos tinham um termo adequado para as coisas: , isto , aquilo com que se tem o que fazer na lida () ocupada. Contudo eles deixaram na obscuridade, do ponto de vista ontolgico, justamente o carter pragmtico especfico dos e os determinaram de sada como meras coisas (SZ, p. 68).
Mesmo, portanto, no caso do conceito de manualidade (Zuhandenheit)
mesmo no domnio da ontologia do ente intramundano, portanto , Heidegger
pretende estar dando um passo que no fora dado pela tradio. Com efeito,
Heidegger destaca o fato de que a Vorhandenheit (stricto sensu) um fenmeno
derivado, fundado, quando em comparao com a manualidade, que constitui o em-
si (An-sich) do ente intramundano (cf. SZ, 15 e 16), de modo tal que despe a
pretenso de originalidade da ontologia antiga, baseada no primado da
Vorhandenheit, isto , baseada na (pretensa) originalidade e no carter fundamental
e primrio (pretensos) de tal conceito de ser.
Mas Heidegger pretende ir ainda mais longe: a tradio teria interpretado o
ser-a categorialmente; a estreiteza do conceito de ser atinge no s a ontologia no
que diz respeito determinao do modo de ser do ente intramundano, mas
sobretudo motiva a transgresso categorial no que diz respeito considerao
temtica do ser-a. O seu diagnstico crtico, de fato, varre um amplo espectro, que
vai da ontologia grega de Plato e Aristteles filosofia husserliana: toda a tradio
filosfica teria interpretado o fenmeno do ser-a a partir dos caracteres ontolgicos
pertencentes ao ente intramundano. Desse modo, o fenmeno do ser-a a abertura
para o ser, o ser-no-mundo, o ente histrico foi desde sempre vitimado pela
transgresso categorial. Com isso, Heidegger pretende pr a nu o preconceito
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ontolgico todo da filosofia antiga, mas tambm da filosofia moderna e
contempornea, ainda que, expressamente, o pensamento moderno tenha
pretendido se colocar numa posio crtica e inaugural em relao ontologia
antiga; tal preconceito o conceito antigo de ser de ser como Vorhandenheit. Ou
seja, o fenmeno do ser-a permaneceu essencialmente deturpado para a filosofia,
que, desde a Antigidade grega, seria devedora de uma implcita27 ontologia
baseada na Vorhandenheit28.
Uma primeira tentativa, em Ser e tempo, de explicar a causa da exegese do
ser em geral como sinnimo de Vorhandenheit vemos no seguinte trecho:
A ontologia antiga tem por solo exemplar de sua interpretao de ser o ente que se encontra dentro do mundo [isto , intramundano]. Como modo de acesso a ele vale o ou ento o . a que ela encontra o ente. O ser desse ente precisa, porm, ser apreendido em um (deixar ver) distinto, de modo que esse ser seja compreensvel antecipadamente como aquilo que ele e em cada ente j . A interpelao j sempre prvia do ser na discusso () do ente o (SZ, p. 44).
Para Heidegger, desse modo, os gregos tomaram por parmetro do conceito
de ser (em geral) o modo de ser do ente intramundano e da que deriva o
primado da ontologia da Vorhandenheit. A base exemplar ou o modelo da ontologia
antiga o ente intramundano num determinado como (Wie) ou modo de ser em que
pode surgir, tornar-se acessvel, categorialmente: o da Vorhandenheit; a base
exemplar , assim, o vorhandene Seiende, o Vorhandene (o ente disponvel). Isso
no significa, porm, que os gregos tenham sido algo como positivistas avant la
lettre, que tenham se contentado, em sua investigao ontolgica, com aquilo que
lhes fosse dado empiricamente. Em verdade, o que os gregos fizeram foi, mesmo na
investigao ontolgica daquilo que no fosse um ente intramundano, eleger como
27 Implcita porque, segundo Heidegger, ainda que se trate no de ontologia, mas, por exemplo, de teoria do conhecimento, um tal pressuposto ontolgico o de que ser Vorhandenheit, categoria encontra-se sempre vigente de modo sub-reptcio na tradio. 28 Ou, tambm, baseada na presentidade, como observa Brague (cf. 1991, p. 408; cf. tambm nossa nota de rodap sobre a traduo de Vorhandenheit por disponibilidade, in fine, sobre as acepes temporais do termo).
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modelo do que , como modelo do que existe29, o ente intramundano; assim, por
exemplo, que mesmo a investigao antiga sobre a , a alma do homem, teria
sido compreendida sob a rubrica da Vorhandenheit.
De modo mais fundamental, no entanto, devemos lembrar aqui o que j
mostramos em breves linhas em 1.2: a origem mesma do conceito de ser como
Vorhandenheit encontra amparo especialmente na exegese do tempo como sendo
originariamente presena (Anwesenheit). Em ltima instncia, portanto, o primado da
ontologia da Vorhandenheit encontra-se fulcrado no antigo conceito de tempo
(pretendendo-se originrio) como presente, que remonta a Aristteles (cf. SZ, p. 26).
Pois, diz-nos Heidegger, [] de acordo com o conceito antigo de ser
propriamente o que sempre [eigentlich ist, was immer ist] (1979, p. 241): ser
significa ser-presente; na modernidade, nomeadamente em Descartes, por
exemplo, ser ainda ser stndige (tambm: bestndige) Vorhandenheit, stndige
Verbleib, expresses que preservam e enfatizam a acepo temporal presente (cf.
SZ, p. 95 ss) o que mostra a pregnncia do antigo conceito de tempo ao longo da
tradio metafsica. Com efeito, todos os conceitos perifricos de que Heidegger se
serve para expor o conceito de Vorhandenheit (como os conceitos-qualificativos:
vorfgbar, vorfindlich, etc.) remetem, em ltima instncia, sempre a um certo modo
de temporalidade nele implicado: o do j presente (schon Anwesende). Ser o
conceito de presena (Anwesenheit), alis, que Heidegger preferir, em sua obra
madura, e que resumir as concepes de ser legadas pela tradio (cf. BRAGUE,
1991, p. 407-8; tambm nossa nota de rodap, in fine, acerca da traduo do termo
Vorhandenheit).
Portanto, seja para a ontologia