a bomba atómica

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A Bomba Atómica I Tudo começou numa aula em que eu falava de Einstein. Estava num ponto em que procurava chegar a uma definição de Ciência tomando como exemplo definições de grandes cientistas, entre as quais se encontrava uma, a que dei particular destaque, de Einstein. Quando perguntei se algum dos alunos sabia quem havia sido este cientista, todos disseram que sim, o que não deixa de ser natural, mas não pude evitar um sorriso de dúvida, e lá experimentei saber o que é que os garotos conheciam do trabalho de Einstein. Tudo o que disseram fazia mais ou menos nexo, nomeadamente o reconhecimento que lhe davam pela descoberta da velocidade da luz, mas a certa altura um deles disse algo fora do tom, «O Einstein de Pinhel é o professor Pinto!» E logo outro confirmou, «Pois é! Ele tem um laboratório na garagem e está a fazer uma bomba atómica!» Este último comentário fezme rir às gargalhadas, mostrandolhes que achava isso impossível, indiscutivelmente impossível, mas outros garotos vieram em socorro dos primeiros e garantiram-me que era pura verdade. Era tanta a insistência que deixei de rir e alguma credulidade começou a infiltrarse em mim. Era uma associação forçada, é certo,

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Um conto de Pedro Miguel Gon

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A Bomba Atómica

I

Tudo começou numa aula em que eu falava de Einstein. Estava num ponto em que procurava chegar a uma definição de Ciência tomando como exemplo definições de grandes cientistas, entre as quais se encontrava uma, a que dei particular destaque, de Einstein. Quando perguntei se algum dos alunos sabia quem havia sido este cientista, todos disseram que sim, o que não deixa de ser natural, mas não pude evitar um sorriso de dúvida, e lá experimentei saber o que é que os garotos conheciam do trabalho de Einstein. Tudo o que disseram fazia mais ou menos nexo, nomeadamente o reconhecimento que lhe davam pela descoberta da velocidade da luz, mas a certa altura um deles disse algo fora do tom,

«O Einstein de Pinhel é o professor Pinto!»E logo outro confirmou,«Pois é! Ele tem um laboratório na garagem e está a fazer

uma bomba atómica!»Este último comentário fez­me rir às gargalhadas,

mostrando­lhes que achava isso impossível, indiscutivelmente impossível, mas outros garotos vieram em socorro dos primeiros e garantiram­me que era pura verdade. Era tanta a insistência que deixei de rir e alguma credulidade começou a infiltrar­se em mim. Era uma associação forçada, é certo,

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aquela que estes meus alunos faziam entre Einstein e a Bomba Atómica, pois ele não foi propriamente o inventor da bomba atómica. Foi apenas o descobridor dos princípios teóricos que permitiram depois criar a bomba atómica, nomeadamente, a famosa equação e = mc2 revelada no quarto artigo publicado nos Annalen der Physik em 1905. Tendo por base aquele princípio, bem como a descoberta da fissão nuclear de Szilard e outros pressupostos, é que a equipa de Oppenheimer conse­guiu conceber a Trinity, a primeira bomba atómica alguma vez testada.

De qualquer modo, aquele episódio foi o motivo bastante para eu procurar saber quem era esse professor Pinto, cuja fama local já roçava os calcanhares de Einstein. Quando indaguei por ele na sala de professores, indicaram­me um homem pequeno, de barba grisalha e poucos gestos, quase todos eles gastos no ofício paciente de fumar. Não foi logo nesse dia que lhe falei, pois só apareceu uma oportunidade de conversa lá para meio do primeiro período, aquando das reuniões intercalares. Tendo terminado uma reunião de Conselho de Turma em que ambos participávamos, calhou que a conversa saltasse dos costumados temas pedagógicos para assuntos académicos mais próximos da Física e da Filosofia. E, finalmente, ao passo de umas quantas referências científicas evocativas das perplexidades do novo mundo tecnológico, consegui fazer a pergunta que me atazanava,

«Acha que é fácil fazer uma bomba atómica?»Perguntei como quem não quer a coisa, no seguimento

casual da conversa, e ele respondeu compenetradamente e sem mostrar surpresa,

«É e não é», sem adiantar nada mais, o que me deixou roidínho de curiosidade.

Pegou no cigarro sem me olhar e entreteve­se com ele alguns segundos, e depois disse,

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«Basta um detonador e arranjar plutónio.»Parecia ter a certeza do que dizia. E depois acrescentou,

quando a minha curiosidade se dava por satisfeita, «E hoje em dia, com os russos a vender tudo a preço de

saldo, é fácil de arranjar…», comentário que me levou a fixá­ ­lo bem e a pasmar. Parecia estar bem informado. Mais do que isso: o ar decidido com que o dizia deixava a impressão de uma familiaridade profissional com o assunto que nos deixava desarmados. Se continuássemos a pensar naquilo chegaríamos à conclusão que o professor Pinto já passara por uma experiência semelhante.

II

Não sei por que me deixei envolver por aquela ideia que parecia, à partida, completamente idiota. Invadiu a minha serenidade como nenhuma outra notícia alguma vez o fizera. Ganhou lugar em mim como uma nódoa de tinta que vai embebendo o tecido até se tornar irreversível. Confesso que a princípio ainda me esforcei por ignorar que se podia estar a construir uma bomba atómica na beira alta do Portugal provinciano, ainda por cima num laboratório de garagem. Não tinha qualquer cabimento. Mas ao fim de umas poucas semanas numa terra que não era a minha e onde não conhecia ninguém, a ideia de investigar aquele assunto contraiu virtudes inesperadas.

Lembro­me perfeitamente que corriam os primeiros dias de Novembro quando passei a seguir o professor Pinto sempre que me era possível. Comecei por preencher várias horas estacionado em cafés estratégicos; depois passei a patrulhar as ruas dando passeios longos, ou mesmo fazendo joging, o que me permitia passar várias vezes na rua onde morava

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o dito professor; e, ao chegar o fim da primeira semana de investigação, já conhecia os seus mais importantes hábitos. Fazia o mesmo praticamente todos os dias: mal acabava de dar as aulas na escola, ia para casa; um ou outro dia tinha a diferença de parar primeiro no café, especialmente quando saía acompanhado por algum colega, antes de ir para casa. Mas às segundas e às sextas da parte da tarde, saía do povoado de carro e não consegui apurar com que destino. Claro que não fazia a mínima ideia do que ele poderia fazer durante o fim­de­semana, mas isso não me interessava muito, pois nesses dois abençoados dias eu estava de regresso a Coimbra.

Não consegui descortinar nada no comportamento dele que pudesse ser considerado fora do normal, ou meramente estranho, ou até simplesmente suspeito. Em resumo: tudo levava a crer que se tratava de um banalíssimo professor do ensino secundário. Devo admitir que fiquei algo desiludido, porque montar uma bomba atómica, parecia­me a mim, era uma empresa que obrigava a uma dinâmica distinta. Havia feito umas quantas leituras e já sabia que era preciso muito espaço, muita energia, muitos componentes; por isso esperava encontrar no professor comportamentos mais arrojados. Não era esse o caso. O professor Pinto parecia uma pessoa pacata. No entanto, reflectindo melhor, dei­me conta que essa capa de banalidade poderia ser, precisamente, um óptimo disfarce para quem tem algo de perigoso a esconder. E foi a consciência dessa possibilidade que me tornou impossível desistir do papel de espião pacientemente encarnado nas minhas horas vagas. Assim, apesar de uma pequena nesga de desânimo, mantive a minha missão de vigilância por mais duas semanas e a minha tenacidade viu­se recompensada.

Numa tarde de terça­feira, pelas cinco horas e trinta e cinco da tarde, o professor Pinto tomou, pela primeira vez, um itinerário anormal ao sair da escola. Em vez de se dirigir para

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casa ou para o café fronteiro à escola, as duas variantes do seu hábito, dirigiu­se a pé para o centro da povoação e entrou nos Correios. Não sei se era impressão minha, mas nesse dia ele pareceu­me nervoso, já que caminhava pelo passeio de forma algo irregular e gastava movimentos bruscos, especialmente os movimentos de cabeça, perscrutando varandas e janelas, a olhar quem o seguia e chegando mesmo a estudar o rosto de alguns dos outros transeuntes. Só a minha habilidade de espião tornou possível não ser detectado. Poucos minutos depois, vi­o sair dos Correios carregando com dificuldade dois embrulhos que, ao longe, não pareciam nem muito grandes nem muito pesados. Dava a impressão que eram pequenos demais para serem pesados, mas a verdade é que ele sozinho não os conseguiu transportar e, dadas as dificuldades, acabou por regressar a casa de táxi. A minha curiosidade ficou espicaçada e o raciocínio ágil. Seriam os mecanismos imprescindíveis para a construção da bomba atómica, cujo peso não havia sido convenientemente previsto? É que o material russo raramente é de confiança.

Mais surpreendente ainda, nos dias que se seguiram, e durante duas semanas consecutivas, o professor Pinto dirigiu­se várias vezes aos Correios para recolher outras encomendas de várias envergaduras e igualmente misteriosas. E se não pude saber o que continham, uma certeza consegui: aqueles embru­lhos só podiam provir do estrangeiro, porque nenhum deles, mas nenhum mesmo, vinha nas típicas embalagens dos CTT.

III

Aqueles dias sucessivos em que o professor Pinto recebeu as mais variadas encomendas deixaram­me inquieto. Percebi que tinha que apertar a vigilância às suas actividades ou nunca

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saberia ao certo o que se estava a passar; mas não vislumbrava que mais havia de fazer para além daquilo que já fazia. Pensei e repensei, mas não consegui achar uma solução que não fosse ilegal.

O facto decisivo que tornou sistemática a minha actividade de espião foi a descoberta que em muitas aldeias, ali na região, ainda existiam as antigas minas nas quais se extraiu urânio e volfrâmio durante a Segunda Guerra Mundial. Ali tão perto, de tão fácil acesso, em aldeias como Roque, Gonçalo, Casal de Cinza, Pouzafoles, e outras, havia minas cujo minério fora outrora vendido tanto a americanos como a alemães. Portanto, pelo menos em termos teóricos, o cientista tinha como obter a matéria­prima de base. Uma parte da dificuldade em construir uma bomba atómica estava vencida. Só lhe restava conseguir transformar o urânio em plutónio e depois conceber um detonador. Neste ponto do raciocínio, lembrei­me logo dos embrulhos suspeitos: cada vez me parecia mais plausível que aquelas encomendas continham os tais componentes electrónicos e tecnológicos que permitiriam a montagem da bomba e a concepção do detonador.

Por uma estranha coincidência, na semana em que soube da existência das minas de urânio, calhou ter programada uma aula prática na sala dos computadores para levar os miúdos a investigar na internet temas caros aos nossos debates. Não teriam passado mais de quinze minutos desde o início da aula quando um dos alunos mais reguila me chamou a atenção para o facto de existirem, no histórico do computador que utilizava, inúmeras páginas numa língua estranha e que não sabia identificar,

«Stor! Stor! Venha ver!»Tentei diminuir a importância daquelas páginas, dizendo­

­lhe que não percebia nada de russo, mas era fácil perceber que se tratavam de páginas de universidades e de institutos

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tecnológicos russos, para além de outras páginas menos oficiais, sem qualquer identificação, que versavam sobre física, nomeadamente, física atómica e concepção de bombas nas línguas inglesa e alemã.

A princípio fiquei chocado com a facilidade lasciva daquela evidência. Sentia-me colocado diante de uma prova factual, exterior ao meu raciocínio, independente das minhas interpretações, na qual não conseguia acreditar sem ficar alarmado. E era mais forte do que eu associar aquelas páginas ao professor Pinto, apesar de estar a resistir com a totalidade do meu grande cérebro. Porém, no fim da aula, quando já haviam saído os garotos, perguntei à funcionária se se lembrava de quem tinha navegado na internet nas últimas horas, utilizando aquele computador,

«Ah!, foi o professor Pinto!», respondeu ela, com o desin-teresse de quem não se sente ajudado a passar o tempo.

«Esteve aí depois do almoço», acrescentou.Senti uma onda de terror a apoderar-se da minha sereni-

dade. Só nesse momento percebi o perigo que todos nós corría - mos: o homem parecia ter quase tudo o que necessi tava para construir uma bomba atómica. O raciocínio era incontornável: o urânio, se extraído e tratado, daria plutónio; as encomendas e as indicações da internet davam o detonador. Se eu quisesse ver de outra maneira já estaria a fabricar outra realidade.

Lembrei-me que os detectives dos filmes americanos procuram sempre um motivo sólido, um procedimento típico da mentalidade behaviorista a que os polícias e os juízes dão muito crédito metodológico. Tentei, portanto, raciocinar como um verdadeiro profissional. Que motivo teria o professor Pinto para desejar construir uma bomba atómica? Alguma vingança? Chantagem para enriquecer? Loucura? Mas não sabia responder. No entanto, isso era agora certo, tinha que encontrar uma resposta.

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Como verdadeiro detective sob disfarce, passei a dedicar mais atenção às conversas em que o professor participava, mas acabei por perceber que não retirava daí grande proveito, porque o homem era muito reservado. Ele só era verdadeiramente fluente quando se falava de matemática ou de física. Mas isso acontecia sobretudo quando o interlocutor era eu. Uma vez falou com verdadeiro entusiasmo do vinho de Pinhel e revelou conhecimentos de enólogo. Por vezes ficava­ ­me até a impressão que ele não se revelava propositadamente. Seria ele tão calculista e profissional ao ponto de se precaver contra a possibilidade de alguém o investigar?

Todo este panorama inconclusivo mantinha­me nervosa­mente distante de descobrir um motivo. Só uma semana mais tarde, num dia em que nos cruzámos à entrada da escola, eu a sair e ele a entrar, pude perceber o que o motivava. Ele trazia um livro nas mãos e perguntei­lhe se era interessante,

«Um livro verdadeiramente interessante! É sobre Polinó­mios de Quaterniões.»

«Sobre quê?!», e como eu nunca tinha ouvido falar de tal coisa, explicou­me,

«Abreviando, são sistemas de equações que não têm soluções.»

Quem é que, com a sua cabeça no lugar, se dedica a estudar problemas que se sabe previamente que não têm solução possível? Sim, só cientistas malucos. Bingo! O motivo que o fazia agir não seria o dinheiro, a fama, as mulheres, ou qualquer outro motivo mundano, mas apenas o puro interesse intelectual. Como dois pontos para uma recta, eu tinha agora os factos e o motivo para confirmar a tese: bomba atómica em construção.

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IV

Numa ocasião deparei inadvertidamente com o professor Pinto diante da sua garagem, por acaso fechada, com uma bata branca vestida, o que me pareceu imensamente suspeito.

«Olá professor!»Algo de inconsciente nos meus passos havia-me levado

à rua onde ele residia sem eu me dar conta do caminho que realmente tomara.

«Bom dia!», respondeu ele muito sóbrio ao reconhecer- -me, sem largar o gesto rígido com que analisava uns papéis cheios de esquemas e equações rascunhadas à mão. E fixando os olhos em mim continuou,

«Então anda numa meditação de peripata?»«Mais ou menos…», disse eu, subitamente engasgado,

«mas sem a profundidade do grande Filósofo, devo dizer!», a desculpar-me.

Ele riu-se, e eu também, e por momentos tive a sensação desagradável que fora descoberto. Fiquei com a impressão que a minha reacção de surpresa atabalhoada, ao encontrá-lo, não era genuína o suficiente para camuflar a minha presença de espião. Mas instantes depois recuperava a confiança e por isso comentei,

«Quem o vir assim, de bata branca, há-de pensar que está a preparar alguma experiência importante!»

Ele voltou a rir, um riso leve sem esforço, talvez apenas um esboço e contestou,

«Nada mais errado.»«Ou então está a preparar aulas?»«Também não. Preparo-me para tarefas absolutamente

desprovidas de interesse…»«Mas tendo um laboratório sempre pode realizar algum

trabalho científico interessante.»

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«Oh! Não lhe chamaria laboratório. Admito que tenho ali umas instalações razoáveis, mas não se trata de um laboratório. É mais uma oficina que outra coisa.»

«Seja! No entanto é melhor que nada. Se calhar até já lá realizou alguma experiência importante, não?»

«Não digo que não tenha tentado, mas são coisas irrelevan­tes… Não ligue importância! São coisas idiotas só para me entre ter. Aqui na terra não há muito mais para fazer, como sabe…»

«Pois é, eu sei…»Meti as mãos nos bolsos e palmilhei o significado macio

daquelas palavras, e depois resignei­me a perguntar,«O professor costuma acompanhar as mais recentes

investigações no mundo da física?»«Sim. Costumo ter esse cuidado. Sou assinante da revista

Science e da Science & Vie, para além doutras mais específicas.»«E há, porventura, notícias recentes de alguma descoberta

revolucionária?»«Já há algum tempo que não aparece uma novidade

real mente relevante. Mas também me parece que nada de relevante se descubra se o paradigma teórico se mantiver inalterável…»

«Então aquele velho dilema mantém­se?»«O de saber onde acaba a matéria e onde começa a

energia… é isso a que se refere?»«Sim.»«Ah! Esse delicioso mistério! São estes mistérios que

tornam a física tão interessante para mim! Veja o que é nós sabermos que a matéria é constituída por muitas partículas mais pequenas, algumas das quais, se calhar, já não são matéria. Olhe o neutrão, por exemplo, uma dessas partículas mais pequenas que o átomo, é composto por milhares de outras partículas que já não podem ser consideradas matéria… Está

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a ver?… Quanto mais analisamos a matéria mais ela se torna energia.»

«Acho que a Teoria da Incerteza permitiu­nos compreen­der o mundo com relações de incerteza, mas também veio perpetuar a incerteza…»

«Pois, é um pouco isso… Mas, como sabe, os estudos continuam…»

«Será que as tentativas do João Magueijo sobre a velocidade da luz variável poderão trazer alterações a este panorama?»

«Neste âmbito da mecânica quântica creio que não… Não estou a ver…»

Deixei­me ficar e já não sabia se queria mesmo descobrir alguma coisa ou se estava apenas em companhia de alguém com quem tinha uma conversa interessante ao sabor de um sol tépido de inverno. Enquanto falávamos, vi um gato muito bonito e grande a passar por ali com aquela indolência felina que lhes é característica e, no primeiro degrau das escadas que levavam à entrada principal da vivenda, o gato sentou­se majestosamente, alçando o rabo em torno do seu corpo. Ambos seguimos o animal com o olhar sem lhe fazer qualquer referência. E depois ocorreu­me mais um fio de conversa,

«Pegando nesse paradoxo da energia que ainda é matéria, ocorreu­me agora, por analogia, outro paradoxo no campo filosófico que, com as devidas distâncias e proporções, acaba por ser equivalente, que é saber onde acaba o cérebro e começa o espírito!»

«Está a tentar fazer a equivalência entre o cérebro, que representa a matéria ou substância, e o espírito, como equiva­lendo à energia…»

«Sim.»«Parece­me que estamos aqui a criar uns quantos atrope­

los…»

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«Bem sei… Bem sei… Mas trata-se de uma suposição deliciosa. Permite perguntar, por exemplo, se o espírito não será um caso específico de mecânica quântica. Está a ver?…»

«Bem… Talvez…»Houve uma pausa. Talvez ele duvidasse das minhas

competências metafísicas.«Tem estudado, pessoalmente, esta questão das par-

tículas?», retomei eu.«Não. Tenho interesses bem diferentes, na verdade.

Pessoalmente optei por áreas de estudo que não implicassem muita tecnologia, por exemplo aceleradores de partículas, que não são muito abundantes em Portugal.»

«Está a tentar dizer que não há aceleradores de partículas em Portugal?»

«Oh! Isso por cá não é material que abunde. Existe um mini acelerador de partículas no Instituto Tecnológico e Nuclear de Lisboa e não tenho conhecimento de outro com funcio - na mento regular. Mas, para dizer a verdade, hoje em dia o tra - balho normal do investigador científico não requer a exis tên cia de tais aparelhos em todos os laboratórios. Quando o cientista chega ao momento da verificação, como que “encomen -da” uma experiência ao CERN, ou ao Fermilab, e depois devolvem-lhe os resultados da experiência e então confirma as suas expectativas teóricas. E depois o estudo continua.»

«Percebo. Uma certa economia de meios, não é?»«De qualquer modo, se está assim tão interessado, digo-

-lhe que existe um mini-acelerador de partículas não muito longe daqui, em Salamanca. Como sabe, é aqui mesmo ao lado. Daqui a Coimbra ou a Salamanca é a mesma coisa.»

«Então costuma lá ir?»«Não com a frequência que desejava, para dizer a verda-

de… Estou a fazer o doutoramento em Salamanca, mas também utilizo as instalações da UBI.»

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«Os espanhóis têm boas condições?»«Se conseguem ter um mini­acelerador de partículas, então

é inevitável que, em tudo o resto, se note a diferença. Nem que seja nas estradas. Sinceramente não sei como é que nós, os portugueses, dávamos antigamente tantas coças aos espanhóis!», e rimo­nos os dois com alguma tristeza à mistura.

Num momento de pausa, quando a conversa já perdia a sequência, perguntei sem curiosidade,

«É gato ou gata?», apontando para o animal que se man­tinha nas escadas a testemunhar a nossa conversa.

«Gata. É uma das donas cá da casa!», resmungou o professor com um ar inequivocamente humano.

Voltámo­nos a rir os dois com a resposta que evocava o eterno feminino, e depois separámo­nos os três, eu para a escola, ele para casa e a gata para o jardim.

Aquela conversa com o professor deixou­me aliviado, por ­ que fora tudo tão normal, soube­me tão bem, que fiquei com a nítida impressão que aquele homem não poderia ter um pro ­ jecto tão abominável como construir uma bomba atómica enquanto exercício recreativo. Aquela conversa sob o sol de inver no a compensar o vento gelado que descia da meseta ibé­rica, tinha sido como um bálsamo que me deixara restabele­ cido. Era tudo um mal entendido na minha cabeça, certamente.

V

Essa sensação de tranquilidade acompanhou­me durante todo o período do Natal, pelo que foi em paz que partilhei, com os meus e em minha casa, o espírito natalício. Mas as suspeitas regressaram logo na segunda semana de aulas do período seguinte. Certa tarde, não tinha eu nada para fazer a não ser corrigir uns quantos trabalhos enfadonhos, pretexto de

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recuperação de alguns alunos com avaliação negativa, e tendo eu esgotado duas tentativas infrutíferas de correcção, resolvi que era oportuno visitar uma daquelas aldeias que haviam crescido nos anos trinta e quarenta à custa da actividade mineira. Escolhi a aldeia de Roque, junto à estrada que liga Pinhel à Guarda, porque era uma das mais próximas, para além de ser a terra de um dos meus alunos, o Nelson, que me falara entusiasticamente das minas de urânio como se fosse algo de extraordinário e digno de ser visto.

Quando ali cheguei, verifiquei que não era o único inte­ressado nas minas, pois junto às ruínas encontrei o Gastão, acompanhado de outro indivíduo, que poderíamos considerar estranho. A sua deselegância derivava não só do ventre dilatado, impossível de disfarçar numas calças de ganga, como dos óculos escuros demasiado juvenis, incompreensíveis naquele rosto cansado, mal barbeado, que ficava na sombra de um charuto despropositado, e que, por um estranho fenómeno de ilusão, parecia realçar a careca à espreita sob o ralo cabelo grisalho.

«Bem isto é essencialmente perigoso, isso sim», garantia o indivíduo a Gastão quando me aproximei.

O Gastão era professor de Biologia na mesma escola em que eu trabalhava, para além de ser representante da Quercus na região da Guarda, e o desconhecido, viria eu a saber, era um inspector das minas e património geológico.

«Alguém anda a mexer nas minas e não são os habitantes da aldeia, porque conhecem bem os perigos que correm se se metem nessas galerias abandonadas», esclareceu­me o meu colega.

«Compreendo. Perigo de derrocadas nas galerias, não é? E as pessoas podem lá ficar presas dentro…»

«Bom, por um lado, é isso, sem dúvida», disse o meu colega, «mas o perigo maior é a contaminação por radioactividade. E isso é que é grave!»

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«Radioactividade? Aqui na Beira?», reagi eu, plenamente céptico.

«Sim, radioactividade, ainda que muito circunscrita. Se tivéssemos aqui um contador géiser já iria ver… Ora, espere aí um bocadinho… », interveio o outro indivíduo. Subitamente tive a impressão que aquela conversa era uma brincadeira de mau gosto, uma ficção barata.

O inspector foi ao jipe, que se encontrava a curta distância, e regressou com uma pequena bolsa negra. Retirou de lá um pequeno aparelho, ligou­o, apontou­o para o chão e este emitiu logo uma meia dúzia de estalidos. Estando perto um velho muro de granito, o inspector colocou­o numa abertura entre duas pedras mal aparelhadas e o débito de estalidos acelerou, e disse,

«Como vê, até neste ambiente bucólico se detecta a pre­sença de uma certa radioactividade. Mas, neste caso aqui, o apa ­ relho está apenas a detectar o radão que o granito contém», elucidou, «Cá fora os níveis de radioactividade estão dentro dos índices de segurança, mas lá dentro, nas galerias antigas, onde muito minério perigoso ficou abandonado, os índices são muito altos e perigosos.»

«Vocês não estão a brincar nem nada?», insisti eu na dúvida.

«Acha que estou com cara de brincadeira?», disse o ins­pector muito sério, sem que eu pudesse descortinar os seus olhos sérios.

«Não! Acredita que isto é muito sério!», afiançou o meu colega.

«Bem, sendo assim, o comentário que me ocorre é que alguma coisa devia ter sido feita com esses minérios abandonados, não?»

«Isso era da responsabilidade da Junta de Energia Nuclear, que depois foi extinta para aparecer outra coisa em seu lugar,

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e, se alguém se preocupou com isso, as decisões perderam-se na burocracia…», justificou-se o inspector.

«Como? Existiu uma companhia de energia nuclear em Portugal?»

«Não sabias?», interveio o meu amigo biólogo.«Não. Pensei que isso era coisa apropriada apenas a países

com programa nuclear activo como os EUA, a Inglaterra ou a França…»

«Existiu e ainda existe!», exclamou o inspector.«Contem-me lá essa história!»O meu colega e o inspector esboçaram um sorriso de

sapiência e de satisfação sapiente. Cruzaram ambos os braços, e o inspector, mais pesado, escorou o peso do abdome daquele modo popular que obriga a afastar ligeiramente as pernas. E, acto contínuo, o Gastão começou a explicar-me, com o tom didáctico que devia usar nas suas aulas,

«Bem, como deves saber, as propriedades radioactivas de certos minerais só foram descobertas no fim do século XIX e princípio do século XX. O famoso casal Curie tornou-se conhecido por ter descoberto o rádio, mas a Madame Curie também descobriu o polónio e outros haveriam de dar importância ao urânio, certo?»

«Sim, eu estou a par disso.»«Segundo consta, algum do material que a Madame Curie

utilizou para os seus estudos era proveniente, precisamente, de Portugal, daqui da Beira Alta, talvez das minas de Quarta- -feira. Está provado que ela tinha contactos directos e indirectos com pessoas da Guarda. Aliás, um dos seus alunos, o Mário Silva, era português. No entanto, é impossível afirmar peremptoriamente que as suas descobertas foram feitas com base no minério português, pois ela também trabalhou com minério austríaco.»

«Desses detalhes é que eu não sabia…»

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«O mais engraçado é que no princípio do século acreditava- -se no poder terapêutico do rádio e é precisamente por causa disso, e não por razões mais complexas, que era explorado. Nessa altura nem se dava valor ao urânio. Só ao rádio. Os franceses abriram cá em Portugal companhias mineiras para o explorar e era tudo exportado para França.»

«Hum-hum…»«Só durante a Segunda Grande Guerra aparece a primeira

companhia portuguesa, a Companhia Portuguesa de Radium, uma companhia privada que tentava entrar no mesmo negócio que os franceses. Mas nessa altura já os alemães e os ingleses andavam interessados no urânio, pelas razões que hoje sabemos. Algum tempo depois foi o estado português que se deu conta que deveria explorar os óxidos de urânio, por todo Portugal, para os exportar e daí a fundação da Junta de Energia Nuclear.»

«Ora, essa empresa ainda existe hoje, é a Empresa Nacional de Urânio S.A., com sede na Urgeiriça. Sabe onde é?», completou o inspector.

«Por acaso sei. Passo lá perto quando venho de Coimbra para Pinhel.»

Estavam ambos contentes por reconhecerem na minha cara a surpresa que a novidade, de que eram responsáveis, havia causado e, por isso, sorriam-se paternalmente para mim.

«Então nós somos produtores de Urânio?», repeti eu, a tentar convencer-me.

«Pois é. Não são só os grandes Estados que têm ligações ao mundo da radioactividade… Mas numa escala muito pequena porque o furor atómico desapareceu. A competitividade entre a Rússia e os EUA desapareceu, como sabe. Muitas minas fecharam.»

«Como esta aqui?»

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«Bem, esta aqui, e a maioria delas, fechou pouco depois do fim da grande guerra.»

«O problema é que foram encerradas sem cuidado!»«Como deve saber», continuou o inspector, «só muito

depois de Hiroxima e Nagazaki se veio a saber verdadeiramente o significado da era atómica. Só a partir dos anos cinquenta é que as minas que fechavam foram seladas com betão para ninguém lá voltar a entrar. Mas antes disso muitas minas foram fechadas sem qualquer protecção especial, sobretudo aquelas que só exploravam óxidos de rádio. Na aldeia de Quarta-feira temos a certeza que houve selamento com betão porque foi muito explorada e chegou a ser mais importante que a Urgeiriça!»

«Em conclusão, estas minas nunca foram seladas. É isso?»

«Não com a segurança necessária. Algumas entradas eram apenas barricadas com tabiques, outras, mais raras, levavam paredes de tijolo, facilmente derrubáveis, e outras não recebiam qualquer protecção. E nesta temos a certeza que houve gente que lá entrou, o que é preocupante.»

Depois daquele episódio, voltei a perder a calma que tanto me custara a conquistar. Voltavam a ganhar sentido todas as minhas anteriores suspeitas. Eu estava a ouvi-los falar e o professor Pinto não me saía da cabeça. Quem mais poderia estar interessado nestas minas senão ele?

No carro, quando regressava a Pinhel, dei comigo a pensar: onde é que ele iria detonar a bomba?

VI

Como de costume, ao terminar as aulas de sexta-feira, parti a toda a velocidade para Coimbra. Desci furiosamente

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o IP5 e o IP3, apesar do estatuto de “tolerância zero” nessas estradas, gerindo o tráfego um tanto mecanicamente, porque conduzia mentalmente um solilóquio em busca de soluções para o problema atómico. A meio da viagem já tinha chegado a uma certeza: tinha que desabafar com alguém. Depois cheguei à conclusão que talvez fosse mais indicado falar primeiro com o Roque, que trabalhava no Ministério Público em Lisboa, e que, como eu, também vinha a Coimbra passar o fim­de­semana.

Quando eu cheguei ao “poiso”, o café onde a malta se costumava encontrar, já lá estavam o Cid, o Roque e o Fran e pouco depois apareceu o Zega, o Salo e o Fifinho. Deixei que a conversa se avolumasse ao alarido de duas Tuborg, e quando as tensões conservadoras da semana se começavam a dissolver no leve torpor ébrio, preparei uma pergunta que, por causa da cerveja e da companhia deles no alvoroço do café, já não tomava por importante. Cheguei a abrir a boca para libertar a pergunta, mas hesitei por recear o ridículo de uma má interpretação. E porque a hesitação se manteve presa nas prestações cómicas dos meus amigos, acabei por desistir de apresentar um assunto tão sério. Depois abalámos para os bares da Alta, a música começou a rodopiar na minha cabeça e o assunto acabou por ficar esmagado. Pelo menos até ao dia seguinte.

No sábado à noite voltámos a agrupar­nos no “poiso”, mas pela brevidade suficiente de uma cerveja que nos levasse alegres até à Figueira da Foz, onde jantámos com a tranquilidade de bons faecezinhos. No fim de jantar ainda se falava de política internacional, a facção pró­atlântica digladiando­se com a facção europeísta, quando voltou a emergir em mim o prurido que me atazanava nos últimos meses. Refreei a emergência enquanto pude, mas três bares depois, o sabor da tentação voltou a aflorar na minha boca com um apetite

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renovado e foi com asas que o meu raciocínio não tinha que ela chegou aos meus lábios,

«Vocês acham possível construir­se uma bomba atómica em Portugal?»

Calaram­se todos, entreolharam­se, talvez duvidando do que haviam ouvido, talvez a procurar pistas de reacção uns nos outros, com o olhar enviesado como faria Garfield. Depois, subitamente, explodiram de gozo e riso, sem que eu pudesse participar senão em eco. A hilariedade do momento levou­os imediatamente a inventar uma centena de propósitos ou utilidades de uma bomba atómica, como exclusiva solução portuguesa para acabar com a economia subdesenvolvida. E com a mentalidade mesquinha. Claro que a competência desenquadrada dos jornalistas americanos, em reportagem por terras lusas, foi logo evocada. De facto, ninguém estava em condições de me escutar, por isso o assunto resvalou para a anedota, para o riso contagiante.

O Zega, todo vermelho da sucessão de gargalhadas, teve a reacção mais exuberante e faz­me notar que,

«Tu estás dois!!!!!», e voltou a insistir, com os dois dedos numéricos apontados na minha direcção,

«Dois!»Depois declarou com solenidade,«Vou mijar.» E desapareceu.Durante o resto da noite fui assediado com notícias

e palpites sobre casos de bombas atómicas construídas no Alentejo com dinheiro dos fundos comunitários e com a justa intenção de resolver problemas estruturais.

Eram cinco da manhã quando reencontrei o Cid no meio da música e ouvi­o perguntar­me ao ouvido,

«Ouve lá, quantas berbejas já cerveste?»

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VII

O domingo é um dia detestável. É o último dia de sofrível normalidade antes de partir outra vez para o desterro. O tédio enche­nos e entreva­nos o espírito ante a desgraça de ter de voltar a largar o nosso próprio espaço e ficar reduzido a um espaço necessariamente provisório: um quarto alugado.

A meio da tarde telefonei ao Roque para me encontrar com ele a sós, antes que os outros rapazes aparecessem no “poiso”. O último encontro de fim­de­semana, ao domingo à tarde, ou, às vezes, ao entardecer, era sempre mais rápido, pelo que era aconselhável que a conversa tivesse lugar antes que a urgência de partir se instalasse.

«Mas tu estás bom da cabeça?», perguntou­me quando se apercebeu do que eu queria falar, «Pensei que tudo isso era mesmo só um gracejo!»

«Não é brincadeira. Eu não devia ter falado nisto ontem… Foi dos copos…»

«Queres que faça um pedido de investigação ao SIS, é?»«É.»«Não acredito!»«Não acreditas em mim?»«Não é uma questão de não acreditar em ti; é não acreditar

que em Pinhel, atrás do sol posto, se está a construir uma bomba atómica artesanal. Que provas tens?»

«Que provas tenho? Achas que se não tivesse indícios importantes estaria para aqui com esta preocupação? Bom, então dou­te uma achega. Em primeiro lugar, a pessoa de que te falo é um físico muito inteligente e interessado. Excelen­temente informado. Em segundo lugar, tem um laboratório em casa. Quantos professores têm o seu próprio laboratório em casa? Não são muitos, por isso não me venhas dizer que é normal. Em terceiro lugar, existem minas de urânio na zona que

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têm sido remexidas, não se sabe bem em que extensão, o que tem deixado em alerta tanto populações como autoridades responsáveis. Em quarto lugar, ele recebeu recentemente uma série de encomendas muito estranhas que pode muito bem ser o material necessário para conseguir transformar o urânio em plutónio em laboratório. Não sei se sabes mas basta uma pequeníssima porção para conceber uma bomba. Em quinto lugar, apanhei­o a consultar páginas russas na internet sobre física atómica, o que permite vislumbrar um pouco dos contactos que poderá ter com cientistas de leste, e tu sabes como neste momento eles fazem tudo para arranjar algum dinheiro. E, para acabar, deixa­me lembrar­te que ele tem a possibilidade de usar as instalações das Universidades de Salamanca e da Covilhã, onde se costuma deslocar sob o pretexto de um doutoramento. Acho que é mais do que suficiente para que esta trama não seja só uma coincidência idiota, não te parece?»

Ele não devia estar a contar com tal rol de argumentos tão organizados, porque ficou calado por uns instantes, olhou­me, e com esforço reagiu e contra­atacou os meus dados,

«Só tens isso? A tudo o que acabaste de dizer se chama provas circunstanciais, porque uma boa parte se apoia em conjecturas. Por exemplo, as encomendas. Tu não sabes em que consistiam e qual a proveniência.»

«Mas não é o suficiente para nos deixar preocupados?»«Tu precisas de factos para me deixares preocupado.

Não de conjecturas!»«Então eu trago­te factos! Mas enquanto eu vou procurar

os factos, tu podias averiguar, ao menos, se no ministério correm alguns boatos ou alguma informação fidedigna a este respeito, ou qualquer coisa paralela.»

«Está bem. Para não me chateares mais com isso…»

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Entretanto chegaram os outros rapazes e a conversa ficou por ali.

VIII

Para a semana que se seguiu tracei duas prioridades. Primeiro iria tentar saber qual a proveniência dos embrulhos suspeitos que o professor Pinto havia recebido, algo que poderia ser decisivo para atingir o meu segundo propósito, ou seja, encontrar uma prova irrefutável das minhas suspeitas.

Na primeira tarde que tive disponível dirigi­me aos Correios. Quando cheguei à entrada do edifício espreitei para dentro. Estavam três pessoas em fila diante do balcão, esperando a sua vez de serem atendidas. Tinha esperanças que fossem todas aviadas rapidamente de modo a deixar a senhora do balcão sozinha, para eu poder entrar e fazer as minhas perguntas indiscretas à vontade. Afastei­me um pouco do edifício e esperei que as tais pessoas saíssem. Passou uma revoada de pássaros e entretive­me a observar o movimento deles. Vi sair um sujeito com os bolsos das calças plenamente deformados de tanta papelada conterem; um negociante da Beira, pensei. Passaram dois carros na rua e os condutores olharam para mim. Senti­me analisado. Depois saiu uma segunda pessoa, uma senhora em dificuldade com o peso dos inúmeros sacos de plástico que carregava. Calculei que talvez fosse altura de entrar, mas olhei em redor e vi duas senhoras de meia­idade a aproximarem­se com envelopes na mão. Do lado oposto aproximava­se um velhote algo curvado, apoiado numa bengala que se resumia a um pau descascado. Esperei. As senhoras entraram em animada parlenda no edifí ­ cio. Agora voltavam a estar lá dentro três pessoas para atender. O velhote passou, entretanto, por mim, lentamente, a dar

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folga às pernas presas, olhando­me atentamente, e adi vi nhan­do eu que ele não me reconhecia como alguém da terra.

«Boa tarde!», disse eu, que já conhecia os costumes. Ele correspondeu, ainda com os olhos muito compenetrados, e só depois de me avaliar mudou de passeio, prosseguindo o seu caminho. Passou uma carrinha de caixa aberta com dois cavalos em cima. Saiu outra pessoa dos Correios, um reformado, com uns papéis na mão, a falar sozinho, com ar de quem agora tinha um excesso de tempo inútil pela frente. Instantes depois resolvi aproximar­me de novo da porta para confirmar quantas pessoas lá se encontravam dentro. Para minha surpresa saíram no momento, de uma só vez, os últimos utentes. Por isso, mal as senhoras saíram precipitei­ ­me para o balcão na expectativa de usufruir o máximo de privacidade junto da senhora do atendimento, que, sendo sempre a mesma a desempenhar aquelas funções, saberia dizer­me a proveniência dos embrulhos.

Engasguei­me logo na primeira pergunta. Senti­me corar, mas rapidamente reorganizei o discurso,

«Preciso de uma informação», disse eu para começar.Quando lhe expliquei que precisava saber a proveniência

de um conjunto de encomendas recentemente recebidas pelo professor Pinto, ela reagiu mal. Repetiu entredentes as minhas palavras, e como que procurou reflectir: nunca ninguém lhe havia feito um pedido daqueles tão descaradamente. Em vez de responder optou por analisar a moralidade de tal pedido, o que fez hesitando, certificando­se com palavras ouvidas a qualidade daquilo que estava a pensar, e acabou por reagir de um modo seco,

«Como é que quer que eu lhe diga de onde é que elas vieram?»

Pedi­lhe que fizesse um pequeno esforço de memória, pois podia ser que se lembrasse, por exemplo, se as encomendas

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vieram de determinado país estrangeiro ou se, pelo contrário, tinham uma proveniência nacional, e, ao mesmo tempo, tentava mostrar a justeza do meu inquérito, mas acho que me baralhei porque ela conseguiu despachar­me com o evocar de uns tais regulamentos que não permitiam o tipo de inconfidências que eu pretendia. E quando percebi que não conseguia sustentar a minha defesa parti em debandada,

«Ora francamente! Onde já se viu isto?», sem qualquer informação útil e com um duro golpe na moralidade.

Movido pela sensação de frustração decorrente do falhan ço da operação vespertina, à noite saí de casa para fazer qualquer coisa que me distraísse. Pulei por alguns cafés e fui parar ao café no recinto do Castelo, depois de um longo passeio solitário. Encontrei por lá um colega da escola, outro deslocado como eu, do Porto, com quem troquei as queixas do costume e os gracejos do costume. Eu sabia que se tomasse café já não pregaria olho nessa noite, por isso bebi umas cervejas na companhia dele. Além disso, o meu cérebro estava suficientemente activo para prescindir do café. Uma hora depois, porém, já não suportava sofrer a imobilização daquele espaço, farto do cruzamento de olhares cheios de reticências de equívocos e ambiguidade.

Decidi regressar ao meu quarto alugado, mas, por uma atracção poderosa, acabei por me desviar do caminho mais do que seria normal e quando dei por mim estava na rua onde residia o professor Pinto. Nessa altura já se tinha levantado um vento gélido que não aconselhava a ninguém andar pelas ruas de Pinhel. Mas contra todo o bom senso não arredei pé por muito tempo, olhei para todos os lados e não vi vivalma. Fui, então, violentamente controlado pela ideia de subir ao muro da vivenda para cumprir adequadamente o meu papel de espião; e fi­lo; mas, no instante em que ganhava audácia para movimentações mais radicais, parou no passeio, a

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meu lado, um velhote envolto num capote serrano que me fitou. Eu imobilizei­me, em cima do muro, e fiquei transido de vergonha.

Ele parecia perplexo, e quando falou disse apenas,«Boa noite!»E eu, meio a gaguejar, respondi­lhe,«Bo­noi­te», quase como um eco.O homem afastou­se abanando a cabeça. Fiquei momenta­

neamente desenquadrado com a realidade e com a minha própria pele. Tive, no entanto, a impressão que o idoso não acreditara que me vira, ou melhor, que vira algum ente real. Mas, pelo sim e pelo não, seria prudente nunca mais me voltar a cruzar com ele na rua.

IX

Na sexta­feira seguinte fui o primeiro a chegar ao “poiso”. Mais lentamente do que o habitual, os outros foram chegando um a um, e o Roque, que não tinha hábito de chegar muito tarde, não havia maneira de aparecer. O estranho é que não chegou mesmo a aparecer. Quando mostrei estranheza por ele estar tão atrasado, o Cid disse despreocupadamente,

«Não vem. Falei com ele à tarde e disse que tinha um encontro extraordinário no fim do dia pelo que só vem para Coimbra amanhã de manhã».

No dia seguinte tentei telefonar­lhe, mas ele tinha o tele­móvel desligado e só à noite o vi. Mais uma vez estava atrasado. Quando finalmente chegou, fiquei desde logo apreensivo porque não trazia o rosto alegre e leve como o habitual. Esboçou um sorriso cansado ao sentar­se e pareceu­me que evitava olhar­me; mas logo de seguida entrou na conversa que já corria animada, pois, como não podia deixar de ser, éramos

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bastante destros em assuntos vários, desde o futebol à política governativa, e nessa semana tinha sido revelado mais um escândalo que envolvia distintos ministros e que era inevitável escalpelizar.

Cheguei a considerar que não seria nesse fim­de­semana que iria ter o retorno desejado, mas quando saíamos do “poiso” para ir ao bar Quebra­Costas, e nos dirigíamos para o carro do Zega, deixámos os outros rapazes ir adiante e o Roque segredou­me muito rapidamente,

«Não quero entrar neste assunto agora, mas amanhã terás de ir comigo à judiciária para clarificar uns tópicos.»

«Amanhã é domingo!?»«Eu sei, mas tem de ser. É que só ontem fiz o pedido

de informação, porque, para te dizer a verdade, me tinha esquecido completamente. Quando me preparava para vir para Coimbra lembrei­me e mandei o pedido por fax. Nem quinze minutos depois telefonaram­me e já não me deixaram vir para cá. Agora querem falar contigo. Tem que ser amanhã.»

«Pronto. Lá estarei.»«Encontramo­nos lá às quinze horas, tá?»Como combinado, no dia seguinte apresentei­me na sede

da Judiciária às três da tarde. O Roque acompanhava­me com o seu silêncio jurídico. Foi necessário assinar uns papéis na recepção do edifício e depois fomos conduzidos a uma sala confortável que seria, provavelmente, uma sala de reuniões. Fizeram­nos esperar bastante tempo, não tenho bem a certeza, mas pareceu ser bastante.

Finalmente entraram na sala dois indivíduos que se apre ­ sentaram como sendo o senhor Mateus, Comissário da Judi­ciária, e o senhor Prado Martinez, agente da Interpol, vindo directamente de Lisboa para estar presente nesse encontro. O Roque piscou­me o olho e percebi que aqueles dois eram os mesmos que já o haviam interrogado a ele. Fomos convidados

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a sentarmo­nos à mesa, eles de um lado, nós de outro, e com um gravador de permeio.

«Meu caro senhor», começou o Comissário dirigindo­se a mim, «pedi ao seu amigo que o convencesse a comparecer aqui porque precisamos de nos certificar do valor das informações de que dispõe.»

«Informações?»«Sim. Devo dizer que logo que o seu amigo fez um

pedido de informações no SIS, na sexta­feira passada, sobre actividades anómalas em antigas minas de urânio, isso interessou­nos imediatamente e fomos obrigados a averi­guar. O seu amigo disse­nos que não devia ser nada de importante, e que só estava a fazer esse pedido de informação por descargo de consciência. Ele contou­nos a sua história um tanto superficialmente, mas nós queríamos ouvi­la por completo da sua boca. Não se importa de nos relatar todas as suas suspeitas?»

Finalmente alguém estava a dar­me importância, por isso reuni todas as minhas competências linguísticas e contei­lhes tudo o que sabia,

«Bem, comecei por descobrir a existência de um físico que vive em Pinhel e que tem excelente reputação. Ele é um colega meu, lá na escola, e as pessoas acham­no com capacidade de conceber uma bomba atómica. Claro que eu não acreditei, mas decidi investigar. Porque fiquei surpreendido, percebem­ ­me? Então descobri que ele tem, de facto, um laboratório em casa, o que é bastante invulgar, para além de ter acesso a outros laboratórios bem equipados como o da Universidade de Salamanca e o da UBI. Depois descobri, por mero acaso, que ele costuma consultar páginas russas sobre física atómica. Duas delas eram uma espécie de manual de instruções para conceber uma bomba atómica. Sei­o porque as instruções estavam em inglês. Cheguei a conversar com ele sobre esse

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tema e ele pareceu­me perfeitamente informado. Disse­me que o mais difícil era arranjar o plutónio e um detonador. Ora, quanto à parte tecnológica, devo dizer que o professor recebeu durante algum tempo encomendas vindas do estrangeiro, mas não consegui precisar a proveniência. Quanto ao minério, depois de saber que ali na região havia antigas minas de urânio, ainda por cima que tinham sido recentemente violadas, coisa que testemunhei, pareceu­me que não podia ser pura coincidência. Ou seja, apercebi­me que o cientista tinha o know how, que a tecnologia seria facilmente encomendada nas antigas republicas soviéticas, e que a matéria prima colhida na própria região poderia ser transformada em plutónio nalgum laboratório a coberto de uma experiência académica ou mesmo pedagógica.»

Os dois homens cruzaram olhares de assentimento e pareciam satisfeitos com o que haviam ouvido. Mas o Roque, talvez incrédulo com a reacção dos outros, não pôde deixar de manifestar a sua desconfiança,

«Não acredito que os senhores achem satisfatórias as conjecturas do meu amigo! Devo avisar que ele é uma exce­lente pessoa e que nunca faria nada por mal, mas é algo fantasioso e não me admira que tenha feito uma interpretação algo exagerada! Nada do que ele disse tem qualquer apoio!»

Fiquei furioso com aquele comentário e deitei­lhe um olhar fulminante, mas o Comissário antecipou­se à minha manifestação,

«Como se engana meu caro Procurador!», exclamou o Comissário, para nosso espanto, com um tom misterioso na voz, o que fez o Roque olhar­me de boca aberta, incapaz de articular qualquer som. Ele não queria acreditar e eu começava a ficar excitado.

«Devo­lhe dizer que disponho de outras informações que confirmam, em parte, o que o seu amigo acabou de descrever.

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Na verdade, temos já vários relatórios que confirmam que diferentes minas na Beira Alta foram remexidas por estranhos, e não apenas aquela que visitou, e com intenções ainda por determinar. É seguro que foi retirado material das minas. Mas o mais bizarro é que não são só as minas o alvo destes assédios. Até muros em pedra de granito, que existiam nos campos há mais de duzentos ou trezentos anos, desapareceram. Estamos ainda a averiguar.»

Houve uma pausa e depois retomou,«E temos uma segunda informação ainda mais relevante:

os Serviços de Estrangeiros e Fronteiras detectaram a entrada em Portugal de dois antigos cientistas físicos atómicos, de origem ucraniana, dos quais não se sabe o paradeiro. Como sabem, Portugal tem recebido muitos emigrantes de leste, mas as competências destes dois últimos implicam perigos potenciais que não podemos deixar de investigar. Ainda não sabemos se há ligação entre um caso e outro.»

«Desculpe, mas continua a parecer­me insuficiente o conjunto de dados que dispõe!», insistia o Roque com algum desconforto patente no rosto.

«Volta a enganar­se caro Procurador… São indicadores que não podemos descurar! Mas há mais, evidentemente. Não é senhor Martinez?»

O espanhol aproximou­se da mesa ao apoiar os cotovelos e falou num português estranhamente correcto,

«Bom, um dado muito significativo é a análise do fluxo das mensagens e­mail entre os países de leste e a Europa ocidental em que se detectam as palavras ‘nuclear’, ‘bomba’ ou ‘ataque’. Pois bem, esse fluxo aumentou perigosamente. E um dos países onde se verificou o aumento deste tipo de mensagens é, precisamente, em Portugal, por isso temos de investigar todas as possibilidades mesmo não havendo provas concretas. E, como poderá imaginar, cabe­nos fazer a

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despistagem dos casos reais e dos casos inócuos. Além disso, talvez ainda mais importante, temos informações fornecidas por agências estrangeiras que dão conta de movimentações terroristas que são verdadeiramente preocupantes.»

Produzia um português nasalado que era acompanhado pelo teatro das mãos estendidas sobre o tampo da mesa, batendo com as pontas dos dedos na mesa quando queria sublinhar alguma ideia ou volteando­as no ar para sugerir relações lógicas.

«Terroristas?!», exclamou o Roque.«Está a par da política internacional?», perguntou­lhe o

espanhol.«Estou.»«Então deve ter notado que desde a queda do bloco soviético

que as relações de poder se alteraram significativamente. Hoje a tensão não existe entre os EUA e a URSS, mas entre os EUA e, digamos assim, o terrorismo internacional, apoiado em certos estados párias. Ora, as agências internacionais de segurança têm dados credíveis que indicam que certos grupos terroristas se preparam para realizar um atentado de grandes proporções, que tanto poderá ter lugar na Europa ocidental como na América do Norte. Além disso, sabemos que poderá ser perpetrado com o recurso a engenhos atómicos, por isso, onde quer que haja uma suspeita, por mínima que seja, tem que ser averiguada.»

O Roque continuava a abanar a cabeça dizendo que lhe pare cia tudo muito circunstancial e pouco fundamentado, ape­sar de reconhecer o dever das autoridades em investigar para dissipar dúvidas, mas que era prematuro avalizar como autên­ tica a suspeita de uma bomba atómica na beira alta portuguesa,

«Faltam as provas concretas! Eis tudo! Os senhores não têm provas concretas, pois não? É que sem provas, esta história tem um certo tom anedótico, não acham?»

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Fez-se um silêncio ingrato na sala; e os polícias quase emudeceram.

«Bom, para dizer a verdade…», balbuciava o Comissário,«Mas eu tenho!», exclamei eu.Foi o meu momento de triunfo. Todos me olharam com

assombro. Parecia que se tinham esquecido que era eu quem conhecia o terreno em que todo o drama se desenrolava. Levei a mão ao bolso do casaco e retirei o meu pequeno grava dor. Coloquei-o em cima da mesa e accionei-o, elevando o som. Por entre murmúrios vários e um rumor de emissão televisiva, pôde-se ouvir nitidamente numa voz feminina a expressão, «Bomba atómica! Bomba atómica!», o que os deixou atónitos.

«Creio que é a voz da esposa do professor Pinto», adiantei eu.

«Como é que você arranjou isto?», perguntou o agente da Interpol.

E lá contei como subi o muro do jardim da vivenda do professor Pinto, como trepei à varanda e ouvi aquelas arre-piantes palavras. Liguei o gravador e aproximei-o o máximo possível da janela, esperando que alguém as repetisse para eu poder gravar. E não foi preciso esperar muito para ouvi-las outra vez, distintamente, «Bomba atómica! Bomba atómica!».

«Que lhe parece que isto significa?», voltou o espanhol.«Na altura pareceu-me alguma forma de exultação, por

parte da mulher, pela façanha do cientista. Fosse o que fosse, pareceu-me a prova de que há uma bomba atómica naquela casa.»

O Roque ficou mudo e pálido.O Comissário Mateus levantou-se, desligou o gravador

que registara toda a conversa e declarou,«Bem, acho que já não precisamos de mais nada. Amanhã

vamos esclarecer definitivamente este assunto. Não podemos suspeitar da existência de uma bomba nuclear, mesmo que

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artesanal, e não fazer nada. Agora vamos preparar a equipa e a operação de amanhã.»

Já estávamos todos de pé. «O senhor terá de nos acompanhar», disse o espanhol,

apontando para mim.

X

Aquela segunda­feira de manhã foi diferente de todas as outras. Fui para Pinhel, como de costume, mas não no meu carro, nem sozinho. Eram ao todo três viaturas da Judiciária e eu era conduzido numa delas. A viagem pareceu­me mais rápida do que era hábito. O castelo de Celorico da Beira parecia diferente ao passar no IP5. Parecia reconhecer­me em vez de me ignorar.

Entrámos na cidade pouco passava das oito da manhã. Os carros pararam diante da vivenda do professor Pinto às oito e doze minutos. Os polícias pegaram nas armas e envolveram a vivenda para prevenir uma eventual tentativa de fuga. Pareceu­ ­me um aparato disparatado. O comissário pegou no megafone e chamou insistentemente o professor Pinto. O barulho do megafone era ensurdecedor numa urbe tão pacata, onde o barulho dos motores era normalmente destronado pelo som dos elementos ou dos animais. O professor Pinto e a esposa apareceram à porta da vivenda, ambos em roupão, perplexos, com uma cara indesmentivelmente talhada de sono, incapazes de dizer o quer que fosse. Entretanto, devido à presença de tantos polícias e de tanto alvoroço, a gata, que a senhora Pinto tentava proteger nos seus braços, assustou­se, assanhou­se e tentou fugir à confusão. E, ao tentar controlá­la nos braços, a senhora Pinto exclamou exasperada e nervosa,

«Está quieta Bomba Atómica! Anda cá! Anda cá!»

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