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Filosofia oriental Filosofia é a amizade com a sabedoria, uma curiosidade profunda e investigadora com relação às coisas e causas do mundo. Embora não se alcancem muitas respostas definitivas (pelo contrário, muito poucas), o verdadeiro sábio sabe perguntar e se maravilha com a imagem que lhe aparece no espelho. A Verdade é uma só e não cabe ao filósofo transmiti-la por inteiro, o que seria impossível, mas mostrar o reflexo que seu meio lhe permite. O esplendor da Realidade não pode ser expresso em palavras nem entendido pelo puro raciocínio como se faz quando se colhe um fruto maduro; o Mundo é um jardim muito grande, no qual cada flor é uma forja de símbolos sob observação. Uma dessas flores, aquele lótus que surge do umbigo do deus oceânico, que não devemos imitar e sim compreender, é a filosofia da antiga Índia, durante tanto tempo tão mal-compreendida e vilipendiada, ou, pelo outro extremo, idealizada e vista como uma panacéia para a humanidade, superior a qualquer produto cultural de qualquer outra civilização; outra é a da China, que sofre sob estigmas semelhantes. Ora, bem sabemos que cada ser humano é único e determinadas filosofias e pontos de vista se adaptam melhor a uns do que a outros; não cabe a um definir o que é superior ou inferior, e sim reconhecer o que cada sistema de reflexão tem a oferecer de construtivo e saudável para cada tipo de pessoa. A interiorização, o aprofundamento, a investigação e o amor pelo objeto estudado e pelo sujeito do estudo são sempre positivos, independentemente da maneira como são apresentados; e se uma escola de pensamento possui algumas ou todas essas características, não há motivo sério para desqualificá-la, apenas prepotência. A filosofia do oriente milenar, tanto a hindu quanto a chinesa, infelizmente ainda permanece muito presa à esfera da subcultura, à margem do meio acadêmico e da respeitabilidade científica; não que isso a desqualifique por si, pois sua validade é humanamente eterna mesmo certos cientistas não sendo respeitáveis e a maior parte das universidades estando mais preocupada com pompas formais e cânones estáticos do que com o verdadeiro conhecimento; contudo, essa falta de reconhecimento termina por provocar as conhecidas deformações (entre o grotesco e o idealizado).

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  • Filosofia oriental

    Filosofia a amizade com a sabedoria, uma curiosidade profunda e investigadora com relao s coisas e causas do mundo. Embora no se alcancem muitas respostas definitivas (pelo contrrio, muito poucas), o verdadeiro sbio sabe perguntar e se maravilha com a imagem que lhe aparece no espelho. A Verdade uma s e no cabe ao filsofo transmiti-la por inteiro, o que seria impossvel, mas mostrar o reflexo que seu meio lhe permite. O esplendor da Realidade no pode ser expresso em palavras nem entendido pelo puro raciocnio como se faz quando se colhe um fruto maduro; o Mundo um jardim muito grande, no qual cada flor uma forja de smbolos sob observao. Uma dessas flores, aquele ltus que surge do umbigo do deus ocenico, que no devemos imitar e sim compreender, a filosofia da antiga ndia, durante tanto tempo to mal-compreendida e vilipendiada, ou, pelo outro extremo, idealizada e vista como uma panacia para a humanidade, superior a qualquer produto cultural de qualquer outra civilizao; outra a da China, que sofre sob estigmas semelhantes.

    Ora, bem sabemos que cada ser humano nico e determinadas filosofias e pontos de vista se adaptam melhor a uns do que a outros; no cabe a um definir o que superior ou inferior, e sim reconhecer o que cada sistema de reflexo tem a oferecer de construtivo e saudvel para cada tipo de pessoa. A interiorizao, o aprofundamento, a investigao e o amor pelo objeto estudado e pelo sujeito do estudo so sempre positivos, independentemente da maneira como so apresentados; e se uma escola de pensamento possui algumas ou todas essas caractersticas, no h motivo srio para desqualific-la, apenas prepotncia. A filosofia do oriente milenar, tanto a hindu quanto a chinesa, infelizmente ainda permanece muito presa esfera da subcultura, margem do meio acadmico e da respeitabilidade cientfica; no que isso a desqualifique por si, pois sua validade humanamente eterna mesmo certos cientistas no sendo respeitveis e a maior parte das universidades estando mais preocupada com pompas formais e cnones estticos do que com o verdadeiro conhecimento; contudo, essa falta de reconhecimento termina por provocar as conhecidas deformaes (entre o grotesco e o idealizado).

  • Orientalismo rima com modismo; e a quantidade de falsos gurus sempre contribuiu para gerar descrdito e mistificao. A universidade deveria realmente levar mais a srio a sabedoria oriental por se julgar guardi e detentora das pesquisas e estudos cientficos, e seu papel social seria o de justamente transmitir as informaes verdadeiras, alm das cortinas de fumaa da mdia, dos balangands misticides e das ondas de comportamento. No entanto, o que vemos surgir e ressurgir so apenas preconceitos; um dogma fulcral seria a afirmao que a filosofia um produto exclusivamente ocidental... O desprezo pela filosofia oriental tem razes na crtica de Hegel, tendo se estendido at entre os anti-hegelianos como muitos autores catlicos, que aceitam So Toms e Santo Agostinho mas no Shankara e Ramanuja, embora todos estes sejam essencialmente religiosos (uma crtica freqente filosofia oriental seu vnculo com a religio); a maioria dos estudantes de filosofia no se d conta do quanto subjetivo considerar Tales e no Confcio; Herclito e no Lao Tzu; louvar a originalidade de Maquiavel e desconhecer completamente o Arthashastra de Kautilya ou banalizar A Arte da Guerra de Sun Tzu, que muito mais do que um simples tratado de estratgia militar; dar mais validade de investigao cientfica aos diversos princpios dos pr-socrticos do que aos cinco elementos chineses, um estudo que ainda se revela vlido para os praticantes de acupuntura e massagem oriental; atribuir menos valor ao sistema de lgica Nyaya do que ao de Aristteles; lecionar sobre Epicuro e no mencionar o materialismo de Carvaka. Por que temos que nos impor tantas limitaes? Influenciado por Hegel, Maritain afirmou em seus Elementos de Filosofia que no oriente tivemos apenas religies muito primitivas. O consenso parece total, mas consenso no argumento; e apenas parece...Pois foi Schopenhauer, um filsofo ocidental reconhecido, que considerou as Upanishads como frutos da mais elevada sabedoria humana. Por que levar em conta a opinio de Hegel e no a de Schopenhauer, cuja obra-prima, O Mundo como Vontade e Representao, bebe de fontes orientais? Ao encarar como uma manifestao da evoluo do Esprito Universal a sucesso dos sistemas filosficos, Hegel deixou ao oriente o papel de pr-histria da filosofia, j que de acordo com a sua viso a sia seria o comeo e a Europa o fim. Sua Fenomenologia do Esprito classificou os passos orientais como um pensamento puramente abstrato, sem progressos. Nesse aspecto, no percebeu (nem ele, nem seus seguidores conscientes e inconscientes) que mesmo a reflexo religiosa na ndia nunca foi um bloco monoltico e esttico: embora os Vedas jamais tenham sido negados pela ortodoxia, esta adicionou novos pontos de vista no decorrer do tempo (Upanishads, Brahmanas, Aranyakas, Tantras), e a heterodoxia esteve sempre ativa, como mostram os registros e escritos de budistas, jainas e carvakas, o que poderia ser considerado uma evoluo. Para quem diz que nunca houve real investigao e interesse cientfico no oriente, os que defendem que a filosofia esteja ligada em seu surgimento observao a-religiosa da natureza e explorao no puramente tcnica e prtica, convm citar Brahmagupta e Bhaskara, entre outros. As primeiras noes geomtricas na ndia apareceram em escritos denominados

  • Shulbasutras (relacionados construo de altares); em um desses textos, o de Baudhayana, aparece aquele que seria conhecido como o teorema de Pitgoras (aproximadamente 300 anos antes do grego); seguiram os Siddhantas, os sistemas de astronomia, e a matemtica hindu se acostumou a trabalhar com grandes cifras. Nesse sentido sempre foi profundamente diferente da grega, com razes numa cultura que se sedimentou no pequeno, no local, na plis; a ndia, ao contrrio, sempre manteve uma viso csmica e j havia nos dias e noites de Brahma e no reconhecimento de um universo imenso questes que os cientistas discutiriam sculos depois; gregos e romanos pensaram politicamente e historicamente; os indianos cosmicamente. O conceito de zero (que os gregos nunca aceitaram como nmero, preferindo operar as medidas usando razes), que simplificou em muito a matemtica e permitiu que esta desse um enorme salto, deve muito importncia que os orientais davam ao vazio, identificando-o como a fonte de todas as coisas. A palavra sunga (vazio, em snscrito) foi usada pela primeira vez para indicar a casa nula na escritura de numerais por Pingala, no seu Chandah-Sutra; mais tarde as casas nulas passaram a ser indicadas por um ponto, o pujyam; mas j na civilizao do Vale do Indo, em aproximadamente 3000 a.C, h indcios que um smbolo circular era usado em rguas graduadas, indicando o valor zero; uma pena que a linguagem dessa fascinante civilizao ainda no tenha sido decifrada. Sobre o atomismo, fala-se muito em Demcrito, mas a antiga escola filosfica hindu Vaisesika, da raiz snscrita visesas, individualidade atmica, cujo principal expoente foi Aulukya, tambm chamado Kanada, o comedor de tomos, j usava o termo anus, que significava algo como no-cortado ou indivisvel, justificando a traduo de tomo. Os Vaisesika tambm descobriram a lei da gravidade, em virtude da propriedade, inerente aos tomos terrestres, de serem atrados para o centro da Terra, causando a queda dos corpos; a circulao da gua nas plantas; a natureza cintica de toda energia (toda causa implica sempre um dispndio de energia ou uma redistribuio do movimento); inturam o risco da dissoluo universal atravs da desintegrao atmica; argumentavam a favor da relatividade do tempo e do espao; e consideravam que os tomos possuam um incessante movimento vibratrio. Ainda na ndia, foi Brahmagupta que elevou o zero categoria dos nmeros ao estabelecer as primeiras regras bsicas para o clculo com este, como que um nmero multiplicado por zero resulta em zero. Al Khwarizmi, o divulgador do sistema proporcional decimal, aprendeu a calcular neste com o Siddhanta de Brahmagupta; os nmeros rabes so na verdade indianos, transmitidos dos rabes para o ocidente. Foi Ariabhata que calculou o valor de pi at a quarta casa decimal; Bhaskara, famoso pela frmula de resoluo das equaes de 2 grau, escreveu um tratado de lgebra que foi a base para a lgebra europia dos sculos seguintes. Isso tudo no desvaloriza nenhuma descoberta ou contribuio dos gregos ou de outros filsofos-matemticos como Descartes ou Leibniz; aqui tratamos de demonstrar o quanto a realidade rica e como nada se encontra desvinculado e cada estudioso e pensador deu a sua valiosa contribuio para o conhecimento, independentemente de sua origem; expusemos os xitos orientais porque quase nunca so citados. Ao contrrio do que Hegel acreditava, nem uma semente simples; nela no reside apenas a futura rvore, que pode no vir a existir; a semente em si,

  • composta por incontveis micro-partculas, j vlida e complexa. Hegel se contradisse ao afirmar que o centro do pensamento filosfico, assim como o do religioso, seria a idia do Absoluto; pois as mais variadas concepes orientais do Todo, testas, dualistas (como o Samkhya), atestas (os lokayata e de certo modo os jainistas), ou para as quais Deus como tradicionalmente o entendemos no a questo central, e sim formas de conduta e postura interior (como em diversos ramos do budismo), alm da mstica cheia de desdobramentos do Tao (o de Lao Tzu tem pouca relao com o dos alquimistas chineses, isso s para citar dois tipos de taosmo), no foram estudadas com ateno e pacincia por ele e nem pelos seus seguidores. Hegel classificou de belos os deuses gregos e o panteo hindu como um politesmo em liberdade, em mais um julgamento subjetivo; criticou o fato do Ganges e da lua serem apresentados como pessoas e esqueceu-se que na mitologia grega as ninfas eram espritos da natureza e que rtemis e Apolo tambm personificavam a lua e o sol, respectivamente. Ademais, Shiva, Vishnu e a prpria Deusa, em seus vrios desdobramentos, tm caractersticas transpessoais que nenhum deus grego possui. Heinrich Zimmer deu a entender em suas obras que na mitologia indiana o subconsciente humano aparece muito mais explcito, constituindo uma porta fascinante para investig-lo; Schlegel, que defendeu que o homem recebera primitivamente a revelao divina e gradativamente a perdera, adquirindo numa terceira fase a fora e o poder necessrios para recuper-la no futuro, numa viso de mundo profundamente diferente da de Hegel, via a mitologia grega como uma srie de fantasias e imagens vazias, cuja profundidade s comeara a surgir sob a influncia neoplatnica, com Apuleio e outros. Segundo Schlegel, uma mitologia semelhante indiana, carregada de sabedoria e no de pura imaginao, teria surgido na Grcia se Pitgoras tivesse sido bem-sucedido ao modificar a religio popular. E Schlegel no foi um defensor cego da ndia, tanto que em seus textos reconheceu diversos defeitos da sociedade indiana; contudo, enxergou aquela longnqua cultura no apenas por seus problemas. Em Hegel, criticada a multiplicidade de cosmogonias da ndia; a filosofia no ser amigo do conhecimento? Que amizade essa que exige dogmas e padres? Cada rishi, cada filsofo da ndia, redescobriu o Absoluto sua maneira; o mesmo ocorreu a cada monge budista ou taosta da China, e assim surgiram as dez mil coisas...Afora que tambm na Grcia as cosmogonias no so assim to unificadas... Durante a expanso do imprio de Alexandre, os msticos hindus foram admirados pelos gregos, que os chamavam de gimnosofistas, ou filsofos nus, o que demonstra que os antigos helnicos no possuam a estreiteza mental da maioria dos ocidentais posteriores. Por mais que se negue, tambm evidente a influncia oriental na Grcia anterior ao prprio Alexandre, j que a metempsicose de Fercides e Pitgoras, o conceito de reencarnao, essencialmente hindu (no existia entre os egpcios e sumrios). provvel que o prprio Pitgoras tenha visitado a ndia, alm de no ser absurda a hiptese que seu mestre Fercides, que era persa ou de origem persa, fosse instrudo na sabedoria indiana. A Prsia daqueles tempos mantinha um contato estreito e constante com a ndia; na regio do Punjab, segundo Herdoto, constituiu-se a vigsima satrapia do imprio daqueles grandes reis. tambm

  • praticamente certo que havia soldados indianos entre as hostes persas que atacaram a Grcia; no improvvel a possibilidade que alguns tenham permanecido e deixado algumas marcas. Acreditamos que houve influncia oriental no orfismo, um culto atpico na Grcia, no qual o ser humano buscava se libertar da cadeia dos renascimentos e eram adotadas prticas ascticas. Em Plato pode no ter havido influncia direta e consciente, mas sua concepo de que o homem comum precisava sair da caverna possui os mesmos fundamentos da iluso de Maya e na Idia platnica do Bem h muito do Absoluto exposto nas Upanishads. Uma metfora da carruagem existe tanto em Plato como nas Upanishads; por que uma considerada filosofia e a outra no? Plotino, que acompanhou a expedio de Gordiano contra Sapor, rei da Prsia, e para o qual tudo o que existe seria o resultado de um princpio emanador, foi um estudioso profundamente interessado na filosofia hindu e influenciado por esta; a Essncia Original de Plotino muito semelhante ao Brahman, assim como seu Nous, a primeira emanao, corresponderia ao Ishvara indiano. E levando-se em conta as influncias ou no, o que mais importa que todo o neoplatonismo permeado desse misticismo profundo e isso no reduz em nenhum momento a qualidade de sua reflexo filosfica. Hegel atacou as penitncias e mortificaes dos indianos , mas no foi objetivo ao esconder e preservar as correntes ascticas do cristianismo, auto-flageladores e carregadores de cruzes entre outros, alm da obrigao do voto de castidade catlico para os sacerdotes, sem mtodos de sublimao das energias sexuais como os do tantra e da alquimia sexual chinesa, verdadeiras filosofias que vo muito alm de uma exaltao do sexo (o Kama-Sutra no tem nada a ver com o tantrismo e tambm no se limita ao sexo, mas aos prazeres sensuais em geral, ao contrrio do que divulgado em algumas fontes equivocadas no ocidente). Neste ltimo caso no que no seja possvel para alguns indivduos a abstinncia sem um mtodo, pois h os que j nasceram voltados f ou que a descobriram cedo; mas algo extremamente raro.

  • Quanto repulsa ao sistema de castas, por que no criticar as castas tcitas que o capitalismo impe, a escravido ao dinheiro ao qual estamos submetidos para viver, um meio que se tornou um fim? Alm do mais, a humanidade se acostumou diviso: bairros, agremiaes, cidades, unidades federativas, pases, onde sempre existiram ricos e pobres, exploradores e explorados, chefes e subordinados, num egosmo desenfreado que se manifestou por tribalismos, racismos, bairrismos e patriotismos que em nada devem ou deveram a um sistema de castas. Buda estava certo ao renegar as castas em prol de uma comunidade verdadeira, a sangha, com condies para que todos buscassem a iluminao; uma humanidade plena teria que eliminar todos os ismos e separaes artificiais. Entretanto, as castas nunca se restringiram ndia; j existiram e ainda existem muitos tipos de castas, mais ou menos disfarados. Temos que reconhecer que Hegel no teve l grandes fontes para analisar a filosofia oriental; ao contrrio dos seus discpulos, que tm muito material disposio, porm so preguiosos ou dogmticos. As descries do oriente que se faziam na poca de Hegel tendiam mais ao exotismo e fantasia, pouca coisa que valesse documentalmente mais do que as agradveis aventuras dos Sandokan e Tremal-Naik criados por Salgari, alm da escassez de textos tcnicos e tericos sobre o assunto em lnguas ocidentais. Muitos exploradores cristos, por sua vez, eram tendenciosos e no reconheciam os defeitos de sua prpria religio, apenas os dos hindus. Em seu Dicionrio Filosfico, Voltaire se mostrou muito mais aberto e um verdadeiro filsofo ao escrever sobre os indianos que jamais fomos at esse povo seno para nos enriquecermos e para caluni-los e para lamentar os vcios e erros dos brmanes, mas que no nos esqueamos da nossa prpria misria. Contudo, no inocentemos totalmente Hegel. Pois este no teve nunca a humildade, a abertura de esprito e a perspiccia de Voltaire; nunca soube respeitar a religio alheia: equivocava-se ao assumir com tanta obviedade a inter-relao de todos os

  • aspectos de um povo, dogmatizando uma abstrata evoluo do esprito que deixa o mais antigo, no todo, numa condio de inferioridade. Se numa cultura, por exemplo, as pessoas que produzem o carnaval so as mesmas que produzem a filosofia, possvel que ambas estejam inter-relacionadas; se houver entretanto a existncia de classes bem diferenciadas, isso no tem o menor cabimento. Hegel sabia da existncia das castas, de suas obrigaes, profisses e regimentos; faltou boa vontade e abertura mental para uma anlise que mesmo sem tantas fontes poderia ser mais sensata e profunda: as prticas extremas criticadas pelo filsofo alemo nunca pertenceram aos brmanes e Hegel deturpou seus significados ao tentar criticar a filosofia bramnica; selecionava os fatos mais negativos e chocantes em suas descries, porm ns bem sabemos que as barbaridades nunca foram exclusividade da ndia. De acordo com Hegel, o Esprito caminha sempre para o progresso e a cultura oriental foi o incio de um processo que culminou com o prprio sistema hegeliano (nem um pouco modesto!). No entanto, para contradizer a alegao comum que a cultura indiana no apresenta complexidade e historicidade, basta dizer que as castas ainda no existiam no perodo vdico; portanto, a argumentao de Hegel, relacionando a falta de liberdade e mobilidade social na ndia impossibilidade da filosofia, torna-se insustentvel. A tentativa de avaliar a filosofia indiana a partir da estrutura social da ndia do sculo XIX foi to vlida quanto seria uma anlise da filosofia grega a partir da estrutura social da Grcia do sculo XVIII ou XX. O fato que Hegel j tinha uma opinio formada sobre a filosofia da ndia e do extremo oriente muito antes de estud-la; e superficialmente, pois suas nicas fontes mencionadas de forma explcita foram dois artigos de Henry Colebrooke, o que muito pouco; seria como criticar a filosofia grega depois de ler algumas poucas publicaes a respeito dela. Se Hegel no teve a mesma perspiccia de lince (citando Max Muller) de Schopenhauer para ler a quase ininteligvel traduo latina das Upanishads feita por Duperron, que no emitisse opinies precipitadas e superficiais, que terminaram por influenciar geraes. Em seu orgulho, jamais quis admitir os equvocos e contradies na teoria da evoluo do Esprito; entrementes, muito simples constatar que no necessariamente o mais recente mais complexo. Sem tirar os mritos de Descartes ou de Schelling, nenhum dos dois mais elaborado do que Aristteles ou Plato. Dizer que no h filosofia no oriente, que h apenas primitivos conceitos pseudo-religiosos, no algo trivial: equivale a dizer que nada do que foi produzido por l til para a humanidade, que no merece a ateno das universidades: um desestmulo completo pesquisa. Reconhecer o aspecto valorativo da palavra filosofia fcil, pois qual marxista no se indignaria ao ver Marx catalogado apenas como economista e qual escolstico no reagiria frente alegao que no existe filosofia crist mas apenas religio crist? Para os que alegam que o pensamento oriental no sistemtico, os incentivamos a vencer a indolncia e comprovar que h textos filosficos sistemticos no oriente; e ainda fica a pergunta: por acaso Nietzsche ou Plato so sistemticos? Os msticos e os loucos certamente se encontram no mesmo oceano; no entanto, l o mstico nada e o insano naufraga. O mstico alcana estados de felicidade, unio e

  • plenitude muito alm de qualquer outra experincia vital (no mnimo, os mais cticos deveriam reconhecer a ausncia de paradigmas em sua cincia para estados to diferenciados), ao passo que o louco fica perdido, sem entender o que lhe acontece. Rechaamos a viso de que a religio alienao e portanto qualitativamente inferior filosofia e cincia (colocamos entre as aspas porque estamos trabalhando com as concepes generalizadas que se tm de religio, filosofia e cincia); cincia que h muito deixou de ser determinstica, ao contrrio do que acreditam os cientificistas: a fsica, por exemplo, e os fsicos tm conscincia disso, no trata da Realidade, e a grande diferena entre a fsica contempornea e fsica clssica consiste no reconhecimento de estar tratando das sombras do mundo e no do mundo em si; nisso que reside a conexo entre a fsica e a espiritualidade, que se dirige para fora da caverna. Devemos ter um olhar crtico em relao cincia, menos ingnuo. A Epistemologia (filosofia do conhecimento), por exemplo, deveria ser uma matria melhor desenvolvida ou ao menos apresentada nas escolas e faculdades. A cincia costuma ser vista como algo quase mgico, exato, absoluto e neutro, coisa que no e nunca ser. O poder de comprovao proporcionado pela cincia traz um sentimento muito forte de confiana, porm devem sempre ser levadas em considerao as circunstncias e motivaes de uma pesquisa. Foucault, em sua obra Em defesa da Sociedade, quando critica a pretenso dos marxistas de elevarem de qualquer maneira sua filosofia categoria de cincia, elabora um ponto de vista que pode servir para exemplificar com eficcia a natureza dos conflitos entre a cincia e as outras formas de conhecimento. Vamos ao trecho:

    No necessrio se interrogar sobre a ambio de poder que a pretenso de ser uma cincia traz consigo? As questes que preciso formular sero estas: - Quais tipos de saber vocs querem desqualificar no momento em que vocs dizem ser esse saber uma cincia? - Qual sujeito falante, qual sujeito discorrente, qual sujeito de experincia e de saber vocs querem minimizar quando dizem: eu, que fao esse discurso, fao um discurso cientfico e sou cientista? - Qual vanguarda terico-poltica vocs querem entronizar, para destac-la de todas as formas macias, circulantes e descontnuas de saber? E eu diria: quando vejo vocs se esforarem para estabelecer que o marxismo uma cincia, no os vejo, para dizer a verdade, demonstrando de uma vez por todas que o marxismo tem uma estrutura racional e que suas proposies dependem, por conseguinte, de procedimentos de verificao. Eu os vejo, sobretudo e acima de tudo, fazendo outra coisa. Eu os vejo atribuindo aos que fazem esse discurso efeitos do poder que o Ocidente, desde a Idade Mdia, atribuiu cincia e reservou aos que fazem um discurso cientfico.

    Atualmente parece que todos os ramos do conhecimento tm que forosamente estar vinculados aos dogmas da cincia exata; e os religiosos afirmam que a cincia mutante e falha, pois feita pelo homem, porm, na primeira oportunidade, apiam seus argumentos em saberes cientficos. Em vez de perder tempo classificando e fracionando o conhecimento, o que no leva a nada, deveramos valoriz-lo em sua totalidade. Nos ramos principais da filosofia

  • oriental, os mistrios de nossa condio humana, as encruzilhadas da vida e da morte, ancorados a estudos lgicos e extremamente complexos, nunca buscaram muletas, nem permaneceram confinados ao discurso religioso, nem caram em dogmas de f; faculdades intelectuais, operaes mentais e de cognio, estruturas psquicas, leis de lgica e inferncia foram descritas minuciosamente e com a experincia como base muito antes de qualquer forma de empirismo ou positivismo. No haver em muitos casos uma separao ntida entre os discursos subjetivos (o mstico e o sagrado) e o objetivo (cientfico) no bloqueou o surgimento de sistemas to ou mais refinados de pensamento do que os do ocidente; diversos filsofos ocidentais, como Plato, Plotino e Alberto Magno, cremos que isso ficou claro, tambm no estabeleceram esse tipo de ciso. Os sbios orientais exploraram as zonas mais obscuras do subconsciente e nestas buscaram o que existe no ser humano alm dos inmeros condicionamentos. Como escreveu o dr.Zimmer, a principal finalidade do pensamento indiano desvendar e integrar na conscincia o que as foras da vida recusaram e ocultaram, em um processo de descoberta e integrao psquica. O mesmo vale para o taosmo de Lao Tzu e Chuang Tzu e o yoga tibetano, sem desconsiderar o grande sistema tico do Confucionismo (que inclui entre seus principais expoentes Confcio, Mncio e o original Xun Zi, que acreditava, assim como Hobbes, numa natureza perversa do homem, compensada pela sociedade) ou o frio realismo do Arthashastra, menos transcendentes mas igualmente complexos, o que demonstra a amplitude e a riqueza das filosofias que o oriente desenvolveu. Sophia (o conhecimento que leva a ver alm das sombras da caverna...) foi amiga dos gregos, dos indianos, dos chineses, dos alemes, dos franceses...De todos os que se propuseram a estudar profundamente as coisas, inclusive a natureza do prprio pensamento.

  • Bibliografia bsica recomendada:

    ZIMMER, Heinrich. Mitos e smbolos na arte e civilizao da ndia. Editora Palas Athena

    ZIMMER, Heinrich. Filosofias da ndia. Editora Palas Athena

    ZIMMER, Heinrich, A conquista psicolgica do mal. Editora Palas Athena

    ROHDEN, Huberto. O esprito da filosofia oriental. Editora Martin Claret.

    CAMPBELL, Joseph. As Mscaras de Deus: volume Mitologia Oriental. Editora Palas Athena.

    NUNES DE AZEVEDO, Murilo. No Olho do Furaco Panorama do Pensamento no Extremo Oriente. Editora Civilizao Brasileira.

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