3-subjetividades punitivo-penais de ceciliacoimbra e estela scheinvar

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SUBJETIVIDADES PUNITIVO-PENAIS Cecilia Coimbra Estela Scheinvar A identificação do “criminoso” em indivíduos isolados e facilmente reconhecíveis produz uma sensação de alívio. O “criminoso” é o outro. Quem não é processado ou condenado vive uma conseqüente sensação de inocência. A imposição da pena a um apontado responsável pela prática de um crime funciona como a “absolvição” de todos os não selecionados pelo sistema penal, que, assim, podem comodamente se autointitular “cidadãos de bem”, diferentes e contrapostos ao “criminoso”, ao “delinquente”, ao “mau”. Maria Lúcia Karan (2009) O artigo de Wacquant nos dá a possibilidade de ampliar o debate sobre a naturalização e a banalização das subjetividades punitivo-penais no contemporâneo, apresentando importantes elementos. Análises sobre aprisionamento, organização do Estado, formas de exercício do poder, sociedade de controle, entre outros, confluem para pensar e colocar em análise os parâmetros punitivos como instrumentos privilegiados adotados em nome da superação dos conflitos que afligem a sociedade liberal. Cada um dos autores apresentados por Wacquant, bem como as próprias ideias expostas por ele, participam intensa e diretamente do debate, aportando conceitos que em momentos se articulam e em outros se diferenciam. Como pode se ler em Trabalho social, regime prisional e insegurança social (WACQUANT, 2011), o debate é amplo e polifônico. Esta a sua riqueza. 1

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SUBJETIVIDADES PUNITIVO-PENAIS

Cecilia CoimbraEstela Scheinvar

A identificação do “criminoso” em indivíduos isolados efacilmente reconhecíveis produz uma sensação de alívio.

O “criminoso” é o outro.Quem não é processado ou condenado vive uma conseqüente sensação de inocência.

A imposição da pena a um apontado responsável pela prática de um crime funciona como a “absolvição” de todos os não selecionados pelo sistema penal,

que, assim, podem comodamente se autointitular “cidadãos de bem”,diferentes e contrapostos ao “criminoso”, ao “delinquente”, ao “mau”.

Maria Lúcia Karan (2009)

O artigo de Wacquant nos dá a possibilidade de ampliar o debate sobre a naturalização e

a banalização das subjetividades punitivo-penais no contemporâneo, apresentando importantes

elementos. Análises sobre aprisionamento, organização do Estado, formas de exercício do

poder, sociedade de controle, entre outros, confluem para pensar e colocar em análise os

parâmetros punitivos como instrumentos privilegiados adotados em nome da superação dos

conflitos que afligem a sociedade liberal. Cada um dos autores apresentados por Wacquant,

bem como as próprias ideias expostas por ele, participam intensa e diretamente do debate,

aportando conceitos que em momentos se articulam e em outros se diferenciam. Como pode se

ler em Trabalho social, regime prisional e insegurança social (WACQUANT, 2011), o debate

é amplo e polifônico. Esta a sua riqueza.

Assim, considerando a oportunidade e a urgência deste debate, tomamos o referido

artigo como um disparador, uma oportunidade para “entrar na roda”, pensando as implicações

de falar em subjetividades punitivo-penais atualmente no Brasil. Aproximamo-nos de

Wacquant quando aponta que tanto os trabalhadores sociais como “a prisão despida de sua

pretensão reabilitadora”

trabalham em conjunto para invisibilizar populações problemáticas, obrigando-as a sair da listas de ajuda pública, por um lado, e mantendo-as atrás das grades, por outro, e, no longo prazo, empurrando-as para os setores periféricos do florescente mercado do trabalho secundário (pp. 3-4).

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Mas também é certo que nos distanciamos dele quando toma a prisão como eixo

empírico para referir a lógica prisional e, ainda, quando entende que cabe ao Estado “mitigar o

descontentamento popular” causado “pelo abandono das suas tradicionais obrigações

econômicas e sociais” (p.21). Entendemos o Estado como um lugar sem uma essência, mas

como campo de forças, cuja orientação pautar-se-á de acordo com os interesses e as lógicas

em jogo. Consideramos que

O Estado tem se tornado uma figura quase que religiosa, portadora do “bem” ou do “mal”. Visto como um ente absoluto, cobra-se dele uma postura que em sua vida liberal não deu mostras de ter assumido. É quase unânime a expectativa de que ele resolva os problemas relativos à desigualdade social e, simultaneamente, também quase unânime, a frustração desta esperança, perante a contundente arbitrariedade com que ele é gerido. [...]O Estado brasileiro emite discursos paternalistas, morais, com promessas muito além de seu alcance que, embora contraditos historicamente pela gestão da política pública, são capturados como compromissos, como verdades a serem cumpridas, criando a ilusão do igualitarismo que as práticas se encarregam de vedar. Este é o feitiço da política pública... (SCHEINVAR, 2009, p.31).

Nos interessa pensar as lógicas, as formas de subjetivação por meio das quais a

sociedade brasileira contemporânea entende ser possível transformar o que lhe provoca

descontentamento ou desespero no cotidiano.

A noção de direito é uma referência produzida como um conforto na sociedade liberal,

subentendendo que o Estado assegurará o seu cumprimento e o bem estar coletivo prometido

em nome dos chamados Direitos Humanos1. O mesmo Estado que aprova leis que

mercantilizam todos os espaços e pessoas, que garantem a desigualdade na distribuição da

riqueza, aprova leis que dão esperanças de transformação da vida e instala tribunais para julgar

os desvios à lei. Em nome da proteção a estes, as leis operam por meio da tutela, do controle

dos enquadrados como “necessitados”, em uma perspectiva alarmista não para melhorar a vida

a ser “protegida”, mas para dar suporte aos que se incomodam com os ditos “necessitados”.

Segurança é a palavra de ordem, sempre associada à proteção. A quem se protege? Quem está

inseguro? Quem são os necessitados? 1 A discussão sobre as práticas de Direitos Humanos tem sido colocada em análise por nós, entre outros, nos seguintes textos: 1) COIMBRA, Cecília; NASCIMENTO, Ma. Lívia; LOBO, Lília Ferreira, Por uma invenção ética para os Direitos Humanos, In: Revista Psicologia Clínica, Vol.20.2, Rio de Janeiro, 2008. 2) COIMBRA, Cecília; NASCIMENTO, Ma. Lívia; LOBO, Lília Ferreira. A invenção do humano como modo de assujeitamento. In: MENDONÇA FILHO, M. e NOBRE, M.T. (Orgs.). Política e afetividade: narrativas e trajetórias de pesquisa. Salvador/São Cristóvão, EDUFBA/EDUFS, 2009. 3) SCHEINVAR, E. Derechos, ¿Para Qué Humanos? Control biopolítico y prácticas de derechos humanos: http://www.infancia-juventude.uerj.br/producoes.html

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Segurança como contenção dos “necessitados”, em nome da sua proteção: esta a

perspectiva de muitos atendimentos a crianças e jovens quando recusam a escola, os seus

espaços de convivência, quando se dedicam a atividades interditadas moralmente e são

declarados perigosos. A intervenção com base em leis “protetivas” não altera a condição de

vida dos “perigosos”, dirige-se com ênfase a coibi-los na expectativa de comportamentos

“aceitáveis”. Sabe-se de sobra que o tratamento aos que “ameaçam” é brutal, constrangedor,

sem limites no uso de seus corpos, sem limites físicos e morais. Mas proliferam leis de

enquadramento a certa ordem, em nome de uma sociedade livre e igual. Não por acaso é

aplaudida efusivamente a política adotada na cidade do Rio de Janeiro, definida em junho de

2011, de recolhimento compulsório de crianças e adolescentes ditos usuários de drogas e, em

especial de crack, malgrado a inexistência de qualquer programa ou tratamento adequado para

os declarados dependentes químicos. Noticiam-se com entusiasmo tais programas, sem

informar a total falta de estrutura para assistir minimamente a essa população que é retirada

das ruas com força, brutalidade, sendo maltratados em nome da defesa da sua própria vida.

Por meio das leis, juridicamente são garantidas condições de vida e procedimentos

padronizados. A padronização é proposta como fundamento da igualitarização de pessoas que

não são iguais, mas definidas por lei, ou seja, por um padrão, como iguais. A lei é vivida como

uma verdade e, mais do que isto, como uma condição natural das pessoas e não como um

campo de lutas, de forças. Contrariamente à ideia de a lei ser a expressão de conflitos, de luta

de interesses, ela é assumida como uma condição essencializada. Assim, ao dizer que

“nascemos livres”, “nascemos iguais” ou “somos cidadãos” afirmamos que ao nascer tal

condição está garantida, sem buscar as referências históricas da construção de tais enunciados

e as práticas que os sustentam. A naturalização de um sentido caloroso atribuído às leis e

mesmo ao Estado como locus privilegiado do poder blinda as análises a partir de sua

genealogia.

A lógica dos direitos é a lógica punitivo-penal, segundo a qual ante a violação de uma lei

cabe um julgamento e a decorrente punição. As relações atravessadas pela perspectiva do

direito operam pelo julgamento, por ser o juízo o meio para sentenciar o grau de desvio de um

ato e definir a forma de castigar o infrator. Os comportamentos no Estado de Direito se

circunscrevem a normas jurídicas e, portanto, são alvo de julgamento e punição. Processo

democrático por contar com a adesão coletiva na elaboração de normas, nos procedimentos de

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sua aplicação por meio de serviços, no julgamento, na execução de penas, mas sobretudo na

crença e decorrente demanda por definição de normas e parâmetros que, sabe-se de antemão,

em muitos casos não alterarão o cenário reprovado. Assim acontece com o desaparecimento e

o extermínio ostensivo de pobres, em um país que sequer contempla a pena de morte. Da

mesma forma ocorre com a tortura que é prescrita em lei, embora seja uma prática assumida

publicamente. Ainda podemos falar da omissão de serviços decretados essenciais como

“direito público subjetivo”2 que inexistem ou, quando existem, são impostos de forma coativa,

em favor da institucionalização compulsória.

O feitiço do Estado Democrático de Direito faz dele uma entidade idealizada que

alimenta uma retórica sustentada na fé, malgrado as práticas coloquem os seus ideais em

questão. Acredita-se no Estado Democrático de Direito e, como toda crença, é alvo de fé e não

de questionamentos. Naturaliza-se o seu sentido e a sua lógica. A força das consignas e dos

princípios é despotencializada no seu processo de institucionalização, quando práticas

contraditórias com as promessas liberais e democráticas são entendidas como erro e não

percebidas como coerentes com o ideário político que as produz. O Estado torna-se uma esfera

idealizada mesmo não correspondendo à demanda em torno dele e, pelo contrário, captura

muitos dos movimentos de resistência, tornando-os seus aliados. Fertiliza com isto a ilusão de

ser possível cumprir as promessas quebradas. A democracia calcada na lógica do direito tem,

portanto, se distanciado de movimentos de transformação, prometendo regras, normas, leis e

decorrentes castigos, cujas execuções têm lhe fortalecido.

As decepções com as práticas governamentais e com as políticas de Estado perante

desmandos administrativos e financeiros, omissões de serviços, lógicas mercadológicas que

precedem o direito à vida e o apelo por ampliação de direitos cidadãos têm desaguado no

pedido de penas, dentre as quais a mais visível é o encarceramento. Mesmo sabendo-se que as

políticas não se transformam, que os recursos não retornam ao erário público, que a vida

continua sendo leiloada ao melhor rendimento do capital e que as pessoas com recursos

financeiros não cumprirão penas de reclusão, a punição é o que o Estado de Direito produz

como esperança moral, em nome de princípios éticos.

2 De acordo com a lei brasileira, o direito público subjetivo é aquele que tem que ser executado com absoluta prioridade, de forma inconteste, sob pena dos cidadãos abrirem uma ação contra o Estado, de acordo com a Constituição Federal.

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Dentre as muitas formas de punir a prisional é a mais contundente porque mais visível,

mas não a única. Medidas em meio aberto, aconselhamento, trabalho comunitário, controles

parciais do tempo e do espaço, advertências fazem parte do inventário de punições no

contemporâneo, ampliando os seus tentáculos controladores. A lei é um instrumento penal

cuja função, na democracia liberal, é tornar os corpos mais produtivos e, como assinala Michel

Foucault, ao invés de ameaçar com a morte, ameaça com o controle e a tutela da vida para

“fazer viver e deixar morrer”.

A multiplicação de formas por meio das quais se pune é um movimento de ampliação da

pena como condição indispensável à vida. A subjetividade punitivo-penal opera inventando

regras e castigos em nome da segurança. Segurança e pena se associam como referência à

resolução de conflitos, em uma perspectiva centrada no indivíduo como o responsável pelos

delitos, tornando-o, em decorrência, a razão da lógica penal. Desde o nascimento da prisão o

chamado crime é deslocado para a figura do definido como criminoso.

Organiza-se todo um saber individualizante que toma como campo de referência não tanto o crime cometido (pelo menos em estado isolado) mas a virtualidade de perigos contida num indivíduo e que se manifesta no comportamento observado cotidianamente....Não se pune, portanto, para apagar um crime, mas para transformar um culpado (atual ou virtual);... (FOUCAULT, 1987, p.112).

No contemporâneo, o discurso da segurança passou a ser central nas discussões sobre a

qualidade ou possibilidade de vida, referindo pessoas como o motivo dos destinos indesejados:

ladrões, comércio ilegal, desvios financeiros, comportamentos indevidos, agressões pessoais,

enfrentamento entre grupos; enfim, as pessoas são o eixo das falas sejam em campanhas

eleitorais, em análises institucionais, científicas ou em espaços privados. As pessoas e o

controle delas é o que se propõe como problema a enfrentar. Ao se falar das angústias sociais

não estão presentes temas como: exploração do trabalho, desigualdade social, sentido

mercantil das relações, lógica do capital que atravessa as políticas no Brasil e no mundo,

privatização das riquezas, práticas totalitárias, pensamento fundamentalista que se torna cada

vez mais fascista alastrando-se como condição para o bem-estar. Todos estes discursos não são

referidos no clamor por segurança, endereçado ao controle das pessoas por meio do

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policiamento, do ajuizamento e da punição dos responsabilizados pelas angustias que afligem

a nossa sociedade.

Alimenta-se a idéia de combate aos que são produzidos como bárbaros. Em todos os

meios de comunicação constata-se o aumento da audiência por meio do sensacionalismo que

provoca a busca de razões de ordem particular e íntima para explicar os desassossegos. A vida

íntima torna-se um produto ansiado como uma promessa de controle dos que causam o que é

denominado como violência. Violência e intimidade constituem-se em um binômio imantado

que rouba a cena para vender notícia e desviar os sentidos das articulações que produzem

sofrimento. As subjetividades punitivo-penais são produzidas por meio da lógica segundo a

qual a segurança é o que trará felicidade e possibilidades de realização, garantida por meio do

controle das pessoas.

Se hoje não temos mais os suplícios públicos onde se aplicava a Lei de Talião, temos, através do silenciamento de uns e dos aplausos de outros, uma nova lei emergindo e funcionando eficazmente. Uma nova Lei de Talião que, ao arrepio das leis vigentes nos países “civilizados” e com o beneplácito e estímulo das autoridades, é aplicada a todos os pobres, porque suspeitos e, portanto, considerados culpados. Uma nova “Doutrina de Segurança Nacional”, que tem hoje como seu “inimigo interno” não mais os opositores políticos, mas os milhares de miseráveis que perambulam por nossos campos e cidades. Os milhares de sem teto, sem terra, sem casa, sem emprego que, vivendo miseravelmente, põem em risco a “segurança” do regime. Daí a urgência em produzir subjetividades que percebam tais segmentos como perigosos, e potencialmente criminosos, para que se possa, em nome da manutenção/integridade/segurança da sociedade, não somente silenciá-los e/ou ignorá-los – o que já não é mais possível – mas eliminá-los, exterminá-los através da ampliação/fortalecimento de políticas de segurança públicas militarizadas que apelem para a lei, a ordem e a repressão (COIMBRA, 2001, p. 245).

A lógica da punição é mais potente que o ato de punir. A demanda por castigo, como

perspectiva para superar os conflitos, é decorrente da crença na lei como uma verdade. O

Direito é um instrumento de poder, não uma verdade. É um jogo de forças que certamente

recai sobre aqueles que nem definem a lei, nem são os responsáveis por fazê-la cumprir.

Certamente, os pobres compõem o alvo dileto da execução da pena. Isto tem sido exaustiva e

brilhantemente discutido por autores como Wacquant, ao lado de uma série de pesquisas e

relatórios que deixam claro tratar-se de uma realidade inconteste, apesar de inaceitável para

muitos. O que nos interessa frisar são duas questões: a primeira, como já colocado acima, é a

crença na lei, mesmo quando esta seja definida pelos que não são pobres ou não são

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efetivamente alvo das punições mais brutais, como é a carcerária. Nos interessa problematizar

a subjetividade penal como articuladora do pensamento social. A demanda é por punição

generalizada - signifique isto coação, repressão ou extermínio. Claro está que o tipo de pena

está totalmente vinculado à condição socioeconômica e étnica. Porém, se bem é verdade que

como denuncia Wacquant o número de presos tem aumentado surpreendentemente, também é

certo que a prática de punir – o que não significa só encarcerar – tem-se ampliado

drasticamente com o extermínio consentido dos mesmos grupos que ficam atrás das grades, a

aplicação de medidas em meio aberto e os ajuizamentos generalizados. Nesse sentido, como

colocavam Foucault em sua obra Vigiar e Punir (1987) e Deleuze em seu Post scriptum, sobre

a sociedade de controle (1992), a prisão mantém-se como um espaço de punição, mas deixa de

ser o centro da lógica punitiva que se amplia com o que Passetti (2003) chama punição a céu

aberto.

Trata-se de outra modalidade de encarceramento que vai sendo produzida de forma

criativa, celebrando o ideal de controle de nós mesmos. Sua disseminação não é contábil,

como a população carcerária, por isso difícil de apresentá-la como referência quantitativa. Sua

instituição foge a um espaço definido, pois que infiltrada em formas microfísicas originais e

até lúdicas. Sedutoras. O encarceramento se alastra para muito além da população carcerária.

A prisão deixou de ser o local dileto para aprisionamento, embora um espaço em que o

mercado também investe, por ser uma forma muito rentável de ampliação de seus lucros.

Assim, a segunda questão que trazemos ao debate é o fato de o efeito punitivo não estar

somente, nem privilegiadamente, na prisão, mas nas múltiplas formas de castigo que se

multiplicam e se sofisticam com o apelo geral, atingindo a todos de maneiras diversas. Do

pedido da lei e do castigo, à sua execução em diversas formas nos inquietam: prisão,

desaparecimento e extermínio para os mais pobres e os declarados como imorais, medidas em

meio aberto, multas no trânsito por ingestão de bebida alcoolica, processos por desavenças em

escolas enquadradas como bullying, sentenças por brigas conjugais a partir da lei Maria da

Penha, ação do Ministério Público contra conselheiros tutelares que estão executando a Lei

8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, castração química para pedófilos,

penalização dos que poluem o ar, a terra e o mar, processos contra funcionários públicos

corruptos, câmeras nas ruas e praças para identificar os transeuntes, câmeras em creches para

que os responsáveis pelas crianças os vejam em rede de forma ininterrupta... Todas estas

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cenas, entre tantas outras, atingem diversos segmentos socioeconômicos e contam com a

adesão coletiva, acreditando estarmos avançando na resolução de conflitos, em nome de uma

sociedade de segurança. E, mais do que isto, feliz: “sorria, você está sendo filmado”.

Grades, celas e muros coexistem com um novo modo de vida mais intenso, porque

menos visível: o encarceramento de si para consigo mesmo. O modo indivíduo de subjetivação

punitivo-penal domina tudo e todos. O que justifica a expansão do aprisionamento é a mesma

perspectiva que instala o Estado de Direito como forma de organização social por meio do

controle penal. As subjetividades punitivo-penais fertilizadas globalmente operam nas

relações cotidianas estruturando-as por meio de normas, regimentos, códigos, declarações, em

espaços tais como salas de aula, condomínios, empresas, serviços públicos, foros da chamada

sociedade civil, tribunais, etc., tendo como aliada a produção científica e tecnológica que

maciçamente passa a dedicar-se a prever desvios e a definir castigos, em nome da segurança.

A proliferação de dispositivos cria um ambiente festivo, que com entusiasmo saúda a

modernidade e a criatividade da sofisticação de sistemas de controle, ocultando serem estas

algumas das formas de atualização do mercado, impondo padrões do consumo. Acima de tudo

são fortalecidos processos de subjetivação punitivo-penais que tornam a vida impensável sem

a fiscalização e o castigo. O rentável mercado da segurança se sustenta no medo, no terror.

Termos como guerra, insegurança, perigo, ameaça, blindagem, cuidado, ocupam os terrenos

mais íntimos da vida; constituem um modo de existir alimentado pelas redes de controle,

associadas aos sentimentos de estabilidade, de certeza, de estar em terreno firme e a salvo. A

estética contemporânea se delineia pela desconfiança no outro e em si mesmo, como condição

para a sobrevivência: “você não sabe quem é seu vizinho”; “denuncie perante qualquer

suspeita”; “processe ante uma desavença”; “blinde o seu carro”, ou melhor, “a sua vida”.

Montar um policial em nós e desconfiar sempre como autodefesa são princípios que

suscitam pensar, nos termos de Monteiro (2002), “como se dá ao longo da história da

transformação de seres humanos em sujeitos de tal forma assujeitados aos poderes

dominantes, que abrem mão da expansão da vida em troca de uma ilusão de paz e segurança?”

Eis aí um desafio: pensar como fomos nos constituindo em policiais, em executores penais, em

enclausurados, ao mesmo tempo em que as resistências pulsam e recusam o tom ameaçador

como lógica de vida.

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Pichações, músicas “incompreensíveis”, rebeliões, recusa à institucionalização

compulsória (na escola e em internações médicas ou assistenciais obrigatórias), entre tantas

formas de pulsar a vida passam a ser desqualificadas e, se possível, capturadas e

criminalizadas. Mas escapolem e lá estão elas, de novo, afirmando singularidades. Outros

pensamentos, outras lógicas, outros funcionamentos e estratégias que escapam às leis e nos

oxigenam. Mas parece que nos asfixiam por não conterem a poluição de discursos tão repetido

que se naturalizam como verdadeiros e únicos. Um olhar, um movimento, o acolhimento a

uma prática inusitada ou moralmente questionada pode ser um começo, pode ser um caminho

para ouvir, pensar, reconhecer o outro, bem como para a captura em regras fixas e saneadas,

afirmando o moralismo que nos cega. Como escapar, a cada movimento singular, da busca de

si próprio para aceitar, ouvir, sentir o outro? Como deslocar o que é produzido como recusa,

do prisma do instituído, do autorizado? Perceber os movimentos, as vidas, a partir de suas

lógicas, de suas perspectivas, sem medo, sem ameaça, sem a arrogância da verdade, apenas

aprendendo e arriscando a sentir diferentes tonalidades.

A desesperança vem da crença do direito penal como salvação aos problemas:

...canalizar as esperanças de resolução de conflitos para essa via acaba por desviar esforços que poderiam estar mobilizados na construção de soluções mais radicais e eficazes. Acaba-se, em verdade, promovendo a relegitimação do direito penal e o enfraquecimento de outras formas alternativas para resolução de conflitos, alternativas que reforcem a autonomia e a auto-organização... (REGINATO, 2009, p.91).

A radicalidade não está mais na intensidade da pena, mas na sua abolição.

“O medo é a moda desta triste temporada. A cor dessa estação é cinza como o céu de estanho”

Zeca Baleiro

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COIMBRA, Cecília. Operação Rio. O mito das classes perigosas. Rio de Janeiro, Oficina

do Autor, 2001.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo, Editora 34, 1992.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1987.

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KARAN, Maria Lúcia. Estado Penal, novo inimigo interno e totalitarismo. In:

OLIVEIRA, Rodrigo Torres e MATTOS, Virgílio de. Estudos de Execução Criminal: direito e

psicologia. Belo Horizonte, Tribunal de Justiça de Minas Gerais/CRP-MG, 2009. Pp. 127 –

133.

MONTEIRO, Ana do Rego. Clínica, biopoder e a experiência do pânico no

contemporâneo. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Niterói, Universidade Federal

Fluminense, 2002.

PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Editora Cortez,

2003.

REGINATO, Andréa Depieri de Albuquerque. Será que vale a pena? In: MENDONÇA

FILHO, M. e NOBRE, M.T. (Orgs.). Política e afetividade: narrativas e trajetórias de

pesquisa. Salvador/São Cristóvão, EDUFBA/EDUFS, 2009.

SCHEINVAR, Estela. O feitiço da política pública. Escola, sociedade civil e direitos da

criança e do adolescente. Rio de Janeiro, Lamparina Editora, 2009.

WACQUANT, Trabalho social, regime prisional e insegurança social. Rio de Janeiro,

ICC – Mímeo, 2011

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