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A CONSTITUIÇÃO, A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O DESENVOLVIMENTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.
FRANKLIN VELOSO DE CASTRO , Oficial de Registro Público de Imóveis, Professor de Direito Civil na Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG – Campus Frutal, Especialista em Direito das Obrigações pela UNESP e Mestrando em Direitos Coletivos, Cidadania e Função Social pela UNAERP.
RESUMO: Vive-se no mundo jurídico um aparente paradoxo entre o desenvolvimento constitucional, face um Poder Legislativo pouco ativo e por pouco, inoperante, e um Supremo Tribunal Federal que, no particular das omissões legislativas, aparece proativo, tendente a suprir com interpretações judiciais tais omissões. Assim, no âmbito da jurisdição constitucional, pretende-se examinar este procedimento, analisando-se se está de acordo com as correntes doutrinárias atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Jurisdição constitucional. Construção legislativa. Omissão legislativa.
SUMÁRIO: Introdução – 1- Breves considerações. 2- J urisdição
e jurisdição constitucional. 3- A legitimidade espe rada da
jurisdição constitucional e o uso da hermenêutica p ara
alcançá-la. 4- O casuísmo em decisões do STF. Concl usão.
Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Quando se identifica a existência de um aparente paradoxo, o mesmo se
dá entre a jurisdição constitucional e o desenvolvimento legislativo que
deveriam ser harmônicos e paralelos, mas tem se demonstrado o contrário.
A jurisdição constitucional exercida pelo STF tem demonstrado, que para
além da interpretação do que está ou não de acordo com a Constituição, há
uma vontade da Corte Suprema em suprir o vácuo deixado pela inação do
Poder Legislativo, através de interpretações em que se estipulam
procedimentos e, verdadeiramente, normas.
Entretanto, estas normas não legisladas, seriam assim então
constitucionais, e se não forem quem poderá dizê-lo?
Como dizem Lenio Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima:
“é saber se é possível atribuir efeito erga omnes e vinculante às
decisões emanadas do controle difuso, dispensando-se a
participação do Senado Federal ou transformando-o em uma
espécie de diário oficial do Supremo Tribunal Federal em tais
questões”.1
Pode o Congresso andar a reboque do Supremo Tribunal Federal ou,
melhor dizendo, o fará?
Certamente no caso brasileiro, é o STF o “intérprete maior” da
Constituição, não sendo o único, é o maior e o último a dizer o que é e o que
não é constitucional, representando aquele órgão estatal preconizado por Peter
1 STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>
Häberle2. Os demais intérpretes da Constituição são, no seu dizer, em sentido
lato, todos os demais personagens que interagem com a mesma, já que “todo
aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este
contexto é, indireta ou, até mesmo, diretamente, um intérprete dessa norma”.3
O aparente conflito tem surgido quando, para além de interpretar as
normas – se constitucionais ou não face à Constituição – em razão da
existência mesmo de normas explícitas para determinados fatos concretos,
precipuamente em razão da omissão do legislador, o STF proceda em
julgamento à interpretação do fato, criando, com sua decisão, norma
reguladora daquela situação.
1- BREVES CONSIDERAÇÕES
A jurisdição constitucional decorre da força oriunda da Constituição. Se
agora não há dúvidas de tal força e da sua importância, tempo houve em que
se entendia a Constituição como uma norma geral de caráter orientador. Não
valia por si mesma, mas em consonância com as normas de caráter específico
e mesmo assim se fosse observada pelo legislador, submissa assim ao poder
político.
A verdadeira importância e dimensão da Constituição, da existência de
um poder intrínseco a ela mesma, e a consciência da necessidade e da real
submissão das pessoas e das normas a ela, foram muito posteriores à edição
dos primeiros textos constitucionais.
Konrad Hesse lecionava, com base em Ferdinand Lassalle, que
“questões constitucionais não são, originariamente, questões jurídicas, mas sim
2 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1997; reimpressão de 2002. 3 Ob. cit., p. 15.
questões políticas. Assim ensinam-nos não apenas os políticos, mas também
os juristas”.4
Leciona ainda Hesse que
“Tal como ressaltado pela grande doutrina, ainda não apreciada
devidamente em todos os seus aspectos – afirma Georg Jellinek
quarenta anos mais tarde – o desenvolvimento das
Constituições demonstra que regras jurídicas não se mostram
aptas a controlar, efetivamente, a divisão de poderes políticos.
As forças políticas movem-se consoante suas próprias leis, que
atuam independentemente das forças jurídicas”. Evidentemente,
esse pensamento não pertence ao passado. Ele se manifesta, de
forma expressa ou implícita, também no presente. É verdade
que hoje ele surge apenas de forma mais simplificada e
imprecisa, não se atribuindo relevância maior à consciência e à
cultura gerais, também contempladas por Lassalle como fatores
reais de poder.5
Mais adiante, na mesma obra, Hesse nos apresenta o início de suas
conclusões:
Em síntese, pode-se afirmar: a Constituição jurídica está
condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser
separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de
eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar
em conta essa realidade. A Constituição jurídica não configura
apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento
normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social.
As possibilidade, mas também os limites da força normativa da
4 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porta Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 9. 5 Ob. Cit., p. 09/10.
Constituição resultam da correlação entre ser (Seim) e dever ser
(Sollen).
A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à
realidade. Ela logra despertar “a força que reside na natureza
das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força
ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa
força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla
for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto
mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais
responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade
da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro
plano, como uma questão de vontade normativa, de vontade da
Constituição (Wille zur Verfassung).6
A Constituição jurídica não significa simples pedaço de papel,
tal como caracterizada por Lassalle. Ela não se afigura
“impotente para dominar, efetivamente, a distribuição de
poder”, tal como ensinado por Georg Jellinek e como,
hodiernamente, divulgado por um naturalismo e sociologismo
que se pretende cético. A Constituição não está desvinculada da
realidade histórica concreta do seu tempo. Todavia, ela não está
condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de
eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada,
necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrário, existem
pressupostos realizáveis (realizierbate Voraussetzungen) que,
mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força
normativa da Constituição.7
E continua o festejado autor
6 Ob. Cit., p. 24. 7 Ob. Cit., p. 25.
Aquela posição por mim designada vontade da Constituição
(Wille zur Verfassung) afigura-se decisiva para a práxis
constitucional. Ela é fundamental, considerada global ou
singularmente. O observador crítico não poderá negar a
impressão de que nem sempre predomina, nos dias atuais, a
tendência de sacrificar interesses particulares com vistas à
preservação de um postulado constitucional; a tendência parece
encaminhar-se para o malbaratamento no varejo do capital que
existe no fortalecimento do respeito à Constituição.
Evidentemente, essa tendência afigura-se tanto mais perigosa se
se considera que a Lei Fundamental não está plenamente
consolidada na consciência geral, contando apenas com um
apoio condicional.”
Assim então, conclui-se que a Constituição não se impõe por uma
“força” ou “poder físico” próprio, mas pela construção de uma consciência
coletiva do seu valor, de sua natural absorção se não por todas as pessoas,
pela maioria de uma população esclarecida, consciente e cônscia de seus
direitos e obrigações. Necessária, portanto, uma consciência constitucional,
com tudo que isto queira representar.
É oportuno colacionar a lição trazida por Geraldo Ataliba8, pois enfatiza
esta idéia:
Para Tércio Sampaio Ferraz Jr, “uma Constituição não é apenas
o seu texto, mas é, principalmente, uma prática”. Dizia Ruy
Barbosa que, ainda que a Constituição fosse tão perfeita, como
se tivesse sido baixada dos céus, o país haveria de ser julgado
não pelo seu texto, mas sim segundo o modo pelo qual a
pusesse em prática. Importa, assim, conhecer a Constituição,
para assegurar-lhe eficácia, realizando seus princípios, como
forma de tornar efetivos os desígnios que – bem ou mal – o
8 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros; 2º Ed., 4ª tiragem, atualizada por Rosolea Miranda Folgosi, 2007.
povo nela expressou. No passado não tivemos comportamento
institucional que pudesse abonar nossos foros de civilização,
como agudamente demonstrou Nélson de S. Sampaio, isto com
a agravante de que nossos Textos não vieram do Olimpo, nem
de seus arredores (com as honrosas exceções de 1891, 1934 e
1946).
Mesmo uma Constituição defeituosa é seguramente melhor do
que nada, na medida em que reduz o arbítrio e assegura os
direitos individuais. Incontestavelmente, se não for boa, é um
ponto de partida definido. Portanto, melhor que nada.9
Sendo a Constituição lei suprema, superior às demais, deve
prevalecer sobre todas as normas, o que requer a
desassombrada ação de uma magistratura culta e imparcial –
objetiva e subjetivamente imparcial, como quer Balladore
Pallieri, para ver configurado o Estado de Direito –,
magistratura, essa, que se mova expeditamente, provocada por
órgãos e agentes públicos e privados, empenhados no postular,
instar, pedir, questionar incansavelmente no sentido do
prestígio constitucional.10
2- JURISDIÇÃO E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL.
Antes, convém esclarecer a gênese, ou origem da jurisdição, e esta
nasce do “processo”.
Em direito, o processo é o conjunto de atos destinados a obter-se ou
garantir-se um direito na esfera judicial: objetiva a aplicação de uma norma, ou
a concreção da mesma através de uma decisão – sentença.
9 Ob. Cit., p. 16. 10 ATALIBA, Geraldo. Ob. Cit., p. 17.
Na lição de Paulo Hamilton Siqueira Jr11:
É o processo o instrumento para a composição das lides. Por
outro lado, é a garantia colocada à disposição das partes para a
correta aplicação da lei. Desta feita, o processo atua como
instrumento do Poder do Estado, aplicando a lei em face
daquele que a viola. De outra feita, protege sempre o interesse
público, o direito da personalidade, sobretudo da liberdade e
também do patrimônio do imputado. O direito processual
garantístico é o cerne da relação entre o direito processual e a
Constituição.
A evolução do Estado Democrático e Social de Direito traz ao
processo a finalidade de pacificação social. O desiderato do
Estado é o bem comum. Para alcançar esse objetivo desenvolve
várias atividades, dentre elas a prestação jurisdicional, que
reafirma a vontade da lei e consagra o bem comum.
A atividade jurisdicional do Estado, como manifestação de
poder, tem por objetivo não só a composição da lide e garantia
de direitos subjetivos, mas também a reafirmação de valores
consagrados pela sociedade. Desse prisma, cumpre ao processo
atingir dois objetivos: a vontade da lei ou a reafirmação dos
valores da sociedade e a garantia de direitos subjetivos pela
busca da vontade real.
Jurisdição: Dá-se o nome de jurisdição (do latim juris, "direito", e dicere,
"dizer") ao poder que detém o Estado para aplicar o direito ao caso concreto,
com o objetivo de solucionar os conflitos de interesses e, com isso, resguardar
a ordem jurídica e a autoridade da lei.
A jurisdição como competência do Poder Judiciário encontra-se
expressa no inciso XXXV do art. 5º da CF/88, segundo o qual "a lei não
11 SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional – de acordo com a reforma do judiciário. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 28/29.
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Como
se vê, o Brasil adotou o Sistema Inglês.
Todos os conflitos de interesses que não sejam resolvidos
espontaneamente, seja porque as partes envolvidas não conseguiram chegar a
um acordo, ou porque a lei veda a solução espontânea do conflito (como é a
regra no caso da jurisdição penal), deverão ser dirimidos pelo Poder Judiciário,
mediante o exercício da jurisdição.
Portanto, a jurisdição compete apenas aos órgãos do Poder Judiciário
em seu sentido prórpio, embora em direito administrativo também se fale em
"jurisdição administrativa", bem como em "jurisdição" simplesmente como o
limite da competência administrativa de um órgão público.
Do ponto de vista da teoria da separação dos poderes, a jurisdição é a
função precípua do Poder Judiciário, sendo-lhe acrescida, em alguns sistemas
jurídicos nacionais, a função do controle de constitucionalidade.
Como regra, a função jurisdicional é exercida somente diante de casos
concretos de conflitos de interesses, quando provocada pelos interessados.
No sentido coloquial, a palavra jurisdição designa o território (estado ou
província, município, região, país, países-membros etc.) sobre o qual este
poder é exercido por determinada autoridade ou Juízo.
O tema da jurisdição é objeto de estudo das disciplinas de direito
constitucional, direito internacional privado, direito processual e direito
administrativo, dentre outras.
Segue dizendo Paulo Hamilton Siqueira Jr12
12 Ob. Cit., p. 30/31.
A jurisdição é a manifestação do poder estatal, que consiste em
julgar, mediante a aplicação da norma abstrata ao caso
concreto. “etimologicamente, jurisdição deriva de juris dicto,
que, na acepção literal, significa dizer o direito”.
“Resumidamente, poder-se-ia deixar como estabelecido que
jurisdição é o poder, função ou atividade de aplicar o direito a
um fato concreto, pelos órgãos públicos destinados a tal,
obtendo-se a justa composição da lide”. A jurisdição é atividade
estatal exercida pelo órgão competente por meio do processo.
Daí a íntima ligação entre processo e jurisdição. “Jurisdição e
processo são conceitos correlatos, já que este é ocampo em que
aquela se desenvolve. Daí ser o processo um instrumento de
que se serve o Estado para a aplicação jurisdicional do direito
objetivo, pouco importando que este se refira a normas de
caráter privatístico, ou que contenha mandamentos de direito
públiso”. É por meio do processo que o Poder Judiciário aplica
o direito ao caso concreto.
Enquanto manifestação de poder, a jurisdição é consagrada na
Constituição. Por isso, o texto constitucional estabelece o
direito de ação e defesa, sob a égide do devido processo legal.
A estrutura do processo encontra-se justamente nesses
elementos: ação, defesa e jurisdição. Desse prisma, a tutela
jurisdicional é a utilização adequada dos instrumentos
processuais que as partes tem direito. “A tutela jurisdicional é a
síntese do escopo do processo”.
A finalidade da jurisdição é a aplicação do direito. Se a norma
aplicada é penal, diz-se jurisdição penal. Se o objetivo é a
composição da lide por meio de norma civil, a jurisdição é
civil. Se o objeto é constitucional, podemos falar em jurisdição
constitucional.
O processo e a jurisdição são unos. É o objeto que determinará
a espécie de jurisdição. Assim, a jurisdição constitucional é
apenas uma espécie dessa manifestação do poder estatal.
Luís Roberto Barroso13, então, elucida a questão do controle
constitucional pela via judicial:
Como visto, o controle judicial de constitucionalidade teve
origem no direito norte-americano, tendo se consolidado e
corrido mundo a partir da decisão da Suprema Corte no caso
Marbury v. Madison, julgado em 1803. Embora herdeiro da
tradição inglesa do common law, o direito constitucional
americano não acolheu um dos fundamentos do modelo
britânico, a supremacia do Parlamento cujos elementos
essenciais foram assim caracterizados por Dicey, em página
clássica:
(i) poder do legislador de modificar livremente qualquer
lei, fundamental ou não;
(ii) ausência de distinção jurídica entre leis constitucionais e
ordinárias;
(iii) inexistência de autoridade judiciária ou qualquer outra
com o poder de anular um ato do Parlamento ou
considera-lo nulo ou inconstitucional.
No sistema americano, justamente ao contrário, o princípio
maior é o de supremacia da Constituição, cabendo ao
Judiciário o papel de seu intérprete qualificado e final. A lógica
do jusicial review, conquanto engenhosa em sua concepção, é
de enunciação singela: se a Constituição é a lei suprema,
qualquer lei com ela incompatível é nula. Juízes e tribunais,
portanto, diante da situação de aplicar a Constituição ou uma lei
com ela conflitante, deverão optar pela primeira, se o poder de
controlar a constitucionalidade fosse deferido ao Legislativo, e
não ao Judiciário, um mesmo órgão produziria e fiscalizaria a
lei, o que o tornaria onipotente.
A técnica do controle de constitucionalidade somente ingressou
na Europa com a Constituição da Áustria, de 1920, seguindo a
13 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 43/44.
concepção peculiar de Hans Kelsen. Adotou-se ali uma fórmula
distinta, com a criação de órgãos específicos para o
desempenho da função: os tribunais constitucionais, cuja
atuação tem natureza jurisdicional, embora não integrem
necessariamente a estrutura do judiciário. O modelo se
expandiu notavelmente após a 2ª Guerra Mundial, com a
criação e instalação de tribunais constitucionais em inúmeros
países da Europa continental, dentre os quais Alemanha (1949),
Itália (1956), Chipre (1960) e Turquia (1961). No fluxo da
democratização ocorrida na década de 70, foram instituídos
tribunais constitucionais na Grécia (1975), Espanha (1978) e
Portugal (1982). E também na Bélgica (1984). Nos últimos
anos do século XX, foram criadas cortes constitucionais em
países do leste europeu (como Polônia, República Tcheca,
Hungria) e africanos (Argélia e Moçambique).
No Brasil, vigora o controle judicial, em um sistema eclético
que combina elementos do modelo americano e do europeu
continental.
A existência de um órgão que, livre de paixões políticas, seja o guardião
dos preceitos constitucionais e da própria Constituição, é indispensável e
inerente à manutenção de um Estado Democrático, que se pretenda fundado
no Direito.
3- A LEGITIMIDADE ESPERADA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCI ONAL E O
USO DA HERMENÊUTICA PARA ALCANÇÁ-LA.
Quanto à legitimidade constitucional, importante a lição de Walber
de Moura Agra14 baseado em Luhmann:
14 AGRA, Walber de Moura. Luhmann e a Legitimação da Jurisdição Constitucional. Obtido em: http://www.ibec.inf.br/walber2.pdf. Consultado em 01/03/2009.
A jurisdição constitucional se configura em um instrumento
imprescindível para diminuir as beligerâncias advindas da
sociedade pós-moderna, ao mesmo tempo em que concretiza os
direitos fundamentais expostos pela Carta Magna, necessitando
reforçar a sua legitimidade para cumprir tais desideratos.
A concepção de Luhmann para a fundamentação da jurisdição
constitucional passa ao largo de uma conexão com o regime
democrático ou com valores axiológicos. Ele a alicerça em
procedimentos judiciais, que são autônomos em relação aos
outros subsistemas, e busca a aceitação dos cidadãos de forma
autopoiética. Como teoria procedimental da jurisdição
constitucional, ele defende que o procedimento inerente às
decisões judiciais, por si só, é condição suficiente para a sua
legitimação, mesmo que seus posicionamentos tragam grande
repercussão social.
O seu conceito de legitimidade não permite uma ligação direta
com os interesses dos atores sociais, não se importando se as
decisões judiciais obtêm consenso em virtude da aceitação dos
jurisdicionados ao conteúdo da sentença. Para o mencionado
autor, não há necessidade de construção de um espaço público
para a participação dos jurisdicionados como planteado por
Habermas. Para ele, as normas são legítimas na medida em que
são capazes de induzir uma aceitação ao seu processo de
decisão. O que garante legitimidade às decisões judiciais é o
seu procedimento jurídico, que tem seu ponto inicial no
primeiro ato jurídico e a sua conclusão com a decisão transitada
em julgado.
O fator teleológico dos procedimentos judiciais é possibilitar a
aceitação, por parte dos jurisdicionados, da decisão prolatada.
Antes dos interessados ao pronunciamento judicial recorrerem
ao Poder Judiciário, há o conhecimento da existência de
procedimentos judiciais, previamente estabelecidos, que
definem a amplitude de suas atuações comportamentais,
garantindo a aceitação da decisão antes da sua concretização.
Teoricamente, os procedimentos são “neutros”, de forma que
mantenham um posicionamento eqüidistante das partes,
advindo no subconsciente coletivo uma idéia de imparcialidade.
O procedimento judicial não tem a função de produzir um
consenso entre as partes litigantes, seja qual for a matéria
presente na lide, sua missão é tornar as decisões aceitáveis,
evitando resistências que inviabilizariam a concretude do
sistema. Seu principal escopo configura-se em imunizar as
decisões judiciais por intermédio de um procedimento “neutro”
que garanta “iguais direitos para as partes”. O significado da
expressão “imunização das decisões judiciais” é torná-las
aceitáveis pelos participantes da relação processual, como se
houvesse um pacto implícito entre as partes para a aceitação do
veredictum proferido pelo Poder Judiciário.
Preleciona Tércio Ferraz Sampaio Jr: “Para Luhmann, sendo a
função de uma decisão absorver e reduzir insegurança basta que
se contorne a incerteza de qual a decisão ocorrerá pela certeza
de que uma decisão ocorrerá, para legitimá-la. Em certo sentido
Luhmann concebe a legitimidade como uma ilusão
funcionalmente necessária”.
Os procedimentos judiciais estabelecidos pelo ordenamento,
absorvem as decepções das partes envolvidas no conflito. Por
um lado, eles norteiam de forma direta a solução da lide,
entretanto, por outro, destituem todos os seus elementos
empíricos, isolando e despolitizando o cidadão, com a
utilização de um código de conduta próprio que é
hermeticamente fechado a vetores axiológicos da seara fática.
Os procedimentos jurídicos não visam conseguir a formação de
consenso, mas formar uma imagem exterior de aceitação.
Habermas assevera que a legitimidade pelo procedimento, sem
uma sincronia com o espaço público, é uma auto-ilusão, com a
finalidade de estabilizar o sistema, onde todas as controvérsias
são esgotadas no próprio ordenamento normativo, solucionadas
pelo código jurídico.
De acordo com Luhmann os procedimentos organizados pelo
ordenamento jurídico constituem-se nos atributos mais
extraordinários do sistema político das sociedades modernas, ou
ao menos representam a fachada desse sistema. O grande
problema é que não há um parâmetro previamente definido do
conteúdo das decisões, passível de ser determinado por critérios
objetivos. E é por esse motivo que existe uma dificuldade de se
formar uma teoria homogênea sobre os procedimentos judiciais.
A saída, segundo ele, não estaria na teoria pura do direito, que
não trata de procedimento e sim de direito processual, nem na
sociologia pura que busca elementos fáticos para o
enquadramento dentro de uma regra geral, mas na construção
de um subsistema judicial de natureza procedimental, em que
os dados empíricos são transformados em códigos binários
próprios do sistema.
Os procedimentos jurídicos entendidos como processos de
decisão não têm a finalidade de concretizar parâmetros de
justiça. As fundamentações do direito natural foram
decompostas através da positivação do direito, alicerçando-se
em torno de processos de decisão. A necessidade inexorável de
sempre os procedimentos realizarem uma decisão correta não
assegura que essa decisão será a mais justa. Para Luhmann um
sistema que tem a missão de sempre implementar uma decisão
para as questões suscitadas não pode, de forma simultânea,
garantir a justiça da decisão; a realização de uma função exclui
a outra de forma obrigatória.
O processo de legitimação pelo procedimento pressupõe a
aceitação das premissas da decisão e, inelutavelmente, da
própria decisão. O critério de aceitação da decisão não pode ser
subjetivo, dependendo de fatores internos e externos que
circundam os litigantes; ele deve ser objetivo, estruturado
formalmente no procedimento, impondo que as partes litigantes
obedeçam sempre às decisões, mesmo que elas firam seus
interesses.
Portanto, diante desse pórtico an passant do pensamento de
Luhmann a respeito da legitimação pelo procedimento, pode-se
depreender que a legitimidade da jurisdição constitucional para
ele reside no próprio procedimento, apoiando-se no poder
persuasivo dos dispositivos normativos e nas estruturas que
regulamentam o funcionamento do subsistema jurídico. Os
dados empíricos advindos do meio ambiente somente são
passíveis de avaliação depois de serem codificados para a
linguagem sistêmica, por intermédio de estruturas seletivas,
“membranas de calibração”, tornando-se parte do
procedimento.
Para Paulo Bonavides15, existem ainda outras considerações a se fazer
sobre a legitimidade da jurisdição constitucional:
DISSE ZAGREBELSKY, com inteira razão, que duas são as
condições da justiça constitucional: uma, de caráter jurídico-
formal, outra, de caráter político-substancial, cifrada no
pluralismo das forças constitucionais; a primeira, teórica, a
segunda, pragmática.
A primeira é aquela em que, a nosso ver, avultam, de imediato,
considerações acerca do declínio formal da lei, cujo lugar
preeminente, em termos jurídicos formais, entra a ser ocupado
pela Constituição.
Com efeito, quanto mais a lei se “dessacraliza” e fica
minguante com a erosão de sua legitimidade, mais cresce e
pontifica a Constituição, sede maior da nova legitimidade, e
que desempenha o sumo papel de inspiradora, ordenadora e
diretora de todo o ordenamento jurídico.
A Constituição é cada vez mais, num consenso que se vai
cristalizando, a morada da justiça, da liberdade, dos poderes
legítimos, o paço dos direitos fundamentais, portanto, a casa
15 BONAVIDES, Paulo. Jurisdição constitucional e legitimidade (algumas observações sobre o Brasil) In Revista de Estudos Avançados 18 (51), 2004, p. 127/129
dos princípios, a sede da soberania. A época constitucional que
vivemos é a dos direitos fundamentais que sucede a época da
separação de poderes.
Em razão disso, cresce a extraordinária relevância da jurisdição
constitucional, ou seja, do controle de constitucionalidade,
campo de batalha da Lei Fundamental onde se afiança
juridicamente a força legitimadora das instituições. Em
verdade, a justiça constitucional se tornou uma premissa da
democracia: a democracia jurídica, a democracia com
legitimidade.
A segunda condição, referida por Zagrebelsky, é de manifesto
teor material. Nela enquadramos a subseqüente exposição e
análise das dificuldades que ora atravessa, do ponto de vista da
legitimidade, a jurisdição constitucional no Brasil,
designadamente aquela exercitada pelo Supremo Tribunal
Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário.
A matéria aqui versada, como todo tema de Direito
Constitucional, combina, pois, elementos conceituais de
Ciência do Direito e de Ciência Política, sendo estes, os da
Ciência Política, todavia, predominantes no caso vertente,
porquanto indeclináveis à sua elucidação.
O Direito Constitucional passa por uma de suas fases mais
delicadas, mormente em países periféricos, onde a
concretização simultânea dos direitos fundamentais de três
gerações consecutivas, cuja normatividade e conceituação não
se acha ainda bem definida, faz a lei flutuar como centro
nervoso de uma aplicabilidade que nem sempre satisfaz às
exigências da consciência social e jurídica.
De tal sorte que o controle de constitucionalidade há de radicar
na lei ou “sobre a lei”, mas a lei assentada sobre princípios,
porquanto, se não for assim, não haverá justiça constitucional.
O conceito de jurisdição constitucional, qual a entendemos em
sua versão contemporânea, prende-se à necessidade do
estabelecimento de uma instância neutra, mediadora e imparcial
na solução dos conflitos constitucionais. E em se tratando,
como sóe acontecer, de sociedades pluralistas e complexas,
regidas por um princípio democrático e jurídico de limitações
do poder, essa instância há de ser, sobretudo, moderadora de
tais conflitos.
Há que distinguir, portanto, entre legitimidade da jurisdição
constitucional e legitimidade no exercício dessa jurisdição. A
primeira é pacífica, conforme o entendimento da doutrina; a
segunda, controversa.
A primeira é matéria institucional, estática, a segunda,
axiológica e dinâmica; aquela inculca adequação e defesa da
ordem constitucional, esta oscila entre o Direito e a política. À
verdade, tribunal ou órgão de Estado, consagrado à fiscalização
de constitucionalidade que não congregue requisitos
indeclináveis ao desempenho de tal função ou não preencha os
fins aí implícitos, terá sua legitimidade arranhada e contestada
ou comprometida, como ora acontece em determinados
sistemas judiciais dos países da periferia. Neles o influxo das
interferências executivas sobre o Judiciário se fazem sentir com
mais força e intensidade, descaracterizando, não raro, a
natureza do controle, transvertido em instrumento ou veículo de
interesses infestos à causa da justiça e da democracia, e sempre
orientados no sentido do fortalecimento e hipertrofia, já do
poder do Estado, já do arbítrio dos governantes.
Assim acontece com as “ditaduras constitucionais” de algumas
repúblicas latino-americanas, das quais o exemplo mais atual,
frisante e ilustrativo é o Brasil na presente conjunção. Por onde
se infere que neste país, o Poder Executivo busca fazer o
controle de constitucionalidade se exercitar cada vez mais no
interesse do grupo governante e cada vez menos no interesse da
ordem constitucional propriamente dita, de que é guarda o
Poder Judiciário.
O federalismo foi o berço do controle concentrado de
constitucionalidade, tanto nos Estados Unidos como no Brasil.
O pluralismo de Estados congregados em aliança ou comunhão
política, em que se requer a garantia e a inviolabilidade no
respeito às relações mútuas dos entes associados, constitui, em
sua dimensão histórica, o ponto de partida de toda a
judicialização do controle de constitucionalidade.
A natureza política desse controle na origem é, porém, patente e
incontrastável e perdura até hoje, sem embargo da célebre
polêmica Kelsen/Schmitt, da década de 1920, que não deixou
elucidada a matéria em seus derradeiros fundamentos.
Os vínculos do controle de constitucionalidade com a forma
federativa, já Hans Kelsen os proclamara em célebre artigo
estampado em França, em 1928, pela Revista de Direito
Público e Ciência Política sobre La Garantie Juridictionelle de
la Constitution (La Justice Constitutionnelle).
Com efeito, foram palavras suas: “Mas é certamente no Estado
Federal que a justiça constitucional adquire a mais considerável
importância. Não há exagero algum em asseverar que a idéia
política do Estado Federal só se realiza plenamente com a
instituição de um tribunal constitucional”.
A seguir, Kelsen prossegue mostrando que a essência do Estado
Federal não é problema de metafísica do Estado, mas consiste,
segundo concepção de todo realista, numa repartição de
funções tanto legislativas como executivas, entre órgãos
centrais competentes e uma pluralidade de órgãos locais.
As Constituições republicanas que adotam a organização
federativa dos entes constitutivos do corpo político, o princípio
da separação de poderes e a forma presidencial de governo, em
geral tendem, de necessidade, em razão de sua rigidez, a
estabelecer um sistema de controle de constitucionalidade.
O Brasil, desde 1891, dois anos depois da proclamação da
República, entrou a possuir uma dessas Constituições e a
desenvolver esse controle. Ignorado, por inteiro, ao decurso da
época imperial, sua introdução, em certa maneira, fora tolhida
pela ductilidade constitucional da forma parlamentar de
governo. Havia é certo, uma espécie de controle político
nominal vazado no artigo 15, inciso 9º da Constituição do
Império, atribuído à Assembléia Geral. Mas não passava disso.
Com a Constituição republicana de 1988, inclinou-se o Brasil
em definitivo para o sistema misto de fiscalização de
constitucionalidade, combinando assim o sistema difuso,
introduzido ao alvorecer da primeira República proclamada em
1889, com o sistema concentrado, que, na presente República
constitucional, tende a se tornar preponderante, ao mesmo
passo que provoca a crise de legitimidade, de que nos vamos
ocupar mais adiante, com graves apreensões acerca de seu
desfecho.
Adiciono ainda a lição de Luís Roberto Barroso16 sobre a questão:
A questão da legitimidade democrática da jurisdição
constitucional e do controle de constitucionalidade, embora não
tenha sido totalmente ignorada pela doutrina brasileira, não foi,
até muito recentemente, tema de especial sedução para os
autores nacionais. É certo que, no Brasil, o controle de
constitucionalidade foi introduzido de forma expressa pela
Constituição de 1891, em norma positiva que implicava
inequivocamente a fiscalização incidental e difusa das normas
infraconstitucionais. Não se sujeitou, assim, à polêmica
doutrinária que marcou sua criação nos Estados Unidos. Nem
tampouco se verificou aqui, por razões múltiplas, o debate
ideológico que acompanhou sua implantação na Europa.
Nos Estados Unidos, como visto, o judicial review não teve
assento expresso no texto constitucional, havendo resultado de
uma construção jurisprudencial levada a efeito por John
Marshal, em Marbury v. Madison. O controle no sistema
americano era – e ainda é – realizado no desempenho normal da
16 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 51/62
atividade judicial, de modo incidental e difuso. No modelo
europeu, ao revés, foram criados tribunais constitucionais, fora
da estrutura ordinária do Poder Judiciário, com a função
específica de guarda da Constituição, competência que exercem
privativamente, de forma concentrada, embora o acesso à corte
possa se dar de modo principal (ação direta ou incidental).
Nos dois sistemas, a conseqüência prática da declaração de
inconstitucionalidade pela Suprema Corte ou pelo Tribunal
Constitucional importa na paralisação da eficácia da norma,
com alcance erga omnes, ou em sua retirada do sistema
jurídico, atividade equiparada à de um legislador negativo (que
não cria norma, mas pode suprimi-la). Diversas críticas foram
dirigidas, desde o primeiro momento, a essa função pela qual o
juízo feito pelos tribunais acerca de uma lei sobrepõe-se ao do
legislador. As impugnações foram de natureza política,
doutrinária e ideológica. Duas delas são destacadas a seguir.
A primeira: denominada dificuldade contra majoritária
(countermajoritarian difficuly), resultante do argumento de que
órgãos compostos por agentes públicos não eletivos não
deveriam ter competência para invalidar decisões dos órgãos
legitimados pela escolha popular. Segunda: os pronunciamentos
dos órgãos judiciais, uma vez esgotados os recursos processuais
cabíveis – e que se exaurem no âmbito do próprio judiciário –,
não estão sujeitos a qualquer tipo de controle democrático,
salvo a hipótese complexa e pouco comum de sua superação
por via de emenda à Constituição. Nos Estados Unidos, o
questionamento à legitimidade do controle judicial de
constitucionalidade foi reavivado e aprofundado como reação à
jurisprudência progressista da Suprema Corte sob a presidência
de Earl Warren (1953-1969) e de Warren Burger (1969-1986),
indo da crítica radical até atenuações moderadas.
É fora de dúvida que a tese da legitimidade do controle de
constitucionalidade foi amplamente vitoriosa, assim no debate
acadêmico como na prática jurisprudencial, sem embargo da
sucessão de períodos de maior ou menor ativismo judicial. Seu
êxito deveu-se a argumentos de lógica aparentemente
irrefutável. Dentre eles, alinham-se alguns a seguir: a
Constituição, obra do poder constituinte originário e expressão
da mais alta soberania popular, está acima do poder constituído,
subordinando inclusive o legislador. Se a Constituição tem
status de norma jurídica, cabe ao Judiciário interpreta-la e
aplicá-la. Ainda quando decida conflitos de natureza política, os
critérios e métodos dos órgãos judiciais e das cortes
constitucionais são jurídicos. Em uma proposição: o Judiciário,
ao interpretar as normas constitucionais, revela a vontade do
constituinte, isto é, do povo, e a faz prevalecer sobre a das
maiorias parlamentares eventuais.
Essa linha de argumentação funda-se sobre a premissa de que a
interpretação constitucional seja uma atividade mecânica,
subsuntiva de determinados fatos à dicção inequívoca da
norma. Não se tratando, portanto, do exercício de uma
competência livre ou discricionária, não se está diante de
qualquer risco democrático. O órgão judicial não impõe sua
vontade nem seu próprio juízo de valores, mas apenas submete
os legisladores atuais a escolhas prévias feitas pelo povo. Essa
maneira de ver a questão teve amplo curso e foi acolhida de
forma expressa na jurisprudência da Suprema Corte americana.
O debate, todavia, tornou-se um pouco mais sofisticado,
deslocando-se para a confluência do direito constitucional com
a filosofia do direito e a teoria democrática. O primeiro
conjunto de argumentos legitimadores da jurisdição
constitucional, como visto, fundou-se no pressuposto liberal-
positivista que considera o ato jurisdicional um ato de
conhecimento (cognitivo), de simples revelação da vontade
contida na norma, não envolvendo criação ou escolhas pelo
intérprete. Presta-se, assim, deferência absoluta ao princípio da
separação de Poderes: o juiz limita-se a fazer atuar a decisão do
constituinte ou do legislador.
A moderna dogmática jurídica, no entanto, de longa data já não
endossa a crença de que as normas jurídicas tenham,
invariavelmente, sentido unívoco, oferecendo uma única
solução possível para os casos concretos aos quais se aplicam.
Em muitas hipóteses, a norma – especialmente a norma
constitucional, quando tem conteúdo fluido e textura aberta –
oferece um conjunto de possibilidades interpretativas,
figurando como uma moldura dentro da qual irá atuar a
criatividade do intérprete. Como conseqüência, a atividade de
interpretação da norma consistirá também em um ato de
vontade (volitivo), uma escolha, envolvendo uma valoração
específica feita pelo intérprete. Tal escolha é vista por parte da
doutrina como o exercício de uma discrição judicial.
Ora bem: se o juiz constitucional utiliza-se da vontade,
identifica valores substantivos e faz escolhas – isto é, se o ato
judicial não é meramente cognitivo, mas também volitivo –, cai
por terra a legitimação do controle de constitucionalidade com
base na concepção tradicional da separação de Poderes. Esse
impasse ao qual chegou o conhecimento convencional, também
denominado liberal-positivista, levou a nova dogmática e a
nova hermenêutica jurídico-constitucional – batizadas como
pós-positivismo – à busca de novos fundamentos de
legitimidade para a jurisdição constitucional. Nesse novo
paradigma pós-positivista, parte do esforço empreendido
consiste em minimizar o conteúdo discricionário do elemento
volitivo da decisão constitucional, revestindo-o de uma
fundamentação racional, que deve ser compartilhada com a
comunidade.
Na quadra atual, onde é clara a insuficiência da teoria da
separação dos Poderes, assim como inelutável a superação do
modelo de democracia puramente representativa, multiplicam-
se os argumentos de legitimação da jurisdição constitucional.
Alguns deles:
o acolhimento generalizado da jurisdição constitucional
representa uma ampliação da atuação do judiciário,
correspondente à busca de um novo equilíbrio por força da
expansão das funções dos outros dois Poderes no âmbito do
Estado moderno;
a jurisdição constitucional é um instrumento valioso na
superação do déficit de legitimidade dos órgãos políticos
eletivos, cuja composição e atuação são muitas vezes
desvirtuadas por fatores como o abuso do poder econômico,
o uso da máquina administrativa, a manipulação dos meios
de comunicação, os grupos de interesse e de pressão, além
do sombrio culto pós-moderno à imagem sem conteúdo;
juízes e tribunais constitucionais são insubstituíveis na
tutela efetivação dos direitos fundamentais, núcleo sobre o
qual se assenta o ideal substantivo de democracia;
a jurisdição constitucional deve assegurar o exercício e
desenvolvimento dos procedimentos democráticos,
mantendo desobstruídos os canais de comunicação, as
possibilidades de alternância no poder e a participação
adequada das minorias no processo decisório.
Esses temas são aprofundados no âmbito da filosofia do direito
e da teoria política. Para os fins aqui visados, é boa hora de
concluir a discussão, correlacionando a questão da legitimidade
do controle de constitucionalidade e do desempenho da
jurisdição constitucional com dois outros conceitos subjacentes
ao Estado constitucional, ainda que em fase de reavaliação: o
dogma da vontade da maioria e a separação de Poderes.
A democracia não se assenta apenas no princípio majoritário,
mas também, na realização de valores substantivos, na
concretização dos direitos fundamentais e na observância de
procedimentos que assegurem a participação livre e igualitária
de todas as pessoas nos processos decisórios. A tutela desses
valores, direitos e procedimentos é o fundamento de
legitimidade da jurisdição constitucional. Partindo dessas
premissas, parece plenamente possível conciliar democracia e
jurisdição constitucional, quer se defenda uma noção
procedimental de Constituição – que privilegia a definição de
regras do jogo político, cuja observância legitimará os
resultados produzidos –, quer se opte por um modelo
substancialista – no qual certas opções materiais já estariam
predefinidas.
Na verdade, é possível identificar uma importante zona de
superposição entre esses dois enfoques: ambas as correntes
destacam o caráter imprescindível de certos direitos
fundamentais, seja como pressuposto para a deliberação, seja
como pautas mínimas inerentes à dignidade humana. Trilhando
caminhos diversos, as correntes chegam a um ponto comum
naquilo que é verdadeiramente essencial. Tal constatação não
tem por finalidade negas as particularidades de cada uma dessas
linhas, mas sim corroborar a importância reforçada dos
elementos comuns. Assim, da confluência das duas vertentes
parece possível extrair com segurança a afirmação de que a
Constituição desempenha dois papéis principais, mutuamente
implicados.
O primeiro é veicular consensos mínimos, essenciais à
dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime
democrático, que não devem ser preteridos por maiorias
políticas ocasionais. O segundo é assegurar o espaço próprio do
pluralismo político, representado pelo abrangente conjunto de
decisões que não podem ser subtraídas dos órgãos eleitos pelo
povo a cada momento histórico. A Constituição não pode
abdicar da salvaguarda de valores essenciais e da promoção de
direitos fundamentais, mas não deve ter, por outro lado, a
pretensão de suprimir a deliberação legislativa majoritária e
juridicizar além da conta o espaço próprio da política.
O outro conceito que reclama releitura é o longevo princípio da
separação dos Poderes, que passa a conviver com realidades
novas e inexoráveis, às quais precisa adaptar-se. Dentre elas, a
de que a interpretação judicial – inclusive e sobretudo a
interpretação da Constituição – freqüentemente envolverá, além
de um ato de conhecimento, um ato de vontade por parte do
intérprete. Tal vontade, todavia, não deve ser tida como livre ou
discricionária, mas subordinada aos princípios que regem o
sistema constitucional, às circunstâncias do caso concreto, ao
dever de fundamentação racional e ao debate público.
O próprio papel do Judiciário tem sido redimensionando. No
Brasil dos últimos anos, deixou de ser um departamento técnico
especializado e passou a desempenhar um papel político,
dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Tal
circunstância acarretou uma modificação substantiva na relação
da sociedade com as instituições judiciais. É certo que os
métodos de atuação e de argumentação empregados por juízes e
tribunais são jurídicos, mas a natureza de sua função é
inegavelmente política. Embora os órgãos judiciais não sejam
integrados por agentes públicos eleitos, o poder de que são
titulares, como todo poder em um Estado democrático, é
representativo. Vale dizer, é exercido em nome do povo e deve
contas à sociedade. Essa constatação ganha maior realce
quando se trato do Tribunal de Constitucional ou do órgão que
lhe faça as vezes, pela repercussão e abrangência de suas
decisões e pela peculiar proximidade entre a Constituição e o
fenômeno político.
O reconhecimento desse caráter político da jurisdição
constitucional impõe redobrada cautela para que ela não se
partidarize ou se desvirtue em instrumento de disputa pelo
poder. Isto seria a sua ruína. Embora já não sejam cultivados o
mito da objetividade plena ou a ficção da neutralidade do
intérprete, o Judiciário deve ser um foro imparcial, onde impere
o respeito ao fato e ao valor do pluralismo. Um espaço no qual
reine a razão pública. Isso significa que as decisões judiciais
não se podem fundar em doutrinas abrangentes ou em pontos de
vista sectários – religiosos, filosóficos, morais, econômicos ou
de qualquer outro tipo –, ainda quando espelhem concepções
majoritárias na sociedade. Pelo contrário, as cortes devem
buscar argumentos que possam ser reconhecidos como
legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um debate
franco e aberto, ainda que venham a discordar dos resultados
obtidos em concreto.
Na configuração moderna do Estado e da sociedade, a idéia de
democracia já não se reduz à prerrogativa popular de eleger
representantes, nem tampouco às manifestações das instâncias
formais do processo majoritário,. Vive-se a era da democracia
deliberativa, em que o debate público amplo, realizado em
contexto de livre circulação de idéias e de informações, e
observado o respeito aos direitos fundamentais, desempenha
uma função racionalizadora e legitimadora de determinadas
escolhas políticas. Embora as decisões do Supremo Tribunal,
como de qualquer corte constitucional, sejam finais, elas não
cabem em si mesmas: são influenciadas pela realidade
subjacente e, ao mesmo tempo, exercem sobre ela um poder de
conformação. A legitimidade de uma decisão judicial, como a
do poder em geral, situa-se na confluência entre o
consentimento e o respeito.
4- CASUÍSMO E ATIVISMO JUDICIAL EM DECISÕES DO STF.
De se criticar o primeiro, e não tanto o segundo.
Para Siqueira Jr,
O ativismo do Poder Judiciário coaduna-se com a Democracia
Social. O passivismo do Judiciário é inerente do Estado Liberal.
O Estado Democrático e Social de Direito que surgiu com o
advento da Constituição Federal de 1988 concilia ao interesses
individuais e sociais. Aí está a legitimidade da jurisdição
constitucional.
A democracia sobrevive e legitima-se pela resolução dos
conflitos e controle do poder, aspectos que estão ligados à
jurisdição constitucional, que produz o consenso social, outro
pilar democrático. A presença do conflito afeta o sistema
democrático. A resolução das alterações sociais reafirma a
democracia e a paz social.
A jurisdição constitucional é o consectário lógico da
democracia, na medida em que o controle caminha ao lado
desse regime. O desenvolvimento da democracia é proporcional
ao sistema de controle, se expressando pela fórmula “maior
democracia, mais controle”. “Em síntese conclusiva,: a
jurisdição constitucional pode ser compatível com a
democracia, e será tanto mais legítima quanto mais contribuir
para o seu aprimoramento”. 17
Canotilho aponta como campos problemáticos da justiça
constitucional o seguinte: “A pontualização dos momentos
relevantes da gênese da justiça constitucional permite agora, em
forma de síntese, individualizar os seus domínios típicos,
ressalvando-se sempre, como é natural, as particularidades
concretas de cada ordenamento jurídico-constitucional: (1)
Litígios constitucionais (Verfassungstreitigkeiten), isto é,
litígios entre órgãos supremos do Estado (ou outros entes com
direitos e deveres constitucionais); (2) Litígios emergentes da
separação vertical (territorial) de órgãos constitucionais (ex.:
federação e estados federados, estados e regiões); (3) Controlo
da constitucionalidade das leis e, eventualmente, de outros
actos normativos (Normenkontrolle); (4) Proteção autónoma de
direitos fundamentais (Verfassungsbeschwerde, recurso de
amparo); (5) Controlo da regularidade de formação dos órgãos
constitucionais (contencioso eleitoral) e de outras formas
17 Ob. Cit., p. 67
importantes de expressão política (referendos, consultas
populares, formação de partidos); (6) Intervenção nos processos
de averiguação e apuramento da responsabilidade
constitucional e, de modo geral, a ‘defesa da constituição’
contra crimes de responsabilidades
(Verfassungsschutzverfahrem). (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito
constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedida, 1998, p. 789
A jurisdição constitucional tem por finalidade a regularidade
constitucional, podendo seu objeto ser dividido em três pontos:
1. Jurisdição constitucional (sentido estrito), que é o
controle jurisdicional da constitucionalidade.
2. Jurisdição constitucional das liberdades, que estuda os
writs ou as ações constitucionais, que têm por finalidade o
controle das liberdades.
3. Jurisdição constitucional política, que busca a
efetividade da Constituição no aspecto político ou o
implemento de políticas públicas, que se exterioriza pelos
instrumentos de defesa da cidadania, que tem por desiderato o
controle político.18
CONCLUSÃO
Podemos dizer, sem dúvida, que o sistema de controle judicial de
constitucionalidade e, mais precisamente, a jurisdição constitucional, existe no
Estado Democrático de Direito, não sendo afeto aos sistemas totalitários,
sejam de que matiz for.
É desta forma de Estado, um fator caracterizante, e também, que ajuda
na criação e no fortalecimento das instituições deste.
18 Ob. Cit., p. 68.
Porque espelha melhor as conclusões a que chegamos, recorro à dicção
de Walber de Moura Agra19:
O papel da Constituição não é apenas servir como um limite
formal para a atuação do Poder Legislativo, mas, ao contrário,
atuar como uma norma substancial que exprime a tensão entre o
projeto de materializar uma determinada idéia de sociedade
com a realidade fática vigente. A jurisdição constitucional tem
a obrigação de velar pela concretização dos valores da
Constituição, desenvolvendo uma atividade mais ampla do que
a de simplesmente declarar a nulidade das normas
inconstitucionais, no sentido meramente negativo, mas
igualmente orientar e fornecer as condições necessárias para a
realização dos valores contidos no seu texto.
A concepção de uma Constituição como uma ordem concreta
de valores, arrimado em princípios da Lei Maior, não desnatura
o seu caráter jurídico. A Carta Magna sofre uma intensa
influência da seara fática, indubitavelmente, mas essas
interferências são moldadas sob prismas jurídicos, de acordo
com o programa estabelecido pelo conteúdo normativo. A
segurança do ordenamento jurídico se mantém inalterada, uma
vez que os valores adotados pela Constituição são incorporados
em dispositivos normativos constituindo-se em parâmetro para
a decisão dos operadores do Direito.
Os valores agasalhados pelos princípios jurídicos não oferecem
aos tribunais constitucionais o poder de decidir sem o alicerce
dos instrumentos normativos. A maior discricionariedade
oferecida pelos princípios não permite ao Poder Judiciário pura
e simplesmente o exercício da função de criação normativa
como fora previsto na separação dos poderes ao Legislativo. A
19 AGRA, Walber de Moura. Entrenchment dos direitos fundamentais e o do interesse público como fundamentação da jurisdição constitucional. Disponível em http://www.ibec.inf.br/walber1.pdf. Consultado em 01/03/2009.
sua legitimidade é haurida pelos mandamentos constitucionais,
com a finalidade de concretizar os direitos fundamentais e o
interesse público, amparado na reestruturação do Supremo
Tribunal Federal e no caráter dialógico de seu procedimento.
Não se pode imputar o atrelamento das decisões da jurisdição
constitucional aos valores concretos abrigados pela
Constituição de 1988 um motivo de insegurança para o
ordenamento jurídico. A intenção é garantir a efetividade dos
direitos fundamentais e do interesse público, principalmente
daqueles classificados como normas programáticas, em que
pairam uma maior discricionariedade na intensidade de sua
concretização por parte do legislador infraconstitucional.
O problema de se adotar uma concepção da Constituição como
um complexo de valores é determinar a extensão desses valores
que estão contidos nos dispositivos constitucionais em
estruturas principiológicas. A solução encontrada é através do
princípio da “densidade suficiente” ou do “mínimo possível”.
Ao defender que a Constituição é uma “ordem objetiva de
valores” e que a concretização dos direitos fundamentais e do
interesse público devem garantir um conteúdo mínimo ou
densidade suficiente de seus preceitos está se tentando
assegurar sua efetiva realização, mormente dos direitos que têm
uma natureza programática. Dessa forma, o Supremo Tribunal
Federal assume uma relevante importância no sentido de
efetivar o conteúdo mínimo ou a densidade suficiente dos
direitos fundamentais e do interesse público abrigados pela
Constituição de 1988, tornando-se o “guardião dos valores”, o
instrumento de tutela e efetivação das prerrogativas dos
cidadãos.
A definição de um “conteúdo mínimo” ou “densidade
suficiente” dos direitos fundamentais e do princípio do interesse
público se mostra bastante relevante para os direitos sociais e
para todos aqueles que necessitam da intervenção estatal para a
sua concretização, ou seja, para todos aqueles que precisam
efetivar não apenas prestações normativas, mas igualmente
prestações fáticas. Com relação aos direitos de primeira
dimensão, atinentes às prerrogativas civis e políticas, a simples
abstenção da atuação dos entes estatais já é suficiente para a sua
inteira concretização.
Portanto, a maior relevância ao se precisar um “conteúdo
mínimo”, ocorre naquelas prerrogativas que necessitam de
prestações efetivas dos entes estatais, haja vista serem os
direitos negativos incompatíveis com uma densificação do seu
conteúdo, o que impossibilita dividir esses direitos em uma
parte essencial e outra mais flexível. Os direitos de primeira
dimensão não apresentam um substrato econômico significante,
atingindo, esse vetor, forte magnitude com relação às demais
dimensões.
A teoria da “densidade suficiente” ou do “conteúdo
mínimo”deve ser concebida como um entrincheiramento dos
direitos fundamentais e do interesse público, entrenchment, no
sentido de que as prerrogativas dos cidadãos são fixadas em
uma determinada intensidade e que essa intensidade seja
protegida para que a sua eficácia não se torne cambiante de
acordo com as variáveis sociais. Dessa forma, há uma proteção
a precisão dos valores constitucionais, o que impede a sua
variação para atender a particularidades e aumenta a segurança
jurídica do conteúdo das normas constitucionais.
A concepção de entrincheiramento assegura uma proteção ao
conteúdo dos direitos fundamentais e do interesse público, o
que impede a sua ineficácia e a sua inconstância de acordo com
os vetores sociais. Contudo, o entrenchment não impede a
evolução dos direitos, depois de garantir uma intensidade
mínima reforçando sua unanimidade na sociedade, a sua
finalidade configura-se em expandir o entrincheiramento dos
direitos fundamentais e do interesse público mais adiante,
propiciando maiores prerrogativas à sociedade. O entrenchment
do “conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais e do interesse
público funciona como uma garantia à efetivação desses
direitos, impedindo um retrocesso na sua concretização. O
entrincheiramento, como o étimo da palavra já clarifica,
significa o encastelamento do “conteúdo mínimo” no
ordenamento jurídico, expandindo esse consentimento para o
tecido social. Seu escopo é fortalecer a densidade normativa
desses direitos, realizando o que Canotilho chamou de
solidificação da legalidade democrática. Partindo do consenso
firmado pelo entrincheiramento dos direitos fundamentais e do
interesse público, a negociação para o seu desenvolvimento se
torna mais fácil, já que o ponto de referência,
entrincheiramento, goza de grande grau de normatividade e
legitimação social.
A teoria do entrincheiramento dos direitos fundamentais e do
interesse público realiza uma reafirmação da legitimação da
jurisdição constitucional através de uma substantive
justification, cujo reflexo direto é a densificação dos
dispositivos da Carta Magna. Os valores agasalhados pela Lex
Mater estabelecem parâmetros de racionalidade jurídica que
fundamentam a aplicação das normas constitucionais,
justificando a sua própria eficácia, sem necessitar de
procedimentos destituídos de substrato material.
Para que o Supremo Tribunal Federal possa densificar a
legitimação da jurisdição constitucional através do
entrenchment do “conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais
e do interesse público, as suas decisões têm que ter uma
eficácia erga omnes e efeito vinculante, inclusive com a
prerrogativa de regulamentar dispositivos constitucionais
quando estes não forem regulamentados pelo legislador
infraconstitucional e, como conseqüência, impossibilitar o
exercício de direitos fundamentais.
Dessa forma, muitos mandamentos da Constituição que têm
mera função retórica devem ter um conteúdo mínimo
assegurado pelo STF, o que já aconteceu em algumas de suas
decisões com o intuito de obrigar que os poderes competentes
assegurem direitos sociais mínimos aos hipossuficientes, como
o direito à saúde, à educação etc.
Exemplo não de um “conteúdo mínimo” ou “densidade
suficiente” de um direito fundamental, mas de um percentual
orçamentário mínimo que deve ser aplicado na saúde pelo
Estado brasileiro, que de qualquer maneira garante um maior
aporte de verbas para esse direito fundamental imprescindível,
tentando instituir um “conteúdo mínimo”, foi instituído pela
Emenda Constitucional n. 29, que determinou um percentual
limite que deve ser aplicado pela União, Estados, Município e
pelo Distrito Federal, e em cada ano esse percentual deve ser
acrescido pela variação do PIB (Produto Interno Bruto). Essa
emenda permitiu que o Supremo Tribunal Federal pudesse
efetivamente exercer a tutela para que os recursos destinados à
saúde não sejam alocados para outros setores.
Na determinação do “conteúdo mínimo”, ou da “densidade
suficiente”, o Supremo Tribunal Federal não pode agir de forma
arbitrária, já que os fatores sócio-políticoeconômicos interferem
nas suas decisões, pois são eles que estruturam a forma de sua
composição e funcionamento e são as forças políticas que
indicam os componentes do Egrégio Tribunal. Então, o
Supremo Tribunal Federal, de acordo com a conjuntura fática,
determinaria uma “densidade suficiente” para os direitos
fundamentais e para o princípio do interesse público e zelaria
para as suas efetivações. Poderia, inclusive, traçar determinadas
metas que deveriam ser alcançadas pelos órgãos públicos
dentro de um prazo prefixado, sob pena de se incorrer em crime
de responsabilidade.
Os direitos fundamentais e o princípio do interesse público são
compostos de duas partes: o seu “núcleo duro” e a sua “zona
periférica”. O “núcleo duro” ou “conteúdo essencial”
configura-se como um limite que deve ser respeitado pelo
Supremo Tribunal Federal ao determinar a densidade de um
direito, que, de maneira nenhuma, pode ser desrespeitado pelas
decisões judiciais, proibindo-se o seu esvaziamento ou que ele
se transforme em uma exceção. Esse “núcleo duro” é definido
como a própria essência do direito, que deve ser concretizada
independente de conjecturas fáticas. A outra parte que os
compõem é a “zona periférica”, que será concretizada
consonante a conjuntura fática, mas que o STF deve estipular
um desenvolvimento para que a densidade do direito possa ser
aumentada.
O “conteúdo mínimo” ou “densidade suficiente” refere-se ao
“núcleo duro” que, de forma alguma, pode ser desprezado pelos
órgãos estatais. A “zona periférica” refere-se à extensão que os
direitos fundamentais e o princípio do interesse público devem
paulatinamente evoluir, atendendo às diretrizes estipuladas pelo
Supremo Tribunal Federal, sempre em sintonia com os fatores
sócio-político-econômicos. Entretanto, jamais haverá uma
conclusão na sua concretização, que sempre estarão em
constante evolução pari passu com a evolução da sociedade. A
conclusão que se pode chegar é que sempre haverá uma “zona
periférica” na definição dos direitos fundamentais e do interesse
público, que caberá ao STF velar pelo seu desenvolvimento
sintonizado com as demandas sociais.
A finalidade da definição de um “núcleo duro”dos direitos
fundamentais e do princípio do interesse público não é limitar
as suas concretizações, muito pelo contrário, configura-se como
uma forma de maximizar a sua eficácia. Por isto, a teoria da
“reserva do possível”, que advoga que os direitos fundamentais
tem uma concretização de acordo com as variáveis sócio-
político-econômicas, não podendo restringir a efetividade das
normas constitucionais, cerceando a extensão do “núcleo duro”.
A sua aplicação na realidade brasileira deve ter o escopo de
garantir um constante incremento nas prerrogativas dos
cidadãos e não se transformar em um óbice, sob a alegação de
que a seara fática não oferece condições mínimas para a
concretização dos direitos fundamentais e do interesse público.
O princípio da “densidade suficiente”, ou do “conteúdo
mínimo”, consiste em se garantir aos direitos que exigem uma
concretização jurídica-política uma precisão do seu conteúdo,
que ao mesmo tempo em que protege o substrato material
contido na Constituição, não cerceia a discricionariedade de
escolha inerente ao Poder Executivo e Legislativo, que é
própria do regime democrático. A importância do entrenchment
da “densidade suficiente” dos direitos fundamentais e do
interesse público, atuando concomitantemente no “núcleo duro”
e na “zona periférica” é a solidificação desses direitos no
ordenamento, o que assegura a sua eficácia.
A discussão acerca do princípio da “densidade suficiente”, ou
“conteúdo mínimo”, reside em se precisar o seu substrato, que
não pode ser encontrado na seara jurídica, em razão
do caráter aberto dos princípios, o que leva inexoravelmente a
uma decisão política. Ou seja, o idêntico problema para se
adotar uma concepção principiológica da Constituição. A
Constituição portuguesa prevê uma distinção básica entre
direitos, liberdades e garantias, que têm uma concretização
jurídico-interpretativa, e direitos econômicos, sociais e
culturais, que tem uma concretização jurídico-política da Lei
Maior. Com isto, a mencionada Constituição agasalhou a tese
de um “núcleo duro” dos direitos fundamentais e de um “zona
periférica”. Os direitos, liberdades e garantias foram
regulamentados no título II, da parte I, e os direitos
econômicos, sociais e culturais no título III, da mesma parte I,
evidenciando a concepção da Constituição, como uma “ordem
objetiva de valores”, que assume maior significado para os
direitos que exigem intervenção estatal para a sua
concretização.
Os direitos, liberdades e garantias, estruturados tipicamente em
regras, são diretamente aplicáveis e por isto são passíveis de
uma concretização jurídico-interpretativa.
Já os direitos econômicos, sociais e culturais, que são
estruturados tipicamente em princípios, dependem para a
determinação do seu conteúdo de opções políticas, próprias dos
órgãos políticos que compõem o aparelho estatal. Por isto, são
passíveis de uma concretização jurídico-política, porque se
referem a questões que nitidamente envolvem uma decisão
política que tem que ser tomada com um alto substrato de
legitimidade.
Esse é um exemplo claro de que a maior importância para o
estabelecimento de um “conteúdo mínimo” aos direitos
fundamentais e ao princípio do interesse público refere-se
primordialmente aos que são concretizados de forma
continuada no tempo, e não aos direitos que são concretizados
de forma instantânea, como os de primeira dimensão, que
exigem apenas uma omissão por parte do Estado.
Destarte, o conteúdo dos direitos econômicos, sociais e
culturais é constituído de forte carga valorativa, cujas
conjecturas sócio-políticoeconômicas direcionam o conteúdo
axiológico das normas constitucionais. Enquanto que os
direitos, liberdade e garantia têm uma natureza nitidamente
jurídica porque sua concretização necessita de reduzida carga
valorativa.
Condizente com a “zona periférica” dos direitos fundamentais e
do princípio do interesse público, o Tribunal Constitucional
português decidiu que não se pode exigir do legislador uma
regulamentação uniforme para todos os preceitos que exijam
uma concretização jurídica-política, aceitando-se uma abertura
razoável para as opções legislativas desde que elas não
impliquem no cerceamento da essência do dispositivo
constitucional. O instrumento para garantir a autonomia
legislativa e a defesa da cominação, contida na Constituição, foi
realizado através da construção da teoria da “densidade
suficiente” ou do “conteúdo mínimo”.
O Tribunal Constitucional Federal alemão foi o pioneiro na
concepção da Constituição como uma “ordem de valores”, ou
um “sistema de valores”. Para assegurar concretude normativa
aos direitos fundamentais, ele defende a realização de um
conteúdo mínimo, principalmente daqueles que necessitam da
intervenção do Estado para a sua realização.
A Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, não menciona
expressamente que há um direito fundamental, inerente a uma
assistência adequada por parte dos órgãos estatais, que garanta
os cidadãos contra as provações econômicas. Apesar dessa
omissão, o Tribunal Constitucional Federal alemão se
posicionou acerca da existência de um mínimo vital que os
órgãos estatais devem garantir a todos os cidadãos. Assim se
manifestou o mencionado tribunal em uma importante decisão,
em 1975: “Certamente, a assistência social aos necessitados é
um dos deveres óbvios do Estado Social. Necessariamente, isto
inclui a assistência social aos cidadãos que, em virtude de
vicissitudes físicas ou mentais, estão impedidos de desenvolver-
se pessoal e socialmente e não podem assumir por si mesmo a
sua própria subsistência. Em todo caso, a comunidade estatal
tem que assegurar as condições mínimas para uma existência
humana digna”.
Como pode-se perceber, pela atuação do Tribunal
Constitucional Federal alemão, o efetivo desenvolvimento da
jurisdição constitucional configura-se de suma importância para
a defesa e a concretização dos direitos fundamentais. Para o
alcance desse objetivo, é imprescindível a atuação do Supremo
Tribunal Federal como guardião do “conteúdo mínimo” ou da
“densidade suficiente” dos direitos fundamentais, utilizando-se
da teoria do entrenchment.
Finalmente, demonstrando ser imprescindível a autonomia de o
Supremo Tribunal Federal interpretar, bem assim garantir os princípios
constitucionais não regulamentados, o risco que se corre, e o que se entende
necessário ver refreado não é o ativismo judicial deste Tribunal, mas eventual
extrapolação destas decisões, em normas vinculantes de caráter permissivo,
exaradas no interesse de casos ou grupos específicos e particulares, e mesmo
decisões que coloquem em risco, tanto o território quanto a soberania da
nação.
Como exemplo de extrapolação, podemos citar dois casos que, a nosso
ver são o retrato desta preocupação, representados pela súmula vinculante que
trata do uso de algemas, e a recente decisão sobre a demarcação contínua da
reserva indígena Raposa Serra do Sol em Roraima.
A primeira casuísta, aplicada aparentemente aos amigos de políticos e
ministros, freqüentadores dos noticiários policiais ou judiciais como se queira
interpretar.
A segunda, fruto de uma clara influência ideológico-partidária que
poderá, em curto espaço de tempo, além de demonstrar o seu equívoco, trazer
sérios problemas quanto à interpretação da soberania territorial do país, e
quais as suas limitações, já que admite nas fronteiras internas do país, a
existência de outros “povos” e seus “territórios”.
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