7282724 o miseravel soldo e a boa ordem da sociedade colonial
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O MISERVEL SOLDO & A BOA ORDEM
DA SOCIEDADE COLONIAL
Militarizao e Marginalidade na Capitania de Pernambuco
dos Sculos XVII E XVIII
KALINA VANDERLEI P. DA SILVA
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Sumrio
Apresentao & agradecimentos
Prefcio Uma histria de poder no Pernambuco colonial
Parte I Das armas. Sobre a composio das tropas
1 A forja Formao e organizao militar moderna;
Europa, Portugal, e o Estado do Brasil
Na metrpole
No Estado do Brasil
2 Matria prima As origens sociais dos militares
coloniais
Semeando as roas vivas de soldados: o recrutamento
Criminosos, vadios e outros elementos incmodos
Parte II Chuo, mosquete e alvar. O soldado, o Estado,
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3
a sociedade
3 O segundo perodo portugus
Pernambuco post bellum
Esses holandeses de outra cor: a guerra de Pernambuco
contra a Serra da Barriga
4 Bananas & farinha A controversa poltica rgia
de manuteno das tropas
Farinha e misria
5 O miservel soldo Usos e utilidades. Assimilao
e transgresso. Cotidiano e resistncia
Utilidade e inutilidade o emprego das tropas pela Coroa
portuguesa
Artesos, bandidos, esmoleres as formas alternativas
de trabalho dos militares
Velhos, estropiados e ignorantes: incompetncia e
inutilidade das tropas
O valor dos soldados
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4
Roubos, estupros, assassnios
Fuga. Resistncia. Castigo. Punio
Reflexes sobre o trabalho
Bibliografia
Notas
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UMA HISTRIA DE PODER NO PERNAMBUCO COLONIAL
Um soldo miservel era a paga dos homens que serviam a el Rei de Portugal como
soldados. E na sociedade colonial, apesar desse seu miservel soldo, so esses mesmos
homens os responsveis pela manuteno da boa ordem del Rei. a partir dessa
constatao, fruto da observao do Estado portugus e de suas relaes com a sociedade
da zona aucareira, que vamos partir nessa narrativa em busca das condies de vida dos
homens que compunham as tropas do rei. Homens que so, em sua maior parte, oriundos
das margens do sistema colonial.
Dessa forma, estamos procurando por aquilo que Alfredo Bosi chama de condies
coloniais: o modo de vida, as relaes humanas entre aqueles que viviam na Amrica
portuguesa. Buscamos as mltiplas formas concretas de existncia interpessoal e subjetiva,
a memria e os sonhos, as marcas do cotidiano no corao e na mente, o modo de nascer,
de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar, de rezar, de cantar, de morrer e ser
sepultado.1 Mas, de uma forma mais especfica, procuramos por uma influncia particular
que se exerce sobre essas condies de vida. A influncia do Estado.
A sociedade colonial da zona aucareira do Estado do Brasil, cenrio de nossa
histria, construda em torno de uma empresa comercial, a empresa aucareira. Uma
empresa projetada e controlada pela Coroa portuguesa. A sociedade que surge ao redor
dessa empresa recebe as atenes da Coroa apenas em parte: o Estado no interfere nos
engenhos e nas relaes sociais que l se estabelecem. Mas interfere nos ncleos urbanos
onde so instalados seus mecanismos de controle. A sociedade colonial interessa ao Estado
portugus apenas enquanto suporte para a empresa do acar. No entanto, nos ncleos
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urbanos se desenvolvem camadas no diretamente ligadas a essa empresa. Camadas menos
independentes do que marginais. E so essas camadas que atrairo a ateno da Coroa,
temerosa de seus movimentos. Assim que a Coroa estabelece seus aparelhos
burocrticos, instrumentos de controle social, nos ncleos urbanos, tornando-os repressivos
por excelncia2. E um dos mecanismos mais eficientes , sem dvida, o aparelho militar.
A eficincia do organismo militar da Coroa portuguesa, montado na zona colonial do
acar, como instrumento de controle social, vem do fato de, ao mesmo tempo em que
reprime possveis perturbaes boa ordem da sociedade, aproveita como soldados os
prias dessa mesma sociedade: d uma utilidade social aos elementos desligados da
empresa aucareira3. No simplesmente o ostracismo para os marginais, pelo contrrio,
dar-lhes alguma funo ativa no meio social. Essa a principal funo do aparelho militar
profissional da Coroa na zona do acar, como percebemos no decorrer deste trabalho.
Veremos que a represso e a funo blica esto, muitas vezes, nas mos dos
prprios colonos, devido m estruturao da organizao militar profissional. E isso vai
dar origem s tropas auxiliares, compostas por colonos e no profissionais, utilizadas pela
Coroa para o servio que deveria ser de suas tropas.
Dentro dessa perspectiva, tentamos observar os usos do aparelho militar institucional
na zona aucareira: como esse aparelho utilizado tanto militar quanto politicamente.
Estamos fixando nosso olhar sobre Olinda e Recife, da segunda metade do XVII at fins do
XVIII. A escolha desses dois ncleos, em meio a tantos outros da mesma rea, se deve
importncia que eles assumem politicamente perante Pernambuco e suas Capitanias Anexas
e por serem dessas vilas, os homens recrutados para as tropas institucionais mais ativas e
representativas da rea do acar perante a Coroa. Alm disso, a acessibilidade das fontes
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documentais para essas duas povoaes tambm nos incentivou a continuar a pesquisa
dentro desse quadro espacial.
Essas tropas so as mais representativas com a exceo daquelas estabelecidas em
Salvador, sede do poder rgio no Estado do Brasil e de sua burocracia. Mas, apesar de que
abordaremos em alguns momentos tambm essas tropas baianas, por uma questo de
similaridade contextual, no geral procuramo-nos restringir Capitania de Pernambuco,
devido s disputas que nela ocorrem, entre todo um elenco de atores que vo do
Governador Geral Cmara de Conceio em Itamarac. So disputas descritas e
analisadas pela historiografia4 em que Pernambuco assume uma postura de enfrentamento
ante a jurisdio rgia. Uma postura que fica bastante ntida na atuao dessas duas
povoaes nesse perodo.
Nosso cenrio o Pernambuco Post Bellum, usando a expresso de Evaldo Cabral,
quando se refere ao Pernambuco recm sado das guerras holandesas e novamente inserido
na jurisdio da Coroa portuguesa. O perodo que chamamos de segundo perodo portugus
de Pernambuco, e que tem incio em 1654, se estende ao longo do sculo XVIII at os
primeiros estertores da crise do sistema colonial entre o XVIII e o XIX.
Ao longo desse sculo e meio, nossa viso pretende fixar-se sobre as estruturas
sociais. Estruturas que, na colnia, variam pouco ao longo do tempo. Nossa observao se
prende assim nas permanncias da sociedade. O que significa que no nos deteremos em
momentos de crises conjunturais, de crises polticas, que no chegam a abalar as estruturas
sociais coloniais, entre as quais est a estrutura militar. Diferentes estudiosos tm abordado
recentemente os militares coloniais em momentos de ruptura do sistema5. O que mais
uma razo para darmos um enfoque diferente, procurando olhar para os homens que
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formam essas tropas da Coroa enquanto eles vivem o cotidiano da sociedade colonial, e no
suas crises.
Construindo nossa narrativa, fomos desenrolando uma trama de relaes de poder
entre Coroa, tropas e sociedade livre. E fomos tentando fazer uma histria que no se
propusesse a dar explicaes definitivas. Uma histria que possa ser exemplificada pelas
palavras de Hobsbawn , se tudo isso chega a fornecer uma explicao adequada, ou ao
menos uma explicao verificvel, no podemos ter certeza.6 No podemos ter certeza,
apenas iniciar a investigao.
Iniciar a narrativa traando um contexto histrico seria a forma tradicional e a
simples. E normalmente o simples est carregado de eficincia e poesia. Mas correndo o
risco de nos tornarmos rocambolescos, vamos iniciar de outra forma. Temos uma boa
desculpa para isso, visto que alguns conceitos precisam ser definidos de imediato; conceitos
como tropa burocrtica, disciplina, milcias, ordenanas. Conceitos que, para se tornarem
plausveis, precisam do tranado da organizao da estrutura militar ento vigente. Tendo
isso explcito, esperamos que o fato de o contexto histrico vir, exatamente, no meio do
trabalho, no prejudique a fluidez do texto.
O trabalho est dividido em dois captulos principais: O primeiro, Das Armas, como
o subttulo j diz, trata da composio das tropas coloniais. Nele, veremos a organizao
militar do Imprio portugus em oposio ao mundo europeu moderno. Vamos considerar o
nascimento da disciplina e suas particularidades no mundo portugus, alm de procurarmos
as camadas sociais que fornecem os homens para a composio dessas foras.
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No segundo, Chuo, mosquete e alvar, temos o contexto histrico da sociedade em
questo; as estratgias polticas de controle das tropas; e por fim, algumas formas de
resistncia social a esse sistema.
Bem, isso. Tentamos costurar a narrativa de maneira simples e fluida, procurando
no perder o essencial e abordando o mximo de opes explicativas possveis. Esperamos
que a leitura seja agradvel e possa esclarecer alguns aspectos pouco percebidos da
sociedade da Amrica colonial portuguesa. Por tudo podemos nos justificar
antecipadamente com as palavras de Katherine Mansfield:
Eis tudo. Nem romance nem histrias complicadas, nada que no seja simples e
sincero.7
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Parte I Das Armas. Sobre a composio das tropas.
A era clssica viu nascer a grande estratgia poltica e
militar segundo a qual as naes defrontam suas foras
econmicas e demogrficas; mas viu nascer tambm a
minuciosa ttica militar e poltica pela qual se exerce nos
Estados o controle dos corpos e das foras individuais. O
militar a instituio militar, o personagem do militar, a
cincia militar, to diferentes do que caracterizava antes o
homem da guerra se especifica durante esse perodo, no
ponto de juno entre a guerra e os rudos da batalha de um
lado, a ordem e o silncio obediente da paz por outro.
Foucault, Michel. Vigiar e Punir ( p. 151)
Em 1663, escreve o governador de Pernambuco Francisco de Brito Freyre ao rei
portugus Dom Afonso VI, atravs do Conselho Ultramarino, prestando contas de sua
administrao. Essa carta em particular, entre outros assuntos, a maior parte dos quais sobre
as medidas defensivas tomadas na capitania, aborda a necessidade de uma reduo nas
tropas de Pernambuco, inchadas e dispendiosas devido ao recente trmino da guerra
holandesa. Ele prope uma reformulao geral da organizao militar, que inclui a extino
de um dos trs teros existentes. Essa extino implicaria necessariamente em uma
diminuio do nmero de soldados e oficiais. Apesar da praticidade da medida, que ele
mesmo prope, admitida como a melhor soluo para a conteno de gastos, o governador,
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todavia, hesita em aplic-la. Hesita em reduzir os efetivos, em extinguir postos, em
dispensar homens. E alega:
Mas como quase todos esses oficiais, criando-se em uma
guerra to arriscada lhe deram um fim to milagroso, (...)
obrigam justiamente a seu favor a grandeza de Vossa
Majestade no tendo muitos outro modo de vida que a
profisso de soldado, sem mais cabedal que o de suas pagas,
(...).8
Cento e trs anos depois, em 1766, na vila do Recife, um soldado do Regimento de
Infantaria se desentende com um escravo em um aougue. O escravo pertence ao
governador da capitania, Manuel da Cunha Menezes. Por qualquer motivo, o governador
considera o incidente como uma afronta pessoal e ordena o apoleamento9 do soldado. Este,
cujo nome se perdeu, faz parte da companhia do Capito Joo Rodrigues Souza que, ento,
procura o governador para explicar o ocorrido e tentar libertar o soldado. O resultado, no
entanto, contrrio s expectativas do capito, que se v insultado pelo governador.
Considerando-se ofendido e injustiado, o capito Joo Rodrigues no hesita em
insubordinar sua companhia para libertar o preso. Em resposta, Cunha Menezes envia
outras companhias para reprimir o motim; companhias estas que tambm se aliam ao
Capito.
Como resultado, e se sentindo sem alternativas, Cunha Menezes no apenas liberta o
soldado como releva o motim, sem nenhuma represso, devassa ou punio para qualquer
de seus participantes.10
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Desde os oficiais e soldados de Brito Freyre, heris sem cabedais que no podem ser
dispensados, at os soldados e oficiais do Capito Joo Rodrigues, insubordinados sem
prestgio que no podem ser castigados, temos cem anos de histria da Capitania de
Pernambuco onde, apesar das mudanas no cenrio poltico-econmico, encontramos
estruturas sociais que permanecem muito semelhantes durante todo o perodo. Estruturas
que se movimentam com lentido. Nelas os militares ocupam uma posio chave como
elementos das relaes de poder entre a Coroa e os colonos.
O controle social e poltico sobre a Capitania de Pernambuco exige da Coroa prticas
especficas que so possveis graas a uma srie de polticas e comportamentos simblicos
que encaixam o organismo militar e os homens que o compem. O primeiro passo para
perceber a importncia tanto do organismo em si, quanto desses seus homens e de sua
interao com a sociedade, conhecer o que e como se forma a estrutura militar colonial.
Antes de mais nada, esses homens das foras repressivas coloniais so apenas parte
da estrutura portuguesa, metropolitana e imperial. E dessa forma esto inseridos em um
contexto cujos limites vo alm das fronteiras da Colnia americana, alcanando a Europa
Moderna e seus novos exrcitos. Assim, vamos partir da generalidade: podemos tentar
compreender os militares coloniais dentro do Estado Moderno, centralizado sob o comando
de um prncipe, que ainda sofre presses por parte da nobreza, detentora de especializao
militar.
um processo de metamorfose militar que segue paralelo s transformaes
polticas da Era Moderna, iniciadas com a centralizao dos Estados, e que se finaliza com
a ascenso poltica da burguesia na Revoluo Francesa.
O arco de tempo que traamos como limite em torno da sociedade colonial, para
observ-la, est situado entre duas mudanas; a ascenso e a queda das monarquias
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europias. E assim, podemos entender as estruturas militares e sociais aqui estudadas como
partculas do Estado Moderno absoluto, burocrtico, barroco11
no caso ibrico. Mas
devemos, antes de mais nada, compreender o significado de organizao militar.
Precisamos saber a que organizao nos referimos. Ou melhor, a quais.
John Keegan classifica as vrias formas em que os homens podem organizar-se
militarmente. Seis tipos principais, encontrveis ao longo da Histria: o guerreiro, o
mercenrio, o escravo, a tropa regular, a milcia, e o recruta12
.
Os soldados de linha das tropas regulares so mercenrios
que j gozam de cidadania ou equivalente, mas escolhem o
servio militar como meio de subsistncia; nos Estados
afluentes, o servio militar pode assumir alguns atributos de
uma profisso. (...). O princpio da milcia estabelece o dever
de prestar servio militar para todos os cidados aptos do
sexo masculino; a falta ou recusa em prest-lo leva
geralmente perda da cidadania; (...).13
Precisamos ter cuidado com essas definies, devido ao seu excesso de generalidade:
na colnia aucareira percebemos que os soldados de linha no escolhem o servio militar
como meio de sobrevivncia. Mas o que essa tropa de linha, ou tropa regular ? Na Idade
Moderna, para o Estado centralizado, a prestao de servios militares pelos bares,
segundo o regime medieval, insatisfatria. Muito mais eficiente o sistema de tropas
regulares, que so compostas por guerreiros profissionais, que exercem esse ofcio de
forma permanente, como fonte de renda e que, ao contrrio dos mercenrios, so cidados,
vassalos e sditos do Estado que os contrata.
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O principal fator de distino entre os diferentes tipos de tropa o sistema de
manuteno. E uma das diferenas fundamentais entre as tropas regulares e os mercenrios
que as primeiras so permanentes, enquanto os segundos so profissionais independentes,
mantidos apenas durante as crises. Apesar de ser tentador contratar mercenrios em vez de
manter dispendiosas tropas regulares permanentemente, os mercenrios so sempre
perigosos, pois seguem o tilintar das moedas e no dirigem nenhuma fidelidade aos Estados
ou soberanos contratantes, ao contrrio das tropas regulares que, compostas por sditos e
vassalos da Coroa em questo, so naturalmente alvos de diferentes estratgias e
mecanismos de controle social, o que as torna mais confiveis, se bem que mais caras e
nem sempre to eficientes.
Mas a confiabilidade muitas vezes parece no valer seu preo em ouro e, nesse caso,
um mtodo alternativo so as milcias adotadas na Idade Moderna, por cidades-estado
italianas no sculo XVI. Elas tomavam como condio de cidadania que todos os homens
livres e proprietrios comprassem armas, treinassem para a guerra e prestassem servio
militar em tempos de perigo. So compostas normalmente de burgueses e outras camadas
proprietrias, ou seja, os cidados em questo. Esto baseadas no modelo militar das
cidades gregas, onde as tropas so formadas pelos cidados que servem gratuitamente e
que, com exceo de treinamentos eventuais, s se mobilizam em casos de necessidade.
Sistema tecnicamente excelente. Tecnicamente, porque, sem dispndio para o Estado em
pocas de paz, tm ainda a vantagem da lealdade irrestrita dos cidados, todos interessados
em defender suas casas e propriedades. Vamos reencontr-las no Brasil colnia, compostas
por elementos oriundos das camadas livres. O grande problema desse sistema que os
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cidados nunca so em nmero suficiente para rechaar possveis ameaas.14
Ao menos,
no sozinhos.
No Estado Moderno europeu a tropa regular mantida pelo prncipe e seu errio tende
a sobressair s formaes milicianas, patrocinadas pelos burgueses. A razo para isso, se
considerarmos as tropas regulares antes de tudo como organizaes burocrticas, passa
tanto pelo problema da lealdade quanto da tcnica:
A razo decisiva para o progresso da organizao
burocrtica foi sempre a superioridade puramente tcnica
sobre qualquer outra forma de organizao. (...)Preciso,
velocidade, clareza, conhecimento dos arquivos,
continuidade, descrio, unidade, subordinao rigorosa,
reduo dos atritos e dos custos de material e pessoal so
levados ao ponto timo na administrao rigorosamente
burocrtica, especialmente em sua forma monocrtica. Em
comparao com todas as formas colegiadas, honorficas e
avocacionais de administrao, a burocracia tre inada
superior, em todos esses pontos. E no que se relaciona com
tarefas complicadas, o trabalho burocrtico assalariado no
s mais preciso, mas, em ltima anlise, frequentemente
mais barato do que at mesmo o servio no-remunerado
formalmente.15
Mesmo se referindo aqui burocracia moderna de forma geral, Weber expressa
tambm as vantagens das tropas burocrticas, vantagens descobertas pelo prncipe, porque
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alm das explicaes de ordem puramente militar para sua predominncia, as tropas
regulares so antes de tudo estatais, funcionrias, subordinadas em primeiro lugar ao
Estado. Ainda que esse Estado seja o rei.
Temos ainda um importante elemento: as novas construes mentais que nascem na
Europa Moderna, criadas pelos Estados absolutistas para o controle e melhor
aproveitamento de suas organizaes militares. Construes arquitetadas para a maior
submisso dos sditos e vassalos que esses Estados resolvem por fim contratar para sua
defesa, no lugar de utilizar as tropas de proprietrios. Pois algumas dessas foras milicianas
mais obstaculizam que incentivam o desenvolvimento das monarquias dinsticas. Algumas
apenas obstaculizam, como o caso da cavalaria feudal. So construes planejadas como
molduras para enquadrar esses homens que, como disse Foucault no texto que serve de
epgrafe a esse captulo, so homens de guerra e no ainda soldados: A estratgia,
instrumento poltico e militar de planejamento de aes, as naes defrontam suas foras
econmicas e demogrficas;(...)16
. E a ttica, em quem se exerce o controle dos corpos e
das foras individuais, dirigindo-os para a execuo das ditas aes.
assim que se cria na Era Moderna uma nova definio de gente de guerra: o
militar. Criado a partir dos conceitos de ordem, disciplina e obedincia ao Estado17
, o
soldado um novo personagem que se posiciona no cenrio entre a guerra, que sua tarefa
profissional, e a boa ordem do Estado, estabelecida pela natureza burocrtica deste. E da
mesma forma que o Estado centralizado possvel graas s tropas burocrticas, estas
contratadas diretamente pela Coroa e independentes dos laos de vassalagem com os
senhores feudais, o soldado burocrtico por sua vez, s possvel graas centralizao do
Estado e apropriao que este executa de parcela significativa da renda da sociedade:
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17
Do aspecto disciplinar, tal como econmico, o senhor feudal
e seus vassalos representam um contraste extremo com o
soldado patrimonial ou burocrtico. E o aspecto disciplinar
consequncia do aspecto econmico. O vassalo e senhor
feudais no s providenciam seu prprio equipamento e
provises, dirigem seu trem de bagagens, como tambm
convocam e chefiam os subvassalos que, por sua vez, tambm
se equipam.
A disciplina cresceu base da maior concentrao dos meios
de guerra nas mo do senhor blico.18
Assim, o novo militar da era moderna nasce, da mesma forma que as organizaes
militares em que atua, no apenas da ascenso poltica de governos unificados como
tambm do maior controle, por esses governos, da economia, ou pelo menos de parcelas
dela. Mas para Weber, se a disciplina criada pela ordem poltica e social, ela reage a essa
ordem de forma intensa, afetando a estrutura tanto do Estado como de instituies sociais
como a famlia, pois cria novas camadas profissionais, novas camadas sociais, para onde
acorrem diferentes elementos da populao.19
Criada pela ordem, a disciplina ordena. O
que se cria de mentalmente novo com ela a noo de trabalho contido e controlado.
Prtico.
O guerreiro com ataques manacos de fria e o cavaleiro
feudal que mede a espada com seu adversrio igual, a fim de
conseguir honras pessoais, so igualmente estranhos
disciplina. O guerreiro estranho porque sua ao
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irracional; o cavaleiro porque sua atitude subjetiva falta
esprito prtico. Em lugar do xtase herico ou da piedade
individual, do entusiasmo ou da dedicao de um lder, como
pessoa, do culto da honra ou do exerccio da habilidade
pessoal como uma arte a disciplina coloca o hbito
habilidade rotineira.20
Enquanto essa noo disciplinar surge na Europa do sculo XVII, extirpando a
batalha pessoal do guerreiro, do heri, substituindo-a pela guerra cientfica do soldado, do
militar, Portugal continua a seguir suas noes medievais e cruzadsticas de guerra santa,
em uma tapearia barroca que tece juntos fios do herosmo medieval com outros deste novo
esprito burocrtico e organizacional que invade a Europa, que tambm barroco em sua
busca incessante pela ordem21
.
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19
1 A forja Formao e organizao militar moderna;
Europa, Portugal, e o Estado do Brasil:
So Tiago e a Eles!
Boxer, C. R. O Imprio Colonial Portugus (pg. 141)
A expresso acima o grito de batalha dos portugueses, e esta nossa primeira
parada na busca pela organizao dos militares coloniais na zona aucareira do Brasil: a
estrutura militar portuguesa nos sculos XVII e XVIII. Portugal, no entanto, apesar de ter
uma organizao caraterstica que o diferencia do outros Estados europeus, no pode fugir
ao contexto das modificaes blicas que esses dois sculos trazem para a Europa. Os
Estados Nacionais consolidam a formao de exrcitos burocrticos22, que so, por
definio, aquelas foras militares permanentes e profissionais montadas e mantidas pelo
Estado centralizado. A profissionalizao militar , assim, a forma encontrada pelas
monarquias apoiadas no capital das cidades para substituir a antiga forma de servio militar
prestado pelos nobres na vassalagem.
Desde os primeiros passos do desenvolvimento da plvora, que os senhores da
guerra procuram formas de melhor aproveit-la em campo. Os sculos XVI e XVII
conhecem a gradual evoluo das tticas e manobras de homens em campanha; tcnicas
aprimoradas graas ao uso da plvora, que cria uma nova categoria de guerreiros, os
artilheiros, e obriga a um reajustamento das antigas categorias23. Dessa forma, o
desenvolvimento das tcnicas de movimentao de homens em batalha, aquelas que visam
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surpreender o inimigo em seus pontos fracos ou, se possvel, provocar elas mesmas novos
pontos fracos, graas artilharia, se d de duas diferentes maneiras: a primeira, pela
afirmao da infantaria, ainda se apoiando na cavalaria; a segunda, na proporo ideal
procurada entre tiro e lana, isto , entre a artilharia e as unidades de infantaria formadas
por piqueiros e lanceiros24. A chave para entendermos esse desenvolvimento est na
infantaria antes at que na artilharia, visto que a infantaria a substituir gradativamente a
hegemnica cavalaria medieval como organizao privilegiada de batalha 25.
Mas a infantaria no ascende repentinamente, pois, formada pela nobreza, fundada
nas bases sociais de seus povos, a cavalaria resiste, aprimorando suas defesas contra
flechas, virotes de besta, projteis de armas de fogo26. E o sculo XIV v a nobreza
encouraar seus cavaleiros, numa tentativa de deter o desenvolvimento da infantaria,
tornando a cavalaria ainda mais pesada, defendendo-a da posio vulnervel que assumiu
com a chegada dos projteis, pirobalsticos27 ou no.
Enquanto isso, as medidas prioritrias passam a ser a formao de exrcitos
independentes da nobreza. Exrcitos que se organizam agora com base na infantaria.
Organizao feita sobre tropas pagas e no mais arregimentadas por obrigaes de
vassalagem. E mesmo os vassalos recrutados, mesmo os cavaleiros couraados, so pagos
nos novos exrcitos profissionais28
. A autonomia custa caro, e a nova despesa de um
exrcito remunerado aumenta o custo da guerra, deixando o Estado embrionrio ainda sem
uma resposta para um mtodo regular de como pagar as tropas e custear a guerra. Quando
gasta demais, o soberano recorre a emprstimos de banqueiros, cidades, negociantes e a
medidas como a tributao arbitrria e a desvalorizao da moeda. O que no significa que
o Estado consiga realmente sustentar a guerra por muito tempo sem falir29
: os soldados em
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21
campanha esto sempre com os soldos atrasados, esperando algum saque que possa trazer-
lhes algum lucro.30
Essa situao, iniciada no sculo XIV com os Estados da Guerra dos Cem Anos, vai-
se encaixar maravilhosamente nos Estados Absolutistas31
.
De qualquer forma, no sculo XIV as foras armadas j no so mais formadas por
soldados que servem por dever de vassalagem e que tm o direito de voltar para casa depois
de quarenta e cinco dias. Para preencher as fileiras dos soldados a p, os homens so
atrados com a promessa de saque, o perdo de sentena para os condenados e propagandas
nacionalistas. No caso da Guerra dos Cem anos, propaganda ora antifrancesa ora
antiinglesa.32
Dentro dessa organizao profissional, e devido s inovaes tcnicas, a cavalaria
assume agora um papel secundrio; passa a ser apenas uma unidade auxiliar da tropa
principal, ou seja, a infantaria. Mas, contra a tcnica da infantaria, a resposta da cavalaria
tambm a tcnica. O tempo do herosmo esvai-se, a eficincia passa a contar mais. E esse
tambm o quadro ainda no sculo XVII: a cavalaria tirada do papel principal, mas no
expulsa do drama. Serve agora como auxiliar das tropas de infantaria e continua a perder
espao.
Mas a artilharia tambm no encontrara ainda seu lugar na formao de batalha. O
sculo XVII pe em seus campos de guerra infantaria, artilharia, cavalaria, piqueiros,
lanceiros, arqueiros, besteiros, sem que seus comandantes tenham encontrado a perfeita
proporo entre essas unidades, a regra certa. O que existe so muitas possibilidades e
pouca organizao. A ordem, no entanto, buscada com afinco. Uma busca que vai gerar a
disciplina.
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22
A guerra medieval era indisciplinada. Nela, cada guerreiro escolhia um oponente
entre as hostes inimigas e o confrontava de forma particular, em duelo. O confronto
tornava-se, ento, pessoal. Esse comportamento medieval no serve mais na era da plvora,
e no sculo XVII, com elementos distintos e por vezes contraditrios como cavalaria e
artilharia servindo nos mesmos exrcitos, torna-se necessrio procurar frmulas de
organizao em batalha que aproveitem todo o potencial de cada unidade e evitem que uns
corpos atrapalhem os outros. preciso aprimorar as tticas.
E a grande inovao ttica do sculo XVII, que vem em parte responder a esta
lacuna, o adestramento.
Adestrar treinar, aprimorar as habilidades marciais do guerreiro. E nesse sentido,
todas as sociedades adestram seus homens de guerra, desde os tupinambs aos samurais do
Japo feudal, incluindo a Europa feudal e sua cavalaria nobre. Ento, por que falar no
adestramento da Era Moderna como uma inovao ttica?
Tticas so tcnicas de guerra e, voltando para o sculo XIV, onde as tticas
medievais ainda sobrevivem, percebemos que essas so simplesmente a carga de cavalaria,
seguida de luta corpo a corpo entre os cavaleiros, precedida ou complementada pelos
arqueiros e pelo ataque da infantaria, ambos desprezados pelos cavaleiros. Os ingleses,
porm, descobrem, antes da Guerra dos Cem Anos, lutando contra plebeus escoceses, que
soldados a p, equipados com arcos longos e treinados para manter uma linha firme e
constante, fazem efetivamente recuar uma carga de cavaleiros. Os franceses demorariam
pelo menos at o fim da Guerra para compreender que soldados infantes podem vencer
cavaleiros couraados33
. Podem, desde que se lhes imponha uma regra de comportamento
para faz- los funcionar em unssono, ao comando do chefe. E, em qualquer poca, a
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23
diferena entre uma turba e um exrcito est no treinamento, que, na Idade Mdia e sculo
XIV, no dispensado aos soldados a p convocados.
Desprezados por serem tidos como ineficientes, eram ineficientes por serem
desprezados.34
O treinamento do guerreiro medieval limita-se ao treinamento dos cavaleiros,
membros da nobreza e detentores do monoplio da guerra. Mas mesmo o treinamento
desses cavaleiros diferencia-se do adestramento da Era Moderna por ser individual. E aqui
chegamos particularidade do adestramento moderno: ele se constitui de tcnicas no
apenas para o aprimoramento individual do guerreiro, mas tambm para a organizao do
grupo.
O adestramento assim um instrumento de controle que os Estados Modernos, j
unificados, usam sobre suas tropas, j agora regulares. Ele aparece nas unidades militares
criadas no sculo XVII. Unidades essas que se caracterizam por sua profissionalizao, ao
contrrio de suas predecessoras medievais. So unidades formadas por guerreiros que no
podem ser mandados embora depois da crise. E essa caracterstica, a permanncia de
tropas armadas no meio social, que torna necessria a criao de instrumentos de controle
tambm de carter permanente.
E, nesse sentido, o adestramento tambm no novo, j existindo com funo de
controle social nas legies romanas. O conceito resgatado e adaptado s circunstncias
modernas.
Se na guerra medieval os guerreiros lutavam como uma massa de indivduos, como
uma turba, o adestramento burocrtico moderno, que no apenas o aprimoramento do
guerreiro, mas tambm o treinamento organizado de toda a unidade, procura justamente
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24
unificar as aes de todos. A unidade no mais o indivduo, mas toda a tropa, que deve
que precisa agir com uniformidade, com coeso, e no como uma horda de indivduos
particulares e dispersos. O adestramento burocrtico tira do soldado o carter individual,
transformando-o numa pea na mquina blica, ao mesmo tempo que, com a
uniformizao, extirpa a caracterstica de turba medieval, criando a tropa. E uma
importante mudana conceitual surgida com a guerra da Era Moderna exatamente a
substituio, seja sutil ou radical, que se d entre esses conceitos de unidade e massa:
Desde o fim do sculo XVII, o problema bsico da infantaria
foi de libertar-se do modelo fsico da massa. Armada de
lanas e mosquetes lentos, imprecisos, que no permitiam
ajustar um alvo e mirar uma tropa era usada ou como um
projtil, ou como um muro ou uma fortaleza: a temvel
infantaria do exrcito da Espanha; a repartio dos
soldados nessa massa era feita principalmente segundo sua
antigidade e valentia; no centro, encarregados de fazer peso
e volume, de dar densidade ao corpo, os mais novatos; na
frente, nos ngulos ou pelos lados, os soldados mais
corajosos ou reputados os mais hbeis. Passou-se no
decorrer da poca clssica a um jogo de articulaes
minuciosas. A unidade regimento, batalho, seo, mais
tarde diviso torna-se uma espcie de mquina de peas
mltiplas que se deslocam em relao umas as outras para
chegar a uma configurao e obter um resultado especfico.
(...) a inveno do fuzil: mais preciso, mais rpido que o
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mosquete, valoriza a habilidade do soldado; mais capaz de
atingir um alvo determinado, permitia explorar a potncia de
fogo a nvel individual; e inversamente fazia de cada soldado
um alvo possvel, exigindo pela mesma razo maior
mobilidade; e assim ocasionava o desaparecimento de uma
tcnica das massas em proveito de uma arte que distribua as
unidades e os homens ao longo das linhas extensas,
relativamente flexveis e mveis. Da a necessidade (...) de
inventar uma maquinaria cujo princpio no seja mais a
massa mvel ou imvel, mas uma geometria de segmentos
divisveis cuja unidade de base o soldado mvel com seu
fuzil; e acima do prprio soldado, os gestos mnimos, os
tempos elementares de ao, os fragmentos de espaos
ocupados ou percorridos.35
Essa caraterstica que Foucault chama de unidade, Weber chama de massa36
, o que
pode parecer contraditrio com o conceito de massa que estamos usando aqui. O nosso se
baseia no carter de horda e multido informe que as tropas medievais possuem, o de
Weber descreve o carter massificado das novas tropas, tornadas uma pea nica, a unidade
de Foucault. Palavras diferentes para a mesma coisa.
Podemos distinguir no trecho citado de Vigiar e Punir a passagem da turba
desorganizada, que mesmo portando armas de fogo ainda se assemelha queles modelos
medievais de guerreiro em que pouca preocupao existe com a ttica e com a estratgia,
para a tropa preocupada com o mximo de aproveitamento na utilizao da tecnologia.
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26
Uma preocupao que se torna, ela prpria, tcnica. E nessa transformao, para se
conseguir o mximo de eficincia, alcanado apenas com o trabalho simultneo de todos,
destri-se exatamente aquele esprito guerreiro independente e autnomo. o nascimento,
no seio das foras repressivas, da massificao. O treinamento moderno tem suas origens
assim na organizao das diferentes partes da tropa na formao de batalha. Na simples
preocupao de localizar de maneira eficiente cada elemento da campanha:
O exerccio com armas de fogo (...) certamente se originou de
uma preocupao natural dos mosqueteiros que deve ter
sido tambm dos arqueiros (...) de no se ferirem uns aos
outros enquanto usavam suas armas. (...) os mosqueteiros
enfileirados em ordem unida, especialmente nos primeiros
tempos, quando espalhavam plvora para acender estopins,
arriscavam-se a desencadear descargas acidentais, a menos
que todos os soldados realizassem em unssono todas as
etapas de carregar, apontar e atirar. Os livros de treinamento
de mosqueteiros (...) se imprimiram amplamente a partir do
incio do sculo XVII (...).37
Assim, o adestramento militar burocrtico surge de uma preocupao prtica. Mas,
se o nascimento da disciplina militar se d a partir de um elemento to prtico como a
preocupao de acertar apenas o inimigo, logo ela se assume como o principal instrumento
de controle do Estado sobre seus rgos militares e os extrapola, j que as disciplinas se
tornaram no decorrer dos sculos XVII e XVIII frmulas gerais de dominao.38
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27
Essas frmulas gerais, que nascem no sculo XVII, tm seu apogeu no XVIII com o
desenvolvimento das teorias disciplinares e das tcnicas de adestramento, e com a
propagao das unidades tticas chamadas regimentos pelo continente europeu. E o sculo
XVIII v os regimentos espalharem-se, formando oficiais dentro dos novos conceitos
tticos e luz das novas teorias. E adestrando soldados. Essas unidades permanentes vo
fixar-se em quartis, estruturas novas de funo disciplinar inequvoca, como bem define
Foucault:
Quartis: preciso fixar o exrcito, essa massa vagabunda; impedir a pilhagem e as
violncias; acalmar os habitantes que suportam mal as tropas de passagem; evitar os
conflitos com as autoridades civis; fazer cessar as deseres; controlar as despesas.39
O quartel, uma criao moderna com paralelo nos acampamentos das legies
romanas, tem assim por objetivo criar um espao onde as novas tropas burocrticas possam
ser tanto alojadas quanto vigiadas, e mantidas sob estrito controle. Esse exrcito
permanente e profissional, alicerce do Estado Moderno, apenas possvel atravs da
disciplina, indispensvel existncia do primeiro, que no pode mais ser desmobilizado
depois de passada a crise, como as antigas tropas medievais. E mesmo que seja o
instrumento pelo qual o Estado centralizado exerce seu poder sobre a sociedade, a tropa
burocrtica tambm um ajuntamento de cidados tanto mais perigoso quanto seja bem
armado. Assim, o instrumento de controle utilizado sobre ele deve ser eficiente e, j que
no existe controle social possvel feito apenas atravs da violncia, mesmo que simblica,
nenhum controle que dure sendo externo ao indivduo40
, ele deve ser embutido nos nimos
e nas mentes dos soldados, para no suscitar dvidas, hesitaes ou contestaes.
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28
Para Foucault, a disciplina a arte de dispor em fila41
. Simples. Ela no surge como
um instrumento de capacitao do indivduo, como uma ferramenta que procura torn-lo
eficaz, habilit- lo para o manuseio da tcnica, como o adestramento militar faz parecer
primeira vista, e nem tampouco apenas como um instrumento de sujeio do indivduo.
Poderamos dizer que a disciplina a arte da habilidade obediente, j que seu objetivo
produzir uma relao entre o Poder e o indivduo que no mesmo mecanismo o torne mais
obediente quanto til.42
A forma como essa disciplina funciona nas estruturas militares o que chamamos de
adestramento.
O adestramento a aplicao prtica da disciplina: ele sujeita o soldado ao mesmo
tempo que o torna eficiente. Podemos detect- lo no gradual aperfeioamento da artilharia.
Inovaes tcnicas vo tornando a artilharia o centro dos novos exrcitos e forando os
regimentos a procurar novas tticas que lhes dem mais eficincia nas manobras com a
artilharia porttil. Eles o conseguem com a introduo da formao em linha:
Toda a infantaria do exrcito era disposta em trs fileiras
num quadriltero oco muito extenso e que, em ordem de
batalha, se movia como um bloco; quando muito, autorizava-
se uma ou duas filas a avanar ou recuar um pouco. Esta
massa desajeitada s podia movimentar-se em ordem num
terreno perfeitamente plano e mesmo a em cadncia lenta
(74 passos por minuto); era impossvel alterar a ordem de
batalha durante a ao e, uma vez aberto o fogo pela
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infantaria, a vitria ou a derrota decidiam-se muito
rapidamente, de um s golpe .43
A infantaria aqui considerada aquela armada com espingardas. E notemos que a
eficincia s conseguida com a unificao dos esforos individuais. Unificao
conseguida graas a um treinamento, to minucioso que determina at o nmero de passos
que os homens devem dar por minuto. Os homens todos juntos, o que s conseguido com
a prtica constante, orientada, percebamos, pelo oficiais que, por sua vez, so orientados
pelo tericos. Tambm a marcha cadenciada reflexo da homogeneizao do indivduo:
(...)vejamos duas maneiras de controlar a marcha de uma
tropa. Comeo do sculo XVII:
Acostumar os soldados, a marchar por fila ou em um
batalho, a marchar na cadncia do tambor. E para isso,
comear com o p direito a fim de que toda a tropa esteja
levantando o mesmo p ao mesmo tempo.
Metade do sculo XVIII, quatro tipos de passo:
O comprimento do pequeno passo ser de um p, o do passo
comum, do passo dobrado e do passo de estrada de dois ps,
medidos ao todo de um calcanhar ao outro; quanto
durao, a do pequeno passo e do passo comum sero de um
segundo, durante o qual se faro dois passos dobrados; a
durao de um passo de estrada ser de um pouco mais de
um segundo. O passo oblquo ser feito no maior espao de
um segundo; ter no mximo dezoito polegadas de um
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30
calcanhar ao outro... O passo comum ser executado
mantendo-se a cabea alta e o corpo direito, conservando-se
o equilbrio sucessivamente sobre uma nica perna, e levando
a outra frente, a perna esticada, a ponta do p um pouco
voltada para fora e baixa para aflorar sem afetao o terreno
sobre o qual se deve marchar e colocar o p na terra, de
maneira que cada parte se apoie ao mesmo tempo sem bater
contra a terra.44
O que vemos aqui um gradual aprofundamento da severidade do treinamento, do
adestramento com intuito tanto disciplinar quanto tcnico. Os homens de guerra medievais
baseavam sua guerra em princpios como coragem, fora e tambm habilidade com as
armas, certo. Uma habilidade que tambm exigia treinamento, que no caso do cavaleiro
era to especializado que demandava toda uma vida45
. Mas essa nova guerra to
minuciosamente organizada exige que esse treinamento seja feito em grupos constante e
apropriadamente supervisionados. uma nova forma de especializao militar, baseada na
antiga disciplina romana, que capacita o guerreiro a executar, sem pensar, as ordens do
comandante. O interesse terico militar europeu nos sculos XVII e XVIII est, assim, no
desenvolvimento da ttica. A ttica a arte de construir, com a soma dos esforos
individuais, e com sua homogeneizao, aes calculadas e preestabelecidas. o pice da
aplicao prtica da disciplina, e o objetivo dos tericos militares de ento46
.
No sculo XVII, o principal fator ttico ainda est na fora corporal, no peso fsico
das unidades usado para esmagar os inimigos, esta a ordem profunda de batalha. Ela
substituda, com o crescimento do emprego da plvora, pela ordem aberta47
, em que as
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31
tropas manobram disciplinadamente, no para se bater corpo a corpo com o inimigo, mas
para cerc-lo, desbarat- lo com o fogo da artilharia pesada, dispers- lo com as saraivadas
contnuas da artilharia porttil. Assim o valor do comandante como estrategista vai
substituir o valor do soldado como guerreiro. Este ltimo desaparece gradualmente uma vez
que por mais bravo e hbil que seja o indivduo, se toda a tropa no manobra de forma
competente, a batalha est perdida.
O apogeu militar da Espanha, contemporneo do seu auge imperial, entre os sculos
XVI e XVII, d-se pela constituio de uma poderosa infantaria composta por unidades
chamadas teros: estrutura compacta, de mais de dois mil homens, com um quadrado
central de piqueiros, apoiado por quadrados menores de mosqueteiros. Assemelhava-se a
uma fortaleza mvel, capaz de se defender com a mesma energia em todas as direes.48
A ttica usada pelos teros espanhis a ordem profunda de batalha, a aposta no
poder do nmero, na fora fsica para esmagar as unidades inimigas. E vai ser substituda
pela ordem aberta dos holandeses, que utilizavam o poder de fogo de sua infantaria,
organizada em unidades menores e mais maleveis para vencer os teros espanhis,
grandes, pesados e lentos49
. So os holandeses, enfrentando os espanhis, que aprofundam
as reflexes sobre o adestramento burocrtico, e aqueles que pem essas reflexes em
prtica.
O processo de racionalizao dos exrcitos, iniciado no princpio da Era Moderna,
comea a ser teorizado no sculo XVII com Maurcio de Orange, Gustavo Adolfo,
Cromwell, Frederico da Prssia, e mais tarde por Turenne e os generais franceses. As
guerras holandesas contra a Espanha e a Guerra dos Trinta Anos so as telas onde se
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32
esboam os estudos de perspectiva, volume, luz e sombra da guerra barroca50
. Estudos
tericos sobre tela humana.
No sculo XVII, os mestres da cincia blica so os holandeses tanto como
engenheiros, quanto como organizadores de escolas de disciplina51
. Mas as teorias se
espalham rapidamente pela Europa ocidental: franceses, venezianos, prussianos, suos e
ingleses formam oficiais e tropas eficientes a partir das prticas introduzidas no sculo
XVII.
A infantaria entre o sculo XIV e o XVII ainda estava dispersa, individualista, apesar
de eficiente. Vide a infantaria espanhola.
Em meados do sculo XVII, o exrcito holands, sob o comando Maurcio de
Orange, um dos primeiros exrcitos modernos disciplinados e profissionais, e liberto
daquilo que Weber chama de privilgios estamentais, os princpios de honra ainda vigentes
no imaginrio moderno, ainda herana de cavalaria nobre feudal. Esses privilgios so, j
ento, substitudos por treinamento e disciplina. Na Inglaterra no mesmo perodo, as
vitrias de Cromwell so devidas disciplina puritana e ao fato de que, depois do ataque,
sua cavalaria continua em formao cerrada ou se realinha imediatamente52
. Essa carga de
cavalaria disciplinada nos mostra a transformao sofrida pela mesma: a carga medieval era
to somente um galope em frenesi sobre o inimigo, seguido da disperso dos cavaleiros
que, uma vez tido o primeiro e avassalador choque, escolhiam um inimigo para se baterem
no estilo das justas. A disciplina, assim, d novo significado cavalaria, assim como ao uso
da plvora, j que fornece os instrumentos para o melhor aproveitamento dos mosqueteiros.
E dessa forma a disciplina que d sentido plvora, e no a plvora que d sentido
disciplina.
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33
Mas tticas e disciplinas no so teorizaes isoladas dos personagens. As estruturas
sociais desenvolvem-se paralelamente a essas construes ideolgicas. Fatores prticos que
ajudam na construo da idia do valor da infantaria. No sculo XVIII as tropas adquirirem
finalmente um carter social diferente tanto dos bandos mercenrios do final do feudalismo,
que geralmente debandavam quando os fundos secavam, quanto das tropas regulares dos
sculos anteriores, permanentes e profissionais, mas sem quartel e de treinamento incerto.
O regimento se torna agora uma instituio rgia, ganhando quartel-general fixo,
recrutando seus soldados na regio circunvizinha e retirando seus oficiais de famlias
aristocrticas53
. Conseguem alistar homens estveis de aldeias e fazendas para formar suas
tropas regulares. Conseguem agora algo mais do que as sobras sociais que compunham os
corpos mercenrios: conseguem os filhos mais jovens de famlias grandes e pobres com
poucas oportunidades, particularmente na Frana e Holanda. Apesar de que em outras
regies como a Prssia54
e Portugal se aplica a pura coero.
Gradualmente, o homem da Idade Moderna, o soldado moderno mais
especificamente, vai perdendo seu individualismo entre esses dois sculos chaves.
Mas o mosqueteiro do sculo XVII ainda era um
individualista. Talvez no escolhesse o momento de disparar,
mas provavelmente escolhia seu alvo nas fileiras inimigas. No
sculo XVIII (...) os mosqueteiros dos regimentos reais
surgidos aps a Guerra dos Trinta Anos (...) foram treinados
para mirar no em um soldado, mas na massa do inimigo;
(...) A perda de individualismo do soldado se manifestou de
vrias outras formas. A partir do final do sculo XVII, ele
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usou uniforme, tal como os criados. (...) Dos soldados do
sculo XVIII esperava-se que lutassem no com animao,
mas com zelo e sob comando; para impor a disciplina, os
oficiais tratavam seus homens com uma severidade que nem
os lanceiros livres, nem os mercenrios dos sculos XVI e
XVII teriam tolerado. Haviam aceitado o enforcamento ou a
desfigurao como penalidade arbitrria para motim ou
assassinato, mas no teriam admitido o regime de flagelao
institudo ou o de espancamento ocasionais mediante os quais
eram mantidos em ordem os servos militares uniformizados
das monarquias dinsticas. De fato, somente um tipo de
indivduo completamente diferente dos flibusteiros
anrquicos das guerras italianas e da Guerra dos Trinta
Anos poderia concordar com o novo regime.55
Mas a Idade Moderna no consegue o to arduamente procurado equilbrio entre
infantaria, artilharia e cavalaria. Essa falta de definio responsvel por uma
inconclusividade nas guerras das monarquias dinsticas da Europa Ocidental, no perodo
entre as ltimas guerras holandesas, no final do sculo XVII, e a Revoluo Francesa. Essas
guerras se tornam notveis pelo nmero altssimo de baixas sofridas em suas fileiras56
, mas
no por qualquer durabilidade de resultados polticos, ainda que esteja sendo construda
uma nova forma de guerrear em seu rastro. Forma caracterizada pela inflexibilidade. E, o
que mais tarde veremos, so estas linhas pouco flexveis que se desenvolvem com lentido
na Europa dinstica, que vo encontrar pela frente, nas guerras americanas, bandos de
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35
rebeldes que, apesar de no terem instruo militar, sabem, todavia, atirar e combatem por
interesses prprios, no desertando como as tropas mercenrias, e possuindo uma
flexibilidade que os torna alvos difceis para as, j ento, bem treinadas tropas pagas
europias.
Alm de que no tinham a gentileza de enfrentar os ingleses
dispondo-se como eles em linha e em terreno descoberto,
antes se apresentavam em grupos de atiradores dispersos e
de grande mobilidade, cobertos pelas florestas. A linha
tornava-se aqui impotente e sucumbia perante os seus
adversrios invisveis e inacessveis. Redescobria-se a
disposio dos atiradores: mtodo de combate novo devido a
um material humano modificado.57
Temos que lembrar dessas palavras de Engels porque elas espelham o que tambm
acontece nas guerras da zona aucareira do Brasil: a runa das tropas disciplinadas a partir
das teorias holandesas diante das tticas de emboscada dos bugres coloniais. A razo para
esse fracasso das tropas burocrticas dinsticas to detalhadamente pensadas e to
arduamente treinadas, est no fato de que esse processo disciplinar de adestramento para a
eficincia termina por destruir a autonomia do guerreiro, ou as possibilidades que ele tem
de utilizar essa autonomia, em favor de uma inflexibilidade de movimentos e de formao
de combate que para funcionar precisa de campos abertos e planos, que no encontram nas
Amricas onde os bugres desconhecem aquelas formas de controle social que haviam
criado os soldados europeus. Exemplo claro de que esses mecanismos de controle no
podiam ser transplantados simplesmente para o Ultramar.
-
36
Na Pennsula Ibrica o desenvolvimento da organizao militar moderna se d de
forma diferente nos dois Estados. Enquanto a Espanha uma potncia militar no sculo
XVI, Portugal s veria suas tropas organizadas disciplinarmente no reinado de D. Jos I,
quando receberia ajuda militar da Inglaterra. Portugal mantm ao longo desse tempo que a
disciplina leva para se criar e se fixar na Europa absolutista, caractersticas bastante
peculiares em seu exrcito burocrtico. Caractersticas que precisam ser observadas bem
detalhadamente.
Na Metrpole
Deus, sentiam os portugueses, estava do lado deles durante o longo caminho, ainda que,
como reconheciam com franqueza, os estivesse a castigar entretanto pelos seus pecados
com a perda de Malaca, Ceilo, Malabar e Mombaa.
Boxer, C. R. O Imprio Colonial Portugus (pg. 172)
J chegamos a dizer que Portugal, apesar de no fugir totalmente ao contexto das
mudanas tecnolgicas e blicas que esto ocorrendo nos Estados vizinhos, possui
caractersticas bem prprias quanto ao desenvolvimento militar. Nossa questo saber
como se d esse desenvolvimento. Como se forma essa organizao militar portuguesa na
Era Moderna, to influente na sociedade do Estado do Brasil.
Voltemos, por um momento, ao perodo de formao do Estado portugus, com D.
Afonso Henriques (1128-1185)58
e seus sucessores at o sculo XIII. Nessa Idade Mdia
tardia, esse novo reino j obriga todos os sditos a exerccios militares, tendo em vista a
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37
constante preparao para a guerra a que as disputas territoriais com os mouros obriga59
. O
Reino portugus assim se constitui tendo a guerra como elemento de agregao da
sociedade, conduzida pelo rei acima de todos os sditos, nobres e plebeus, pois, nascendo
em uma fase em que j se esboa o declnio das estruturas feudais, Portugal desconhece as
hostes vassalas de grandes senhores independentes do rei. A concesso de terras aos nobres
difere do carter que possui no feudalismo tradicional, de terras em troca de servio militar.
A Coroa portuguesa no espera pela fidelidade jurada dos bares; na verdade, paga por ela.
Paga aos nobres o servio militar, independentemente de lhes ter concedido propriedades.60
Os senhores existem e prestam vassalagem, mas apesar deste sistema de prestao de
servio militar pelos bares, o Rei o comandante militar absoluto.61
Portanto, ainda no
medievo portugus vemos aquilo que os reinos europeus apenas conheceriam com a
decadncia da cavalaria e a estabilizao do Estado Moderno, isto , os bares ou grandes
senhores prestando servio militar no por obrigaes de vassalagem mas por pagamento, a
soldo, como funcionrios de um Estado burocrtico.
Durante o sculo XIII vemos a monarquia portuguesa se apoiar nos concelhos
municipais para se fortalecer em detrimento da nobreza. Este processo tambm se d
militarmente, uma vez que os concelhos passam a fornecer tropas de infantaria para o rei62
,
possibilitando- lhe independncia relativa ainda do servio dos nobres.
Nesses primeiros tempos, a organizao das tropas em Portugal feita em hostes. Os
nobres, recebendo seu pagamento conhecido como contia, so obrigados guerra;
semelhante queles vassalos de outros suseranos europeus com as mesmas obrigaes sem
contia. A obrigao da guerra em Portugal, no entanto, no se restringe aos nobres que
formam a cavalaria. Ela se estende aos viles dos concelhos e s ordens militares63
,
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38
recrutando, aqui tambm, plebeus para o servio do rei. A hoste, ou p de exrcito, uma
unidade ttica, uma diviso de tropas, composta de companhias de cavalaria e infantaria,
que arregimenta os contingentes tanto dos senhores quanto das ordens militares e dos
concelhos municipais que vo, estes ltimos, compondo as tropas de infantes. O senhor
ainda obrigado a apresentar uma lana: uma partcula de tropas formada por um homem
de armas, ou seja, o cavaleiro, seu escudeiro, um pagem, alm de dois arqueiros ou
besteiros a cavalo. Cinco ou seis lanas, por sua vez, formam uma bandeira, e um certo
nmero de bandeiras forma uma companhia de homens de armas, uma companhia de
cavalaria.64
E no comando de toda essa organizao, o rei.
Assim, vemos a Coroa se armar com os infantes dos concelhos municipais e com a
cavalaria paga, oriunda de uma nobreza contratada. Esse o alicerce tanto do exrcito
profissional portugus, quanto do poder do rei. a fora na qual a monarquia se apoia para
sustentar tanto sua poltica interna contra as pretenses de nobres e clero, quanto para se
defender das investidas de Castela65
.
No sculo XIV ascende uma nova dinastia, a dinastia de Avis (1385-1580),
promotora de navegaes e descobrimentos. E com ela se ergue a infantaria medieval
transformando-se em um projeto de tropa regular, de exrcito do Estado. Ao mesmo tempo
que D. Joo I termina concluindo a transformao da nobreza em funcionria pblica66
, a
utilizao da cavalaria na organizao militar declina e, durante a expanso no sculo XV,
cede infantaria sua posio, sem desaparecer todavia. Em 1580, Alccer Quibir v a runa
portuguesa quando da destruio de sua cavalaria feudal, na ltima cruzada ibrica, no
ltimo momento do processo de Reconquista da Pennsula67
. Mas, mesmo aqui, a infantaria
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39
no desprezvel: para essa campanha D. Sebastio recruta homens at em Castela68
.
Mercenrios castelhanos se juntam aos homens arregimentados em Portugal. Pagos todos.
Infantes todos.
E no entanto, as tropas portuguesas ainda no se tinham constitudo em um exrcito
burocrtico. Durante esses sculos iniciais da era moderna as tropas lusas so pagas, porm
no permanentes69
. E se a organizao proposta por Afonso V (1438-1481)70
, depois
regimentada por D Joo III (1521-1557), que torna obrigatrio o servio militar sem
distino de privilgios71
e legitima o recrutamento, essa mesma organizao s ser levada
a cabo, no entanto, com D. Sebastio, em 157072
, que, motivado por suas campanhas
africanas, precisa de grande nmero de braos armados. ela que lana as bases legais para
um exrcito portugus realmente burocrtico.
no sculo XVII que a estrutura militar vai ser dividida em 1 linha e 2 linha, o que
Faoro chama de ramo burocrtico e ramo territorial.73 Ou seja: as tropas profissionais e
pagas, regulares, a 1 linha; e as unidades de cidados, gratuitas, temporrias, resqucios das
hostes medievais e baseadas nos recrutamentos dos concelhos, que so as ordenanas,
estabelecidas a partir do Regimento de D. Sebastio, a 2 linha. Essa a grande diviso da
estrutura militar que separa as tropas entre as contratadas e as que prestam servio por
obrigao de cidadania ou vassalagem.
O exrcito portugus profissional se completa com a Restaurao em 1640. S ento
efetivamente criado um exrcito burocrtico, e no mais baseado nas hostes medievais,
tropas de ocasio. Em comparao com a precoce centralizao do Estado portugus, essa
estruturao do exrcito burocrtico relativamente tardia, j contempornea dos primeiros
ensaios disciplinares nos Pases Baixos e norte europeu. Burocratizao tardia para um
-
40
reino que, no sculo XIII, j se apia nas tropas municipais pagas e no XIV j
patrimonial. Uma demora que talvez possa ser, em parte, explicada pelo interesse espanhol
em manter Portugal atrasado militarmente durante a Unio Ibrica74
. Mas tambm h uma
relutncia dos portugueses em se desgastarem nas guerras espanholas em Flandres, Itlia e
Alemanha75
. E exatamente durante a Unio Ibrica que se introduz a organizao de
tropas em unidades tticas maneira espanhola, ento grande potncia militar, com o tero
de pique76
, ento no apogeu de sua eficcia como organizao de infantaria. nica estrutura
militar que Portugal copia da Espanha.
Devido relutncia dos homens de guerra portugueses, a Restaurao em 1640
surpreende Portugal numa situao de completo despreparo militar. Um despreparo
tamanho que a Coroa procura encorajar soldados veteranos das guerras contra os
holandeses no Brasil a irem servir nas tropas metropolitanas na guerra movida contra os
espanhis.77
Mas a segunda metade do sculo XVII v mudanas militares no Reino. So
mudanas estruturais na organizao dos corpos de tropa: a estrutura bsica construda no
incio da Idade Moderna continua inalterada, estabelecida em ramo burocrtico e territorial,
mas agora as unidades tticas no sero organizadas mais como hostes e sim como teros78
,
divididos em companhias. Esta unidade ttica os portugueses copiam timidamente dos
espanhis79
no perodo do recrutamento de Dom Sebastio e, mais efetivamente, no reinado
de Filipe II de Espanha, que o introduz em base fixa. Os teros ibricos, no entanto,
continuaro a lutar indisciplinadamente, no se afastando muito da experincia portuguesa
j acumulada, mas se mantendo longe, com o passar do tempo, das novas descobertas da
cincia blica na Europa do norte.
-
41
O objetivo da criao de um exrcito regular em Portugal o mesmo dos Estados
que conheceram um feudalismo clssico: independncia para o rei. Mesmo no possuindo
autonomia, a nobreza portuguesa luta por poder poltico. E fora militar sempre um til
instrumento para se atingir esse fim.
O motor que impulsiona a criao de um exrcito profissional em Portugal a guerra
que se desencadeia com a Espanha logo aps a Restaurao portuguesa. Depois da
Restaurao, as foras militares portuguesas esto esgotadas, assim como seus recursos
humanos, por terem sido amplamente despendidas nas guerras alheias, as guerras da
Espanha80
. Assim, em 1641, as Cortes portuguesas aprovam uma reorganizao militar
completa, com a criao do exrcito burocrtico e das milcias, sendo cada provncia
dividida em comarcas, cada uma comandada por um governador (o equivalente a general),
com sargento-mor e dois capites como ajudantes. As comarcas, por sua vez, se dividem
em companhias de 300 soldados cada, sob o comando, cada uma, de um capito, secundado
por alferes e sargento. Esse efetivo, entretanto, terico e idealista. Dificilmente as
companhias vo conseguir alcanar o nmero regular determinado pela lei81
.
O recrutamento, j ento, e da por diante, das tropas burocrticas, feito dentro das
Ordenanas. Estas so recrutadas, por sua vez, nas comarcas, entre os homens aptos para o
servio que no estejam alistados nas tropas regulares ou auxiliares. Na prtica, nas
Ordenanas sobram os homens de mais idade, que, militarmente, servem apenas para
reserva das guarnies das praas em casos extremos82
. Sua utilidade militar quase nula.
Mas existem foras de reserva mais ativas: as foras auxiliares. Os teros auxiliares reinis
so, como as ordenanas, tropas temporrias, mobilizadas apenas em caso de guerra ou
ameaas, e so gratuitos. Seus integrantes so homens aptos, mas que, por motivos de
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exceo, esto dispensados das tropas pagas; lavradores, filhos nicos e de vivas83
, por
exemplo, considerados homens indispensveis sociedade e que, dessa maneira, no
podem ser mobilizados, e imobilizados, permanentemente nas tropas burocrticas. So as
Milcias, criadas a partir do Regimento de 1641.
Em 1660, durante o governo de dona Luisa de Gusmo, vemos uma nova
reorganizao nas foras militares. Nos sculos XVII e XVIII, as melhorias realizadas nas
tropas da Coroa portuguesa correspondem, eventualmente, a necessidades emergenciais,
como os casos de guerra. Os autores que se debruam sobre essas organizaes, em
diferentes pocas, a partir de D. Joo IV at o fim do sculo XVIII, tm a considerar a
existncia de um certo descaso, ou talvez uma despreocupao da poltica rgia para com a
manuteno das tropas. As tentativas momentneas de estruturar e dar eficincia ao
exrcito so contemporneas de guerras: D. Joo IV, Dona Lusa, D. Pedro II, D. Jos I84
.
Fruto da nova poltica externa portuguesa de aliana com a Frana durante o governo de
Dona Lusa, o conde Frederico de Schomberg, oficial prussiano anteriormente a servio de
Lus XIV, chega a Portugal para melhorar sua organizao militar85
. Vem introduzir o
adestramento militar no Reino, organizando a cavalaria em regimentos maneira alem,
abandonando a diviso em teros, e introduzindo inovaes tticas como, por exemplo a
chamada marcha de costado86
, que a introduo da marcha regular, em que os homens so
treinados para marcharem a passos contados, com a tropa organizada em formao
quadrangular, cada homem em unssono aos passos dos outros homens da tropa, mantendo
distncias regulares e preestabelecidas entre si, movimentando-se em consonncia, e
unicamente em consonncia, com as ordens do comandante. Enfim, movimentos tticos
baseados na cincia blica.
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o nascimento em Portugal das manobras j ento em vigncia no norte europeu
desde o incio do sculo87
. A disciplina militar demora a entrar em Portugal, que reluta em
abandonar suas autonomias individuais. E interessante observar que, apesar da demora em
sua introduo, a marcha de costado j era conhecida em Portugal pelo tericos militares,
como Lus Mendes de Vasconcelos no sculo XVII; nos oferecendo uma idia sobre a
posio portuguesa concernente s disciplinas e s inovaes blicas.
Se considerarmos que a ttica e a disciplina, assim como o aprimoramento das
manobras blicas, surgem na Europa no incio do XVII e se desenvolvem amplamente at
seu apogeu no XVIII, nos parece que a inexistncia delas em Portugal uma questo de
opo, como j notara Boxer88
. Aparentemente a Coroa portuguesa no utiliza a
disciplinarizao do corpo e das vontades como instrumento privilegiado para controlar
seus soldados.
Principiava, em 1706, o reinado de D. Joo V com uma das feies tpicas dos
governos absolutistas a guerra.89
Mas no seu reinado, apenas durante o perodo da guerra, 1706 a 1713, esteve a tropa
burocrtica organizada. quando temos novas mudanas na estrutura militar do Estado. A
organizao em teros no exrcito regular substituda pela feita em regimentos no sculo
XVIII, em 1707. Os teros continuam a existir nas tropas auxiliares, milcias e
ordenanas90
. Uma substituio da unidade caracterstica ibrica, o tero, pela unidade de
origem francesa, o regimento, que j fora feita por Schomberg na cavalaria.
Milcias e ordenanas so confundidas tanto na metrpole quanto na colnia por
serem ambas de segunda linha, auxiliares, no pagas, no permanentes nem profissionais.
Apenas no final do sculo XVIII, em 1796, milcia passa a designar especificamente os
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teros auxiliares de segunda linha, que em Portugal so formados pelos excludos ou
melhor, isentos do recrutamento das tropas pagas, como lavradores, filhos de viva,
homens casados, homens teis em geral91
. As ordenanas, por sua vez, so os alistamentos
desorganizados e sem adestramento feitos pelos concelhos, e que servem de base ao
recrutamento regular.
A organizao do exrcito portugus no era considerada boa pelos generais
contemporneos espanhis, holandeses ou ingleses92
. Principalmente pela relutncia dos
comandantes portugueses em adotar as tticas mecanicistas de disciplina militar. Mas essa
estrutura militar portuguesa foi eficiente em diferentes reas e dentro de um espao de
tempo largo. Sua atuao nas conquistas e guerras dos sculos XV, XVI e XVII, e o fato do
Estado ter conseguido manter parte importante dessas conquistas, levantam muitas questes
no apenas tticas mas tambm sociais: como a Coroa consegue sobreviver no Ultramar, e
manter uma parte to substancial do imprio com tropas de qualidade to duvidosa,
apenas uma delas. Para Boxer a questo descobrir como os portugueses conseguiram
sobreviver ao mau governo vindo de cima e indisciplina vinda de baixo93
. A manuteno
das colnias portuguesas, a longo prazo, pouco se deve ao frgil organismo militar luso.
Mas a militarizao das sociedades coloniais contribui para a permanncia de Portugal
nessas regies.
O sculo XVIII, quando o imprio portugus j no to substancial e o apogeu do
Reino j tem passado, encontra um exrcito miservel e negligenciado tanto na metrpole
quanto no Imprio. Na metrpole, quando dos incidentes da guerra entre Frana e
Inglaterra94
, que envolvem Portugal e Espanha durante o reinado de D. Jos I, o exrcito
portugus passa por uma nova organizao, na tentativa, promovida e financiada pelo
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ingleses, de enfrentar os interesses franceses representados pela invaso espanhola ao
territrio portugus. Mais uma reorganizao, trazida por uma nova guerra, que nada
modifica de estrutural, limitando-se a maquiar a face enrugada do organismo militar luso.
At ento, cerca de 1759, o governo de D. Jos no tivera qualquer preocupao
militar. E, seguindo os passos de seu pai, D. Joo V, no tivera tambm qualquer cuidado
em manter uma organizao de tropas por mnima que fosse95
. Quando Frana e Inglaterra
fazem suas exigncias de lealdade ao mesmo tempo, optando por lutar ao lado da Inglaterra
e contra a Frana, a Coroa portuguesa se v na iminncia de uma guerra. Assim comea a
recrutar soldados, recuperar fortalezas, pagar os soldos at ento sem nenhuma
regularidade, pedindo, e contando, para todos esses preparativos, com o auxlio da aliada
Inglaterra.
J vinha de D. Joo V uma desorganizao do exrcito iniciada logo aps o tratado
de Ultrecht (1713): a Coroa, nesse momento, reduzira o efetivo militar e descuidara
completamente do pagamento das tropas que restavam. Isso, como veremos, vai gerar um
quadro social de penria, onde o mnimo a que os soldados so obrigados pedir esmolas96
.
Essa situao continua durante o reinado de D. Jos I. Com este, as tropas so pouco
numerosas, as fortalezas arruinadas, a marinha de guerra composta por oficiais de terra, e a
manuteno quase inexistente97
. Mas, com a invaso espanhola s portas de Portugal,
Pombal, ainda como Conde de Oeiras, precisa improvisar s pressas uma organizao
militar98
.
Para essa reorganizao, e devido ao acordo com a Inglaterra, chega a Lisboa em
1762 o Prncipe Guilherme, Conde-reinante de SchaumbourgLipe, encarregado de tornar
operveis as tropas de Portugal99
. As similaridades so muitas com Schomberg. O conde
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de Lipe tambm tenta inserir a cincia disciplinar em Portugal e inserir Portugal no
contexto europeu. E da mesma forma que Schomberg, com pouco xito.
Antes da chegada de Lipe, Pombal, ou melhor Oeiras, j executa algumas medidas
para viabilizar o exrcito: contrata dois batalhes mercenrios suos, introduz instruo na
artilharia100
, tenta agora equiparar as tropas burocrticas portuguesas quelas das
monarquias adversrias.
Um elemento que caracteriza as tropas burocrticas seu contrato com o Estado:
tornam-se foras em constante prontido, profissionais especializados e exclusivos da
guerra. A poltica da Coroa portuguesa, no entanto, no parece se predispor a manter essas
foras a partir desse contrato, uma vez que apenas em casos de guerra se preocupa com sua
manuteno.
Voltando um pouco aos objetivos desse estudo, nossa pretenso ao estudar os
militares coloniais encontrar um ngulo novo para a histria social da colnia. Uma
histria construda sobre estruturas de movimentos lentos que se formaram e se
solidificaram em um espao de trs sculos. E se h um elemento na histria militar luso-
brasileira que pode vir a corroborar uma crena na estagnao das estruturas sociais, este
elemento a poltica de manuteno das tropas, que varia pouco durante os sculos XVII e
XVIII.
De Dom Sebastio ao Conde de Lipe, o que vemos no Reino de Portugal so tropas
mal supridas e pessimamente gerenciadas pelo Estado.
Ainda no reinado de D. Joo IV, a partir das reclamaes da nobreza sobre a atuao
dos ministros do rei101
, podemos entrever uma negligncia estatal com o organismo militar:
segundo os nobres reclamantes, a Coroa no observa os contratos ou as promessas feitas
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gente alistada nem s tropas estrangeiras, os fundos de guerra so desviados, e os soldados,
alm de mal pagos, so muito desfavorecidos dos ministros, negando-lhes no s os
despachos, mas as palavras corteses, que obrigam muito, e custam pouco102
. O servio
militar desprestigiado. Impopular103
. E, aparentemente, os motivos para tanto esto
principalmente nesse tratamento dado s tropas: o atraso freqente do pagamento dos
soldos, mesmo durante uma guerra. E quando a Coroa paga, muitas vezes paga apenas
parcialmente104
. E Se ao chegar fortaleza onde ia prestar o servio, o recruta recebia
botas, calo, correame e s vezes, um sabre ou um mosquete, depois disto escusava de
contar com a tropa para se vestir. Alm da sopa, recebia dois pes e cinco soldos por dia,
mas tinha licena para se empregar na regio.105
A manuteno das tropas em tempo de paz a mnima possvel. Os soldados no so
fardados regularmente, tampouco armados106
. E o armamento que existe est em m
condio de conservao107
. Esse quadro pode ser observado em pocas e lugares
diferentes e mesmo em regies do imprio sob constante ameaa de guerra.
O problema certamente pode estar na falta de fundos para sustentar uma manuteno
regular das tropas, como Pombal j afirma. Mas essa penria no explica completamente o
total abandono das fortalezas e o esquecimento das guarnies que nelas servem108
; ou
mesmo a falta de instruo militar dos soldados, uma das mais significativas lacunas. O que
esse quadro pinta so nuances da poltica da Coroa, que, apesar de tudo, no de forma
alguma antimilitarista ou antiexpansionista. Esboa traos de um imaginrio militar onde o
importante a arremetida inicial no ataque. Uma ttica sem adestramento, sem a
massificao da unidade, onde ainda importa, herana medieval, o valor unitrio do
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soldado. Um imaginrio que ainda circula nas raias do medievo, que se recusa a adentrar na
era moderna com suas inovaes disciplinares e tticas.109
Privados de tudo, desde a lona para as barracas de
campanha, at as munies para suas poucas espingardas e
canhes ferrugentos, aos portugueses faltava ainda mais a
instruo militar e simples disciplina. Era preciso encontrar
montadas para os estafetas e correios, animais de tiro para
transporte de vveres, e os carroes de munies e
aquartelamentos para os recrutas .110
Apesar de sua natureza imperial militarista, j desde D. Joo III (1521-1557) que o
Reino se encontra em uma defensiva militar. Perdendo o impulso inicial das conquistas,
passada a fase da hegemonia martima da Ordem de Cristo, se inicia uma decadncia
estratgica, em que Portugal passa a ser visto como o ltimo a adotar inovaes tticas na
Europa111
. E mais adiante, na segunda metade do sculo XVII, durante as guerras pela
posse do imprio, as armas de Portugal no podem fazer frente Holanda. a voz do Padre
Antnio Vieira, experiente estadista, que ouvimos e, por seus clculos, os holandeses
dispem, ento, de cerca de quatorze mil navios, entre naus blicas e outras que poderiam
ser para tal fim adaptadas, enquanto Portugal dispe, no mesmo perodo, 1649, de treze
desses navios. Os nmeros para o elemento humano tambm beiram o surreal: duzentos e
cinqenta mil marinheiros holandeses que poderiam ser mobilizados em caso de
necessidade, contra quatro mil portugueses na mesma situao112
.
Boxer comenta essa declarao de Vieira admitindo um quase bvio exagero por
parte do jesuta estadista, interessado em impressionar e convencer, barroco por
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excelncia. Mas o exagero talvez no seja total: Boxer cita um censo de 1620, realizado em
Lisboa, vinte e nove anos antes da declarao de Vieira, onde esto registrados apenas seis
mil, duzentos e sessenta marinheiros disponveis em todo o Reino. Mais tarde, em 1643,
apenas seis anos antes do caso da Holanda, mesmo para a lucrativa e importante Carreira
das ndias, s existe em Lisboa, e segundo os nmeros da prpria Coroa, cerca de dez
pilotos qualificados, e que j esto empregados nesse trfego113
.
No difcil imaginar que, se na prpria Carre ira das ndias faltam pilotos
qualificados, a marinha de guerra beira a quase completa inexistncia. Uma precariedade
que fica patente nas preocupaes de Oeiras em restaur-la114
. Todos os marinheiros
capazes se empregam na marinha mercante, porque, alm do proverbial mau pagamento da
Coroa aos homens de guerra, os homens do mar ainda recebem menos que os soldados e
oficiais de terra. Na armada, quando no esto em servio, recebem apenas parte de seu
soldo: um tero para os oficiais, dois teros para a tripulao. por isso que a soluo
empregar pilotos civis na armada, que no precisam se submeter a esse sistema115
. No
governo de Pombal a Marinha de guerra est igualmente desmantelada. O embaixador
francs em Lisboa em 1772 escreve se lastimando por uma nao que abrira os mares do
mundo aos portos europeus. Ele escreve que a marinha de guerra lusa se limitava a doze
navios que apodreciam no Tejo116
.
Assim, o que vemos durante o reinado de Dom Jos I (1750-1777) uma fora
militar desorganizada, a no ser durante os dois perodos de guerra. Durante todo o resto do
tempo, durante a paz, as tropas burocrticas se vem em um estado de penria
alegadamente gerado pela falta de dinheiro nos cofres pblicos. Como sustentar as tropas
agora permanentemente contratadas uma questo eterna para os Estados absolutistas, e
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que nunca ser satisfatoriamente solucionada. Menos ainda em Portugal. O prprio
Marqus de Pombal, em escritos de fim de vida, explica essa situao: no faltava zelo
administrativo para cuidar do exrcito, a acreditarmos nele, faltava dinheiro:
No ano de 1762... trabalhei infatigavelmente (...) para servir e ajudar a El-Rei meu
amo em descobrir os meios, que no haviam, para formar, pagar, vestir e armar o exrcito
(...)117
.
E nesse mesmo ano, de 1762, ainda como Conde de Oeiras, num impulso de doze
dias, ps-se a suprir o que em doze anos de governo deixara de fazer. (...) Legislou sobre o
alargamento dos quadros do exrcito, promoes, comandos, munies de guerra e de
boca, tudo enfim, at ninharias, como a ementa do rancho dos oficiais (...)118
.
Mas regular o rancho, isto , as provises dos oficiais, no ninharia se
considerarmos os gastos que essa corte militar barroca impe ao errio rgio. Seguindo o
mesmo princpio, ele decreta a reduo das bagagens dos generais, alm de um limite para
o nmero de pratos nas mesas dos oficiais superiores:
Ficavam estas reduzidas a uma cobertura de vinte pratos sorteados de cozinha e
outra coberta respectiva de frutas e doces. Isto para os chefes. Quanto aos ajudantes de
campo, deviam contentar-se com um prato de sopa, outro de cozido, outro de assado,
outro de guisado, e quatro de sobremesa.(...)119
.
Se esse o rancho reduzido dos oficiais, bem se v que est longe de ser ninharia
esse tipo de regulamentao.
O que no podemos nos esquecer que, enquanto os generais e oficiais assim se
servem, os soldados esmolam uma escudela de comida nas portas dos conventos.120
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J dissemos que entre as medidas tomadas pelos ministros portugueses antes da
chegada do Conde de Lipe, est o pagamento dos soldos atrasados s tropas. Esse
pagamento realizado para responder s exigncias que a Inglaterra faz para a melhoria da
estrutura militar lusa. por causa dessas exigncias que a Coroa efetua o mesmo de seis
meses de soldos atrasados e decreta algumas providncias para que o pagamento passasse a
ser regular a partir de ento.121
Providncias nas quais no devemos nos fiar.
Seis meses de soldos atrasados.
Sobre algumas medidas parecidas que toma, ainda impulsionado pelas
circunstncias, que lemos como Inglaterra , Oeiras escreve:
No esqueci, mas antes desejei bem mandar pagar s mesmas
tropas os atrasados dos meses que lhes eram devidos
anteriores a agosto ltimo. Tive mesmo toda a esperana de
poder faz-lo. Mas os subsdios da Inglaterra, que se
julgavam a caminho, no chegaram at agora. As munies
de boca em todas as provncias e respectivos transportes
custaram muito mais do que noutras circunstncias
custariam.122
Essa carta escrita como explicao e desculpa ao Conde de Lipe, ento preocupado
com a falta de pagamento de suas tropas, em novembro de 1762. Notemos que Oeiras diz
ter pretendido pagar os meses anteriores a agosto. E mesmo assim no o fez.
Como essas atitudes de abandono refletem no contexto social uma questo que
precisa ser observada. E no apenas no reinado de D. Jos e na metrpole, pois, se esse
quadro de descalabro esteve acentuado durante o absolutismo setecentista portugus, ele
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no , de forma alguma, uma caracterstica particular desse tempo e lugar. E mais
interessante se lembrarmos que a poltica da Coroa observa o princpio de se pagar primeiro
s tropas antes de qualquer outro servio pblico123
. Poltica adotada para o imprio
ultramarino tambm.
Oeiras, nessa mesma carta a Lipe, afirma que as tropas nunca foram to bem pagas
em Portugal como estavam sendo naquele momento. Afirma ainda que, de qualquer forma,
eram sempre pagas com prioridade sobre os outros assuntos da Coroa124
.
Talvez, afinal de contas, falte mesmo dinheiro para se pagar a burocracia. Por que
falta, a questo. E talvez o estado precrio das tropas portuguesas possa mesmo ser
imputado burocracia da Coroa, falta de numerrio, ou mesmo prpria poltica do
Estado que desde D. Joo III est militarmente defensiva, desinteressada em constituir
grandes mecanismos blicos. Mas o desinteresse estatal na construo desses grandes
mecanismos blicos pode passar tambm por aquela crena medieval no valor militar do
soldado enquanto unidade singular. a valorao do individual, que o adestramento militar
das outras monarquias j suplantara.
O que pode nos exemplificar essa descrena no treinamento militar a inexistncia
em Portugal de tratados tericos sobre a arte da guerra, enquanto estes proliferam em
Estados como a Frana e a Holanda. Evaldo Cabral de Mello nos oferece algumas idias
sobre a situao terica do militarismo portugus. Segundo ele
quase inexistente a teorizao sobre arte militar por parte
do portugus de quinhentos ou seiscentos. Em 1631, j
iniciada a guerra do Brasil, o Abecedrio Militar de Joo
de Brito Lemos visava precisamente a preencher a grave