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A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA DE JÜRGEN HABERMAS: CONCEITOS BÁSICOS E POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO À ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR José Marcelino de Rezende Pinto* RESUMO Neste trabalho buscaremos apresentar uma síntese dos principais con- ceitos da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas assim como de- duzir algumas de suas implicações para o estudo das organizações. Em par- ticular, buscaremos mostrar que esta teoria se constitui em poderoso instru- mento analítico no estudo da estrutura e funcionamento dos conselhos com participação popular que são uma marca característica das sociedades capi- talistas contemporâneas. Este estudo tem por base a tese de doutorado Admi- nistração e Liberdade: Um estudo do Conselho de Escola à luz da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas (Pinto, 1994). INTRODUÇÃO Um primeiro alerta que deve ser feito quando nos iniciamos no estudo das ideias de Habermas e que, muito embora ele se configure como um legítimo representante do movimento que se convencionou chamar Escola de Frankfurt, como apontam McCarthy (1984) e Persson (199 2), na perspec- tiva da abordagem habermasiana o estudo da sociedade devo incluir e, sem- pre que possível, integrar enfoques teóricos divergentes. Em virtude desta postura, Habermas desenvolve sua teoria da ação comunicativa em um dia- logo constante com autores de uma ampla gama de linhas teóricas. Assim, ele incorpora uma série de temas e contribuições que foram desenvolvidos, seja pelo funcionalismo, pela fenomenologia, pelo marxismo, ou pela pró- pria teoria crítica da escola de Frankfurt, sua matriz original e mais impor- tante. Desta forma, sua teoria assume naturalmente um caráter interparadigmálico, o que não significa, como veremos, um mero amálgama de várias linhas teóricas mas um processo extremamente rico de incorpora- ção/superação. * Professor Doutor do Depto. do Psicologia e Educação da FFCLRP-USP.

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Ação comunicativa: introdução.

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  • A TEORIA DA AO COMUNICATIVA DE JRGEN HABERMAS: CONCEITOS BSICOS E POSSIBILIDADES DE APLICAO

    ADMINISTRAO ESCOLAR Jos Marcelino de Rezende Pinto*

    RESUMO

    Neste trabalho buscaremos apresentar uma sntese dos principais con-ceitos da teoria da ao comunicativa de Jrgen Habermas assim como de-duzir algumas de suas implicaes para o estudo das organizaes. Em par-ticular, buscaremos mostrar que esta teoria se constitui em poderoso instru-mento analtico no estudo da estrutura e funcionamento dos conselhos com participao popular que so uma marca caracterstica das sociedades capi-talistas contemporneas. Este estudo tem por base a tese de doutorado Admi-nistrao e Liberdade: Um estudo do Conselho de Escola luz da teoria da ao comunicativa de Jrgen Habermas (Pinto, 1994).

    INTRODUO

    Um primeiro alerta que deve ser feito quando nos iniciamos no estudo das ideias de Habermas e que, muito embora ele se configure como um legtimo representante do movimento que se convencionou chamar Escola de Frankfurt, como apontam McCarthy (1984) e Persson (199 2), na perspec-tiva da abordagem habermasiana o estudo da sociedade devo incluir e, sem-pre que possvel, integrar enfoques tericos divergentes. Em virtude desta postura, Habermas desenvolve sua teoria da ao comunicativa em um dia-logo constante com autores de uma ampla gama de linhas tericas. Assim, ele incorpora uma srie de temas e contribuies que foram desenvolvidos, seja pelo funcionalismo, pela fenomenologia, pelo marxismo, ou pela pr-pria teoria crtica da escola de Frankfurt, sua matriz original e mais impor-tante. Desta forma, sua teoria assume naturalmente um carter interparadigmlico, o que no significa, como veremos, um mero amlgama de vrias linhas tericas mas um processo extremamente rico de incorpora-o/superao.

    * Professor Doutor do Depto. do Psicologia e Educao da F F C L R P - U S P .

  • AO COMUNICATIVA E MUNDO DA VIDA

    Jrgen Habermas ser o autor que buscar enfrentar os fantasmas detec-tados por Weber, Adorno e Horkheimer nos processos de racionalizao societria. Estes autores mostraram em suas anlises, o processo pelo qual o Iluminismo que, na forma da razo cientfica, surgiu no sc. XVIII como o grande agente de libertao social, de conquista da maioridade pelo ser humano, de destruio dos mitos, transforma-se ele prprio em um novo mito e consolida-se enquanto ideologia de dominao que legitima a sociedade capitalista. A dominao do homem sobre a natureza, converte-se em domi-nao do homem sobre o homem, em mundo administrado em nome da tcnica, abrindo espao para a ecloso da des-razo no seio da sociedade de consumo moldada pela indstria cultural. Para Habermas, a anlise destes autores chega a um impasse porque eles trabalham com um conceito restrito de razo. Em virtude disto, eles confundem o processo de modernizao ca-pitalista, que calcado na razo instrumental, como sendo a prpria raciona-lizao societria (Habermas, 1987a). Agindo desta forma, confundindo racionalidade do sistema com racionalidade da ao, estes autores s conse-guiram situar a espontaneidade livre de reificao em poderes irracionais como o carisma, no caso de Weber, a arte, para Adorno e o amor, para Horkheimer.

    Para sair deste impasse, Habermas prope um salto paradigmtico, no qual abandona-se o paradigma da conscincia a que estes autores encon-tram-se presos, em prol de um paradigma da comunicao. O paradigma da conscincia calcado na idia de um pensador solitrio que busca entender o mundo a sua volta, descobrindo as leis gerais que o governam, revelando a unidade encoberta sob a diversidade aparente. Neste modelo h uma relao de subordinao do objeto trente ao sujeito. Para Habermas, este paradigma no se sustenta mais. Depois que Hegel mostrou o carter intrinsecamente social e histrico das estruturas da conscincia, que Marx revelou que a mente no o campo da natureza, mas o inverso e que as formas de consci-ncia so representaes ocultas das formas de reproduo social; depois que Darwin estabeleceu o vnculo entre inteligncia e sobrevivncia e, fi-nalmente, que Nietzche e Freud revelaram o inconsciente no mago da cons-cincia, d-se uma dessublimao do esprito e um enfraquecimento da filo-sofia (McCarthy, 1984). C) pensamento filosfico perde sua auto-suficincia, caem as esperanas de se encontrar os fundamento ltimos de uma primeira filosofia.

    Como afirma Habermas, ...eu pretendo arguir que uma mudana de paradigma para

    o da teoria da comunicao tornar possvel um retorno tare-fa que foi interrompida com a crtica da razo instrumental; e isto nos permitir retomar as tarefas, desde ento negligencia-das, de uma teoria crtica da sociedade (1984, p. 386).

  • Distintamente do que ocorre com a filosofia da conscincia, o que paradigmtico para a racionalidade comunicativa

    ...no a relao de um sujeito solitrio com algo no mundo objetivo que pode ser representado e manipulado mas a relao intersubjetiva, que sujeitos que falam e atuam, assu-mem quando buscam o entendimento entre si, sobre algo. Ao fazer isto, os atores comunicativos movem-se por meio de uma linguagem natural, valendo-se de interpretaes culturalmente transmitidas e referem-se a algo simultaneamente em um mun-do objetivo, em seu mundo social comum e em seu prprio mundo subjetivo (1984, p. 392). Esta mudana de paradigma fruto do abandono de uma compreen-

    so egocntrica do mundo, cuja fundamentao Habermas retira do concei-to de descentrao de Piaget.

    Habermas buscar ento, a partir de um dilogo com Marx, Weber, Durkheim, Mead, Lukcs, Horkheimer, Adorno, Marcuse e Parsons, pensan-do com eles para ir alm deles como esclarece McCarthy (1984), construir um conceito de racionalidade que encontra seus fundamentos nos processos de comunicao intersubjetiva com vistas a alcanar o entendimento. Segun do Arago (1992, p. 82),

    ...Habermas acredita que, na estrutura da linguagem co-tidiana, est embutida uma exigncia de racionalidade pois, com a primeira frase proferida, o homem j manifestava uma pretenso de ser compreendido, uma busca de entendimento. Esta razo distingue-se completamente da razo instrumental, a qual

    estrutura-se no uso no comunicativo do saber em aes dirigidas a fins.A racionalidade instrumental que, atravs do empirismo, marcou profundamente a autocompreenso da era moderna foi submetida crtica implacvel de Weber e posteriormente de Adorno, Horkheimer e Marcuse. O grande proble-ma destas abordagens que, nelas, eles confundiram um tipo particular de racionalizao e suas consequncias como sendo patologias da prpria ra-z o .

    Portanto, com a constatao da inexistncia de um referencial teri-co absoluto e com os limites demonstrados do empirismo, o que torna melhor um argumento "a sonoridade de suas razes" (Habermas, 1984, p. 24). Por sua vez, o que caracteriza a racionalidade de uma expresso lingustica o fato de suas pretenses de validade serem suscetveis crtica, atravs de procedimentos reconhecidos intersubjetivamente. Por outro lado, para Habermas, em um processo de comunicao mediado linguisticamente, existem somente trs critrios de alcance universal pelos quais as pretenses de validade podem ser confrontadas.

    Assim, as pretenses de validade podem ser criticveis quanto : 1 - Veracidade da afirmao. Esta pretenso refere-se a um mundo obje-

    tivo entendido como a totalidade dos fatos cuja existncia pode ser verificada; 2- Correo normativa. Esta pretenso refere-se a um mundo social dos

  • atores, entendido como a totalidade das relaes interpessoais que so legi-timamente reguladas;

    3- Autenticidade e sinceridade. Esta pretenso refere-se a um mundo subjetivo, entendido como a totalidade das experincias do locutor s quais, em cada situao, apenas ele tem acesso privilegiado(Habermas, 1984).

    O conceito de razo comunicativa de Habermas pressupe, portanto, uma diferenciao entre os mundos objetivo, social e subjetivo. Esta diferen-ciao, segundo ele, que distingue o pensamento moderno do modo de pensar mtico. Ao contrrio do ltimo, o primeiro assume que as interpreta-es variam com relao realidade social e natural e que as crenas e valores variam em relao ao mundo objetivo e socia l .

    Outra consequncia deste conceito que ele pressupe o abandono da relao cognitiva sujeito-objeto por um procedimento cognitivo de natu-reza intersubjetiva, numa relao sujeito-outro sujeito e que s possvel com a progressiva descentrao de nossa viso egocntrica de mundo.

    Portanto, com a superao da viso mtica com seu carter unificador e com o abandono da relao sujeito solitrio dominante e consciente frente a um objeto dominado e cognoscvel, surge a necessidade dos atores em comunicao chegarem ao entendimento quanto a pretenses de validade criticveis. Fica ento, tambm, demarcada a diferena entre ao comuni-cativa e ao orientada para o sucesso. Como diz Habermas, a ao comuni-cativa ocorre

    ...sempre que as aes dos agentes envolvidos so coor-denadas, no atravs de clculos egocntricos de sucesso mas atravs de atos de alcanar o entendimento (grifo nosso). Na ao comunicativa, os participantes no esto orientados pri-meiramente para o seu prprio sucesso individual, eles buscam seus objetivos individuais respeitando a condio de que po dem harmonizar seus planos de ao sobre as bases de uma definio comum de situao. Assim, a negociao da defini-o de situao um elemento essencial do complemento interpretativo requerido pela ao comunicativa (1984, p. 285, 286). Em sntese, podemos dizer ento que, para Habermas, a ao comuni-

    cativa surge como uma interao de, no mnimo dois sujeitos, capazes de falar e agir, que estabelecem relaes interpessoais com o objetivo de al-canar uma compreenso sobre a situao em que ocorre a interao e sobre os respectivos planos de ao com vistas a coordenar suas aes pela via do entendimento. Neste processo, eles se remetem a pretenses de validade criticveis quanto sua veracidade, correo normativa e autenticidade, cada uma destas pretenses referindo-se respectivamente a um mundo obje-tivo dos fatos, a um mundo social das normas e a um mundo das experinci-as subjetivas. Para construo deste conceito, ele se baseou no interacionismo simblico de Mead, no conceito de jogos de linguagem de Wittgenstein, na teoria dos atos de fala de Austin e na hermenutica de Gadamer.

  • O conceito de alcanar o entendimento que decorre da ao comuni-cativa requer, por sua vez, a definio do contexto em que estes procedi-mentos acontecem. Isto porque aquilo que o falante quer dizer com seu pronunciamento depende do conhecimento acumulado e realiza-se sob o pano de fundo de um consenso cultural anterior. neste ponto que Habermas introduz o conceito de mundo da vida (Lebenswelt), entendido como o con-texto no problematizvel, o pano de fundo que propicia os processos de se alcanar o entendimento. Como ele afirma, no sentido cotidiano o mundo da vida pode ser entendido como aquele em que "os atores comunicativos situ-am e datam seus pronunciamentos em espaos sociais e tempos histricos" (1987a, p. 136). Ele constitudo por um saber implcito sobre o qual ns, normalmente, nada sabemos porque ele simplesmente no problemtico, no atinge o limiar dos pronunciamentos comunicativos que podem ser vli-dos ou no. Como ele escreve,

    ...se a verdade o que fundamentado, ento o funda-mento no verdadeiro, ou falso (1987a, p. 337). [ Mesmo por-que ],os atores esto sempre se movendo dentro do horizonte do seu mundo da vida, eles no podem se colocar de fora dele. Como intrpretes, eles prprios pertencem ao mundo da vida, por meio de seus atos de fala, mas no podem se referir a "algo no mundo da vida" da mesma forma que podem fazer com fatos, normas e experiencias subjetivas(1987a, p. 125,126). O mundo da vida por sua vez dividido em tres componentes estrutu-

    rais : Cultura, sociedade e pessoa. -Cultura, entendida como o estoque de conhecimento do qual os ato-

    res suprem-se de interpretaes quando buscam a compreenso sobre algo no mundo;

    -Sociedade, entendida como as ordens legtimas atravs das quais os participantes regulam suas relaes no grupo social;

    -Pessoa, entendida como as competencias que tornam um sujeito ca-paz de falar c agir, ou seja, de compor sua prpria personalidade (Habermas, 1987a).

    Para Habermas, existe uma correlao direta entre ao comunicati-va e mundo da vida, j que cabe primeira a reproduo das estruturas simblicas do segundo (cultura, sociedade, pessoa). Assim, sob o aspecto do entendimento mtuo, a ao comunicativa serve para transmitir e renovar o saber cultural; sob o aspecto de coordenar a ao, ela propicia a integrao social; e sob o aspecto da socializao, ela serve formao da personali-dade individual.

    Por outro lado, a reproduo do substrato material do mundo da vida ocorre atravs de aes dirigidas a fins pelos quais os indivduos associados intervm no mundo e realizam seus objetivos.

    Estabelecidos os conceitos complementares de ao comunicativa e de mundo da vida, partiremos agora para a anlise da teoria da evoluo social de Habermas, a partir da qual ele fundamenta o seu conceito de soci

  • edade, assim como os limites e possibilidades da utopia comunicativa, advindos com os estgios mais avanados do desenvolvimento capitalista.

    UMA TEORIA DA MODERNIDADE Para construir sua teoria da evoluo social e seu conceito de socie-

    dade, Habermas busca articular as abordagens de H. Mead e E. Durkheim. Deste, retira a idia de um Estado limite, totalmente integrado, enquanto do primeiro incorpora a tese do efeito desintegrador que os atos de fala desenca-deiam quando a reproduo simblica do mundo da vida est ligada ao comunicativa. Estes atos provocam uma racionalizao do mundo da vida dos grupos sociais, medida em que a linguagem preenche as funes de alcanar o entendimento, coordenar aes e socializar os indivduos (Habermas, 1987a).

    Habermas, toma como ponto de partida, a idia de Durkheim de uma situao hipottica inicial, na qual existe uma sociedade totalmente inte-grada, cuja coeso social assegurada pelos domnios do sagrado e onde no necessria a mediao da linguagem tanto nos domnios religiosos quanto profanos. A religio assegura a unidade da coletividade e reprime os conflitos que podem surgir nas relaes de poder ou nos interesses econmi-cos. Isto representa um estado de integrao social no qual a linguagem tem uma significancia mnima. Habermas imagina "um estado no qual a lingua-gem saiu de ferias" (1987a, p. 87). O indivduo no possui existncia prpria, ele s existe na totalidade. No ocorreu ainda a diferenciao entre os trs mundos (objetivo, social e subjetivo).

    Nesta situao inicial, no existe tambm diferenciao entre as esfe-ras da ao teleolgica e aquelas da ao comunicativa; o culto religioso se comporta como uma instituio total que envolve e integra todas as aes, seja na esfera da famlia, ou do trabalho soc ia l . As estruturas da viso de mundo, as instituies e a personalidade individual ainda no se diferencia-ram e permanecem fundidas na conscincia coletiva constitutiva da identi-dade do grupo.

    Contudo, com o passar do tempo, a prtica cotidiana c o peso cada vez maior dos atos comunicativos vo fortalecendo os processos de alcanar o entendimento em detrimento da tradio normativa e do sagrado. As con-vices passam a retirar sua autoridade cada vez menos da aura do sagrado e cada vez mais de um consenso que no somente reproduzido mas tam-bm alcanado comunicativamente H uma transio da interao media-da simbolicamente para a fala gramatical. Durkheim e Mead vem este processo como uma linguistificao do sagrado. Nas palavras de Habermas,

    ... medida que o potencial embutido na ao comunica-tiva realizado, o ncleo normativo arcaico se dissolve e abre caminho para a racionalizao das vises de mundo, para a universalizao da lei e da moralidade e para uma acelerao dos processos de individuao (1987a, p. 4b).

  • Desta feita, ...a comunidade religiosa que fez, pela primeira vez, pos-

    svel a cooperao social transformada em uma comunidade de comunicao baseada na presso para cooperao. A interao guiada pela norma muda sua estrutura medida que as funes de reproduo cultural, integrao social, e sociali-zao [ou seja, a reproduo simblica do mundo da vidai pas-sam do domnio do sagrado para aquele da prtica comunicati-va cotidiana(1987a, p. 91). Por outro lado, Habermas salienta que a coeso social no pode ser

    garantida to somente atravs de processos comunicativos de busca do en-tendimento. Para ele, existem duas formas bsicas de integrao de um siste-ma de ao:

    - Integrao obtida atravs de um consenso alcanado normativamente ou comunicativamente (Integrao social);

    - Integrao obtida atravs de uma regulao no normativa das deci-ses individuais que vai alm da conscincia dos atores, via mecanismos auto-regulados como o mercado, ou a burocracia (Integrao sistmica).

    Ora, esta distino nas formas de integrao demanda, por sua vez, uma diferenciao nos conceitos de sociedade. Assim, do ponto de vista dos sujeitos atuantes, a sociedade concebida como o mundo da vida de um grupo social. Por outro lado,

    ...da perspectiva de um observador no envolvido, a soci-edade s pode ser concebida como um sistema de aes tal que cada ao tem um significado funcional de acordo com sua contribuio para a manuteno do sistema (Habermas, 1987a, p. 117). A partir desta constatao, Habermas prope um conceito de socieda-

    de entendida simultaneamente como mundo da vida e sistema. O fundamen-to deste conceito, ele retira de uma teoria da evoluo social que separa o processo de racionalizao do mundo da vida da crescente complexidade dos sistemas sociais. assim que ele d i z :

    Ns vemos a sociedade como uma entidade que, no cor-rer da evoluo, diferenciou-se tanto como um sistema quanto como um mundo da vida. A evoluo sistmica medida pelo aumento na capacidade de direo da sociedade, enquanto o estado de desenvolvimento de um mundo da vida estruturado simbolicamente indicado pela separao da cultura, socieda-de e personalidade (1987a, p. 152). Sinteticamente, a sociedade pode, ento, ser vista como "Complexos

    de ao sistematicamente estabilizados de grupos socialmente integrados" (1987a, p. 152).

    Assim, ele visualiza um processo de evoluo social no qual a racio-nalizao do mundo da vida se d atravs da sucessiva libertao do poten

  • cial de racionalidade contido na ao comunicativa e no qual a ao orien-tada para o entendimento mtuo ganha cada vez mais independncia dos contextos normativos. Em virtude disto, cada vez maiores demandas so feitas sobre o meio bsico da linguagem cotidiana, o qual acaba sobrecarre-gado, sendo substitudo por meios deslinguisliticados- os meios diretores di-nheiro e poder - oriundos da esfera sistmica. D-se o desengate, a ciso entre o mundo da vida e o sistema:

    Atravs dos meios dinheiro e poder, os subsistemas da economia e do estado so diferenciados fora de um complexo institucional estabelecido dentro do mundo da vida; surgem domnios de ao formalmente organizados [grifo do autor] que, em ltima anlise, no so mais integrados atravs dos meca-nismos de entendimento mtuo mas que se desviam dos con-textos do mundo da vida e congelam-se num tipo de sociabili-dade livre de normas.

    Com essas novas organizaes surgem perspectivas sistmicas, das quais o mundo da vida distanciado e percebi-do como um elemento do meio ambiente do sistema. As orga-nizaes ganham autonomia atravs de uma demarcao que as neutraliza frente s estruturas simblicas do mundo da vida. Tornam-se peculiarmente indiferentes cultura, sociedade, e personalidade (Habermas, 1987a, p. 307). Temos ento o seguinte quadro: com o desengate entre sistema e

    mundo da vida que marca a sociedade moderna, o sistema social rompe o horizonte do mundo da v ida e distancia-se do saber intuitivo da prtica co-municativa cotidiana. Com a crescente complexidade do sistema social, o mundo da vida cada vez mais deixado na periferia e perde seu papel de integrao soc ia l . De outro Lado, a libertao da ao comunicativa da orientao de valores particulares leva separao da ao orientada para o entendimento mtuo daquela orientada para o sucesso, o que abre espao para que a coordenao de aes se de atravs de meios de comunicao deslinguislilicados (dinheiro e poder). A substituio da coordenao da ao que era feita inicialmente por meios lingusticos, pelos meios dinheiro e poder, traz como consequncia o desatrelamento da interao social dos contextos do mundo da vida, o que faz. com que este j no seja mais neces-srio para coordenar a ao. Assim, para Habermas,

    ...com a institucionalizao legal do meio monetrio que marca a emergncia do capitalismo, a ao orientada para o sucesso, guiada por clculos egocntricos de utilidade, perde sua conexo com a ao orientada para o entendimento m-tuo. Esta ao estratgica que desatrela-se dos mecanismos de alcanar o entendimento e demanda por uma atitude objetivante inclusive no campo das relaes interpessoais promovida a modelo para lidar metologicamente com uma natureza objetivada cientificamente. Na esfera instrumental, a ativida-de dirigida a fins, ao retirar sua legitimidade do sistema cient-fico, fica livre das restries normativas (1987a, p. 196).

  • Chega-se ento ao seguinte paradoxo: A racionalizao do mundo da vida torna possvel a emer-

    gencia e o crescimento de subsistemas cujos imperativos se voltam definitivamente contra o prprio mundo da vida (1987a, p. 186). Podemos ento sintetizar as teses de Habermas em dois pontos: 1- o processo de evoluo social marcado pela crescente racionali-

    zao do mundo da vida, a qual implica em progressiva demanda, como agente de coordenao da ao, pelos mecanismos de alcanar o entendi-mento mediados linguisticamente, os quais acabam sobrecarregados;

    2- Esta sobrecarga sobre os processos comunicativos, aliada cres-cente diferenciao sistmica, acaba por abrir caminho para que os meios deslinguistificados (dinheiro, via mercado e poder, via administrao buro-crtica) assumam cada vez mais as funes de coordenar as aes, alijando para a periferia do sistema os processos comunicativos mediados linguisticamente. Ocorre uma reificao das estruturas simblicas do mundo da vida levada a efeito pelos imperativos sistmicos que se tornaram auto-suficientes.

    A este processo de reificao ele deu o nome de Colonizao do mundo da vida, o qual ser responsvel por uma srie de patologias que atingem as sociedades capitalistas contemporneas, em especial nos pases mais avanados. Passemos ento sua anlise destas sociedades.

    Para Habermas, das relaes entre sistema e mundo da vida nas sociedades capitalistas contemporneas, iro aflorar quatro papis basicos. Das relaes entre o sub-sistema econmico e a esfera privada do mundo da vida (cujo ncleo institucional e a famlia) surgem os papis de empregado do sistema produtivo e de consumidor de produtos. Por outro lado, das relaes entre o sub-sistema administrativo e a esfera pblica do mundo da vida (cujo ncleo institucional so as redes comunicativas) temos os papis de cliente da administrao pblica e de cidado do Estado (1987a).

    Os papis de empregado e cliente so assumidos nas suas interrelaes com os sub-sistemas econmicos e administrativos via mecanismos essenci-almente no-valoralivos e auto-regulados (mercado e burocracia). Por outro lado, os papis de consumidor e cidado, referem-se a processos de natureza essencialmente autoformadora nos quais entram em considerao questes de preferncia e orientao de valores e atitudes. A sua natureza definida com referencia a domnios organizados formalmente mas no dependente deles. As normas legais que lhes so relevantes assumem a forma de relaes contratuais e direitos civis. Estes papis pertencem, portanto, aos contextos do mundo da vida e no podem ser tratados administrativamente ou econo-micamente.

    Habermas alerta que s podem ser convertidos aos meios diretores dinheiro e poder aqueles domnios da ao que preenchem funes econ-micas e polticas. Em contrapartida, estes meios falham completamente quan do aplicados aos domnios da reproduo cultural, integrao social e

  • socializao. Eles no conseguem substituir os mecanismos de coordenao da ao para o mtuo entendimento nestes campos.

    Quando os meios dinheiro e poder invadem estas reas, temos a colo-nizao do mundo da v ida . Como afirma Freitag:

    ...foi exatamente este processo que levou ao que Weber chamou de perda de liberdade do homem (..). Foi o que, ''mutatis mutandis", Lukcs denominou de alienao e Marcuse de unidimensionalizao (1988, p. 62). No esquema habermasiano, a colonizao do mundo da vida ocorre

    quando os imperativos sistmicos retiram os elementos prtico-morais e pr tico-estticos das esferas pblicas e privadas da vida. a monetarizao e burocratizao das prticas cotidianas em ambas estas esferas. Ele afirma:

    medida que o sistema econmico sujeita a seus impe-rativos as formas de vida do lar privado e a conduta de vida dos consumidores e empregados, est aberto o caminho para o consumismo e para o individualismo exacerbado. A prtica comunicativa cotidiana racionalizada de forma unilateral num estilo de vida utilitrio, esta mudana induzida pelos meios diretores para uma orientao de natureza teleolgicagera, como reao, um hedonismo liberto das presses da racionalidade. Assim como a esfera privada solopada e erodida pelo sistema econmico, tambm a esfera pblica o pelo sistema adminis-trativo. O esvaziamento burocrtico dos processos de opinio espontneos e de formao da vontade abrem caminho para a manipulao da lealdade das massas e torna fcil o desatrelamento entre as tomadas de deciso polticas e os con-textos de vida concretos e formadores de identidade (Habermas, 1987a, p. 325). Segundo Habermas, este processo anlogo aos mecanismos de do-

    minao legal aventados por Weber, nos quais questes prticas aparecem como questes tcnicas e as demandas por justia substantiva so descarta-das em favor de uma legitimao via procedimentos.

    A infra-estrutura comunicativa fica ento ameaada simultaneamen-te por uma reificao sistematicamente induzida (que foi analisada por Lukcs) e por um empobrecimento cultural, j que os processos de raciona-lizao cultural se, por um lado, representaram uma libertao das amarras da tradio, por outro, deixaram as esferas da cultura aprisionadas nas mos de experts, distantes ainda, portanto, das prticas cotidianas. Outro ponto fundamental salientado por Habermas que, com a racionalizao e secu larizao da cultura empreendida pela burguesia, o antigo poder de coeso do sagrado perdido, e ento a cultura perde as propriedades que a tornaram capaz de exercer funes ideolgicas.

    A resposta sistmica ao fim desta funo ideolgica da cultura a fragmentao da conscincia do cotidiano, que perde seu poder de sntese. Como diz Habermas:

  • No lugar da falsa conscincia, ns lemos hoje uma cons-cincia fragmentada que bloqueia o iluminismo pelo mecanis-mo da reificao. somente assim que as condies para a colonizao do mundo da vida so dadas (1987a, p. 355). Nos pases de capitalismo avanado, a forma institucional em que se

    consolida a colonizao do mundo da vida o Estado de bem-estar social embasado na interveno governamental e na democracia de massas. Se-gundo Habermas, o marxismo ortodoxo tem grande dificuldade em explicar a emergncia desta formao porque, atravs de sua teoria do valor, ele v apenas um dos aspectos da dominao sistmica, a saber, aquela exercida pelo meio dinheiro. Os marxistas ortodoxos no levaram em conta que o sistema econmico, dirigido pelo meio dinheiro, para ser eficaz, deve ser suplementado pelo meio poder.

    Ora, no intervencionismo estatal que marca o Estado de bem-estar social o que ocorre a constante atuao do sistema administrativo no sen-tido de contornar as crises que afetam o sistema econmico. Ou seja, estamos longe dos tempos de capitalismo concorrencial que foram analisados por Marx. importante ressaltar que, no obstante este processo de interveno se tenha mostrado bastante eficiente no sentido de garantir a sobrevivncia do sistema capitalista, ele acaba desencadeando crises de legitimao uma vez que as crises de natureza econmica tornam-se no s administradas mas acabam tambm deslocadas para o sistema administrativo. Desta feita, com o avano das disfuncionalidades do sistema de livre mercado que ame-aavam a sua prpria existncia com crises sucessivas, a interveno estatal tornou-se cada vez mais imprescindvel. Ora, este fato entra em oposio frontal com a ideologia do Estcio liberal, com a idia de uma sociedade civil emancipada que neutralize o poder (Habermas, 1987c). Ocorre uma repolitizao do sistema econmico, com a demanda de mecanismos de legitimao equivalentes aos que existiram em sociedades pr-capitalistas. Contudo, o seu restabelecimento impossvel porque, de um lado, as tradi-es j se dissolveram e, por outro, nas sociedades industriais os resultados da emancipao burguesa relativamente dominao poltica imediata (os direitos fundamentais do homem e o mecanismo das eleies gerais) impe-dem qualquer retorno s formas pr-burguesas (Habermas, 1980).

    Os limites do intervencionismo estatal ficam claros quando analisa-mos as sociedades industriais desenvolvidas do ocidente e o impacto que esta interveno causa nas decises dos investimentos privados. Assim, os custos maiores em salrios, impostos e encargos trabalhistas tm levado as empresas a intensificar seus investimentos em capital, visando uma maior produtividade, o que implica em quedei no nvel de emprego com reflexos na estrutura fiscal. Ademais, a forte presena do Estado tem um eleito psico-lgico no sentido de desestimular investimentos. O que se constata ento que h um limite ao do Estado, e mesmo onde ela representou alguns ganhos qualidade de vida, como nos pases capitalistas desenvolvidos, fica clara a sua impotncia em assegurar garantias fundamentais como, por exem-plo, o direito ao trabalho a todos os cidados. O resultado deste processo

  • que o Estado c:orre o risco de perder sua base social que tende a se alinhar com posies mais conservadoras (discurso neo-liberal) em oposio aos seg-mentos da populao mais desfavorecidos (Habermas, 1987b).

    Se na esfera do intervencionismo estatal na economia, o Estado de bem-estar enfrenta problemas, a situao se complica ainda mais no que toca sua legitimao na forma de democracia de massa. Aqui, a coloniza-o do mundo da vida ainda mais crtica. Isto porque o poder legal advindo de um sistema administrativo depende, em ltima anlise, de uma legitimao de ordem poltica. Em princpio, somente procedimentos democrticos de formao de vontade podem gerar legitimao num mundo da vida raciona-lizado e com alto nvel de individuao da personalidade. Este fato, eviden-temente, entra em contradio com os imperativos sistmicos. Por isso, se-gundo Habermas, "entre capitalismo e democracia existe uma tenso indissolvel; em ambos, dois princpios opostos de integrao societria competem pela primazia" (Habermas, 1987a, p. 345). Esta tenso transparece, por exemplo, na esfera da opinio pblica que envolve tanto um potencial de formao livre da vontade quanto os elementos de manipulao poltica e de produo artificial de lealdade das massas, limitando o papel do cida-do a um mero eleitor com poder de deciso poltica restrito.

    Os limites do Estado social ficam ainda mais evidentes no que se refere sua interveno na prpria vida dos cidados onde visa garantir a justia social. Se, num primeiro momento, esta atuao social do Estado re-presentou ganhos efetivos na qualidade de vida da populao, a hipertrofia desta interveno e a burocratizao que a acompanha, com seus efeitos de tratamento impessoal, normalizao e vigilncia excessiva, acabaram vol tando-se contra seus beneficirios. As formas burocrticas de administrao so incapazes de atender s demandas por emancipao. Problemas sociais so tratados num vis legalista, questes calcadas na histria de vida e em situaes concretas so submetidas a um alto nvel de abstrao, tratadas de forma administrativa e referenciadas to somente em compensaes finan-ceiras. H uma total desconformidade entre o tipo de demanda e o servio oferecido pelo Estado de bem-estar social (1987a).

    Quanto mais o Estado social expande sua rede assistencial sobre as esferas da vida privada, maiores os efeitos colaterais patolgicos de uma juridificao que envolve tanto a burocratizao quanto a monetarizao de esferas centrais do mundo da vida.

    Esta juridificao atinge as reas de proteo ambiental, segurana nuclear e proteo de dados, assim como os campos do lazer, da cultura, do turismo e recreao que, cada vez mais, adequam-se s regras da economia de mercado e consumo de massa A prpria famlia burguesa e a escola enquadram-se ante os imperativos sistmicos.

    Habermas se preocupa de forma particulamente intensa com a inter-veno burocrtica e o controle judicial da escola e da famlia. Para ele,

    ...de forma alguma, famlia e escola se constituem en-quanto esferas de ao formalmente organizadas. (..) Nestas

  • esferas do mundo da vida, ns encontramos, anterior a qualquer legalizao, normas e contextos de ao que, por necessidade funcional, so baseados no entendimento mtuo como um me-canismo de coordenao de ao (1987a, p.369). Os processos formativos que tm lugar na famlia e na escola, e que

    acontecem pela via da ao comunicativa, devem ocorrer independente-mente de qualquer regulao legal. A lei deve ter um papel meramente complementar nas reas de ao socialmente integradas.

    No caso da famlia, Habermas cita o exemplo da legislao que regu-la os direitos da criana, que s vezes visando protege-la da violncia dos pais, cria uma tecitura legal que produz uma nova relao de dependncia. Saem os pais, entra o Estado. Assim, para ele, o que,

    ... primeira vista, algumas vezes apresentado como um instrumento para romper as estruturas de dominao no in-terior da famlia, prova, frente a um exame mais detalhado, ser tambm um veculo para uma nova forma de dependncia (1987a, p. 370). Habermas mostra a inadequao do sistema legal para lidar com este

    tipo de questo, uma vez que " o prprio meio da lei que viola as estruturas comunicativas da esfera que foi legalizada" (1987a, p. 370).

    Analogamente, no caso da escola, ele afirma: A proteo dos direitos dos alunos e pais contra as medi-

    das educacionais (como promoo, ou no promoo, exames, testes, etc) ou contra atos da escola e do departamento de edu-cao que restringem direitos bsicos (penalidades, disciplinas), e ganha ao custo de uma legalizao e burocratizao que penetram fundo no processo de ensino e aprendizagem (1987a, p. 371). Isto porque, de um lado, este processo provoca uma sobrecarga nas

    agncias governamentais e, de outro, como no caso da famlia, o meio "lei" entra em confronto com a forma em que transcorre a atividade educacional. Este processo de excessiva regulamentao coloca em risco a liberdade pe-daggica e a iniciativa do professor, assim como leva despersonalizao, inibio da inovao, perda de responsabilidade e imobilismo.

    Para Habermas, a sada desta situao passa por, ...como no caso da famlia, (..) desregulamentar e sobre-

    tudo desburocratizar o processo pedaggico. A constituio de uma legislao escolar deve embasar-se em procedimentos de tomada de deciso que considere todos aqueles envolvidos no processo pedaggico como tendo capacidade de representar seus prprios interesses e de regular seus atos por iniciativa pr pria (1987a, p. 372). Estas colocaes de Habermas apontam para a importncia de meca-

    nismos de deciso, como o caso dos Conselhos de Escola, ou Colegiados

  • que buscam colocar o poder de deciso, no mbito da escola, nas mos da comunidade escolar em detrimento do poder burocrtico. Ns voltaremos a este tpico mais adiante. Antes, contudo, vejamos como, na viso de Habermas, o Estado social enfrenta as patologias que advm da colonizao do mundo da vida.

    Baseando-se em Claus Offe, Habermas mostra que, frente a estas ques-tes, s resta ao Estado de bem-estar a estratgia de evitao dos problemas crnicos. E nesta atividade preventiva, o Estado se restringe ao adminis-trativa, execuo de tcnicas que visam garantir o funcionamento de um sistema regulado. O problema porm que os problemas no so tcnicos, mas prticos, e no se encontram na esfera da "ao racional teleolgica", mas da "ao comunicativa". A ttica utilizada pelos que detm o controle do sistema a de despolitizar as massas, eliminando os contedos prticos dos problemas, visando transform-los em tcnicos e que, como tal, devem ser resolvidos cientificamente. Est aberto o campo para a tecnoburocracia (Habermas, 1987c).

    Estas aes preventivas no conseguem contudo eliminar estes proble-mas. Citando Offe, Habermas diz que as zonas de conflito surgem entre as necessidades que ficam na periferia do campo de ao estatal e aquelas centralmente localizadas. Assim, surge uma disparidade entre o nvel efeti-vamente institucionalizado e as potencialidades reais de desenvolvimento tcnico e social. Como exemplo, cita o estupendo avano dos meios de produo e defesa em comparao com a estagnao dos servios de sade, educao; ou a grande eficcia do planejamento nas reas fiscal e financei-ra, comparada com o caos do planejamento urbano (1987c).

    Com este processo, h um deslocamento das zonas de conflito da esfera da luta de classes (como ressalta a teoria marxista) para os mbitos subprivilegiados da vida. Situam-se neste caso os conflitos raciais nos EUA ou na Europa, por exemplo. Todavia, uma vez que estes grupos no so classes sociais e o sistema no vive (depende) do seu trabalho, o seu poten-cial de xito revolucionrio restrito (1987c e 1980).

    Habermas acredita que uma nova zona de conflitos no vir da luta de classes, ou destas disparidades entre centro e periferia do sistema, mas surgir exatamente do sistema de opinio pblica, administrado pelos meios de comunicao que onde atuam os mecanismos de despolitizao das massas, os quais ocultam as diferenas entre as questes tcnicas de regulao do sistema e as possibilidades reais de emancipao existentes no marco institucional (esfera da ao comunicativa) (1987c).

    Concluindo, podemos dizer ento que o grande dilema do Estado de bem-estar que ele visa a integrao social atravs de mecanismos que s desintegram as relaes de vida. A assistncia fsica, psico-social e emancipatria requer modos de operao, critrios de racionalidade e for-mas organizacionais que esto fora dos domnios da administrao burocra-ticamente estruturada (1987a).

    Haver ento, Habermas, chegado aos mesmos dilemas da dialtica

  • negativa de Adorno e Horkheimer, ou queles da anlise weberiana? Ou seja, ser que o desenvolvimento da razo acaba gerando inexoravelmente os elementos que levam destruio de lodo o seu potencial emancipatrio e iluminista?

    Habermas acredita que no, porque, ao contrrio destes autores, ele no confunde o desenvolvimento da razo instrumental como sendo o pr-prio processo de racionalizao societria. Esta confuso levou Weber, Ador-no e Horkheimer a buscar a espontaneidade livre da reificao em poderes irracionais (carisma, arte e amor). Na verdade, o processo narrado por estes autores consequncia no do processo de racionalizao societria mas da colonizao do mundo da vida pelos imperativos sistmicos. A tarefa que se coloca ento a reconquista daquelas estruturas simblicas do mundo da vida (cultura, sociedade e pessoa) pelos mecanismos que coordenam a ao atravs da busca do entendimento. Segundo Habermas:

    ...s a racional idade comunicativa refletida numa autocompreenso da modernidade, oferece uma lgica interna (..) para resistir contra a colonizao do mundo da vida pela dinmica interna de sistemas autnomos (1987a, p. 333).

    Diante do esgotamento do Estado social, Habermas v trs atitudes possveis. De um lado, esto os legitimistas do Estado social que buscam consolidar o nvel j alcanado, buscando restaurar o equilbrio entre inter-veno estatal e modernizao da economia de mercado. De outro, esto os neoconservadores (representados, por exemplo, nas polticas desenvolvidas nos governos Reagan e Tatcher) que partem para o ataque ao Estado social, embasados no discurso neoliberal. Um terceiro grupo assume uma linha de crtica ao crescimento como um bem em s i . So grupos variados e heterog-neos (velhos, jovens, mulheres, desempregados, homossexuais) e o que os une uma recusa viso produtivista que permeia o pensamento tanto dos legilimistas do Estado social quanto dos neoconservadores. Eles tm uma postura ambivalente ante o Eslado social e entendem que o mundo da vida est ameaado tanto pela mercanti l izao (dinheiro) quanto pela burocratizao (poder). Falta a este grupo, porm, um programa alternativo, eles se limitam a uma postura negativa, "Grande Recusa" (1987b).

    Habermas entende que somente este terceiro grupo; tem condies de sair da atitude defensiva que compartilha com os demais. Para tanto, contu-do, sua atuao deve ser no sentido de levar o projeto do Estado social a um nvel mais alto de reflexo e o primeiro passo nesta direo que o trabalho deixe de ser o eixo de referncia. Em seguida deve haver um controle social e ecolgico da economia de mercado que, deixada sua prpria sorte, tem levado a disparidades sociais cada vez mais gritantes, com atrasos e involues econmicas (como a fome no 3 Mundo), colocando em risco a prpria exis-tncia do homem sobre a terra em virtude da degradao ambiental. No obstante, esta interveno no mercado (que no deve ser eliminado), precisa acontecer atravs de mecanismos indiretos, "partindo de fora, sobre os me-canismos de auto-orientao do sistema" (Habermas, 1991, p. 57).

    Alm do mercado, o prprio Estado intervencionista precisa ser, agora,

  • socialmente controlado. Para que estes dois processos ocorram, necessrio contudo, segundo

    Habermas, haver uma "mudana da relao entre os espaos pblicos aut-nomos, de um lado, e, de outro, os setores comerciais orientados pelo dinhei-ro e pelo poder administrativo" (1991, p. 57).

    As sociedades modernas dispem, para Habermas, de trs recursos que podem satisfazer suas necessidades de governo: dinheiro, poder e soli-dariedade. O poder integrador da solidariedade deve servir de barreira efi-caz ao poder do dinheiro e ao poder administrativo, de tal forma que o mun-do sistmico no invada o mundo da vida.

    Nesta redefinio de posies, as decises passam, a nascer de um processo de reflexo onde se garante a livre discusso dos temas e propostas de soluo aos problemas apresentados, garantindo-se simultaneamente efi-ccia e responsabilizao dos participantes pelas decises tomadas. Como afirma Habermas, "o poder gerado de modo comunicativo pode atuar sem intuito de conquista, sobre as premissas dos processos de valorizao e deci-so da administrao pblica" (1991 p. 58). Ele garante o fundamento das aes que o poder administrativo pode at executar de forma instrumental. O pressuposto deste agir comunicativo contudo a garantia de uma formao radicalmente democrtica de opinio e vontade.

    Alm disto, Habermas entende que o nvel dos problemas enfrentados pelas sociedades desenvolvidas s encontrar soluo pela via de uma moralizao dos temas pblicos, algo que, como vimos, o sistema tecnocrtico insiste em evitar, numa postura de adiar as solues estruturais e que tem, cada vez mais, colocado em xeque a sua prpria existncia.

    Problemas como a ameaa nuclear, os gastos com armamentos, a obsolescncia programada, o preconceito contra as minorias e a misria no 3 mundo, no so tcnicos e no encontraro soluo na atual distribuio de poder. Eles s podero ser enfrentados

    ...pelo vis de uma moralizao dos temas, por uma ge-neralizao de interesses operada de modo mais ou menos discursivo em espaos pblicos no obstrudos de culturas pol-ticas liberais (Habermas, 1991, p. 59). Sintetizando, Habermas prope uma organizao onde as esferas p-

    blicas autnomas alcanariam uma combinao de poder e autolimitao, atuando sobre os mecanismos de auto-regulao do Estado e da economia, visando uma formao radicalmente democrtica da vontade, tendo como pressuposto um deslocamento das energias utpicas do campo do trabalho para o da comunicao. O contedo utpico desta sociedade da comunica-o est em garantir condies bsicas para uma prtica comunicativa coti-diana que propiciaria as condies para os prprios participantes - de acordo com seus prprios interesses - realizarem uma vida melhor (Habermas, 1987b).

    Habermas, alerta contudo que ...Uma soberania popular assim processada no poder

    operar tambm sem a retaguarda de uma cultura poltica que

  • lhe venha em apoio, sem as maneiras de pensar (gesinnungen) de uma populao habituada liberdade poltica: no h for-mao da vontade poltica sem o auxlio de um mundo da vida racionalizado (1990, p. 111). Finalmente, adverte ele para os riscos de se cair numa "religio civi l"

    e proclama uma "cultura de massas, profana, irrestrita e igualitria" (1990, p.113).

    HABERMAS E A ORGANIZAO

    Nesta altura do trabalho, podemos ento tentar esquematizar quais seriam os principais elementos de um modelo organizacional baseado na te-oria da ao comunicativa:

    1- Libertao do mundo da vida dos imperativos sistmicos, mediante uma desregulamentao e desmonetarizao de suas estruturas (cultura, so-ciedade, pessoa). Na prtica, isto implica e m :

    a- Luta contra os imperativos financeiros e burocrticos que regem a produo tanto cultural quanto cientfica; controle pblico sobre os meios de comunicao de massa com vistas a garantir uma formao demo-crtica da vontade;

    b- Enxugamento progressivo da tecitura legal que rege as rela-es entre pessoas enquanto componentes de uma estrutura social normativamente legitimada. Preocupar-se mais com o contedo das normas do que com sua processualstica. Promover uma moralizao dos temas p-blicos, via discusso poltica, aberta a todos;

    c- Restringir ao mximo a legislao sobre a famlia e a escola e empreender a sua desburocratizao radical, visando assegurar a forma-o de uma personalidade autnoma;

    2- Manuteno dos sistemas econmicos e administrativos guiados pelos mecanismos do mercado e da administrao burocrtica mas submeti-dos a controle externo;

    3- Este controle ser exercido por associaes espontneas (vemos aqui as Organizaes No-governamentais, ONGs), organizadas na esfera dos espaos pblicos autnomos (vemos aqui a presena dos Conselhos). Fica claro que sua fora no advir de mecanismos formais de poder mas de sua legitimidade;

    4- Valorizao de mecanismos de deliberao coletiva que estimu-lem o entendimento e no a mera conquista do poder (por exemplo, delibe-rao por consenso e no por votao).

    Se conseguimos captar acima, de fato, o esprito da proposta habermasiana, o que se constata que este autor no prope a destruio do aparato estatal-burocrtico, ou do mercado. No fundo, a nosso ver, o que ele sugere uma democracia processual, uma "soberania em procedimento",

  • na qual os mecanismos de ao do mercado e do poder administrativo sero controlados no mbito de conselhos populares (espaos pblicos autnomos) no qual intervm as associaes no governamentais e que se valem de processos comunicativos de busca do entendimento.

    CONCLUSO

    Neste breve esboo da teoria da ao comunicativa de Jrguen Habermas esperamos ter mostrado que esta teoria, atravs do seu conceito de sociedade em dois nveis, Sistema (esfera regida por mecanismos direto-res auto-regulados como o mercado e o poder administrativo) e Mundo da Vida (esfera regulada pela busca do entendimento atravs de procedimentos mediados linguisticamente) e, em particular, atravs de seu postulado de colonizao do mundo da vida pelos imperativos sistmicos, oferece uma chave adequada para interpretarmos a sociedade capitalista contempornea com suas patologias e contradies. Alm de propiciar um diagnstico acurado dos problemas organizacionais presentes no atual estgio de desenvolvimen-to do modo de produo capitalista, esta teoria aponta para o papel funda-mental desenvolvido por mecanismos como os conselhos populares, organi-zados enquanto espaos pblicos autnomos, no sentido de servir de barreira colonizao do mundo da vida pelos imperativos sistmicos. E dentro desta perspectiva que vemos a atuao dos Conselhos de Educao, Sade e Meio Ambiente, entre outros, que se espalham pelo pas.

    Com relao escola, a teoria da ao comunicativa ajuda a enten-der o seu processo de burocratizao, assim como a influncia saneadora exercida por mecanismos que trazem o poder de deciso sobre os seus desti-nos para as mos da comunidade escolar, como o caso dos conselhos esco-lares, os quais, no obstante, como mostram os estudos de campo, tambm sofrem os efeitos dos constrangimentos sistmicos (Paro 1992, Passos, Carva-lho e Silva, 1988 e Pinto, 1994).

    Entendemos que a teoria da ao comunicativa fornece, no s uma explicao para a existncia de conselhos com participao popular, que intervm na fixao de diretrizes de polticas pblicas e de investimentos privados, mas mostra tambm que a consolidao destes espaos pblicos autnomos, onde atuam os diversos grupos da sociedade civil, condio bsica para a soluo de uma srie de patologias que marcam as sociedades capitalistas contemporneas. luz da anlise habermasiana, a existncia destes fruns de discusso e deliberao nasce, no de um ato de vontade de um grupo de indivduos que lutam por justia e liberdade, mas como uma necessidade que encontra seus fundamentos nos prprios processos de racio-nalizao societria. Ao questionar o paradigma da razo instrumental como o nico padro de racionalizao possvel, introduzindo o conceito de razo comunicativa, Habermas realiza um salto paradigmtico com profundas implicaes para a teoria da administrao. Se, como ele aponta, no mbito do mundo da vida, onde ocorrem os processos cruciais de produo e trans

  • misso cultural, de socializao e de formao da personalidade individual, a ao deve necessariamente ser dirigida por processos comunicativos de busca do entendimento e no atravs de meios auto-regulados, como o mer-cado ou a administrao burocrtica, como si ocorrer atualmente, isto sig-nifica a necessidade de mudanas profundas nas formas de gesto destas reas, mudanas estas que implicam na introduo de mecanismos de deci-so que levem em conta a participao de lodos aqueles que sofrero os efeitos desta ao.

    Esperamos, portanto, neste breve artigo, ter demonstrado as potencialidades d teoria da ao comunicativa de Habermas como referencial terico para os estudos organizacionacionais e, lemos certeza, que novos estudos nesta vertente aqui esboada, podero trazer contribuies impor-tantes a todos aqueles que lutam pela construo de uma sociedade que no seja guiada pelo poder do dinheiro, ou da burocracia, como hoje, mas por homens emancipados que vem a diversidade, no como um nus mas como um trunfo fundamental para a sobrevivncia da civilizao.

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    ABSTRACT

    It's our aim to present in this paper,the basic concepts from Jrgen Habermas' theory of communicative actions, as well to develop some inferences of this theory for the administration study, specialy the school one.

    Key Words: Theory of communicative action, Habermas' theory applied at administration, school councils, democratic administration. Palavras Chaves: Teoria da ao comunicativa, Teoria de Habermas aplicada administrao, conselhos escolares, gesto democrtica.