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Desenho em tinta sobre cartolina ndash Pilar Roca

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Conselho Editorial

Alessandra Soares Brandatildeo (UFSC)Ana Graccedila Canan (UFRN)

Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)Anco Maacutercio Tenoacuterio Vieira (UFPE)

Anita Martins Rodrigues de Moraes (UFF)Arnaldo Saraiva (Universidade do Porto)

Brenda Carlos de Andrade (UFRPE)Gastoacuten A Alzate (California State University)

Inocecircncia Mata (Universidade de Lisboa)Joatildeo Batista Pereira (UFRPE)

Joseacute Rodrigues Seabra Filho (USP)Juliana Luna Freire (UFPB)

Juliana Pasquarelli Perez (USP)Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB)

Maria Nazareth de Lima Arrais (UFCG)Maurizio Gnerre (Universitagrave di Napoli Lrsquoorientale)

Maximiliano Torres (UERJ)Ramayana Lira (UFSC)

Regina Dalcastagnegrave (UnB)Saulo Neiva (Universiteacute Blaise Pascal - Clermont-Ferrand)

Simone Schmidt (UFSC)Suzi Frankl Sperber (UNICAMP)

Yuri Jivago Amorim Caribeacute (UFPE)

Projeto GraacuteficoCDM Design e Consultoria Empresarial Ltda

Camille Barbosa de AquinoRoberta Lima Designer

DiagramaccedilatildeoRoberta Lima Designer

Escritos claacutessicosgreco-latinos

Alcione Lucena de AlbertimWilly Paredes Soares

6 7

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Sumaacuterio

A gramaacutetica como livro didaacutetico testemunhos sobre meacuteto-do e praacutetica escolar na Antiguidade Lucas Consolin Dezotti

Exagerando a verdade a hipeacuterbole em Quintiliano Pedro Schmidt

Hino Homeacuterico 2 a DemeacuteterLeonardo Antunes

Pressupostos da comeacutedia grega entre os romanos Quinti-liano Ciacutecero Horaacutecio e DioniacutesioLuciene Lages Silva

Qual eacute o seu Orfeu Breve apreciaccedilatildeo do mito helecircnico reinventado pelas muacuteltiplas linguagens artiacutesticasFernanda Lemos de Lima

Proecircmio de Metamorfoses aula de PoesiaMilton Marques Jr

Semacircntica Aristoteacutelica Joseacute R Seabra F

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7286

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A Religiatildeo Romana Arcaica Willy Paredes Soares

A Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia grega antiga Rafael Brunhara

A ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou ParanoiaDavid Pessoa de Lira

Amor e poesia em Plutarco Maria Aparecida de Oliveira Silva

Contribuiccedilotildees dos Estudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da linguageFaacutebio Fortes

Falando com os mortos alguns epigramas heleniacutesticos dialogados em traduccedilatildeoFlaacutevia Vasconcellos Amaral

Fulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade como programaJoseacute Amarante Santos Sobrinho Raul Oliveira Moreira Shirley Patriacutecia S N Almeida e Cristoacutevatildeo Joseacute dos S Juacutenior

Notas Finais

Sobre os autores e as autoras

Apresentaccedilatildeo

Catabasis um rito de passagem e a busca da imortalidadeAlcione Lucena de Albertim

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Apresentaccedilatildeo

Escritos claacutessicos greco-latinos tiacutetulo escolhido a partir da diversidade e ri-queza dos textos que compotildeem a presente obra faz parte da Coleccedilatildeo Poacutes-Letras do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da Universidade Federal da Paraiacuteba Trata-se de um livro composto por capiacutetulos que discorrem sobre assuntos especiacuteficos mas que estatildeo vinculados por provirem da mesma fonte as liacutenguas e literaturas grega e latina Nesse sentido os autores apresentam atraveacutes da sua escrita singular temas que pos-sibilitam o conhecimento de um universo tatildeo profiacutecuo como o da antiguidade claacutessica greco-latina Diante disso apresentamos a seguir ao leitor o tema de cada capiacutetulo

Em ldquoCatabasis um rito de passagem e a busca da imortalidaderdquo Alcione Lu-cena de Albertim traccedila um panorama acerca da cataacutebase a partir dos mitos de He-racleacutes Odisseu Orfeu Teseu e Piriacutetoo a fim de averiguaacute-la no modelo latino que tem Eneias como protagonista Para isso a autora descreve cada uma delas e dis-corre sobre os pontos de convergecircncia existentes como tambeacutem sobre as suas es-pecificidades mostrando que todas concorrem para a imortalizaccedilatildeo do heroacutei

Em ldquoA Religiatildeo Romana Arcaicardquo Willy Paredes Soares investiga as transfor-maccedilotildees sofridas pela religiatildeo romana em seus primoacuterdios considerando a ordem cro-noloacutegica de acontecimentos no periacuteodo monaacuterquico observam-se seus principais deu-ses cultos sacerdotes para tanto vale-se dos escritos remanescentes de comentadores latinos e gregos inseridos em periacuteodos posteriores Obras relevantes que ressaltam os elementos religiosos satildeo revisitadas para a explicitaccedilatildeo de tais fenocircmenos como Eneida Fasti Ab Vrbe Condita Antiquitates Romanae De Lingua Latina De Ciuitate Dei De Re Publica Ad Aeneidem De Mundo Saturnalia possibilitando certa apro-ximaccedilatildeo entre o periacuteodo comentado e os textos utilizados na investigaccedilatildeo sugerida

Em ldquoA Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia grega anti-gardquo Rafael Brunhara traz tomando como base o estudo da autora Margaret Alexiou a discussatildeo acerca do lamento como recurso poeacutetico tratando-se de um canto res-ponsoacuterio em que pessoas enlutadas alternavam vozes agrave perda de algueacutem querido Esse canto dividia-se em duas categorias o threnos canccedilatildeo elaborada e profissional

que honrava e exaltava o morto realizado por homens e o goos canto improvisado entoado por parentes e pessoas proacuteximas agravequele que morreu geralmente mulheres Em Androcircmaca de Euriacutepedes aleacutem deles estaacute presente a elegia forma poeacutetica tam-beacutem associada ao lamento Nesse sentido o autor discorre sobre as trecircs formas poeacute-ticas para mostrar a confluecircncia do threnos do goos e da elegia na peccedila euripidiana

Em ldquoA ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou Paranoiardquo David Pessoa de Lira propotildee analisar os aspectos conceptuais da ἁμαρτία traacutegica em Eacutedipo Tirano de Soacutefocles a partir da Arte Poeacutetica de Aristoacuteteles e do pensamento grego sobre a culpabilidade Nes-se sentido o autor procedendo a uma abordagem da culpa traacutegica situa a ἁμαρτία como uma ἁγνοία e consequentemente como παράνοια Ele demonstra que a ἀγνοία eacute a natureza da ἁμαρτία (culpa) de Eacutedipo na trageacutedia Eacutedipo Tirano e explica que o conceito aristoteacutelico da ἀναγνώρισις possibilita encontrar a natureza da ἁμαρτία a saber a ἀγνοία Aleacutem disso fundamenta atraveacutes da teoria da culpabilidade pes-soal e da responsabilidade a partir do direito e da filosofia dos antigos gregos que a ἀγνοία de Eacutedipo evidencia uma ἁμαρτία escusaacutevel um estado de deliacuterio e paranoia

Em ldquoAmor e poesia em Plutarcordquo Maria Aparecida de Oliveira Silva discorre sobre a teoria plutarquiana do amor a partir da leitura da obra Diaacutelogo do Amor tratando em especial do uso da poesia na escrita deste tratado e na construccedilatildeo de seu argumento favoraacutevel agrave adoccedilatildeo de Eros como o deus do amor Assim agrave per-gunta ldquoOra se haacute a necessidade de um deus para que accedilotildees humanas sejam bem--sucedidas e se o amor eacute um sentimento importante e fundamental para a conti-nuidade da espeacutecie humana por meio do casamento por que esse sentimento natildeo possuiria um deus regenterdquo Plutarco procura mostrar a imprescindibilidade da accedilatildeo do deus Eros como protetor e encorajador das relaccedilotildees amorosas sobretudo o casamento Nesse sentido em razatildeo da diversidade de autores selecionados para compor sua argumentaccedilatildeo sobre a necessidade de um deus regente do amor Plu-tarco entra em contato com autores de variadas eacutepocas e estilos Assim ele verifi-ca que haacute visotildees diferentes sobre Eros entre os poetas os filoacutesofos e os legisladores

Em ldquoContribuiccedilotildees dos Estudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da Linguagemrdquo Faacutebio Fortes discorre inicialmente a respeito da histoacuteria da ciecircn-cia e da linguagem a partir do estudo publicado em 1962 por Thomas Kuhn em seguida comenta os estudos claacutessicos e a teoria gramatical antiga e como os anti-gos percebiam conceitos teorias linguiacutesticas motivados pela sua maneira de ver o mundo percebe o autor que dentre os estudos que tentam recuperar elemen-tos da tradiccedilatildeo sobre a linguagem o que demonstra acentuada produtividade eacute o da Historiografia da Linguiacutestica Por fim o autor explicita que haacute maior facilidade de acesso agrave documentaccedilatildeo claacutessica atualmente devido agrave possibilidade do uso de meios eletrocircnicos fato que haacute alguns anos seria possiacutevel apenas presencialmente

Em ldquoFalando com os mortos alguns epigramas heleniacutesticos dialogados em tra-duccedilatildeordquo Flaacutevia Vasconcellos Amaral apresenta epigramas do livro 7 da Antologia Grega (AG) O recorte temporal diz respeito ao periacuteodo heleniacutestico momento de maior inova-ccedilatildeo no gecircnero epigramaacutetico situado entre a morte de Alexandre o Grande em 323 aC

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e a batalha de Aacutecio em 31 aC A princiacutepio as inscriccedilotildees eram encontradas em objetos votivos laacutepides funeraacuterias monumentos e ceracircmica e tinham funccedilatildeo pragmaacutetica de registro A partir do seacuteculo IV aC passam a ser dissociadas de seus objetos e ganham o papiro como suporte Assim as inscriccedilotildees comeccedilam a abarcar outras temaacuteticas como a eroacutetica e a simposial Os epigramas fuacutenebres dialogados do periacuteodo heleniacutestico aqui apresentados em traduccedilatildeo se ancoram no espaccedilo fuacutenebre e seus objetos (Dioscoacuteri-des 37 Antiacutepatro161 424 e 426) e especulam sobre a vida do morto (Leocircnidas 163 e 503 Antiacutepatro 164 Aacuterquias 165 Caliacutemaco 277 e 725 Damageto 355 e Meleagro 470)

Em ldquoFulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade como programardquo Joseacute Amarante Santos Sobrinho Raul Oliveira Moreira Shirley Patriacutecia S N Almeida e Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior apresentam o fruto de um projeto inaugural reali-zado na Universidade Federal da Bahia cujo foco principal foi a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa e o estudo da obra completa de Fulgecircncio (Fabius Planciades Fulgentius) autor do seacuteculo II dC O primeiro resultado do projeto diz respeito agrave publicaccedilatildeo de O li-vro das Mitologias de Fulgecircncio por Joseacute Amarante estudo e traduccedilatildeo das Mythologiae (As Mitologias) Advieram tambeacutem trabalhos de mestrado e doutorado defendidos na mesma universidade a saber a traduccedilatildeo da Expositio Virgilianae continentiae (ldquoA ex-plicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacuteliordquo) por Raul Oliveira Moreira a traduccedilatildeo da Expositio sermonum antiquorum (ldquoA elucidaccedilatildeo de termos antigosrdquo) por Shirlei Patriacutecia Silva Neves Almeida e a traduccedilatildeo dupla de De aetatibus mundi et hominis (ldquoSobre as idades do mundo e da humanidaderdquo) uma alipogramaacutetica e outra lipogramaacutetica por Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior Os dois primeiros trabalhos satildeo frutos da dissertaccedilatildeo de mestra-do dos autores e o terceiro da tese de doutorado O presente capiacutetulo eacute composto por quatro seccedilotildees respeitantes respectivamente ao estudo de cada uma das obras referidas

Em ldquoA gramaacutetica como livro didaacutetico testemunhos sobre meacutetodo e praacute-tica escolar na Antiguidaderdquo Lucas Consolin Dezotti apresenta alguns modos de estudos de textos gramaticais latinos testemunhos de reflexotildees sobre a gramaacute-tica grega reflexotildees da eacutepoca claacutessica evidentes na gramaacutetica latina ensino for-mal da gramaacutetica baseado em riacutegido formato da eacutepoca heleniacutestica O autor utili-za-se de diversas obras teoacutericas para explanaccedilatildeo da teoria gramatical de Donato como Ars Donati grammatici urbis Romae de Louis Holtz aleacutem de muacuteltiplas refe-recircncias a obras greco-latinas visando a uma metodologia de descriccedilatildeo sistemaacutetica

Em ldquoExagerando a verdade a hipeacuterbole em Quintilianordquo Pedro Schmidt pro-potildee apoacutes apresentaccedilatildeo de breve contextualizaccedilatildeo uma traduccedilatildeo para a liacutengua por-tuguesa da passagem 8667-76 da obra Institutio Oratoria de Quintiliano um tratado sobre retoacuterica e sobre a instruccedilatildeo oratoacuteria composto em doze livros pro-cedendo a seguir agrave sua anaacutelise a fim de estabelecer uma definiccedilatildeo e uma tipolo-gia da hipeacuterbole de acordo com os termos de Quintiliano Nesse sentido o autor conclui que a hipeacuterbole cujo efeito pode ser tambeacutem o riso indo aleacutem do embele-zamento e do poder de persuasatildeo do discurso possui natureza orgacircnica haja vista nascer de maneira espontacircnea na fala corriqueira de qualquer indiviacuteduo disso re-sultando sua funccedilatildeo que reside em expressar aquilo que natildeo pode ser expresso

Em ldquoHino Homeacuterico 2 a Demeacuteterrdquo Leonardo Antunes propotildee uma traduccedilatildeo poeacutetica para o Portuguecircs do hino agrave deusa Demeacuteter que trata sobretudo do rapto de Perseacutefone sua filha pelo deus Hades com a aquiescecircncia de Zeus Na traduccedilatildeo a preocupaccedilatildeo principal foi a construccedilatildeo de um texto eufocircnico buscando natildeo soacute uma cadecircncia agradaacutevel de sons mas tambeacutem vocaacutebulos que se encadeassem de modo na-tural dentro do ritmo escolhido Assim ele emprega uma espeacutecie de hexacircmetro dac-tiacutelico vernaacuteculo o mesmo utilizado por Carlos Alberto Nunes na traduccedilatildeo da Iliacuteada e na Odisseia de Homero e da Eneida de Virgiacutelio Trata-se de um verso de 16 siacutelabas com acento na primeira quarta seacutetima deacutecima deacutecima terceira e deacutecima sexta siacutelaba

Em ldquoPressupostos da comeacutedia grega entre os romanos Quintiliano Ciacutecero Ho-raacutecio e Dioniacutesiordquo a autora Luciene Lages Silva propotildee a apresentaccedilatildeo de uma pesquisa e investiga a recepccedilatildeo da criacutetica da comeacutedia grega por alguns criacuteticos literaacuterios poetas e his-toriadores romanos nos anos finais da Repuacuteblica e iniciais do Impeacuterio romano A seleccedilatildeo dos textos produzidos se estende por pouco mais de 150 anos do domiacutenio de Juacutelio Ceacutesar ateacute o fim do reinado de Trajano Ao longo do texto satildeo demonstradas as impressotildees de Ciacutecero Horaacutecio Dioniacutesio de Halicarnasso sobre o lugar da comeacutedia grega e do cocircmico em geral

Em ldquoQual eacute o seu Orfeu Breve apreciaccedilatildeo do mito helecircnico reinventado pelas muacutel-tiplas linguagens artiacutesticasrdquo Fernanda Lemos de Lima apoacutes delinear uma breve aborda-gem do mitologema de Orfeu e de seus desdobramentos simboacutelicos aleacutem da menccedilatildeo ao Orfismo oferecendo ao leitor uma ideia da potecircncia do referido mito mostra em algumas expressotildees artiacutesticas a sua retomada de modo a dar uma ideia da variedade de formas com as quais essa passagem da mitologia claacutessica eacute percebida e reconstruiacuteda como narrativa

Em ldquoProecircmio de Metamorfoses Aula de Poesiardquo Milton Marques Jr realiza uma anaacutelise do proecircmio de Metamorfoses de Oviacutedio composto de apenas 4 versos Haacute comparaccedilotildees com proecircmios de outros textos da literatura ocidental como Teogonia de Hesiacuteodo Iliacuteada e Odisseia de Homero Eneida de Virgiacutelio de modo a mostrar como Oviacutedio concentra uma ideia de uma transformaccedilatildeo das formas dos personagens para novos corpos numa metamorfose que se exaure nesse movimento Haacute tambeacutem desta-que para a importacircncia da traduccedilatildeo na compreensatildeo dos textos claacutessicos cujo objeto eacute segundo o autor ldquoprocurar extrair do texto original a concepccedilatildeo que ali se encontrardquo

Em ldquoSemacircntica Aristoteacutelicardquo Joseacute R Seabra F comenta o Oacuterganon de Aristoacutete-les seacuterie de seis tratados em estilo direto e breve Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacute-ticos Primeiros Analiacuteticos Segundos Toacutepicos Dos Elencos Sofiacutesticos Nesses tratados o leitor vai encontrar em resumo respectivamente anaacutelise dos elementos das proposi-ccedilotildees estudo da proposiccedilatildeo teoria do silogismo silogismo cientiacutefico pontos da dialeacutetica os sofismas e os meios de refutaacute-los Verifica-se tambeacutem a relaccedilatildeo entre essas obras e a gramaacutetica grega Em geral os livros de loacutegica englobados pelo tiacutetulo Oacuterganon apresen-tam em geral significados de palavras significados da linguagem semacircntica analisada e desenvolvida para entendimento de proposiccedilotildees de frases de afirmaccedilotildees Joseacute Sea-bra constata que haacute relaccedilotildees entre o assunto gramatical e a loacutegica filosoacutefico-gramatical

Esperamos que o puacuteblico a quem o livro se destina possa se beneficiar com os

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conteuacutedos aqui expostos e que eles possam suscitar um profiacutecuo diaacutelogo no futuro

Alcione Lucena de Albertim (UFPB)Willy Paredes Soares (UFPB)

Organizadores

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Catabasis um rito de passagem e a busca da

imortalidade

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Alcione Lucena de Albertim

O vocaacutebulo κατάβασις composto pela preposiccedilatildeo κατά que exprime um mo-vimento para baixo e pelo substantivo βάσις que significa lsquopasso sequecircnciarsquo prove-niente do verbo βαίνω que quer dizer lsquoafastar as pernas atraveacutes do andarrsquo etimologi-camente significa lsquocaminhar no sentido para baixorsquo denotando portanto uma descida Em contraponto haacute a ἀνάβασις formado pela preposiccedilatildeo ἀνά que exprime um mo-vimento para cima e pelo verbo mesmo verbo βαίνω significando desse modo uma subida lsquocaminhar para cimarsquo A κατάβασις ao Hades com a conseguinte ἀνάβασις estaacute presente na tradiccedilatildeo miacutetica grega cujo motivo serviu de modelo para a elabora-ccedilatildeo do mesmo episoacutedio na tradiccedilatildeo latina representando um ritual de passagem que eacute caracterizado pela transformaccedilatildeo do heroacutei submetido a esse ritual passando ele por uma separaccedilatildeo de um status anterior depois por uma fase intermediaacuteria que o levaraacute a uma nova condiccedilatildeo Por esse processo passam Heracleacutes Odisseus Orfeu Teseu e Piriacutetoo como tambeacutem o heroacutei troiano Eneias todos eles protagonistas de uma desci-da ao submundo cuja consequecircncia foi a transformaccedilatildeo desses heroacuteis para uma nova condiccedilatildeo A partir dessas consideraccedilotildees visa-se neste trabalho delinear a trajetoacuteria de cada um desses heroacuteis mostrando a particularidade de cada um rumo agrave conquista da imortalidade mormente a de Eneias demonstrando a permanecircncia da tradiccedilatildeo miacutetica grega na cultura romana

A comeccedilar por Heracleacutes em torno da figura desse heroacutei pertencente a uma ge-raccedilatildeo anterior agrave guerra de Troacuteia coadunam-se inuacutemeros mitemas entre eles os doze trabalhos Estes estatildeo ligados agrave figura da deusa Hera cuja perseguiccedilatildeo ao heroacutei ocorre por causa da infidelidade de Zeus seu esposo e pai de Heracleacutes

Conta o mito que Zeus aproveitando a ausecircncia de Anfitriatildeo rei de Tirinte que saiacutera em uma expediccedilatildeo toma a sua forma e aspecto a fim de enganar Alcmena Une-se entatildeo agrave rainha e engendra Heracleacutes Anfitriatildeo retorna pela manhatilde e faz-se re-conhecer pela esposa concebendo um filho com ela Iacuteficles irmatildeo gecircmeo de Heracleacutes apenas uma noite mais novo que ele Antes mesmo de o heroacutei nascer Hera enciumada comeccedila a persegui-lo Zeus inadvertidamente afirma que a crianccedila a nascer da raccedila de Perseu reinaria sobre Argos No momento de Alcmena dar agrave luz Hera impede sua filha Iliacutetia deusa dos partos de ajudaacute-la e favorece Nicipe que estaacute com sete meses de gravidez esperando Euristeu tambeacutem descendente de Perseu Ele entatildeo herda o po-der sobre a Argoacutelida Hera continua sua perseguiccedilatildeo a Heracleacutes Jaacute adulto ela o enlou-quece fazendo-o matar os filhos que tem com Meacutegara O heroacutei consulta o oraacuteculo de Delfos a fim de saber como expiar o seu crime e eacute aconselhado a submeter-se agrave deusa

Ela o potildee a serviccedilo de Euristeu que o sujeita a doze trabalhos irrealizaacuteveis para um heroacutei de menor valor que Heracleacutes O deacutecimo segundo trabalho diz respeito agrave sua descida ao Hades Euristeu exige que ele desccedila ao reino de Dite e traga o catildeo guardiatildeo da entrada do mundo subterracircneo impedindo os vivos de laacute entrarem e os mortos de laacute saiacuterem Ceacuterbero era um monstro de trecircs cabeccedilas de catildeo cauda formada por uma serpente e no dorso inuacutemeras cabeccedilas de serpente levantadas Heracleacutes acompanhado por Hermes deus condutor das almas ψυχοπομπός desce ao Hades mas natildeo antes de ser iniciado nos Misteacuterios de Elecircusis Laacute o deus permite que o heroacutei conduza o catildeo mas sob a condiccedilatildeo de natildeo o machucar com suas armas Heracleacutes luta

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com Ceacuterbero soacute com a forccedila dos seus braccedilos Quase sufocando-o domina-o Ao levar para Euristeu este tem medo e ordena que o heroacutei o leve de volta A descriccedilatildeo acima de caraacuteter meramente parafraacutestico visa comprovar a estrutura ritualiacutestica do mito Heracleacutes antes de descer ao Hades eacute purificado por Eumolpo rei da Traacutecia pois havia matado os Centauros Em seguida eacute iniciado nos Misteacuterios de Elecircusis desse modo fi-cando em condiccedilotildees apropriadas para adentrar o Hades jaacute que os Misteacuterios ensinavam precisamente aos fieacuteis os meios de chegar ao outro mundo com toda a seguranccedila apoacutes a morte Natildeo eacute sabido o que eram os Misteacuterios mas eacute notoacuterio que aqueles iniciados participavam de experiecircncias ritualiacutesticas de modo a transcender a condiccedilatildeo humana e obter uma forma sobrenatural de ser ainda em vida Mas aleacutem disso Heracleacutes tem a companhia de dois deuses Atena e Hermes a fim de enfrentar com menor risco as sombras e os monstros laacute existentes a qual permite inclusive a sua passagem pelo rio Aqueronte na barca de Caronte Heracleacutes eacute denotado sobretudo por sua forccedila fiacutesica descomunal e por sua coragem sem limites uacutenicas armas que utiliza para encarar Ha-des e sua esposa Perseacutefone e para dominar Ceacuterbero Tal fato mostra a singularidade da κατάβασις de Heracleacutes Do mesmo modo ocorre com os demais heroacuteis quando descem ao mundo subterracircneo cada um tem em sua trajetoacuteria peculiaridades con-cernentes agrave singularidade de cada um caracteriacutesticas respeitantes a sua pessoalidade

Retornar pela segunda vez agrave terra depois que devolve Ceacuterbero ao Hades en-frentando por duas vezes o caminho que leva ao mundo do esquecimento dos silen-ciosos confere a Heracleacutes a conquista da imortalidade haja vista ter encarado a morte duas vezes Tal imortalidade seraacute confirmada com a sua divinizaccedilatildeo por Zeus ao mor-rer envenenado involuntariamente por Djanira sua esposa

Quanto a Odisseu rei de Iacutetaca ele se destaca no cenaacuterio da guerra de Troacuteia sobretudo por sua inteligecircncia e astuacutecia Seu principal epiacuteteto πολύμητις muito ar-diloso expressa bem o atributo que faz do heroacutei uma figura proeminente no combate mais do que pela sua forccedila fiacutesica Essa caracteriacutestica jaacute estaacute presente no perfil dos seus antepassados Seu avocirc por parte de matildee Autoacutelico herdou do pai o deus Hermes o dom de roubar sem nunca ser surpreendido por isso causou muito oacutedio naqueles que foram suas viacutetimas Desse fato surge o nome Odisseu Quando o heroacutei nasce Autoacutelico que na ocasiatildeo encontrava-se em Iacutetaca escolhe o nome da crianccedila proveniente do fato de haver durante a sua vida provocado muitas malquerenccedilas O nome Ὀδυσσεύς proveacutem do verbo ὀδύσσασθαι que significa ldquodetestar estar irado contrardquo

Na Odisseia Canto XI versos 23-50 Odisseu faz uma νέκυια invocaccedilatildeo agraves almas dos mortos para saber sobre o futuro em relaccedilatildeo agrave sua volta para casa e para o seu reino Ele apenas bordeja a entrada do Hades natildeo chegando propriamente a entrar nele O mundo subterracircneo segundo Homero fica nas paragens da cidade dos homens Cimeacuterios povo fabuloso cujo territoacuterio situa-se nos limites do mundo Chegando ao local a partir das indicaccedilotildees da feiticeira Circe o heroacutei oferece libaccedilotildees agraves almas dos mortos e um sacrifiacutecio de duas reses de pelo negro aos deuses subterracircneos

Laacute Perimedes e Euriacuteloco seguraram as viacutetimasEu a pontiaguda espada saco de junto da coxa

Um fosso cavei de um cuacutebito aqui e acolaacuteAo redor nele libaccedilatildeo verti a todos os mortosPrimeiramente de leite e mel misturados depois de doce vinhoe por terceiro aacutegua sobre ele branca cevada espalheiMuito supliquei agraves cabeccedilas exangues dos mortos tendo ido para Iacutetaca uma vaca esteacuteril a melhor irei sacrificar no meu palaacutecio e uma pira cobrir com as melhores coisas Agrave parte irei consagrar soacute a Tireacutesias toda negra uma ovelha que se distingue entre as nossas crias E quando com votos e preces supliquei ao coro dos mortos e tendo tomado o gado degolei rumo ao fosso e negro sangue escorreu As almas daqueles que estatildeo mortos afluiacuteram do Eacuterebo moccedilas e moccedilos solteiros sofridos anciatildeos jovens donzelas que tecircm o coraccedilatildeo incipiente no sofrer e muitos heroacuteis abatidos por Ares que foram perfurados com lanccedila de bronze segurando as armas manchadas de sangueMuitos ao redor do fosso chegavam de uma parte e de outra com grito ensurdecedor O medo deixava-me verdeDepois os companheiros exortei tendo ordenado queimar as reses esfoladas que jaziam no chatildeo pelo bronze cruel abatidas e orar aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone e eu mesmo tendo puxado a pontiaguda espada de junto da coxa sento natildeo permitia que as exangues cabeccedilas dos mortos viessem mais perto antes de ouvir Tireacutesias sup2

sup2 ἔνθ᾽ ἱερήια μὲν Περιμήδης Εὐρύλοχός τεἔσχον ἐγὼ δ᾽ ἄορ ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦβόθρον ὄρυξ᾽ ὅσσον τε πυγούσιον ἔνθα καὶ ἔνθα ἀμφ᾽ αὐτῷ δὲ χοὴν χεόμην πᾶσιν νεκύεσσιπρῶτα μελικρήτῳ μετέπειτα δὲ ἡδέι οἴνῳτὸ τρίτον αὖθ᾽ ὕδατι ἐπὶ δ᾽ ἄλφιτα λευκὰ πάλυνονπολλὰ δὲ γουνούμην νεκύων ἀμενηνὰ κάρηναἐλθὼν εἰς Ἰθάκην στεῖραν βοῦν ἥ τις ἀρίστη ῥέξειν ἐν μεγάροισι πυρήν τ᾽ ἐμπλησέμεν ἐσθλῶνΤειρεσίῃ δ᾽ ἀπάνευθεν ὄιν ἱερευσέμεν οἴῳπαμμέλαν᾽ ὃς μήλοισι μεταπρέπει ἡμετέροισιτοὺς δ᾽ ἐπεὶ εὐχωλῇσι λιτῇσί τε ἔθνεα νεκρῶνἐλλισάμην τὰ δὲ μῆλα λαβὼν ἀπεδειροτόμησα ἐς βόθρον ῥέε δ᾽ αἷμα κελαινεφές αἱ δ᾽ ἀγέροντοψυχαὶ ὑπὲξ Ἐρέβευς νεκύων κατατεθνηώτων

νύμφαι τ᾽ ἠίθεοί τε πολύτλητοί τε γέροντεςπαρθενικαί τ᾽ ἀταλαὶ νεοπενθέα θυμὸν ἔχουσαιπολλοὶ δ᾽ οὐτάμενοι χαλκήρεσιν ἐγχείῃσιν ἄνδρες ἀρηίφατοι βεβροτωμένα τεύχε᾽ ἔχοντεςοἳ πολλοὶ περὶ βόθρον ἐφοίτων ἄλλοθεν ἄλλοςθεσπεσίῃ ἰαχῇ ἐμὲ δὲ χλωρὸν δέος ᾕρειδὴ τότ᾽ ἔπειθ᾽ ἑτάροισιν ἐποτρύνας ἐκέλευσαμῆλα τὰ δὴ κατέκειτ᾽ ἐσφαγμένα νηλέι χαλκῷ δείραντας κατακῆαι ἐπεύξασθαι δὲ θεοῖσινἰφθίμῳ τ᾽ Ἀΐδῃ καὶ ἐπαινῇ Περσεφονείῃαὐτὸς δὲ ξίφος ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦἥμην οὐδ᾽ εἴων νεκύων ἀμενηνὰ κάρηνααἵματος ἆσσον ἴμεν πρὶν Τειρεσίαο πυθέσθαι (Odisseia XI v 23-50)

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Odisseu saiacutedo de Troacuteia apoacutes sua destruiccedilatildeo defronta-se com inuacutemeras vicis-situdes a fim de chegar a Iacutetaca entre elas estaacute a descida ao Hades Eacute possiacutevel perceber o perfil ardiloso do heroacutei quando depois que oferece o sangue sacrificial das reses depositado no fosso primeiramente a Tireacutesias adivinho tebano com o intuito de ques-tionaacute-lo sobre a sua volta usa-o como isca para atrair as almas daqueles pelos quais se interessa Depois que Tireacutesias discorre sobre os perigos com os quais Odisseu ainda se depararaacute outras almas se aproximam e apoacutes sorverem do sangue relatam suas his-toacuterias Entre elas encontra-se a alma de Agamecircmnon que o adverte sobre o perigo de se confiar nas mulheres remetendo agrave traiccedilatildeo da sua proacutepria esposa Clitemnestra que o mata em um banquete oferecido em comemoraccedilatildeo agrave sua volta da guerra Essa adver-tecircncia condiz com o encontro entre Peneacutelope e o proacuteprio Odisseu ainda disfarccedilado de mendigo Alter ego do esposo concernente agrave astuacutecia Peneacutelope cujo epiacuteteto περίφρων (περί = ao redor de + φρωνέω = ser sensato prudente ter conhecimento) faz jus a tal caracteriacutestica desconstroacutei sensatamente o discurso do heroacutei quando ele tenta desviar a atenccedilatildeo de Peneacutelope sobre ele para si proacutepria insuflando-lhe a vaidade de maneira sutil e inteligente Entretanto a rainha o contesta dizendo que sua grandeza tanto da forma de ser quanto da beleza foi destruiacuteda no dia em que o esposo seguiu com os argivos e que muito maior seraacute com o seu regresso para o lar

A νέκυια de Odisseu reitera a sua imortalidade Imortalizado pelo canto dos aedos visto serem suas faccedilanhas de heroacutei guerreiro jaacute conhecidas de todos ao despre-zar a luz do sol e visitar os mortos nas sombras ele conquista uma espeacutecie de imor-talidade fiacutesica pois jaacute natildeo teme mais a proacutepria morte Essa conquista tem seu reflexo quando enfrenta os pretendentes que pilham a sua riqueza e desrespeitam o seu lar Disfarccedilado de mendigo derrota os inimigos com forccedila proveniente da sua destreza e da sua coragem Dado como morto por todos Odisseu sai do anonimato da sua apa-rente morte e atraveacutes da sua habilidade particular com o arco e a flecha mata deste-midamente todos os inimigos

Jaacute Orfeu filho do deus-rio Eagro e da musa da poesia liacuterica Caliacuteope Καλλιόπη cujo nome significa lsquoa que tem uma bela vozrsquo apaixona-se por Euriacutedice e se casa com ela Mas Euriacutedice eacute tatildeo bonita que pouco tempo depois do casamento atrai um api-cultor chamado Aristeu Quando ela recusa suas atenccedilotildees ele a persegue Tentando escapar ela tropeccedila em uma serpente que a pica e a mata Orfeu fica transtornado de tristeza Levando a sua lira vai ateacute o mundo dos mortos para tentar trazecirc-la de volta A canccedilatildeo pungente e emocionada de sua lira convence o barqueiro Caronte a levaacute-lo vivo pelo Rio Estige A canccedilatildeo da lira adormece Ceacuterbero o catildeo de trecircs cabeccedilas que vigia os portotildees seu tom carinhoso alivia os tormentos dos condenados Finalmente Orfeu chega ao trono de Hades O rei dos mortos fica irritado ao ver que um vivo ti-nha entrado em seu domiacutenio mas a agonia na muacutesica de Orfeu o comove e ele chora laacutegrimas de ferro Sua esposa a deusa Perseacutefone implora-lhe que atenda ao pedido de Orfeu Assim Hades acolhe seu desejo Euriacutedice poderia voltar com Orfeu ao mundo dos vivos Mas com uma uacutenica condiccedilatildeo que ele natildeo olhasse para ela ateacute que estivesse outra vez agrave luz do sol

Orfeu parte pela trilha iacutengreme que leva para fora do escuro reino da morte

tocando muacutesicas de alegria e celebraccedilatildeo enquanto caminha para guiar a sombra de Euriacutedice de volta agrave vida Ele natildeo olha nenhuma vez para traacutes ateacute atingir o limiar da entrada do submundo no entanto nesse momento vira-se para se certificar de que Euriacutedice estaacute seguindo-o Por um momento ele a vecirc perto da saiacuteda do tuacutenel escuro perto da vida outra vez Mas enquanto ele olha ela se torna de novo um fino fantas-ma seu grito final de amor e pena natildeo eacute mais do que um suspiro na brisa que saiacutea do mundo dos mortos Orfeu a havia perdido para sempre Em total desespero Orfeu se torna amargo Recusa-se a olhar para qualquer outra mulher natildeo querendo se lembrar da perda de sua amada Furiosas por terem sido desprezadas um grupo de mulheres Traacutecias selvagens chamadas Mecircnades cai sobre ele freneacuteticas atirando dardos Os dardos de nada valem contra a muacutesica do lirista mas elas abafando sua muacutesica com gritos conseguem atingi-lo e o matam Depois despedaccedilam seu corpo e jogam sua cabeccedila cortada no Rio Hebrus e ela flutua ainda cantando ldquoEuriacutedice Euriacutedicerdquo

Chorando as nove musas reuacutenem seus pedaccedilos e os enterram no Monte Olim-po Dizem que desde entatildeo os rouxinoacuteis das proximidades cantam mais docemente do que os outros pois Orfeu na morte se uniu a sua amada Euriacutedice

Orfeu muacutesico por excelecircncia e poeta tem como salvo-conduto para a entrada no Hades o som da sua lira que eacute capaz de acalmar as feras e comover ateacute mesmo o deus terriacutevel dos mortos O amor por uma mulher eacute a causa da sua κατάβασις Expe-rimentando a morte na figura da pessoa amada ele mesmo quer conhececirc-la indo ateacute o Hades Para resgatar a esposa e salvar a si mesmo do esquecimento da morte utiliza o atributo que lhe confere notoriedade no mundo dos vivos a muacutesica Entretanto natildeo confia no proacuteprio talento e inadvertidamente quer conferir se a sua amada o segue de volta agrave luz Momentaneamente a perde e tambeacutem a si mesmo para em seguida conquistar a imortalidade juntamente com Euriacutedice

Quanto a Teseu ele eacute o heroacutei por excelecircncia da Aacutetica Conta o mito que Egeu seu pai natildeo podendo ter filhos de mulheres sucessivas interroga o oraacuteculo de Delfos O deus responde-lhe que abrisse o odre de vinho antes de chegar agrave cidade de Atenas Natildeo compreendendo Egeu se afasta do seu caminho para consultar o rei de Trezeacutenia Piteu um dos filhos de Peacutelops o qual compreende logo o sentido do oraacuteculo Consegue embriagar Egeu e durante a noite deita ao seu lado a filha Etra Dessa uniatildeo nasce Teseu Outra tradiccedilatildeo diz que o pai seria Posiacutedon que teria se unido a Etra na mesma noite que Egeu um dia em que ela teria ido oferecer um sacrifiacutecio numa ilha e o deus a possuiacutera agrave forccedila

Piriacutetoo amigo de Teseu eacute um heroacutei da Tessaacutelia filho de Zeus e Dia A sua ami-zade com Teseu ocorre de maneira singular Ao ouvir falar dos feitos do heroacutei decide pocirc-lo agrave prova e rouba gados dos rebanhos de Teseu Os dois se veem um dia frente a frente e cada um deles eacute seduzido pela beleza do outro Selam entatildeo com um jura-mento a amizade que nascia e a partir desse instante os dois vivem juntos todas as aventuras entre elas o combate dos Laacutepitas contra os centauros e a descida ao Hades

A κατάβασις de Teseu e Piriacutetoo ocorre quando cada um deles jura dar ao ou-tro uma filha de Zeus como esposa Piriacutetoo entatildeo ajuda Teseu a raptar Helena filha

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de Zeus e Leda e em troca recebe sua ajuda para ir ao Hades raptar Perseacutefone filha de Zeus e Demeacuteter Conta o mito que os dois conseguiram entrar no mundo dos mortos mas natildeo conseguiram sair ficando prisioneiros Heracleacutes ao descer ao submundo en-contra os dois e consegue libertar Teseu mas ao tentar resgatar Piriacutetoo a terra treme O heroacutei percebe que natildeo eacute vontade dos deuses libertar Piriacutetoo e desiste de salvaacute-lo

A entrada de Teseu e Piriacutetoo no mundo dos mortos eacute aquiescida por Hades pela intenccedilatildeo do deus de prendecirc-los no mundo subterracircneo Aparentemente bem aco-lhidos foram recebidos com um banquete Ao se sentar ficaram presos nos assentos Teseu foi libertado mas Piriacutetoo permaneceu eternamente sentado na Cadeira do Es-quecimento Sua passagem pelo Hades lhe trouxe uma imortalidade anocircnima Para Teseu a ἀνάβασις lhe trouxe a derrocada Regressando a Atenas encontrou o poder partilhado entre facccedilotildees e passou a ser rei apenas no nome Foi morto pelo rei Licurgo

O Livro VI da Eneida trata da descida de Eneacuteias aos Infernos que vem sendo anun-ciada no decurso da narrativa Primeiramente em Butroto depois de saiacutedos de Troacuteia ha-verem os troianos parado na Traacutecia em Delos em Creta nas ilhas Estroacutefades Depois em Aacutecio Heleno filho de Priacuteamo e sacerdote de Apolo em transe vaticina os destinos de Eneacuteias e remete agrave sua visita aos lagos dos Infernos

Quanto agrave tradiccedilatildeo latina respaldando-se na tradiccedilatildeo grega Virgiacutelio busca o mito da cataacutebase para compor o Livro mais importante da sua epopeia que confirma as prediccedilotildees de Juacutepiter desde o iniacutecio da narrativa e depois pelos oraacuteculos de Apolo a edificaccedilatildeo da futura gloacuteria romana O Livro VI da Eneida trata da descida de Eneacuteias aos Infernos que vem sendo anunciada no decurso da narrativa Primeiramente em Butroto depois de saiacutedos de Troacuteia haverem os troianos parado na Traacutecia em Delos em Creta nas ilhas Estroacutefades Depois em Aacutecio Heleno filho de Priacuteamo e sacerdote de Apolo em transe vaticina os destinos de Eneacuteias e remete agrave sua visita aos lagos dos Infernos Pela segunda vez haacute a referecircncia agrave ida de Eneacuteias ao mundo dos mortos agora atraveacutes da alma de Anquises que aparece ao filho quando este se encontra na Siciacutelia Eacute o momento em que estatildeo sendo realizados os jogos fuacutenebres em sua honra pois mor-rera havia um ano

Na modalidade do arco e flecha ocorre um prodiacutegio que soacute mais tarde eacute anunciado pelos adivinhos Quando Aceste atira o dardo a fim de atingir a pomba este incendeia no percurso e esvanece antes de atingir o alvo Algum tempo depois os na-vios troianos que estatildeo ancorados na praia satildeo incendiados por Iacutesis a mando de Juno Considerando que o arco e flecha representam Apolo na sua funccedilatildeo de arqueiro e do mesmo modo o fogo simboliza a sua funccedilatildeo de deus da luz e que a pomba a ave de Vecircnus representa metonimicamente o povo troiano eacute clara a participaccedilatildeo do deus no prodiacutegio na tentativa de alertar os guerreiros quanto ao incecircndio contra as naus Tal episoacutedio leva Eneacuteias a seguir o conselho do velho Nauta de deixar na ilha o contingente excedente pela perda dos navios fundando uma cidade para que laacute permanecessem Entretanto antes de anuir agrave proposta do anciatildeo Eneacuteias vecirc a sombra de Anquises que o aconselha a fazecirc-lo tambeacutem remetendo agrave necessidade da sua ida agrave morada das som-bras guiado pela Sibila a fim de conhecer a posteridade da sua descendecircncia

sup3 From one point of view we may say that these myths and sagas have an initiatory structure to descend into Hell alive confront its monsters and demons is to undergo an initiatory ordeal I may add that similar flesh-andblood descend into Hell are characteristic of heroic initiations whose goal is the conquest of bodily immortality Of course these instances belong to initiatory mythology and not to ritual properly speaking but myths are often more valuable than rites for our understanding of religious behavior For it is the myth which most completely reveals the deep and often unconscious desire of the religious man (ELIADE 2005 p 112)

A κατάβασις de Eneacuteias simboliza a sua morte como homem mortal pereciacute-vel para que na sua ἀνάβασις seja imortalizado na memoacuteria de todos como heroacutei semideus alegoricamente simbolizando a imortalidade do impeacuterio romano e por me-toniacutemia a do proacuteprio Augusto Eacute nesse episoacutedio que ocorre a lsquobela mortersquo de Eneacuteias Depois da entrevista com Anquises que lhe garante o ecircxito do seu empreendimento a edificaccedilatildeo do novo reino com a aquiescecircncia dos proacuteprios deuses jaacute percebida no momento em que o heroacutei consegue o salvo-conduto para a entrada no reino dos mor-tos a sua consagraccedilatildeo e perenidade na μνήμη memoacuteria das geraccedilotildees vindouras estaacute perpetuada Do mesmo modo ao adentrar o seio da terra siacutembolo de vida e de morte ao mesmo tempo Eneacuteias tem o seu σῆμα estabelecido seu tuacutemulo monumento divi-no representativo da existecircncia do heroacutei O enfrentamento dos monstros e dos perigos que perpassam a travessia pelo reino de Plutatildeo confirma-lhe a bravura e o desbrava-mento heroico terceiro requisito para se obter uma lsquobela mortersquo

Mircea Eliade em suas reflexotildees tece um pensamento profundo acerca da simbologia da cataacutebase ao reino dos mortos

A partir de um ponto de vista noacutes podemos dizer que es-tes mitos e sagas tecircm uma estrutura iniciatoacuteria descer vivo ao Inferno confrontar monstros e democircnios eacute sub-meter-se a uma provaccedilatildeo iniciatoacuteria Podemos acrescentar que similares descidas em ldquocarne e ossordquo ao Inferno satildeo caracteriacutesticas de iniciaccedilotildees heroicas cujo objetivo eacute a con-quista da imortalidade fiacutesica Naturalmente esses exem-plos pertencem agrave mitologia de iniciaccedilatildeo e natildeo ao ritual propriamente falando mas mitos satildeo frequentemente mais significativo do que os ritos para nosso entendimen-to do comportamento religioso Por isso eacute o mito aquilo que mais completamente revela o profundo e frequente-mente inconsciente desejo do homem religioso3

O teoacuterico refere-se a uma lsquomitologia de iniciaccedilatildeorsquo que remete ao que eacute narrado mais do que o experienciado na vivecircncia ritualiacutestica do mito Envolto por uma aura religiosa o ritual narrado da cataacutebase estaacute circunscrito na categoria dos heroacuteis apon-tando uma ordem em que ocorre uma provaccedilatildeo iniciaacutetica e uma conseguinte trans-formaccedilatildeo Eacute preciso passar por uma morte para alcanccedilar a imortalidade finalidade propulsora do homem religioso

Eneacuteias atinge o aacutepice da sua Pietas ndash valor sagrado de reverecircncia aos deuses e aos antepassados ndash ao descer aos Infernos pois atende ao chamado de Anquises Apoacutes

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4 Quale solet silvis brumali frigore viscum Fronde virere nova quod non sua seminat arbos Et croceo fetu teretis circumdare truncos Talis erat species auri frondentis opaca Ilice sic leni crepitabat brattea vento (VIRGIacuteLIO Eneida VI v 205-209)

a sua ἀνάβασις e a sua chegada ao Laacutecio Eneacuteias tem seu status de heroacutei reconhecido e ratificado no momento em que recebe da deusa Vecircnus sua matildee as armas produzidas por Vulcano episoacutedio este respaldado no exemplo grego de Aquiles considerado o melhor dos guerreiros gregos que tambeacutem teve suas armas forjadas pelo deus ferreiro

A armadura eacute iacutecone da excelecircncia guerreira do heroacutei que diz respeito a ἀρετή grega e a virtus romana Dentro do conjunto em que figuram o elmo as cnecircmides a couraccedila a lanccedila e a espada o escudo tem proeminecircncia pois carrega em si a repre-sentaccedilatildeo do universo em que o heroacutei estaacute inserido O escudo eacute instrumento ao mesmo tempo de proteccedilatildeo e ataque no campo de batalha O heroacutei ao colocaacute-lo contra o ini-migo potildee diante de si seu proacuteprio mundo servindo-lhe este de anteparo e de ofensiva

A descriccedilatildeo das imagens representadas no escudo de Eneacuteias diz respeito agrave his-toacuteria de Roma desde Rocircmulo e Remo alimentados por uma loba ateacute Ceacutesar Augusto portanto todo um futuro desconhecido para o heroacutei Carregar tal representaccedilatildeo mol-dada exclusivamente para ele significa ser o empreendedor da gloacuteria futura dos seus descendentes A entrada de Eneacuteias nos Infernos eacute aquiescida pelos deuses O heroacutei tem a proteccedilatildeo de Apolo atraveacutes da Sibila de Cumas sacerdotisa de Apolo que atua como guia no seu itineraacuterio Ela estipula os requisitos necessaacuterios para que o heroacutei possa realizar tal empreendimento com seguranccedila a saber o ramo de ouro a purificaccedilatildeo da frota pela morte de um dos seus companheiros e um sacrifiacutecio aos deuses subterracirc-neos Esses elementos seratildeo determinantes para a empreitada do heroacutei e consequente conquista da imortalidade

Cataacutebase de Eneias

A κατάβασις de Eneacuteias requer trecircs condiccedilotildees para que se realize I) a anuecircncia das divindades II) a purificaccedilatildeo necessaacuteria para o contato com o sagrado (sacer) III) a oferenda aos deuses atraveacutes do sacrifiacutecio animal A primeira diz respeito ao salvo-con-duto que lhe garantiraacute a passagem livre pelas regiotildees inferiores que consiste em um ramo cujo aspecto se assemelha a um visco planta parasitaacuteria que cresce em torno do tronco de aacutervores destacando-se sobretudo por sua resistecircncia agraves intempeacuteries climaacute-ticas e por sua coloraccedilatildeo ativa Ele representa a perenidade da imortalidade que seraacute conferida a Eneias com a sua descida aos Infernos

Qual eacute comum nos bosques com o frio sosticialVerdejar com nova folhagem o visco que a aacutervore semeia natildeo sua e com croacuteceo ramo circundar os troncos Tal era o aspecto do frondoso ouro na sombria azinheira Assim a lacircmina crepitava com a leve brisa4

A explicaccedilatildeo da escolha de Virgiacutelio segundo a criacutetica teria raiz em uma crenccedila popular que atribuiacutea ao visco o poder de neutralizar os perigos advindos da aacutegua e do fogo e mais tarde teria tambeacutem o poder de desmanchar magias e de expulsar democirc-nios

Outra razatildeo coadunada a esta seria o fato de que o visco brota mesmo sem tocar a terra crescendo durante o inverno quando o restante da natureza estaacute imerso no sono da morte Tal caracteriacutestica faria dessa planta siacutembolo de vida para os homens Suas folhas sempre verdes davam ao homem a segura esperanccedila de que a natureza sempre voltaria a florescer e frutificar

No pensamento miacutetico morte e vida formam uma uacutenica unidade Proseacuterpina deusa da vegetaccedilatildeo e do mundo subterracircneo reuacutene em si a forccedila da vida e da morte Metaforicamente ela seria o proacuteprio visco pois apesar da condiccedilatildeo de deusa dos mor-tos ela tambeacutem conteacutem o atributo da germinaccedilatildeo O ramo que serve de salvaguarda a Eneacuteias eacute caracterizado como sendo de ouro fazendo menccedilatildeo agrave coloraccedilatildeo accedilafroada das suas bagas as quais possuem propriedades medicinais A cor concerne tambeacutem agrave construccedilatildeo poeacutetica tendo em vista a localizaccedilatildeo da planta no meio do bosque som-brio Eacute importante perceber que mesmo reluzente o ramo de ouro soacute pode ser visto e sobretudo colhido com a aquiescecircncia dos deuses Natildeo eacute agrave toa que Eneacuteias o encontra com o concurso de Vecircnus sua matildee Esta lhe envia duas pombas suas aves para guiar o filho Aleacutem disso a facilidade com que o ramo se desprende no momento em que o heroacutei o colhe denota tal anuecircncia divina pois caso contraacuterio nem mesmo o ferro seria capaz de removecirc-lo

Eneacuteias com tais palavras orava e ocupava o altar quando assim comeccedilou a falar a sacerdotisa ldquoTroiano gerado de sangue divino filho de Anquises faacutecil eacute a descida ao Aver-no noite e dia a porta do aacutetrio de Dite estaacute aberta mas retornar a marcha e subir rumo agraves brisas do alto este eacute o trabalho esta a dificuldade Poucos descendentes dos deuses aos quais Juacutepiter amou ou a ardorosa coragem transportou ao eacuteter puderam Florestas ocupam todo o centro e o Cocito corrente circunda-o com negra sinuo-sidadePorque tua mente tem tanta acircnsia e tanto desejo de por duas vezes navegar o lago do Estige e ver o negro Taacuterta-ro e agrada-te abandonar-se a um insano labor escuta o que primeiro deve ser realizado De folhas e haste flexiacutevel em aacutervore opaca um ramo de ouro permanece escondido consagrado a Juno infernal Todo um bosque o oculta e as sombras o encerram em vale sombrio Mas natildeo eacute dado a algueacutem penetrar o recesso da terra antes que tenha co-lhido o ramo de ouro da aacutervore Esta daacutediva para si a bela Proseacuterpina ordena trazerTendo arrancado o primeiro outro de ouro natildeo falta e de siacutemil metal um ramo floresce Portanto procura-o su-tilmente com os olhos e colhe a descoberta segundo os ritos com a matildeoDe fato ele mesmo propiacutecio cede facilmente se os fados te chamam De outra maneira com forccedila alguma poderaacutes

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vencer nem arrancar com duro ferro Aleacutem disso o corpo de um amigo teu jaz exacircnime (Ai tu que desconheces) e mancha todo o exeacutercito com o cadaacutever enquanto pedes oraacuteculos e pendes em nosso limiar Antes entrega-o agrave sua morada e encerra-o no sepulcroConduze negras reses sejam estas as primeiras expiaccedilotildeesApenas assim avistaraacutes os bosques sagrados do Estige e o reino inacessiacutevel aos vivosrdquo Disse e premendo a boca calou-se 5

O trecho acima descreve a entrevista entre Eneacuteias e a Sibila especificamente a resposta dada ao heroacutei quando este lhe pede para ver Anquises visto ser ali a entrada para o mundo dos mortos Ela entatildeo discorre sobre o que eacute necessaacuterio para a reali-zaccedilatildeo do seu pedido Mesmo tendo a ajuda divina na busca do ramo de ouro Eneacuteias precisa agir com acuidade ao procuraacute-lo No verso 145 a sacerdotisa adverte-o quanto a isso Entretanto faz-se necessaacuterio ir um pouco aleacutem em relaccedilatildeo ao sentido dessa ad-vertecircncia a fim de se ter uma compreensatildeo mais profunda na interpretaccedilatildeo do texto

A vocaacutebulo oculis (= olho visatildeo) em outra acepccedilatildeo possiacutevel denota a visatildeo com os olhos da mente o que remete ao verbo meacutedio grego ὄσσομαι (= ver em espiacute-rito ou com o olho da mente) Portanto eacute preciso que Eneacuteias busque o ramo de ouro compenetrado em si mesmo em seu espiacuterito piedoso Isso lhe facultaraacute o encontro com seu pai haja vista ser este sentimento de devoccedilatildeo e de respeito aos antepassados aquilo que impulsiona o heroacutei a enfrentar tamanho perigo Depois que sabe da morte de um dos companheiros Eneacuteias segue rumo ao acampamento Laacute chegando fica cien-te de que se trata de Miseno

Companheiro de Heitor junta-se a Eneacuteias depois que ο Priamida morre pelas matildeos de Aquiles Era exiacutemio trombeteiro mas comete um desatino ao desafiar Tri-tatildeo divindade marinha tocador de buacutezio dizendo-se mais habilidoso do que qualquer imortal Para castigaacute-lo o deus surpreende-o com uma vaga e o afoga Eacute a ele que a Sibila se refere como a causa de contaminaccedilatildeo da frota Por pertencer ao culto sagrado dos Penates troianos o descomedimento (ὕὕβρις) que comete contra Tritatildeo atinge a todos A hyacutebris diz respeito a um excesso cometido por um mortal a qual sempre acar-reta uma puniccedilatildeo A ultrapassagem do μέτρον da medida do limite a que os homens

6 Nec minus interea Misenum in litore Teucri flebant et cineri ingrato suprema ferebantprincipio pinguem taedis et robore secto ingentem stru-xere pyram cui frondibus atris intexunt latera et feralis ante cupressos constituunt decorantque super fulgenti-bus armispars calidos latices et aeumlna undantia flammis expediunt corpusque lavant frigentis et unguuntfit gemitus tum membra toro defleta reponunt purpure-asque super vestis velamina nota coniciunt pars ingenti subiere feretro triste ministerium et subiectam more pa-rentum aversi tenuere facem congesta cremantur turea

dona dapes fuso crateres olivopostquam conlapsi cineres et flamma quievit reliquias vino et bibulam lavere favillam ossaque lecta cado texit Corynaeus aeumlnoidem ter socios pura circumtulit unda spargens rore levi et ramo felicis olivae lustravitque viros dixitque novissi-ma verbaat pius Aeneas ingenti mole sepulcrum imponit suaque arma viro remumque tubamque monte sub aeumlrio qui nunc Misenus ab illo dicitur aeternumque tenet per saecula nomen(VIRGIacuteLIO Eneida VI 212-235)

devem se submeter conscientes da sua inferioridade em relaccedilatildeo aos deuses provoca o μίασμα a mancha que atinge aqueles vinculados por um mesmo laccedilo religioso por deuses em comum Eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo dessa contaminaccedilatildeo atraveacutes de rituais que expiem tal procedimento

A morte de um heroacutei demanda que seja sepultado pelos companheiros Caso natildeo ocorram os ritos fuacutenebres e o devido sepultamento significa incorrer em ato de impiedade acarretando malefiacutecios que contaminaratildeo todos aqueles que estiverem li-gados pelos mesmos laccedilos religiosos Desse modo Miseno eacute sepultado logo que Eneacuteias retornando da entrevista com a Siblila percebe o companheiro morto

No meio tempo os Teucros na praia choravam Miseno e prestavam as uacuteltimas honras agrave cinza ingrataA princiacutepio erigiram uma enorme pira abundante em car-valho seco e madeira resinosa cujas laterais cobrem com folhagem escura Erguem na frente ciprestes fuacutenebres e as adornam no cume com as armas fulgentes Parte pre-para a aacutegua quente e os vasos de bronze que borbulham sobre as chamas Lavam e untam o corpo frioO pranto se faz Entatildeo potildeem o corpo sobre o leito fuacutenebre e lanccedilam em cima as vestes puacuterpuras traje familiarParte levantou o pesado feacuteretro triste mister e segundo o costume dos antepassados voltando as costas pegaram o facho submetendo-o agrave pira Todo o amontoado queima as oferendas de incenso a carne dos sacrifiacutecios as crateras com o oacuteleo derramando Depois que as cinzas caiacuteram e a chama cessou lavaram com vinho os restos e a cinza se-denta Corineu recolhendo os ossos encerra-os em uma urna de bronze Trecircs vezes passou aacutegua lustral em torno dos soacutecios aspergindo-os em leve orvalho com um ramo de fecunda oliveira Purificou-os e disse as uacuteltimas pala-vras E o piedoso Eneacuteias constroacutei um enorme tuacutemulo para o companheiro e potildee as suas armas o remo e a trombeta ao peacute de um alto monte que agora por ele eacute chamado Mi-seno e que manteraacute atraveacutes dos seacuteculos o eterno nome6

5 Talibus orabat dictis arasque tenebat cum sic orsa lo-qui vates laquosate sanguine divum Tros Anchisiade facilis descensus Averno noctes atque dies patet atri ianua Ditissed revocare gradum superasque evadere ad auras hoc opus hic labor est pauci quos aequus amavit Iuppiter aut ardens evexit ad aethera virtus dis geniti potuere tenent media omnia silvae Cocytusque sinu labens circumvenit atro quod si tantus amor menti si tanta cupido estbis Stygios innare lacus bis nigra videre Tartara et insano iuvat indulgere labori accipe quae peragenda prius latet arbore opaca aureus et foliis et lento vimine ramusIunoni infernae dictus sacer hunc tegit omnis lucus et obscuris claudunt convallibus umbrae sed non ante datur telluris operta subire auricomos quam quis decerpserit ar-

bore fetus hoc sibi pulchra suum ferri Proserpina muacutenusinstituit primo avulso non deficit alter aureus et simili frondescit virga metalloergo alte vestiga oculis et rite repertum carpe manu nam-que ipse volens facilisque sequetur si te fata vocant aliter non viribus ullis vincere nec duro poteris convellere ferropraeterea iacet exanimum tibi corpus amici (heu nescis) totamque incestat funere classem dum consulta petis nostroque in limine pendes sedibus hunc refer ante suis et conde sepulcro duc nigras pecudes ea prima piacula suntosic demum lucos Stygis et regna invia vivis aspiciesraquo dixit pressoque obmutuit ore (VIRGIacuteLIO Eneida VI v 124-170)

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O funeral consiste em um ritual composto por etapas diversas No Canto XXIII da Iliacuteada versos 117-897 acontece o funeral de Paacutetrocles morto por Heitor quando enfrentava as hostes troianas vestindo as armas de Aquiles Seu funeral tem a seguinte sequecircncia construccedilatildeo da pira com carvalho deposiccedilatildeo do corpo sobre a pira sacrifiacute-cio de ovelhas e de bois espalhando-se a gordura sobre o cadaacutever e dispondo a carne ao seu redor posicionamento de duas acircnforas ao lado do leito uma com oacuteleo outra com mel sacrifiacutecio de catildees e de cavalos atirados agrave chama da pira sacrifiacutecio de doze mancebos troianos mortos com o bronze e em seguida lanccedilados agrave chama lavagem dos ossos depois de queimado o corpo para serem depositados em uma urna de ouro construccedilatildeo do tuacutemulo para guardar os ossos e realizaccedilatildeo dos jogos em homenagem ao morto Comparando o funeral de Paacutetrocles com o de Miseno eacute possiacutevel perceber poucas diferenccedilas entre o rito funeraacuterio grego e o latino Com relaccedilatildeo ao ritual latino a diferenccedila consiste apenas no ato de virar o rosto no momento de atear fogo ao corpo apontado no verso 123 Este costume dos antepassados repousava na crenccedila de que no instante em que o corpo era submetido agraves chamas a alma do morto se retirava e para natildeo presenciar esse acontecimento virava-se o rosto

Apoacutes a realizaccedilatildeo do funeral e jaacute tendo encontrado o ramo de ouro Eneacuteias e a Sibila seguem rumo ao Averno lago que fica na entrada da caverna que leva ao mundo subterracircneo cujo odor puacutetrido impedia os paacutessaros de voarem sobre ele Em laacute che-gando oferecem o sacrifiacutecio aos deuses infernais a fim de abrandar-lhes a ira

Aqui primeiro quatro novilhos de pecirclo negro a sacerdo-tisa escolheu e verteu-lhes vinho na fronte e tirando os sumos pecirclos entre os cornos deposita-os no sagrado fogo primeiras oferendasinvocando em alta voz Heacutecate poderosa no ceacuteu e no EacutereboOutros cravam as facas por baixo e recolhem o teacutepido san-gue em paacuteteras O proacuteprio Eneacuteias fere com a espada uma ovelha de latilde negra para a matildee das Eumecircnides a Noite e para a sua grande irmatilde a Terra e para ti Proseacuterpina uma vaca esteacuteril Depois ergue altares noturnos ao rei do Es-tige Plutatildeo e potildee sobre o fogo o corpo inteiro dos bois vertendo oacuteleo pingue sobre as viacutesceras ardentes 7

O sacrifiacutecio feito agraves divindades pertencentes aos Infernos difere daquele ofe-recido aos deuses superiores os quais recebem a oferenda de animais de pelo branco ocorrendo o sacrifiacutecio θυσία sobre um altar βωμός durante a luz do dia Consiste em uma oferenda aos deuses e ao mesmo tempo um repasto de festa para os homens Quanto ao sacrifiacutecio da viacutetima a cabeccedila do animal eacute levantada e seu pescoccedilo cortado

7 quattuor hic primum nigrantis terga iuvencos constituit frontique invergit vina sacerdos et summas carpens media inter cornua saetas ignibus imponit sacris libamina primavoce vocans Hecaten caeloque Ereboque potentemsupponunt alii cultros tepidumque cruorem succipiunt pateris ipse atri velleris agnam Aeneas matri Eumenidum mag-naeque sorori ense ferit sterilemque tibi Proserpina vaccam tum Stygio regi nocturnas incohat aras et solida imponit taurorum viscera flammis pingue super oleum fundens ardentibus extis(VERGILIUS op cit 243-254)

de modo que o sangue a princiacutepio esguiche para o alto e depois seja recolhido em um recipiente O animal eacute aberto e suas viacutesceras extraiacutedas para que sejam consultadas Caso os deuses sejam propiacutecios a carne eacute logo devorada depois de retalhada e assada Os ossos cobertos com a gordura satildeo queimados para que a fumaccedila suba em direccedilatildeo aos deuses seu alimento

Jaacute o sacrifiacutecio feito agraves divindades subterracircneas demanda que a viacutetima tenha pelo negro e seja completamente carbonizada ndash holocausto sendo vedado ao homem consumir sua carne Deve ser realizado durante a noite e em lugar do altar cava-se um fosso para que o sangue apoacutes o corte no pescoccedilo do animal que tem a cabeccedila voltada para baixo escorra para dentro da terra Tanto o sacrifiacutecio feito por Odisseu quanto o realizado por Eneacuteias seguem os requisitos exigidos para o cumprimento do ritual de sacrifiacutecio aos deuses infernais a saber libaccedilatildeo de vinho imolaccedilatildeo de viacutetimas com pelo negro degola do animal direcionado para baixo de modo que o sangue escorra rumo ao fosso combustatildeo total do animal e suacuteplica agraves divindades infernais

Eneacuteais oferece o sacrifiacutecio a Heacutecate deusa das encruzilhadas agraves Eumecircnides comumente conhecidas por Fuacuterias entidades vingadoras do crime parental a Pro-seacuterpina identificada como Juno infernal pois eacute a deusa soberana dessa regiatildeo assim como Juno eacute soberana nas regiotildees superiores e a Plutatildeo deus soberano dos Infernos Em seguida queima o animal esfolado em uma fogueira [Eneida VI v52 aras noctur-nas (ἐσχάρα)] erigida a Estige rio dos Infernos

Estige eacute a filha mais velho de Oceano e Teacutetis Durante a Titanomaquia ela socorre Zeus contribuindo para a sua vitoacuteria O deus a recompensa Ela como perso-nificaccedilatildeo do rio eacute abonadora dos juramentos solenes pronunciados pelos deuses Caso algum deles perjurasse seria condenado a passar um ano inteiro em estado cataleacutepti-co sem beber do neacutectar nem comer da ambrosia Depois por mais nove anos ficaria sem participar dos banquetes e festas do Olimpo tal era o seu poder A invocaccedilatildeo agraves divindades infernais caracteriza o tipo de sacrifiacutecio realizado como tambeacutem demarca o acircmbito que conferiraacute a Eneias a imortalidade

Assim a sequecircncia percorrida na abordagem dos mitos cujo fio condutor da narrativa foi a cataacutebase buscou mostrar os pontos convergentes existentes entre eles mas tambeacutem a sua singularidade denotando a especificidade de cada um proacutepria da essecircncia do mito Nesse sentido foi possiacutevel corroborar a permanecircncia da tradiccedilatildeo miacute-tica grega na romana especificamente em relaccedilatildeo ao mito de Eneias

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Referecircncias

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VOLPIS Leone Virgilio Eneide Libro sesto Milano Carlos Signorelli 1953

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A Religiatildeo Romana Arcaica

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Willy Paredes Soares

Sabe-se que a religiatildeo sofrera vaacuterias transformaccedilotildees ateacute que chegasse a se constituir como eacute mais comumente conhecida atraveacutes dos escritos histoacuterico-literaacuterios sobretudo dos autores que estatildeo inseridos no periacuteodo aacuteureo da literatura latina seacutec I aC Nossa investigaccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees religiosas leva em consideraccedilatildeo a sua ordem cronoloacutegica de acontecimentos pois isso garante uma melhor compre-ensatildeo dos fenocircmenos religiosos vigentes no seacutec I aC possibilitando explicitaccedilotildees de tais fenocircmenos religiosos vigentes tambeacutem na posteridade Assim seraacute demonstra-da a religiatildeo que era praticada no Periacuteodo Monaacuterquico romano 753 aC - 509 aC seus principais deuses cultos sacerdotes seu envolvimento com as questotildees poliacuteticas atraveacutes dos escritos remanescentes de comentadores que estatildeo inseridos em periacuteodos posteriores A tentativa de reconstituiccedilatildeo cronoloacutegica da trajetoacuteria religiosa romana eacute certamente aacuterdua principalmente no que se refere agraves praacuteticas religiosas concernen-tes a periacuteodos anteriores ao seacuteculo I aC considerado como eacutepoca aacuteurea da literatura latina que deixou grande legado literaacuterio devido agrave conservaccedilatildeo de grande nuacutemero de obras de diversos autores No entanto deve ser considerada a afirmaccedilatildeo de Jean-Pierre Vernant (2010 p 90) sobre a religiatildeo grega que neste aspecto coaduna-se agrave religiatildeo arcaica romana Haacute entre as origens romanas e os primoacuterdios de sua organizaccedilatildeo so-

Da mesma maneira um grego do seacuteculo V talvez conheccedila menos coisas sobre as origens de Hermes que um especialista contem-poracircneo isso natildeo o impede de crer no deus Hermes de sentir a presenccedila do deus em determinadas circunstacircncias

cial que data de meados do seacutec VIII aC e o seu relato escrito considerado pela criacutetica como o mais antigo ou seja a traduccedilatildeo da Odisseia por Liuius Andronicus aproxima-damente em 240 aC cerca de cinco seacuteculos que podem ser chamados de obscuros no que se refere a documentos escritos que poderiam garantir o esclarecimento de muitos aspectos referentes aos ritos aos cultos religiosos e principalmente ao momento em que a religiatildeo grega atraveacutes de sua forte tradiccedilatildeo mitoloacutegica passou a influenciar o pensamento da arcaica civilizaccedilatildeo romana

Historicamente podem-se fazer comparaccedilotildees entre essas duas civilizaccedilotildees no acircmbito da ausecircncia de material de manuscritos capazes de elucidar principalmente a transiccedilatildeo de comportamentos religiosos e a influecircncia recebida de outros povos pri-mitivos Na Greacutecia esse periacuteodo se verifica entre o seacutec XII aC em que havia o uso da escrita denominada Linear B e o seacutec VIII aC com a reutilizaccedilatildeo da escrita nos poemas homeacutericos ou seja satildeo aproximadamente quatro seacuteculos sem registro escrito Em Roma o periacuteodo - em que haacute poucos ou quase uma total ausecircncia de manuscritos - estende-se de 753 aC data que marca a sua fundaccedilatildeo miacutetica e aproximadamente 240 aC marco inicial da literatura latina com a Odissia de Liuius Andronicus

A proacutepria origem de Roma eacute abordada com certa ausecircncia de especificidades e combina elementos miacuteticos histoacutericos e principalmente religiosos Rocircmulo e Remo teriam recebido autorizaccedilatildeo de seu avocirc Numitor para fundar uma cidade agraves margens do Laacutecio onde eles teriam sido criados por uma loba ou Fauna e por Acca Larentia Os reis de Alba Longa eram soberanos que tinham o privileacutegio de interrogar os auspiacutecios

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para conhecer as vontades dos deuses Conforme indicam os versos de Virgiacutelio desde suas primeiras referecircncias histoacutericas atributos divinos e religiosos ca-

elestiaque arma ldquoarmas celestesrdquo natildeo soacute por terem caracteriacutesticas divinas mas tam-beacutem por terem segundo Tito Liacutevio caiacutedo do ceacuteu e que garantiriam aos romanos arcai-cos uma proteccedilatildeo divina

O proacuteprio Pico mostrava-se com o escudo na matildeo esquerda e vestido com a curta trabea estava sentado com o lituus de Qui-rino 9 (Eneida VII v187-9)

ldquoNatildeo eacute necessaacuteriardquo ndash disse Rocircmulo ndash ldquoalguma disputa Grande eacute a fides das aves Recorramos agraves avesrdquo Eacute agradaacutevel o fato um vai ao rochedo do nemoroso Palatino outro vai pela manhatilde ao cume do Aventino Remo vecirc seis paacutessaros Rocircmulo vecirc duas vezes seis que voam em fila Manteacutem-se o fato pelo pacto e Rocircmulo tem a sentenccedila da cidade 10 (Fasti IV v 813-818)

9 Ipse Quirinali lituo paruaque sedebat succinctus trabea laeuaque ancile gerebat Picus10 ldquoNil opus estrdquo dixit ldquocertaminerdquo Romulus ldquoullo magna fides auium est experiamur auesrdquo Res placet alter init ne-morosi saxa Palati alter Auentinum mane cacumen init Sex Remus hic uolucres bis sex uidet ordine pacto statur et arbitrium Romulus urbis habet

Lendariamente Rocircmulo e Remo autorizados por Numitor observaram os voos dos paacutessaros para saber onde a cidade poderia ser fundada de acordo com o desejo di-vino Rocircmulo teria subido o monte Palatino Remo o Monte Aventino de onde teriam observado os auspiacutecios divinos para a fundaccedilatildeo da urbs ldquocidaderdquo Conforme afirma Oviacutedio

Tentando evitar desavenccedilas certamine ullo com seu irmatildeo Rocircmulo decide consultar a vontade divina sobre a fundaccedilatildeo da cidade atraveacutes dos auspiacutecios magna fides auium est demonstrando natildeo soacute a pietas para com os deuses mas tambeacutem o espiacuterito religioso em que estava envolvido o primitivo povo da Roma arcaica Como os

auspiacutecios divinos foram favoraacuteveis a Rocircmulo jaacute que os paacutessaros que voaram sobre o seu monte apresentaram um nuacutemero duas vezes maior uolucres bis sex do que os que voaram sobre o monte de seu irmatildeo sex Remus uidet Rocircmulo deveria fundar a cidade arbitrium Romulus urbis habet segundo a vontade dos deuses

Divergindo da tradiccedilatildeo literaacuteria latina poreacutem embasado nas palavras de Je-an-Pierre Vernant de que um especialista contemporacircneo possa conhecer mais sobre a Antiguidade do que uma pessoa em que na eacutepoca tenha vivido Andrea Carandi-ni afirma que Rocircmulo teria subido primeiramente ao monte Aventino somente em um segundo momento teria subido ao Palatino Remo poreacutem apenas teria subido ao Monte Murco de onde teriam observado os auspiacutecios divinos para a fundaccedilatildeo da urbs Os ritos preliminares ocorreram em localidades rurais proacuteximas ao monte Palatino

Neste momento teria sido criado o que poderiacuteamos chamar de primeiro tem-

Para interrogar a vontade dos deuses e receber as becircnccedilatildeos que implicavam mudanccedilas irreversiacuteveis de status precisava criar um recinto de cerca de dez metros de cada lado marcados por nove colunas inscritas (templum) das quais aquela a nordeste ndash em que se lia a inscriccedilatildeo bene iuuante aue ndash indicava o voo dos paacutessaros mais favoraacuteveis 11

Depois de ter sacrificado o rei vai provavelmente ao centro do lado ocidental do Palatino e ali cria um novo templum para ob-servar os paacutessaros 12

11 Per interrogare la volontagrave degli dei e ottenerne benedizioni che comportavano mutamenti irreversibili de statusbisognava creare un recinto di una decina di metri per lato segnato da nove cippi iscritti (templum) di cui quello anord-est ndash su cui si leggeva la scritta bene iuuante aue ndash indicava il volo degli uccelli piugrave favorevole13 Dopo aver sacrificato Il re si reca verosimilmente al centro del lato occidentale del Palatino e qui crea un secondo tem-plum per osservare gli uccelli

plo romano delimitado por nove pedras que demarcavam seus limites conforme afir-ma Andrea Carandini (2007 p39)

Apesar de divergir de Oviacutedio quanto ao monte subido por Remo para verifi-caccedilatildeo dos auspiacutecios favoraacuteveis pode-se observar nas palavras de Andrea Carandini a importacircncia da religiatildeo para o homem primitivo romano principalmente no que se refere agrave construccedilatildeo do templo que demonstra as primeiras manifestaccedilotildees e consolida-ccedilatildeo da religiatildeo romana

No primeiro templo primitivo o aacuteugure sacerdote que interpretava o voo dos paacutessaros situava-se no sentido oeste-leste no meio desse templo onde estava o monte Albano O aacuteugure movimentava no ar o seu lituus no espaccedilo delimitado pelas colunas e caso os paacutessaros voassem no sentido noroeste acreditava-se que os deuses haviam concedido que determinado fato fosse realizado

Os estudos arqueoloacutegicos de Andrea Carandini demonstram que a Roma pri-mitiva entre os anos de 900 aC e 650 aC situa-se basicamente em uma regiatildeo quadrada que tem por limite a Curiae Veteres a Porta Romanula o Sacelum Martis et Opis e a Ara Consi regiatildeo denominada pelo arqueoacutelogo de ldquoRoma Quadratardquo Entre os anos de 750 aC e 650 aC ao lado da ruacutestica habitaccedilatildeo de Rocircmulo estava situado o sacellum ldquopequeno santuaacuteriordquo de Marte e de Ops As duas construccedilotildees foram instala-das onde anteriormente entre os anos de 900 aC e 750 aC havia uma uacutenica e mais ampla construccedilatildeo que seria o correspondente arqueoloacutegico do tugurium ldquohabitaccedilatildeo choupanardquo de Acca Larentia e de Faustulus pastor que encontrou e criou Rocircmulo e Remo O segundo templo romano construiacutedo ficava no lado ocidental do monte Palati-no segundo Carandini (2007 p44)

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Primeiramente Rocircmulo definiu os limites entre os montes propiacutecios para a observaccedilatildeo dos auguacuterios os quais foram observados em primeiro momento na sua su-bida ao monte Aventino para ser escolhido rei ou fundador da cidade Somente em um segundo momento em que a ldquoRoma Quadratardquo comeccedilava a ser habitada e consagrada aos deuses com a construccedilatildeo de templos o Palatino teve o seu templo igualando-se aos demais montes da urbs que estava em processo de fundaccedilatildeo

Para cumprir o ritual de fundaccedilatildeo da urbs Rocircmulo se dirige ao noroeste do monte Palatino onde estava localizado o santuaacuterio de Acca Larentia em posiccedilatildeo inversa na ldquoRoma Quadratardquo de Alba Longa situada no acircngulo oposto Andrea Carandini (2007 p49) afirma que no rito de fundaccedilatildeo da cidade Rocircmulo se vestia agrave maneira dos habitantes do Gaacutebio cinctus Gabinus

Aqui o rei trajando uma toga agrave maneira dos Gaacutebios que lhe cobria a cabeccedila (cinctus Gabinus) daacute iniacutecio ao rito etrusco de sulcus primigenius apenas aprendido com os sacerdotes etrus-cos convocados 13

Como estes tivessem comeccedilado a magistratura logo depois do interregno natildeo consultaram o Senado sobre nada antes que consultassem sobre as coisas religiosas Primeiramente foram procurados cuidadosamente tratados de paz e leis ndash poreacutem ha-via aquelas Doze Taacutebuas e algumas leis reacutegias ndash que ordenaram ser recolhidas e que estabeleceram outras ordens daquelas em direccedilatildeo ao povo as que poreacutem referiam-se agraves coisas sagradas foram suprimidas sobretudo pelos pontiacutefices a fim de que os acircnimos das pessoas estivessem fortemente presos agrave religiatildeo (Ab Vrbe Condita VI 9-10) 14

No rito aprendido com os etruscos Rocircmulo realiza o sulcus primigenius ao redor dos limites da urbs que estava sendo fundada usava um julgum ldquoaradordquo de bronze puxado por uma vaca e por um touro

Os estudos arqueoloacutegicos vecircm auxiliar na tentativa de resgate dos costumes religiosos dos romanos primitivos poreacutem a insuficiecircncia de documentos escritos a obscuridade de informaccedilotildees a distacircncia temporal entre os cultos mais antigos e o autor que primeiramente os tenha comentado e o sigilo de algumas praacuteticas religiosas dificultam uma descriccedilatildeo objetiva da religiatildeo arcaica romana

Tito Liacutevio (50 aC - 17 dC) comentara a dificuldade em explicitar muitos fatos histoacutericos e tambeacutem religiosos jaacute que vaacuterios documentos e comentaacuterios de pontiacutefices que poderiam conduzir a muitos esclarecimentos haviam sido destruiacutedos antes mesmo que autor tivesse podido consultaacute-los quando escrevia entre 27 e 25 aC sua obra Ab Vrbe Condita sobre a histoacuteria romana como se observa em

13 Qui Il re indossata una toga alla maniera di Gabii che gli copriva Il capo (cinctus Gabinus) dagrave inizio al rito etrusco de sulcus primigenius appena appreso dai sacerdoti etruschi convocati

14 Hi ex interregno cum extemplo magistratum inissent nulla de re prius quam de religionibus senatum consuluere in primis foedera ac leges - erant autem eae duodecim tabulae et quaedam regiae leges - conquiri quae comparerent ius-serunt alia ex eis edita etiam in uolgus quae autem ad sacra pertinebant a pontificibus maxime ut religione obstrictos haberent multitudinis animos suppressa

A perda de manuscritos ocasionou inuacutemeras lacunas para o estudo da religiatildeo arcaica romana poreacutem como assinala Tito Liacutevio muitas informaccedilotildees foram propositalmente ocultadas com o objetivo de manipular a populaccedilatildeo impelindo no povo certo receio em relaccedilatildeo aos cultos religiosos

Pode-se afirmar certamente que a palavra religiatildeo religio para os romanos possui caraacuteter bastante especiacutefico pois determina obrigaccedilotildees que devem ser cumpridas em relaccedilatildeo aos deuses Impelir esse sentimento na populaccedilatildeo garante aos governantes um meio poderoso de conseguir manipulaacute-la jaacute que os ritos religiosos natildeo tinham sido estabelecidos por um profeta ou por um poeta como havia acontecido com os gregos mas pelos chefes do estado romano

As palavras de Tito Liacutevio satildeo de suma importacircncia para o entendimento da manipulaccedilatildeo informativa elas tornam-se mais claras em nulla de re prius quam de religionibus senatum consuluere ldquonatildeo consultaram o Senado sobre nada antes que consultassem sobre as coisas religiosasrdquo que mostram dois momentos distintos acerca do saber religioso pois indica que aqueles que natildeo faziam parte da magistratura ou que natildeo ocupavam altos cargos religiosos natildeo tinham acesso a que realmente se referem os cultos

Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e Marco Fuacuterio Camilo parecem segundo o texto que natildeo tinham acesso a informaccedilotildees importantes sobre o funcionamento da religiatildeo por isso buscam no iniacutecio de sua magistratura magistratum inissent verificar primeiramente as coisas religiosas consuluere de religionibus e apenas posteriormente consultar o estado senatum consuluere sobre as decisotildees que deveriam ser tomadas por eles

A busca de ambos os magistrados conduz agrave descoberta de leis reacutegias e das Doze Taacutebuas que no texto natildeo fica claro se jaacute tinham sido organizadas erant autem eae duodecim tabulae et quaedam regiae leges ldquoporeacutem havia aquelas Doze Taacutebuas e algumas leis reacutegiasrdquo Essas leis foram ordenadas poreacutem o verbo usado por Tito Liacutevio pode conduzir a outras possibilidades de entedimento conquiro pode significar ldquoprocurar com empenho ou cuidadosamente ajuntar reunirrdquo tanto conduz agrave ideia de que as leis jaacute tinham sido ordenadas em um uacutenico documento quanto agrave ideia de que foram retiradas de vaacuterios documentos e ordenadas pelos magistrados

A maior relevacircncia para os estudos sobre a religiatildeo se apresenta em quae autem ad sacra pertinebant a pontificibus maxime ut religione obstrictos haberent multitudinis animos suppressa ldquoas que poreacutem referiam-se agraves coisas sagradas foram suprimidas sobretudo pelos pontiacutefices a fim de que os acircnimos das pessoas estivessem fortemente presos agrave religiatildeordquo pois as verdadeiras referecircncias natildeo eram permitidas ao povo de um modo geral para que esse povo sempre fosse conduzido por uma religiatildeo que era de interesse basicamente das classes dominantes e que provavelmente detinham o verdadeiro significado dos cultos e ritos religiosos

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A construccedilatildeo usada por Tito Liacutevio apresenta caraacuteter bem particular e representativo que garante ao seu texto um valor criacutetico das praacuteticas dominantes O uso do particiacutepio do verbo supprimo em suppressa poderia ter um valor bem mais intriacutenseco jaacute que pode tambeacutem significar ldquoafundar enterrar fazendo pressatildeo fazer desaparecerrdquo o que demonstra a possibilidade de que muitos documentos ligados agraves origens da religiatildeo romana foram propositalmente apagados suprimidos ou mesmo enterrados sob forte pressatildeo principalmente daquelas classes que detinham o poder e queria preservaacute-lo com uso de conhecimentos religiosos que fossem de seu interesse direto

Mesmo com a manipulaccedilatildeo de informaccedilotildees relevantes sobre a religiatildeo seus cultos permaneceram e muitas vezes se confundiam com a vida cotidiana e com a proacutepria histoacuteria da civilizaccedilatildeo romana como Georges Dumeacutezil (2000 p31) observa

A religiatildeo eacute sempre em qualquer lugar coisa atual e ativa seus ritos satildeo diaacuteria ou anualmente celebrados seus conceitos e seus deuses intervecircm na rotina dos tempos calmos como no ardor dos tempos de crise 15

A religiatildeo modera os acircnimos durante todo tempo nas guerras nas atividades diaacuterias nos dias escolhidos para a colheita havia sempre a consulta a um especialista em religiatildeo um sacerdote que definia qual seria a melhor escolha em caso de uma decisatildeo difiacutecil em qualquer esfera da sociedade As informaccedilotildees que natildeo eram divulgadas ao povo em geral conduziram a religiatildeo a manter sua proacutepria loacutegica interna e de certo modo tambeacutem sua autonomia Apesar de fazer parte da vida cotidiana de todas as camadas da populaccedilatildeo tal preservaccedilatildeo natildeo expocircs a religiatildeo a muitos eventos profanos Por um lado a manutenccedilatildeo de informaccedilotildees sigilosas pelos sacerdotes e poucos membros do estado preservaram em sua essecircncia o verdadeiro sentido dos cultos religiosos por outro tal manutenccedilatildeo natildeo forneceu possibilidades ao povo de ter conhecimento sobre os ritos que tanto influenciavam o seu cotidiano jaacute que segundo os romanos os deuses intervinham tanto nos tempos de paz quanto nos tempos de guerra ou de crise de qualquer natureza

Os elementos religiosos eram tatildeo inerentes agrave vida romana que a medida de tempo que era utilizada e chegava a todos sem distinccedilatildeo de classes ou funccedilatildeo ocupada foi inicialmente baseada em aspectos religiosos pois os pontiacutefices confeccionaram o calendaacuterio tendo em vista a observaccedilatildeo da natureza Essa concepccedilatildeo temporal atingia a todos pois muita supersticcedilatildeo se vinculava tambeacutem agrave medida de tempo conforme aponta Dioniacutesio de Halicarnassus

15 La religion est toujours en tout lieu chose actuelle et active ses rites sont journellement ou annuellement ceacuteleacutebreacutes ses concepts et ses dieux interviennent dans la routine des temps calmes comme dans la fiegravevre des temps de crise 16 Τῇ νέᾳ σελήνῃ ἡ Ὲλληνες μέν νουμηνίαν Ρωμαῖοι δὲ καλάνδρας καλοῦσιν

Em relaccedilatildeo agrave lua nova que os Helenos chamam de primeiro dia do mecircs os Romanos chamam de Kalendas 16

(Antiquitates Romanae VIII 55)

A religiatildeo eacute sempre em qualquer lugar coisa atual e ativa seus ritos satildeo diaacuteria ou anualmente celebrados seus conceitos e seus deuses intervecircm na rotina dos tempos calmos como no ardor dos tempos de crise 15

O mesmo criou os dias nefastos e fastos porque algumas vezes era uacutetil nada vir a ser tratado com o povo 18 (Ab Vrbe Condita I 19 7)

18 Idem nefastos dies fastosque fecit quia aliquando nihil cum populo agi utile futurum erat

A relaccedilatildeo de observaccedilatildeo das fases da lua para a definiccedilatildeo e estabelecimento das partes que compotildeem o mecircs ou mais propriamente o mecircs lunar tem direta ligaccedilatildeo com o conhecimento da natureza e do movimento dos corpos celestes consequentemente da religiatildeo e dos cultos religiosos A lua era observada pelo pontiacutefice menor que determinava a sua primeira fase que os helenos chamavam de νουμηνίαν os romanos de καλίνδρας em latim Kalendae em seguida o rei determinava os resultados da observaccedilatildeo do pontiacutefice o povo era convocado e se estabelecia em quais dias se dariam as nonae e os idus Conforme afirma T Mommsen (sd p339)

Novamente se verifica a determinaccedilatildeo de todas as camadas sociais pela religiatildeo o pontiacutefice como observador e inteacuterprete dos fenocircmenos naturais e divinos o rei como representante maior do estado e que devia determinar o que havia sido verificado pelo representante religioso Por sua vez as determinaccedilotildees religiosas eram seguidas por todos os membros da sociedade sacerdotes reis camponeses soldados artesatildeos Diante de tais observaccedilotildees natildeo se poderia esquecer o culto aos deuses que possibilitavam o entendimento da natureza ou mesmo enviavam suas mensagens atraveacutes do membro responsaacutevel por estabelecer o elo entre o mundo terreno e o divino o pontiacutefice Sobre isso Tito Liacutevio afirma

Essas praacuteticas fazem parte da cultura romana desde os mais remotos tempos em que a religiatildeo o estado a histoacuteria e os mitos das lendas romanas estavam tatildeo intimamente ligados que dificilmente se conseguia delimitar quais eram suas aacutereas de atuaccedilatildeo especificamente Desde a Roma arcaica segundo Tito Liacutevio fatos histoacutericos se confundiram com os mitos e as faacutebulas criadas pelos poetas transmitidas ao longo dos tempos conforme se observa na lenda de Numa Pompiacutelio sucessor de Rocircmulo como rei de Roma Numa Pompiacutelio que primeiro estabelecera os dias denominados de fas ou seja ldquoaqueles em que haacute a expressatildeo da ordem divina ou aqueles em que algo eacute permitido pelos deusesrdquo dias em que segundo o direito o pretor tomava suas decisotildees judiciais usando de expressotildees como do dico addico ldquoconcedordquo ldquodigordquo ldquoconsintordquo por sua vez os dias denominados de nefas eram ldquoaqueles em que algo era contraacuterio agraves leis divinas agraves leis da religiatildeordquo dias em que havia o culto dos deuses infernais e que eram improacuteprios para os afazeres terrestres

Pode-se verificar a influecircncia desses dias criados por Numa Pompiacutelio nos quais natildeo se devia tratar de qualquer que fosse o assunto passar ao longo da histoacuteria Conforme atestam textos de escritores latinos mais recentes Oviacutedio (43 - 18 aC) e

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Varratildeo (116 - 27 aC) fazem referecircncia a eles em seus escritos

Dias fastos durante os quais eacute permitido aos pretores profeti-zar todas as palavras sem impiedade[] o contraacuterio destes satildeo chamados os dias nefastos durante os quais (natildeo eacute permitido) o pretor profetizar ldquoconcedordquo ldquodigordquo ldquoconsintordquo assim natildeo pode se dizer 19

(De Lingua Latina VI 4)

Aquele seraacute nefasto durante o qual as trecircs palavras se silenciam Seraacute fasto durante o qual eacute permitido ser dito 20

(Fasti I 46-7)

Em nenhum momento da histoacuteria noacutes lemos que um destes sacerdotes tenha sido encarregado de fazer a partir de tal data outra coisa senatildeo o que fazia desde o iniacutecio[] Hoje noacutes sabe-mos quanto eacute recente nossa tradiccedilatildeo sobre Roma Sim mas que importa se no uacuteltimo seacuteculo da Repuacuteblica os homens da arte repetiam ainda fielmente as palavras e os gestos dos tempos re-ais 21

19 Dies fasti per quos praetoribus omnia uerba sine piaculo licet fari[] Contrarii horum uocantur dies nefasti per quos dies nefas fari praetorem ldquodordquo ldquodicordquo ldquoaddicordquo itaque non potest agi 20 Ille nefastus erit per quem tria uerba silentur Fastus erit per quem licebit agi 21 A aucun moment de lrsquohistoire nous lisons qursquoun de ces precirctres ait eacuteteacute charge de faire agrave partir de telle date autre chose que ce qursquoil faisait depuis le deacutebut[] Aujourdrsquohui nous savons combien est reacutecent notre tradition sur Rome Oui mais qursquoimporte si au dernier siegravecle de la Reacutepublique les hommes de lrsquoart reacutepeacutetaient encore fidegravelement les mots et les gestes des temps royaux

Vale salientar que mesmo com o distanciamento das eacutepocas em que viveram o personagem histoacuterico referenciado por Tito Liacutevio neste caso Numa Pompiacutelio que seria o criador dos dias nefas e fas e os autores Varratildeo e Oviacutedio os conceitos atribuiacutedos a esses dias permaneceram devido a suas atribuiccedilotildees religiosas Tito Liacutevio se refere agrave invenccedilatildeo desses dias afirmando que eles foram criados ainda na Roma arcaica Uma explicaccedilatildeo plausiacutevel para isso eacute apresentada O autor afirma que apoacutes o reinado de Numa ele tratou de estabelecer tratados de paz com os povos vizinhos e para que eles natildeo fossem violados idem nefastos dies fastosque fecit objetivando impelir o temor dos deuses naqueles povos baacuterbaros e rudes

Apesar do distanciamento temporal de mais de cinco seacuteculos que separa os autores Tito Liacutevio e Oviacutedio dos atos religiosos da Roma arcaica Georges Dumeacutezil afirma que a perda de manuscrito do iniacutecio da civilizaccedilatildeo romana e a ausecircncia de fontes informativas seguras que datem dos primoacuterdios da civilizaccedilatildeo romana natildeo satildeo fatores determinantes que conduzam a natildeo compreensatildeo da religiatildeo durante a Monarquia romana Para Dumeacutezil (2000 p 98-103)

Se os sacerdotes desde os primoacuterdios estiveram encarregados das mesmas funccedilotildees que sempre exerceram desde o iniacutecio da religiatildeo romana natildeo se mostra problemaacutetico o uso de textos de autores do seacutec I aC ou mesmo de eacutepocas mais

Varratildeo diz tambeacutem que os antigos romanos tecircm cultuado os deuses sem simulacros mais de cento e setenta ano 22 (De Ciui-tate Dei IV 31)

22 (Varro) dicit etiam antiquos Romanos plus annos centum e septuaginta deos sine simulacro coluisse

recentes como os escritos de Santo Agostinho acerca das caracteriacutesticas dos ritos religiosos romanos Mesmo que seja recente nossa tradiccedilatildeo sobre a religiatildeo romana se as palavras e gestos usados durante os cultos se conservaram esses autores da nossa recente tradiccedilatildeo devem ser considerados autoridades pois satildeo as uacutenicas fontes conservadas das eacutepocas mais remotas

Na Roma arcaica e em outras sociedades estabelecer as relaccedilotildees sociais e de bom conviacutevio entre os cidadatildeos de uma mesma cidade ou mesmo de povos vizinhos pode ser considerada uma funccedilatildeo baacutesica atribuiacuteda agrave religiatildeo mesmo que certos contratos sociais de civilidade sejam estabelecidos atraveacutes da supersticcedilatildeo religiosa e do medo associado a essas praacuteticas

Nos primeiros seacuteculos da histoacuteria romana o culto aos deuses era proveniente de uma evoluccedilatildeo consciente que fixava as leis e os caracteres recebidos dos primeiros reis nessa eacutepoca o culto romano diferia do praticado pelos gregos jaacute que os romanos natildeo representavam os deuses por meio de estaacutetuas ou simulacros Satildeo quase dois seacuteculos para que os romanos comeccedilassem a representar os seus deuses agrave semelhanccedila dos gregos isto eacute por meio de suas imagens conforme as palavras de Varratildeo apud Santo Agostinho

Partindo do princiacutepio de que os deuses na Roma arcaica natildeo satildeo representados por simulacros coluisse sine simulacro ldquotecircm cultuado os deuses sem simulacrosrdquo podem ser estabelecidas as devidas comparaccedilotildees com a religiatildeo grega pois partem de princiacutepios evolutivos semelhantes Como se pode observar na Teogonia de Hesiacuteodo (v 116-122) os gregos natildeo costumavam apresentar os deuses primordiais Caos Terra Taacutertaro e Eros personificados diferentemente do que acontecia com os demais deuses principalmente com aqueles que se destacaram apoacutes a organizaccedilatildeo do cosmos por Zeus

Desse modo pode-se observar um princiacutepio de semelhanccedila entre as duas culturas Somente apoacutes a estruturaccedilatildeo do cosmos mesmo considerando as referecircncias poeacuteticas os deuses passam a ser representados semelhantemente aos seres humanos uma vez que a forma humana era entendida como mais desenvolvida e completa em se estabelecendo as devidas comparaccedilotildees com os animais desprovidos de razatildeo

Partindo de tal princiacutepio e de tal semelhanccedila a religiatildeo romana parece seguir os mesmos passos da grega pois os deuses inicialmente natildeo eram personificados eram entendidos como forccedilas naturais Somente com a evoluccedilatildeo religiosa e o contato com a cultura grega houve a necessidade de representaacute-los em formas mais concretas personificados

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Apesar de o momento a que se refere Santo Agostinho cronologicamente estar bastante distante do mito explicativo da origem e organizaccedilatildeo coacutesmica sugerido por Hesiacuteodo o seu caraacuteter evolutivo eacute bastante semelhante Os romanos aproximadamente entre os primeiros anos de monarquia 753 aC e 583 aC natildeo representaram seus deuses personificados e os gregos segundo a explicaccedilatildeo miacutetica de Hesiacuteodo tambeacutem natildeo personificavam os seus deuses primordiais Essa comparaccedilatildeo conduz a uma forma mais ruacutestica do princiacutepio religioso em que haacute apenas a associaccedilatildeo dos deuses com as forccedilas primitivas da natureza ou seja as divindades eram apenas abstraccedilotildees sem uma representaccedilatildeo fiacutesica nem mesmo havia a associaccedilatildeo divina com a forma humana que seria considerada a mais bela e perfeita das formas e que conduziria a grandes desavenccedilas filosoacuteficas durante o seacuteculo I aC em Roma A representaccedilatildeo primitiva de certa forma em seu mais alto grau de abstraccedilatildeo garantia aos cultos dos deuses mais pureza representativa

A respeito de tal ausecircncia de representaccedilatildeo divina Georges Dumeacutezil (2000 p 44-45) faz indagaccedilotildees

Por que os primeiros romanos natildeo representavam Marte nem mesmo outros deuses Seguindo Varratildeo percebemos eacute apenas falta de maturidade artiacutestica () por reverecircncia pelo sentimen-to de que toda representaccedilatildeo e tambeacutem todo ldquoencerramento em um templordquo seria um aprisionamento Pode ser enfim por eles natildeo sentirem necessidade natildeo eacute necessaacuterio colocar como equi-valecircncias necessaacuterias e reciacuteprocas ldquopersonalidade = contornordquo ldquoantropomorfismo = figuraccedilatildeordquo 23

23 ldquoPourquoi les premiers Romains ne figuraient-ils pas Mars ni drsquoailleurs drsquoautres dieux Suivant Varron on lrsquoa vu crsquoest seulement faute de maturiteacute artistique () par reacuteveacuterence par le sentiment que tout repreacutesentation et aussi toute ldquomise en templerdquo serait un emprisonnement Ce peut ecirctre enfin parce qursquoils nrsquoen eacuteprouvaient pas le besoin il ne faut pas poser comme des eacutequivalences neacutecessaires et reacuteciproques ldquopersonnaliteacute = contourrdquo ldquoantropomorphisme = figurationrdquo

Seria pouco plausiacutevel considerar apenas a afirmaccedilatildeo de que a ausecircncia de representaccedilatildeo artiacutestica das coisas divinas era falta de maturidade no acircmbito da arte evidentemente que natildeo permaneceram muitos artefatos que a pudessem comprovar apenas alguns bastante ruacutesticos poreacutem eacute mais aceitaacutevel a segunda afirmaccedilatildeo de que toda representaccedilatildeo artiacutestica seria um aprisionamento fato que corrobora as palavras de Varratildeo a religiatildeo romana arcaica estava mais preocupada com a natureza e com o entendimento de seus elementos do que com a mera representaccedilatildeo em simulacros de suas forccedilas naturais de seus deuses Isso demonstra que a observaccedilatildeo da natureza pelos antigos era acentuada e revela modificaccedilotildees religiosas no decorrer da histoacuteria romana a partir do momento em que os deuses passam a ser representados por iacutecones que se assemelham agrave figura humana ou mesmo agrave figura de animais

Com as representaccedilotildees que aconteceriam apoacutes os dois primeiros seacuteculos da histoacuteria romana os deuses deixam de ter caraacuteter meramente abstrato e o distanciamento entre deuses e seres humanos diminui garantindo aqueles por meio de seus simulacros teor mais concreto Por um lado tornavam-se menos abstratos os cultos religiosos jaacute que as forccedilas naturais e seus representantes passaram a ser vistos

24 Sacrorum autem ipsorum diligentiam difficilem apparatum perfacilem esse uoluit nam quae perdiscenda quaeque obseruanda essent multa constituit sed ea sine impensa

em forma de simulacros por outro lado os deuses passaram a fazer parte do cotidiano dos romanos estavam mais proacuteximos e por isso segundo as crenccedilas populares tambeacutem passaram a agir como os seres humanos sentiam oacutedio amor rancor medo e todos os demais sentimentos tiacutepicos da humanidade Nesse momento os deuses passaram a se relacionar com os humanos em atos de tamanha intimidade que geraram vaacuterios semideuses filhos de deuses com humanos

Apesar dos primitivismos religiosos da eacutepoca arcaica romana e de suas concepccedilotildees que se distanciavam daquelas presentes em Roma no seacutec I aC os ritos religiosos primitivos eram bastante complexos apenas os instrumentos usados neles eram simples fato que reforccedila a afirmaccedilatildeo de Georges Dumeacutezil a respeito da falta de maturidade artiacutestica dos romanos Ciacutecero afirma a respeito dos ritos religiosos na Roma arcaica

Poreacutem das proacuteprias coisas sagradas decidiu que a aplicaccedilatildeo fos-se difiacutecil o instrumento fosse muito simples pois aquelas coisas devem ser aprendidas por inteiro cada uma deve ser observada instituiu muitas coisas mas aquelas sem instrumentos 24 (De Re Publica II 14 27)

A afirmaccedilatildeo de Ciacutecero reforccedila o pensamento de Georges Dumeacutezil de que a arte na Roma arcaica era precaacuteria sem grandes representaccedilotildees de instrumentos muito simples apparatum perfacilem poreacutem os cultos eram muito complexos de difiacutecil aplicaccedilatildeo diligentiam difficilem fatores que garantiam aos sacerdotes a completa manipulaccedilatildeo dos ritos religiosos e tambeacutem a preservaccedilatildeo dos ideais dos reis jaacute que nesse momento religiatildeo e estado estavam intimamente ligados na conservaccedilatildeo tanto dos ritos religiosos quanto na manipulaccedilatildeo do povo que natildeo tinha acesso ao manuseio dos cultos

Eacute importante observar que os cultos na Roma arcaica natildeo reverenciavam ou invocavam apenas um uacutenico deus em cada ritual era comum a reverecircncia e a invocaccedilatildeo coletiva dos deuses por parte dos sacerdotes quer fosse um ritual de prece quer fosse de sacrifiacutecio aos deuses Ato semelhante eacute realizado por Virgiacutelio (70 ndash 19 aC) apesar de ser um poeta do seacutec I aC no proecircmio de seu poema Geoacutergicas apoacutes fazer a dedicatoacuteria a Mecenas e anunciar os temas que seratildeo abordados pelo poema O poeta realiza entre os versos 1 e 42 a invocaccedilatildeo dos deuses do ceacuteu da terra e do mar que protegem os pastores e os camponeses respectivamente Liber e Ceres (v7) Acheloias (v9) Neptunus (v14) Minerua (v18) Siluanus (v20) e Tethys (v31)

O ato de invocaccedilatildeo coletiva de Virgiacutelio muito tem de semelhante com as praacuteticas religiosas do periacuteodo arcaico romano o problema maior eacute aquele a que se refere Ciacutecero diligentiam difficilem pois pouco se sabe sobre os rituais profanos da Antiguidade haja vista que a maior parte dos manuscritos natildeo se conservou e muitas das inferecircncias satildeo

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feitas por analogia com os rituais realizados no periacuteodo claacutessico romano

T Mommsen menciona uma lista com doze deuses que estatildeo associados agrave simples personificaccedilatildeo dos atos realizados pelos homens e que raramente satildeo citados pelos escritores do periacuteodo claacutessico Esses deuses revelam certo grau de primitivismo da religiatildeo romana arcaica em que se tentava compreender a natureza e suas forccedilas sem preocupaccedilatildeo com sua representaccedilatildeo por meio de simulacros Segundo T Mommsen (sd p11)

Estes satildeo Veruactor para o primeiro trabalho dado ao terreno Redarator para o segundo trabalho Imporcitor para percorrer o traccedilo do arado Insitor para fazer a semeadura Arator para o novo trabalho Occator para o cultivo Sarritor para cavar com a enxada Subruncinator para livrar o cultivo de maacutes ervas Mes-sor para a colheita Conuector para juntar a colheita Conditor para reintroduzi-la Promitor para retiraacute-la do celeiro 25

Esses deuses reafirma T Mommsen seriam a simples personificaccedilatildeo dos atos que eles representavam e estavam tatildeo presentes na mente romana arcaica que posteriormente passaram a nomear os profissionais responsaacuteveis por seu desempenho e natildeo as divindades Redarator passou a ser o camponecircs que arava novamente o campo arator o lavrador occator o gradador sarritor o sachador messor o que colhe os frutos conditor o que faz algo promitor o que faz brotar Era a accedilatildeo praticada pelos camponeses que os nomeava accedilatildeo em primeiro lugar atribuiacuteda aos deuses apenas realizadas com sua concessatildeo mas que posteriormente passou a nomear o proacuteprio ato realizado ganhando conotaccedilatildeo mais humana e se distanciando da divina

O distanciamento e as novas atribuiccedilotildees das palavras podem estar associados agraves novas concepccedilotildees religiosas desenvolvidas pelos romanos a partir da instituiccedilatildeo da Repuacuteblica entre 507 e 27 aC periacuteodo em que os deuses jaacute seriam representados por simulacros e em que a cultura romana sofreu bastante influecircncia da grega Se houve a desvinculaccedilatildeo dessas palavras da forccedila divina haveria a necessidade de que existisse a invenccedilatildeo ou substituiccedilatildeo dessas forccedilas entatildeo os deuses ganharam novas e mais concretas representaccedilotildees muitos deles por exemplo que estavam ligados ao cultivo da terra foram substituiacutedos ou associados a Ceres

Na Roma arcaica aleacutem dos deuses que se associavam agraves atividades com a terra havia muitos outros deuses que os romanos acreditavam estarem ligados agraves mais diversas atividades ou fases da vida humana Servindo-se dos poucos textos conservados T Mommsen classifica esses deuses ligando-os agraves diversas fases da vida em sete grupos A partir dos comentaacuterios de autores do periacuteodo claacutessico podem-se

25 ldquoCe sont Veruactor pour le premier labour donneacute agrave la friche Redarator pour le deuxiegraveme labor Imporcitor pour traverser les sillons Insitor pour faire les semailles Abarator pour le nouveau labour Occator pour le hersage Sarritor pour houer Subruncinator pour le sarclage Messor pour la moisson Conuector pour rassembler la reacutecolte Conditor pour la rentrer Promitor pour la retirer des greniersrdquo

estabelecer comparaccedilotildees a fim de se ter uma ideia de qual seria o pensamento dos romanos arcaicos sobre as forccedilas da natureza e as atribuiccedilotildees dos deuses na Antiguidade

O primeiro grupo eacute o dos deuses que se relacionam com o desenvolvimento do homem desde a sua concepccedilatildeo ateacute o seu nascimento Janus Consiuius Saturnus Liber et Libera Fluonia Alimonia Nona Decima Partula Vitumnus Sentinus O segundo grupo eacute o dos deuses que concedem o nascimento Juno Lucina et Diespiter que permitem o nascimento da crianccedila Candelifera que conduz a vela ateacute o parto Carmentes Prorsa et Postuerta Egeria Numeria O terceiro satildeo as divindades invocadas apoacutes o nascimento Intercidona Deuerra Pilumnus Picumnus Opis Deus Vagitanus Cunina Rumina Nundina Geneta Mana que protege contra a morte aqueles que nascem em casa Fata Scribunda que fixam o destino do nascido O quarto grupo eacute o dos deuses da primeira infacircncia Potina et Educa que ensinam a crianccedila a comer e a beber Cuba que protege a crianccedila transportada da cama Ossipago Carna que fortalece a pele Leuana que apoia sobre a terra Statanus Statilinus Statina que ensina a crianccedila a ficar em peacute Abeona et Adeona que ensinam seus primeiros passos Farinus et Fabulinus que ensinam a falar O quinto grupo eacute composto pelos deuses da adolescecircncia Iterduca et Domiduca que acompanham os adolescentes quando eles saem Mens Deus Catius pater Consus et Sentia que lhes datildeo inteligecircncia Diuus Volumna Diua Volumna aut Voleta Stimula Diua Peta que lhes datildeo a vontade Praestana aut Praestitia Pollentia Agonius Peragenor Agenoria Strenia que lhes datildeo forccedila Numeria et Camena que lhes ensinam a contar e a cantar Minerua que fortalece sua memoacuteria Pauentia aut Pauentina que afasta o medo Venilia que lhes daacute esperanccedila Volupia Lubentina aut Lubia et Liburnus que procuram as alegrias da juventude Juuentas et Fortuna barbata que protegem os adultos O sexto grupo eacute dos deuses do casamento Juno iuga Deus Jugatinus Domiducus Domitius Manturna Unxia Cinxia Virginiensis dea Mutunus Tutunus O seacutetimo grupo eacute composto pelas divindades protetoras das diversas fases da vida Tutanus et Tutilina que satildeo invocados em momentos de afliccedilatildeo Viriplaca que reconcilia os esposos Orbona a quem os oacuterfatildeos fazem suas preces Caeculus o deus dos cegos Viduus que separa a alma do corpo e a quem se implora quando se estaacute em situaccedilatildeo que pode levar agrave morte Libitina et Nenia que satildeo as deusas da morte

T Mommsen organiza os deuses seguindo o ciclo da vida humana desde a sua concepccedilatildeo ateacute a morte aleacutem disso muitas palavras que eram usadas pelos romanos para nomeaacute-los tinham significado intriacutenseco com a accedilatildeo desempenhada pelo deus Diespiter eacute composto de dies ldquodiardquo acrescido de piter gt pater ldquopairdquo o que concede a luz do dia ou seja o nascimento Candelifera composto de candela ldquovelardquo acrescido de fero ldquoconduzir levarrdquo isto eacute a que ilumina para o nascimento Fata Scribunda composto de fata lt fatum ldquodestinordquo acrescido de scribunda lt scribo ldquomarcar assinalarrdquo ou seja a que assinala o destino Abeona composto de ab preposiccedilatildeo que indica afastamento acrescido de eo ldquoir andarrdquo ou seja o oposto de Adeona pois uma ensina o caminho de ida e a outra o de volta Iterduca composto de iter ldquocaminhordquo acrescido de duco ldquolevar conduzirrdquo juntamente com Domiduca composto de domus ldquocasardquo acrescido de duco ensinam o caminho de volta para a casa

Essa ligaccedilatildeo da accedilatildeo com a palavra atribuiacuteda ao deus pode ser considerada

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um dos fatores que fazia com que os romanos arcaicos natildeo representassem as suas divindades por meios fiacutesicos pois consideravam a accedilatildeo divina bem mais ampla do que sua mera representaccedilatildeo garantindo ao deus um campo de atuaccedilatildeo que natildeo se restringia apenas ao templo ou agrave cidade em que estivesse inserido como se acreditava no Periacuteodo Claacutessico

Havia vaacuterios deuses associados agraves mais diversas atividades da vida humana divindades arcaicas que satildeo pouco mencionadas no seacutec I aC ou que caiacuteram no completo esquecimento dos romanos T Mommsen se refere a alguns Tutanus e Tutilina que satildeo invocados em momentos de afliccedilatildeo Viriplaca que reconcilia os casais Caeculus que eacute o deus dos cegos Viduus que separa a alma do corpo a quem se implora quando haacute proximidade da morte Libitina e Nenia que satildeo as deusas da morte

Com a economia basicamente baseada na atividade agriacutecola natildeo seria de se admirar que houvesse um grande nuacutemero de deuses protetores da terra e de seu cultivo geralmente comeccedilado por Janus Os deuses vinculados agrave agricultura desempenhavam funccedilotildees bem especiacuteficas Sator era o deus da plantaccedilatildeo Seia deusa da terra semeada Segeia deusa das plantaccedilotildees Proserpina deusa das plantas germinadas Nodutus estabelecia a germinaccedilatildeo Volutina estabelecia a precipitaccedilatildeo das vagens Patelana fazia aparecer as vagens e brotar as espigas Hostilina fazia crescer os novos frutos Flora deusa das pradarias que fazia florescer os gratildeos Lactans que vertia os frutos e os fazia se esconder Lacturnus que protegia os trigos receacutem-gerados Matuta que os tornava maduros Rucina que os sachava e os tirava da terra Messia deusa da colheita Terensis que protegia os frutos debulhados Picumnus Pilumnus Stercutius Sterquilinius Spiniensis que erradicavam as dificuldades

Assim como o campo e as atividades desenvolvidas nele as partes das casas romanas e os ambientes puacuteblicos tambeacutem tinham suas divindades especiacuteficas que garantiam a proteccedilatildeo dos lugares S Agostinho afirma

Esses estabeleceram trecircs deuses Forculus para as portas da casa Cardea para o eixo Limentius para a soleira da porta Assim natildeo poderia ao mesmo tempo Forculus guardar o eixo da porta e a soleira da porta 26

(De Ciuitate Dei IV 8)

26 Tres deos isti posuerunt Forculum foribus Cardeam cardini Limentium limini Ita non poterat Forculus simul et cardinem limenque seruare

As palavras de Santo Agostinho exemplificam bem o sentimento religioso do romano arcaico que atribuiacutea funccedilotildees especiacuteficas a cada divindade apesar de Forculus Cardea e Limentius terem a mesma funccedilatildeo ou seja garantir a proteccedilatildeo da casa essa proteccedilatildeo estava vinculada apenas a partes bastante especiacuteficas o que garantia a preservaccedilatildeo na memoacuteria da populaccedilatildeo a respeito da existecircncia de muitos deuses fato que com a evoluccedilatildeo da civilizaccedilatildeo e da religiatildeo romanas gradativamente vai se perdendo fazendo com que muitos desses deuses fossem esquecidos Assim natildeo seria inexplicaacutevel a diminuiccedilatildeo no nuacutemero de deuses entre os romanos pois muitas vezes

houve a associaccedilatildeo dessa multiplicidade de deuses e de suas funccedilotildees a uma uacutenica divindade que por sua vez prevaleceu sobre as demais e manteve a preservaccedilatildeo de sua memoacuteria entre os romanos

Os espaccedilos que rodeavam as casas e muitos objetos tambeacutem estavam sob a proteccedilatildeo dos deuses Rusina protegia o campo rus Jugatinus protegia o jugo que atrelava os cavalos juga Collatina protegia as colinas colles Vallonia guardava os vales ualles Alguns garantiam a preservaccedilatildeo de localidades especiacuteficas como o monte Vaticano Vaticanus mons que era guardado por Vaticanus e o monte Aventino Auentinus mons que era protegido por Auentinus

Haacute de se observar que os primitivos romanos por vezes confundiam os dons divinos com os proacuteprios deuses o que conduz ao pensamento de que quando eles natildeo descobriam os nomes dos deuses que atuavam em determinada situaccedilatildeo atribuiacuteam-lhes o proacuteprio nome das coisas tal atribuiccedilatildeo geralmente se dava atraveacutes do processo de derivaccedilatildeo das palavras conforme se verifica em Bellona lt bellum (guerra) Cunina lt cuna (berccedilo) Segetia lt seges (seara) Bubona lt bos (boi) Pomona lt poma (fruto)

As palavras que nomeiam todos esses deuses assim como muitos daqueles que garantiam o desenvolvimento da crianccedila e a conduziam ateacute a fase adulta possuem o mesmo radical dos lugares ou dos objetos nomeados Entende-se entatildeo que a religiosidade romana arcaica natildeo estava delimitada apenas a alguns locais especiacuteficos em que se realizavam os cultos tambeacutem natildeo se restringia a alguns instrumentos usados nos ritos religiosos fato que pode explicar a utilizaccedilatildeo da mesma raiz da palavra atribuiacuteda agrave divindade ao lugar e ao objeto protegido pelo deus Rusina e rus Jugatinus e juga Collatina e colles Vallonia e ualles os respectivos homocircnimos Vaticanus mons e Vaticanus Auentinus mons e Auentinus

Tambeacutem atribuiacuteam sem qualquer alteraccedilatildeo da palavra o nome da coisa agraves seguintes divindades Pecunia deusa que concedia os bens (pecunia) Virtus deusa que concedia a virtude (uirtus) Honor deusa que dava a honra (honor) Concordia deusa que permitia a concoacuterdia (concordia) Victoria deusa que concedia a vitoacuteria (uictoria) Verifica-se assim tamanha confusatildeo em se fazer a distinccedilatildeo entre a divindade e o dom por ela concedido como afirma S Agostinho

Assim dizem quando se diz que a Felicidade eacute uma deusa natildeo eacute a proacutepria felicidade que eacute concedida mas aquela divindade por quem a felicidade eacute concedida 27 (De Ciuitate Dei IV 24)

27 Ita inquiunt cum Felicitas dea dicitur non ipsa quae datur sed numen illud adtenditur a quo felicitas datur

Assim divindade e atribuiccedilatildeo divina eram constantemente confundidas sem que houvesse clareza distintiva entre o ser e a accedilatildeo produzida Isto promovia na Roma arcaica certamente dois aspectos distintos em primeiro lugar a preservaccedilatildeo da pureza do culto devido agrave ausecircncia da representaccedilatildeo das divindades por meio de simulacros

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em segundo lugar uma possiacutevel confusatildeo generalizada entre os deuses e os dons por eles concedidos

Apesar da existecircncia de muitos deuses com funccedilotildees particulares as suacuteplicas lhes eram atribuiacutedas com especificidade e indicaccedilatildeo de seus poderes o que segundo as crenccedilas romanas garantia a atenccedilatildeo por parte da divindade invocada Se natildeo houvesse certeza sobre qual deus se deveria invocar para a realizaccedilatildeo de determinada accedilatildeo fazia-se uso de uma foacutermula geral conforme atesta Seacutervio

Juacutepiter todo poderoso ou por qual outro nome desejares ser chamado 28 (Ad Aeneidem VI 166)

Essa invocaccedilatildeo generalizada pode ser considerada uma das causas do desaparecimento na tradiccedilatildeo romana sobretudo no periacuteodo claacutessico da literatura romana de muitas divindades que faziam parte da cultura arcaica poreacutem soacute com o advento da Repuacuteblica entre 507 a C e 27 aC a figura de Juacutepiter passa a se destacar atraveacutes do uso da expressatildeo invocatoacuteria Iupiter omnipotens atribuindo a este deus uma espeacutecie de incorporaccedilatildeo de muitos outros que foram paulatinamente esquecidos

Tal fato fez com que a figura de Juacutepiter se sobressaiacutesse em relaccedilatildeo agrave figura de Jano sobretudo posteriormente quando a literatura latina passou a sofrer influecircncia da grega em que a figura de Ζεύς Πατήρ (piter) era constantemente exaltada venerada nomeada por Hesiacuteodo como ldquopai dos deuses e dos homensrdquo devido a seus feitos em relaccedilatildeo agrave organizaccedilatildeo do Cosmos e seus atributos guerreiros aleacutem de ser o deus disseminador o que espalha o secircmen Por isso Vergiacutelio faz uso de expressotildees como diuum pater atque hominum rex ldquopai dos deuses e rei dos homensrdquo hominum sator atque deorum ldquosemeador dos homens e dos deusesrdquo pater summus ldquosumo pairdquo pater omnipotens ldquopai onipotenterdquo e Iupiter omnipotens ldquoJuacutepiter onipotenterdquo que seriam meras traduccedilotildees das expressotildees usadas por Hesiacuteodo

Por outro lado a unificaccedilatildeo de vaacuterias divindades na figura de Juacutepiter fazia com que ele fosse invocado por uma multiplicidade de epiacutetetos em diferentes lugares da Roma arcaica Conforme verifica T Mommsen (sd p27) havia um Iupiter Libertas um Iupiter Iuuentus um Iupiter Fulgur um Iupiter Pecunia um Iupiter Lapis um Iupiter Liber Certamente esses qualificativos atribuiacutedos a Juacutepiter estavam associados agrave sua capacidade no desempenho de vaacuterias funccedilotildees Primeiramente era uma forma de especificar o seu poder de realizaccedilatildeo verificado no adjetivo omnipotens observado por Seacutervio em segundo lugar determinava as funccedilotildees que anteriormente eram realizadas por outras divindades arcaicas

Apuleio menciona alguns dos qualificativos de Juacutepiter garantindo ao deus uma infinidade de funccedilotildees naturais e guerreiras

28 Jupiter omnipotens uel quo alio nomine appellari uolueris

29 Fulgurator et Tonitrualis et Fulminator etiam Imbricitor et item Serenator et plures eum Frugiferum uocant multi urbis Custodem alii Hospitalem Amicalem et omnium officiorum nominibus appellant Est Militaris et Triumphator et Propagator Tropaeophorus 30 Dixerunt eum Victorem Inuictum Opitulum Inpulsorem Statorem Centumpedam Supinalem Tigillum Almum Ruminum et alia quae persequi longum est 31 Saliorum quoque antiquissimis carminibus deorum deus canitur[] patrem inuocamus quasi deorum deum

Fulgurator tanto Tonitrualis quanto Fulminator tambeacutem Im-bricitor e aleacutem disso Serenator muitos tambeacutem o chamam de Frugiferum muitos o chamam de Protetor da cidade outros de Hospitaleiro de Amigaacutevel e por muitos nomes de todos os ofiacute-cios Eacute Guerreiro tanto Triunfador quanto Conquistador Vence-dor 29 (De Mundo XXXVII)

Chamaram-no Victor Inuictus Opitulus Inpulsor Stator Cen-tumpedam Supinalis Tigillus Almus Ruminus e outros nomes que eacute longo de se prosseguir 30 (De Ciuitate Dei VII 11)

O deus dos deuses eacute cantado tambeacutem nos antiquiacutessimos cantos dos Saacutelios [] Invocamos o deus como se fosse o pai dosdeuses 31 (Saturnais I 9 14 I 9 16)

A respeito dos nomes recebidos por Juacutepiter S Agostinho comenta que o deus era em si mesmo um conjunto de vaacuterios deuses devido aos muacuteltiplos poderes a ele associados

Essa infinidade de qualificativos fazia com que o deus certamente fosse lembrado constantemente por seus feitos grandiosos e por seus atributos que poderiam beneficiar aquele que os invocasse A atribuiccedilatildeo do epiacuteteto dependeria da situaccedilatildeo em que se encontrava a pessoa que o invocava Se se encontrasse em situaccedilatildeo adversa causada por forccedilas naturais invocaria certamente o Iupiter Fulgurator ou o Tonitrualis ou o Fulminator ou o Imbricitor ou o Serenator ou o Frugiferum se se encontrasse em situaccedilatildeo de guerra certamente invocaria o Iupiter Militaris Triumphator Propagator Tropaeophorus Victor Inuictus Opitulus Inpulsor e Stator

S Agostinho especifica os vaacuterios atributos de Juacutepiter gerados pelas vaacuterias accedilotildees capazes de serem realizadas pelo deus as quais estatildeo presentes em seus qualificativos criados pelos processos de derivaccedilatildeo e de composiccedilatildeo Fulgurator lt fulgor ldquorelacircmpagordquo Tonitrualis lt tonitrus ldquotrovatildeordquo Fulminator lt fulmen ldquoraiordquo Imbricitor lt imbricus ldquode chuva chuvosordquo Serenator lt serenatus ldquoque torna tranquilordquo Frugiferum lt frux mais fero ldquogerador de frutosrdquo

No entanto o destaque recebido por Juacutepiter em ser o primeiro entre os deuses imortais natildeo se daria no Periacuteodo Arcaico romano entre 753 aC e 509 aC mas durante o regime republicano porque Roma sofreria grande influecircncia da cultura grega No iniacutecio da Repuacuteblica romana o primeiro entre os deuses ainda era Jano conforme observa Macroacutebio

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Eacute importante observar que apesar de Macroacutebio ser um comentador tardio nascido no seacutec IV dC seus comentaacuterios sobre os costumes dos primeiros romanos satildeo bastante relevantes incluindo em seu texto uma construccedilatildeo tipicamente grega retirada de Hesiacuteodo πατήρ θεῶν correspondendo em latim a pater deorum Tal comparaccedilatildeo conduz a uma equiparaccedilatildeo de tratamento entre o pai dos deuses pater deorum dos latinos que durante todo o Periacuteodo Monaacuterquico e iniacutecio do Republicano foi Jano e o pai dos deuses πατήρ θεῶν dos gregos que sempre fora Zeus

Um pouco antes do iniacutecio da Repuacuteblica romana aleacutem de existir uma hierarquia entre os deuses no que tange ao grau de importacircncia existia tambeacutem uma hierarquia entre os sacerdotes responsaacuteveis pela realizaccedilatildeo dos rituais religiosos A relevacircncia sacerdotal apresentava-se respectivamente da seguinte maneira em primeiro lugar estava o Rex seguido do Flamen Dialis Flamen Martialis Flamen Quirinalis e por uacuteltimo o Pontifex Maximus Entre os deuses o lugar de maior relevacircncia era ocupado por Jano seguido por Juacutepiter em terceiro lugar estava Marte que era seguido por Quirino

A hierarquia divina foi alterada ainda na Roma arcaica no Periacuteodo Monaacuterquico eacutepoca em que houve a fusatildeo entre os Ramnes que ocupavam o monte Palatino e os Sabinos que ocupavam o monte Quirinal A uniatildeo entre esses dois povos conduziu agrave mistura dos ritos dos sacerdotes dos deuses poreacutem a superioridade dos Ramnes se sobressaiu impondo sua hierarquia sacerdotal conforme afirma T Mommsen (sd p35)

Jaacute esta primeira mistura das duas raccedilas parece ter tido uma in-fluecircncia capital sobre as transformaccedilotildees da religiatildeo dos Ramnes Marte e Quirino nos aparecem desde entatildeo como os represen-tantes poliacuteticos das duas raccedilas Juacutepiter como o protetor de toda a naccedilatildeo enfim Jano que era outrora o primeiro dos deuses para os Ramnes cai pouco a pouco no esquecimento 32

A mistura entre as duas raccedilas ocasionou mudanccedilas significativas sobretudo em relaccedilatildeo agrave religiatildeo dos Ramnes e em relaccedilatildeo agrave modificaccedilatildeo da hierarquia religiosa romana primitiva A partir desse momento Juacutepiter passaria a desempenhar um papel singular e a se sobressair sobre a figura de Jano Quais seriam as causas de tal mudanccedila hieraacuterquica divina Por que deste momento em diante Juacutepiter passaria a Pater deorum fato que lhe atribuiria tantos epiacutetetos

A causa de alteraccedilatildeo hieraacuterquica dos deuses nos dizeres de Santo Agostinho foi explicada por Varratildeo

Por ter nas matildeos as coisas uacuteltimas penes Iouem summa Juacutepiter passou a ser mais reverenciado do que Jano que tinha em matildeos as coisas primeiras penes Ianum

32 Deacutejagrave ce premier meacutelange des deux races parait avoir eu une influence capitale sur les transformations de la religion de Ramnes Mars et Quirinus nous apparaissent depuis lors comme les repreacutesentants politiques des deux races Jupiter comme le protecteur suprecircme de toute la nation enfin Janus qui eacutetait autrefois le premier des dieux pour les Ramnes tombe peu agrave peu dans lrsquooubli

33 Hoc nobis uir ille acutissimus doctissimusque respondeat ldquoQuoniam penes Ianum inquit sunt prima penes Iouem summardquo

Entatildeo aquele homem tatildeo douto e tatildeo astuto responda-nos ldquoporque nas matildeos de Jano diz ele estatildeo as primeiras coisas nas matildeos de Juacutepiter estatildeo as uacuteltimas 33

(De Ciuitate Dei VII 9)

sunt prima Natildeo se trata unicamente de uma relaccedilatildeo sequencial de fatos e referecircncias mas de uma representaccedilatildeo valorativa dos romanos primitivos que satildeo explicitados por Varratildeo A Juacutepiter associavam as soluccedilotildees as superaccedilotildees as vitoacuterias em vaacuterios aspectos da vida desse modo Juacutepiter passou a ser o primeiro entre os deuses romanos superando em todos os aspectos os atributos dos demais deuses Jano era entendido como a causa o que propiciava o iniacutecio da accedilatildeo poreacutem o desenlace das causas a superaccedilatildeo dos desafios iniciais era garantida por Juacutepiter fatos que lhe propiciaram os mais variados epiacutetetos

A observaccedilatildeo dos fatos relacionados a Religio romana e o acompanhamento de sua progressatildeo cronoloacutegica nos primeiros seacuteculos da formaccedilatildeo de Roma 753 aC - 509 aC satildeo bastante relevantes para que se possa compreender com mais coerecircncia as transformaccedilotildees por que passaram as praacuteticas religiosas desde a fundaccedilatildeo da cidade de Roma ateacute o iniacutecio do Periacuteodo Republicano

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Referecircncias

CARANDINI Andrea Roma Il Primo Giorno 2007

DUMEacuteZIL George La Religon Romaine Archaiumlque Paris Payot 2000

Mommsen Theodor Les Cultes Chez les Romains sd

VERNANT Jean-Pierre Mito e Sociedade na Greacutecia Antiga Traduccedilatildeo Myriam Cam-pello 4ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2010

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A Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia

grega antiga

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Rafael Brunhara (UFRGS)

No proacutelogo da Androcircmaca de Euriacutepides a rainha lamenta o seu destino Escra-va de Neoptoacutelemo ela servia a contragosto o leito do filho de Aquiles e gerara dele um filho varatildeo uacuteltimo acalanto de seus males Mas a nova esposa de Neoptoacutelemo Hermiacute-one filha de Helena planeja mataacute-la Acusa-a de drogaacute-la secretamente para que natildeo tenha filhos e de persuadir Neoptoacutelemo a rejeitar seu leito A heroiacutena escravizada reve-la o seu plano agrave antiga serva agora colega na escravidatildeo esconder o filho e abrigar-se no santuaacuterio da Deusa Teacutetis Quando a serva parte Androcircmaca estende aos ceacuteus suas lamuacuterias e elenca os motivos para seu pranto a terra natal perdida o marido morto a proacutepria escravidatildeo

A trageacutedia grega em suas partes natildeo-corais usa como praxe um metro espe-ciacutefico apropriado ao diaacutelogo o triacutemetro jacircmbico Sozinha em cena abandonada pela serva eacute nele que Androcircmaca enuncia seus males (vv91-102)

35 χώρει νυν ἡμεῖς δrsquo οἷσπερ ἐγκείμεσθrsquo ἀεὶθρήνοισι καὶ γόοισι καὶ δακρύμασι πρὸς αἰθέρrsquo ἐκτενοῦμεν ἐμπέφυκε γὰργυναιξὶ τέρψις τῶν παρεστώτων κακῶν ἀνὰ στόμrsquo αἰεὶ καὶ διὰ γλώσσης ἔχεινπάρεστι δrsquo οὐχ ἓν ἀλλὰ πολλά μοι στένειν πόλιν πατρώιαν τὸν θανόντα θrsquo Ἕκτορα στερρόν τε τὸν ἐμὸν δαίμονrsquo ὧι συνεζύγηνδούλειον ἦμαρ ἐσπεσοῦσrsquo ἀναξίως χρὴ δrsquo οὔποτrsquo εἰπεῖν οὐδένrsquo ὄλβιον βροτῶνπρὶν ἂν θανόντος τὴν τελευταίαν ἴδηιςὅπως περάσας ἡμέραν ἥξει κάτω

Pois vaacute Mas eu estenderei ao firmamentoos trenos os lamentos [gooi] e as laacutegrimas que para sempre me cercam Estaacute na naturezadas mulheres o prazer de os males presentester na boca sempre e na liacutengua E natildeo me haacute soacute um mas muitos a gemer a poacutelis paterna Heitor morto e o riacutegido destino ao qual me atrelo caiacuteda sem merecer no dia da escravidatildeo Dos mortais nenhum deves dizer que eacute felizantes de veres depois de morto como passou pelo dia final e desceu aos iacutenferos 35

Pois vaacute Mas eu estenderei ao firmamentoos trenos os lamentos [gooi] e as laacutegrimas que para sempre me cercam Estaacute na naturezadas mulheres o prazer de os males presentes

O que vem depois destes versos eacute notaacutevel e torna a Androcircmaca uacutenica entre as trageacutedias que nos restaram um exemplo do virtuosismo de Euriacutepides Abruptamente os versos ditos por Androcircmaca deixam de ser os triacutemetros jacircmbicos proacuteprios dos diaacutelo-gos traacutegicos e mudam para um metro que os atenienses do seacuteculo V aC normalmente atribuiacuteam ao lamento o diacutestico elegiacuteaco (vv103-116) Eacute certo que a transiccedilatildeo entre os

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ter na boca sempre e na liacutengua E natildeo me haacute soacute um mas muitos a gemer a poacutelis paterna Heitor morto e o riacutegido destino ao qual me atrelo caiacuteda sem merecer no dia da escravidatildeo Dos mortais nenhum deves dizer que eacute felizantes de veres depois de morto como passou pelo dia final e desceu aos iacutenferos 36

36 Ἰλίωι αἰπεινᾶι Πάρις οὐ γάμον ἀλλά τινrsquo ἄτανἀγάγετrsquo εὐναίαν ἐς θαλάμους Ἑλένανἇς ἕνεκrsquo ὦ Τροία δορὶ καὶ πυρὶ δηϊάλωτονεἷλέ σrsquo ὁ χιλιόναυς Ἑλλάδος ὠκὺς Ἄρηςκαὶ τὸν ἐμὸν μελέας πόσιν Ἕκτορα τὸν περὶ τείχηεἵλκυσε διφρεύων παῖς ἁλίας Θέτιδοςαὐτὰ δrsquo ἐκ θαλάμων ἀγόμαν ἐπὶ θῖνα θαλάσσαςδουλοσύναν στυγερὰν ἀμφιβαλοῦσα κάραι πολλὰ δὲ δάκρυά μοι κατέβα χροός ἁνίκrsquo ἔλειπονἄστυ τε καὶ θαλάμους καὶ πόσιν ἐν κονίαιςὤμοι ἐγὼ μελέα τί μrsquo ἐχρῆν ἔτι φέγγος ὁρᾶσθαιἙρμιόνας δούλαν ἆς ὕπο τειρομέναπρὸς τόδrsquo ἄγαλμα θεᾶς ἱκέτις περὶ χεῖρε βαλοῦσατάκομαι ὡς πετρίνα πιδακόεσσα λιβάς

versos tinha mais impacto em sua performance original pois talvez viessem acompa-nhados pelo som do aulo antiga flauta dupla com uma melodia repetida e invariaacutevel que juntamente com o metro ajudava a desencadear uma percepccedilatildeo outra para a cena e para a fala da personagem

As regras de decoro poeacutetico tambeacutem tinham um papel importante a cada me-tro forma ou gecircnero literaacuterio correspondia uma forma literaacuteria especiacutefica Alterar os versos abruptamente poderia ser um sinal que Euriacutepides dava ao puacuteblico de que es-taria se vinculando a uma nova circunstacircncia que demandava seus proacuteprios procedi-mentos formais para que fosse reconhecida colocando em operaccedilatildeo um coacutedigo sutil compartilhado por autor e audiecircncia

A traduccedilatildeo antes preocupada com o rigor semacircntico e a precisatildeo conceitual e longe de qualquer possibilidade de performance empalidece estas caracteriacutesticas mas nos ajuda a pensar as representaccedilotildees do feminino e o seu estreito viacutenculo com a tradi-ccedilatildeo do lamento na Greacutecia Antiga Logo no iniacutecio de sua primeira fala Androcircmaca rela-ciona trecircs palavras importantes ndash ldquolamentosrdquo (a palavra grega γόοισι gooisi) ldquotrenosrdquo (do grego θρήνοισι threnoisi) e laacutegrimas (δακρύμασι dakrumasi) Cito novamente o trecho

ldquoPois vaacute Mas eu estenderei ao firmamento os trenos os la-mentos e as laacutegrimas que para sempre me cercam ()rdquo

Na trageacutedia grega gooi e threnoi eram muitas vezes pensados como sinocircni-mos natildeo sendo possiacutevel verificar um sentido particular que os distinguisse Um exem-plo eacute a seguinte passagem de Persas de Eacutesquilo trageacutedia mais antiga que nos chegou mas que jaacute retrata o pendor deste gecircnero em usar os termos de modo intercambiaacutevel atenuando seus contrastes (vv684-688) Satildeo as palavras do fantasma do rei Dario ao seu povo

37 λεύσσων δrsquo ἄκοιτιν τὴν ἐμὴν τάφου πέλαςταρβῶ χοὰς δὲ πρευμενὴς ἐδεξάμηνὑμεῖς δὲ θρηνεῖτrsquo ἐγγὺς ἑστῶτες τάφουκαὶ ψυχαγωγοῖς ὀρθιάζοντες γόοιςοἰκτρῶς καλεῖσθέ μrsquo ()

Vendo minha consorte junto agrave sepultura eu temo mas propiacutecio libaccedilotildees aceito E voacutes carpis um treno [threneitrsquo] junto agrave sepultura E elevando lamentos [goois] que conjuram mortos em pranto me chamais () 37

Apesar de seu uso difuso na trageacutedia goos e threnos conservaram certa es-pecificidade teacutecnica sendo utilizados para designar e classificar dois tipos de canccedilatildeo praticados na Greacutecia Arcaica nos quais o proacuteprio gestual do pranto (dakruon) e a ma-terialidade do lamento eram incorporados Analisemos agora cada um deles

O Goos Margaret Alexiou (2002 p13) em estudo seminal sustenta que o lamento eacute

um canto responsoacuterio isto eacute um canto em que se alternavam vozes agrave perda de algueacutem querido Neste canto segundo a estudiosa ldquodois grupos de pessoas enlutadas estra-nhos e mulheres proacuteximas cantavam cada qual um verso e eram seguidos por um re-fratildeo em uniacutessonordquo Este lamento era assim dividido em duas categorias o do primeiro grupo era chamada threnos canccedilatildeo elaborada e profissional que honrava e exaltava o morto e a do segundo grupo era o goos canto improvisado entoado por natildeo-profis-sionais ndash parentes e pessoas proacuteximas (philoi) ao morto geralmente mulheres

Em Homero a palavra goos aparece de acordo com as definiccedilotildees aqui apresen-tadas Sua primeira ocorrecircncia relevante eacute no Canto 6 o episoacutedio conhecido como ldquoA Homilia de Heitor e Androcircmacardquo Este eacute um episoacutedio muito curioso da Iliacuteada repleto de paradoxos Nele Homero parece explorar os lugares e fronteiras do masculino e o feminino fazendo por exemplo com que Heitor adentre o espaccedilo domeacutestico ndash o mun-do dentro das muralhas de Troia esfera proacutepria de Androcircmaca e de outras mulheres ndash enquanto faz Androcircmaca transitar brevemente pelo mundo de Heitor ndash o espaccedilo da guerra das tomadas de decisatildeo da vista do campo de batalha para aleacutem das muralhas Em certo momento do poema (6433-439) Androcircmaca daraacute ateacute mesmo conselho mi-litar a Heitor um movimento tatildeo inusitado para mulheres que levou o editor alexan-drino Aristarco da Samotraacutecia (seacutec I aC) a suspeitar da autenticidade da passagem O helenista Christos Tsagalis (2008) levanta a interessante poreacutem indemonstraacutevel hipoacutetese de que ao caracterizar a esposa de Heitor o poema se serviria de mitos mais antigos sobre ela que a representavam como Mecircnade ou mulher guerreira talvez uma amazona seguindo um expediente comum no poema eacutepico de aludir e incorporar ver-sotildees variantes

Tambeacutem eacute o momento em que Homero explora pela primeira vez as contradi-ccedilotildees e a inevitabilidade do destino de Heitor Com seu filho nos braccedilos Heitor deseja que Astiacuteanax seja tatildeo importante quanto ele no futuro Mas natildeo haacute futuro para Troia pois a morte de Heitor e portanto a queda da cidade eacute certa fadado que estaacute a con-frontar o mais implacaacutevel guerreiro grego Desse modo quando se despede de Androcirc-

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maca sabemos que ele natildeo voltaraacute mais E Homero representa isso fazendo Androcircma-ca entoar um canto que atende todas as circunstacircncias de um lamento fuacutenebre goos Outro paradoxo deste episoacutedio entatildeo ocorre Androcircmaca e as servas da casa choram a morte de Heitor ainda vivo (vv497-502)

E logo depois chegou ao palaacutecio bem habitaacutevelDe Heitor matador de guerreiros e encontrou laacute muitas escra-vas em todas elas incitou os lamentos Elas lamentavam Heitor ainda vivo em sua casa pois sabiam que ele natildeo voltaria mais da guerra natildeo escaparia da fuacuteria e das matildeos dos Aqueus 38

A dor dos Troianos natildeo me preocuparaacute tanto ndash nem a da proacutepria Heacutecuba ou do soberano Priacuteamo nem a dos meus irmatildeos numerosos e nobres que na poeira sucumbiratildeo por matildeos inimigas ndash quanto a tua quando Aqueus em roupas de bronze te levarem chorando roubando-te o dia da liberdade 39

38 αἶψα δrsquo ἔπειθrsquo ἵκανε δόμους εὖ ναιετάονταςἝκτορος ἀνδροφόνοιο κιχήσατο δrsquo ἔνδοθι πολλὰςἀμφιπόλους τῆισιν δὲ γόον πάσηισιν ἐνῶρσεναἳ μὲν ἔτι ζωὸν γόον Ἕκτορα ὧι ἐνὶ οἴκωιοὐ γάρ μιν ἔτrsquo ἔφαντο ὑπότροπον ἐκ πολέμοιοἵξεσθαι προφυγόντα μένος καὶ χεῖρας Ἀχαιῶν 39 ἀλλrsquo οὔ μοι Τρώων τόσσον μέλει ἄλγος ὀπίσσωοὔτrsquo αὐτῆς Ἑκάβης οὔτε Πριάμοιο ἄνακτοςοὔτε κασιγνήτων οἵ κεν πολέες τε καὶ ἐσθλοὶἐν κονίῃσι πέσοιεν ὑπrsquo ἀνδράσι δυσμενέεσσινὅσσον σεῦ ὅτε κέν τις Ἀχαιῶν χαλκοχιτώνωνδακρυόεσσαν ἄγηται ἐλεύθερον ἦμαρ ἀπούρας

Nestes versos breves o poeta da Iliacuteada descreve algumas das principais caracte-riacutesticas do canto lamentoso goos quem ldquopuxardquo o canto (em grego eacute enorse ldquoimpeliurdquo) e passa a regecirc-lo eacute a pessoa mais afetada pela perda geralmente (mas nem sempre) uma mulher Homero prepara a audiecircncia para que veja desde o iniacutecio do canto que esta pessoa para Heitor eacute Androcircmaca atraveacutes de uma convenccedilatildeo da poesia oral cunhada pela primeira vez pelo estudioso JT Kakridis chamada ldquotoacutepica da escala ascendente de afeiccedilotildeesrdquo (Arthur 1981 p29) Nessa toacutepica o heroacutei eacute mostrado se encontrando ou se referindo a companheiros parentes ou pessoas proacuteximas em uma sequecircncia crescente que indica a elevaccedilatildeo do amor que sente e recebe dessas pessoas e culmina no amor conjugal como superior agravequele dos amigos e parentes Condizente agrave essa toacutepica Heitor diraacute a Androcircmaca (vv 450-455)

Assim a ordem dos encontros de Heitor ao longo deste canto ndash primeiro as esposas e filhos dos troianos (6237-250) depois Heacutecuba (6251-285) Helena e Paacuteris (6313-368) e por fim Androcircmaca (6394-496) ndash cumpre a funccedilatildeo de realccedilar a honra e a afeiccedilatildeo que ele devota agrave esposa mais do que aos outros troianos e o quanto a sua morte seraacute mais significativa para ela do que para qualquer outro

Homero natildeo faz isso apenas atraveacutes desta convenccedilatildeo poeacutetica mas tambeacutem tomando emprestado caracteriacutesticas tradicionais do lamento fuacutenebre feminino Ao re-presentar neste canto um predomiacutenio de discursos femininos (das esposas de Troia a

Vamos Depois nos acertamos caso Zeus afinal conceda que aos celestiais Deuses sempre vivos fixemos a taccedila da libertaccedilatildeo em nossos salotildees quando de Troia expulsarmos Aqueus de belas grevas 40

Quando retomou o ar e no imo refez-se o coraccedilatildeo com renovados lamentos (goosa) em meio agraves troianas disse ldquoHeitor sou infeliz Nascemos para um soacute destinonoacutes dois tu em Troia na casa de Priacuteamo e eu em Tebas ao peacute do Placo frondoso na casa de Eeacutecion que me criou desde pequenao desfortunado agrave mal-afortunada Ah se natildeo tivesse me gerado Agora ao palaacutecio de Hades nos recessos profundos da terratu vais e em odiosa dor me abandonas

40 ἀλλrsquo ἴομεν τὰ δrsquo ὄπισθεν ἀρεσσόμεθrsquo αἴ κέ ποθι Ζεὺςδώῃ ἐπουρανίοισι θεοῖς αἰειγενέτῃσικρητῆρα στήσασθαι ἐλεύθερον ἐν μεγάροισινἐκ Τροίης ἐλάσαντας ἐϋκνήμιδας Ἀχαιούς

Heacutecuba e Helena) que culminaratildeo com Androcircmaca puxando o lamento entre as servas evidencia-se que o goos ainda que seu conteuacutedo central sejam os sentimentos de dor daquele que inicia o canto eacute sobretudo uma experiecircncia comunitaacuteria na qual a dor de quem canta se transfere para a comunidade representada (quase sempre mas natildeo necessariamente) pelas mulheres que a compotildeem

Essa sucessatildeo de encontros do Canto VI entatildeo tambeacutem nos prepara para en-tendermos as palavras de Androcircmaca como um goos (= lamento fuacutenebre feminino) para seu marido em vida o que intensifica seu efeito Alexiou (2002 p4-5) observan-do que o lamento natildeo eacute mera exposiccedilatildeo da dor mas eacute cuidadosamente regrado por ritual diz que Androcircmaca eacute desatenta ao entoar um lamento fuacutenebre com o marido ainda vivo No entanto aiacute que se faz importante notar que natildeo se trata de um teste-munho real de uma praacutetica mas de um artifiacutecio poeacutetico que se vale da estrutura dos ritos de lamento para potencializar a cena seguinte que fecha o Canto 6 e encarece o paacutethos traacutegico de Heitor A cena mostra o heroacutei troiano dirigindo-se com o irmatildeo Paacuteris agrave guerra e rogando aos Deuses por vitoacuteria sobre os gregos mas sabemos por causa de toda a elaboraccedilatildeo do canto como um lamento fuacutenebre o quanto esse pedido eacute vatildeo uma das muitas ironias traacutegicas que a Iliacuteada opera (6 527-530)

A experiecircncia comunitaacuteria do lamento se expressa no goos como um canto responsoacuterio ao lamento da cantora principal responde um coro de mulheres lamentando junto Vamos recorrer de novo agraves falas de Androcircmaca na Iliacuteada para ver outras pistas disso Aleacutem do Canto 6 Androcircmaca conduz mais dois cantos lamentosos um no Canto 22 e outro no Canto 24

No Canto 22 Androcircmaca primeiro lamenta sozinha ao ver o cadaacutever de seu marido ser arrastado pelo carro de Aquiles em palavras que o poeta denomina expli-citamente goos (vv477-515)

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viuacuteva no palaacutecio O filho que geramos eu e tu desafortunados eacute soacute um bebecirc E para elenatildeo seraacutes um bem Heitor pois morreste nem ele a ti Mesmo se escapar da luta multilaacutecrime com aqueusele sempre teraacute trabalho e anguacutestias no futuropois outros homens tomaratildeo suas lavourasO dia da orfandade tira da crianccedila os amigos sempre acabrunhado com laacutegrimas no rostoem necessidade aborda os amigos do paide um puxa o manto de outro a tuacutenica Com pena um lhe daacute seu copo brevemente ela molha os laacutebios o palato natildeo molha mas outro com pai e matildee vivos do festim o expulsacom as matildeos golpeando e com censuras maltratandolsquoVai-te daqui teu pai natildeo partilha conosco do festimrsquo Em laacutegrimas volta agrave matildee viuacuteva o menino Astiacuteanax que antes nos joelhos de seu pai comia soacute o tutano e a gordura pingue de ovelhase quando o sono o pegasse e parasse as criancices dormia no leito nos braccedilos da ama na cama macia o peito repleto de juacutebilo Agora muito sofreraacute pois perdeu o pai amado Astiacuteanax Senhor da Cidade como apelidam troianos pois soacute tu defendias seus portotildees e altas muralhasAgora junto agraves naus recurvas longe dos paisvermes retorcidos roeratildeo depois que os catildees se saciaremteu corpo nu Tuas vestes jazem no palaacutecio finas e elegantes feitas por matildeos de mulheres Eu antes queimarei todas no fogo ardente em nada te serviratildeo pois com elas natildeo jazeraacutesMas seratildeo tua gloacuteria junto a troianos e troianasrdquo Assim falou em pranto em seguida as mulheres punham-se a lamentar 41

41 Ἕκτορ ἐγὼ δύστηνος ἰῇ ἄρα γεινόμεθrsquo αἴσῃἀμφότεροι σὺ μὲν ἐν Τροίῃ Πριάμου κατὰ δῶμααὐτὰρ ἐγὼ Θήβῃσιν ὑπὸ Πλάκῳ ὑληέσσῃἐν δόμῳ Ἠετίωνος ὅ μrsquo ἔτρεφε τυτθὸν ἐοῦσανδύσμορος αἰνόμορον ὡς μὴ ὤφελλε τεκέσθαινῦν δὲ σὺ μὲν Ἀΐδαο δόμους ὑπὸ κεύθεσι γαίηςἔρχεαι αὐτὰρ ἐμὲ στυγερῷ ἐνὶ πένθεϊ λείπειςχήρην ἐν μεγάροισι πάϊς δrsquo ἔτι νήπιος αὔτωςὃν τέκομεν σύ τrsquo ἐγώ τε δυσάμμοροι οὔτε σὺ τούτῳἔσσεαι Ἕκτορ ὄνειαρ ἐπεὶ θάνες οὔτε σοὶ οὗτοςἤν περ γὰρ πόλεμόν γε φύγῃ πολύδακρυν Ἀχαιῶναἰεί τοι τούτῳ γε πόνος καὶ κήδεrsquo ὀπίσσωἔσσοντrsquo ἄλλοι γάρ οἱ ἀπουρίσσουσιν ἀρούραςἦμαρ δrsquo ὀρφανικὸν παναφήλικα παῖδα τίθησι πάντα δrsquo ὑπεμνήμυκε δεδάκρυνται δὲ παρειαίδευόμενος δέ τrsquo ἄνεισι πάϊς ἐς πατρὸς ἑταίρουςἄλλον μὲν χλαίνης ἐρύων ἄλλον δὲ χιτῶνοςτῶν δrsquo ἐλεησάντων κοτύλην τις τυτθὸν ἐπέσχεχείλεα μέν τrsquo ἐδίηνrsquo ὑπερῴην δrsquo οὐκ ἐδίηνετὸν δὲ καὶ ἀμφιθαλὴς ἐκ δαιτύος ἐστυφέλιξε χερσὶν πεπλήγων καὶ ὀνειδείοισιν ἐνίσσωνἔρρrsquo οὕτως οὐ σός γε πατὴρ μεταδαίνυται ἡμῖνδακρυόεις δέ τrsquo ἄνεισι πάϊς ἐς μητέρα χήρην Ἀστυάναξ ὃς πρὶν μὲν ἑοῦ ἐπὶ γούνασι πατρὸςμυελὸν οἶον ἔδεσκε καὶ οἰῶν πίονα δημόν αὐτὰρ ὅθrsquo ὕπνος ἕλοι παύσαιτό τε νηπιαχεύων εὕδεσκrsquo ἐν λέκτροισιν ἐν ἀγκαλίδεσσι τιθήνηςεὐνῇ ἔνι μαλακῇ θαλέων ἐμπλησάμενος κῆρνῦν δrsquo ἂν πολλὰ πάθῃσι φίλου ἀπὸ πατρὸς ἁμαρτὼν Ἀστυάναξ ὃν Τρῶες ἐπίκλησιν καλέουσινοἶος γάρ σφιν ἔρυσο πύλας καὶ τείχεα μακράνῦν δὲ σὲ μὲν παρὰ νηυσὶ κορωνίσι νόσφι τοκήωναἰόλαι εὐλαὶ ἔδονται ἐπεί κε κύνες κορέσωνταιγυμνόν ἀτάρ τοι εἵματrsquo ἐνὶ μεγάροισι κέονταιλεπτά τε καὶ χαρίεντα τετυγμένα χερσὶ γυναικῶν ἀλλrsquo ἤτοι τάδε πάντα καταφλέξω πυρὶ κηλέῳοὐδὲν σοί γrsquo ὄφελος ἐπεὶ οὐκ ἐγκείσεαι αὐτοῖςἀλλὰ πρὸς Τρώων καὶ Τρωϊάδων κλέος εἶναιὫς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες

ldquoMarido da existecircncia partiste jovem e viuacuteva meabandonas no palaacutecio O filho que geramos eu e tu desafortunados eacute soacute um bebecirc Penso que ele natildeo chegaraacute agrave juventude Antes a poacutelis de cima a baixoarrasaratildeo porque tu seu vigilante morreste tu que aprotegias e mantinhas devotadas esposas e filhos pequenosseguros Logo elas seratildeo levadas em naus cocircncavas tambeacutem eu com elas E tu meu filho a mim mesmaseguiraacutes laacute onde aviltantes trabalhos faraacutes labutando ante um duro senhor ou um aqueute jogaraacute ao pegaacute-lo pelo braccedilo da torre ndash triste fim ndash um com raiva de quem Heitor matou o irmatildeo o pai ou o filho jaacute que muito muitos aqueus pelas matildeos de Heitor morderam o solo imensoDoce natildeo era teu pai no triste preacutelioPor isso o povo chora pela cidade e inefaacutevel lamento (goon) e anguacutestia infligiste aos pais Heitor mas em mim restaratildeo as mais tristes doresPois quando morrias tu natildeo me deste as tuas matildeosnatildeo me disseste uma palavra firme que para sempre eu guardaria dia e noite vertendo laacutegrimasrdquo Assim falou em pranto em seguida as mulheres punham-se a lamentar 42

42 ἆνερ ἀπrsquo αἰῶνος νέος ὤλεο κὰδ δέ με χήρηνλείπεις ἐν μεγάροισι πάϊς δrsquo ἔτι νήπιος αὔτωςὃν τέκομεν σύ τrsquo ἐγώ τε δυσάμμοροι οὐδέ μιν οἴωἥβην ἵξεσθαι πρὶν γὰρ πόλις ἧδε κατrsquo ἄκρηςπέρσεται ἦ γὰρ ὄλωλας ἐπίσκοπος ὅς τέ μιν αὐτὴνῥύσκευ ἔχες δrsquo ἀλόχους κεδνὰς καὶ νήπια τέκνααἳ δή τοι τάχα νηυσὶν ὀχήσονται γλαφυρῇσικαὶ μὲν ἐγὼ μετὰ τῇσι σὺ δrsquo αὖ τέκος ἢ ἐμοὶ αὐτῇἕψεαι ἔνθά κεν ἔργα ἀεικέα ἐργάζοιοἀθλεύων πρὸ ἄνακτος ἀμειλίχου ἤ τις Ἀχαιῶνῥίψει χειρὸς ἑλὼν ἀπὸ πύργου λυγρὸν ὄλεθρον χωόμενος ᾧ δή που ἀδελφεὸν ἔκτανεν Ἕκτωρἢ πατέρrsquo ἠὲ καὶ υἱόν ἐπεὶ μάλα πολλοὶ ἈχαιῶνἝκτορος ἐν παλάμῃσιν ὀδὰξ ἕλον ἄσπετον οὖδαςοὐ γὰρ μείλιχος ἔσκε πατὴρ τεὸς ἐν δαῒ λυγρῇτὼ καί μιν λαοὶ μὲν ὀδύρονται κατὰ ἄστυ ἀρητὸν δὲ τοκεῦσι γόον καὶ πένθος ἔθηκαςἝκτορ ἐμοὶ δὲ μάλιστα λελείψεται ἄλγεα λυγράοὐ γάρ μοι θνῄσκων λεχέων ἐκ χεῖρας ὄρεξαςοὐδέ τί μοι εἶπες πυκινὸν ἔπος οὗ τέ κεν αἰεὶμεμνῄμην νύκτάς τε καὶ ἤματα δάκρυ χέουσα Ὣς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες43 ὥς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες

No Canto 24 por sua vez assistimos ao funeral de Heitor e aos discursos de trecircs mulheres Androcircmaca Heacutecuba e Helena Sendo Androcircmaca a primeira a falar Homero a apresenta ldquocomeccedilando o lamentordquo (erkhe gooio ἦρχε vv725-746)

Nessas duas ocasiotildees Homero usa um verso cristalizado uma foacutermula que mostra como o lamento de Androcircmaca eacute formalmente respondido pelas mulheres da cidade A foacutermula aparece em ambas as passagens citadas os versos 515 do Canto 22 e no verso 746 do Canto 24 ldquoassim [Androcircmaca] falou em pranto em seguida as mu-lheres punham-se a lamentarrdquo

Na Androcircmaca de Euriacutepides o aspecto responsoacuterio do goos parece aludir-se nos versos 93-95 entendidos como uma caracteriacutestica de todo o gecircnero feminino

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ldquoEstaacute na natureza das mulheres o prazer de os males presentes ter na boca sempre e na liacutenguardquo De fato o coro composto por mulheres da Ftia entra na peccedila logo depois dos diacutesticos elegiacuteacos de Androcircmaca e acudiraacute a rainha em resposta

Se na Iliacuteada natildeo podemos ver realmente como as mulheres respondem aos prantos de Androcircmaca na peccedila o proacuteprio coro a partir do verso 117 cumpriraacute este papel respondendo ao lamento da rainha troiana

O Threnos

Agora falemos do termo threnos (θρῆνος) Sabemos que este termo seraacute con-sagrado como um gecircnero poeacutetico especiacutefico do lamento praticado por Simocircnides e Piacutendaro e reconhecido por Platatildeo em suas Leis como uma das formas (eideacute) da poesia meacutelica (700 a-b3)

Naquela eacutepoca a arte das Musas estava dividida entre noacutes se-gundo gecircneros (eide είδή) e estilos (skhemata σχήματα) um gecircnero de canto as preces aos deuses era chamada ldquohinordquo Ha-via um outro gecircnero de canto oposto a este ndash pode-se melhor chamaacute-los ldquotrenosrdquo Outro era o Peatilde e outro ndash creio que nascido de Dioniso ndash o ldquoditirambordquo 44

O treno difere do epiceacutedio [epikeacutedion] porque o epiceacutedio se diz a partir do proacuteprio kecircdos [luto funeralκίδος] com o corpo ain-da jazendo exposto enquanto o treno natildeo se circunscreve a um periacuteodo de tempo45

44 Τοῖς περὶ τὴν μουσικὴν πρῶτον τὴν τότε ἵνα ἐξ ἀρχῆς διέλθωμεν τὴν τοῦ ἐλευθέρου λίαν ἐπίδοσιν βίου διῃρημένη γὰρ δὴ τότε ἦν ἡμῖν ἡ μουσικὴ κατὰ εἴδη τε ἑαυτῆς ἄττα καὶ σχήματα καί τι ἦν εἶδος ᾠδῆς εὐχαὶ πρὸς θεούς ὄνομα δὲ ὕμνοι ἐπεκαλοῦντο καὶ τούτῳ δὴ τὸ ἐναντίον ἦν ᾠδῆς ἕτερον εἶδος ndash θρήνους δέ τις ἂν αὐτοὺς μάλιστα ἐκάλεσεν ndash καὶ παίωνες ἕτερον καὶ ἄλλο Διονύσου γένεσις οἶμαι διθύραμβος λεγόμενος45 Διαφέρει δὲ τοῦ ἐπικηδείου ὁ θρῆνος ὅτι τὸ μὲν ἐπικήδειον παρrsquo αὐτὸ τὸ κῆδος ἔτι τοῦ σώματος προκειμένου λέγεται ὁ δὲ θρῆνος οὐ περιγράφεται χρόνῳ

O termo tambeacutem eacute conservado na literatura da Antiguidade Tardia Proclo por exemplo quando conceituou os diversos gecircneros literaacuterios em sua Crestomatia possivelmente no seacutec V dC usa a denominaccedilatildeo threnos para um tipo de meacutelica des-tinada aos homens (32-35) que se distinguia de outros gecircneros de lamento por sua performance natildeo limitada a uma ocasiatildeo especiacutefica (67)Li

Mas as suas ocorrecircncias arcaicas satildeo mais escassas ocorre apenas uma vez na Iliacuteada e na Odisseia Em ambas as passagens reforccedila a ideia de que se tratava de um canto coral profissionalizado e eminentemente masculino distinto do goos entoado pelas pessoas queridas ao morto A primeira passagem estaacute no Canto 24 uacuteltimo da Iliacuteada que retrata o funeral de Heitor A cerimocircnia comeccedila com o corpo sendo colocado em um leito e com um canto que imediatamente se segue (vv720-723)

em leitos perfurados o puseram e ao lado assentaram os aedosregentes dos trenos Uma gemente canccedilatildeo o treno (threnon) eles entoavam em seguida as mulheres punham-se a lamentarE entre elas Androcircmaca de niacuteveos braccedilos comeccedilava o lamento (gooio) 46

Agrave volta estavam as meninas do Velho do Marcom pena gemendo e vestiram-te roupas imortais Entatildeo as nove Musas todas alternando-se com bela voz entoavam o treno (threneon) Natildeo verias ali nenhum argivosem chorar tatildeo forte comovia a clara Musa 47

ldquopois natildeo eacute correto na casa dos servos das Musashaver o tre-noisso natildeo nos seria adequadordquo 48

46 τρητοῖς ἐν λεχέεσσι θέσαν παρὰ δrsquo εἷσαν ἀοιδοὺςθρήνων ἐξάρχους οἵ τε στονόεσσαν ἀοιδὴνοἳ μὲν ἄρrsquo ἐθρήνεον ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκεςτῇσιν δrsquo Ἀνδρομάχη λευκώλενος ἦρχε γόοιοἐκάλεσεν ndash καὶ παίωνες ἕτερον καὶ ἄλλο Διονύσου γένεσις οἶμαι διθύραμβος λεγόμενος47 ἀμφὶ δέ σrsquo ἔστησαν κοῦραι ἁλίοιο γέροντοςοἴκτρrsquo ὀλοφυρόμεναι περὶ δrsquo ἄμβροτα εἵματα ἕσσανΜοῦσαι δrsquo ἐννέα πᾶσαι ἀμειβόμεναι ὀπὶ καλῇθρήνεον ἔνθα κεν οὔ τινrsquo ἀδάκρυτόν γrsquo ἐνόησαςἈργείων τοῖον γὰρ ὑπώρορε Μοῦσα λίγεια48 οὐ γὰρ θέμις ἐν μοισοπόλων daggerοἰκίαι θρῆνον ἔμμενrsquo οὔ κrsquo ἄμμι τάδε πρέποι

A ocorrecircncia do termo na Odisseia estaacute no Canto 24 na narraccedilatildeo dos ritos fuacutenebres de Aquiles (vv58-62)Lii

Algumas palavras empregadas nesses trechos parecem indicar o threnos como um canto profissional Na Iliacuteada os liacutederes do canto satildeo homens aedos (ἀοιδοὺς aoi-dous 24720) que regem (ἐξάρχους eksarkhous 24721) os cantos A Odisseia por sua vez nos mostra uma cerimocircnia sobre-humana como tudo que diz respeito a Aquiles em vez de mulheres da cidade quem chora o goos satildeo as ninfas do oceano e os ldquocan-tores profissionaisrdquo que entoam o threnos satildeo aqui as proacuteprias Musas

Deve-se notar mesmo assim que a distinccedilatildeo entre masculino e feminino tatildeo marcada na Iliacuteada (mas natildeo na Odisseia) pode ser enganosa fruto de nossa parca evidecircncia pois jaacute na literatura arcaica verifica-se certa sobreposiccedilatildeo Em um de seus fragmentos por exemplo Safo utiliza a palavra treno proibindo seu uso na ldquoCasa das Musasrdquo (fr150) Liii

A proibiccedilatildeo no poema de Safo sugere presumivelmente que o treno era pra-ticado e no caso entoado por coros femininos Contudo embora pairem incertezas o termo indicava para aleacutem de seu uso corriqueiro um gecircnero poeacutetico complexo vin-culado a um tom mais reflexivo e abrangente que se opotildee ao lamento do goos e que sobretudo Euriacutepides parecia atento agraves suas distinccedilotildees na peccedila

Feitas estas proposiccedilotildees ateacute agora natildeo entramos nas questotildees formais do la-

mento de Androcircmaca na peccedila homocircnima Sabemos que o lamento eacute um canto respon-

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soacuterio e que haacute dois tipos o threnos lamento profissional masculino e o goos lamen-to amador predominantemente feminino Androcircmaca menciona ambos dizendo que iraacute entoaacute-los aparentemente natildeo colocando uma diferenccedila entre um e outro Mas o novo canto que comeccedila abruptamente (porque em outro metro) ldquoAgrave iacutengreme Iacutelion Paacuteris trouxe natildeo nuacutepcias mas ruiacutenardquo (v103) introduz na peccedila o diacutestico elegiacuteaco e coloca o discurso de Androcircmaca ainda em uma terceira tradiccedilatildeo poeacutetica a da elegia

Assim trecircs formas tradicionalmente associadas ao lamento confluem nesta fala threnos goos e elegia O motivo desta confluecircncia sugere Gregory Nagy em seu texto ldquoAncient Greek Elegyrdquo (2010) se deve agrave circunstacircncia de performance Se o thre-nos eacute masculino e profissional e o goos eacute feminino e amador isso pouco importa no contexto do teatro de Dioniso uma vez que 1-) todos os atores eram do sexo mascu-lino Se eacute notoacuterio que os melhores atores representavam as melhores falas dos prin-cipais personagens pode-se supor tambeacutem que o ator representando Androcircmaca era um virtuoso profissional haacutebil em sua arte capaz de operar uma transiccedilatildeo sutil entre os diferentes registros e tradiccedilotildees poeacuteticas de lamento e 2-) o coro masculino com-posto por cidadatildeos nem sempre profissionais representa aqui mulheres da Ftia que respondem ao lamento da senhora troiana Nesses termos a fala de Androcircmaca eacute a dramatizaccedilatildeo de um goos que se aproxima no entanto de um threnos uma vez que entoado por um cantor profissional que eacute seguido por toda a comunidade

Eacute a trageacutedia em pleno funcionamento da mimese imitando e incorporando em sua performance outros gecircneros A trageacutedia se apropria do tiacutepico lamento feminino e o representa por um coro masculino interpretando mulheres Platatildeo via com certo desconforto esta possibilidade pois poderia fazer com que homens passassem tambeacutem a agir falar e pensar como mulheres Ele trata deste tipo de representaccedilatildeo do lamento como um exemplo do potencial ameaccedilador da mimese (Repuacuteblica Livro 3 395d-e)LV

Logo natildeo ordenaremos a um daqueles de quem queremos ocupar-nos que eacute preciso que se tornem homens superio-res que sendo homens imitem uma mulher nova ou ve-lha ou a injuriar o marido ou a criticar os deuses ou a gabar-se por se supor feliz ou dominada pela desgraccedila pelo desgosto e pelos gemidos [threnois] muito menos quando estaacute doente ou apaixonada ou com as dores da maternidade 49

49 Οὐ δὴ ἐπιτρέψομεν ἦν δrsquo ἐγώ ὧν φαμὲν κήδεσθαι καὶ δεῖν αὐτοὺς ἄνδρας ἀγαθοὺς γενέσθαι γυναῖκα μιμεῖσθαι ἄνδρας ὄντας ἢ νέαν ἢ πρεσβυτέραν ἢ ἀνδρὶ λοιδορουμένην ἢ πρὸς θεοὺς ἐρίζουσάν τε καὶ μεγαλαυχουμένην οἰομένην εὐδαίμονα εἶναι ἢ ἐν συμφοραῖς τε καὶ πένθεσιν καὶ θρήνοις ἐχομένην κάμνουσαν δὲ ἢ ἐρῶσαν ἢ ὠδίνουσαν πολλοῦ καὶ δεήσομεν

No entanto a estrateacutegia de incorporar outros cantos natildeo parecia estranha a Euriacutepides que a utiliza em outras ocasiotildees tampouco ao gecircnero traacutegico que acomoda gecircneros liacutericos como o Peatilde e outros Lii

Um exemplo ocorre em uma das uacuteltimas trageacutedias de Euriacutepides Bacantes

De laacute da terra da Aacutesiacruzei o sacro Tmolo e corroa Brocircmio doce afatildefadiga infatigaacutevel em evoeacute eu chamo Baco Quem vai pela rua quem vai Quemestaacute em casa Cada um abra espaccediloe se faccedila todo sacro em reverecircncia pois hinos costumeiros semprea Dioniso cantarei

ldquoOacute venturoso quem feliz conhece ritos de Deusesconsagra a vidae no tiacuteaso potildee a almaeacute bacante nas montanhasem sacras purificaccedilotildeesMisteacuterios da grande matildeeCiacutebele satildeo a leio tirso agita no altoem hera coroadocultua Baco

Abruptamente ao teacutermino da chegada de Dioniso a Tebas no proacutelogo da peccedila o coro composto por Mecircnades entra em cena recitando palavras que descrevem a sua origem e os bens concedidos pelo Deus aos seus iniciados (vv 64-88) Lvii

No trecho acima o proacuteprio coro imita um verdadeiro hino cultual A expressatildeo do verso 69 ldquoQuem vai pela rua quem vai rdquo eacute uma foacutermula caracteriacutestica da procis-satildeo um ldquopreluacutedio tiacutepico de um ato ritualrdquo (Dodds 1960 pp75) ao qual se segue a lin-guagem beatiacutefica dos macarismos (ldquoOacute venturoso quem felizrdquo v74) e a dramatizaccedilatildeo de gritos rituais ldquoavante Bacas avanterdquo (v85) O coro mesmo indica a sua proximi-dade com os hinos ao anunciar que cantaraacute literalmente ldquoas coisas costumeirasrdquo de Dioniso (tagrave nomisthenta τὰ νομίσθεντα v 72) Aleacutem disso assim como o emprego de diacutesticos elegiacuteacos em Androcircmaca o poeta indica a mudanccedila de tom pela alteraccedilatildeo no metro servindo-se em Bacantes de um metro tradicional do culto a DionisoLviii

Natildeo eacute estranho supor portanto levando em conta que o lamento de Androcirc-

maca ocupa a posiccedilatildeo similar a deste hino e a que Euriacutepides demonstra predileccedilatildeo por incorporar outras tradiccedilotildees poeacuteticas em suas peccedilas que tambeacutem na Androcircmaca ele estivesse subsumindo agrave arte traacutegica e adequando a ela elementos tradicionais de lamentos rituais tipicamente femininos O que natildeo conseguimos responder por ora eacute porque ele tambeacutem incorpora o diacutestico elegiacuteaco ao tratar destes lamentos e isso se deve sobretudo aos vazios da historiografia deste gecircnero poeacutetico tatildeo longevo

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A Elegia

Mesmo modernamente atribuiacutemos ao termo elegia a ideia de lamento em honra aos mortos Os gregos do periacuteodo claacutessico vatildeo ver na palavra elegos (ἔλεγος) ldquocanto de lamentordquo a etimologia deste gecircnero O que a maioria dos estudiosos observa eacute que quanto mais recuamos a elegia agraves suas origens ateacute o seacuteculo VII aC percebemos que este gecircnero tinha como tema o canto solo de quase todos os assuntos no horizonte da vida grega a guerra o amor a poliacutetica Menos um o lamento

A discussatildeo sobre a elegia geralmente se concentra em trecircs palavras gregas usadas para descrevecirc-la elegos (ἔλεγος) elegeia (ἐλεγεία) e elegeion (ἐλεγεῖον) Con-tudo nenhuma destas palavras estaacute nas ocorrecircncias mais antigas do gecircnero Depen-demos de autores que vieram depois e tentaram categorizaacute-la Elegeia e elegeion natildeo trazem problemas Elegeion aparece primeiro e traz uma referecircncia meacutetrica Data do tempo de Euriacutepides (seacutec V aC) O singular indica o diacutestico elegiacuteaco o plural uma se-quecircncia de diacutesticos ou poemas compostos neste metro Elegeia aparece mais tarde no seacutec IV aC e seu sentido eacute o mesmo da palavra elegia em portuguecircs Podia ser usada como referecircncia tanto ao metro como a um poema composto neste metro

Elegos poreacutem eacute o termo mais problemaacutetico e mais antigo dos trecircs Aparece numa inscriccedilatildeo dos Jogos Piacuteticos de 586 dC que anuncia que o vencedor do concurso de aulo cantara aos gregos melea kai elegous ldquoCanccedilotildees e elegousrdquo Esses elegous satildeo entendidos como elegias lamentosas e por serem de extremo mau-agouro teriam sido proibidos a partir ediccedilatildeo seguinte destes jogos

Equecircmbroto da Arcaacutedia dedicou a Heacuteraclesesta daacutediva ao vencer nos jogos dos Anfictiotildeescantando aos gregos canccedilotildees e elegias (elegous) 50

Oh escravas em que trenos de tristes trenosenvolvo-me Canto e danccedila de natildeo boa Musa elegias [elegois] sem lira ndash aiai - em fuacutenebres lamuacuterias 51

50 Ἐχέμβροτος Ἀρκὰςθῆκε τῷ Ἡρακλεῖνικήσας τόδrsquo ἄγαλμrsquoἈμφικτυόνων ἐν ἀέθλοιςἝλλησι δrsquo ἀείδωνμέλεα καὶ ἐλέγους51 ἰὼ δμωαίδυσθρηνήτοις ὡς θρήνοις ἔγκειμαιτᾶς οὐκ εὐμούσουμολπᾶς ἀλύροις ἐλέγοις αἰαῖἐν ηδείοις οἴκτοισιν τὸ γὰρ θρῆνος ἔλεγον ἐκάλουν οἱ παλαιοὶκαὶ τοὺς τετελευτηκότας διrsquo αὐτοῦ εὐλόγουν

Embora a interpretaccedilatildeo desta inscriccedilatildeo natildeo seja conclusiva por volta do seacuteculo V aC elegos jaacute eacute atestado em Euriacutepides com o sentido de canto lamentoso Por exem-plo na trageacutedia Ifigecircnia em Taacuteuris o ator interpretando Ifigecircnia canta (vv143-147) Lx

Tardiamente passa a ser comum a associaccedilatildeo entre elegos e threnos como nos mostra excerto da Biblioteca de Foacutecio (319b8-9 ldquopois os antigos chamavam de elegos o treno e elogiavam com ele os falecidosrdquo) 52

Os lutos satildeo gementes Peacutericles e cidadatildeo nenhumhaacute de censuraacute-los e se regozijar em festas ndash nem a cidadePois tais os homens que as ondas do poliacutessono marsubmergiram e inchados de dor temos os pulmotildees Mas os deuses para invictos malesoacute amigo aplicam a forte resistecircncia como faacutermaco Ora um ora outro sofre este mal para noacutes voltou-se agora e chaga sangrenta cho-ramos que logo passaraacute a outros Mas vamos ndash o mais raacutepido resisti a feminina dor afastando 53

53 κήδεα μὲν στονόεντα Περίκλεες οὔτέ τις ἀστῶνμεμφόμενος θαλίηις τέρψεται οὐδὲ πόλιςτοίους γὰρ κατὰ κῦμα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης ἔκλυσεν οἰδαλέους δrsquo ἀμφrsquo ὀδύνηις ἔχομενπνεύμονας ἀλλὰ θεοὶ γὰρ ἀνηκέστοισι κακοῖσινὦ φίλrsquo ἐπὶ κρατερὴν τλημοσύνην ἔθεσανφάρμακον ἄλλοτε ἄλλος ἔχει τόδε νῦν μὲν ἐς ἡμέαςἐτράπεθrsquo αἱματόεν δrsquo ἕλκος ἀναστένομενἐξαῦτις δrsquo ἑτέρους ἐπαμείψεται ἀλλὰ τάχιστατλῆτε γυναικεῖον πένθος ἀπωσάμενοι

Muitas teorias jaacute foram aventadas para relacionar o ritmo da elegia isto eacute o diacutestico elegiacuteaco agrave ideia de lamento e assim explicar a elegia de Androcircmaca Uma delas que ganhou forccedila nos uacuteltimos anos foi proposta por Denys Page em 1936 no artigo ldquoThe Elegiacs in Euripidesrsquo Andromacherdquo

O autor observando formas propriamente doacutericas nos versos de Androcircmaca sugere a existecircncia de uma escola de poetas na regiatildeo do Peloponeso no seacuteculo VI aC que se notabilizou por compor diacutesticos elegiacuteacos de teor lamentoso

O problema desta hipoacutetese eacute a sua falta de evidecircncia soacute teriacuteamos versos dos supostos herdeiros desta tradiccedilatildeo e o principal deles seria a proacutepria elegia de Androcircmaca Aleacutem disso parece estranho que um gecircnero poeacutetico de lamento arcaico tenha desparecido sem deixar rastros mas que tenha sido tatildeo importante a ponto de dar nome agrave elegia como um todo Lxi

Duas evidecircncias recentes parecem colaborar no entanto para fortalecer o ar-

gumento de que a elegia tinha propoacutesitos fuacutenebres a descoberta de um longo epitaacutefio em diacutesticos elegiacuteacos inscrito em um monumento funeraacuterio coletivo do seacuteculo VI aC o ldquoPoliacircndriordquo de Ambraacutecia e uma elegia de Simocircnides descoberta haacute poucos anos sobre a batalha entre Gregos e Persas em Plateia (fr11 W) Essas descobertas lanccedilaram a possibilidade de interpretar outros pequenos fragmentos de elegia que jaacute conheciacute-amos como possiacuteveis canccedilotildees de lamento Eacute o caso por exemplo do fragmento 13 de Arquiacuteloco Lxiii

De certo modo parece que a elegia era um gecircnero envolvido com a celebraccedilatildeo da morte de heroacuteis em um gesto muitas vezes comedido que expressa a voz do poeta refletindo e articulando o luto da cidade Satildeo poemas que mesmo com uma temaacutetica natildeo lamentosa celebram os heroacuteis (andres agathoi ldquohomens de valorrdquo) mortos em combate encenando e dramatizando o luto coletivo Eacute o caso de poemas como de Tir-teu um dos mais antigos poetas elegiacuteacos que nos restou cuja poesia exorta a lutar e morrer bravamente em combate para que seu nome e seu tuacutemulo sejam para sempre

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exaltados (fragmento 12 vv 27-34)

A outra evidecircncia (na verdade mais uma constataccedilatildeo) eacute que o mesmo metro da elegia jaacute era utilizado desde o periacuteodo arcaico (pelo menos a partir do seacutec VI aC) em outro gecircnero poeacutetico o epigrama a inscriccedilatildeo dedicatoacuteria em tuacutemulos ou oferendas

A ele [= ao homem de valor] pranteiam por igual jovens eanciatildeos e com dolorosa saudade a cidade toda se enluta Seu tuacutemulo e filhos satildeo insignes entre os homens e os filhos dos filhos e a geraccedilatildeo no porvir e jamais nobre gloacuteria ou o nome dele perecem mas mesmo sob a terra se torna imortalaquele que primando por manter-se em combatepela terra e pelos filhos o impetuoso Ares mata 54

54 τὸν δrsquo ὀλοφύρονται μὲν ὁμῶς νέοι ἠδὲ γέροντεςἀργαλέωι δὲ πόθωι πᾶσα κέκηδε πόλιςκαὶ τύμβος καὶ παῖδες ἐν ἀνθρώποις ἀρίσημοικαὶ παίδων παῖδες καὶ γένος ἐξοπίσωοὐδέ ποτε κλέος ἐσθλὸν ἀπόλλυται οὐδrsquo ὄνομrsquo αὐτοῦ ἀλλrsquo ὑπὸ γῆς περ ἐὼν γίνεται ἀθάνατοςὅντινrsquo ἀριστεύοντα μένοντά τε μαρνάμενόν τεγῆς πέρι καὶ παίδων θοῦρος Ἄρης ὀλέσηι

Assim podemos propor que a elegia poderia ter passado por um estreitamento de sentido em parte devido sua relaccedilatildeo com o epigrama e a sua predisposiccedilatildeo e alusotildees a contextos de lamento O lamento natildeo seria a uacutenica caracteriacutestica mas aquela que po-deria destacar a elegia de outras formas de poesia arcaica Este processo teria se dado ou alcanccedilado sua concretude no seacutec V aC com a palavra elegoi significando tanto ldquolamentordquo desprovido de qualquer implicaccedilatildeo meacutetrica como passando a circunscrever a elegia gecircnero poeacutetico definido pela sucessatildeo de diacutesticos elegiacuteacos

Quem teria comeccedilado esse processo Ora considerando que todas as ocorrecircn-cias de elegoi no seacutec V aC com esse sentido exceto uma estatildeo no proacuteprio Euriacutepides e a proacutepria elegia de Androcircmaca eacute um claro exemplar deste fenocircmeno ele proacuteprio eacute nosso melhor candidato ou ao menos teve um papel fundamental no estabelecimento da relaccedilatildeo entre elegia e lamento Se pensarmos desse modo a elegia ndash em distinccedilatildeo ao threnos e ao goos ndash se coloca como o uacutenico gecircnero poeacutetico envolvendo o lamento que natildeo eacute um canto coral e sim uma monodia que prescindia da resposta de um coro Tambeacutem era um canto masculino natildeo necessariamente profissionalizado mas um canto solo que circulava nos banquetes e simpoacutesios gregos o que acrescentaria mais uma camada metapoeacutetica agrave fala em diacutesticos de Androcircmaca ela mesma uma monodia entoada por um ator do sexo masculino

Por todos esses motivos a elegia de Androcircmaca eacute singular na trageacutedia e na histoacuteria da literatura mostrando-se um ponto fulcral para o entendimento de tradi-ccedilotildees literaacuterias e histoacutericas que convergem e podem nos dizer algo sobre a praacutetica do lamento e os gecircneros poeacuteticos na Antiguidade

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A ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou

paranoia

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David Pessoa de Lira

Introduccedilatildeo

O traacutegico sendo uma categoria esteacutetica e um princiacutepio filosoacutefico pode ser es-tudado e analisado a partir das diferentes expressotildees literaacuterias e artiacutesticas como o romance as artes plaacutesticas a muacutesica a comeacutedia a trageacutedia etc Destarte o fenocircmeno traacutegico natildeo estaacute circunscrito apenas agrave trageacutedia Ademais esse conceito compreende vaacuterios outros conceitos como a culpa traacutegica a situaccedilatildeo traacutegica o conflito traacutegico e o sujeito traacutegico O que natildeo se pode negar eacute que a trageacutedia grega se torna o ponto re-ferencial de onde se deve partir e aonde se deve retornar para tratar da concepccedilatildeo do traacutegico ou especificamente da culpa traacutegica

O que vem depois destes versos eacute notaacutevel e torna a Androcircmaca uacutenica entre as trageacutedias que nos restaram um exemplo do virtuosismo de Euriacutepides Abruptamente os versos ditos por Androcircmaca deixam de ser os triacutemetros jacircmbicos proacuteprios dos diaacutelo-gos traacutegicos e mudam para um metro que os atenienses do seacuteculo V aC normalmente atribuiacuteam ao lamento o diacutestico elegiacuteaco (vv103-116) Eacute certo que a transiccedilatildeo entre os Estritamente este texto se propotildee a analisar os aspectos conceptuais da ἁμαρτία [ha-martiā] traacutegica em Oedipus Tyrannus de Soacutefocles a partir da Arte Poeacutetica de Aristoacutete-les e do pensamento grego sobre a culpabilidade

Procedendo a uma abordagem conceptual da culpa traacutegica leva-se em consi-deraccedilatildeo que a trageacutedia sofocleana de Oedipus Tyrannus se enquadra nos pressupos-tos do conceito aristoteacutelico de ἁμαρτία como uma ἀγνοία [agnoiā] e consequente-mente como παράνοια [paranoia] Assim objetiva-se a) Demonstrar que a ἀγνοία eacute a natureza da ἁμαρτία (culpa) de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus b) Explicar que o conceito aristoteacutelico da ἀναγνώρισις [anagnōrisis] possibilita encontrar a natureza da ἁμαρτία a saber a ἀγνοία c) Fundamentar atraveacutes da teoria da culpabilidade pessoal e da responsabilidade a partir do direito e da filosofia dos antigos gregos que a ἀγνοία de Eacutedipo evidencia uma ἁμαρτία escusaacutevel um estado de deliacuterio e paranoia

Para tal em um primeiro momento faz-se necessaacuterio explicar que o motivo de uma ignoracircncia mental (ἀιδρείη νόοιο) no mito de Eacutedipo incide na Odisseia 11271-275 Embora essa ignoracircncia mental (ἀιδρείη νόοιο) se refira a Jocasta de qualquer maneira se trata do tema da ignoracircncia em relaccedilatildeo aos atos supostamente delituosos praticados Em um segundo momento busca-se destacar que a ἁμαρτία a partir de Aristoacuteteles em sua De Arte Poetica eacute diferente da ideia de culpa ou peccatum de Secircne-ca Demonstra-se assim em uma parte ulterior que a ignoracircncia constitui a natureza da ἁμαρτία em Oedipus Tyrannus Finalmente a partir dos dados anteriores pode-se se obter a comprovaccedilatildeo de que a ἀγνοία em uma anaacutelise da culpabilidade escusa Eacutedi-po de qualquer crime cometido justamente por se enquadrar como um homo demens

O motivo da ἀιδρείη νόοιο (ignoracircncia da mente) no mito homeacuterico de Eacutedipo

A priori conveacutem explanar algumas caracteriacutesticas do μῦϑος [mythos] na tra-geacutedia A palavra μῦϑος na De Arte Poetica de Aristoacuteteles tem acepccedilatildeo de argumento enredo roteiro e narrativa De acordo com esse filoacutesofo o enredo ou o μῦϑος eacute uma das seis partes qualitativas de uma trageacutedia sendo uma imitaccedilatildeo das accedilotildees ou a or-

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ganizaccedilatildeo sinteacutetica das accedilotildees (De Arte Poetica 1450a3-5 7-15) Assim as accedilotildees e o μῦϑος constituem a finalidade da trageacutedia sendo o mais importante de tudo (De Arte Poetica 1450a22-23) Em uacuteltima anaacutelise diz-se que o enredo eacute o princiacutepio e a alma da trageacutedia (De Arte Poetica 1450a38-39) As partes do μῦϑος utilizadas como meios para a trageacutedia exercer a psicagogia satildeo os reconhecimentos (ἀναγνώρισεις) e as peripeacutecias (περιπέτειαι [peripeteiai]) (De Arte Poetica 1450a33-35) Em um enredo complexo haacute uma mudanccedila de fortuna com o reconhecimento ou com a peripeacutecia ou com ambos (De Arte Poetica 1452a16-18) A peripeacutecia eacute a mudanccedila das accedilotildees para o contraacuterio enquanto que o reconhecimento eacute a mudanccedila da ignoracircncia para o conheci-mento (De Arte Poetica 1452a22-31)

Ainda no que concerne ao μῦϑος muitos eventos satildeo produzidos em uma quantidade incomensuraacutevel e nem todos formam uma unidade propriamente dita As-sim uma personagem pode exercer muitas accedilotildees que natildeo implicam em uma accedilatildeo de forma unitaacuteria (De Arte Poetica 1451a16-19) O mito pode apresentar uma pluralidade de accedilotildees que natildeo constam em uma uacutenica obra literaacuteria Ademais oμῦϑος eacute assaz im-portante para se vislumbrar as accedilotildees praticadas no decorrer da histoacuteria

Na Iliacuteada 4378 haacute uma referecircncia agrave guerra de Polinice e seus aliados contra Tebas Ainda na Iliacuteada 23677-679 relata-se que ldquoEuriacutealo filho de Micisteus rei Talai-ocircneo foi um dia a Tebas ao tuacutemulo de Eacutedipo caiacutedo em guerra (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo A palavra δεδουπότος [dedoupotos] indica que Eacutedipo sofreu morte violenta em comba-te ou pelas matildeos de um assassino Aleacutem disso natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma incidecircncia sobre Eacutedipo e seus antecedentes Assim sendo nessa obra homeacuterica eacute pressuposto que Eacutedipo sofreu uma morte violenta e recebeu um tuacutemulo em Tebas antes mesmo do acontecimento da guerra de Troia Esse fato natildeo eacute mencionado por Soacutefocles em Oe-dipus Tyrannus Nota-se que seu mito apresenta uma pluralidade de informaccedilotildees que vatildeo aleacutem de um uacutenico texto literaacuterio

Em todo caso na Odisseia 11271-275 o esquema principal da histoacuteria de Eacutedipo eacute explicitado

Vi a matildee de Eacutedipo bela Epicasta a qual realizou um grande feito por ignoracircncia de mente casando com seu filho e ele tendo matado seu pai casou e rapidamen-te os deuses estabeleceram coisas notoacuterias aos homens Todavia ele reinava sobre os cadmeus em Tebas mui ama-da sofrendo dores por causa da dolorosa vontade dos deuses (traduccedilatildeo proacutepria) 57

Com relaccedilatildeo a esse outline sobre o mito de Eacutedipo conveacutem explicar que Epicas-ta eacute um outro nome para Jocasta Ademais no texto supramencionado a) natildeo se men-ciona nada sobre a libertaccedilatildeo de Tebas da Esfinge b) a cegueira de Eacutedipo natildeo incide c) nada se comenta sobre o exiacutelio (expulsatildeo) de Eacutedipo ndash o que levaria a concordar com a Iliacuteada Tudo indica que o autor desse texto tenha excluiacutedo a ideia de que Epicasta tenha gerado filhos de Eacutedipo Lxxx

Na Odisseia 11271-275 reza-se Lxxxi ldquoVi a matildee de Eacutedipo bela Epicasta a qual

realizou um grande feito por ignoracircncia de mente casando com seu filho (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo 58 A expressatildeo ἀιδρείη νόοιο (ignoracircncia de mente) equivale agraves palavras ἀγνοία e ἁμαρτία indicando a falta de conhecimento e a ignoracircncia Epicasta realizou um grande feito por ignoracircncia descuido e negligecircncia a saber casando com o proacuteprio filho Eacute evidente que incide o motivo da ignoracircncia Lxxxii mas essa ἀιδρείη νόοιο (igno-racircncia de mente) adveacutem da personagem Epicasta e natildeo de Eacutedipo

Em todo caso aleacutem de outros pormenores essa passagem potildee em evidecircn-cia o fato do casamento entre Eacutedipo e Epicasta ter se dado por ignoracircncia O fato de ter destacado a maneira como a accedilatildeo foi realizada pode levar justamente agrave natureza da ἁμαρτία em Oedipus Tyrannus Entretanto deve-se verificar se a accedilatildeo de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus foi um ato por engano ou por ignoracircncia Em De Arte Poetica 1453a8-9 15-16 pode-se confirmar que a ἁμαρτία natildeo tem um caraacuteter moral Em todo caso soacute a atestaccedilatildeo da sua natureza na contraposiccedilatildeo entre ἀγνοία e γνῶσις [gnōsis] pode confirmar isso

A ἁμαρτία e o aspecto moral

Soacutefocles em suas trageacutedias assim como Eacutesquilo focalizava a accedilatildeo em uma soacute personagem destacando o seu caraacuteter e os traccedilos de sua personalidade Ele introduz personagens mais humanas Seus heroacuteis satildeo mais humanos e acessiacuteveis do que os de Eacutesquilo mais equilibrados e menos retoacutericos do que os de Euriacutepides O fatalismo foi banido das suas trageacutedias Assim o ser humano com seu complexo de virtudes e de-feitos de paixotildees violentas e de sentimentos ternos ocupa um lugar central e prepon-derante na dramaacutetica sofocleana Lxxxiii

Segundo Nietzsche na Antiguidade natildeo havia o conceito de indiviacuteduo O con-ceito de indiviacuteduo era pouco desenvolvido mas o de estirpe famiacutelia e estado era pra-ticamente geral No entanto como diz Nietzsche haacute um caraacuteter imeacuterito do destino no indiviacuteduo incidente em Oedipus Tyrannus de Soacutefocles Pode-se perceber isso atraveacutes do enigma do destino do homem da culpa sem consciecircncia do sofrimento imerecido Sendo assim de acordo com Nietzsche a trageacutedia aponta para algo mais transcenden-tal para aleacutem desse mundo aleacutem da vida que natildeo merece mais ser vivida A trageacutedia eacute pessimista e Soacutefocles deixou de lado a maldiccedilatildeo da estirpe para falar de um Eacutedipo mortal e mergulhado no infortuacutenio graccedilas aos deuses Entretanto essa calamidade natildeo eacute necessariamente uma puniccedilatildeo mas uma forma de redenccedilatildeo por meio da qual o homem emerge e eacute consagrado como um homem piedoso Em uacuteltima anaacutelise o sujei-to do ato traacutegico (em um conflito insoluacutevel) tem de alcanccedilar a consciecircncia para sofrer conscientemente Por isso natildeo haacute accedilatildeo imoral mas erro de percurso Lxxxv

57 Εὐρύαλος [] Μηϰιστῆος υἱὸς Ταλαϊονίδαο ἄναϰτος ὅς ποτε Θήβας δ᾽ ἦλϑε δεδουπότος Οἰδιπόδαο ἐς τάφον (HOMERO 2008 v 2 p 426)μητέρα τ᾽ Οἰδιπόδαο ἴδον ϰαλὴν Ἐπιϰάστην ἣ μέγα ἔργον ἔρεξεν ἀιδρείῃσι νόοιο γημαμένη ᾧ υἷι ὁ δ᾽ ὃν πατέρ᾽ ἐξεναρίξας γῆμεν ἄφαρ δ᾽ ἀνάπυστα ϑεοὶ ϑέσαν ἀνϑρώποισιν ἀλλ᾽ ὁ μὲν ἐν Θήβῃ πολυηράτῳ ἄλγεα πάσχων Καδμείων ἤνασσε ϑεῶν ὀλοὰς διὰ βουλάς (HOMERO 2011 p 332-335 JEBB 2010 v 1 p xiv)58 μητέρα τ᾽ Οἰδιπόδαο ἴδον ϰαλὴν Ἐπιϰάστην ἣ μέγα ἔργον ἔρεξεν ἀιδρείῃσι νόοιοHOMERO 2011 p 332-335

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Embora Oedipus Tyrannus de Soacutefocles natildeo tenha sido composto para uma tri-logia sendo uma obra completa essa trageacutedia natildeo apresenta nenhum antecedente da peccedila como um proacutelogo de toda a maldiccedilatildeo dos labdaacutecidas e do proacuteprio Eacutedipo Sabe-se que Eacutedipo eacute um parricida e casou incestuosamente com sua matildee por puro desconhe-cimento Sabe-se que isso foi uma maldiccedilatildeo dos deuses proferida por meio de uma pitonisa de Apolo em Delfos Natildeo haacute em Oedipus Tyrannus um proacutelogo formal que explique a origem da maldiccedilatildeo Lxxxvi

Natildeo haacute duacutevida de que Eacutedipo tenha realizado falhas ou faltas Sobre o assas-sinato de Laio ele mesmo pergunta a Creonte ldquoποῦ τόδ᾽ εὑρεϑήσεται ἴχνος παλαιᾶς δυστέϰμαρτον αἰτίας (onde se encontraraacute pista de um crime antigo) (traduccedilatildeo proacute-pria)rdquo59 Em Oedipus Tyrannus natildeo incide a palavra ἁμαρτία Lxxxiii Para uma falta um crime uma responsabilidade ou causa Eacutedipo usa αἰτία [aitiā] Esta palavra ocorre uma uacutenica vez em Oedipus Tyrannus Em termos eacuteticos aristoteacutelicos para Eacutediposer respon-saacutevel (αἴτιος) precisaria ser viciado mau ou algueacutem de uma vida desregrada Lxxxviii

Aristoacuteteles em De Arte Poetica 1453a15-16 sugere

Eacute necessaacuterio que o mito seja mais simples do que duplo como alguns dizem e que mude natildeo do infortuacutenio para a boa sorte mas do contraacuterio da boa sorte para o infor-tuacutenio natildeo por causa da maldade mas por causa de um grande desvio (traduccedilatildeo proacutepria) 60

Ele menciona que se houver um infortuacutenio deve-se consideraacute-lo como ἁμαρτίαν τινά natildeo como um defeito moral ou como um viacutecio (ϰαϰὶα ϰαὶ μοχϑηρία) (De Arte Poetica 1453a8-9) Assim aqui ίμαρτία natildeo tem qualquer conotaccedilatildeo moral A culpa (ἁμαρτία) natildeo eacute necessariamente um viacutecio ou um mal mas uma culpa em es-tado de falha que leva agrave queda ao infortuacutenio e agrave perda de prestiacutegio O homem culpado natildeo eacute moralmente culpado natildeo eacute perfeito (proeminentemente virtuoso ou justo) mas tambeacutem natildeo eacute reprovaacutevel (inferior sem gloacuteria)xc

Segundo Lesky a partir da definiccedilatildeo de Aristoacuteteles eacute possiacutevel que haja uma indicaccedilatildeo daquilo que se julga como situaccedilatildeo basicamente traacutegica do ser humano Por isso Eacutedipo eacute mencionado como um exemplo dessa concepccedilatildeo do traacutegico xci

A culpa traacutegica com caraacuteter moral vem de Secircneca Secircneca aplicou seu caraacuteter estoico-moralizante apropriando-se do conceito de ἁμαρτία (peccatum) como culpa de caraacuteter moral Ele se distancia do antigo estoicismo e da maioria dos filoacutesofos gregos ao acentuar o sentido do peccatum e da culpa como marca de todo homem Para Secircne-ca natildeo existe homem sem pecado e consequentemente se afasta do ideal de saacutebio do antigo estoicismo xcii

59 Oedipus Tyrannus 108-109 SOPHOCLES 2010 v 1 p 3460 Ἀνάγϰη ἄρα τὸν ϰαλῶς ἔχοντα μῦϑον ἁπλοῦν εἶναι μᾶλλον ἢ διπλοῦν ὥσπερ τινές φασι ϰαὶ μεταβάλλειν οὐϰ εἰς εὐτυχίαν ἐϰ δυστυχίας ἀλλὰ τοὐναντίον ἐξ εὐτυχίας εἰς δυστυχίαν μὴ διὰ μοχϑηρίαν ἀλλὰ δι᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην (ARISTOTELES 1965 p 20)

Segundo Secircneca estruturalmente o homem eacute peccator incorrendo sempre em peccatum e natildeo ocasionalmente Nota-se que o conceito de peccatum estaacute relacionado com a ideia de voluntas Segundo o filoacutesofo latino a voluntas eacute o querer em consonacircn-cia com a accedilatildeo fazer querendo e natildeo se trata do fazer sabendo Como o peccatum natildeo estaacute relacionado agrave ignoracircncia assim a voluntas ultrapassando o niacutevel do saber res-ponde a solicitaccedilotildees que natildeo satildeo apenas de ordem do conhecimento Assim em uacuteltima anaacutelise a vontade torna os seres humanos bons ou maus xciii

Aristoacuteteles preveniu cuidadosamente para que a ἁμαρτία natildeo fosse interpreta-da moralmente Deve-se observar a importacircncia disso pelo fato de ao mencionar sobre a reviravolta salienta que esssa natildeo deve se basear em consequecircncia de uma grave falha (De Arte Poetica 1453a15-16) Sendo viacutetima de uma queda o sujeito traacutegico natildeo pode ser de acordo com Aristoacuteteles distinto por virtude e justiccedila nem por viacutecio e mal-dade mas por alguma falha (ἁμαρτίαν τινά) Assim Aristoacuteteles destaca que o sujeito traacutegico tem um caraacuteter meacutedio (μεταξύ [metaxy]) cuja reviravolta natildeo seja devido ao crime mas ao erro inconsciente (De Arte Poetica 1453a7-12) xcv

A ignoracircncia como natureza da ἁμαρτία em oedipus tyrannus

Segundo Albin Lesky para Aristoacuteteles a finalidade da poesia traacutegica eacute justa-mente a catarse De Arte Poetica de Aristoacuteteles trata da criaccedilatildeo literaacuteria e tem domi-nado as opiniotildees quando o assunto eacute trageacutedia Partindo para a finalidade da poesia traacutegica chega-se agrave catarsexcvi Seria possiacutevel encontrar aqui a natureza da ἁμαρτία

Segundo Nietzsche se considerar o conceito do traacutegico atraveacutes de uma esteacutetica moderna esse equiliacutebrio entre caraacuteter e destino culpa e puniccedilatildeo natildeo deve ser levado absolutamente do ponto de vista esteacutetico mas moral Isso soacute pode ser considerado em termos juriacutedicos delimitados O espectador faz parte de um juacuteri e compete ao mesmo dar sua aprovaccedilatildeo ao castigo de Eacutedipo ou natildeo Se assim for a ϰάϑαρσις [katharsis] traacute-gica seria aceita como uma espeacutecie de julgamento cataacutertico esteacutetico-moral empregan-do o seguinte criteacuterio o triunfo do homem justo comedido e apatoloacutegico No entanto de acordo com Nietzsche isso natildeo eacute a fonte do gecircnero traacutegico O conceito de traacutegico natildeo explica a origem da trageacutedia xcvii

Seja qual for a origem e fonte da trageacutedia em todo caso Eacutedipo natildeo pode ser julgado moralmente Natildeo se trata de um desvio por viacutecio ou maldade (ϰαϰὶα ϰαὶ μοχϑηρία) (De Arte Poetica 1453a8-9) xcviii Veja-se em De Arte Poetica 1449b27-28 Aristoacuteteles menciona o seguinte ldquorealizando por meio da compaixatildeo e do medo a catarse desses sentimentos (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo61 Sendo assim a catarse eacute um ele-mento purificador Ela eacute empregada em termos meacutedicos com o sentido de causar aliacutevio e dar prazer Entatildeo aqui a compaixatildeo e o medo satildeo os elementos causadores de uma purificaccedilatildeo agradaacutevel dos afetos e sentimentos xcix

Natildeo obstante a ϰάϑαρσις excita a piedade e o temor pelo ouvir sem ver (o abandono do filho o assassinato de Laio e a morte de Jocasta) A desintegraccedilatildeo dos

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laccedilos familiares a desestruturaccedilatildeo da piedade familiar a desestrutura do pietas erga parentes e do pietas erga liberos tudo isso gera o sentimento de falta de virtude As-sim o puacuteblico estaacute diante da impiedade c

Em todo caso esse efeito traacutegico soacute deve ser entendido contextualmente le-vando em consideraccedilatildeo os aspectos culturais do medo do horror e da moral Para Aris-toacuteteles por um lado o conceito de ϰάϑαρσις natildeo tinha efeito moral e por outro ela natildeo causava danosci Deve-se salientar que o sentimento compugente se daacute diante da mudanccedila de sorte principalmente com relaccedilatildeo aos que natildeo merecem o infortuacutenio O medo eacute decorrente do sentimento que coloca algueacutem em situaccedilatildeo semelhante agrave do de-safortunado (De Arte Poetica 1453a1-7) cii Obviamente isso trata especificamente dos efeitos do sentido para o espectador exercendo um jogo de emoccedilotildees paixotildees e terror

A catarse diante da situaccedilatildeo traacutegica de Eacutedipo aponta para uma soluccedilatildeo de na-tureza dupla a) ele merece ou natildeo chegar ao infortuacutenio b) deve se colocar em sua situaccedilatildeo Assim a ἁμαρτία de Eacutedipo eacute a a culpa traacutegica que a humanidade deve assumir em situaccedilatildeo de infortuacutenio a qual natildeo depende necessariamente dos seus planos Em uacuteltima anaacutelise ele fez o que fez por total ignoracircncia Aqui reside o ponto chave a saber a ἀγνοία (ignoracircncia e desconhecimento) Um conceito aristoteacutelico que trata especifi-camente do desconhecimento eacute justamente a ἀναγνώρισις

De acordo com Aristoacuteteles De Arte Poetica 1452a29 ldquoo reconhecimento [eacute] como tambeacutem o nome significa a mudanccedila da ignoracircncia para o conhecimento (tra-duccedilatildeo proacutepria)rdquo62 A palavra ἀναγνώρισις eacute reconhecimento ou accedilatildeo de reconhecer Na trageacutedia trata-se do reconhecimento que conduz ao desenlace (λῦσις [lysis]) (De Arte Poetica 1455b24-34) ciii

Etimologicamente o substantivo grego γνῶσις [gnōsis] e o verbo γιγνώσϰω [gignōskō] tecircm o sentido primaacuterio de conhecimento ou percepccedilatildeo Natildeo eacute muito difiacutecil tambeacutem perceber a relaccedilatildeo sinoniacutemica de gnose com νοῦς [nous] A palavra ἀγνοία [agoniā] indica justamente falta de conhecimento falta de percepccedilatildeo e ignoracircncia (com ou sem conduta moral) Consequentemente essa palavra tem a acepccedilatildeo de conduta equivocada de conduta errada ou de erro falta cometida por ignoracircncia e descuido cv

Em Oedipus Tyrannus 1347-1348 o coro em diaacutelogo com Eacutedipo diz ldquoInfeliz de consciecircncia e de sorte igualmente gostaria que tu natildeo tivesses conhecido nada (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo63 O texto descreve o estado de Eacutedipo pobre de mente (δείλαιε τοῦ νοῦ) o qual chegou ao conhecimento (γνῶναι ndash infinitivo de γιγνώσϰω) Embora o νοῦς [nous] seja o oacutergatildeo da gnose ele eacute descrito como uma metoniacutemia de gnose Em geral νοῦς [nous] denota mente mas pode conotar significado sensibilidade recorda-ccedilatildeo alma coraccedilatildeo intenccedilatildeo razatildeo intelecto entendimento pensamento intelecccedilatildeo sabedoria percepccedilatildeo intuiccedilatildeo cvi

61 δι᾽ ἐλέου ϰαὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παϑημάτων ϰάϑαρσιν (ARISTOTELES 1965 p 10)62 ἀναγνώρισις δέ ὥσπερ ϰαὶ τοὔνομα σημαίνει ἐξ ἀγνοίας εἰς γνῶσιν μεταβολή (ARISTOTELES 1965 p 17)

Diferente de Medeia de Euriacutepides Eacutedipo de Soacutefocles age sem saber ou conhe-cer por total ignoracircncia Ademais sua accedilatildeo natildeo incide no drama Soacutefocles criou uma peccedila em torno de uma situaccedilatildeo paranoica cvii das accedilotildees anteriores de Eacutedipo bem como seus precedentes

Pois eacute possiacutevel que a accedilatildeo siga como os antigos [poetas] faziam [as personagens] sabedoras e conhecedo-ras como tambeacutem Euriacutepides fez Medeia matar os filhos mas eacute possiacutevel agir desconhecendo para entatildeo depois reconhecer a relaccedilatildeo familiar como Eacutedipo de Soacutefocles as-sim isso estaacute fora do drama (traduccedilatildeo proacutepria)64

Medeia sabia que estava matando os filhos enquanto Eacutedipo tinha desconheci-mento de sua relaccedilatildeo parental com Laio As accedilotildees de Eacutedipo satildeo consequecircncias de uma rede de pensamento que o perseguia sobre sua verdadeira paternidade Mais adiante ele se enreda no drama de Tebas em torno da morte de Laio Entre esses acontecimen-tos a personagem dramaacutetica realiza tragicamente um ato paranoico

Oacute habitantes da Paacutetria Tebas olhai esse Eacutedipo que era um homem famoso conhecia os enigmas e era o mais poderoso de quem algueacutem dentre os cidadatildeos fica-va com inveja observando a sorte Entrou em uma onda de terriacutevel acontecimento Desse modo natildeo se conhece o ser mortal que guarda aquele uacuteltimo dia nem o considera feliz antes que o teacutermino da vida se complete e que sofra o desprazer (traduccedilatildeo proacutepria) 65

63 Δείλαιε τοῦ νοῦ τῆς τε συμφορᾶς ἴσον ὡς σ᾽ ἠϑέλησα μηδέ γ᾽ ἂν γνῶναί ποτεhellip (SOPHOCLES 2010 v 1 p 242-243)64 De Arte Poetica 1453b26-32 ἔστι μὲν γὰρ οὕτω γίνεσϑαι τὴν πρᾶξιν ὥσπερ οἱ παλαιοὶ ἐποίουν εἰδότας ϰαὶ γιγνώσϰοντας ϰαϑάπερ ϰαὶ Εὐριπίδης ἐποίησεν ἀποϰτείνουσαν τοὺς παῖδας τὴν Μήδειαν ἔστιν δὲ πρᾶξαι μέν ἀγνοοῦντας δὲ πρᾶξαι τὸ δεινόν εἶϑ᾽ ὕστερον ἀναγνωρίσαι τὴν φιλίαν ὥσπερ ὁ Σοφοϰλέους Οἰδίπους τοῦτο μὲν οὖν ἔξω τοῦ δράματος (ARISTOTELES 1965 p 22)65 Soacutefocles Oedipus Tyrannus 1524-1530 ὦ πάτρας Θήβης ἔνοιϰοι λεύσσετ᾽ Οἰδίπους ὅδε ὃς τὰ ϰλείν᾽ αἰνίγματ᾽ ᾔδει ϰαὶ ϰράτιστος ἦν ἀνήρ οὗ τίς οὐ ζήλῳ πολιτῶν ἦν τύχαις ἐπιβλέπων εἰς ὅσον ϰλύδωνα δεινῆς συμφορᾶς ἐλήλυϑεν ὥστε ϑνητὸν ὄντrsquo ἐϰείνην τὴν τελευταίαν ἰδεῖν ἡμέραν ἐπισϰοποῦντα μηδέν᾽ ὀλβίζειν πρὶν ἂν τέρμα τοῦ βίου περάσῃ μηδὲν ἀλγεινὸν παϑών (SOPHOCLES 2010 v 1 p 274-276)

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A ἀγνοία e a culpabilidade de Eacutedipo

Incide nos diaacutelogos platocircnicos uma tendecircncia a defender a teoria de que nin-gueacutem faz o mal voluntariamente mas por ignoracircnciacvii A partir dessa assertiva de-ve-se observar a teoria da culpabilidade pessoal do mal e a responsabilidade de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus Para isso faz-se necessaacuterio considerar segundo as condiccedilotildees internas e a psicologia do agente as vaacuterias modalidades de accedilatildeo um ato realizado de bom grado com pleno conhecimento de causa depois de uma decisatildeo e deliberaccedilatildeo e um ato de mau grado realizado inconscientemente por ignoracircncia ou coerccedilatildeo exter-na Ademais conveacutem observar se a accedilatildeo eacute premeditada e intencional de maneira que se estabeleccedila a distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo repreensiacutevel ou escusaacutevel Aqui natildeo se trata de uma distinccedilatildeo entre accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria mas em termo de conhecimento e ignoracircncia

Para ser culpada a pessoa deve ter agido conscientemente ou ldquosabendordquo As-sim a ἀγνοία constitui a proacutepria essecircncia da falta definindo a categoria de crime ou delito de mau grado sem intenccedilatildeo ou premeditaccedilatildeo delituosa Do ponto de vista do antigo direito grego a oposiccedilatildeo entre o ato realizado de bom grado e um ato realizado de mau grado foi definida em termos de conhecimento e ignoracircncia Por isso as faltas cometidas por ἀγνοία satildeo consideradas como de mau grado cix Isso adveacutem do fato de que na mentalidade grega antiga toda accedilatildeo estava relacionada ao conhecimento ou ao saber Na Antiguidade onde se esperava a ideia do querer ou da voluntas os gregos empregavam a ideia do saber do agir consciente premeditado deliberado e inten-cional Soacute a partir dessa concepccedilatildeo pode-se afirmar se uma accedilatildeo eacute imputaacutevel ou natildeo imputaacutevel ao sujeito repreensiacutevel ou escusaacutevel cx

Assim natildeo se pode defender definitivamente que Eacutedipo quis matar o pai e se casar com a matildee deliberadamente ou conscientemente Esses atos natildeo eram vislum-brados por Eacutedipo Seria necessaacuterio que seu crime fosse realizado ldquosabendordquo Platatildeo ad-mite a ἀγνοία como princiacutepio geral do delito mas ao lado desse princiacutepio ele entende que a ἀγνοία eacute a base de uma accedilatildeo natildeo delituosa Sendo assim esse paradoxo entre o princiacutepio essencial da falta e da escusa se exprime por conta da evoluccedilatildeo semacircntica das palavras que constituem a famiacutelia de ἁμαρτία cxi

Algueacutem natildeo mentiria dizendo que a terceira cau-sa dos delitos eacute a ignoracircncia Essa causa poreacutem o advo-gado poderia fazer melhor dividindo em duas partes por um lado leva-se em consideraccedilatildeo que a [forma] simples dela eacute a causa dos delitos leves por outro lado a forma dupla [eacute] quando algueacutem ignorar natildeo soacute sendo oprimido mas tambeacutem por falsa opiniatildeo da sabedoria conhecendo inteiramente sobre as coisas que ele nada conhece (tra-duccedilatildeo proacutepria) 66

66 Platatildeo Leges 9863c τρίτον μὴν ἄγνοιαν λέγων ἄν τις τῶν ἁμαρτημάτων αἰτίαν οὐκ ἂν ψεύδοιτο διχῇ μὴν διελόμενος αὐτὸ ὁ νομοθέτης ἂν βελτίων εἴη τὸ μὲν ἁπλοῦν αὐτοῦ κούφων ἁμαρτημάτων αἴτιον ἡγούμενος τὸ δὲ διπλοῦν ὅταν ἀμαθαίνῃ τις μὴ μόνον ἀγνοίᾳ συνεχόμενος ἀλλὰ καὶ δόξῃ σοφίας ὡς εἰδὼς παντελῶς περὶ ἃ μηδαμῶς οἶδεν (Plato 1926 v 2 p 232-233)

Segundo Jean-Pierre Vernant a evoluccedilatildeo semacircntica das palavras que consti-tuem a famiacutelia de ἁμαρτία eacute dupla Por um lado os termos podem indicar intenccedilatildeo Por exemplo ἁμαρτῶν (culpado intencionalmente cometeu ato criminoso) e οὐχ ἁμαρτῶν (agiu de mau grado sem intenccedilatildeo) Nesse sentido ἁμαρτάνω significa ἀδικέω (come-ter injusticcedila agir de forma injustificaacutevel cometer delito intencional) Em todo caso o verbo ἁμαρτάνω deixa impliacutecita uma ideia primitiva que comeccedila a se disseminar no seacutec V aEC a saber de falta e de cegueira de espiacuterito Assim o verbo ἁμαρτάνω se aplica agrave falta escusaacutevel sem intencionalidade ou sem plena consciecircncia xii Eacutedipo age de mau grado sem intenccedilatildeo por total cegueira da ignoracircncia Natildeo se pode negar que sua atitude vinha acompanhada de inconsequecircncias e sem plena consciecircncia de seus atos

Platatildeo alarga as concepccedilotildees mais antigas acerca da falta A palavra ἁμάρτημα [hamartēma] incide na Antiguidade como erro do espiacuterito (mental) como poluccedilatildeo religiosa ou fraqueza moral Como se percebeu anteriormente o verbo ἁμαρτάνω tem a acepccedilatildeo de enganar-se com sentido de desvario de inteligecircncia de cegueira danosa de uma cegueira que precipita ou leva agrave ruiacutena Em uacuteltima anaacutelise a ἁμαρτία eacute uma doenccedila mental e o criminoso eacute um doente viacutetima da proacutepria ἁμαρτία do deliacuterio O ἁμαρτίνοος eacute um homo demens que perdeu o senso A loucura da ἁμαρτία assedia a pessoa como uma ἄτη [atē] interiormente penetrando como uma forccedila religiosa do mal A forccedila da loucura da ἁμαρτία age tanto internamente como exteriormente atin-gindo desde o sujeito da accedilatildeo passando pelos familiares ateacute uma poacutelis inteira cxiii

Foi mencionado anteriormente que Soacutefocles criou uma peccedila em torno de uma situaccedilatildeo paranoica das accedilotildees anteriores de Eacutedipo bem como seus precedentes Deve--se entender essa paranoia como um ato de pensar equivocadamente pensar errado entender mal conceber errado estar sem sentido ou delirar pensamento desviado loucura ou deliacuterio Trata-se de uma anormalidade do νοῦς [nous] A situaccedilatildeo de Eacutedipo eacute um estado paranoico de cegueira danosa e de doenccedila mental Trata-se de uma locura causada pela ἁμαρτία enquanto deliacuterio cxiv

Desde o final do seacutec IV aEC a palavra ἁμάρτημα estava associada agrave noccedilatildeo de delito natildeo intencional Isso eacute tatildeo notoacuterio que o proacuteprio Aristoacuteteles diferencia ἁμάρτημα de ἀδίκημα (delito intencional e premeditado) ἀτύχημα (um delito acidental estranho ao saber do agente) cxv Se assim for a coexistecircncia paradoxal e de sentidos contradi-toacuterios na mesma famiacutelia de ἁμαρτία se prolongou por muitos seacuteculos No entanto isso soacute ocorre porque a noccedilatildeo de ἀγνοία incide em dois niacuteveis distintos de pensamento Por um lado pode-se concebecirc-la como forccedila sinistra que assedia o espiacuterito humano impelindo-o para uma cegueira maleacutefica Por outro lado trata-se de uma falta de co-nhecimento por parte do ser humano em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees proacuteprias dos atos cxvi

A palavra ἁμαρτία De Arte Poetica 1453a8-9 15-16 ainda carrega em seu bojo o sentido paradoxal e ambiacuteguo entre a falta imputaacutevel e natildeo imputaacutevel ao sujeito entre a falta repreensiacutevel e escusaacutevel Destarte Aristoacuteteles alerta constamente sobre a especificidade da ἁμαρτία cxvii Assim Eacutedipo esse homem culpado sofrido dolorido e esmagado eacute um homem envolvido em uma desgraccedila imerecida por ocasiatildeo de sua ignoracircncia e jogado ao caminho Esse homem uma vez era um heroacutei (homo divinus

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homo heros) decaiacutedo na sua proacutepria humanidade indo nesta existecircncia ateacute o mais baixo status da humanidade

Conclusatildeo

Em Oedipus Tyrannus como supramencionado a concepccedilatildeo da ἀγνοία pode ser compreendida e interpretada a partir de dois niacuteveis de pensamento No entanto como natildeo fica expliacutecito a atuaccedilatildeo dos astros deuses e a maldiccedilatildeo de sua estirpe pro-cura-se encontrar um erro em Eacutedipo gerando muitas vezes mal-entendido na semiose da trageacutedia A arrogacircncia de Eacutedipo sua falta de medida (ὕβρις [hybris]) compele a culpaacute-lo por sua escolha Em todo caso Soacutefocles natildeo apresentou nenhuma πρώταρχος ἄτη [prōtarkhos atē] ou seja uma culpa maleacutefica ou perversa cxviii Poreacutem nem em Oedipus Tyrannus nem em De Arte Poetica incidem as expressotildees ὕβρις e πρώταρχος ἄτη em consonacircncia com ἁμαρτία De qualquer maneira essas palavras configuram um aspecto esteacutetico-moral

Eacute plausiacutevel que Eacutedipo se apresente com uma ἀγνοία de segundo niacutevel a saber uma falta de conhecimento por parte do ser humano em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees proacuteprias das suas accedilotildees De Arte Poetica 1453b26-32 Aristoacuteteles menciona refererindo-se a Eacutedipo que eacute possiacutevel as pessoas agirem desconhecendo (ἀγνοοῦντας πρᾶξαι) cxix Ora em termos de uma concepccedilatildeo grega antiga para ser culpado o indiviacuteduo deveria agir sabendo Logo Eacutedipo natildeo poderia ser culpado

Eacute possiacutevel aventar levando os antecedentes de Eacutedipo que ele foi simplesmente usado pelas forccedilas divinas principalmente no que diz respeito agrave maldiccedilatildeo de sua estir-pe Quanto a isso Eacutedipo seria inocente e natildeo poderia pagar pelos seus atos uma vez que foi compelido ou estava sob um estado de coerccedilatildeo da fatalidade agindo como agiu No entanto ateacute o fato de ter nascido de iacutempios era totalmente desconhecido dele Aleacutem do incesto e do parriciacutedio uma maldiccedilatildeo veio a ser explicitada e ele percebeu que era um ldquoateurdquo ldquofilho de iacutempios

Entatildeo daqueles que fui gerado eu natildeo viria como assassino do pai nem noivo [da matildee] seria chamado entre os mortais E ago-ra eu sou um sem deus e filho de iacutempios E consaguiacuteneo infeliz dos quais fui gerado (traduccedilatildeo proacutepria)67

Em Oedipus Tyrannus a maldiccedilatildeo da estirpe eacute substituiacuteda por uma falta de conscientizaccedilatildeo de reconhecimento A posteriori Eacutedipo reconhece que eacute filho de uma famiacutelia maldita mas suas accedilotildees estatildeo em relevo A maldiccedilatildeo da estirpe ficaraacute subjacen-te agraves atitudes equivocadas de Eacutedipo e aquela soacute viraacute agrave baila com o reconhecimento Natildeo obstante na passagem anterior natildeo fica claro se Soacutefocles usou esse lamento de Eacutedipo para expressar que ele Eacutedipo ldquosujourdquo ou ldquomaculourdquo sua estirpe sua famiacutelia e o culto

67 Soacutefocles Oedipus Tyrannus 1357-1361 οὔκουν πατρός γ᾽ ἂν φονεὺς ἦλθον οὐδὲ νυμφίος βροτοῖς ἐκλήθην ὧν ἔφυν ἄπο νῦν δ᾽ ἄθεος μέν εἰμ᾽ ἀνοσίων δὲ παῖς ὁμογενὴς δ᾽ ἀφ᾽ ὧν αὐτὸς ἔφυν τάλας Sophocles 2010 v 1 p 246-247

aos antepassados ou se havia uma maldiccedilatildeo anterior a ele Ao que tudo indica Eacutedipo maculou seus antepassados e descendecircncia profanando sua famiacutelia A passagem que poderia apontar para uma maldiccedilatildeo da estirpe na verdade aponta o resultado da ἁμαρτία enquanto ἀγνοία Jocasta eacute profanada por causa de Eacutedipo e isso explica por que Eacutedipo eacute um ἀνοσίων παῖςcxx Portanto Eacutedipo em Oedipus Tyrannus natildeo eacute viacutetima do destino uma vez que a maldiccedilatildeo resulta de suas accedilotildees tendo implicaccedilotildees no futuro e para os antepassados Eacutedipo eacute a arma de vinganccedila da maldiccedilatildeo de Laio ao agir de forma equivocada alterando a rota de posteridade da sua estirpe e aniquilando o culto aos antepassados

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Amor e poesiaem Plutarco

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Maria Aparecida de Oliveira Silva

Plutarco utiliza tanto a poesia quanto a filosofia aproximando-as para elabo-rar seus conceitos sobre o amor em Diaacutelogo do Amor Notamos que o autor se volta para a praacutetica da teoria cxxii por isso o caraacuteter prescritivo de seu textocxxii A teoriaplutarquiana do amor em sua gecircnese prioriza a accedilatildeo uma vez que sua base foi cons-truiacuteda a partir de um episoacutedio amoroso Portanto eacute uma teoria praacutetica que tenciona ensinar como o homem e a mulher devem atuar para viver tal sentimento no seu ca-samento cxxiv Neste capiacutetulo trataremos em especial do uso da poesia na escrita deste tratado e na construccedilatildeo de seu argumento favoraacutevel a adoccedilatildeo de Eros como o deus do amor O tema principal de Diaacutelogo do Amor eacute a relaccedilatildeo de Ismenodora e Baacutecon con-siderada incomum pois se trata do casamento de uma mulher viuacuteva abastada e de famiacutelia ilustre com um jovem belo de origem bastante modesta De acordo com Rist (2001 p 577) Ismenodora teria por volta de trinta anos de idade e Baacutecon em torno de dezoito O diaacutelogo acontece logo apoacutes o casamento de Plutarco com Timocircxena quando ele levou sua esposa para realizar sacrifiacutecios em honra do deus Eros devido agrave desaven-ccedila ocorrida entre seus pais Assim a ida do casal agrave cidade de Teacutespias teve por finalidade estreitar seus laccedilos afetivos evitando que a contenda de seus pais interferisse em seu casamento (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B)

Diaacutelogo do Amor se inicia com Flaviano pedindo ao filho de Plutarco Autobulo que relate o debate sobre o amor ocorrido durante as Erotiacutedias festividades dedicadas a Eros realizadas na cidade de Teacutespias (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 748E-F) As personagens do diaacutelogo satildeo Flaviano Autobulo Plutarco Dafneu Soclaro Protoacutegenes Zeuxipo Antecircmion e Piacutesias Tambeacutem assistem ao debate os amigos beoacutecios que acom-panharam Plutarco na viagem e alguns cidadatildeos teacutespios presentes no momento do diaacutelogo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B-C)

Como jaacute dissemos a discussatildeo ocorreu durante as Erotiacutedias festividades dedi-cadas a Eros realizadas na cidade de Teacutespias (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 748E-F) e que por estarem ao peacute do Monte Heacutelicon igualmente se estendiam agraves Musas Mas o casal natildeo estava sozinho na ocasiatildeo Plutarco viajava tambeacutem com um grupo de ami-gos que resolveram caminhar pela cidade e encontraram outros companheiros logo sendo interpelados por Baacutecon O jovem promove entatildeo um debate sobre se deveria ou natildeo desposar Ismenodora No entanto o narrador do diaacutelogo natildeo eacute Plutarco mas o seu filho Autobulo que eacute indagado por seu amigo Flaviano Nosso autor repete a estrutura dialoacutegica de Platatildeo em O Banquete no qual vemos um diaacutelogo dentro de outro com um narrador que natildeo presenciou a discussatildeo original

Em seu uso da poesia euripidiana na conversa nosso autor revela o pensa-mento misoacutegino corrente natildeo apenas na Greacutecia Claacutessica como ainda em seu tempo Quando os debatedores satildeo avisados de que Ismenodora raptou Baacutecon o primeiro a demonstrar insatisfaccedilatildeo com o noticiado foi Zeuxipo Ele havia sido apresentado por Plutarco ldquocomo amigo de Euriacutepidesrdquo (φιλευριπίδην ὄντα) e ironizado pela fama de mi-soacutegino do tragedioacutegrafo porque o lacedemocircnio comenta a notiacutecia do rapto com este verso de Euriacutepides de uma peccedila desconhecida (frag 986 Nauck-Snell) ldquoenvaidecida pela riqueza como mortal mulher pensasrdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 755B) As criacuteticas de Zeuxipo estatildeo direcionadas ao modo inconsequente como atuou Ismenodo-

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ra ao conceber o rapto de Baacutecon e por valer-se de sua riqueza para realizar sua vonta-de Depois dessa afirmaccedilatildeo apoacutes vaacuterias manifestaccedilotildees dos presentes sobre o ocorrido Plutarco cita Heraacuteclito cxxvi para justificar o ato desmedido de Ismenodora e explica que contra Eros ldquoeacute difiacutecil combaterrdquo (frag 85 Diels) (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 755D) No momento em que Pemptides coloca em duacutevida o poder de Eros nosso autor escla-rece que a soberania desse deus suplanta a razatildeo humana e cita o verso 203 das Bacas de Euriacutepides ldquoNem se o saber fosse descoberto por um espiacuterito mais elevadordquo (PLU-TARCO Diaacutelogo do Amor 756B) Com essa citaccedilatildeo nosso autor mostra a Pemptides que o divino natildeo eacute conhecido em sua totalidade e que precisa da crenccedila para existir uma vez que nem tudo eacute comprovado pela razatildeo humana no campo do divino Aleacutem disso Plutarco explica o sentido dessa confianccedila humana no culto aos deuses

Mas ela eacute um apoio e uma base comum para sustentar a piedade se por um for estremecida se a seguranccedila dela for abalada e considerada ela se torna em tudo instaacutevel e suspeita(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756B)

Acerca do trecho citado Babut (2003 p 543) afirma que Plutarco revela nele o seu propoacutesito de fortalecer os valores transmitidos pela religiatildeo tradicional grega por entender que a religiosidade dos antigos gregos tem sua visatildeo de mundo embasada na filosofia Consequentemente ele demonstra seu conservadorismo em mateacuteria de culto e sua preocupaccedilatildeo de natildeo tocar o intocaacutevel Sua intenccedilatildeo eacute valorizar o espiacuterito em detrimento da razatildeo comprovadora Plutarco ainda afirma que Pemptides estaacute sob a influecircncia de Euriacutepides por meio de seu proecircmio de Melanipo Saacutebia uma peccedila natildeo preservada (frags 480 e 481 Nauck)

Estaacutes ouvindo sem duacutevida Melanipo aquele contestado proacutelogo composto por Euriacutepides

Zeus quem quer que seja Zeus natildeo o conheccedilo exceto por discurso

apoacutes trocar um coro por outro (como parece estava con-fiante com seu drama porque o havia escrito com pompa e distinccedilatildeo) mudou o verso para como agora estaacute escrito

Zeus como dito pela verdadePortanto o que difere pocircr em duacutevida pela razatildeo a repu-taccedilatildeo de Zeus ou de Atena ou de Eros e o desconhecido (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756B-C)

Ao trazer agrave memoacuteria o episoacutedio do proecircmio euripidiano Plutarco adverte os presentes sobre as implicaccedilotildees da impiedade contra os deuses Sobre Melanipo filha de Posiacutedon que responde pela origem do povo beoacutecio Euriacutepides escreveu duas peccedilas a saber Melanipo Saacutebia e Melanipo Acorrentada Em nosso entendimento as alteraccedilotildees

euripidianas apontadas indicam que seu puacuteblico natildeo aceitou sua duacutevida sobre a exis-tecircncia de Zeus O resultado disso configura-se no fato de o proacuteprio autor reconhecer de bom grado ou natildeo que a divindade eacute inquestionaacutevel que a arrogacircncia diante dos assuntos divinos implica em atos insensatos como os do proacuteprio tragedioacutegrafo Plu-tarco faz uso dos versos de Euriacutepides para sustentar este questionamento ldquoPortanto o que difere pocircr em duacutevida pela razatildeo a reputaccedilatildeo de Zeus ou de Atena ou de Eros e o desconhecidordquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756C) direcionado agrave defesa de Eros como o deus do amor e rebatendo as criacuteticas a essa divindade Plutarco reforccedila sua opiniatildeo sobre o poder de Eros como o deus do amor citando estes versos do filoacutesofo e poeta siciliano Empeacutedocles cxxvii (frags 20-21 Diels-Kranz)

Mas quando ouves o dito por Empeacutedocles companheiro

e a afeiccedilatildeo entre eles eacute equivalente em largura e compri-mento tu examina-a com o pensamento natildeo fiques com o olhar parado por estares atocircnito o mesmo pensas que deve ser dito sobre Eros Pois ele natildeo eacute visiacutevel mas esse deus eacute honrado por noacutes entre os mais antigos(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D)

Neste debate entre o culto de Eros como o deus do amor defendido por Plutar-co e as criacuteticas de Pemptides ao deus nosso autor segue seu discurso afirmando que

se exigires uma prova sobre cada coisa investigando cada santuaacuterio e aplicando sua experiecircncia sofiacutestica em cada al-tar admitirias que nenhum eacute irrepreensiacutevel e nem funda-mentado (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D)

Novamente Plutarco estabelece que o campo do sagrado natildeo eacute alcanccedilaacutevel pela razatildeo humana em sua totalidade Na construccedilatildeo de seu discurso argumentativo o autor une versos de trageacutedias distintas para acrescer ao seu argumento o caso de Afro-dite O primeiro verso citado pertence a uma trageacutedia desconhecida de Euriacutepides (frag 898 1 Nauck-Snell) os dois subsequentes satildeo os versos 449 e 450 de Hipoacutelito tambeacutem de Euriacutepides Em seguida cita a frase ldquodoadora de vidardquo de Empeacutedocles (frag 31 B 151 Diels-Kranz) e ldquofeacutertilrdquo de Soacutefocles (frag 8551-4 Nauck)

Natildeo vou longe

com relaccedilatildeo agrave Afrodite natildeo vecircs o quatildeo eacute deusa -Ela eacute semeadora e concessora de amorpor ele todos somos seus descendentes na terra

ldquoDoadora de vidardquo Empeacutedocles e ldquoFeacutertilrdquo Soacutefocles assim a nomeiam com muita propriedade e conveniecircncia

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(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D-E)

Apoacutes comparar o fragmento supracitado por Plutarco com os versos pindaacuteri-cos Rinaldi (2010 p 213) afirma que o tema central de sua ode eacute o poder de Afrodite visto que ela nutre todos os mortais e concorre para sua disseminaccedilatildeo Dando conti-nuidade agrave construccedilatildeo de seu discurso em uma manobra retoacuterica para associar Afrodite a Eros nosso autor faz referecircncias ao verso 295 retirado da peccedila Coeacuteforas de Eacutesquilo e a um pensamento de Parmecircnides (frag 28 B 13 Diels-Kranz) Plutarco continua

Mas igualmente eacute de Eros essa magniacutefica e espantosa obra de Afrodite porque ele estaacute subordinado agrave Afrodite dan-do-lhe assistecircncia se natildeo lhe assiste com cuidado seu fei-to seria abandonado ao descasosem honra nem amizade

Eacute uma uniatildeo sem amor tal com a fome e a sede que tem sua satisfaccedilatildeo mas natildeo atinge o belo Mas a deusa com o auxiacutelio de Eros refuta o fastio do prazer e realiza a ami-zade e a alianccedila Por isso Parmecircnides declara que Eros eacute o mais antigo feito de Afrodite na Cosmogonia escreve

Concebeu Eros primeiro do que todos os deuses(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756E-F)

Entatildeo percebemos que embora registre o dito por Empeacutedocles na sequecircncia de sua exposiccedilatildeo Plutarco afirma concordar com a anterioridade do deus em relaccedilatildeo agrave Afrodite e fundamenta seu pensamento referindo-se a Hesiacuteodo cxxvii

Parece-me que Hesiacuteodo eacute o mais natural ao compor que Eros nasceu primeiro do que todos para que todos por meio dele participassem da geraccedilatildeo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756F)

Ainda que nosso autor declare sua concordacircncia com a cosmogonia de Hesiacuteodo ndash felizmente preservada apresentada por ele em sua obra intitulada Teogonia ndash nota-mos que Plutarco ignora a anterioridade do Caos da Terra e do Taacutertaro para conferir a primogenitura a Eros dado que pode ser constatado com a leitura dos seguintes versos hesioacutedicos

Sim bem primeiro nasceu o Caos depois tambeacutemTerra de amplo seio de todos sedeirresvalaacutevel sempredos imortais que tecircm a cabeccedila do Olimpo nevadoe Taacutertaro nevoento no fundo do chatildeo deamplas viase Eros o mais belo entre os Deuses imortaissolta-membros dos Deuses todos e doshomens todos

ele doma no peito o espiacuterito e a prudente vontade(HESIacuteODO Teogonia vv 116-122)

Em seu intento sofiacutestico puramente retoacuterico Plutarco seleciona e redirecio-na as informaccedilotildees de Hesiacuteodo para construir seu discurso sobre a anterioridade do deus Eros Embora os versos seguintes natildeo tenham sido registrados em seu diaacutelogo eacute possiacutevel perceber os ecos destes ldquodos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espiacuterito e a prudente vontaderdquo (HESIacuteODO Teogonia vv 121-122) na concepccedilatildeo plutarquiana da onipotecircncia de Eros como o deus do amor pensamento igualmente reproduzido por Platatildeo (O Banquete 178b)

No entanto por ignoracircncia da meritoacuteria participaccedilatildeo de Eros na relaccedilatildeo amo-rosa Plutarco demonstra que ainda assim ele eacute uma divindade desrespeitada com estes versos da peccedila perdida Dacircnae de Euriacutepides (frag 3221 Nauck-Snell)

Natildeo haacute nada a dizer sobre por que alguns insultam Eros e voltam suas preces agravequelamas de uma cena ouvimos

Eros eacute ocioso e nasceu para tais(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757A)

Assim Plutarco continua seu argumento sobre Eros natildeo ser o uacutenico deus inju-riado pelos mortais e registra os seguintes comentaacuterios sobre Afrodite e Hades agora apoiado em versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 855 1-4 Nauck)

e outra vez

Meninos a Ciacutepria natildeo eacute somente Ciacutepriamas haacute epocircnimo de muitos nomes para elaHaacute Hades haacute vida imortal e haacute uma loucura delirante

tal como quase nenhum dos outros deuses escapou ao in-sulto da injuriante ignoracircncia(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757A)

Nosso autor prossegue argumentando que a impiedade humana se estende aos demais deuses que igualmente satildeo alvo de suas maledicecircncias e assim relativiza a forccedila de qualquer argumento contraacuterio ao deus Eros E novamente com versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 754 Nauck) ademais dos de Homero (Iliacuteada V 31 e 831) e de uma frase do filoacutesofo Crisipo cxxx (frag 2 von Arnim) Plutarco revela que embora seja uma divindade reconhecida por seus atributos Ares tambeacutem recebe insultos dos autores gregos

quantas honras suntuosas Ares obteve dos homens e ain-da o quanto se ouve falar mal dele

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cego oacute mulheres sem ver Arescom cara de porco revolve todos os males

e como o proacuteprio Homero o chama ldquosujo de sanguerdquo e ldquovoluacutevelrdquo E Crisipo ao interpretar o nome do deus faz--lhe uma acusaccedilatildeo e uma caluacutenia pois afirma que Ares eacute relativo a ldquodestruirrdquo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757B)

Em busca da consolidaccedilatildeo de seus argumentos nosso autor destaca o parado-xo existente na relaccedilatildeo humana com os deuses porque os homens os injuriam e ao mesmo tempo pedem seu auxiacutelio nos momentos em que necessitam resolver um pro-blema ou esperam por uma atuaccedilatildeo infaliacutevel numa disputa Por isso citando primeiro Caliacutemaco (frag 379 Schneider) e depois um verso de Eacutesquilo (frag 200 Nauck) da sua peccedila perdida Prometeu Libertado nosso autor declara

ldquoMas caccedilam antiacutelopes lebres e cervos por Agrotera uma deusa que os estimula com seus gritos e os incita ao com-bate e oram a Aristeu os que se apoderam com fossos e redes dos lobos e ursos

Quem primeiro construiu armadilhas para as feras

E Heacuteracles invoca outro deus quando quer atirar o arco em um paacutessaro como Eacutesquilo diz

Apolo Agreus conduziria reto esta flecha(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757D)

Ora se haacute a necessidade de um deus para que accedilotildees humanas sejam bem-su-cedidas e se o amor eacute um sentimento importante e fundamental para a continuidade da espeacutecie humana por meio do casamento por que esse sentimento natildeo possuiria um deus regente Debruccedilado sobre essa questatildeo nosso autor volta a postular pela neces-sidade de um deus do amor ao referenciar Homero (Odisseia V 69)

E ao homem que potildee as matildeos na mais bela presa por es-colher a amizade natildeo haacute um deus nem um nume que in-tervenha e participe de sua empresaEu pelo menos nem o carvalho nem a oliveira sagrada ou a que Homero em celebraccedilatildeo declarou ldquocultivadardquo acre-dito que natildeo seja um ramo mais belo e superior que o da planta humana amigo Dafneu por ter um instinto de ger-minaccedilatildeo que nos revela juventude e beleza simultacircneas no corpo e na almardquo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757E)

Com esse paralelo estabelecido entre o homem e as aacutervores o discurso plutar-

quiano enfatiza o papel da naturalidade da reproduccedilatildeo humana sobretudo o quanto a amizade eacute fundamental na relaccedilatildeo amorosacxxxi Plutarco segue com seu siacutemile pelos versos de Piacutendaro (frags 165 e 153 Snell-Maehler) para destacar que ateacute as aacutervores tecircm divindades que as protegem para a reproduccedilatildeo

Ou para eles algumas natildeo satildeo Ninfas Driacuteades

que da mesma aacutervore o termo da vida obtecircme Dioniso jubiloso aumenta o alimento das aacutervoresesplendor puro no fim do veratildeo

segundo Piacutendaro(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757E-F)

Logo a questatildeo que Plutarco coloca aos presentes eacute se ateacute mesmo as aacutervores dispotildeem de divindades protetoras para sua reproduccedilatildeo por que os homens natildeo teriam um deus que protegesse o amor responsaacutevel pela uniatildeo de um homem com uma mu-lher e pela sua consequente reproduccedilatildeo da espeacutecie Em seguida nosso autor induz os presentes a pensar em outra contradiccedilatildeo se por um lado natildeo haacute um deus protetor da relaccedilatildeo amorosa que culmina no casamento e na continuaccedilatildeo da raccedila humana por outro o homem dispotildee de divindades protetoras quando morto Como explicar isso Para fundamentar tal raciociacutenio Plutarco usa os seguintes versos de uma trageacutedia de nome e autoria desconhecidos (frag 405 Kannicht-Snell)

eacute servo e condutor de almas para Plutatildeo

Noite natildeo me gerou senhor da liranem adivinho nem meacutedico mas um condutor de almas(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758B)

Por conseguinte Plutarco declara Hermes Psicopompo o condutor de almas e Plutatildeo como os regentes dos homens quando mortos Como resultante disso em uma sequecircncia de citaccedilotildees que comeccedila com Euriacutepides (Bacas 66) passa por Homero (Odis-seia II 372 e XV 531) e se encerra com Melaniacutepides (frag 7(763) Page) nosso autor torna mais soacutelido o seu argumento em favor de Eros como o deus regente da relaccedilatildeo amorosa

Pois nada haacute nisso de vergonhoso nem forccediloso mas haacute persuasatildeo e graccedila que concede uma ldquopena prazerosardquo na verdade ldquotambeacutem um esforccedilo faacutecilrdquo que conduz agrave virtude e agrave ami-zade visto que as tomam para o conveniente fim e natildeo ldquosem um deusrdquo mas natildeo tecircm outro comandante e sobera-no deus que Eros companheiro das Musas das Caacuterites e de Afrodite

No doce veratildeo do homem semeando o desejo no coraccedilatildeo

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segundo Melaniacutepides mescla as mais prazerosas com as mais belas(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758B-C)

Plutarco relata que a manifestaccedilatildeo de Eros no amoroso ou seja naquele que eacute capaz de amar eacute tal qual a de outros deuses como Apolo e Dioniso por meio ldquode ins-piraccedilatildeo e possessatildeordquo (ἐπιπνοίας καὶ κατοχῆς) (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758E) Para embasar seu discurso o autor cita primeiramente um verso de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 778 Nauck) depois um pensamento de Platatildeo (Fedro 245a) e os ver-sos de Eacutesquilo (Suplicantes 681-682) conforme lemos no trecho a seguir

ldquoA adivinhaccedilatildeo entusiaacutestica proveacutem de Apolo de sua ins-piraccedilatildeo e possessatildeo e a baacutequica de Dioniso Conforme os Coribantes danccedilai

diz Soacutefocles os assuntos de Demeacuteter e Pan satildeo comuns agraves orgias baacutequicas ldquoA terceira origem vinda das Musas toma uma alma delicada e imaculadardquo provoca e estimula o entusiasmo poeacutetico e musical Haacute essa tambeacutem chamada loucura de Ares que preside a guerra e em tudo estaacute claro qual deus concede e anima o deliacuterio miacutestico

Ao armar Ares sem danccedila nem ciacutetara lacrimoso e um grito nativo

ldquoE parte dessa confusatildeo e ilusatildeo que subsiste no homem natildeo eacute impliacutecita nem tranquila(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758E-F e 759A)

Na sequecircncia desse discurso por meio de um verso de uma trageacutedia de nome e autoria desconhecidos (frag 406 Nauck) e de Homero (Iliacuteada VII 121-122) notamos que nosso autor desenvolve sua argumentaccedilatildeo sobre a necessidade de afastar essa lou-cura da relaccedilatildeo amorosa para atrair a tranquilidade

Qual deus sacode o tirso de belo frutoesta empolgaccedilatildeo amorosa por meninos nobres e mulheres prudentes que eacute muito mais lancinante e ardenteldquoOu natildeo vecircs que o soldado ao depor suas armas encerra a loucura da guerra

entatildeo logojubilosos guardiotildees retiraram-lhe as armas dos ombros

e senta ao lado de suas armas como um paciacutefico expecta-

dor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759A)

Plutarco segue descrevendo essa ldquoloucura amorosardquo (τὴν δrsquo ἐρωτικὴν) como algo que perturba o pensamento humano Citando Euriacutepides (Hipoacutelito 478) afirma que natildeo haacute ldquocanto maacutegico sedutorrdquo que lhe mantenha calmo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759B)cxxxii No entanto lembrando uma maacutexima dos filoacutesofos ciacutenicos Plutarco diz que se houver um deus que o guie o amante permanece em uma caminhada ldquocon-tiacutenua e curta descobre uma passagem para a virtuderdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759D)

Pelos versos sofoclianos nosso autor inicia sua defesa sobre a natureza da par-ticipaccedilatildeo de Afrodite na relaccedilatildeo amorosa ao mencionar Traquiacutenias verso 497

Grande eacute a forccedila da vitoacuteria que Ciacutepris obteacutem(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759E)

Pela atuaccedilatildeo conjunta de Eros e Afrodite na relaccedilatildeo amorosa Plutarco ale-ga com um verso de uma trageacutedia desconhecida (frag 407 Kannicht-Snell) e um de Homero (Iliacuteada XVIII 57) o destempero daquele que se deixa levar puramente pelo desejo fiacutesico bem como demonstra que o amoroso quando regido pelos deuses natildeo se comporta desta maneira

durante o poente ela acendia a chama da lamparinaesperando e chamando para si muitas vezes passa pertoe o vento vindo suacutebitocom muito amor e desejo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759F)

O benefiacutecio maior de um relacionamento amoroso regido por Eros e Afrodite natildeo estaacute somente no equiliacutebrio do desejo sexual dos amantes mas tambeacutem no de suas accedilotildees A coragem eacute outro elemento constituinte de um relacionamento amoroso regido por Eros Segundo Plutarco em uma paraacutefrase da peccedila de Soacutecrates (Antiacutegona 783-784) e de versos contidos em uma trageacutedia desconhecida (frag 408 Kannicht-Snell) o deus supera Ares nessa virtude

quanto agraves obras de Ares Eros excele porque natildeo eacute inativo como Euriacutepides dizia nem inexperiente na guerra nemdorme nas macias bochechas das adolescentes

Pois um homem pleno de Eros em nada carece de Ares ao lutar contra os inimigos mas acompanhado de seu proacute-prio deus

fogo mar e ventos do eacuteterestaacute disposto a atravessar

pelo amigo aonde o chamar

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(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 760D-E)

Entatildeo os envolvidos em uma relaccedilatildeo amorosa satildeo igualmente contemplados por Eros com o destemor que os transforma em guerreiros inseparaacuteveis cxxxii sempre dispostos agrave luta e contando um com o outro nos embates Plutarco demonstra esta afirmaccedilatildeo ao empregar um verso de Niacuteobe uma trageacutedia perdida de Soacutefocles (frag 410 Nauck)

Os Nioacutebidas de Soacutefocles depois de atingidos mesmo mor-rendo nenhum deles invocou outro auxiliar nem aliado que natildeo o seu amante

Oacute envolve-me pelos flancos(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 760E-F)

Nosso autor confere ecircnfase ao seu pensamento a respeito da decisiva influecircn-cia de Eros na coragem dos amantes com os seguintes versos populares pronunciados entre os calciacutedios (Carmina Popularia 27 frag 873 Page)

Oacute filhos que receberam graccedila e nobreza paternanatildeo recuseis aos bons a convivecircncia da juventudePois com valentia tambeacutem o debilitante Erosaflora na cidade dos calciacutedios(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761A-B)

E em uma construccedilatildeo argumentativa bem convincente ele relata que o ge-neral tebano Pacircmenes criticou Homero por dividir as tropas aqueias ldquopelas tribos e fratriasrdquo (Iliacuteada II 362) e por natildeo ter considerado os amantes nessa divisatildeo Retorica-mente Plutarco une dois versos de Homero (Iliacuteada XIII 131-215 e XVI) em apenas um soacute para expor a criacutetica ao proacuteprio poeta

Pacircmenes mudou e renovou a ordem dos hoplitas um ho-mem amoroso que reprovou Homero por natildeo ter sido amaacutevel porque alinhou as tropas dos aqueus ldquopelas tribos e fratriasrdquo e natildeo pocircs o amante ao lado do amado para que assim fosse escudo um escudo suportasse e elmo um elmo

Eros eacute o uacutenico invenciacutevel por todas suas estrateacutegias(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761B)

Ao lermos esses versos homeacutericos percebemos que o contexto natildeo nos remete a uma relaccedilatildeo sexual entre Aquiles e Paacutetroclo poreacutem haacute a sugestatildeo de uma amiza-de muito grande entre eles Esse eacute um exemplo importante para suscitar reflexotildees a respeito de Plutarco aceitar a manifestaccedilatildeo de Eros em episoacutedios militares que nos remetem a relaccedilotildees supostamente homoeroacuteticas Por isso notamos que nosso autor

considera a manifestaccedilatildeo de Eros na amizade que nasce entre os guerreiros durante o exerciacutecio de sua funccedilatildeo militar sem a necessidade de relaccedilotildees sexuais apenas como fraternais Conveacutem lembrar que Eros concorre para a amizade entre o casal o que natildeo impede que esse modelo se transfira para a amizade dos guerreiros nos campos de treinamento e de batalha Contudo essa relaccedilatildeo natildeo eacute duradoura Ela tem o tempo de uma carreira militar e natildeo contribui para a continuidade da espeacutecie Isso posto natildeo tem a duradoura proteccedilatildeo de Eros

Jaacute a amizade cultivada nos campos de treinamento e batalha entre os guer-reiros regida por Eros responde pela excelecircncia militar de alguns povos e por suas demonstraccedilotildees de bravura e coragem Tal questatildeo eacute demonstrada por Plutarco nos vaacuterios exemplos a seguir

ldquoPortanto natildeo somente os povos mais combatentes satildeo os de iacutendoles mais amorosas beoacutecios lacedemocircnios e cre-tenses mas tambeacutem os mais antigos Meleacuteagro Aquiles Aristocircmenes Ciacutemon e Epaminondas Este teve como amados Asoacutepico e Cefisodoro o qual morreu junto com ele em Mantineia e foi enterrado com honras funeraacuterias ao seu lado E Asoacutepico tornou-se o mais temido e terriacutevel aos inimigos o primeiro a enfrentaacute-lo e a golpeaacute-lo foi Eucna-mo de Anfissa que obteve honras heroicas do foceus ldquoPela quantidade eacute uma difiacutecil tarefa falar sobre os outros amantes de Heacuteracles consideram que Iolau foi amado por ele e os amantes ateacute hoje o veneram e os honram fazendo juramentos e dando provas de fidelidade sobre seu tuacutemu-lo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761D-E)

A coragem que Eros confere ao amante poreacutem natildeo ocorre somente na esfera militar ou no campo de batalha Entre os vaacuterios episoacutedios relatados por Plutarco em que os amantes deram provas singulares de amor um pelo outro o mais conhecido eacute aquele contado na peccedila Alceste de Euriacutepides Embora sua plateia no momento do dis-curso seja composta por gregos sabemos que Plutarco proferia palestras filosoacuteficas em Roma e que seus tratados morais satildeo o registro de grande parte delas Dessarte o seu puacuteblico tambeacutem era composto por romanos filogregos ou simpaacuteticos agrave cultura grega A intenccedilatildeo plutarquiana de divulgar a produccedilatildeo literaacuteria grega em Roma eacute evidente em toda a sua obra entretanto algumas delas jaacute eram bem conhecidas dos romanos como eacute o caso da peccedila Alceste de Euriacutepides segundo sugere o estudo de Wood (1978) Po-reacutem na construccedilatildeo de seu discurso Plutarco interpreta por outra perspectiva o episoacute-dio da mulher que se oferece para morrer no lugar do marido fato visto como grande prova de amor e de valor moral de Alceste Ele nos mostra que grande tambeacutem era o amor de Heacuteracles e de Apolo por Admeto como nosso autor exemplifica neste excerto utilizando um verso atribuiacutedo a Caliacutemaco (frag 380 Schneider)

Diz-se que (Heacuteracles) atuou como meacutedico para Alceste

98 99

pois a salvou depois que ela havia perdido a esperanccedila para agradar a Admeto tomado de amor pela proacutepria mulher porque ele tambeacutem era seu amante Contam que tambeacutem Apolo era seu amante

Serviu Admeto com grandeza por um ano

ldquoComo nos veio bem Alceste agrave lembranccedila Uma mulher natildeo partilha muito de Ares eacute a possessatildeo de Eros que a faz avanccedilar com coragem sobre-humana e morrer(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761E)

Ao recontar esse episoacutedio da trageacutedia euripidiana nosso autor revela que o amor homoeroacutetico somente conhece sua grandeza quando envolve um deus ou um semideus Tal exceccedilatildeo ocorre porque o amor divino eacute superior ao de um ser humano Aliaacutes como Plutarco afirmou alhures os assuntos divinos natildeo devem ser questionados pela razatildeo humana Sobre a indulgecircncia divina de Eros e o destemor de que imbui o amante vejamos mais este esclarecimento dado por Plutarco no qual ele cita versos de uma trageacutedia desconhecida de Soacutefocles (frag 703 Nauck)

Protesilau e Euriacutedice de Orfeu que dos deuses somente a Eros Hades faz o prescrito Todavia diante de todos os outros como afirma Soacutefocles

Nem comedimento nem graccedilaconhece apenas apreciou a simples justiccedila

Eacute indulgente com os amantes e somente com eles natildeo eacute indocircmito nem amargo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761F)

Os poderes de Eros sobre os amantes satildeo tatildeo intensos que se mostram capa-zes de aprimorar seus caraacuteteres dado que sempre os conduzem agrave virtude Podemos observar tal ponto neste excerto em que Plutarco cita Estenebeia uma peccedila perdida de Euriacutepides (frag 663 Nauck-Snell)

embora Euriacutepides fosse amoroso ele se maravilhou com o mais insignificante quando afirmou

Ora Eros ensina um poeta mesmo se antes sem Musa

Pois torna inteligente quem antes era indolente e corajo-so como se diz o covarde tal como os que incandescem as vigas fazem das fracas firmes(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762B)

As transformaccedilotildees sofridas pelo amante regido por Eros satildeo perceptiacuteveis aos

demais Para corroborar tal assertiva nosso autor utiliza um verso da pseudo-biografia de Homero conhecida como Certame de Homero e Hesiacuteodo (274)

Eros natildeo faz dos desagradaacuteveis e carrancudos os mais hu-manos e encantadores Pois

ao acender o fogo a casa mostra-se digna de honra

tambeacutem um homem como parece eacute mais radiante sob o calor do amor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762D)

Citando Homero (Odisseia XIX 40) Plutarco continua sua demonstraccedilatildeo so-bre os efeitos das visiacuteveis transformaccedilotildees que Eros provoca no amante

quando veem uma alma vulgar parca e ignoacutebil de repente preencher-se de inteligecircncia liberdade desejo de honra graccedila e generosidade natildeo se veem obrigados a dizer como Telecircmaco Sem duacutevida haacute um deus dentro dessa casa(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762E)

A coragem dos amantes soacute eacute abalada quando o amante encontra o seu amado ocasiatildeo em que se mostra fraco e covarde diante deste Lembrando Piacutendaro (Piacutetica I 5) Plutarco compara o momento do encontro do amante com o amado ao de algueacutem que eacute atingido por um ldquopungente raiordquo e fica abatido tal como o descrito por este verso de Friacutenico (frag 17 Snell)

ao ver seu belo eacute

tal o galo se encolhe como um escravo recolhendo a asa

sua ousadia eacute abatida e despedaccedilado o orgulho de sua alma(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762E-F)

Conforme nosso autor a forccedila do sentimento amoroso regido por Eros mani-festa-se ainda nos seres mais inusitados o que estaacute em concordacircncia com o que lemos no seguinte trecho

Os romanos narram que o filho de Hefesto Caco expelia fogo pela boca de fluentes chamas a proacutepria lanccedilava em verdade um som mesclado ao fogo e emitia o calor de seu coraccedilatildeo pelas palavras

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Com as Musas de belas vozes curando o amor

segundo Filoacutexeno(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762F-763A)

Apesar de Plutarco fazer referecircncia a um episoacutedio relatado pelos romanos a citaccedilatildeo que norteia seu raciociacutenio eacute a do poeta peloponeacutesio Filoacutexeno (seacutec V aC) de um poema intitulado Ciclope e Galateia (frag 9 [822] Page) Nosso autor continua demonstrando a forccedila do sentimento amoroso regido por Eros colocando em prosa estes versos de uma ceacutelebre ode de Safo (frag 31 Loebe-Page)

Mas se por causa de Lisandra oacute Dafneu natildeo esqueceste dos antigos rapazes lembra-nos que a bela Safo diz em seus versos que ao surgir da amada sua voz refreia seu corpo inflama e apoderam-se dela a palidez o devaneio e a vertigem(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763A)

Em seu diaacutelogo com a tradiccedilatildeo poeacutetica grega Plutarco discorda da avaliaccedilatildeo de Menandro sobre o caraacuteter doentio assumido pelo amoroso registrado em fragmentos de uma comeacutedia desconhecida (frag 791 7-8 Nauck-Snell) e reforccedila seu argumento contraacuterio ao comedioacutegrafo com um verso de uma trageacutedia tambeacutem desconhecida de Eacutesquilo (frag 351 Nauck)

Natildeo apreendemos nem compreendemos o dito porMenandro perigosa doenccedilada alma o ferido de bom grado eacute golpeado

Mas o deus eacute a causa que ataca um e aprova outroEntatildeo o que mais tinha de ser dito no princiacutepio e neste instante ldquoporque agora veio agrave bocardquo conforme Eacutesquiloparece-me que nada se pode ocultar por ser em tudograndioso(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763B)

Em razatildeo da diversidade de autores selecionados para compor sua argumen-taccedilatildeo sobre a necessidade de um deus regente do amor Plutarco entra em contato com autores de variadas eacutepocas e estilos Assim ele verifica que haacute visotildees diferentes sobre Eros entre os poetas os filoacutesofos e os legisladores Para demonstrar suas concepccedilotildees diferenciadas nosso autor nos apresenta primeiro a noccedilatildeo que os filoacutesofos tecircm dos deuses apresentando os seguintes versos de Piacutendaro (frag 143 Snell-Maehler)cxxxvi

De fato os deuses dos filoacutesofos satildeo os sem doenccedila nem velhicee inexperientes em penas que porruidosa

via escaparam de Aqueronte(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763C)

Entretanto apesar de os poetas e os legisladores divergirem em muitos aspec-tos (PLUTRACO Diaacutelogo do Amor 763D) Plutarco nos mostra que eles satildeo concordes quanto a Eros ser o deus regente dos relacionamentos amorosos Outrossim registra os versos de Alceu e de Euriacutepides respectivamente fragmento 348 Lobel-Page e frag-mento 595 Nauck-Snell para concluir que

Seguramente os melhores poetas legisladores e filoacutesofos concordam sobre um e juntos inscrevem Eros entre os deuses que ldquoem uniacutessona voz tanto louvaramrdquo como dizia Alceu sobre Piacutetaco quando eleito tirano pelos mitilecircnios Para noacutes Eros eacute rei arconte e harmosta nas matildeos de He-siacuteodo Platatildeo e Soacutelon ele eacute conduzido coroado do Heacuteli-con para a Academia e adornado entra triunfante entre muitas parelhas de amizade e uniatildeo natildeo como Euriacutepides afirma

subjugado por grilhotildees natildeo de bronze

envolta pelo frio e pelo peso na carne sob vergonhosa ne-cessidade mas alada condutora para as mais belas e di-vinas coisas do ser sobre as quais outros falaram melhor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763E-F)

Plutarco prossegue seu discurso refutando a comparaccedilatildeo que se costuma esta-belecer entre Eros e o sol O autor afirma que o poder do deus eacute superior ao do astro porque nos guia agraves praacuteticas virtuosas e nos conduz agrave busca pela verdade Para funda-mentar seu discurso nosso autor exemplifica seu pensamento com uma passagem de Euriacutepides (Hipoacutelito 193-195) conforme lemos a seguir

o convence a demandar em si mesmo e ao seu redor pela verdade e pelo resto dos assuntos e nada de outro lugar

Parecemos ensandecidos de amorpor tudo que brilha sobre a terra

como Euriacutepides diz

por inexperiecircncia de outra vida(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 764E)

A escolha de versos dessa peccedila euripidiana indica a habilidade retoacuterica de Plu-tarco Ele tenta transmitir o comedimento sexual dos cocircnjuges ao lembrar Hipoacutelito o personagem casto e adorador da virgem Aacutertemis que evita as investidas de sua ma-drasta Fedra A clareza do jovem diante da impostura de sua madrasta eacute relaciona-

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da por Plutarco ao amor que ele dedica agrave deusa caccediladora um sentimento ao qual se manteacutem fiel pela lucidez que Eros lhe traz por meio de seu amor Entatildeo a clareza estaacute em Eros e a claridade excessiva estaacute no sol pois este ldquoparece que atordoa a memoacuteria e envenena o raciociacuteniordquo (ἐκπλήττειν ἔοικε τὴν μνήμην καὶ φαρμάττειν τὴν διάνοιαν ὁ ἥλιος) (764E-F) A verdadeira realidade contudo natildeo estaacute no raciociacutenio mas na alma que Eros possui e conforme lemos neste hexacircmetro do poeta Caliacutemaco (frag 381 Sch-neider)

Em torno dela dolosos e afaacuteveis sonhos verte(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 764F)

Haacute neste tratado a acentuada referecircncia a versos de poetas gregos de diversos estilos e periacuteodos para fundamentar o discurso de Plutarco sobre a importacircncia de Eros no relacionamento amoroso Dado que leva nosso autor a reconhecer que natildeo haacute unidade no pensamento dos poetas sobre a natureza divina do deus e a endereccedilar suas criacuteticas a grande parte deles afirmando que

A maioria dos poetas parece zombar e ridicularizar o deus quando escreve sobre ele e o celebra em cantos e pouco foi dito com seriedade por eles quer pela inteligecircncia e ra-ciociacutenio quer pela vontade divina que tocasse a verdade nestes versos haacute um dado sobre sua origem

O mais terriacutevel dos deusesque Iacuteris de belas sandaacutelias gerouapoacutes unir-se a Zeacutefiro de aacuteurea cabeleira

A natildeo ser que os gramaacuteticos tenham vos persuadido por dizerem que sua representaccedilatildeo nasce para brilho e colori-do da paixatildeo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 765E)

Embora Plutarco construa parte significativa de sua argumentaccedilatildeo apoiado na produccedilatildeo poeacutetica grega percebemos nos versos supracitados a sua manobra re-toacuterica para desautorizar a versatildeo dada pelo poeta Alceu (frag 327 Lobel-Page) para a origem de Eros Isso porque ele jaacute havia dado razatildeo a Hesiacuteodo que o nomeou um deus primordial do qual todos vieram depois (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D-F) No trecho acima nosso autor ironiza ainda o entendimento que os gramaacuteticos tecircm da participaccedilatildeo de Eros cxxvii no relacionamento amoroso como se o deus fosse apenas um expediente para conferir imaginaccedilatildeo aos poetas e para o deleite de seus leitores ou ouvintes

Recorrendo a dois versos (frag 360 Kock e frag 355 Kannicht-Snell) de auto-ria e tiacutetulos desconhecidos Plutarco constroacutei o seguinte discurso

O voluptuoso natildeo ao ser interrogado se

ao feminino tende mais do que ao masculino

e ele responder

agrada-me onde houver beleza sou ambidestro

parece que respondeu pelo desejo sexual O nobre e afeito ao belo natildeo pela beleza nem pelo fiacutesico mas pelas diferenccedilas dos genitais escolhe seus amores(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 766F-767A)

Nosso autor mostra claramente que a relaccedilatildeo regida por Eros eacute a estabelecida entre um homem e uma mulher Salvo em conduta militar ou amor por alguma divin-dade o relacionamento homoeroacutetico natildeo pertence ao domiacutenio do verdadeiro deus No-tamos que a defesa do amor e do casamento demanda ainda a participaccedilatildeo da mulher como um ser confiaacutevel e virtuoso Portanto empregando uma expressatildeo de Crisipo (frag 718 von Arnim) um filoacutesofo estoico e dois versos de uma peccedila desconhecida de Eacutesquilo (frag 2431-2 Nauck) nosso autor segue sua explicaccedilatildeo esclarecendo que as mulheres tambeacutem satildeo influenciadas pelo poder de Eros

Todavia afirmam que a juventude eacute ldquoa flor da virtuderdquo e que o gecircnero feminino natildeo mostraria tal florescecircncia nem teria a aparecircncia natural para a virtude isso eacute um absur-do Pois tambeacutem Eacutesquilo com correccedilatildeo compocircs da jovem mulher natildeo me escapa o inflamadoolhar a que por um homem foi provada

Entatildeo de um caraacuteter impudente licencioso e corrupto di-funde-se sinais na aparecircncia das mulheres(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767B)

A participaccedilatildeo feminina no amor nasce da necessidade dos amantes regidos por Eros de formar uma unidade por se tratar de uma fusatildeo de almas natildeo de uma ldquocomunhatildeo de amigosrdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767E) conforme a expressatildeo contida em Dioacutegenes de Laeacutercio (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres VIII 10) atri-buiacuteda aos filoacutesofos estoicos Citando um verso de uma peccedila desconhecida de Eacutesquilo (frag 785 Nauck) Plutarco reafirma que Eros atua sobre a mulher envolvida em um relacionamento amoroso no casamento pois o matrimocircnio eacute

Obra de muitas reacutedeas e lemes

estaacute sempre nas matildeos dos cocircnjuges Compartilha com Eros tamanho autodomiacutenio dececircncia e confianccedila de modo que quando um dia toca uma alma licenciosa ela retira-se dos outros amantes extirpa a audaacutecia e abate a

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soberba e a imoralidade levando ao pudor quietude e de-coro e veste-a de forma decente e torna-a a ouvinte de um uacutenico(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767E-F)

Como exemplos de suas afirmaccedilotildees sobre o poder de Eros atuar por igual em homens e mulheres Plutarco relata vaacuterios exemplos de mulheres que mudaram seus haacutebitos ou que mantiveram sua honra quando tomadas de amor por um homem Se-lecionamos o exemplo de Laiacutes notaacutevel cortesatilde da cidade de Corinto no seacuteculo V aC onde nosso autor usa um verso de uma peccedila perdida de Euriacutepides (frag 1084 Nauck--Snell) para afirmar que

Depois que o amor a tocou pelo tessaacutelio Hipoacutelico

ela deixou para traacutes a Acrocorinto banhada por verdesaacuteguas

e fugiu escondida da grande tropa de outros amantes e de um grande exeacutercito de cortesatildes partiu com dececircncia(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767F-768A)

Nosso autor costura seu argumento sobre a virtude feminina no casamento para edificar o matrimocircnio entre um homem e uma mulher Como contraponto Plu-tarco lanccedila seu olhar sobre a relaccedilatildeo de indiviacuteduos do sexo masculino tratada como desprovida de amor conforme exemplifica com um verso de uma peccedila de tiacutetulo e autoria desconhecidos (frag 409 Nauck) e dois versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 770 Nauck)

A comunhatildeo de um do gecircnero masculino com outro que eacute mais pela intemperanccedila e coacutepula algueacutem com reflexatildeo diria que

Este feito eacute de Hiacutebris natildeo de Ciacutepris

Por isso pondo os que se comprazem em ser passivos consideramos o pior gecircnero de viacutecio sem participaccedilatildeo de confianccedila nem pudor e nem de amizade mas na verdade conforme Soacutefocles

Os de tais amigos destituiacutedosalegram-se os que tecircm desejam fugir(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 768E)

A relaccedilatildeo amorosa entre homens se mostra incompleta e fugaz pela ausecircncia de amizade e de respeito entre os amantes O amor entre homens e mulheres diferen-cia-se pela profundidade de sua amizade e pela constituiccedilatildeo de seu caraacuteter virtuoso

Por isso Plutarco continua seu discurso com versos de um desconhecido poeta cocircmico (frags 222-224 Kock) para demonstrar como a relaccedilatildeo pederasta carece de virtude

ao ver teu semblante familiar perdi o chatildeoImberbe tenro e belo jovemunido a ele eu morra e que isso valha um epigrama(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 769B)

A desmedida do amor entre homens contrapotildee-se ao equiliacutebrio de um homem unido a uma mulher virtuosa como nos mostra nosso autor com este verso de uma comeacutedia de autoria e tiacutetulo desconhecidos (frag 221 Kock)

A uma mulher honesta e prudente exortaria a sacrificar a Eros para que ele benevolente conviva em seu casamen-to e adornea-a com todos os temperos femininos que seu marido natildeo se perca por outra e seja obrigado a proferir falas de uma comeacutedia

Tal mulher injuriei eu sou um infeliz

Amar no casamento eacute um bem maior do que ser amado(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 769D)

Provavelmente Plutarco tece seus comentaacuterios tendo como referecircncia sua es-posa Timocircxena ldquouma mulher honesta e prudenterdquo visto que ele a trouxe para Teacutespias a fim de realizar sacrifiacutecios em honra a Eros (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B) Com isso ele exalta as qualidades de sua esposa e revela a sua felicidade no casamento Talvez isso explique porque nosso autor lembra em seguida de Homero (Odisseia VI 183-184) para registrar seu argumento de que o casamento eacute a maior fonte de prazer

quando concordes em pensamentos um lar tenhamum homem e uma mulher(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 770A)

De acordo com Plutarco trata-se de uma uniatildeo que eacute sustentada natildeo somente pelas leis humanas mas tambeacutem pelas leis da natureza Ambas necessitam da procria-ccedilatildeo a cidade para a sua manutenccedilatildeo do quadro de cidadatildeos e a espeacutecie humana para a sua continuidade Identificamos entatildeo a contribuiccedilatildeo da filosofia platocircnica (PLATAtildeO O Banquete 207a) quanto a definiccedilatildeo de Eros como a divindade que inspira o desejo de imortalidade no homem por isso a procriaccedilatildeo (SANTAS 1979 p 71) Da doutrina estoica nosso autor traz a visatildeo do filoacutesofo Zenatildeo de que Eros contribui para a salvaccedilatildeo da cidade conforme assinalado por Ateneu (Deipnosofistas 561c-d) (BOYS-STONES 1998 p 168) Por conseguinte Plutarco expotildee seu raciociacutenio usando um verso de uma trageacutedia desconhecida de Euriacutepides

De fato a lei os ampara e a natureza mostra que os deuses

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necessitam de Eros para a procriaccedilatildeo regular Assim os poetas dizem

a terra ama a chuva

e o ceacuteu a terra e os fiacutesicos dizem que o sol ama a lua para copular e fecundar(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 770A)

Com essa uacuteltima citaccedilatildeo de Plutarco em seu diaacutelogo encerramos nossa expo-siccedilatildeo do uso plutarquiano dos autores gregos Nela demonstramos que nosso autor referencia obras de vaacuterias escolas filosoacuteficas diversos estilos poeacuteticos e diferentes tipos de prosa para compor o seu discurso argumentativo o que revela seu vasto conheci-mento da produccedilatildeo literaacuteria grega Poucas satildeo as referecircncias a autores latinos como a citaccedilatildeo de Platatildeo (Diaacutelogo do Amor 749A) aludindo Petrocircnio (Satiacutericon 131) sobre o Ilisso e o mito de Caco (Diaacutelogo do Amor 762F) tambeacutem relatado por Virgiacutelio (Eneida VIII 184-275) Ao longo desta anaacutelise verificamos quatildeo importante eacute a contribuiccedilatildeo de Diaacutelogo do Amor para o conhecimento da visatildeo dos poetas gregos acerca desse sen-timento tal como a influecircncia da filosofia e da religiatildeo para a construccedilatildeo da teoria do amor de Plutarco

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Contribuiccedilotildees dosEstudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da

Linguagem 69

6

Fabio Fortes

A histoacuteria da ciecircncia e da linguagem

Em fevereiro de 1962 Thomas Kuhn publicava na Califoacuternia A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas O seu ldquoensaiordquo como despretensiosamente o autor o qualifica representou a incursatildeo de um fiacutesico teoacuterico no campo da histoacuteria e da filosofia da ciecircn-cia oferecendo agrave comunidade da eacutepoca uma concepccedilatildeo que teria grande impacto para pensar os processos de amadurecimento e transformaccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico

Na obra em questatildeo Thomas Kuhn conferia papel central agraves noccedilotildees de ldquopa-radigmardquo e ldquorevoluccedilatildeordquo sendo que em sua perspectiva tais conceitos natildeo derivavam exclusivamente de propriedades intriacutensecas agraves proacuteprias teorias mas tambeacutem de ten-sotildees culturais sociais e poliacuteticas existentes no interior da comunidade cientiacutefica Com efeito o que tornaria um paradigma dominante seria natildeo somente o resultado da ca-pacidade inerente de determinada teoria para resolver problemas colocados pelos cien-tistas mas tambeacutem decorreria da natureza dos proacuteprios problemas que se elegem e se mantecircm como agenda investigativa em dada eacutepoca

Aleacutem disso um paradigma dominante definidor da ldquociecircncia normalrdquo mobili-zaria grupos de cientistas em seu apoio os quais buscariam aperfeiccediloaacute-lo com inova-ccedilotildees e novas propostas mas natildeo no sentido de alteraacute-lo substancialmente ao contraacute-rio em diaacutelogo com a tradiccedilatildeo que o sustenta os pesquisadores da ldquociecircncia normalrdquo estariam antes preocupados em manter a estabilidade do que em reformular ou mudar o paradigma Qualquer mudanccedila radical soacute poderia portanto ocorrer via revoluccedilatildeo o que deslocaria natildeo somente as teorias do seu lugar mas tambeacutem as suas praacuteticas os seus meacutetodos as comunidades e sujeitos dessa ciecircncia

Na mesma eacutepoca Noam Chomsky publicava em 1966 o ensaio Linguiacutestica cartesiana no qual recuando aos seacuteculos XVIII e XIX o chamado ldquoPapardquo da Linguiacutestica Gerativa certamente ainda um dos maiores nomes da Linguiacutestica contemporacircnea re-conhecia alguns dos princiacutepios fundamentais de sua ciecircncia no chamado pensamento ldquocartesianordquo Segundo Chomsky os estruturalistas da primeira metade do seacuteculo XX haviam descartado um fecundo pensamento sobre a linguagem no acircmbito da obra dos pensadores racionalistas dos seacuteculos XVIII e XIX Em trabalhos de estudiosos como Descartes Schlegel Humboldt e outros jaacute estaria patente segundo o linguista ameri-cano a noccedilatildeo de que a linguagem humana conquanto fosse uma faculdade bioloacutegica e natural permitiria ao ser humano tambeacutem se diferenciar dos outros animais ao servir natildeo propriamente como forma de comunicaccedilatildeo mas como expressatildeo do pensamento

Tratava-se portanto de iluminar a concepccedilatildeo de linguagem como forma (e

natildeo substacircncia) da qual decorreria seus princiacutepios racionais intriacutensecos e universais responsaacuteveis pelas regras sintaacuteticas e morfoloacutegicas e natildeo necessariamente da manei-ra como ela seria efetivamente usada A oposiccedilatildeo humboldtiana por exemplo entre forma e caraacuteter reconhecer-se-ia como o geacutermen da dicotomia a ser fortemente de-fendida pelo proacuteprio Chomsky e os gerativistas logo na primeira fase de sua teoria a

69 O presente trabalho decorre de pesquisa de Poacutes-Doutorado realizada no Deacutepartement de Sciences de lrsquoAntiquiteacute da Universidade de Liegravege na Beacutelgica (2019-2020) e foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001 Bolsa Professor Visitante Juacutenior

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dicotomia entre competecircncia e performance (cf Chomsky 1975 p 90) Embora situadas dentro da mesma deacutecada e igualmente resultantes de refle-

xotildees epistemoloacutegicas talvez natildeo seja possiacutevel avanccedilarmos no paralelo entre as obras de Thomas Kuhn e Noam Chomsky por se erigirem sobre arcabouccedilos teoacutericos distintos e olharem para objetos e arcos temporais de dimensotildees natildeo necessariamente compatiacute-veis Em todo caso embora partissem da histoacuteria de duas disciplinas distintas ndash a Fiacutesica e a Linguiacutestica ndash o que Thomas Kuhn e Chomsky lograram realizar eacute uma espeacutecie de retorno ao passado uma historicizaccedilatildeo dos modos e das praacuteticas cientiacuteficas afastan-do-se nos dois casos ndash ainda que por pouco tempo ndash dos modelos imanentes formais e centrados no presente que reinavam absolutos ateacute entatildeo no domiacutenio das duas disci-plinas Em vez disso Thomas Kuhn e Noam Chomsky reivindicavam da histoacuteria e do passado de seus campos noccedilotildees que permitissem a compreensatildeo da ciecircncia praticada em sua eacutepoca Ambos traziam portanto para o seio da proacutepria ciecircncia uma inquieta-ccedilatildeo intelectual que se tornaria constante na segunda metade do seacuteculo XX a revisatildeo criacutetica de sua histoacuteria Satildeo provas de que revisar o passado tem se tornado crescente-mente um imperativo das ciecircncias apoacutes o seacuteculo XX essa atitude define talvez para nossa eacutepoca aquilo a que Hegel veio a chamar de Zeitgeist ldquoo espiacuterito do tempordquo em sua Filosofia da Histoacuteria

Com efeito data da segunda metade do seacuteculo XX o iniacutecio de um empreendi-

mento que teve por meta produzir uma histoacuteria das ciecircncias em geral e da linguagem em particular Os trabalhos do inglecircs Robins (1967) do francecircs Mounin (1967) doro-meno Coseriu (1969) e ateacute mesmo do brasileiro Mattoso Camara Jr (original de 1962)cxxxviii satildeo bons exemplos de manuais que tentaram escrever uma vigorosa histoacuteria do pensamento linguiacutestico (registrando como natildeo poderia deixar de ser uma raacutepida visi-ta aos mais remotos ancestrais gregos e latinos)cxxxix Todavia uma investigaccedilatildeo menos enviesada pelo olhar da proacutepria Linguiacutestica de suas preocupaccedilotildees e objetos teoacutericos soacute viria agrave tona com a emergecircncia de perioacutedicos internacionais dedicados ao tema tais como Historiographia Linguistica (1974-) a Histoire Eacutepistemologie Langage (1979-) e mais recentemente a Beitraumlge zur Geschichte der Sprachwissenschaft (1991-) que tor-naram possiacutevel o reconhecimento e a institucionalizaccedilatildeo desse amplo campo de estu-dos que tem como preocupaccedilatildeo um retorno agraves fontes histoacutericas do pensamento sobre a linguagem fora dos limites dos objetivos que outrora eram buscados o de legitimar praacuteticas presentes ou o de avaliar o niacutevel de cientificidadeverdade de determinado movimento teoacuterico do passado em uma atitude bastante anacrocircnica (Fortes 2011)

Os Estudos Claacutessicos e a teoria gramatical antiga

Para a assim considerada relevante incursatildeo dos historiadores da Linguiacutestica em domiacutenios da Antiguidade grega e latina em cujo bojo ter-se-iam fundado as ciecircn-cias e as instituiccedilotildees ocidentais ndash e ipso facto um capiacutetulo dessa histoacuteria ndash natildeo seria de pouca monta o empreendimento de esforccedilos para examinar e assimilar fontes muito afastadas no tempo fontes redigidas nas liacutenguas claacutessicas e rarissimamente visitadas ateacute entatildeo ateacute mesmo pelos classicistas cxli Em que pese isso vale ainda perguntar para aleacutem do aspecto propriamente tradicional dessa espeacutecie de ldquoretorno aos antigosrdquo cxlii restariam ainda contribuiccedilotildees objetivas dos textos em grego e latim para pensar a

histoacuteria do pensamento linguiacutestico

Em favor dessa pesquisa poder-se-ia aqui salientar em primeiro lugar que o aproveitamento de temas metalinguiacutesticos do remoto passado grego e romano refor-ccedilaria a ideia da proacutepria Linguiacutestica enquanto um empreendimento histoacuterico Embora natildeo fizessem uma Linguiacutestica ndash o que seria um flagrante anacronismo ndash os antigos gramaacuteticos filoacutesofos e retoacutericos do mundo grego e romano pensaram e desenvolve-ram conceitos teorias princiacutepios e aplicaccedilotildees tecnoloacutegicas da linguagem aplicados agrave resoluccedilatildeo de problemas de linguagem de sua eacutepoca ou motivados por inquietaccedilotildees in-telectuais proacuteprias agrave sua maneira de ver o mundo Com efeito se com Sylvain Auroux (1992 p 12) nos rendemos ao fato de que a Linguiacutestica natildeo resiste agrave estabilidade do seu proacuteprio nome visto que nascido de um neologismo alematildeo do seacuteculo XVIII ela a Linguiacutestica

se trata ldquode uma forma de estruturaccedilatildeo do saber eminen-temente transitoacuteria que estaacute provavelmente em vias de desaparecer sob nossos olhos (eacute por isto que recorremos cada vez mais agrave expressatildeo plural ldquociecircncias da linguagemrdquo)

Como sustentar o mito de que tal ciecircncia representaria um empreendimento estaacutevel monoliacutetico coerente e verdadeiro se ampliamos o arco de anaacutelise e encon-tramos nos seus ldquopredecessoresrdquo notaacuteveis contradiccedilotildees e desconcertantes paralelos Certamente com o avanccedilo das pesquisas em torno de antigos manuais compecircndios gramaacuteticas tratados filosoacuteficos ou retoacutericos que tematizavam a linguagem mais se revela a permanecircncia e a transformaccedilatildeo de conceitos que ora estavam na base do que os modernos chamaram de Linguiacutestica ndash ainda que os sujeitos do mundo antigo certa-mente estivessem movidos por propoacutesitos e problemas muito diferentes que os leva-vam a olhar para suas liacutenguas No entanto desse labirinto de reflexotildees antigas sobre a linguagem se podem destacar por vezes soluccedilotildees inesperadas para os problemas que ainda nos colocamos bem como o desenvolvimento de princiacutepios que embora possam estar esquecidos na noite do tempo satildeo suscetiacuteveis de uma reabilitaccedilatildeo para um necessaacuterio arejamento de nossas agendas de pesquisa talvez um tanto gastas pela manutenccedilatildeo longeva de um mesmo paradigma

Um breve exemplo a permanecircncia nos estudos linguiacutesticos modernos da ter-minologia gramatical claacutessica (como por exemplo o nome das partes do discurso ndash nome verbo pronome adveacuterbio etc) ou mesmo de conceitos (como o de caso con-cordacircncia oraccedilatildeo sintaxe entre outros) desafia o estudioso moderno a reconhecer a instabilidade e a relatividade dos princiacutepios teoacutericos da sua ciecircncia A permanecircncia de um mesmo quadro terminoloacutegico natildeo eacute banal tampouco irrelevante instiga uma bus-ca pela compreensatildeo das diferenccedilas e dos pontos de contato exerciacutecio de anaacutelise que tem o meacuterito de tornar histoacuteria da Linguiacutestica menos teleoloacutegica ndash os antigos como preparaccedilatildeo para um futuro mais avanccedilado ndash e tampouco subtrair agraves praacuteticas presentes as suas especificidades em nome de uma espeacutecie de elogio dos antigos uma versatildeo da jaacute encardida auctoritas veterum que em algum momento do passado alccedilou os gregos e os latinos agrave condiccedilatildeo de sujeitos de uma civilizaccedilatildeo superior Ambas as atitudes com efeito soam anacrocircnicas buscar nos antigos respostas a nossos questionamentos seria

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lanccedilar agrave sombra as suas idiossincrasias enquanto refutaacute-los por natildeo responderem aos nossos anseios seria exigir deles um conhecimento do futuro

O fato eacute que por soacutelida e contiacutenua que pareccedila a tradiccedilatildeo terminoloacutegica que co-

loca na mesma linha por exemplo Aristoacuteteles e os mais recentes gramaacuteticos e linguis-tas que parecem falar a mesma liacutengua quando se evocam nomes verbos conectivos cliacuteticos adveacuterbios caso etc quando vistos no detalhe poreacutem natildeo poucas comple-xidades reviravoltas especializaccedilotildees conceituais transposiccedilotildees para contextos dife-renciados etc tais termos parecem ter sofrido Um exame dos diferentes sentidos que tais termos engendraram no passado a maneira como foram lidos e aproveitados pelos coetacircneos e a maneira como foram recebidos e readaptados a outras reflexotildees no campo dos estudos da linguagem levam o estudioso a relativizar ou mesmo a abdicar de concepccedilotildees preestabelecidas a partir de seu tempo entre os quais aquele que consi-derava ateacute haacute pouco as liacutenguas e a linguagem como objetos exclusivos da Linguiacutestica um objeto delimitado e essencialmente imanente como diria Saussure ldquoas liacutenguas nelas e por elas mesmasrdquo (Saussure 1973 [1916] p 28) um objeto que desde o final do seacuteculo XIX buscou a sua autonomia a sua maioridade e independecircncia em relaccedilatildeo aos seus ancestrais Em suma por mais que na histoacuteria seja impossiacutevel voltar a ser grego ou romano e a pensar como os antigos pensavam eacute preciso reconhecer que ldquoesta longa duraccedilatildeo do passado natildeo deve no entanto impedir o historiador de se distanciar do passado uma distacircncia reverente necessaacuteria para que o respeite e evite o anacro-nismo (Le Goff 2003 p 26)

Sendo assim classicistas de renome internacional como Viacutevien Law (1984 1986 1993 2003 2005[1995]) Ildefonse (1997) Baratin (1981 1989) Desbordes (2007) Swiggers (1992 2010 2013) entre outros assim como classicistas brasileiros que a partir das duas uacuteltimas deacutecadas parecem encontrar nos textos metalinguiacutesticos antigos relevante fonte para variados estudos entre os quais a tiacutetulo de ilustraccedilatildeo poderiacuteamos destacar Moura Neves (1987) Borges Neto (1991 2004) Pereira (2002 2006) e Martinho (2002 2009) ndash e a obra de muitos de seus orientandos e ex-orien-tandos muitos dos quais aliaacutes jaacute ocupam posiccedilotildees nas universidades cxliii Tais estu-diosos para aleacutem de produzirem trabalhos que repercutem diretamente na maneira como a histoacuteria das ciecircncias da linguagem eacute contada acabam tambeacutem para sermos otimistas por influenciar a maneira como a Linguiacutestica ndash lato sensu ndash eacute pensada no Brasil

Diferentemente das primeiras posiccedilotildees adotadas como a de um Robins (1951

1967) que liam os latinos para detectar-lhes as omissotildees teoacutericas que cometeram se comparados com os estruturalistas de um tempo muito posterior ou mesmo um Mat-toso Camara Juacutenior (1979) que relegava a gramaacutetica antiga agrave desconfortaacutevel posiccedilatildeo de ldquopreacute-Linguiacutesticardquo um estaacutegio ainda carente da cientificidade e do acabamento da ciecircncia de sua eacutepoca esses novos estudos reforccedilam a neutralidade epistemoloacutegica e o historicismo moderado que conforme tambeacutem nos ensina Auroux (1992 p 14-15) satildeo princiacutepios fundamentais da nova histoacuteria do pensamento linguiacutestico cxliv o que nos remete agrave questatildeo metodoloacutegica envolvida no tratamento contemporacircneo desse corpus de autores do passado

A questatildeo metodoloacutegica No campo dos Estudos Claacutessicos as pesquisas sobre os diferentes textos gre-

gos e latinos podem ter como aporte diferentes teorias modernas de leitura tais como a anaacutelise do discurso a intertextualidade a filologia etc aleacutem de colher na proacutepria retoacuterica antiga elementos para subsidiar as interpretaccedilotildees modernas No campo dos estudos que tenham por objetivo recuperar os elementos de uma tradiccedilatildeo de estudos sobre a linguagem uma das perspectivas que se tem mostrado mais produtiva eacute a da Historiografia da Linguiacutestica (HL)

Nessa perspectiva teoacuterica um dos pontos centrais consiste em compreender o

corpus a partir daquilo que Swiggers (2013) chama de ldquonoccedilatildeo problemaacutetica de textordquo que envolve entre outros fatores 1) a sua inserccedilatildeo em circuitos mais amplos de circu-laccedilatildeo 2) a sua posiccedilatildeo nos sistemas culturais 3) a sua estrutura global 4) a natureza de seu papel dinacircmico

Por isso a pesquisa em torno desse tipo de corpus natildeo pode prescindir de um

atento e rigoroso estudo dos contextos de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo da obra in-vestigada amparado em bibliografia secundaacuteria e primaacuteria pertinentes Nesse sentido requer-se tambeacutem uma incursatildeo nos modos de transmissatildeo e difusatildeo manuscrita do texto bem como sua recepccedilatildeo agrave sua eacutepoca e seu modo de aplicaccedilatildeo nas praacuteticas de uso desse texto na eacutepoca em que foi produzido tendo em vista as questotildees que o motiva-ram os problemas que buscavam solucionar eou as suas aplicaccedilotildees

Em geral para esse tipo de anaacutelise levam-se em conta trecircs grandes princiacutepios formulados por Koerner (2014 p 58) que representam tambeacutem trecircs etapas da pes-quisa

1) o princiacutepio da contextualizaccedilatildeo que consiste em estabelecer o ldquoclima de opiniatildeordquo em que um determinado texto foi produzido o que representa levar em conta natildeo so-mente questotildees ligadas ao desenvolvimento teoacuterico em questatildeo nesse texto mas aos fatores sociais histoacutericos culturais que justificaram a sua proposiccedilatildeo enquanto um monumento da cultura de sua eacutepoca

Como afirma Koerner acerca desse princiacutepio

As ideias linguiacutesticas nunca se desenvolveram indepen-dentemente de outras correntes intelectuais do periacuteodo em que surgiram Na verdade o que Goethe chamou de Geist der Zeiten sempre deixou as suas marcas no pensa-mento linguiacutestico Por vezes a influecircncia da situaccedilatildeo so-cioeconoacutemica e mesmo poliacutetica deve igualmente ser tida em conta (considere-se a discussatildeo sobre a lsquoordem natu-ralrsquo da organizaccedilatildeo sintaacutetica na Franccedila do seacuteculo XVIII na qual o francecircs foi apresentado como uma liacutengua superior agraves outras e as aspiraccedilotildees de supremacia poliacutetica da Franccedila no mesmo periacuteodo)

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(Koerner 2014 p 58)

2) o princiacutepio da imanecircncia consiste na leitura imanente do texto do ponto de vista de seu estabelecimento criacutetico (filoloacutegico) de sua construccedilatildeo enquanto um objeto dis-cursivo (o seu gecircnero) e em relaccedilatildeo aos elementos teoacutericos analiacuteticos e empiacutericos que apresenta Trata-se portanto de uma espeacutecie de close reading para o que eacute crucial o esforccedilo que o analista empreende para se desvencilhar do seu arcabouccedilo teoacuterico do presente tendo em vista um esforccedilo de escutar os sentidos que os conceitos possuiacuteam no contexto em que foram formulados tendo em vista as finalidade do gecircnero em questatildeo (se eacute uma gramaacutetica escolar se eacute um tratado de loacutegica um manual de retoacuterica etc)

3) o princiacutepio da adequaccedilatildeo tendo realizado as duas primeiras etapas o estudioso poderaacute entatildeo buscar traccedilar aproximaccedilotildees comparaccedilotildees diferenciaccedilotildees entre o qua-dro conceptual da obra em questatildeo e eventualmente suas ressonacircncias em outros pe-riacuteodos inclusive na contemporaneidade Particularmente para a traduccedilatildeo de textos gregos e latinos eacute crucial que na anotaccedilatildeo o analista busque oferecer ao leitor iacutendices dessa adequaccedilatildeo para assegurar que o texto antigo seja compreensiacutevel aos leitores contemporacircneos

Como exemplifica Koerner (1995 p 59)

Claro que eacute necessaacuterio que o investigador explique porquecirc e ateacute que ponto o conceito tardo-medieval de lsquosignificatio vocisrsquo por exemplo pode ser traduzido como lsquosignificadorsquo ou ateacute que ponto a distinccedilatildeo saussuriana entre lsquosincroniarsquo e lsquodiacroniarsquo pode ser aplicada a propostas teoacutericas ante-riores que tecircm a ver com a relaccedilatildeo entre a linguiacutestica lsquodes-critivarsquo e lsquohistoacutericarsquo Como regra o historioacutegrafo da linguiacutes-tica deve alertar o leitor para o facto de as aproximaccedilotildees terminoloacutegicas terem sido introduzidas por ele por outras palavras deve ser expliacutecito e preciso no que respeita agravequi-lo que na realidade estaacute a fazer Koerner (2014 p 59)

A aplicaccedilatildeo desses trecircs princiacutepios pressupotildee uma ldquoneutralidade epistemoloacutegi-cardquo e um ldquohistoricismo moderadordquo (Auroux 1992 p 12) A neutralidade epistemoloacutegi-ca diz respeito agrave noccedilatildeo de ldquociecircnciardquo com que se opera ldquociecircnciardquo deve ser tomada como palavra descritiva natildeo normativa Segundo Auroux (1992) ldquonatildeo faz parte do nosso papel dizer se isto eacute mais ciecircncia do que aquilo mesmo se nos acontecer de sustentar que isto ou aquilo eacute concebido como ciecircncia por este ou aquele criteacuteriordquo Quanto ao his-toricismo moderado ele consiste na concepccedilatildeo que prevecirc em certa medida indepen-decircncia entre o saber historicamente construiacutedo e os fenocircmenos inerentes agrave linguagem enquanto expressatildeo humana em seus domiacutenios cognitivos e socio-culturais O valor de um saber linguiacutestico eacute dado de acordo com o grau de adequaccedilatildeo desse saber a um fim dado contudo isso natildeo deve conduzir ao ldquomito da incomparabilidaderdquo haja vista

que a linguagem instancia fenocircmenos que ao longo do tempo podem ter a mesma natureza como a sua relaccedilatildeo com identidade cultural norma variaccedilatildeo e mudanccedila organizaccedilatildeo loacutegica interna das palavras etc

Assim a consequecircncia da aplicaccedilatildeo dos trecircs hermenecircuticos da Historiografia da Linguiacutestica (o princiacutepio da contextualizaccedilatildeo o princiacutepio da imanecircncia e o princiacutepio da adequaccedilatildeo) articulados agrave noccedilatildeo problemaacutetica de texto agrave neutralidade epistemoloacute-gica e agrave abordagem historicista moderada eacute mitigar a noccedilatildeo de ciecircncia e de Linguiacutestica assentada sobre o mito do cientificismo progressista homogecircneo e estaacutevel e produzir em contrapartida a noccedilatildeo de que os saberes da Linguiacutestica como de resto de todo conhecimento satildeo em ampla medida uma realidade histoacuterica ainda que tenham como objeto de observaccedilatildeo fenocircmenos linguiacutesticos que podem ser em certa medida coteja-dos diacronicamente

Textos gramaticais antigos comentaacuterio e traduccedilatildeo

Se do ponto de vista teoacuterico a colaboraccedilatildeo do estudo de corpora de textos metalinguiacutesticos antigos para a histoacuteria das ciecircncias da linguagem parece-nos suficien-temente caracterizada tanto mais evidente mostra-se-nos a oportunidade de que se reveste a empreitada de traduzir tais textos Com as facilidades do mundo digital que franqueou aos estudiosos o acesso a parte consideraacutevel dos textos gramaticais antigos hoje classicistas podem se debruccedilar sobre farta documentaccedilatildeo que haacute apenas alguns anos se podia acessar somente presencialmente em determinadas bibliotecas sobre-tudo localizadas no Velho Mundo

Para termos a ideia da dimensatildeo do corpus atualmente disponiacutevel on-line acessarmos brevemente o portal do Corpus Corporumcxlv que reuacutene as obras conven-cionalmente atribuiacutedas aos gramaacuteticos latinos datadas de entre os seacuteculos III e VIII compiladas e editadas sobretudo pelo filoacutelogo alematildeo Heinrich Keil (Leipzig 1855-1880) somos confrontados com um cifra de mais de cem textos atribuiacutedos a cerca de 41 autores diferentes aleacutem de mais de duas dezenas de fragmentos e obras anocircnimas

Cobrindo desde manuais de ensino de gramaacutetica ndash as artes de extensatildeo varia-

da ndash ateacute longos tratados monograacuteficos sobre meacutetrica sintaxe figuras de linguagem entre outros que podem chegar ao montante de mais de um milhar de paacuteginas por obra a compilaccedilatildeo disponiacutevel assombra tanto pela sua complexidade ndash perfazem de fato diferentes gecircneros de textos gramaticais com assuntos variados e com propoacutesitos igualmente distintos natildeo permitindo por isso mesmo um tratamento global aleacutem de em vaacuterios casos serem exemplos de superposiccedilatildeo de textos recortes colagens paraacutefrases e ainda outros fenocircmenos textuais ligados agrave transmissatildeo ndash quanto tambeacutem impressionam pela sua dimensatildeo jaacute que com raras exceccedilotildees quase natildeo haacute traduccedilotildees em liacutenguas modernas

Sendo assim aleacutem de tratar dos aspectos propriamente teoacutericos desse corpus colaborando com subsiacutedios para a ldquohistoacuteria do pensamento gramaticalrdquo o classicista eacute tambeacutem convocado a dar a sua contribuiccedilatildeo com um amplo projeto de traduccedilatildeo co-

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mentaacuterio e anotaccedilatildeo desses textos que embora jaacute se consagre em iniciativas isoladas no Brasil (sobretudo fruto de dissertaccedilotildees e teses da aacuterea ) ainda natildeo se constitui como um grande projeto coletivo e unificado de caraacuteter multidisciplinar tal como ocorre em outros paiacuteses em particular na Franccedila Vejamos por exemplo o caso francecircs em relaccedilatildeo agrave traduccedilatildeo da obra de Prisciano

Ateacute precisamente 2008 a empreitada de traduccedilatildeo da obra de Prisciano (seacutec VI dC) gramaacutetico da Antiguidade Tardia natildeo havia sequer se iniciado em qualquer liacutengua moderna conquanto o lugar de proeminecircncia das suas Institutiones gramma-ticae para a compreensatildeo da transiccedilatildeo do pensamento antigo ao moderno fosse jaacute desde muito amplamente reconhecido o que sempre justificou o fato de ser aquela a obra mais citada pelos gramaacuteticos e dicionaristas medievais e modernos Com efeito dividida em 18 livros que cobrem dos domiacutenios miacutenimos da linguagem (os sons as siacutelabas os processos de formaccedilatildeo de palavras ndash Livro I) passando por uma exaustiva anaacutelise das partes da oraccedilatildeo (Livros II-XV) ateacute chegar no exame do domiacutenio da sin-taxe (Livros XVI e XVII) a obra de Prisciano perfaz seguramente mais de mil paacuteginas de texto latino em sua ediccedilatildeo moderna cobrindo temas de complexidade certamente ainda natildeo bem avaliada em seu conjunto

Na Franccedila o Grupo Ars grammatica formado por latinistas historiadores da ciecircncia e da gramaacutetica liderado por Marc Baratin e composto por Freacutedeacuterique Bivil-le Guillaume Bonnet Bernard Colombat Alessandro Garcea Louis Holtz Madeleine Keller Diane Marchand entre outros iniciaram a empreitada de traduzir Prisciano trabalho que jaacute rendeu a publicaccedilatildeo em 2010 do Livro XVII (Syntaxe I) e em 2012 dos Livros XIV XV e XVI (Les invariables) e em 2017 do Livro XVIII (Syntaxe II) O diferen-cial do trabalho de Baratin et alii eacute a apresentaccedilatildeo de uma traduccedilatildeo legiacutevel e fluente em francecircs moderno (em alguns casos adotando-se terminologia moderna da Linguiacutestica quando possiacutevel) mas tambeacutem o estudo criacutetico e as notas que auxiliam na compreen-satildeo do texto tornando-se portanto instrumental uacutetil tanto a classicistas que se voltam a textos outrora considerado ldquoperifeacutericosrdquo no amplo corpus de produccedilotildees escritas em latim quanto a historiadores da Linguiacutestica e a linguistas que perspectivam retomam e se revelam contemporaneamente interessados nos fundamentos histoacutericos e epis-temoloacutegicos de suas praacuteticas

No acircmbito brasileiro questotildees praacuteticas que envolvem o ainda pequeno contin-gente de profissionais dedicados agrave aacuterea (ainda que esteja em franco desenvolvimento com a multiplicaccedilatildeo de pesquisas fora dos maiores centros tradicionalmente dedicados aos Estudos Claacutessicos no Brasil) bem como restriccedilotildees proacuteprias do mercado editorial com espaccedilo reduzido a publicaccedilotildees de obras teacutecnicas da Antiguidade ndash principalmente biliacutengues ndash satildeo atualmente desafios que se apresentam no horizonte esperando solu-ccedilotildees que talvez passem pela crescente adesatildeo aos meacutetodos de trabalho coletivo media-dos pelo computador e pelas formas de publicaccedilatildeo alternativas em meio digital

Fora isso poder-se-ia tambeacutem elencar um certo estranhamento que tais pes-quisas geram ainda nos ciacuterculos linguiacutesticos ainda pouco afeitos ao caraacuteter essencial-mente inter- e transdisciplinar inerentes das pesquisas dos Estudos Claacutessicos ndash que oficialmente natildeo satildeo aacuterea reconhecida no Brasil a se considerar a tabela de aacuterea da

CAPES o que obriga classicistas se dividirem entre os estudiosos da subaacuterea de Letras (que envolve principalmente os Estudos Literaacuterios) e Linguiacutestica

Um terceiro aspecto importante mas certamente natildeo menor diz respeito ain-da agrave carecircncia de estudos em torno da proacutepria traduccedilatildeo Reconheccedilo muitas vezes uma lacuna teoacuterica e metodoloacutegica importante quando lidamos nessa aacuterea de forma que as traduccedilotildees realizadas pelos classicistas por bem cuidadas que o sejam ainda se ressen-tem de serem essencialmente artesanais e contarem minimamente com os recursos atualmente disponiacuteveis aos tradutores profissionais aleacutem de suscitarem pouca refle-xatildeo metatradutoacuteria (o que entretanto jaacute se inicia a fazer quanto agraves traduccedilotildees literaacute-rias de textos antigos no Brasil sobre as quais se jaacute se podem elencar significativos e valiosos exemplos)

Agrave guisa de conclusatildeo

Com esses apontamentos que natildeo se pretendem conclusivos parecem-nos ca-racterizados de algum modo os desafios mas tambeacutem a contribuiccedilatildeo que os Estudos Claacutessicos especialmente as investigaccedilotildees em torno da gramaacutetica antiga e os esforccedilos em torno da traduccedilatildeo e anotaccedilatildeo desse corpus tecircm a oferecer para pensar as refle-xotildees gramaticais erigidas pela tradiccedilatildeo ocidental contribuiccedilatildeo potencialmente capaz de produzir senatildeo impacto ao menos incocircmodo ou ruiacutedo entre os linguistas de nosso tempo Se essa tradiccedilatildeo representa tambeacutem uma teoria a investigaccedilatildeo de sua histoacuteria como tambeacutem nos informa Koerner

pode muito bem servir como um alerta contra as alega-ccedilotildees exageradas em termos de novidade originalidade inovaccedilatildeo e revoluccedilatildeo em nossas (re)descobertas e assim levar a um tipo menos polecircmico de discurso cientiacutefico () uma lsquomoderaccedilatildeo na teoria linguiacutesticarsquo (Koerner 2003 p 381)

Eacute claro que com essa histoacuteria tampouco podemos ter a presunccedilatildeo ingecircnua de chegarmos ao discurso dogmaacutetico do que seria ldquoa verdaderdquo ou de termos a posse de um recurso metodoloacutegico que nos permita medir como se tiveacutessemos uma reacutegua os trabalhos de colegas linguistas e gramaacuteticos de nosso tempo Paul Veyne afirmou certa vez que

A histoacuteria tem a faculdade de nos confundir ela nos con-fronta incessantemente com singularidades diante das quais nossa reaccedilatildeo mais natural eacute a de natildeo enxergar lon-ge de constatar que natildeo temos a chave adequada nem se-quer percebemos que natildeo haacute uma fechadura que deve ser aberta (VEYNE 1998 [1971] p 174)

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Falando com os mortosalguns epigramas

heleniacutesticos dialogadosem traduccedilatildeo cxvliii

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Flaacutevia Vasconcellos Amaral

CARONTE Vamos velhaco paga a passagemMENIPO Vai gritando se isso te daacute prazer CaronteCARONTE Paga jaacute disse pela travessiaMENIPO Natildeo poderias tomar de quem natildeo temCARONTE E haacute algueacutem que natildeo tem um oacuteboloMENIPO Se haacute um outro eu natildeo sei Eu natildeo tenhoCARONTE Por Plutatildeo seu safado vou te torcer o pescoccedilo se natildeo pagaresMENIPO E eu com este porrete vou te dar uma porreta-da e rachar a cabeccedilaCARONTE Entatildeo foi por nada que eu te fiz atravessarMENIPO O Hermes aqui presente que pague a passagem Foi ele que me entregou a ti HERMES Por Zeus Belo negoacutecio eacute o meu se ainda eu tenho que pagar pelos mortos () cxlix

A morte eacute um dos temas mais fascinantes e abundantes da literatura grega seja ela o fio condutor da obra como em ldquoDiaacutelogos dos Mortosrdquo de Luciano de Samoacute-sata texto que hospeda o trecho citado acima seja ela tema latente realccedilado em partes de uma composiccedilatildeo como no canto XI da Odisseia de Homero

Presente praticamente em quase todos os gecircneros poeacuteticos da literatura grega muitas vezes a morte ndash e todo o imaginaacuterio em torno dela ndash eacute discutida em formato de diaacutelogo entre vivos e mortos e divindades e mortos Tomemos como exemplo o trecho do diaacutelogo entre Caronte Menipo e Hermes acima citado de Luciano herdeiro dessa tradiccedilatildeo poeacutetica

O argumento central do diaacutelogo eacute o calote do morto que diz natildeo ter o dinheiro necessaacuterio para pagar Caronte o barqueiro encarregado de transportar os mortos pelo Aqueronte rio que leva ao Hades Caronte em troca do transporte recebe um oacutebolo que os mortos carregam nos laacutebios Hermes eacute o psykhopompos ou seja o que conduz as almas ateacute Caronte para que a travessia seja feita A terceira e mais intrigante perso-nagem eacute o finado Menipo famoso filoacutesofo ciacutenico do seacuteculo III aC cuja caracterizaccedilatildeo nesse diaacutelogo serve de exemplo sobre os ciacutenicos pobres e frugais e cujas vestimentas incluiacuteam um cajado (no trecho traduzido como porrete) e um saco (que aparece no trecho subsequente do diaacutelogo que natildeo foi reproduzido aqui)

Recheado do humor satiacuterico caracteriacutestico da obra de Luciano o trecho trans-porta o leitor para dentro de um diaacutelogo hipoteacutetico ambientado no tradicional espaccedilo limiar entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e desafia a noccedilatildeo comum da

Gostaria antes de mais nada de deixar registrado o meu profundo lamento por todas as mortes que a Covid-19 causou e que infelizmente ainda iraacute causar ateacute o momento que este livro for publicado ou ainda em momento posterior Escrevo este texto em setembro de 2020 e jaacute ultrapassamos mais de cento e trinta mil vidas perdidas somente no Brasil Eacute para mim praticamente impossiacutevel natildeo reconhecer o lamento fuacutenebre de tantas famiacutelias que perderam seus entes queridos ao escrever meu trabalho sobre a temaacutetica da morte Que a terra seja leve para todos os que perderam suas vidas para esse inimigo invisiacutevel

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praacutetica funeraacuteria do pagamento ao barqueiro Caronte Uma estrateacutegia narrativa se-melhante acontece nos epigramas 317 e 524 de Caliacutemaco a seguir Nesses epigramas ambientados no espaccedilo funeraacuterio onde estaacute a tumba o transeunte-leitor questiona o morto em relaccedilatildeo a elementos do senso comum como por exemplo se o morto prefe-re a escuridatildeo da morte ou a luz da vida (317) ou como eacute ldquoembaixordquo ou ainda se existe a volta ao mundo dos vivos (524)

Aleacutem do questionamento do morto sobre como satildeo as coisas ldquodo lado de laacuterdquo os epigramas fuacutenebres dialogados do periacuteodo heleniacutestico que seratildeo apresentados em traduccedilatildeo a seguir se ancoram no espaccedilo fuacutenebre e seus objetos (Dioscoacuterides 37 Antiacute-patro161 424 e 426) e especulam sobre a vida do morto (Leocircnidas 163 e 503 Antiacutepatro 164 Aacuterquias 165 Caliacutemaco 277 e 725 Damageto 355 e Meleagro 470)cliii

Antes de apresentar as propostas de novas traduccedilotildees dos epigramas dialoga-dos do periacuteodo heleniacutestico em portuguecircs clix satildeo necessaacuterias algumas palavras iniciais sobre o gecircnero epigramaacutetico a sua vertente fuacutenebre os poetas que fazem parte do corpus e as escolhas da traduccedilatildeo

O periacuteodo heleniacutestico (entre a morte de Alexandre o Grande em 323 aC e a batalha de Aacutecio em 31 aC) foi um momento de intensa produccedilatildeo literaacuteria e difusatildeo da cultura grega entre os reinos do impeacuterio de Alexandre O epigrama cuja origem eti-moloacutegica (epi + gramma = o que eacute escrito sobre) remonta agrave produccedilatildeo inscrita em ma-teriais duros foi um dos gecircneros com maior expansatildeo durante o periacuteodo natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave profusatildeo mas tambeacutem por conta da variedade de temas que passaram a ser tratados no gecircnero

A partir do seacuteculo IV aC as inscriccedilotildees que antes eram encontradas em obje-tos votivos laacutepides funeraacuterias monumentos e ceracircmica e tinham funccedilatildeo pragmaacutetica de registro passam a ser dissociadas de seus objetos e ganham o papiro como suporte Logo entatildeo as inscriccedilotildees comeccedilam a abarcar outras temaacuteticas como a eroacutetica e a sim-posial Nasce entatildeo o epigrama literaacuterio o qual seraacute um gecircnero duradouro desenvol-vido intensamente por Marcial em Roma e chegaraacute ateacute o Renascimento respingando tambeacutem na modernidade

Os epigramatistas heleniacutesticos seratildeo os maiores responsaacuteveis pelas inovaccedilotildees no gecircnero sempre respeitando o equiliacutebrio que Fantuzzi e Hunter (2004) denominam ao movimento de manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo com constante inovaccedilatildeo conceito nortea-dor de toda a poesia heleniacutestica Um exemplo desse movimento eacute justamente o que acontece com alguns dos epigramas fuacutenebres dialogados pois neles satildeo identificados elementos essenciais das inscriccedilotildees fuacutenebres (brevemente elencados a seguir) em di-aacutelogos que satildeo construiacutedos para ir aleacutem das informaccedilotildees sobre o morto e o lamento pela sua morte O proacuteprio subgecircnero epigrama dialogado surge nesse periacuteodo como atesta Vega (1989 p 190) clvi

O epigrama fuacutenebre eacute uma das vertentes mais antigas do gecircnero Em um pri-meiro momento as inscriccedilotildees fuacutenebres tinham a funccedilatildeo de marcar o espaccedilo do morto fornecendo as informaccedilotildees elementares sobre ele o nome a filiaccedilatildeo o local de origem

e a causa mortis A princiacutepio as inscriccedilotildees fuacutenebres poderiam ser em prosa ou em ver-so hexameacutetrico mas o metro que se consagrou como o metro epigramaacutetico foi o diacutestico elegiacuteaco (um hexacircmetro e um pentacircmetro)

Na antiguidade o espaccedilo do morto natildeo era regulado e estruturado como nos dias de hoje Muitas vezes os enterramentos aconteciam fora da cidade ao longo das estradas ou seja um espaccedilo limiar entre a comunidade e o externo Por se tratar por-tanto de um objeto disposto em espaccedilo puacuteblico ocupado por um indiviacuteduo e tambeacutem por potencialmente ser interceptado por transeuntes-leitores que desconheciam esse objeto as laacutepides funeraacuterias e suas inscriccedilotildees eram uma forma de instruir os transeun-tes estabelecendo conexotildees entre o morto e eles A meu ver a criaccedilatildeo dessa conexatildeo natildeo servia apenas para matar a curiosidade do transeunte a respeito do objeto desco-nhecido celebrar e preservar a memoacuteria do morto mas era uma forma subliminar de apelo para que o espaccedilo fosse preservado Talvez a leitura da inscriccedilatildeo por parte do transeunte (independentemente se fosse em voz alta ou em silecircncio) pudesse sensibi-lizar um potencial violador de tumbasclvii dissuadindo-o do delito

Nesse sentido natildeo eacute estranho que os textos das inscriccedilotildees passem a dar voz natildeo apenas ao morto mas tambeacutem agrave proacutepria laacutepide fenocircmeno que os estudiosos identifi-cam com oggetti parlanti objetos que falam (BURZACHECHI 1964 WACHTER 2010) O mesmo aconteceu com as inscriccedilotildees em objetos votivos sob o mesmo princiacutepio pois esses objetos se encontravam em ambiente puacuteblico e precisavam ser identificados com os seus respectivos depositantes ndash sem contar a funccedilatildeo ritualiacutestica que essas inscriccedilotildees tambeacutem possuiacuteam Tendo a crer que a voz em primeira pessoa dada aos objetos nada mais eacute do que uma resposta ao natural questionamento que o homem faz a todo objeto desconhecido que ele encontra em seu caminho Eacute natural algueacutem se perguntar o que algo eacute quando essa pessoa se depara com algo que natildeo pertence ao repertoacuterio de co-nhecimento Quando se visita um cemiteacuterio natildeo existe a curiosidade de se saber quem satildeo aqueles mortos de onde vieram e a qual famiacutelia pertenceram Pois bem acredito que esse fenocircmeno acontece desde a antiguidade Cria-se perguntas na mente de quem lecirc a inscriccedilatildeoo epigrama que os textos em primeira pessoa passaram a responder de maneira simples e que com o tempo eles incorporaram outras informaccedilotildees e ideias que constituem os diaacutelogos entre os vivos e os mortos

Eacute portanto tambeacutem um passo natural que a segunda voz seja acrescida agraves inscriccedilotildees fuacutenebres jaacute que esse diaacutelogo acontecia de certa maneira como exposto acima na mente do transeunte-leitor Aleacutem do diaacutelogo entre a laacutepide e o transeun-te-leitor encontra-se tambeacutem o diaacutelogo entre o morto e o transeunte-leitor e entre objetos dispostos na laacutepide ndash que tambeacutem poderiam estar entalhados ou pintados ndash e o transeunte-leitor Algumas inscriccedilotildees e epigramas fuacutenebres satildeo enunciados por mais de dois participantes mas em menor nuacutemero As primeiras inscriccedilotildees dialogadas satildeo breves e conteacutem apenas dados elementares do morto Com o passar do tempo e o de-senvolvimento do gecircnero os epigramas fuacutenebres dialogados passam a ser mais longos trazendo natildeo apenas as informaccedilotildees mais elementares como tambeacutem informaccedilotildees extras reflexotildees etc

O presente corpus apresentado em traduccedilatildeo tem como recorte temporal o pe-riacuteodo heleniacutestico momento de maior inovaccedilatildeo no gecircnero epigramaacutetico e tem tambeacutem

128 129

como fonte a Antologia Grega (AG) a maior coleccedilatildeo de epigramas que chegou ateacute os dias de hoje A AG eacute resultado de muacuteltiplos processos editoriais que aconteceram por muitos seacuteculos A AG com a sua enorme quantidade de epigramas vindos de um periacuteo-do de mais de dezesseis seacuteculos eacute uma fonte riquiacutessima natildeo apenas do gecircnero e para os estudos de vertente literaacuteria mas tambeacutem fornece material secundaacuterio para diversas outras aacutereas do conhecimento como a historiografia arqueologia e antropologia

A base dessa antologia foi a Guirlanda de Meleagro a primeira antologia de epigramas que se tem notiacutecia datada do seacuteculo I aC Meleagro epigramatista nascido em Gadara compunha seus poemas em grego e eacute um dos poetas mais importantes na vertente grega do gecircnero por conta da sua coleccedilatildeo de epigramas na qual ele inseriu suas proacuteprias composiccedilotildees Embora natildeo se tenha a sua composiccedilatildeo original sabe-se do seu projeto poeacutetico tanto pelo seu proecircmio (AG 41) como tambeacutem por estudos que reconhecem provaacuteveis sequecircncias de epigramas da Guirlanda que permaneceram in-tactas aos processos editoriais que a AG sofreu por seacuteculos (GUTZWLLER 1998) Con-siderando as menccedilotildees do proecircmio provavelmente a Guirlanda de Meleagro abrigava epigramas de pelo menos cinquenta e oito epigramatistas ndash sem contar o proacuteprio poeta ndash arranjados natildeo apenas em livros temaacuteticos mas tambeacutem por semelhanccedila compo-sicional E assim tambeacutem era o meacutetodo de composiccedilatildeo de Meleagro Ele emulava seus predecessores e pode-se entender seus poemas como os laccedilos da amarraccedilatildeo de rama-lhetes de epigramas que colocados juntos formavam a Guirlanda clx

Filipe no seacuteculo I dC compotildee a sua guirlanda agrave moda de Meleagro como registrado no seu proecircmio (AG 42) Haacute evidecircncias tambeacutem de sequecircncias da sua co-leccedilatildeo que teriam sido preservadas Os estudiosos tendem a assumir que o arranjo que Filipe adotou era em ordem alfabeacutetica (CAMERON 1993) poreacutem atualmente Regina Houmlschele realiza uma pesquisa que aponta argumentos a favor de um arranjo mais elaborado da coleccedilatildeo de Filipe clxi

A proacutexima coleccedilatildeo que forma a base da AG eacute o Ciclo de Agatias Escolaacutestico datado do seacuteculo VI dC e que teria como princiacutepio de composiccedilatildeo a divisatildeo em livros temaacuteticos Seu longo proecircmio (AG 43) tambeacutem se vale da imagem floril mas da pers-pectiva da abelha que visita muitas flores O proecircmio termina com a divisatildeo da sua coleccedilatildeo em sete livros temaacuteticos

A ediccedilatildeo final dos epigramas seraacute feita por Cefalas no seacuteculo X dC e ela passa-raacute a integrar mais oito livros No seacuteculo XIV dC Planudes cria a sua proacutepria ediccedilatildeo su-primindo e acrescentando alguns epigramas Os seus acreacutescimos atualmente formam o livro XVI da AG A Antologia Grega portanto se divide em dezesseis livros temaacuteticos Livro I ndash epigramas cristatildeos Livro II ndash descriccedilotildees de estaacutetuas Livro III ndash inscriccedilotildees em um templo em Ciacutezico Livro IV ndash proecircmios da Guirlanda de Meleagro Guirlanda de Filipe e Ciclo de Agatias Livro V ndash epigramas eroacuteticos Livro VI ndash epigramas votivos Livro VII ndash epigramas fuacutenebres Livro VIII ndash epigramas de Gregoacuterio de Nazianzo Livro IX ndash epigramas declamatoacuterios Livro X ndash epigramas de exortaccedilatildeo Livro XI ndash epigramas simposiais e satiacutericos Livro XII ndash epigramas homoeroacuteticos de Estratatildeo Livro XIII ndash epigramas em diversos metros Livro XIV ndash charadas enigmas e oraacuteculos Livro XV

ndash miscelacircnea Livro XVI ndash epigramas sobre obras de arte

Em meio a tantos seacuteculos de ediccedilotildees o livro 7 dos epigramas fuacutenebres sem-pre esteve presente como parte fundamental para as coleccedilotildees devido agrave importacircncia da temaacutetica fuacutenebre no gecircnero Os epigramas aqui traduzidos portanto satildeo provenientes do atual arranjo do livro 7 da AG O corpus eacute composto de dezesseis epigramas fuacutene-bres dialogados do periacuteodo heleniacutestico clxii

Os epigramatistas do corpus satildeo poetas ativos durante o seacuteculo III aC (Ca-liacutemaco Leocircnidas Dioscoacuterides e Damageto) seacuteculo II aC (Antiacutepatro) e seacuteculo I aC (Meleagro)clxiii De todos esses epigramatistas o que se destaca eacute Caliacutemaco de Cirene por conta de seu protagonismo no desenvolvimento de um sistema de catalogaccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria (os Pinakes) e a sua produccedilatildeo poeacutetica vasta e variada in-fluente natildeo apenas no seu periacuteodo e em grego mas tambeacutem na poesia latina posterior Leocircnidas de Tarento eacute conhecido como o ldquopoeta do povordquo (Gow and Page 1965 vol II p 308) por tratar de temaacuteticas mais campesinas e pobreza Seus poemas portanto seguem uma tendecircncia heleniacutestica de trazer tudo o que eacute diminuto e aparentemente sem o kleos claacutessico para o centro do palco Dioscoacuterides tem Caliacutemaco e Asclepiacuteades de Samos como seus modelos de composiccedilatildeo Merecem destaque seus epigramas fuacute-nebres para poetas como Safo e Anacreonte o que pode ser tomado como evidecircncia para o seu interesse na histoacuteria das forma literaacuterias segundo Gow and Page (1965 vol II p 236) Damageto por sua vez tem seus epigramas geralmente associados a even-tos e figuras histoacutericas com destaque para o epigrama AG 6 277 que celebra o voto de Arsiacutenoe filha de Ptolemeu Evergeta agrave deusa Aacutertemis Por fim Antiacutepatro de Siacutedon tinha como um dos seus modelos Leocircnidas e Tarento e foi ele proacuteprio um dos modelos de emulaccedilatildeo mais marcantes na poesia de Meleagro de Gadara Seus epigramas que merecem destaque satildeo os epigramas fuacutenebres enigmaacuteticos que o poeta constroacutei com base na linguagem da ekphrasis

Para facilitar a organizaccedilatildeo dos epigramas a seguir eles foram colocados em ordem numeacuterica sequencial levando em consideraccedilatildeo a sequecircncia deles no livro 7 da AG Poreacutem quando os epigramas satildeo referidos o nuacutemero base seraacute o da AG e natildeo o da disposiccedilatildeo da traduccedilatildeo no intuito de facilitar a busca dos textos em outras ediccedilotildees O texto original grego apresentado nas notas eacute acompanhado do nuacutemero do epigrama na ediccedilatildeo atual da AG e o nuacutemero do epigrama na ediccedilatildeo de Gow and Page de 1965 (GP) a qual eu sigo para estabelecimento do texto grego

A maioria dos epigramas fuacutenebres dialogados satildeo editados com as falas dife-renciadas pelo uso das letras α β e γ Apesar das trocas de turno todos os epigramas satildeo compostos em diacutesticos elegiacuteacos Embora os editores natildeo expliquem a escolha de separar os turnos por letras eacute evidente que isso acontece quando as trocas de turno natildeo satildeo interpoladas por nenhum narrador

Optou-se por manter a disposiccedilatildeo graacutefica do metro do texto original quando as trocas de turnos coincidem com o teacutermino dos diacutesticos Entretanto nos casos de trocas de turnos ocorridas dentro do verso decidiu-se seguir uma soluccedilatildeo graacutefica proposta por Joseacute Paulo Paes (1995 p 39clxiv ) ao poema 524 de Caliacutemaco reproduzido aqui

130 131

A Jaz Caridas sob ti B Sim se for filho de Arima o cireneuA Ei Caridas que tal aiacute embaixo C Trevas soacuteA E quanto agrave volta C Mentira A E Plutatildeo C Um mito A Entatildeo estamos fritos C Crecirc no que te digo Mas se queres algo de apraziacutevel haacute boi barato no Hades

De todas as traduccedilotildees consultadas em diversas liacutenguas (PATON 1917 BECKBY 1957 PONTANI 1979 FERNAacuteNDEZ-GALIANO 1993 PAES 1995 SILVA 2013 e 2014 JESUS 2019 e FLORES 2019) apenas a traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes (1995) considerou uma disposiccedilatildeo graacutefica mais facilitadora ao entendimento do poema por privilegiar uma disposiccedilatildeo de diaacutelogo tradicional separando os turnos Considerei essa soluccedilatildeo mais interessante por conferir ao texto de chegada a dinacircmica riacutetmica das trocas de turnos que o texto de partida possui ao fazer coincidir as trocas de turno com peacutes meacute-tricos e cesuras ndash algo que seria muito complexo de se reproduzir Apenas o epigrama 89 de Caliacutemaco resolveu-se dispor o texto de chegada de maneira fragmentada para separar as partes narrativas das falas das personagens

Os diaacutelogos a seguir satildeo entre o transeunte-leitor e o morto (dez epigramas ndash AG 7 79 163 164 165 277 317 355 424 470 e 725) transeunte-leitor e a laacutepide ou objetos que estatildeo junto agrave laacutepide (cinco epigramas ndash AG 7 37 161 426 503 e 524) e um transeunte que toma conselhos de um anciatildeo com a participaccedilatildeo dos meninos que estatildeo na cena (um ndash AG 7 89 epigrama natildeo fuacutenebre) Toma-se como padratildeo a voz como masculina sobretudo para o transeunte-leitor e quando natildeo facilmente indicada como feminina

A sequecircncia de epigramas 163 164 e 165 eacute uma seacuterie de emulaccedilotildees sobre o mesmo padratildeo de diaacutelogo um epigrama tradicional de especulaccedilatildeo sobre os detalhes sobre o morto Leocircnidas 163 serve de modelo para as duas variantes de Antiacutepatro (164 e 165) Eacute interessante notar natildeo apenas as escolhas que Antiacutepatro faz ao construir a sua imitaccedilatildeo primeira mas tambeacutem o que ele modifica na sua segunda imitaccedilatildeo

Por fim eacute importante chamar a atenccedilatildeo para o epigrama 79 de Meleagro pois o diaacutelogo diferentemente do padratildeo eacute iniciado pelo morto sem que ele responda a nenhuma pergunta sequer do transeunte-leitor Haacute portanto uma certa inversatildeo nos papeacuteis de ambos dentro do diaacutelogo pois o morto fornece informaccedilotildees segundo seus proacuteprios interesses e o transeunte-leitor apenas reage aos seus turnos

O corpus apresentado aqui em traduccedilatildeo eacute um retrato detalhado e rico das pos-sibilidades narrativas do gecircnero epigramaacutetico nas matildeos dos poetas heleniacutesticos Ele faz parte de um estudo maior que se debruccedila sobre as teacutecnicas narrativas dos epigramas dialogados de toda a AG e tambeacutem de coleccedilotildees de inscriccedilotildees (ainda estaacute em andamen-

to) Haacute muitas possibilidades de estudos na epigramaacutetica grega pois a quantidade de material ainda sem publicaccedilatildeo no Brasil abunda Espero que esta contribuiccedilatildeo possa despertar o interesse dos leitores para esse fascinante campo dos estudos de literatura grega no paiacutes

1 Dioscoacuterides 72

A Esta tumba eacute de Soacutefocles homem aquele que as Musas me concederam guardar como tesouro sagra-do jaacute que sagrado sou Foi ele quem me tomou em Fliunte onde eu pisava castanheiro fez da minha ma-deira uma estaacutetua dourada e me vestiu com um fino manto puacuterpura Depois de sua morte aqui plantei o passo preciso de danccedilarino

B Bem-afortunado por ter recebido lugar tatildeo ditoso E de qual peccedila eacute a maacutescara de cabelos cortados que tens nas matildeos

A Se quiseres dizer Antiacutegona ou Electra natildeo errarias pois ambas satildeo o que haacute de sublime

2 Meleagro 73

A Homem eu sou Heraacuteclito Afirmo que descobri a sa-bedoria sozinho mas meus serviccedilos ciacutevicos suplantam a sabedoria Com o peacute estrangeiro escorracei ateacute meus ge-nitores aqueles insensatos

B Bela recompensa aos que te criaram

A Longe de mim

B Natildeo sejas duro

A Em breve mais duras seratildeo as notiacutecias que receberaacutes da paacutetria

72 737 Dioscoacuterides (GP XXII)

α τύμβος ὅδ᾽ ἔστ᾽ ὤνθρωπε Σοφοκλέος ὃν παρὰ Μουσέων ἱρὴν παρθεσίην ἱερὸς ὢν ἔλαχονὅς με τὸν ἐκ Φλιοῦντος ἔτι τρίβολον πατέοντα πρίνινον ἐς χρύσεον σχῆμα μεθηρμόσατοκαὶ λεπτὴν ἐνέδυσεν ἁλουργίδα τοῦ δὲ θανόντος εὔθετον ὀρχηστὴν τῇδ᾽ ἀνέπαυσα πόδα β ὄλβιος ὡς ἁγνὴν ἔλαχες στάσιν ἡ δ᾽ ἐνὶ χερσί κούριμος ἐκ ποίης ἥδε διδασκαλίης

α εἴτε σοὶ Ἀντιγόνην εἰπεῖν φίλον οὐκ ἂν ἁμάρτοις εἴτε καὶ Ἠλέκτραν ἀμφότεραι γάρ ἄκρον

73779 Meleagro (GP CXXI)

α ὤνθρωπ᾽ Ἡράκλειτος ἐγὼ σοφὰ μοῦνος ἀνευρεῖν φαμί τὰ δ᾽ ἐς πάτραν κρέσσονα καὶ σοφίηςλὰξ γὰρ καὶ τοκεῶνας ἰὼ ξένε δύσφρονας ἄνδρας ὑλάκτευν β λαμπρὰ θρεψαμένοισι χάρις α οὐκ ἀπ᾽ ἐμεῦ β μὴ τρηχύς α ἐπεὶ τάχα καὶ σύ τι πεύσῃ τρηχύτερον πάτρας β χαῖρε α σὺ δ᾽ ἐξ Ἐφέσου

132 133

B Adeus

A Fica fora de Eacutefeso

3 Caliacutemaco 74

Certa vez um estrangeiro de Atarneia perguntou a Piacutetaco de Mitilene filho de Hirraacutedio

A Meu velho duas moccedilas me pediram em casamento uma eacute igual a mim no dinheiro e na linhagem e a outra me supera O que eacute melhor Diz para mim qual aconselhas que eu leve ao altar

E Piacutetaco aponta o cajado instrumento senil

B Olha Aqueles ali vatildeo te dizer tudo

(Havia alguns meninos rodando raacutepidos piotildees em uma ampla praccedila)

B Vai atraacutes deles

E entatildeo ele foi mais perto e eles diziam

C Segue pelo teu caminho

Ouvindo isso o estrangeiro deixou de almejar a casa mais rica pois entendeu o oraacuteculo dos meninos Ele entatildeo levou ao altar a noiva de menos posses Assim tambeacutem Diacuteon segue pelo teu caminho

4 Antiacutepatro de Siacutedon 75

A Ave mensageira de Zeus Cronida por que te re-pousassoturna sobre a tumba do ditoso AristocircmenesB Proclamo aos homens que assim como sou a me-lhor entre as aves ele tambeacutem o foi entre os jovens

74 789 Caliacutemaco (GP LIV)

ξεῖνος Ἀταρνείτης τις ἀνείρετο Πιττακὸν οὕτω τὸν Μυτιληναῖον παῖδα τὸν Ὑρράδιον lsquo ἄττα γέρον δοιός με καλεῖ γάμος ἡ μία μὲν δὴ νύμφη καὶ πλούτῳ καὶ γενεῇ κατ᾽ ἐμέ ἡ δ᾽ ἑτέρη προβέβηκε τί λώιον εἰ δ᾽ ἄγε σύν μοὶ βούλευσον ποτέρην εἰς ὑμέναιον ἄγωrsquoεἶπεν ὁ δὲ σκίπωνα γεροντικὸν ὅπλον ἀείρας

lsquo ἡνιδε κεῖνοί σοι πᾶν ἐρέουσιν ἔποςrsquo (οἱ δ᾽ ἄρ᾽ ὑπὸ πληγῇσι θοὰς βέμβικας ἔχοντες ἔστρεφον εὐρείῃ παῖδες ἐνὶ τριόδῳ῾κείνων ἔρχεοrsquo φησί lsquo μετ᾽ ἴχνιαrsquo χὠ μὲν ἐπέστη πλησίον οἱ δ᾽ ἔλεγον lsquo τὴν κατὰ σαυτὸν ἔλαrsquo ταῦτ᾽ ἀίων ὁ ξεῖνος ἐφείσατο μείζονος οἴκου δράξασθαι παίδων κληδόνα συνθέμενοςτὴν δ᾽ ὀλίγην ὡς κεῖνος ἐς οἰκίον ἤγετο νύμφην οὕτω καὶ σὺ Δἰὼν τὴν κατὰ σαυτὸν ἔλα

75 7161 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XX)

α ὄρνι Διὸς Κρονίδαο διάκτορε τεῦ χάριν ἔστας γοργὸς ὑπὲρ μεγάλου τύμβον Ἀριστομένους β ἀγγέλλω μερόπεσσιν ὁθούνεκεν ὅσσον ἄριστος οἰωνῶν γενόμαν τόσσον ὅδ᾽ ἠιθέων δειλαί τοι δειλοῖσιν ἐφεδρήσσουσι πέλειαι ἄμμες δ᾽ ἀτρέστοις ἀνδράσι τερπόμεθα

76 7163 Leocircnidas de Tarento (GP LXX)

α τίς τίνος εὖσα γύναι Παρίην ὑπὸ κίονα κεῖσαι β Πρηξὼ Καλλιτέλευς α καὶ ποδαπή β Σαμίη α τίς δέ σε καὶ κτερέιξε β Θεόκριτος ᾧ με γονῆες ἐξέδοσαν α θνῄσκεις δ᾽ ἐκ τίνος β ἐκ τοκετοῦ α εὖσα πόσων ἐτέων β δύο κεἴκοσιν α ἦ ῥὰ γ᾽ ἄτεκνος β οὔκ ἀλλὰ τριετῆ Καλλιτέλην ἔλιπον α Ζώοι σοι κεῖνός γε καὶ ἐς βαθὺ γῆρας ἵκοιτο β καὶ σοί ξεῖνε πόροι πάντα Τύχη τὰ καλά

Pombas covardes guardam covardesmas noacutes nos comprazemos com os destemidos

5 Leocircnidas de Tarento 76

A Quem eacutes mulher que jazes sob o maacutermore paacuterio e de qual pai

B Praxo filha de Caliacuteteles

A E de que terra

B Samos

A E quem fez as tuas honras fuacutenebres

B Teoacutecrito a quem meus pais me deram para casar

A E como morreste

B No parto

A Quantos anos tinhas

B Vinte e dois

A Entatildeo sem filhos

B Natildeo pois deixei Caliacuteteles de trecircs anos

A Que ele viva e alcance a idade avanccedilada

B E que a ti forasteiro a Fortuna decirc tudo de bom

6 Antiacutepatro de Siacutedon 77

A Diz mulher tua famiacutelia nome e terra natal

134 135

B Caliacuteteles foi meu pai Praxo meu nome e a terra Samos

A Quem erigiu este monumento

B Teoacutecrito o que soltou meu intocado cinturatildeo de virgem

A Como morreste

B Nas dores do parto

A Fala com qual idade

B Duas vezes onze

A E sem filhos

B Natildeo estrangeiro Deixei Caliacuteteles na infacircncia uma crianccedila de apenas trecircs anos

A Que ele atinja a grei velhice feliz

B Que a Fortuna viajante guie toda a tua vida por uma leve brisa

7 Aacuterquias 78

A Fala mulher quem foste

B Praxo

A De qual pai foste gerada

B De Caliacuteteles

A E de que terra foste

77 7164 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XXI) α φράζε γύναι γενεήν ὄνομα χθόνα β Καλλιτέλης μὲν ὁ σπείρας Πρηξὼ δ᾽ οὔνομα γῆ δὲ Σάμος α σῆμα δὲ τίς τόδ᾽ ἔχωσε β Θεόκριτος ὁ πρὶν ἄθικτα ἁμετέρας λύσας ἅμματα παρθενίης α πῶς δὲ θάνες β Λοχίοισιν ἐν ἄλγεσιν α εἰπὲ δὲ ποίην ἦλθες ἐς ἡλικίην β Δισσάκις ἑνδεκέτις α ἦ καὶ ἄπαις β οὐ ξεῖνε λέλοιπα γὰρ ἐν νεότητι Καλλιτέλη τριετῆ παῖδ᾽ ἔτι νηπίαχον α ἔλθοι ἐς ὀλβίστην πολιὴν τρίχα β καὶ σόν ὁδῖτα οὔριον ἰθύνοι πάντα Τύχη βίοτον

78 7165 Aacuterquias (GP XIII)α εἰπὲ γύναι τίς ἔφυς β Πρηξώ α τίνος ἔπλεο πατρός β Καλλιτέλευς α πάτρας δ᾽ ἐκ τίνος ἐσσί β Σάμου α μνᾶμα δέ σου τίς ἔτευξε β θεόκριτος ὅς με σύνευνον ἤγετο α πῶς δ᾽ ἐδάμης β ἄλγεσιν ἐν λοχίοις α εἰν ἔτεσιν τίσιν εὖσα β δὶς ἕνδεκα α παῖδα δὲ λείπεις β νηπίαχον τρισσῶν Καλλιτέλην ἐτέων α ζωῆς τέρμαθ᾽ ἵκοιτο μετ᾽ ἀνδράσι β καὶ σέο δοίη παντὶ Τύχη βιότῳ τερπνόν ὁδῖτα τέλος

79 7277 Caliacutemaco (GP L)α τίς ξένος ὦ ναυηγέ β Λεόντιχος ἐνθάδε νεκρὸν εὗρέ μ᾽ ἐπ᾽ αἰγιαλοῦ χῶσε δὲ τῷδε τάφῳ δακρύσας ἐπίκηρον ἑὸν βίον οὐδὲ γὰρ αὐτὸς ἥσυχος αἰθυίῃ δ᾽ ἶσα θαλασσοπορεῖ

80 7317 Caliacutemaco (GP LI) α Τίμων οὐ γὰρ ἔτ᾽ ἐσσί τί τοι σκότος ἢ φάος ἐχθρόν β τὸ σκότος ὑμέων γὰρ πλείονες εἰν Ἀίδῃ

B Samos

A Quem fez teu memorial

B Teoacutecrito aquele que me tomou como esposa

A Como morreste

B Nas dores do parto

A Com quantos anos

B Duas vezes onze

A Deixas algum filho

B Caliacuteteles uma crianccedila de trecircs anos

A Que ele chegue ao fim da vida entre os homens

B E que a Fortuna viajante decirc um fim prazeroso para toda a tua vida

8 Caliacutemaco 79

A Quem eacutes estrangeiro naacuteufrago

B Leocircntico aqui meu corpo encontrou nesta praia e me enterrou nesta cova chorando a sua proacutepria vida pereciacutevel Sem descanso ele navega no mar como uma gaivota

9 Caliacutemaco 80

A Finado Tiacutemon o que mais odeias a escuridatildeo ou a luz

B A escuridatildeo pois haacute muitos de voacutes no Hades

10 Damageto 81

Fazei saudaccedilatildeo alegre e honrosa transeuntes ao exce-lente Praxiacuteteles homem que serviu de competente instru-mento das Musas aleacutem de agradaacutevel parceiro no vinho

B Saudaccedilotildees Praxiacuteteles de Andros

136 137

11 Antiacutepatro 82

A Quero entender qual eacute o sentido deste entalheque Agis calcou em tua estela de pedra LisiacutediceUma reacutedea uma mordaccedila e uma ave nascidaem Tacircnagra rica em aves impetuosa incitadora de [batalhanatildeo agradam e nem combinam com as mulheres do larcomo os trabalhos na roca e no tear

B A ave noturna diraacute que eu acordada trabalhava a latildea reacutedea que eu era dona da minha casae esta mordaccedila de cavalo cantaraacute que eu natildeo era loquaznem tagarela mas plena de admiraacutevel silecircncio

12 Antiacutepatro de Siacutedon 83 A Diz leatildeo matador de bois de quem eacute a tumba que [guardas Quem foi digno de tua excelecircncia

B Telecircucias filho de Teodoro o mais corajoso de todosassim como eu sou julgado entre as ferasNatildeo eacute em vatildeo que me ergo aqui pois eu carrego o siacutembolo da forccedila do homem De fato ele era um leatildeo para os [ini-migos

13 Meleagro 84

A Diz a quem pergunta quem eacutes E filho de quem

B Filaulo filho de Eucraacutetides

A E de onde te orgulhas ser

B lt gt

81 7355 Damageto (GP VIII)τὴν ἱλαρὰν φωνὴν καὶ τίμιον ὦ παριόντες τῷ χρηστῷ χαίρειν rsquo εἴπατε Πραξιτέλει ἦν δ᾽ ὡνὴρ Μουσέων ἱκανὴ μερίς ἠδὲ παρ᾽ οἴνῳ κρήγυος ὦ χαίροις Ἄνδριε Πραξίτελες82 7424 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XXIX)α Μαστεύω τί σευ Ἆγις ἐπὶ σταλίτιδι πέτρῃ Λυσιδίκα γλυπτὸν τόνδ᾽ ἐχάραξε νόον ἁνία γὰρ καὶ κημός ὃ τ᾽ εὐόρνιθι Τανάγρᾳ οἰωνὸς βλαστῶν θοῦρος ἐγερσιμάχας οὐχ ἅδεν οὐδ᾽ ἐπέοικεν ὑπωροφίαισι γυναιξίν ἀλλὰ τὰ τ᾽ ἠλακάτας ἔργα τὰ θ᾽ ἱστοπόδων

β τάν μὲν ἀνεγρομέναν με ποτ᾽ εἴρια νύκτερος ὄρνις ἁνία δ᾽ αὐδάσει δώματος ἡνίοχον ἱππαστὴρ δ᾽ ὅδε κημὸς ἀείσεται οὐ πολύμυθον οὐ λάλον ἀλλὰ καλᾶς ἔμπλεον ἡσυχίης 83 α εἰπέ λέον φθιμένοιο τίνος τάφον ἀμφιβέβηκας βουφάγε τίς τᾶς σᾶς ἄξιος ἦν ἀρετᾶς β υἱὸς Θευδώροιο Τελευτία ὃς μέγα πάντων φέρτατος ἦν θηρῶν ὅσσον ἐγὼ κέκριμαι οὐχὶ μάταν ἕσαακα φέρω δέ τι σύμβολον ἀλκᾶς ἀνέρος ἦν γὰρ δὴ δυσμενέεσσι λέων

84 7 7470 Meleagro (GP CXXX)α εἶπον ἀνειρομένῳ τίς καὶ τίνος ἐσσί β φίλαυλος Εὐκρατίδεω α ποδαπὸς δ᾽ εὔχεαι β lt gtα Ἔζησας δὲ τίνα στέργων βίον β οὐ τὸν ἀρότρου οὐδὲ τὸν ἐκ νηῶν τὸν δὲ σοφοῖς ἕταρον α γήραϊ δ᾽ ἢ νούσῳ βίον ἔλλιπες β ἤλυθον Ἅιδαν αὐτοθελεί Κείων γευσάμενος κυλίκωνα ἠ πρέσβυς β καὶ κάρτα α λάβοι νύ σε βῶλος ἐλαφρὴ σύμφωνον πινυτῷ σχόντα λόγῳ βίοτον85 7503 Leocircnidas de Tarento (GP LXIV)α ἀρχαίης ὦ θινὸς ἐπεστηλωμένον ἄχθος

εἴποις ὅντιν᾽ ἔχεις ἢ τίνος ἢ ποδαπόν β Φίντων᾽ Ἑρμιονῆα Βαθυκλέος ὃν πολὺ κῦμα ὤλεσεν Ἀρκτούρου λαίλαπι χρησάμενον86 7524 Caliacutemaco (GP XXXI)α ἦ ῥ᾽ ὑπὸ σοὶ Χαρίδας ἀναπαύεται β εἰ τὸν Ἀρίμμα τοῦ Κυρηναίου παῖδα λέγεις ὑπ᾽ ἐμοί α ὦ Χαρίδα τί τὰ νέρθε γ πολὺς σκότος α αἱ δ᾽ ἄνοδοι τί γ ψεῦδος α ὁ δὲ Πλούτων γ μῦθος α ἀπωλόμεθα γ οὗτος ἐμὸς λόγος ὔμμιν ἀληθινός εἰ δὲ τὸν ἡδὺν βούλει Πελλαίου βοῦς μέγας εἰν Ἀίδῃ

A Qual vida gostavas de levar

B Natildeo a do arado nem a de naus mas a de acompanhante dos saacutebios

A Deixaste a vida por velhice ou doenccedila

B Vim ao Hades pelas proacuteprias matildeos ao tomar as taccedilas de Ceos

A Eras velho

B Sim muito

A Que seja leve esta terra que te envolve pois viveste em harmonia com o discurso prudente

14 Leocircnidas de Tarento 85

A Oacute pedra erguida nesta velha praia Diz quem abrigas De quem eacute filho ou de onde vem

B Fiacutenton filho de Baacuteticles de Hermiacuteone que onda enorme matou mesmo avisado da tempestade de Asturo

15 Caliacutemaco 86

A Por acaso jaz Caacuteridas sob ti

B Se for o filho de Arima de Cirene que dizes sim ele estaacute sob mim

A Caacuteridas como eacute aiacute embaixo

C Puro breu

A E a volta

138 139

C Mentira

A E Plutatildeo

C Mito

A Jaacute era para noacutes

C O que posso te dizer eacute que eacute verdade mas se queres algo prazeroso um boi grande no Hades custa um Pelaio

16 Caliacutemaco 87

A Tu Meneacutecrates de Eno natildeo muito tempo aqui estiveste O que te venceu melhor dos forasteiros O mesmo que ao Centauro

B O sono que nos cabe chegou mas o implacaacutevel vinho eacute o culpado

87 7725 Caliacutemaco (GP XLII)α Αἴνιε καὶ σὺ γὰρ ὧδε Μενέκρατες οὐκ ἐπὶ πουλύ ἦσθα τί σε ξείνων λῷστε κατειργάσατο ἦ ῥα τὸ καὶ Κένταυρον β ὅ μοι πεπρωμένος ὕπνος ἦλθεν ὁ δὲ τλήμων οἶνος ἔχει πρόφασιν

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Fulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade

como programa

8

Joseacute Amarante Santos SobrinhoRaul Oliveira Moreira

Shirlei Patriacutecia Silva Neves AlmeidaCristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior

Um autor tardo-antigo estreando em portuguecircs

Sobre a persona que assume o nome Fabius Planciades Fulgentius em boa parte dos manuscritos que chegaram ateacute noacutes nada se pode afirmar com muita segu-ranccedila haja vista o fato de que o que sabemos sobre o autor se limite agravequilo que nos eacute informado pelo Proacutelogo do Livro I de suas Mythologiae Evidentemente qualquer ge-neralizaccedilatildeo que se faccedila sobre sua vida ndash se esse for considerado um aspecto fundamen-tal ndash deve repousar no territoacuterio das suposiccedilotildees jaacute que natildeo se deve desprezar o fato de as informaccedilotildees aparentemente relativas agrave vida e ao escritor serem uma espeacutecie de ilusatildeo biograacutefica uma vez que estamos a considerar como informaccedilatildeo histoacuterica certas deduccedilotildees provindas de leituras dos proacuteprios textos Como jaacute propocircs Hays (1996) mui-to do que se declara na primeira parte das Mythologiae tem de retoacuterico e de captatio benevolentiae

Acresce complexidade ao problema de identificaccedilatildeo o fato de que durante muito tempo e em funccedilatildeo de alguma confusatildeo no processo de transmissatildeo de textos Fulgecircncio esteve associado ao seu homocircnimo bispo de Ruspe de forma a se criar o que tradicionalmente se conhece como ldquoquestatildeo fulgencianardquo um tema jaacute debatido e que parece repousar agora na aceitaccedilatildeo do separatist case (HAYS 2003 p 210) Hoje se afirma com algum niacutevel de seguranccedila que nosso autor que viveu entre finais do seacutec V e iniacutecio do seacutec VI natildeo eacute o bastante conhecido Satildeo Fulgecircncio bispo de Ruspe a pe-quena cidade da proviacutencia romana Bizacena (na Aacutefrica onde hoje eacute a Tuniacutesia) embora Fulgecircncio tambeacutem seja norte-africano

O epiacuteteto O Mitoacutegrafo por outro lado oferece-nos uma margem de seguran-

ccedila de compreensatildeo pois se deve agrave circulaccedilatildeo e sucesso das suas Mitologias durante a Idade Meacutedia ateacute serem suplantadas por obras como a Genealogia deorum gentilium de Boccaccio (1360) que cita Fulgecircncio vaacuterias vezes Seja como for transmitidas em vaacuterios manuscritos ao longo de seacuteculos as Mitologias fulgencianas chegam ao periacuteodo das ediccedilotildees impressas com focirclego suficiente para ganhar ediccedilotildees regulares nos seacuteculos XV XVI XVII e XVIII Depois da editio princeps de Pius (1498) e da ediccedilatildeo seguinte por Locher (1521) dedicadas esclusivamente a Fulgecircncio as ediccedilotildees impressas posteriores vatildeo estampar o nosso autor junto a outros mitoacutegrafos da Antiguidade

Apoacutes essas ediccedilotildees sucessivas o autor atinge o periacuteodo das ediccedilotildees criacuteticas Assim o seacuteculo XIX traraacute a lume a ediccedilatildeo de Rudolf Helm um texto ainda considerado de referecircncia e base para grande parte das traduccedilotildees que o seacuteculo XX e XXI viram sur-gir Apesar de os Oitocentos nos brindarem com essa ediccedilatildeo criacutetica do autor em que figura o conjunto das quatro obras atestadas como de sua autoria e se inclui a Super Thebaiden natildeo considerada do corpus fulgenciano a visatildeo sobre o autor e sua obra atravessou quase todo o seacuteculo passado mantendo certos juiacutezos aprioriacutesticos tiacutepico do seacuteculo XIX em relaccedilatildeo ao que era comentaacuterio de obras e o quanto seria impagaacutevel o seu deacutebito com os ditos ldquooriginaisrdquo Poderiacuteamos retomar duas posiccedilotildees criacuteticas como pro-potildee Amarante (2019 p 17) de forma a constatarmos que o modo como se considerou o autor ao longo do tempo natildeo se manteve estaacutevel

144 145

De Domenico Comparetti para quem o proceder de Ful-gecircncio seria a maacutexima expressatildeo da incoerecircncia e do de-liacuterio ldquoele pisoteia todas as regras do bom senso de forma tatildeo aberta crua e quase brutal que eacute difiacutecil entender como um ceacuterebro saudaacutevel poderia realmente ter concebido um trabalho tatildeo malucordquo (1872 v I p 149) a Gregory Hays para quem ele deveria atrair ao menos minimamente a atenccedilatildeo de qualquer um jaacute que teria influenciado gran-des obras ldquotanto a Divina Comeacutedia quanto a Primavera de Botticelli seriam obras muito diferentes se Fulgecircncio natildeo tivesse escrito a suardquo (1996 pref)clxx

Apoacutes as criacuteticas de Comparetti a obra fulgenciana soacute iraacute alcanccedilar algum niacutevel de interesse mais significativo no seacuteculo XX a partir de sua segunda metade quando surge a primeira traduccedilatildeo completa para o inglecircs da obra do Mitoacutegrafo no iniacutecio da deacutecada de setenta a de Whitbread de 1971 Daiacute em diante comeccedilam a surgir espe-cialmente nas uacuteltimas duas deacutecadas novos estudos e traduccedilotildees para outras liacutenguas de forma que o autor jaacute natildeo eacute mais tatildeo desconhecido entre os estudiosos da aacuterea clxxi

No Brasil os estudos da obra do autor satildeo ainda raros como o satildeo os de vaacuterios outros autores da Antiguidade Tardia Resultado de um projeto de estudo de obras desse periacuteodo na Universidade Federal da Bahia neste trabalho entatildeo noticiamos e destacamos a conclusatildeo da traduccedilatildeo completa da obra fulgenciana a partir da publica-ccedilatildeo de O livro das Mitologias de Fulgecircncio por Joseacute Amarante em 2019 (seccedilatildeo 1 deste capiacutetulo) e os trabalhos de mestrado e doutorado defendidos na mesma Universidade

a) A Expositio Virgilianae continentiae (ldquoA explicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Vir-giacuteliordquo) foi traduzida por Raul Oliveira Moreira e sua dissertaccedilatildeo de mestrado foi defen-dida em 2018 (seccedilatildeo 2 deste capiacutetulo)

b) A Expositio sermonum antiquorum (ldquoA elucidaccedilatildeo de termos antigosrdquo) foi traduzida por Shirlei Patriacutecia Silva Neves Almeida e sua dissertaccedilatildeo de mestrado foi defendida em 2018 (seccedilatildeo 3 deste capiacutetulo)

c) A De aetatibus mundi et hominis (ldquoSobre as idades do mundo e da hu-manidaderdquo) recebeu duas traduccedilotildees (uma alipogramaacutetica e outra lipogramaacutetica) por Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior e sua tese de doutorado foi defendida em 2020 (seccedilatildeo 4 deste capiacutetulo)

Ao lado de destacarmos a finalizaccedilatildeo da traduccedilatildeo completa da obra do autor ao portuguecircs nos parece oportuno retomarmos uma questatildeo ligada a um possiacutevel programa fulgenciano destacado por Amarante (2019) Certamente pela lista de obras acima listadas e consideradas de sua autoria eacute difiacutecil natildeo se observar algum programa miacutenimo e despretensioso que seja de explicaccedilatildeo dos conteuacutedos simboacutelicos da Anti-guidade A questatildeo retomada aqui liga-se a um ponto ainda em debate sobre a funccedilatildeo social do nosso autor para Whitbread (1971 p 6) Fulgecircncio eacute um grammaticus ou rhetor um professor de gramaacutetica e letras Hays analisando a terminologia que o au-

tor utiliza contesta essa posiccedilatildeo e coloca Fulgecircncio como um legal advocate um defen-sor legal (1996 p 42 e s) Manca (2003 p 56) apresenta uma proposta conciliadora inclinando-se a pensar que a obra parece nos colocar diante de um grammaticus mas que necessitasse lidar com as salas de aula de Direito em algumas ocasiotildees Analisan-do a presenccedila de Apuleio em Fulgecircncio Mattiacci inclui o autor entre os gramaacuteticos e eruditos de origem africana e o considera como uma figura singular de interesses muacuteltiplos (2003 p 230)

Contudo embora situado nos limiares da Idade Meacutedia o tema de Fulgecircncio eacute a Antiguidade ou seja ele teria apenas aparentemente uma multiplicidade de interes-ses mas provavelmente eles se resumiriam num uacutenico foco o mundo antigo E essa afirmaccedilatildeo leva em consideraccedilatildeo toda a sua obra uma vez que a sua produccedilatildeo se centra sempre em algum elemento referente a esse cenaacuterio cultural nas Mythologiae a relei-tura filosoacutefica de base cristatilde dos mitos claacutessicos na Expositio Virgilianae continentiae a releitura da Eneida de Virgiacutelio tambeacutem numa perspectiva filosoacutefica na Expositio sermonum antiquorum uma leitura explicada do leacutexico ligado a elementos culturais antigos na De aetatibus mundi et hominis a histoacuteria do mundo da Criaccedilatildeo ateacute a ascensatildeo de Valentiniano I no ano 365 No caso das duas primeiras obras eacute visiacutevel a motivaccedilatildeo os mitos antigos presentes tanto nas narraccedilotildees mitograacuteficas quanto na proacutepria Eneida eram um tesouro em vias de desaparecimento na realidade complexa das migraccedilotildees germacircnicas visiacutevel a Fulgecircncio Aleacutem disso a proacutepria obra virgiliana jaacute havia sido alvo de outros comentaacuterios como os de Donato e Seacutervio Em relaccedilatildeo agrave Expo-sitio Sermonum tambeacutem se observa um autor registrando um leacutexico antigo trazendo no tiacutetulo da obra esse termo que marca jaacute uma distacircncia em relaccedilatildeo ao tempo do autor antiquorum Na Aetatibus natildeo seria diferente Fulgecircncio segue uma trilha conhecida um Leitmotiv caro agrave literatura claacutessica que eacute a questatildeo das idades do mundo e da hu-manidade tema presente tanto entre os gregos quanto entre os latinos not

Sendo certamente um homem ligado agraves Letras o Mitoacutegrafo toma para si do mesmo modo como fizeram os principais intelectuais de sua eacutepoca a incumbecircncia de recuperar e reordenar a seu modo algo significativo do saber antigo visto que aquele conhecido patrimocircnio cultural do mundo greco-latino que se manteve apoacutes o fim do impeacuterio romano do Ocidente ldquoencontra-se disperso por uma miriacuteade de obras compli-cadas e de difiacutecil leitura por homens capazes de se referir apenas a conhecimentos e a noccedilotildees do tipo compendioso e simplificadordquo (STOPACCI 2012 p 502) Sendo assim para a conservaccedilatildeo do legado cultural literaacuterio e retoacuterico da Antiguidade naquele mo-mento se fazia necessaacuterio recolher reordenar e sintetizar o maacuteximo do saber prove-niente da Antiguidade e pelo vieacutes da filosofia moral submetecirc-lo agraves exigecircncias da nova cultura cristatilde

1 MYTHOLOGIAE (As Mitologias)

Quando Fulgecircncio escreve sua obra mitograacutefica ele segue uma tradiccedilatildeo de escrita do gecircnero estabelecida jaacute Apolodoro havia escrito a sua Biblioteca Higino as suas Fabulae e os mitos jaacute haviam povoado de modo diverso as Metamorfoses ovi-dianas Fulgecircncio contudo estaacute em outro tempo e registra em sua obra conforme vimos aspectos do periacuteodo de transiccedilatildeo entre a Antiguidade e o Medievo ou apresenta

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conforme nos lembram Wolff e Dain (2013) um testemunho dessa passagem do paga-nismo ao cristianismo nos deixando conhecer a visatildeo cristatilde sobre o mundo antigo no-tadamente no caso das suas Mythologiae uma leitura dos mitos pagatildeos sob a oacutetica da filosofia moral (secundum philosophiam como nos datildeo alguns coacutedices) o que resulta na perspectiva de uma humanidade regenerada no dizer de Wolff e Dain Mesmo nes-se aspecto interpretativo Fulgecircncio segue uma seara antes bem experimentada natildeo somente havia uma tradiccedilatildeo jaacute bem antiga de interpretaccedilatildeo dos mitos antes mesmo do Cristianismo como tambeacutem outros autores anteriores ao Mitoacutegrafo ndash como Lac-tacircncio Macroacutebio e Seacutervio ndash jaacute haviam apresentado suas versotildees afastando-se daqueles modelos claacutessicos (FRANCO DURAacuteN 1997) Lactacircncio por exemplo jaacute havia escrito as suas Institutiones de onde nosso Mitoacutegrafo retira alguns exemplos de interpretaccedilatildeo evemerista clxxiii

Distinguem-se em geral trecircs formas de interpretaccedilatildeo dos mitos todas de ins-piraccedilatildeo estoica praticadas durante toda a Idade Meacutedia a interpretaccedilatildeo dita evemeris-ta a interpretaccedilatildeo fiacutesica e a interpretaccedilatildeo moral Na interpretaccedilatildeo evemerista ndash com base em Evecircmero (seacutec III aC) tambeacutem chamada de histoacuterico-racionalista ndash os deuses teriam sido homens que foram divinizados por seus contemporacircneos em funccedilatildeo de seu poder ou influecircncia local (BRISSON 2014) A interpretaccedilatildeo fiacutesica eacute aquela segundo a qual os seres fiacutesicos poderiam ser ligados aos planetas ldquopor intermeacutedio destas qua-lidades fundamentais quente frio seco e uacutemidordquo (id p 231) A interpretaccedilatildeo moral ndash a predominante ndash consiste em descobrir uma significaccedilatildeo espiritual nas figuras dos deuses e em suas accedilotildees de forma a que se chegue a uma mitologia moralizada que ganharaacute focirclego na Idade Meacutedia como se vecirc na obra Ovide Moraliseacute uma espeacutecie de summa dos conhecimentos medievais no que se refere ao tema das metamorfoses

Os coacutedices nos datildeo o tiacutetulo Mythologiarum libri tres de forma que do ponto de vista de sua macro-estrutura as Mythologiae estatildeo organizadas em trecircs livros apa-rentemente sem sinais de uma disposiccedilatildeo programada e desiguais em sua distribuiccedilatildeo de narrativas o Livro I tem 22 faacutebulas o II 16 e o III 12 Amarante (2018a) apresenta uma proposta de arquitetura horizontal do conteuacutedo da obra segundo a qual as faacute-bulas se encontrariam atravessadas por elementos morais ligados a escolhas que se explicitam nas faacutebulas que abrem o livro central ndash o Livro II ndash funcionando essas faacute-bulas como a declaraccedilatildeo programaacutetica fulgenciana numa espeacutecie de proecircmio ao meio a faacutebula II 1 seguindo a tradiccedilatildeo interpretativa da escolha no julgamento de Paacuteris e as faacutebulas II 2 II 3 e II 4 ligadas agrave tradiccedilatildeo interpretativa da escolha conhecida como Heacutercules na encruzilhada clxxv Segundo Venuti o tradutor brasileiro das Mythologiae

propotildee uma anaacutelise global da ldquoarquitecturardquo das Mytho-logiae proporcionando uma leitura unitaacuteria levantando hipoacuteteses sobre a organizaccedilatildeo ldquohorizontalrdquo do material e interessantes propostas criacuteticas em relaccedilatildeo aos tiacutetulos das fabulas (VENUTI 2018 p 22 n 80) clxxvi

Tambeacutem Sacchi (2020) destaca a leitura da estrutura da obra proposta pelo tradutor Joseacute Amarante confrontando-a com a leitura de Wolff (da ediccedilatildeo de Wolff e Dain 2013)

Amarante se concentra no niacutevel micro das transiccedilotildees de uma faacutebula para outra Pretende demonstrar que as My-thologiae natildeo constituem apenas uma rede mas tambeacutem que esta rede se organiza de forma linear a sua loacutegica surge atraveacutes da sucessatildeo de mitos que longe de serem desarticulados se revelaram legiacuteveis ldquocapa a capardquo [ie do comeccedilo ao fim] Assim a anaacutelise de Amarante substitui a coesatildeo estrutural de Wolff recorrendo a uma espeacutecie de coesatildeo de fluxo ndash mas a coesatildeo continua a ser o objetivo (SACCHI 2020 p 128) clxxvii

O Proacutelogo do Livro I eacute a parte da obra de Fulgecircncio que de tatildeo enigmaacutetica certamente eacute a mais estudada clxxviii Estruturalmente eacute bastante diverso dos demais aleacutem de ser um proacutelogo programaacutetico de funcionar como uma espeacutecie de introduccedilatildeo para toda a obra (VENUTI 2009 2018 WOLFF DAIN 2013) ocupa 13 das 78 paacuteginas de todo o livro na ediccedilatildeo de Helm uma porcentagem razoaacutevel de texto em relaccedilatildeo ao conjunto enquanto os demais proacutelogos basicamente exercendo a tradicional funccedilatildeo de captatio beneuolentiae comum ao gecircnero ocupam apenas poucas linhas de seus livros clxxix

As narrativas e interpretaccedilotildees das Mythologiae se iniciam com a faacutebula Vnde idolum uma espeacutecie de introduccedilatildeo ao tema do surgimento dos deuses que seria ou de base biacuteblica ou alheia ao restante do conteuacutedo de toda a obra uma vez que nos trecircs li-vros se apresentam histoacuterias comuns da mitologia greco-latina ricamente documenta-das na literatura antiga clxxx Nessa faacutebula introdutoacuteria ficamos a conhecer a histoacuteria de um pai que perde prematuramente seu filho e que manda construir em sua casa uma escultura do adorado herdeiro pensando estar criando um remeacutedio para a tristeza da ausecircncia clxxxi Contudo segundo Fulgecircncio o pai acaba por criar ldquouma fonte maior de sofrimento porque somente o esquecimento seria o remeacutedio dos pesares92rdquo Estaria assim entatildeo criado o iacutedolo porque ldquoo conjunto de escravos em agrado ao senhor se acostumou ou a tecer coroas ou a levar flores ou ainda a queimar ervas aromaacuteticas agrave estaacutetuardquo93

Em defesa da estrateacutegia fulgenciana e de uma suposta consciecircncia autoral da importacircncia daquela narrativa naquela posiccedilatildeo poderia ser evocado o didatismo que se observa aqui e acolaacute em sua obra A presenccedila de um relato aparentemente destoante do conjunto da obra natildeo se encontraria entatildeo deslocada do conjunto de faacutebulas mas ndash ao contraacuterio ndash refletiria uma visatildeo programaacutetica do autor a selecionar uma histoacuteria que lhe seria uacutetil para abrir o complexo de narrativas dado que simboliza um amaacutel-gama entre o conteuacutedo pagatildeo e o conteuacutedo cristatildeo Dessa forma a sua inserccedilatildeo nessa posiccedilatildeo de destaque poderia ser compreendida assim se o autor projeta o livro como uma tentativa de valorizando a forccedila do conteuacutedo claacutessico ensinar aos jovens cristatildeos uma forma de poder ler esse conteuacutedo reinterpretado filosoficamente de acordo com os interesses cristatildeos nada mais apropriado que escolhesse uma histoacuteria que sendo

92 ldquoSeminarium potius doloris inuenit nesciens quod sola sit medicina miseriarum obliuiordquo (FVLG myht 1 1 (H 16 14-15)

148 149

tambeacutem biacuteblica representasse uma retomada de um conteuacutedo que eacute amplamente do-cumentado na Antiguidade seja em suas ldquoficccedilotildees fabulosasrdquo94 ndash a mitologia ndash seja no que chegou ateacute noacutes dos eventos narrados pelos proacuteprios historiadores (AMARANTE 2018b)

Para aleacutem do que se declara com escolhas toacutepicas (como a faacutebula Sobre a ori-gem da idolatria abrindo o livro ou as faacutebulas ligadas agraves tradiccedilotildees do julgamento de Paacuteris e de Heacutercules na encruzilhada como dobradiccedila ancorando a obra no livro do meio o Livro II) o programa fulgenciano nos eacute lembrado a todo tempo praticamen-te em todas as faacutebulas Tal programa poderia se resumir nas observaccedilotildees frequentes quanto ao fato de a mendax Graecia (ldquoa enganosa Greacuteciardquo) necessitar ser desvendada e pelo fato de que essas vendas dos olhos da razatildeo fossem retiradas por meio da etimo-logia muitas vezes puramente etimologia dita popular

As explicaccedilotildees etimoloacutegicas quase sempre a partir do grego aparecem inse-

ridas sob a foacutermula x enim Grece y dicitur como na Faacutebula das Harpias ldquoarpage de fato em grego quer dizer rapinardquo numa associaccedilatildeo com o substantivo grego ἁρπάγη (lsquorapinarsquo)95 relacionado ao verbo ἁρπάζω (lsquotomarrsquo lsquoarrebatarrsquo) mas essa eacute uma su-posiccedilatildeo considerada da esfera da etimologia popular Quando o decalque com uma palavra grega eacute difiacutecil a estrateacutegia eacute o uso do adveacuterbio quasi (lsquopraticamentersquo lsquomais ou menos lsquoquasersquo) promovendo uma aproximaccedilatildeo como na explicaccedilatildeo para o nome de Minerva em grego ldquoE depois Minerva em grego eacute dito Atena praticamente athanate parthene isto eacute uma virgem imortal porque a sabedoria natildeo poderaacute morrer nem ser corrompidardquo96 Nesse caso Fulgecircncio retira o nome de Atenas (cuja etimologia natildeo estaacute assentada) numa aproximaccedilatildeo com o adjetivo ἀθάνατος (lsquoimortalrsquo) e o substan-tivo παρθένος (lsquovirgemrsquo) Uma possibilidade final seria a de recorrer ao proacuteprio latim como na explicaccedilatildeo para o nome de Mercuacuterio ldquoQuiseram dizer Mercuacuterio quase como mercium-curum [lsquoo que cuida dos comeacuterciosrsquo]rdquo97 Aqui Fulgecircncio deve se basear num composto das palavras latinas merx (mercium em genitivo lsquodos negoacuteciosrsquo lsquodos co-meacuterciosrsquo) e alguma forma mal flexionada possivelmente para se aproximar do nome Mercuacuterio ligada ao verbo curare (lsquocuidar dersquo lsquoocupar-se dersquo)

Do ponto de vista da composiccedilatildeo as narrativas refletem grosso modo o uso de certas foacutermulas sendo a mais geral a que apresenta uma narrativa do mito seguida de sua interpretaccedilatildeo tendo por vezes a etimologia nos moldes do que se disse supra como o elemento comprovador da interpretaccedilatildeo oferecida ou de parte dela Veja-se pe a narrativa sobre o Ceacuterbero

VI Faacutebula de CeacuterberoJunto aos peacutes dele [de Plutatildeo] colocam o catildeo de trecircs cabe-ccedilas Ceacuterbero porque as invejas das disputas dos mortais satildeo compostas em estado ternaacuterio isto eacute natural causal e por acidente O oacutedio eacute natural como o dos catildees e das le-

93 ldquoUniuersa familia in domini adolatione aut coronas plectere aut flores inferre aut odoramenta simulacro succendere consueratrdquo (FVLG myth 1 1 H 16 19-21)94 ldquoFabulosa commentardquo (FVLG myth 1 18 H 30 22)95 ldquoArpage enim Grece rapina diciturrdquo (FVLG myth 1 9 H 21 16-17)

96 ldquoMinerua denique et Athene Grece dicitur quasi athanate parthene id est inmortalis uirgo quia sapientia nec mori poterit nec corrumpirdquo (FVLG myth 2 1 H 30 10-13)97 ldquoMercurium dici uoluerunt quasi mercium-curumrdquo (FVLG myth 1 18 H 29 8-9)98 ldquoFabula de Tricerbero Tricerberum uero canem eius subiciunt pedibus quod mortalium iurgiorum inuidiae terna-rio conflentur statu id est naturali causali accidenti Naturale est odium ut canum et leporum luporum et pecudum hominum et serpentium causale est ut amoris zelum atque inuidiae accidens est quod aut uerbis casualiter oboritur ut hominibus aut comestionis propter ut iumentis [Cerberus uero dicitur quasi creoboros hoc est carnem uorans et fingi-tur tria habere capita pro tribus aetatibus infantia iuuentute senectute per quas introiuit mors in orbem terrarum]rdquo (FVLG myth 1 6 H 20 8-18)99 ldquoIn secreta conscientiaerdquo (FVLG myth 3 12 H 80 14)

bres dos lobos e dos carneiros dos homens e das serpen-tes eacute causal como as invejas e o ciuacuteme do amor acidente eacute o que ou surge casualmente por exemplo ou atraveacutes de palavras entre os homens ou nas proximidades do consu-mo entre mulas Em verdade Ceacuterbero eacute conhecido como Creoboros isto eacute devorador de carne e eacute representado tendo trecircs cabeccedilas por causa das trecircs idades ndash a infacircncia a juventude e a velhice notndash pelas quais a morte entrou no mundo (FVLG myth 1 6) 98

Destaquem-se na narrativa os usos das conjunccedilotildees explicativas a loacutegica ar-gumentativa ad hoc e o nome do catildeo tomado de uma etimologia tambeacutem ad hoc a partir de κρεοβόρος carniacutevoro (vd κρέας lsquocarnersquo e βορός lsquovorazrsquo) Diriacuteamos pois que essa estrutura eacute modelar em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de composiccedilatildeo fulgenciana nessa obra mitograacutefica

As Mythologiae encerram o seu terceiro e uacuteltimo livro com a Faacutebula de Alfeu

e Aretusa de forma que assim convidam o leitor agrave descida ao submundo ie ldquoaos segredos da consciecircnciardquo99 algo que direciona o leitor agrave obra seguinte com a descida aos Infernos que eacute o tema central do Livro VI da Eneida e elemento fundamental para a interpretaccedilatildeo da obra virgiliana em sua Expositio Virgilianae Continentiae (WOLFF DAIN 2013 p 179)

2 Expostio virgilianae continentiae (Explicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacutelio)

ldquoAssim ao alcanccedilar a idade de muita sabedoria cruza o lamaccedilal temporaacuterio do turbilhatildeo de aacuteguas e impurezas dos costumes Eis que ele [Eneacuteias] faz Ceacuterbero adorme-cer com bolinhos de mel Jaacute posta anteriormente discuti a faacutebula de Ceacuterbero como de fato uma forma de disputa e um litiacutegio legalrdquo 100

Vista de modo avulso a passagem em destaque pode reforccedilar a grosseria e os inexplicaacuteveis absurdos atribuiacutedos por deacutecadas agrave ldquopenardquo de Fulgecircncioclxxxiii afinal natildeo soacute inexistem menccedilotildees a Ceacuterbero em toda a Vergilianae como tambeacutem eacute o personagem de Virgiacutelio e natildeo Fulgecircncio que faz essa observaccedilatildeo No entanto ao compreendermos a complexidade da sua produccedilatildeo e considerarmos suas outras obras identificamos aqui uma remissatildeo textual interna a sua obra anterior em especial agrave ldquoFaacutebula sobre

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Ceacuterberordquo do seu livro de mitologias (myth 1 6) Eacute atraveacutes dessa referecircncia que Rudol-ph Helm (1898) em sua ediccedilatildeo de Fulgecircncio estabelece a anterioridade das Mytholo-giae em relaccedilatildeo agrave Vergilianae assim como uma vinculaccedilatildeo desta com aquela

Seu texto eacute o primeiro comentaacuterio alegoacuterico sobre a Eneida de que se tem notiacutecia na Antiguidade tardia Eacute portanto o cruzamento de duas tradiccedilotildees literaacuterias a reinterpretaccedilatildeo da Antiguidade claacutessica sob a perspectiva cristatilde e as leituras e comen-taacuterios agrave obra de uma auctoritas romana o que resulta na uacutenica obra fulgenciana den-tro do seu projeto de releitura dedicada a um autor e obra especiacuteficos Seu comentaacuterio desconsiderando elementos de ordem formal e esteacutetico anteriormente elucidados por outros autores da tradiccedilatildeo virgiliana visa debruccedilar-se sobre os conhecimentos profun-dos ocultados pelos artifiacutecios poeacuteticos as continentiae

A introduccedilatildeo consiste em uma dedicatoacuteria e uma alusatildeo agraves dificuldades de sua eacutepoca a mediocritas temporis que natildeo lhe favorecem o labor intelectual num conjunto de topoi encontrados tambeacutem nas Mythologiae Sua intenccedilatildeo eacute explicar os misteacuterios naturais da obra virgiliana evitando contudo aqueles jaacute dispostos ao longo das Eacuteclogas e das Geoacutergicas ainda que na sequecircncia rememore esses mesmos textos O fechamento desse introacuteito se daacute com mais uma exortaccedilatildeo ao seu destinataacuterio alegan-do ser esse um opuacutesculo um ramalhete colhido dos jardins das Hespeacuterides e natildeo um pomo de ouro de forma que assim ele constitui uma situaccedilatildeo beneacutevola agrave sua exposiccedilatildeo ao promover o status de humilde enunciador

Seu empreendimento apesar disso eacute aacuterduo e eacute agraves musas todas elas a quem Fulgecircncio invoca natildeo apenas a Caliacuteope representante da poesia eacutepica ldquoAproximem--se Heliconiacuteades deem preacutestimos agrave minha mente [] uma de fato natildeo bastardquo101 Em resposta

eis que em direccedilatildeo a mim o proacuteprio Virgiacutelio tambeacutem se aproxima mais saciado do que se tivesse bebido da fonte ascreia assim como costumam ser as figuras dos poetas quando ndash arrogadas as tabuinhas para concluir a obra com a fisionomia extasiada ndash murmuram baixinho algum misteacuterio com a obra ladrando em seu interior102

Quem melhor que o autor da Eneida para validar ao longo da exposiccedilatildeo os misteacuterios escondidos sob a superfiacutecie do seu proacuteprio poema Sua presenccedila marca o iniacutecio do diaacutelogo atraveacutes do qual a interpretaccedilatildeo do eacutepico seraacute conduzida Contudo enquanto uma remissatildeo textual mal compreendida fruto do processo de transmissatildeo inerente a esse texto originou uma seacuterie de criacuteticas ao que parecem injustas ao seu autor a ldquoignoracircncia e inexperiecircnciardquo de Fulgecircncio satildeo reforccediladas por essa incursatildeo do vate de Macircntua uma vez que entabulada a discussatildeo seus turnos de fala por vezes se

100 ldquoErgo dum ad tempus multae scientiae quis peruenerit in temporales gurgitum cenositates morumque feculentias transit Deinde Tricerberum mellitis resopit offulis Tricerberi enim fabulam iam superius exposuimus in modum iurgii forensisque litigii positamrdquo (FVLG Virg cont 98 20 ndash 99 1 grifos nossos)101ldquoVos Eliconiades uocanda est [] date praemia menti [] nec enim mihi sufficit unardquo (FVLG Virg cont 85 5-7)

102 ldquoNam ecce ad me etiam ipse Ascrei fontis bractamento saturior aduenit quales uatum imagines esse solent dum adsumptis ad opus conficiendum tabulis stupida fronte arcanum quiddam latranti intrinsecus tractatu submurmurantrdquo (FVLG Virg cont 85 12-16)103 ldquo[] nobis uero erit maximum si uel extremas tuas praestringere contingerit fimbriasrdquo (FVLG Virg cont 86 12-13)104 ldquoEst enim natura in auro productionis et decoris sed ad perfectionem malleo proficit excudentisrdquo (FVLG Virg cont 90 7-8)

confundem e Fulgecircncio falaraacute por Virgiacutelio quando natildeo deveria e vice-versa (COMPA-RETTI 1943[1872] p 61)

De qualquer forma o aparecimento de Virgiacutelio consiste num expediente pa-dratildeo o de ldquovisita nos sonhosrdquo recurso jaacute empregado por Ciacutecero Boeacutecio e pelo proacuteprio Fulgecircncio nas Mythologiae Sua entrada eacute ainda fundamental agrave tradiccedilatildeo textual haja vista que sua visita situa a obra natildeo apenas dentre os textos que comentaram textos virgilianos assim como junto agravequeles em que ele Virgiacutelio foi tambeacutem representado quer anteriormente como na Saturnalia de Macroacutebio quer posteriormente como na Divina Comeacutedia de Dante (HAYS 1996 p i)

Numa referecircncia ao evangelho de Mateus (9 20-21) em que uma enferma resvala nas roupas de Jesus e com isso se cura Fulgecircncio afirma querer tocar-lhe ldquoas fiacutembrias das vestesrdquo103 reforccedilando seu status miacutestico convidando-lhe em seguida a as-sumir o papel professoral e discorrer sobre os conteuacutedos secretos de seu poema o peacute-riplo de Eneacuteias como alegoria das fases da vida humana do nascimento agrave maturidade

Os saberes intriacutensecos que jazem sob a superfiacutecie do poema no aguardo de serem esclarecidos conforme os anseios dessa nova mentalidade para a qual Fulgecircncio traduz a Eneida encontram jaacute no incipit uma relaccedilatildeo com sua interpretaccedilatildeo Arma ui-rum e primus representam pois trecircs estaacutegios a partir dos quais se compreende a vida conforme o modelo platocircnico tripartido arma tambeacutem natura a substacircncia corporal capacidade inata uirum tambeacutem doctrina substacircncia intelectual que guia a nature-za e primus tambeacutem felicitas substacircncia moral a fecundidade do conhecimento ad-quirido O corpo carece do intelecto para alcanccedilar a completude assim como ldquoo estado natural do ouro eacute de fato sua beleza e maleabilidade mas eacute batendo com o martelo do ferreiro que ele chega agrave perfeiccedilatildeordquo 104

A Exposiccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacutelio utiliza-se quando natildeo de filosofia neo-platocircnica do emprego de etimologias a fim de justificar sua interpretaccedilatildeo Eacute assim que se explica a tempestade causada por Eacuteolo a mando de Juno naufragando os troianos na costa da Liacutebia ela eacute a deusa que preside os partos donde o naufraacutegio representa os tumultos do nascimento e eonolus em grego eacute a ldquodestruiccedilatildeo do mundordquo105 O encontro de Eneacuteias com Vecircnus que o visitou sob um disfarce encontra similar expli-caccedilatildeo ldquovecirc a matildee mas natildeo a reconhece demonstrando precisamente a infacircncia pois que pelo parto aos receacutem-nascidos eacute dado ver a matildee mas natildeo eacute dada a habilidade de reconhececirc-lardquo106 O enterro de Anquises no porto de Dreacutepanos compreende a chegada agrave juventude e o topocircnimo formado do grego drimos lsquoaacutesperorsquo e pes lsquomeninorsquo simboliza a rebeldia da juventude rechaccedilando a autoridade paterna Mais agrave frente a tempesta-de que isola Eneacuteias e Dido e os faz ceder agrave paixatildeo representa as mesmas turbulecircncias que obscurecem o discernimento adolescente e essa mudanccedila de estado pode-se dar

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apenas com uma interferecircncia externa Mercuacuterio ao alertar Eneacuteias para a sua tarefa de alcanccedilar a Itaacutelia representa o chamado agrave razatildeo e o abandono da voluacutepia fruto dos desejos juvenis ldquodonde o amor desprezado se esvai e consumido pelo fogo transfor-ma-se em cinzasrdquo107

Eacute novamente a visatildeo de Dido mas dessa vez no mundo inferior que constitui o ponto alto do comentaacuterio feito ao livro VI ndash haja vista que sua sequecircncia os livros seguintes satildeo interpretados de modo raacutepido e encontram um encerramento abrupto outro ponto responsaacutevel por suscitar criacuteticas ao estilo de Fulgecircncio A exposiccedilatildeo alcan-ccedila a ldquoespinha dorsalrdquo da jornada de Eneacuteias sua descida aos infernos ndash que remete a uma descida agrave sua proacutepria consciecircncia minus no que eacute a seccedilatildeo mais volumosa em usos ale-goacutericos interpretativos ou etimoloacutegicos A Sibila de Cumas o orienta quanto aos ritos de entrada no submundo e sua trajetoacuteria eacute exibida atraveacutes de cataacutelogos constituindo inclusive um exerciacutecio mnemocircnico personagens virtuosos ou que padecem como Tacircntalo Siacutesifo e Deiacutefobo moleacutestias que assolam a humanidade a fome a guerra a peste dentre outras

Alcanccedilada a perfeiccedilatildeo da memoacuteria representadas por esse itineraacuterio de apren-dizados a capacidade intelectual deve ser consolidada para toda a eternidade assim como o ramo de ouro eacute fixado nos portotildees de entrada dos Campos Eliacuteseos O rumo aos caminhos que levam agrave doctrina no entanto natildeo eacute a uacutenica etapa que representa a perpetuaccedilatildeo da substacircncia intelectual e a chegada agrave uirilis aetas eacute antes o seu encontro com a sombra de Dido pois ldquoa paixatildeo esvaiacuteda pelo desprezo contemplando agrave razatildeo eacute chamada agrave memoacuteria entre laacutegrimas penitentesrdquo108 Eacute assim que sob o manto de uma histoacuteria alegoacuterica foi apresentado o pleno estado do homem e de todas as suas capa-cidades109

3 Expositio sermonum antiquorum (Elucidaccedilatildeo de termos antigos)clxxxiv

A Fulgentii expositio sermonum antiquorum como costuma ser denominada

nos manuscritos consiste em um sucinto glossaacuterio de palavras consideradas antigas ou raras O opuacutesculo abre-se com um curto proacutelogo direcionado a um desconheci-do dominus denominado Calcidium ou Chalcidium grammaticum e em seguida satildeo apresentadas de maneira recursiva e reiterativa as entradas com as explicaccedilotildees ou definiccedilotildees de 62 sermones Cada um dos termos com uma ou duas exceccedilotildees eacute defi-nido e ilustrado com uma breve citaccedilatildeo em que pelo menos um autor e uma obra determinada satildeo citados para endossar uma explicaccedilatildeo dada Essas palavras seriam aquelas encontradas em autores gregos e latinos da Antiguidade como Ecircnio Plauto Virgiacutelio Petrocircnio Propeacutercio ou alguns mais tardios como Apuleio Marciano Capela

105 ldquoSaeculi interitusrdquo (FVLG Virg cont 91 12)106 ldquoVt terram tangit matrem uidet nec agnoscit plenam designantes infantiam quia a partu recentibus matrem lidere datur non tamen statim cognoscere meritum contribuiturrdquo (FVLG Virg cont p 92 7-10)107 ldquoQui quidem amor contemptus emoritur et in cineres exustus emigratrdquo (FVLG Virg cont 94 23-24)108 ldquoContemplando enim sapientiam libido iam contemptu emortua lacrimabiliter penitendo ad memoriam reuocaturrdquo (FVLG Virg cont p 99 19-21) 109 ldquoErgo sub figuralitatem historiae plenum hominis monstrauimus statumrdquo (FVLG Virg cont p 89 25 - 902)

entre outros que vez ou outra fizeram uso de um vocabulaacuterio antigo em suas obras

A Expositio sermonum antiquorum traz em si fragmentos de diversos campos do saber antigo variando desde ritos funeraacuterios antigos a costumes ligados ao povo etrusco ainda elementos da oratoacuteria grega poemas peccedilas e narrativas romanas apre-sentando assim um caraacuteter ecleacutetico proacuteprio da sua especificidade enciclopeacutedica

[] as entradas de 1 a 11 tratam de termos ligados aos costumes de sepultamento adivinhaccedilatildeo sacrifiacutecios reli-giosos e divindades menores enquanto as de 12 a 62 (com exceccedilatildeo das entradas 14 e 48 que podem ser deslocadas e pertencerem agrave primeira categoria) referem-se agraves palavras estranhas (coloquiais e teacutecnicas) termos referentes a ali-mentos barcos utensiacutelios relativos agraves meretrizes e assim por diante especialmente os que satildeo encontrados em pe-ccedilas de teatro poemas e romances (WHITBREAD 1971 p 157) clxxxv

Conforme discutido acima o interesse maior do autor da Sermonum eacute a An-tiguidade ou seja como faz em outras obras Fulgecircncio busca reinterpretar o mundo antigo explicando-o de alguma forma a facilitar-lhe a compreensatildeo ou para impri-mir camadas de sentido adaptadas a sua nova realidade Assim sendo na Sermonum vemos esse interesse interpretativo mas numa outra perspectiva natildeo diretamente a literaacuteria mas a linguiacutestica quer dizer o que se vecirc aqui eacute um Fulgecircncio registrando um leacutexico ligado agrave Antiguidade e ndash ao que se depreende ndash natildeo mais em uso no periacuteodo em que vive portanto a motivaccedilatildeo grosso modo natildeo eacute diversa trata-se da necessidade de se registrar elementos do tesouro da Antiguidade em vias de desaparecimento mas agora elementos linguiacutesticos donde se potildee a liacutengua como tambeacutem um dos patrimocircnios de um povo (AMARANTE ALMEIDA 2015)

A obra visto seu caraacuteter compilatoacuterio e ecleacutetico faz parte de uma tradiccedilatildeo lexicograacute-fica que caracteriza a Antiguidade Tardia periacuteodo em que haacute uma tendecircncia agrave produccedilatildeo de compecircndios i e ao enciclopedismo momento em que houve uma emergecircncia de se prepa-rar as geraccedilotildees vindouras atraveacutes da produccedilatildeo de obras que embora consideradas de pouca profundidade e de escassa originalidade satildeo uacuteteis ao estudo e possibilitam de modo compreensiacutevel e assimilaacutevel o acesso agrave cultura claacutessica (BISOGNO 2012)

Segundo Whitbread (1971) a Sermonum assemelha-se mutatis mutandis a outras compilaccedilotildees e epiacutetomes da Antiguidade romana tardia como a De lingua latina do erudito Marcos Terecircncio Varratildeo e possivelmente tambeacutem do mesmo autor uma obra perdida a Quaestiones Plautinae que trata sobre palavras difiacuteceis das peccedilas de Plauto Haacute ainda a Naturalis Historia de Pliacutenio o Velho uma enciclopeacutedia que eacute um verdadeiro celeiro de material antigo haacute um epiacutetome organizado em vinte tomos do tratado enciclopeacutedico De verborum significatu de Marco Veacuterrio Flaco ceacutelebre gramaacuteti-co que floresceu durante o periacuteodo de Augusto e ainda a obra de Nocircnio Marcelo a De compendiosa doctrina (ou De proprietate sermonum) um compecircndio de vinte livros que tratam das funccedilotildees gramaticais e classes de palavras sobre termos mariacutetimos vestuaacuterio entre outros assuntos (WHITBREAD 1971 p 158)

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As citaccedilotildees apresentadas na Sermonum satildeo comuns agraves de eruditos nas re-laccedilotildees de limites de obras e periacuteodo como Varratildeo e Probo Veacuterrio e Pliacutenio Frontatildeo e Geacutelio os grandes da lexicografia as vozes dos lsquooriginaisrsquo da Antiguidade pois

dos vaacuterios testemunhos relatados por Fulgecircncio na exem-plificaccedilatildeo dos sermones apenas trecircs encontram corres-pondecircncia com outros estudiosos ou eruditos ou lexicoacute-grafos como Festo ou Nocircnio ou Seacutervio ou Isidoro aleacutem de vozes ateacute desconhecidas para esses estudiosos (PENNISI p 135-136)clxxxvi

Ainda a respeito da sua estrutura e conteuacutedo a Sermonum foge da padroni-zaccedilatildeo geral dos glossaacuterios antigos que satildeo geralmente organizados por temas ou por ordem alfabeacutetica Conforme vimos eacute possiacutevel a identificaccedilatildeo de certos agrupamentos temaacuteticos como palavras e frases ligadas a rituais religiosos (4-6 9-10 14) ritos fuacute-nebres (1-3 sandapilam vispillo pollinctor) alimentos (39-42 lentaculum edulium tucceta ferculum) e naacuteutica (29-30 stega lembum)

Como jaacute se mostra claro em seu tiacutetulo a obra eacute uma espeacutecie de expositio (em latim lsquoexposiccedilatildeorsquo lsquoexplicaccedilatildeorsquo) portanto busca lsquoexplicarrsquo lsquodefinirrsquo ou ainda lsquoelucidarrsquo termos considerados antigos ao periacuteodo do autor Daiacute a estrutura baacutesica da explicaccedilatildeo dos sessenta e dois sermones natildeo eacute complexa iniciada sempre com a afirmaccedilatildeo [Quid sitsint ] eacute seguida de um comentaacuterio explicativo que define a palavra a partir do aporte de uma ou duas breves citaccedilotildees de autores claacutessicos

7 [Que seriam suggrundaria] No tempo antepassado os antigos chamavam suggrundaria os tuacutemulos de crianccedilas que ainda natildeo tivessem completado quarenta dias por-que eles natildeo podiam ser chamados busta pois natildeo havia ossos que queimassem inteiramente nem tanta grandeza cadaveacuterica que preenchesse o lugar daiacute Rutiacutelio Gecircmino na trageacutedia Astianacte diz ldquoOacute infeliz melhor do que um sepulcro a pequena cova tu lamentasrdquo 110

Essa metodologia compositiva eacute utilizada por Fulgecircncio buscando-se a trans-missatildeo de trecircs itens principais a palavra ou frase a ser definida a definiccedilatildeo em si e uma citaccedilatildeo ilustrativa como pode ser visto no sermo 7 acima utilizado aqui como exemplo da teacutecnica fulgenciana aplicada nos demais sermones

4 De aetatibus mundi et hominis (Das idades do mundo e da humanidade)clxxxvii

A De aetatibus mundi et hominis eacute a obra fulgenciana nitidamente mais cristatilde Nesse escrito o Mitoacutegrafo descreve ndash poeticamente e a partir de sua oacutetica moral reli-giosa ndash quais seriam as fases cronoloacutegicas do mundo e do ser humano Desse modo a composiccedilatildeo em tela acaba adquirindo relevo natildeo apenas para o campo literaacuterio mas

110 ldquo7 [Quid sint suggrundaria] Priori tempore suggrundaria antiqui dicebant sepulchra infantium qui necdum qua-draginta dies implessent quia nec busta dici poterant quia ossa quae conburerentur non erant nec tanta inmanitas cadaueris quae locum tumisceret unde et Rutilius Geminus in Astianactis tragoedia ait lsquoMelius suggrundarium miser quereris quam sepulchrumrsquordquo (FVLG serm 113 19 ndash 114 5)

tambeacutem para pesquisas desenvolvidas em acircmbito histoacuterico filosoacutefico e teoloacutegico

A dimensatildeo formal da De aetatibus desperta alguma curiosidade visto que diz respeito a um lipograma uma modalidade de escrita constrangida em que seu autor evita deliberadamente o emprego de uma ou mais letras do alfabeto A produccedilatildeo ful-genciana consiste em um lipograma consecutivo na medida em que se omite sequen-cialmente o uso das 14 letras iniciais relativas ao alfabeto liacutebico-latino de Fulgecircncio

Assim o Mitoacutegrafo subdividiu sua obra em 14 seccedilotildees evitando em cada uma delas o uso de um determinado grafema o que foi empreendido de lsquoarsquo a lsquoorsquo Ocorre que nosso lipogramista parece em seu proacutelogo anunciar que utilizaria todas as 23 letras de seu alfabetoclxxxix Aleacutem disso o Livro XIV se encerra de modo abrupto com uma ligeira referecircncia ao imperador Valentiniano I Levando em conta tais elementos al-guns estudiosos como Reifferscheid (1883) e Franz Skutsch (1910 apud Manca 2003) entendem que a obra estaria inacabada enquanto outros como Helm (1898) e Pennisi (1963) advogam pela completude do lipograma considerando o proacuteprio desenvolvi-mento da narrativa

A nosso entender tambeacutem se afigura plausiacutevel sustentar a integralidade da De aetatibus Isso porque naquele que seria o penuacuteltimo Livro disponiacutevel (Ausente N) Fulgecircncio parece sugerir que jaacute encerraraacute sua obra na seccedilatildeo seguinte (Ausente O) Ademais sopesando a precedecircncia poeacutetica da oposiccedilatildeo entre os elementos lsquoarsquo e lsquoorsquo no tange ao contraste teoloacutegico-cristatildeo entre o alfa e o ocircmega entendidos como iniacutecio e fim dos tempos a hipoacutetese de completude se reforccedila Nesse sentido natildeo parece ser mero resultado de uma falha no processo de transmissatildeo textual que ndash em uma obra que visa exatamente a descrever as idades cronoloacutegicas do mundo e do ser humano ndash os marcos inicial e final coincidam com os termos lsquoarsquo e lsquoorsquo

Outra problemaacutetica filoloacutegica relevante versa sobre a natureza (a)lipogramaacute-

tica do proacutelogo Quanto a isso a ediccedilatildeo criacutetica de referecircncia da aacuterea estabelecida pelo filoacutelogo latinista Rudolf Helm (FVLGENTII 1898) estampa o proacutelogo como sendo ali-pogramaacutetico e separado do Livro I que se iniciaria apenas com a narrativa do Peca-do Original O comentador italiano Manca (2003) que foi seguido por Gregory Hays (2019) assevera contudo que o editor criacutetico teria ignorado jaacute no proacutelogo uma ins-criptio indicadora do iniacutecio do lipograma e presente nos manuscritos Vaticanus e Tau-rinensis Ademais ele tambeacutem ressalta que a maioria das unidades lexicais portadoras do grafema lsquoarsquo diriam respeito ao ditongo lsquoaersquo que poderia ter sido facilmente alvo de simplificaccedilatildeo Por fim assinala ainda que o primeiro Livro ostentaria uma extensatildeo desproporcional ante o todo orgacircnico da obra visto que ndash se excluiacutedo o proacutelogo de sua conformaccedilatildeo ndash seria significativamente menor que os demaiscxc

Atendo-nos mais especificamente quanto agrave dimensatildeo estiliacutestica da De aetati-bus eacute preciso ainda tecer algumas consideraccedilotildees a respeito de sua estrutura Seguindo

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as alegaccedilotildees de Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019a 2020d) essa obra se insere em uma tradiccedilatildeo de escrita constrangida que foi explorada desde a Antiguidade ateacute a Contem-poraneidade ainda que ocupando durante um largo periacuteodo um baixo grau de evi-decircncia Assim do ponto de vista estiliacutestico eacute tambeacutem perceptiacutevel uma aproximaccedilatildeo do lipograma com outros escritos a exemplo do centatildeo do acroacutestico do tautograma do anagrama e do paliacutendromocxcii

Em tal panorama o escrito ora analisado adquire uma posiccedilatildeo especial tendo em vista que segundo assevera Georges Perec (OULIPO 1973) ele teria sido o mais antigo lipograma atestado De fato a fortuna criacutetica costuma mencionar lipogramistas anteriores a Fulgecircncio a exemplo de Piacutendaro Partecircnio de Niceia Nestor de Laran-da Trifiodoro e Laso de Hermione Eacute de se ressaltar entretanto que de todos esses escritores teriam chegado ateacute noacutes tatildeo somente alguns fragmentos em grego antigo atribuiacutedos a Hermione Dessa maneira eacute apenas a partir de Fulgecircncio que se pode concretamente atestar a incidecircncias das constriccedilotildees lipogramaacuteticas

No proacutelogo da De aetatibus o Mitoacutegrafo utiliza a expressatildeo opus durissimum (ldquoobra duriacutessimardquo) para definir sua obra Nesse sentido verifica-se de fato curiosa a potecircncia estiliacutestica que o escrito acaba adquirindo na medida em que a cada seccedilatildeo da obra o desafio linguiacutestico se altera jaacute que a proacutepria frequecircncia das letras em latim se demonstra distinta Assim existem partes sensivelmente restritivas a exemplo dos Livros com constriccedilatildeo vocaacutelica enquanto outras seccedilotildees praticamente natildeo limitam seu escritor como ocorre com o Livro X em que a letra a ser evitada seria a lsquokrsquo muito rara em latim e em portuguecircs

A escrita lipogramaacutetica engendra uma seacuterie de dificuldades a seu compositor que se vecirc obrigado a evitar um conjunto de unidades lexicais Buscando contornar tal desafio Fulgecircncio se valeu de antonomaacutesias periacutefrases circunloacutequios metaacuteforas su-pressotildees arcaiacutesmos e grecismos fornecendo pistas tambeacutem para seu tradutor que em liacutengua portuguesa buscou se aventurar no jogo constritor sugerido pela De aetatibus

A estrutura formal adotada pelo autor Fulgecircncio tambeacutem reverberou em nos-so projeto tradutoacuterio jaacute que nos vimos desafiados pelas constriccedilotildees estiliacutesticas arti-culadas Assim considerando a relevacircncia em tal obra dessa marca responsaacutevel ateacute mesmo por inseri-la em uma posiccedilatildeo de destaque na Histoacuteria da Arte e em particular da Histoacuteria da Escrita Constrangida reputamos oportuna a realizaccedilatildeo de uma tra-duccedilatildeo lipogramaacutetica que cultivasse ativamente as restriccedilotildees linguiacutesticas ventiladas voltando-se para um singular processo de fruiccedilatildeo poeacutetica de natureza transcriadora Assim sendo estamos realizando a primeira traduccedilatildeo lipogramaacutetica da De aetatibus visto que essa obra soacute recebeu ateacute entatildeo duas traduccedilotildees alipogramaacuteticas uma para o inglecircs realizada por Leslie Whitbread (1971) e outra para o italiano efetuada por Massimo Manca (2003)

Por outro lado eacute tambeacutem sabido que no campo de Estudos Claacutessicos e Latinos Medievais os estudiosos muitas vezes anseiam por traduccedilotildees que lhes permitam um mergulho mais ceacutelere no conteuacutedo temaacutetico do texto de partida sendo ateacute mesmo relativamente comum a existecircncia de ediccedilotildees biliacutengues Assim o leitor do texto antigo

busca em instantes muito mais um acesso ao texto latino mediado por uma traduccedilatildeo do que efetivamente fruir de elementos relativos agrave sua dimensatildeo poeacutetica textual no texto de chegada Dessa maneira tambeacutem julgamos necessaacuteria a proposiccedilatildeo de um trabalho tradutoacuterio alipogramaacutetico que se revestisse de uma linguagem mais fluida e de maior valorizaccedilatildeo dos casos latinos e de sua sintaxe

Saliente-se por fim que nosso projeto buscou fornecer dois produtos tradu-toacuterios diversos que foram concebidos a partir de criteacuterios tradutoacuterios similarmente diferentes Assim buscou-se expandir o espectro de apreciaccedilatildeo da De aetatibus demo-cratizando ainda mais sua leitura a partir da inclusatildeo de objetivos variados por parte do puacuteblicocxciii

Consideraccedilotildees finais

Com a escrita deste texto registramos pois a conclusatildeo de um projeto que culmina com a traduccedilatildeo completa dos textos fulgencianos ao portuguecircs De suas obras a primeira intitulada O livro das Mitologias de Fulgecircncio (AMARANTE 2019) jaacute se encontra publicada assim como jaacute se publicaram partes da De aetatibus (vd Santos Jr nas referecircncias) A traduccedilatildeo completa da De aetatibus e da Virgilianae e Sermonum estatildeo em processo de encaminhamento para publicaccedilatildeo futura

Esperamos poder em breve apresentar publicados os quatro textos que foram objetos de discussatildeo nesse capiacutetulo Esperamos que o leitor perceba pela sua leitura dos proacuteprios textos alguma unidade de interesse nos propoacutesitos fulgencianos confor-me propusemos aqui

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A gramaacutetica como livrodidaacutetico testemunhos sobremeacutetodo e praacutetica escolar na

antiguidade

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Lucas Consolin Dezotti

1 Introduccedilatildeo Em sua monumental ediccedilatildeo da Ars Donati grammatici urbis Romae Louis

Holtz (1981) se refere a dois modos de se estudar os textos gramaticais latinos [a] como portadores de testemunhos tanto do nascimento da gramaacutetica grega e de sua adaptaccedilatildeo romana quanto das obras de reflexatildeo da eacutepoca claacutessica que tanto influen-ciaram a gramaacutetica latina (eg Varratildeo Palematildeo Pliacutenio) [b] como testemunhos do que era em seu tempo a gramaacutetica ensinada na escola conforme o riacutegido formato herdado da eacutepoca heleniacutestica

O segundo modo de estudo ressalta o fato de que os textos gramaticais satildeo essencialmente escolares e respondem agrave necessidade de se adquirir certas habilidades teacutecnicas e algum conhecimento teoacuterico acerca dos diferentes niacuteveis de anaacutelise da lin-guagem verbal Neste artigo procuramos apresentar alguns testemunhos pertinentes a esse modo de estudo a partir de consideraccedilotildees sobre a educaccedilatildeo praticada na Roma imperial e de uma apreciaccedilatildeo formal da principal obra produzida no periacuteodo a Arte de Donato

2 Breve panorama da educaccedilatildeo romana No seacuteculo IV dC de que datam os mais antigos testemunhos iacutentegros da gra-

maacutetica romana o ensino heleniacutestico jaacute estava consolidado em Roma Baseado numa cultura do livro e do texto que valorizava sobretudo a consciecircncia da palavra e o co-nhecimento erudito esse sistema se estabelecia em um programa de aprendizado orientado gradualmente do mais simples ao mais complexo ndash isto eacute da alfabetizaccedilatildeo ao discurso ndash no qual o curso de gramaacutetica ocupava o campo intermediaacuterio transformar estudantes receacutem-alfabetizados em homens e mulheres cultos e letrados prontos para receber a mais valiosa instruccedilatildeo para a vida social a retoacuterica

Destinado a capacitar os alunos na ediccedilatildeo de textos manuscritos o curso se constituia em atividades de leitura revisatildeo e interpretaccedilatildeo de obras literaacuterias especial-mente poeacuteticas Virgiacutelio sobretudo Para tanto os alunos contavam com dois tipos de material de apoio geralmente elaborados pelo professor [a] um commentarius que continha um estudo completo do texto analisado em todos os niacuteveis e disponiacutevel para consulta e [b] uma ars que fornecia os conceitos e os preceitos necessaacuterios agrave execuccedilatildeo daquelas atividades e que deviam ser memorizados

Nisto consiste a primeira condiccedilatildeo de existecircncia de uma ars apresentar um arcabouccedilo teoacuterico para orientar o trabalho com o texto De um lado noccedilotildees de foneacutetica meacutetrica prosoacutedia e pontuaccedilatildeo datildeo as diretrizes da leitura correta Do outro noccedilotildees de padratildeo e desvio uso e autoridade auxiliam na identificaccedilatildeo de efeitos de estilo ou erros de coacutepia nos exemplares analisados

3 Donato e sua Arte Eacutelio Donato eacute um ilustre desconhecido De sua existecircncia sabe-se apenas que

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participou da vida puacuteblica no decorrer do seacuteculo IV dC ocupando em Roma uma das cadeiras municipais de professor de gramaacutetica e que um de seus alunos mais ceacutelebres foi Jerocircnimo de Striacutedon De fato os testemunhos fornecidos pelo tradutor da Vulgata permitem estabelecer apenas duas datas com alguma seguranccedila o ano de 354 quando Donato recebe honrarias puacuteblicas em reconhecimento a seus meacuteritos profissionais e o ano de 363 quando Jerocircnimo estaacute frequentando o curso de gramaacutetica Daiacute se de-duz que Donato tenha nascido por volta de 310 embora natildeo se possa determinar por quanto tempo se manteve em atividade apoacutes a turma de Jerocircnimo (cf HOLTZ 1981 p 15ndash19) A propoacutesito eacute digno de nota que a importacircncia de Jerocircnimo para a histoacuteria da Igreja se deve em grande medida agrave sua traduccedilatildeo da Biacuteblia para o latim (a Vulgata) e a seus comentaacuterios exegeacuteticos das Escrituras produccedilotildees diretamente derivadas das praacuteticas gramaticais

Mas Donato tambeacutem eacute um dos gramaacuteticos antigos mais citados de todos os

tempos senatildeo o mais Na condiccedilatildeo de ldquogramaacutetico oficial da cidade de Romardquo (gramma-ticus urbis Romae) cargo oficial criado pela poliacutetica escolar implantada por Vespa-siano em busca de um maior controle estatal da educaccedilatildeo (cf MARROU 1966 pp 460ndash469) ele produziu uma Arte que atravessou os seacuteculos fornecendo o modelo fun-damental para a constituiccedilatildeo das gramaacuteticas vernaculares no iniacutecio do Renascimento e seu nome figura em praticamente todos os relatos sobre a histoacuteria do conhecimento linguiacutestico na Antiguidade dos mais resumidos aos mais detalhadoscxciv

De fato a recepccedilatildeo da obra gramatical donatiana eacute caracterizada pelo sucesso Uacutenico de todos os textos profanos a sobreviver sem interrupccedilatildeo da Antiguidade ao Renascimento a influecircncia da Ars Donati sobre o ensino de gramaacutetica pode ter come-ccedilado quase imediatamente apoacutes sua publicaccedilatildeo (c 350 dC) e aparece firmemente estabelecida jaacute no seacuteculo seguinte quando se torna objeto de comentaacuterios e citaccedilotildees de autoridade (por gramaacuteticos como Seacutervio Pompeio e Prisciano) antes de ser adaptada dois seacuteculos depois para o contexto cultural cristatildeo (por autores como Isidoro de Se-vilha e Juliano de Toledo)

Essa supremacia pode ser explicada em parte pelo status oficial de seu autor (HOLTZ 1981 p 95) mas principalmente pelo cuidado de adequaccedilatildeo pedagoacutegica que orienta as escolhas de composiccedilatildeo especialmente no que se refere agrave aplicaccedilatildeo rigorosa de dois esquemas de exposiccedilatildeo do conteuacutedo um meacutetodo sistemaacutetico de descriccedilatildeo e um esquema progressivo de organizaccedilatildeo

31 Meacutetodo de descriccedilatildeo sistemaacutetica

O primeiro deles se baseia numa estrutura conceitual em forma de piracircmide regida pelo princiacutepio da correlaccedilatildeo hiperoniacutemia-hiponiacutemia que pode ser representada esquematicamente como faz Holtz (1981 p 49)

ndash definiccedilatildeo geralndash enumeraccedilatildeo de categorias de anaacutelise (ldquoacidentesrdquo)ndash exposiccedilatildeo da primeira categoria contendo

ndash definiccedilatildeo da categoria (raramente)ndash enumeraccedilatildeo de subcategorias (sempre)ndash exposiccedilatildeo da primeira subcategoriandash definiccedilatildeo da subcategoria (raramente)ndash um ou mais exemplos (quase sempre)ndash exposiccedilatildeo da segunda subcategoriahellipndash exposiccedilatildeo da segunda categoriahellip

Assim prossegue ateacute o final do capiacutetulo ao qual se segue outro construiacutedo do mesmo modo Nesse sentido pode-se dizer que a abordagem canocircnica dos manuais de gramaacutetica consiste basicamente em definir (em termos semacircnticos vagamente funcionais) especificar (por uma seacuterie de caracteriacutesticas formais normalmente mor-foloacutegicas agraves vezes posicionais) e ilustrar (normalmente com exemplos igualmente ca-nocircnicos) (cf LENOBLE SWIGGERS WOUTERS 2001 p 281ndash2)

Esse meacutetodo apresenta vantagens como a de ldquopoder sempre se balisar pelo plano e controlar o saber sem perder-se na confusatildeo dos fatosrdquo e a de ldquopoder construir exposiccedilotildees bastante completas e ao mesmo tempo raacutepidas e esquemaacuteticasrdquo (HOLTZ 1981 p 51) que sem duacutevida explicam sua enorme funcionalidade didaacutetica Mesmo sua regularidade ideal natildeo eacute incompatiacutevel com certa diversidade exigida pelo objeto trata-do quanto mais proacuteximo da base da piracircmide mais se permite a adjunccedilatildeo de enuncia-dos complementares sobre as particularidades que escaparam agrave sistematizaccedilatildeo geral ainda que se oponham a esta afastam de todo modo o caos (HOLTZ 1981 p 53)

Por outro lado o meacutetodo sistemaacutetico natildeo eacute exclusivo da Antiguidade tardia nem se limita aos manuais de gramaacutetica Segundo Louis Holtz (1981 p 55ndash6) esse esquema eacute utilizado desde eacutepocas bem antigas e se impotildee para todas as disciplinas e artes liberais especialmente aquelas duas eminentemente escolares que satildeo a retoacuterica e a gramaacutetica Na verdade pode-se dizer que ldquoeacute esse quadro loacutegico que define uma ars (τέχνη) enquanto conjunto de conhecimentos logicamente ordenados acerca de um domiacutenio bem delimitadordquo

Nesse sentido o que parece distinguir Donato dos demais artiacutegrafos (isto eacute autores de artes) eacute o rigor em sua aplicaccedilatildeo materializado basicamente na busca pela brevidade e pela perfeiccedilatildeo formal condiccedilotildees primordiais para a necessaacuteria memoriza-ccedilatildeo da doutrina pelos estudantes (cf HOLTZ 1981 p 94ndash5)

De fato Donato tende a separar o essencial do acessoacuterio e procura formas de enunciar que sejam facilmente memorizaacuteveis ldquodas quatro etapas pressupostas na exposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo gramatical (termo definiccedilatildeo subdivisatildeo exemplo) ele des-preza conforme o caso aquela que poderia sobrecarregar inutilmente a memoacuteria dos alunosrdquo (HOLTZ 1981 91-92) Aleacutem disso suprime sistematicamente a indicaccedilatildeo de todas as suas fontes e em muitos casos agrupa no final de cada capiacutetulo todos os fatos anocircmalos ou teorias controversas provavelmente para que os alunos tivessem contato com as exceccedilotildees apenas depois de ter assimilado o padratildeo

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A pertinecircncia dessa estrateacutegia eacute apontada jaacute no seacuteculo V pelo gramaacutetico Pom-peio quando comenta o trecho a respeito das particularidades das letras i e u ldquorepare como [Donato] procede primeiro trata daquelas caracteriacutesticas comuns [agraves duas le-tras] e soacute depois se volta a esses casos especiaisrdquo cxcvi

32 Ordem progressiva O segundo esquema diz respeito agrave ordem de apresentaccedilatildeo os capiacutetulos que em

Donato se organizam em quatro partes

Primeiro um tratado inicial sobre as partes da oraccedilatildeo tradicionalmente co-nhecido como Arte menor que se apresenta na forma de perguntas e respostas e com-preende oito capiacutetulos que versam respectivamente sobre o nome o pronome o verbo o adveacuterbio o particiacutepio a conjunccedilatildeo a preposiccedilatildeo a interjeiccedilatildeo

Em seguida um conjunto de trecircs partes conhecido como Arte maior e compos-to por [1] um tratado elementar com seis capiacutetulos acerca da voz da letra da siacutelaba do peacute meacutetrico do acento e da pontuaccedilatildeo [2] um segundo tratado sobre as partes da oraccedilatildeo apresentando precisamente os mesmos capiacutetulos que constituiacuteam o primeiro tratado cuja mateacuteria eacute agora descrita com maior abrangecircncia de detalhes de forma expositiva [3] um tratado de seis capiacutetulos sobre os viacutecios da oraccedilatildeo (barbarismo solecismo outros) e as virtudes (metaplasmo figuras tropos) doutrina que parece de-pender amplamente do conteuacutedo dos dois tratados anteriores na medida em que tanto viacutecios quanto virtudes se dividem basicamente em alteraccedilotildees no niacutevel das letras siacutela-bas e acentos de um lado e em variaccedilotildees no emprego das partes da oraccedilatildeo de outrocxcvii

Tal divisatildeo do conteuacutedo gramatical em trecircs partes corresponde de certa ma-neira ao esquema progressivo de constituiccedilatildeo da proacutepria linguagem que serve de prin-ciacutepio e justificativa para a doutrina gramatical como mostra o testemunho do gramaacute-tico Diomedes

Os princiacutepios da gramaacutetica emergem dos elementos os elementos se configuram em letras as letras se combinam em siacutelabas pelas siacutelabas se forma a palavra (dictio) as palavras se combinam em partes da oraccedilatildeo pelas partes da oraccedilatildeo se perfaz a oraccedilatildeo (oratio) na oraccedilatildeo se distin-gue a virtude pratica-se a virtude para evitar os viacutecios (Grammatici Latini vol 1 pp 426-427)cxcviii

Por muito tempo se considerou que a organizaccedilatildeo dos tratados com base nesse esquema progressivo fosse um claro indiacutecio da influecircncia direta do estoicismo sobre a gramaacutetica romanacxcix De fato a progressatildeo parece estar impliacutecita na distinccedilatildeo estoica entre som vocal (φωνή uox) som articulado (λέξις dictio) e som significante (λόγος oratio) de maneira que o plano da Arte maior se assemelharia bastante ao plano do que se considera o ldquomais antigo arqueacutetipordquo das artes gramaticais a Teacutekhnē perigrave phōnecircs do estoico Dioacutegenes da Babilocircnia um primeiro tratado sobre os elementos constituti-vos da palavra enquanto som articulado (λέξεως στοικεία ie letras siacutelabas etc) um

segundo tratado sobre os elementos constitutivos do som significante (μέρη λόγου) e um terceiro sobre as qualidades e os defeitos a que estaacute sujeito o som significante (ἀρεταὶ λόγου [καὶ κακίαι])

Poreacutem essa visatildeo tem sido relativizada pelos estudos recentes Segundo Lou-is Holtz (1981 p 60) o esquema progressivo jaacute era tradicional quando os estoicos o adotaram sendo usado por Platatildeo ao supor o meacutetodo que o demiurgo teria seguido para criar a linguagem (eg Craacutetilo 424endash425a) e por Aristoacuteteles no estudo da elocuccedilatildeo poeacutetica (eg Poeacutetica capiacutetulos 20ndash22) Na verdade eacute possiacutevel que esse esquema fosse ldquoum tipo de apresentaccedilatildeo corrente e banal proacuteprio da pedagogia dos gramatisteacutesrdquo isto eacute dos alfabetizadores que para descrever o sistema de escrita grego baseado em um signo para cada fonema concebiam a anaacutelise e a siacutentese como teacutecnicas complementa-res relacionadas com os movimentos naturais de leitura e escrita

Essa perspectiva essencialmente pedagoacutegica se evidencia pela observaccedilatildeo dos capiacutetulos que compotildeem a primeira parte da Arte maior A progressatildeo gramatical em princiacutepio simples e estaacutevel ndash a voz quando eacute articulada eacute representada por letras que se combinam em siacutelabas ndash sofre uma espeacutecie de ldquobifurcaccedilatildeordquo a siacutelaba pode-se combi-nar em palavra mas tambeacutem em peacute meacutetrico Essa inserccedilatildeo pode estar relacionada com a utilidade dos esquemas quantitativos para a anaacutelise dos poemas bem como para a teoria das claacuteusulas a ser estudada futuramente pelo estudante no curso de retoacuterica Em outras palavras sua presenccedila se explica natildeo por sua origem na filosofia mas por seu papel na praacutetica escolar o mesmo podendo ser aformado dos capiacutetulos seguintes que trazem natildeo soacute as regras da acentuaccedilatildeo e da pontuaccedilatildeo mas tambeacutem os respectivos sinais graacuteficos usados para marcar os manuscritos que eram parte das habilidades aprendidas com o gramaacutetico (cf HOLTZ 1981 62-63)

Essa dificuldade de estabelecer um paralelismo rigoroso entre o plano progres-sivo da dialeacutetica estoica e a descriccedilatildeo gramatical tambeacutem eacute abordada por Marc Baratin (1989a p 200-201) Segundo esse pesquisador a progressatildeo gramatical eacute totalmente dependente de uma praacutetica de leitura e escrita e de seu ensino elementar (juntar letras em siacutelabas siacutelabas em palavras palavras em oraccedilotildees) ao passo que o esquema estoico consiste em ldquodistinguir em uma sequecircncia focircnica os aspectos coexistentes em toda sua extensatildeordquo nesse sentido pode-se considerar uma sequecircncia como vocal (φωνή) como articulada (λέξις) e como significante (λόγος) ldquomas eacute sempre a mesma realidade que eacute tomada em consideraccedilatildeordquo Portanto o esquema estoico natildeo corresponde a uma perspectiva ascendente (natildeo haacute a unidade ldquosiacutelabardquo por exemplo) e sim a uma anaacutelise da relaccedilatildeo entre som e sentido (BARATIN 1994 p 152)

Aleacutem disso o tratamento gramatical dos viacutecios e virtudes natildeo segue o esquema apresentado pelos estoicos Conforme testemunha Dioacutegenes Laeacutercio (759) os estoicos distinguiam cinco virtudes (helenismo clareza concisatildeo precisatildeo elegacircncia) e dois viacutecios (barbarismo e solecismo) ao passo que a terceira parte da Arte maior apresenta trecircs conjuntos de viacutecios (barbarismo solecismo outros) e trecircs de virtudes (metaplas-mo figuras e tropos) constituindo ldquoum verdadeiro desafio colocar os esquemas em paralelordquo (BARATIN 1989a p 201)

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Em suma a organizaccedilatildeo da Arte maior em trecircs partes que aparentemente motivara Barwick a pesquisar suas fontes estoicas por consideraacute-la representante exemplar da gramaacutetica latina natildeo passa de uma variante entre outras Ao contraacuterio as diferentes (e por vezes confusas) progressotildees adotadas por outros artiacutegrafos contem-poracircneos como Cariacutesio Diomedes Sacerdote leva a crer que a ars grammatica tardia natildeo tem uma estrutura preacute-definida (BARATIN 1989b p 211-212) Desse modo o es-quema de organizaccedilatildeo da Arte maior parece representar o mesmo esforccedilo de codifica-ccedilatildeo que observamos a respeito do meacutetodo sistemaacutetico sempre orientado por escolhas pedagoacutegicas (HOLTZ 1981 91)

Por outro lado eacute notaacutevel que o grande diferencial de Donato quanto agrave organi-zaccedilatildeo do conteuacutedo seja precisamente uma transgressatildeo do esquema tripartite iniciar a obra pelo tratado sobre as partes da oraccedilatildeo Essa intervenccedilatildeo teve recepccedilatildeo imediata e positiva como mostra um seacuteculo depois o testemunho de Seacutervio

Muitos comeccedilaram a escrever suas artes pelo tratado das letras muitos pela voz muitos pela definiccedilatildeo de gramaacuteti-ca Mas parece que todos erraram porque natildeo trataram de uma mateacuteria exclusiva de seu ofiacutecio mas comum tanto aos oradores quanto aos filoacutesofos Pois tambeacutem o orador pode tratar das letras e ningueacutem trata da voz mais que os filoacutesofos a definiccedilatildeo por sua vez eacute cara aos aristoteacuteli-cos Daiacute Donato ter procedido de modo mais inteligente e apropriado pois comeccedilou pelas oito partes da oraccedilatildeo que pertence especificamente ao gramaacutetico (Grammatici Lati-ni vol IV p 405 linhas 4-11 traduccedilatildeo nossa)cc

O texto sugere que o cerne do ensino gramatical eacute a doutrina das partes da oraccedilatildeo no que se distingue das outras disciplinas ainda que o proacuteprio desenvolvimen-to dessa doutrina tenha se dado a partir dos estudos filosoacuteficoscci como reconhece o mesmo comentador

Os aristoteacutelicos dizem que as partes da oraccedilatildeo satildeo duas o nome e o verbo os estoicos dizem que satildeo cinco os gramaacuteticos que satildeo oito muitos nove muitos dez mui-tos onze (Grammatici Latini vol IV p 428 linhas 12-13 traduccedilatildeo nossa)ccii

Em todo caso a inovaccedilatildeo de Donato ndash repita-se iniciar o tratado pelo estudo das partes da oraccedilatildeo ndash parece contemplar uma praacutetica corrente na educaccedilatildeo gramati-cal a julgar pelo testemunho de Quintiliano dois seacuteculos antes

Antes de mais nada que as crianccedilas saibam flexionar os nomes e os verbos pois natildeo podem de outro modo com-preender o que vem depois (QUINTILIANO Institutio oratoria I 4 22 traduccedilatildeo nossa)cciii

Outros comentadores de Donato fazem eco a essa afirmaccedilatildeo atestando sua pertinecircncia didaacutetica como eacute o caso de Pompeio (ldquofez bem Donato em escrever a pri-meira parte agraves crianccedilas e a segunda a todosrdquo)cciv de Juliano de Toledo (ldquoPor que Dona-to comeccedilou pelo nome e natildeo pela letra como fizeram outros Por saber que a proacutepria letra tambeacutem era um nomerdquo) ccv e tambeacutem de um gramaacutetico anocircnimo que escreve acerca do barbarismo (Fragmentum Monacense de barbarismo) referindo-se natildeo ape-nas agrave anteposiccedilatildeo do estudo das partes da oraccedilatildeo mas tambeacutem agrave simetria de ordena-ccedilatildeo das partes da Ars

Repare-se que Donato editou sua arte com extrema dili-gecircncia e habilidade compocircs primeiro a menor para ins-truir os meninos colocando-a no comeccedilo de seu volume jaacute a segunda ediccedilatildeo iniciou pela letra e as demais partiacutecu-las pertinentes agrave superfiacutecie e depois as oito partes Feito isso para completar a segunda ediccedilatildeo colocou o barba-rismo e os demais viacutecios ndash e assim como havia colocado as partes que pertencem agrave superfiacutecie (ie voz letra siacutelaba etc) da primeira vez tambeacutem ao discorrer a respeito dos viacutecios teve o cuidado de colocar no iniacutecio o barbarismo que corrompe a superfiacutecie e em segundo lugar o solecis-mo viacutecio que corrompe o sentido e a coesatildeo das partes (Grammatici Latini vol 5 p 327 linhas 3-12 traduccedilatildeo nossa)ccviv

Outro fragmento anocircnimo (Fragmentum Lauantinum in artes Donati) dis-correndo igualmente sobre a inteligecircncia da dispositio donatiana chama atenccedilatildeo para mais uma caracteriacutestica marcante desse tratado qual seja a forma de apresentaccedilatildeo em perguntas e respostas

[Donato] escreveu uma arte duplicada isto eacute as oito par-tes que se chamam artes menores das quais esta eacute a se-gunda ediccedilatildeo Mas eacute de se observar para quais pessoas es-creveu a primeira quais a segunda e indagar por quantas e quais causas escreveu as artes menores Eacute o seguinte para as pessoas dos meninos e por trecircs causas Primeira para que conhecessem de que modos se dava a arte se-gunda para que aprendessem a perguntar (eg ldquoquantas satildeo as partes da oraccedilatildeordquo) e a terceira causa para que soubessem resolver o que foi perguntado (eg ldquooitordquo etc) Assim na primeira ediccedilatildeo contempla o questionaacuterio e a resoluccedilatildeo para ensinar os meninos jaacute na segunda ediccedilatildeo ensina a ciecircncia da latinidade para pessoas adultas Mas conveacutem agora dizer de que modos se daacute o perguntar isto eacute de trecircs como que querendo aprender ou ensinar ou para produzir uma investigaccedilatildeo E nas artes menores Do-nato pergunta como que querendo ensinar (Grammatici

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Latini vol 5 p 326 linhas 8-19 traduccedilatildeo nossa)ccvii

Esse comentaacuterio enseja algumas consideraccedilotildees Primeiro a indicaccedilatildeo expliacutecita dos diferentes destinataacuterios de uma e outra arte (ldquomeninosrdquo vs ldquoadultosrdquo) sugere inda-gaccedilotildees sobre o efetivo uso de uma ou outra arte na praacutetica escolar do periacuteodo Segundo os diferentes ldquomodosrdquo (ou usos) do questionamento remontam a uma tradiccedilatildeo muito antiga de textos filosoacutefico-cientiacuteficos em relaccedilatildeo agrave qual eacute preciso situar a Arte menor

4 Perguntas e respostas como forma literaacuteria A forma literaacuteria que simula uma interaccedilatildeo verbal entre mestre e disciacutepulo

foi amplamente utilizada durante toda a Antiguidade Os diaacutelogos de Platatildeo parecem inaugurar esse processo de instruccedilatildeo e organizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico em perguntas e respostas simulando um meacutetodo de reflexatildeo mas fazendo acompanhar de um contexto conversacional (eg um banquete) e de personagens conhecidos ou ve-rossiacutemeis (Soacutecrates Aristodemos Agatatildeo Fedro Pausacircnias Aristoacutefanes) Em ambien-te latino o mesmo expediente eacute usado por Ciacutecero ndash um acadecircmico assumido ndash em qua-se todas as suas grandes obras filosoacuteficas (cf MARTIN amp GALLIARD 1990 224ndash34)

Por outro lado o mesmo Ciacutecero emprega essa forma supostamente para en-sinar retoacuterica a seu filho Aqui se coloca uma diferenccedila Enquanto muitos diaacutelogos filosoacuteficos tecircm uma ldquodata cecircnicardquo (em geral afastada no tempo) e personagens ilustres da repuacuteblica romana na obra Particcedilotildees oratoacuterias (De partitione oratoriae) vemos uma espeacutecie de exerciacutecio escolar entre Ciacutecero e seu filho acerca das ldquopartesrdquo que compotildeem a instruccedilatildeo oratoacuteria O iniacutecio do texto eacute bastante elucidativo

CIacuteCERO FILHO Tenho vontade de ouvir de vocecirc meu pai em Latim as instruccedilotildees acerca do meacutetodo de discursar que vocecirc me transmitiu em Grego ndash mas soacute se vocecirc estiver desocupado e quiser agoraCIacuteCERO PAI Ora meu querido Ciacutecero existe algo que eu queira mais do que vocecirc ser o mais instruiacutedo possiacutevel Em primeiro lugar meu oacutecio eacute total jaacute que me foi dado o direito de sair de Roma aleacutem disso eu colocaria esses teus estudos agrave frente das minhas maiores ocupaccedilotildees com o maior prazerCF Vocecirc quer entatildeo que assim como vocecirc costuma me perguntar em Grego segundo a ordem agora eu te per-gunte a respeito dos mesmos assuntos em LatimCP Pode ser se te agrada Assim eu poderei observar que vocecirc se lembra das instruccedilotildees que recebeu e vocecirc po-deraacute ouvir em ordem as coisas que quiser saberCF Em quantas partes deve ser dividida toda a doutrina do discursarCP Em trecircsCF Diga quaisCP Primeiro na proacutepria forccedila do orador segundo no

discurso terceiro na questatildeoCF Em que consiste essa forccedilaCP Nas ideias e nas palavrashellip ccviii

De fato esse texto eacute bem mais simples tanto pela cena quanto pelos persona-gens (pai e filho provavelmente em casa repassando instruccedilotildees teacutecnicas sobre a arte oratoacuteria) Eacute de se notar que os papeacuteis desempenhados satildeo invertidos (uicissim) quem costumava perguntar (Ciacutecero pai) agora passaraacute a responder em todo caso a sequecircn-cia metoacutedica (ordine) deveraacute ser respeitada A semelhanccedila com o meacutetodo utilizado na Arte menor eacute evidente

As partes da oraccedilatildeo satildeo quantas Oito Quais Nome pro-nome verbo adveacuterbio particiacutepio conjunccedilatildeo preposiccedilatildeo e interjeiccedilatildeo Nome eacute o quecirc Eacute a parte da oraccedilatildeo com caso que significa um corpo ou uma ideia de modo proacuteprio ou comum O nome tem quantos acidentes Seis Quais Qualidade comparaccedilatildeo gecircnero nuacutemero figura e caso A qualidade dos nomes em que consiste Em dois tipos pois ou eacute nome de um soacute e se chama proacuteprio ou eacute de muitos e se chama apelativo (DONATO 1981 p 585)ccix

Todavia falta-lhe a contextualizaccedilatildeo cecircnica que ainda que simples determina os papeacuteis quem pergunta quem responde na Ars minor Mais que isso que niacutevel de verossimilhanccedila com praacutetica escolar o texto donatiano poderia representar

Um testemunho de Pompeio traz alguma luz a essas questotildees Ao tratar dos

nomes proacuteprios em especial daqueles que proveacutem de um nome comum (os agnomi-na) este gramaacutetico afirma

hellipnas respostas devemos ser espertos Frequentemen-te nos fazem cometer solecismo tanto os que pergun-tam mal quanto os que respondem mal Pensa por exemplo se algueacutem diz ldquoAfricanordquo devo perguntar assim e assim responder ldquolsquoAfricanorsquo eacute que parte da oraccedilatildeordquo E o menino diz ldquoNomerdquo Eu pergunto ldquoQue tipo de nomerdquo Ele deve responder ldquoProacutepriordquo Devo perguntar ldquoQue parte do nome proacutepriordquo E ele deve dizer ldquoAgnomerdquo Essa eacute a ordem verdadeira segundo o questionaacuterio pois eacute primordial que vocecirc diga primeiro o que eacute geneacuterico e depois diga o que eacute especiacutefico Ora se ele te pergunta ldquolsquoAfricanorsquo eacute que parte da oraccedilatildeordquo e vocecirc diz ldquoagnomerdquo vocecirc comeccedilou pelo uacuteltimo vocecirc natildeo me disse que eacute um nome depois natildeo me disse se eacute proacuteprio ou apelativo mas soacute disse o que viria por uacuteltimo Por isso vocecirc deve dizer assim ldquoeacute um nome eacute proacuteprio essa parte do nome proacuteprio eacute agnomerdquo O mesmo vale para o restante (Grammatici Latini vol

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5 p 142-143 traduccedilatildeo nossa)

Vemos o interlocutor de Pompeio sendo convidado a se imaginar em duas posiccedilotildees tanto a de perguntar ao menino quanto a de ser questionado por ele Inde-pendente de quem assume qual posiccedilatildeo parece que o mais importante eacute respeitar a ordem isto eacute o meacutetodo do questionaacuterio (interrogatio) progredindo sempre do geneacute-rico para o especiacutefico demonstrando que o objeto do aprendizado natildeo tanto as formas linguiacutesticas mas o modo correto de classificaacute-las bem como o de apresentar essas classificaccedilotildees

Por fim um uacuteltimo testemunho parece sugerir uma certa relevacircncia social para o treinamento no meacutetodo de perguntas e respostas no mundo romano O trecho eacute do mesmo Pompeio ainda sobre a ambiguidade dos nomes proacuteprios e traz um convite agrave precauccedilatildeo para o interlocutor

Alguns homens costumam ser espertos com frequecircncia entatildeo algueacutem te pergunta dizendo ldquoLuacutecio eacute que tipo de nomerdquo ldquoProacutepriordquo ldquoQue parte do nome proacutepriordquo E vocecirc diz a ele ldquoPrenomerdquo E ele te diz ldquoErrado Pois um escravo meu se chama assim e natildeo tem prenomerdquo (Grammatici Latini vol 5 p 142 linhas 8-11 traduccedilatildeo nossa)

Agrave parte a ambiguidade do nome Luacutecio ndash usado ora como prenome ora como nome uacutenico no caso de escravizados ndash o cuidado proposto por Pompeio eacute em relaccedilatildeo a ldquoalguns homensrdquo possivelmente uma referecircncia ao tradicional ambiente extra-escolar de provaccedilotildees para os letrados como se observa nas Noites Aacuteticas de Aulo Geacutelio que traz relatos de interaccedilatildeo provocativa entre uma pessoa culta (em geral o proacuteprio autor) e um gramaacutetico pedante (e geralmente inepto) Em um desses relatos (livro 16 cap 6) um ldquoalfabetizador da liacutengua latina se oferecia ao povo para ser testadordquo Geacutelio conta que o homem estava lendo ldquode modo baacuterbaro e ineptordquo (barbare insciteque) o livro 7 da Eneida e dizia que ldquose algueacutem quisesse aprender alguma coisa que perguntasse a elerdquo Surpreso com a ldquoconfianccedila do indoutordquo (indocti hominis confidentiam) Geacutelio resolve ir ateacute ele ldquopor divertimentordquo (oblectamenti gratia) Ao final apoacutes revelar a ignoracircncia do sujeito com perguntas capciosas Geacutelio vai embora rindo das proezas do impostor (facetias nebulonis hominis)

5 Consideraccedilotildees finais Diante do que foi apresentado sobre as inovaccedilotildees metodoloacutegicas de Donato

particularmente pertinentes como vimos agrave organizaccedilatildeo e forma de apresentaccedilatildeo do conteuacutedo eacute possiacutevel perceber que o que se aprendia na aula de gramaacutetica natildeo era uma nova liacutengua mas um conjunto sistematizado de conceitos e formas (fornecido pela ars) e um meacutetodo de anaacutelise (as partitiones isto eacute a identificaccedilatildeo das lsquopartesrsquo) que permitia racionalizar o uso da liacutengua pelo falante e compreender as composiccedilotildees literaacuterias

Exemplo desse processo satildeo as Partitiones duodecim uersuum Aeneidos prin-

cipalium obra do gramaacutetico Prisciano cujo tiacutetulo bem poderia ser traduzido por Anaacute-lise dos doze versos principais da Eneida (quais sejam o primeiro verso de cada livro) em forma de questionaacuterio ordenado como vemos no excerto abaixo

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris [hellip] Quantas partes da oraccedilatildeo tem esse verso Nove Quan-tos nomes Seis arma uirum Troiae qui primus oris Quantos verbos Um cano Quantas preposiccedilotildees Uma ab Quantas conjunccedilotildees Uma que Arma eacute que parte da oraccedilatildeo Nome Qual Apelativo De que espeacutecie Geneacuterico De que gecircnero Neutro Por quecirc Porque todos os que no plural terminam em -a sem duacutevida satildeo do gecircnero neutro [hellip] De que figura Simples Faccedila dele alguns compostos armiger armipotens inermishellip De que caso eacute nessa passa-gem Acusativo Como ter certeza Pela estrutura isto eacute pela organizaccedilatildeo e conexatildeo com o que vem depois o ver-bo cano se constroacutei com acusativo (PASSALACQUA ed 1999 p 48-50)c

A intenccedilatildeo deste capiacutetulo foi apresentar alguns testemunhos da reflexatildeo sobre meacutetodo de ensino na Antiguidade A julgar pela produccedilatildeo bibliograacutefica parece que o foco de atenccedilatildeo dos estudos de textos gramaticais antigos satildeo os aspectos linguiacutesticos e filoloacutegicos desses textos de modo que a bibliografia disponiacutevel sobre os aspectos di-daacuteticos natildeo eacute farta Em todo caso se o exame da estrutura dos manuais de gramaacutetica ldquonatildeo pode se limitar a uma simples anaacutelise de sua organizaccedilatildeo [hellip] devendo levar em conta todas as dimensotildees desses textos na qualidade de documentos cientiacuteficos e pe-dagoacutegicos bem como de enunciados linguiacutesticosrdquo (LENOBLE SWIGGERS WOUTERS 2001 p 277) sem duvida os tratados e comentaacuterios gramaticais satildeo uma rica fonte de informaccedilotildees para explicar muitos aspectos relevantes sobre a escola antiga

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Exagerando a verdadea hipeacuterbole em

Quintiliano

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Pedro Schmidt

O estudo da hipeacuterbole sua histoacuteria suas definiccedilotildees seus empregos e suas interpretaccedilotildees eacute ainda um campo praticamente inexplorado junto aos estudos literaacute-rios Nisso acompanha a tendecircncia das figuras como um todo que agrave exceccedilatildeo talvez da metaacutefora tecircm recebido pouco ou quase nenhum tratamento seja de historiadores da literatura ou de teoacutericos da literatura desproporcional ao menos agrave importacircncia que se assume em geral em propostas metodoloacutegicas de anaacutelise literaacuteria No caso especiacutefico da hipeacuterbole para aleacutem das definiccedilotildees de dicionaacuterios e manuais pode-se encontrar algumas poucas monografiasccxv nos uacuteltimos anos houve um relativo aumento de produccedilotildees acadecircmicas sobre o tema muito embora oriundas das aacutereas da pragmaacutetica da filosofia da linguagem e da comunicaccedilatildeo apresentando escassa relaccedilatildeo com a apli-caccedilatildeo da figura ccxvi a textos literaacuterios ccxvii

Uma possiacutevel aproximaccedilatildeo ao estudo da hipeacuterbole e de sua histoacuteria eacute o enten-dimento de como essa figura foi tratada pelos teoacutericos de poeacutetica e retoacuterica da Antigui-dade greco-latina Pois esses tratamentos podem oferecer por um lado a descriccedilatildeo de como os autores literaacuterios entendiam e utilizavam a figura e por outro uma espeacutecie de prescriccedilatildeo sob a qual os autores viriam a modelar-se Aleacutem disso queda evidente que os tratamentos dados agraves figuras pelos teoacutericos antigos satildeo ainda a base na qual se fundamentam as definiccedilotildees modernas dos dicionaacuterios e manuais e da qual partem os estudos criacuteticos

Nesse sentido pode-se observar a histoacuteria da definiccedilatildeo da hipeacuterbole desde Aristoacuteteles de quem recebe uma breve menccedilatildeo perpassando ainda em condiccedilotildees bre-ves ou embrionaacuterias outro autores ccxviii ateacute chegar a uma exposiccedilatildeo relativamente elaborada e desenvolvida em Quintiliano que funciona como pedra fundamental para todos os tratamentos subsequentes desde a Antiguidade tardia ateacute nossos dias Nesse sentido faz-se crucial para todo estudo historicamente orientado da hipeacuterbole conhe-cer o tratamento dado agrave figura por Quintiliano Para tanto seraacute apresentada aqui apoacutes breve contextualizaccedilatildeo a traduccedilatildeo para liacutengua portuguesa da passagem para entatildeo se proceder agrave anaacutelise da mesma e para ao final propor uma definiccedilatildeo e tipologia da hipeacuterbole de acordo com os termos de Quintiliano

Marco Faacutebio Quintiliano nasceu por volta do ano 35 da era cristatilde na proviacutencia

romana da Hispacircnia em Calaguacuterris (hoje Calahorra) Ainda jovem mudou-se para Roma onde estudou gramaacutetica e oratoacuteria com professores renomados como Recircmio Palecircmon e Domiacutecio Afer Apoacutes seus estudos regressou agrave Hispacircnia mas logo voltaria a Roma na companhia de Galba em 68 Na capital tornou-se o primeiro professor de retoacuterica contratado oficialmente pelo governo imperial sob a dinastia flaviana cargo que ocuparia nos proacuteximos vinte anos tendo entre seus alunos personalidades ilustres da poliacutetica e da literatura Ao se aposentar recebeu a incumbecircncia de educar os sobri-nhos-netos do imperador Domiciano Faleceu em Roma por volta do ano de 96 ccxix

Embora se atribua a ele uma coleccedilatildeo de declamaccedilotildees sua uacutenica obra de autoria indisputada eacute a Institutio Oratoria um tratado sobre retoacuterica e sobre a instruccedilatildeo ora-

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toacuteria composto em doze livros A Institutio tornou-se desde logo uma referecircncia natildeo apenas de retoacuterica mas tambeacutem de ensino de retoacuterica e do processo educacional do jovem orador Seu impacto na Idade Meacutedia foi a julgar pela presenccedila de manuscritos apenas razoaacutevel mas sua influecircncia aumenta exponencialmente a partir do Renas-cimento Com o decliacutenio do estudo da retoacuterica nos ambientes escolares a Institutio passou a ser conhecida somente nos meios especializados sendo a base fundamental dos manuais e dicionaacuterios teacutecnicos e uma das principais fontes sobre a arte retoacuterica do mundo greco-romano

A Institutio tem uma estrutura bem delineada e objetiva O livro 1 trata dos

processos iniciais da educaccedilatildeo e da importacircncia da gramaacutetica da muacutesica e das artes li-berais na formaccedilatildeo do orador o livro 2 funciona como uma espeacutecie de introduccedilatildeo geral agrave arte retoacuterica os livros 3 a 6 compotildeem um bloco sobre a invenccedilatildeo em que o 3 explora as origens da retoacuterica os tipos de causa e os trecircs gecircneros de discurso (demonstrativo deliberativo e judiciaacuterio) o 4 as partes do discurso o 5 os tipos de prova e o 6 os apelos retoacutericos (ethos pathos logos) e o riso o livro 7 trata da disposiccedilatildeo os livros 8 a 11 completam os elementos canocircnicos da retoacuterica com a elocuccedilatildeo memoacuteria e accedilatildeo com destaque para o livro 10 onde haacute uma histoacuteria criacutetica da literatura e o livro 12 discorre sobre a carreira e a vida do orador formado e a relaccedilatildeo destas com a praacutetica oratoacuteria

Eacute no oitavo livro da Institutio que Quintiliano aborda dentro da discussatildeo

sobre o estilo as figuras de linguagem os ornamentos e os tropos No prefaacutecio ele adverte que o estilo ou a elocuccedilatildeo eacute a mais difiacutecil entre as cinco partes canocircnicas da retoacuterica (Inst 8Praef13) e eacute justamente essa parte que diferencia os oradores verda-deiramente excelentes em relaccedilatildeo aos oradores comuns (Inst 8Praef14-17) O livro divide-se em seis capiacutetulos No primeiro Quintiliano define e desenvolve o conceito de elocuccedilatildeo No segundo trata da propriedade das palavras No terceiro introduz o con-ceito do ornamento sua importacircncia e eficaacutecia em seguida lista os efeitos que devem ser evitados como cacofonia tautologia pleonasmo por fim discorre sobre o siacutemile e a ecircnfase No quarto ele passa a explorar ainda sob a definiccedilatildeo de ornamento a ampli-ficaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo No quinto trata daquele que considera o melhor dos ornamentos a sententia Por fim no sexto e uacuteltimo capiacutetulo adentra-se agrave exposiccedilatildeo dos tropos metaacutefora sineacutedoque metoniacutemia antonomaacutesia onomatopeia catacrese metalepse epiacuteteto alegoria periacutefrase hipeacuterbato e hipeacuterbole Satildeo estes na visatildeo de Quintiliano os tropos mais usuais e importantes

Eacute portanto o trecho final do sexto capiacutetulo do livro 8 que nos interessa aqui

Antes de passarmos a ele contudo faz-se necessaacuterio procurar entender a distinccedilatildeo que Quintiliano esboccedila entre tropo e ornamento e porque ele classifica a hipeacuterbole dentro da categoria dos tropos

Dentro do tratamento da elocuccedilatildeo Quintiliano apresenta dois tipos de recur-

sos estiliacutesticos que se pode fazer com as palavras tanto na poesia como nos discur-sos de oratoacuteria os ornamentos (ornati) e os tropos (tropi) Os ornamentos satildeo os tipos de figuraccedilatildeo em que natildeo haacute mudanccedila no sentido proacuteprio (literal ou denotativo) da palavra enquanto os tropos satildeo aquela em que necessariamente haacute mudanccedila no

sentido proacuteprio Essa divisatildeo de certa forma equivale agrave corrente discriminaccedilatildeo entre figura de linguagem e tropo no entanto o termo ldquofigurardquo (figura) em Quintiliano natildeo corresponde exatamente ao ornamento sendo antes um termo mais amplo Como veremos adiante a hipeacuterbole transita entre esses dois polos pois ela pode funcionar tanto com palavras denotativas como com palavras conotativas ou metaforizadas Ao longo do texto o tratadista iraacute se referir agrave hipeacuterbole como tropo como ornamento e como figura sendo que este uacuteltimo termo sugere um escopo que abarca as duas outras definiccedilotildees Antes mesmo da passagem em que discute a hipeacuterbole haacute no quarto capiacute-tulo uma breve discussatildeo sobre o lugar da mesma se deve ser estudada junto com os ornamentos ou com os tropos

Sei que a hipeacuterbole tambeacutem pode ser considerada por al-guns como uma espeacutecie de amplificaccedilatildeo jaacute que a hipeacuter-bole pode criar esse efeito de aumentar ou diminuir mas como esse termo se enquadra na categoria dos tropos vou adiar essa discussatildeo Eu ateacute trataria dos tropos agora mas essa parte da teoria [acerca das palavras metaforizadas e natildeo das palavras em sentido proacuteprio] costuma ser separa-da pelos demais autores113

Nessa passagem temos natildeo apenas uma clara distinccedilatildeo entre ornamento e tropo como tambeacutem a alocaccedilatildeo da hipeacuterbole como tropo No entanto essa aparente classificaccedilatildeo diz mais sobre a ordenaccedilatildeo do estudo de cada assunto do que da tipologia da hipeacuterbole Pois como se vecirc no capiacutetulo 6 a hipeacuterbole seraacute nomeada e explicada como ornamento e como tropo a depender da espeacutecie ou subtipo que se emprega Aqui Quintiliano retira a hipeacuterbole do escopo dos ornamentos ao qual pertence o efeito da amplificaccedilatildeo pois de acordo com a tradiccedilatildeo retoacuterica a figura se enquadra no grupo dos tropos

A exposiccedilatildeo sobre a hipeacuterbole ocorre de fato na lista dos tropos que preenche

todo capiacutetulo 6 do livro 8 contendo doze tropos os considerados mais importantes e usuais nos discursos Os uacuteltimos dez paraacutegrafos do capiacutetulo satildeo reservados agrave hipeacuterbole relegada ao final da lista por ser uma figura de difiacutecil trato como se fosse um assunto mais ldquoavanccediladordquo no curso de retoacuterica Citamos aqui o trecho completo para que pos-samos em seguida discuti-lo

Deixei a hipeacuterbole para o final por seu aspecto mais ou-sado Eacute um exagero decoroso da verdade pode ser usada para aumentar ou para diminuir de diversas maneiras Podemos dizer mais do que o fato como quando Ciacutecero diz ldquovomitando emporcalhou seu colo e todo o tribunal com restos de comidardquo ou ldquoe os dois rochedos que ameaccedilam o ceacuteurdquo Tambeacutem podemos usar a figura por semelhanccedila

113 Inst 8429 ldquoScio posse videri quibusdam speciem amplificationis hyperbolen quoque nam et haec in utramque partem valet sed quia excedit hoc nomen in tropos differenda est Quos continuo subiungerem nisi esset a ceteris separata ratio dicendi [quae constat non propriis sed translatis]rdquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de BUTLER (1922) Todas as traduccedilotildees aqui apresentadas satildeo de minha autoria

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como em ldquoacreditarias que as Ciacuteclades nadam soltas no marrdquo Tambeacutem por comparaccedilatildeo como em ldquomais raacutepido que as asas do relacircmpagordquo Tambeacutem por insinuaccedilatildeo como em ldquomesmo que ela voasse sobre os cimos dos campos de espigas maduras ela natildeo esbarraria nas tenras espigasrdquo Tambeacutem por metaacutefora como em ldquovoasserdquo no exemplo acima A hipeacuterbole pode tambeacutem ser aumentada dentro de outra hipeacuterbole como quando Ciacutecero profere contra Antocircnio ldquoQual Cariacutebde foi tatildeo voraz Digo Cariacutebde Ca-riacutebde se existiu foi apenas uma fera marinha O Oceano me parece dificilmente poderia abocanhar tantas coisas tatildeo longiacutenquas tatildeo distantes tatildeo rapidamenterdquo Penso ter encontrado um admiraacutevel exemplo desta figura no livro de Hinos de Piacutendaro o maior entre os poetas liacutericos Pois quando ele discorre sobre o ataque de Heacutercules contra os meacuteropes os lendaacuterios habitantes da ilha de Coacutes diz que foi natildeo como o fogo o vento ou o mar e sim como o re-lacircmpago sendo aqueles insuficientes e este decoroso Isso Ciacutecero imitou nas Verrinas ldquoDepois de um longo interva-lo aparecia na Siciacutelia natildeo outro Dioniacutesio ou outro Faacutelaris ndash pois essa ilha jaacute teve outrora muitos crueacuteis tiranos ndash mas um novo monstro oriundo daquela antiga barbaacuterie que se diz ser usual naquela regiatildeo Pois penso que nem Cariacuteb-de nem Cila foram tatildeo nefastas aos navios quanto Verres nesse mesmo estreito mariacutetimordquo Tambeacutem natildeo poucos satildeo os tipos de hipeacuterbole com efeito de diminuiccedilatildeo ldquomal se sustinham nos ossosrdquo e em Ciacutecero naquele livro engraccedila-do ldquoVetatildeo chama de latifuacutendio o terreno que se mede com uma funda se bem que o terreno caberia ateacute na baladeira da fundardquo Mas desse tipo tambeacutem deve ser mantida certa medida Pois embora toda hipeacuterbole vaacute aleacutem do criacutevel natildeo se deve ir aleacutem do uso e nem por outra via que caia na ca-cozelia Desnecessaacuterio enumerar os vaacuterios viacutecios que nas-cem disso principalmente porque natildeo satildeo desconhecidos ou raros Basta advertir que a hipeacuterbole mente mas sem querer enganar Por isso deve-se considerar ainda mais ateacute onde eacute possiacutevel exagerar naquilo que natildeo seraacute acredi-tado Muito frequentemente essa figura conduz ao riso se esse efeito foi intencional considera-se urbanidade mas se natildeo considera-se estultiacutecia Mas tambeacutem estaacute presen-te no uso comum tanto pelos natildeo estudados como pelos ruacutesticos visto que eacute da natureza de todos o desejo de au-mentar ou diminuir as coisas e ningueacutem se contenta com a simples verdade mas como dissemos isso eacute perdoaacutevel A hipeacuterbole eacute uma virtude quando o assunto de que se fala extrapola o que eacute natural pois eacute permitido dizer de manei-ra exagerada aquilo que natildeo pode ser dito e eacute melhor que

o discurso diga mais do que diga menos

O tratamento da hipeacuterbole fica para o final na lista dos tropos justamente por-que pertence ao rol das figuras ldquomais ousadasrdquo (audacior ornatus) ao longo da exposi-ccedilatildeo fica patente que essa ldquoousadiardquo estaacute relacionada ao fato de a hipeacuterbole ser de difiacutecil uso sendo mais comum emprega-la do modo errado do que do modo certo (piget referre plurima hinc orta vitia cum praesertim minime sint ignota et obscura)

Haacute no entanto um problema conceitual logo na primeira frase da exposiccedilatildeo

Pois Quintiliano descreve aqui a hipeacuterbole como um ornamento (ornatus) e nisso de certa forma contradiz a passagem em 8429 em que afirma preferir tratar a hipeacuterbole como tropo Contudo ao longo do desenvolvimento da exposiccedilatildeo nota-se que a hipeacuter-bole pode tanto funcionar como ornamento no sentido de uma construccedilatildeo em que a palavra ou grupo de palavras natildeo perde seu sentido denotativo como tambeacutem como tropo que ocorre quando a palavra sofre mudanccedila em seu significado

Em seguida podemos encontrar uma definiccedilatildeo sinteacutetica a hipeacuterbole ldquoeacute um

exagero decoroso da verdaderdquo (decens veri superiectio) Esse exagero pode ser usado para criar o efeito de aumentar ou diminuir e nisso se coaduna com os ornamentos de amplificaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo tratados no quarto capiacutetulo Natildeo deixa de ser interessante o fato de que essa propriedade da hipeacuterbole eacute igualmente mencionada por outros trata-distas como o autor anocircnimo da Retoacuterica a Herecircnio e Ciacutecero em Toacutepicos Na Retoacuterica a Herecircnio 444 haacute menccedilatildeo da figura de elocuccedilatildeo superlatio definida como ldquoum dis-curso que vai aleacutem da verdade para aumentar ou diminuir alguma coisardquo115 Jaacute Ciacutecero em Toacutepicos 1045 diz que

Eacute tambeacutem permitido aos oradores e filoacutesofos que deem voz agraves coisas mudas que faccedilam os mortos retornar do in-ferno de forma que algo impossiacutevel possa ser dito ou para

114 Inst 8667-76 ldquoHyperbolen audacioris ornatus summo loco posui Est haec decens veri superiectio virtus eius ex diverso par augendi atque minuendi fit pluribus modis Aut enim plus facto dicimus ut Vomens frustis esculentis gre-mium suum et totum tribunal implevit et geminique minantur in caelum scopuli aut res per similitudinem attollimus Credas innare revulsas Cycladas aut per comparationem ut Fulminis ocior alis aut signis quasi quibusdam Illa vel intactae segetis per summa volaret gramina nec teneras cursu laesisset aristas vel translatione ut ipsum illud volaret Crescit interim hyperbole alia insuper addita ut Cicero in Antonium dicit Quae Charybdis tam vorax Charybdin dico Quae si fuit fuit animal unum Oceanus medius fidius vix videtur tot res tam dissipatas tam distantibus in locis positas tam cito absorbere potuisse Exquisitam vero figuram huius rei deprendisse apud principem lyricorum Pindarum videor in libro quem inscripsit umnouz Is namque Herculis impetum adversus Meropas qui in insula Coo dicuntur habitasse non igni nec ventis nec mari sed fulmini dicit similem fuisse ut illa minora hoc par esset Quod imitatus Cicero illa composuit in Verrem Versabatur in Sicilia longo intervallo alter non Dionysius ille nec Phalaris (tulit enim illa quondam insula multos et crudelis tyrannos) sed quoddam novum monstrum ex vetere illa inmanitate quae in isdem versata locis dicitur Non enim Charybdin tam infestam neque Scyllam navibus quam istum in eodem freto fuisse arbitror Nec pauciora sunt genera minuendi vix ossibus haerent et quod Cicero in quodam ioculari libelo fundum Vetto vocat quem possit mittere funda ni tamen exciderit qua cava funda patet Sed huius quoque rei servetur mensura quaedam Quamvis enim est omnis hyperbole ultra fidem non tamen esse debet ultra modum nec alia via magis in kakoxhlian itur Piget referre plurima hinc orta vitia cum praesertim minime sint ignota et obscura Monere satis est mentiri hyperbolen nec ita ut mendacio facere velit Quo magis intuendum est quo usque deceat extollere quod nobis non creditur Pervenit haec res frequentissime ad risum qui si captatus est urbanitatis sin aliter stultitiae nomen adsequitur Est autem in usu vulgo quoque et inter ineruditos et apud rusticos videlicet quia natura est omnibus augendi res vel minuendi cupiditas insita nec quisquam vero contentus est Sed ignoscitur quia non adfirmamus Tum est hyperbole virtus cum res ipsa de qua loquendum est naturalem modum excessit Conceditur enim amplius dicere quia dici quantum est non potest meliusque ultra quam citra stat oratiordquo

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aumentar ou para diminuir o que se chama hipeacuterbole e muitas outras impossibilidades 116

Quintiliano segue seus predecessores de perto nessa definiccedilatildeo ateacute mesmo nas escolhas lexicais Contudo o desenvolvimento da figura em suas diferentes nuances e categorias assume um caraacuteter consideravelmente diverso daquele apresentado pela Retoacuterica a Herecircnio em que se diz que a figura eacute empregada ou separadamente (se-paratim) ou por comparaccedilatildeo (comparatio) nesta uacuteltima haacute ainda a divisatildeo entre se-melhanccedila (similitudo) e superioridade (praestantia) Por sua vez o autor da Institutio expande a classificaccedilatildeo para seis espeacutecies sem estabelecer uma hierarquia ou organo-grama entre elas

A primeira espeacutecie eacute a hipeacuterbole simples em que haacute mero exagero dos fatos (plus facto) O primeiro exemplo citado eacute extraiacutedo das Filiacutepicas de Ciacutecero (22563) em que a hipeacuterbole consiste em dizer que o vocircmito de Marco Antocircnio sujou todo o tribu-nal trata-se obviamente de um exagero poreacutem somente uma expansatildeo ou aumento do fato em si que seria o vocircmito de Antocircnio sujando sua roupa e suas cercanias no maacuteximo O outro exemplo vem da Eneida de Virgiacutelio (1162-3) onde os dois montes da ilha onde aporta Eneacuteias apoacutes a tempestade se erguem altos em direccedilatildeo ao ceacuteu Trata-se novamente de um mero exagero para ressaltar a altura dos montes mas sem implicar que o leitor de fato acredite que a montanha atinja o ceacuteu

A segunda espeacutecie eacute a hipeacuterbole por semelhanccedila (similitudo) onde o item

eacute comparado como que em um siacutemile a algum elemento impossiacutevel ou exagerado O exemplo aqui eacute tambeacutem extraiacutedo da Eneida (8691-2) na descriccedilatildeo do escudo de Eneacuteias em que podem ser vistos os portentos da histoacuteria romana os navios beacutelicos de Otaacutevio Augusto e Marco Antocircnio avanccedilando uns contra os outros naquela que seria a batalha final da guerra civil satildeo comparados agraves ilhas Ciacuteclades nadando soltasccxxi O efeito causado eacute o aumento do impacto ou da proporccedilatildeo da imagem sem no entanto que se perca o verossimilhanccedila ndash os leitores natildeo satildeo levados a acreditar que os navios satildeo as ilhas mas que ldquose parecemrdquo ldquosatildeo comordquo as ilhas avanccedilando no mar umas contra as outras

A terceira espeacutecie se daacute por comparaccedilatildeo (comparatio) em que a palavra ou no-ccedilatildeo hiperbolizada eacute ldquomaisrdquo ldquomaiorrdquo ldquomenosrdquo ou ldquomenorrdquo que o elemento comparado sendo esse elemento comparado um iacutendice de grande exagero para mais ou para me-nos O exemplo eacute novamente da Eneida (5319) onde durante as competiccedilotildees atleacuteticas o jovem Niso eacute descrito como mais raacutepido que as asas do raio (fulminis ocior alis)ccxxii O elemento comparado carrega um sentido de magnitude as asas do raio jaacute satildeo em si mesmas algo extremamente veloz por meio do adjetivo comparativo temos que Niso eacute ainda mais veloz que o proacuteprio raio e daiacute resulta o efeito hiperboacutelico

115 ldquosuperlatio est oratio superans veritatem alicuius augendi minuendive causardquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de MARX (1923)

116ldquoIn hoc genere oratoribus et philosophis concessum est ut muta etiam loquantur ut mortui ab inferis excitentur ut aliquid quod fieri nullo modo possit augendae rei gratia dicatur aut minuendae quae ίπερβολί dicitur multa alia mirabi-liardquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de WILKINS (1911)

A quarta espeacutecie tem uma definiccedilatildeo natildeo de todo clara em que se lecirc ldquocomo se por uns certos sinaisrdquo (signis quasi quibusdam) no sentido de uma insinuaccedilatildeo uma indicaccedilatildeo Mais uma vez o exemplo eacute extraiacutedo da Eneida (7808-9) Trata-se da descri-ccedilatildeo da guerreira Camila que eacute tatildeo veloz que se corresse por cima de um campo repleto de espigas natildeo arrebentaria nenhuma dessas ou seja nem sequer tocaria as espigas de tatildeo raacutepida que iria passar sobre elas Como se natildeo bastasse as espigas estatildeo madu-ras a ponto da colheita (intactae) de forma que qualquer leve toque as quebraria (te-neras) Aqui temos natildeo um mero exagero ou uma semelhanccedila ou uma comparaccedilatildeo temos uma construccedilatildeo fantasiosa em que a velocidade de Camila eacute descrita em uma imagem que a associe ao voo de ave ou ao vento a algo que possa passar correndo pelas espigas sem derrubaacute-las sem no entanto que essas palavras sejam citadas como se a comparaccedilatildeo ocorresse em um niacutevel sutil ao modo de uma insinuaccedilatildeo

A quinta espeacutecie eacute a metaacutefora (translatio) que natildeo deixa de ser um tropo em

si O exemplo eacute retirado da frase utilizada para a espeacutecie anterior em que o verbo voar (volare) eacute empregado para descrever a raacutepida corrida da jovem guerreira O uso de ldquovoarrdquo no lugar de ldquocorrerrdquo nada mais eacute do que o processo comum da metaacutefora e natildeo deixa de ser relevante o fato de que Quintiliano natildeo esboccedila uma hierarquia ou ascen-decircncia de um tropo sobre o outro ou seja aqui pode-se entender tanto uma hipeacuterbole do tipo metafoacuterico como uma metaacutefora de sentido hiperbolizado sendo as duas coisas na exposiccedilatildeo da Institutio uma coisa soacute Tambeacutem eacute importante notar que ao expor duas espeacutecies a partir de um uacutenico exemplo literaacuterio Quintiliano potildee em evidecircncia que as espeacutecies da hipeacuterbole natildeo satildeo categorias estanques e bem delimitadas no sentido de cada uma abarcar um campo exclusivo que natildeo pode ser abarcado por outra Pois ainda que o uso de ldquovoarrdquo ao inveacutes de ldquocorrerrdquo se constitua uma metaacutefora natildeo eacute a me-taacutefora que faz com que a passagem seja uma hipeacuterbole por insinuaccedilatildeo esta soacute se cons-titui com a reuniatildeo dos demais elementos como o campo repleto de espigas maduras a corrida por cima das espigas e a leveza de correr sem tocar nas espigas com exceccedilatildeo do ldquovoarrdquo todas as demais palavras aparecem em seu sentido proacuteprio e eacute a composiccedilatildeo de todas elas que resulta no efeito hiperboacutelico

A sexta e uacuteltima espeacutecie eacute aquela que poderiacuteamos chamar ldquometa-hipeacuterbo-

lerdquo pois eacute uma hipeacuterbole dentro de outra (hyperbole alia insuper addita) O primeiro exemplo citado volta a ser de Ciacutecero novamente das Filiacutepicas (267) em que o orador vocifera contra Marco Antocircnio nem Cariacutebde nem mesmo o Oceano que tudo devora tecircm o poder de devorar tantas coisas quanto a cupidez de Antocircnio O primeiro niacutevel hiperboacutelico reside na comparaccedilatildeo com Cariacutebde (quae Charybdis tam vorax) compa-raccedilatildeo que logo eacute dissipada como insuficiente (Charybdin dico Quae si fuit fuit animal unum) de Cariacutebde se passa por metoniacutemia para o oceano cuja capacidade de devorar coisas eacute diminuiacuteda na comparaccedilatildeo com Antocircnio comparaccedilatildeo esta que se constitui como o segundo niacutevel hiperboacutelico da construccedilatildeo

O segundo exemplo eacute extraiacutedo de Piacutendaro que Quintiliano natildeo cita e sim para-

fraseia onde a comparaccedilatildeo de Heacutercules com o fogo o vento e o mar satildeo considerados insuficientes ndash primeiro niacutevel da hipeacuterbole ndash de forma que soacute se pode comparaacute-lo com o relacircmpago ndash segundo niacutevel da hipeacuterboleccxxiv

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Haacute ainda um terceiro exemplo da meta-hipeacuterbole tirado do segundo discurso contra Verres de Ciacutecero (5145) Aqui a primeira comparaccedilatildeo eacute com Dioniacutesio e Faacutelaris tiranos crueacuteis da Siciacutelia e a segunda com Cila e Cariacutebde todas elas no entanto satildeo insuficientes para descrever a torpeza de Verres Eacute de se notar que os trecircs exemplos para a meta-hipeacuterbole trabalham com o aspecto da insuficiecircncia da proacutepria hipeacuterbole que eacute em princiacutepio a figura capaz de expressar em exagero aquilo que natildeo pode ser expressado Quando o poeta ou o orador afirmam que nem mesmo a hipeacuterbole que expressa o impossiacutevel eacute capaz de expressar o efeito hiperboacutelico eacute levado a um niacutevel exponencial ultrapassando todos os limites do exagero Esse aspecto da insuficiecircncia da hipeacuterbole para criaccedilatildeo de um efeito ainda mais hiperboacutelico foi tambeacutem explorado por Oviacutedio em sua poesia de exiacutelioccxxv

Apoacutes percorrer essas seis espeacutecies Quintiliano passa ao tratamento das hipeacuter-boles para diminuiccedilatildeo que satildeo na verdade as mesmas espeacutecies da amplificaccedilatildeo poreacutem com sentido negativo Para tanto satildeo citados dois exemplos ldquomal se sustinham nos ossosrdquo (vix ossibus haerent) de Virgiacutelio Eacutecloga 3103 e de um livro perdido de Ciacutecero uma passagem que brinca com o tamanho de um terreno que pode ser medido com uma funda e mais do que isso eacute comparaacutevel ao buraco de uma funda explorando o jogo lexical entre fundum (terreno) e funda (funda pequena arma de arremesso) No primeiro caso temos uma hipeacuterbole plus facto enquanto no segundo caso uma meta--hipeacuterbole

Em seguida a exposiccedilatildeo deixa a tipologia de lado e passa a advertir sobre os perigos da figura Deve-se usar a hipeacuterbole de acordo com a tradiccedilatildeo o usual (non tamen esse debet ultra modum) e com muita cautela pois eacute muito faacutecil cair em ldquoca-cozeliardquo ccxxvi ou seja no emprego errado ou abusivo do recurso Ligada ao risco que a figura conteacutem estaacute sua caracteriacutestica de ser uma mentira que natildeo engana (mentiri hyperbolen nec ita ut mendacio facere velit) o que gera alguma dificuldade junto agrave verossimilhanccedila do discurso os leitores e ouvintes perceberatildeo que se trata de uma mentira ou de um exagero e por isso o efeito precisa ser muito bem calculado

O mais das vezes a hipeacuterbole carrega consigo tambeacutem um efeito de riso Caso esse riso seja intencional o emprego eacute sem duacutevida uma virtude (urbanitatis) contudo se o orador ou poeta elabora uma hipeacuterbole tentando ser seacuterio e ainda assim causa o riso natildeo passa de uma ingenuidade (stultitiae) Essa consideraccedilatildeo sobre o sentido risiacutevel da hipeacuterbole eacute inaugural em Quintiliano pelo menos em relaccedilatildeo aos tratadistas anteriores a que temos acesso hoje serve tambeacutem como ferramenta uacutetil para analisar as passagens hiperboacutelicas presentes na produccedilatildeo literaacuteria da eacutepoca em especial de Oviacutedio e dos autores neronianos cuja utilizaccedilatildeo recorrente da figura tem sido por ve-zes considerada afetaccedilatildeo ou decadecircncia poeacutetica

Quintiliano identifica a hipeacuterbole no linguajar comum das pessoas desprovidas de instruccedilatildeo formal (ineruditos et rusticos) e com isso sustenta a teoria ciceroniana de que as figuras de linguagem satildeo da natureza orgacircnica da liacutengua sendo corriquei-ramente usadas para os efeitos de comunicaccedilatildeo e expressividadeccxxvii A organicidade da hipeacuterbole estaacute na base de sua principal funccedilatildeo conseguir dizer aquilo que natildeo pode ser dito aquilo para o que natildeo existem palavras suficientes (conceditur enim amplius

dicere quantum est non potest) Pois na poesia no discurso oratoacuterio ou mesmo na fala comum do dia a dia eacute melhor exagerar do que dizer algo aqueacutem daquilo que se precisa expressar (melius ultra quam citra stat oratio) porque em geral dizer algo aqueacutem equivale a nada dizer no sentido de natildeo se efetivar uma comunicaccedilatildeo qualquer

Com isso Quintiliano encerra o tratamento da hipeacuterbole e dos tropos em ge-ral e conclui o oitavo livro da Institutio Ao longo dos dez paraacutegrafos que compotildeem a exposiccedilatildeo o tratadista discorre sobre a definiccedilatildeo as espeacutecies os efeitos a natureza e a funccedilatildeo da hipeacuterbole Fica em aberto ainda que de maneira intencional a classificaccedilatildeo tipoloacutegica seria a hipeacuterbole uma figura um ornamento ou um tropo No quarto capiacute-tulo do livro 8 como vimos Quintiliano diz que a hipeacuterbole pode ser tratada no acircmbito do ornamento mas que ele iraacute tratar no acircmbito dos tropos seguindo uma ordenaccedilatildeo tradicional No entanto ao comeccedilar a exposiccedilatildeo ele diz que a hipeacuterbole eacute um orna-mento e depois iraacute se referir a ela como figura ou como tropo A partir dos exemplos arrolados eacute possiacutevel entender que o tratadista entende a hipeacuterbole nas duas chaves de ornamento e de tropo pois ela aparece tanto em situaccedilotildees em que o sentido proacuteprio da palavra natildeo se modifica (o que se configura um ornamento) como em situaccedilotildees em que o sentido proacuteprio de fato de modifica (o que se configura um tropo) O termo ldquofi-gurardquo por sua vez aparece ao longo do trecho em sentido pouco especiacutefico indicando que pode compreender em sua semacircntica tanto o ornamento como o tropo

A hipeacuterbole eacute definida como o aumento elegante ou decoroso da verdade o que faz dela uma mentira revelada jaacute exposta em si mesma sem intenccedilatildeo de enganar Suas espeacutecies satildeo a simples a semelhanccedila a comparaccedilatildeo a insinuaccedilatildeo a metaacutefora e a meta-hipeacuterbole Seu efeito para aleacutem do embelezamento e do poder de persuasatildeo do discurso pode ser tambeacutem o riso A sua natureza eacute orgacircnica no sentido em que a figura nasce de maneira espontacircnea na fala corriqueira de qualquer indiviacuteduo e disso resulta sua funccedilatildeo que reside em expressar aquilo que natildeo pode ser expresso Por isso a hipeacuterbole consta entre as mais ousadas das figuras por meio do exagero ela quebra o limite do criacutevel e verdadeiro para alccedilaacute-lo arremessaacute-lo ao alto em um movimento em direccedilatildeo ao incriacutevel ao impossiacutevel ao intangiacutevel movimento esse que somente a linguagem eacute capaz de fazer

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Hino Homeacuterico 2a Demeacuteter

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Leonardo Antunes

Ao traduzir os Hinos Homeacutericos empreguei uma espeacutecie hexacircmetro dactiacutelico vernaacuteculo de que Carlos Alberto Nunes jaacute fizera uso em suas traduccedilotildees da Iliacuteada da Odisseia e tambeacutem da Eneida de Virgiacutelio 118

Trata-se de um verso dactiacutelico de 16 siacutelabas (seguindo o modelo de contagem de Castilho)119 com acentos na primeira quarta seacutetima deacutecima deacutecima terceira e (como natildeo poderia deixar de ser) deacutecima sexta siacutelaba120

Com isso ignora-se uma peculiaridade importante do verso grego a possi-bilidade de contraccedilatildeo das siacutelabas breves dos daacutectilos em uma siacutelaba longa Poreacutem a soluccedilatildeo oferece bastante espaccedilo para que se trabalhe o texto e possui uma sonoridade singular fazendo com que seja a meu ver consistente para a traduccedilatildeo de hexacircmetros dactiacutelicos empenhada em imitar seu metroritmo121

Como exemplo ilustrativo cito o verso 49 do primeiro canto da Iliacuteada na tra-duccedilatildeo de Nunes

Do ar co de pra ta co me ccedila a ir ra diar -se um clan gor pa vo ro so

Sendo uma traduccedilatildeo que busca ser poeacutetica minha preocupaccedilatildeo principal ao traduzir estes hinos para o Portuguecircs foi a de construir um texto eufocircnico buscando natildeo soacute uma cadecircncia agradaacutevel de sons mas tambeacutem vocaacutebulos que se encadeassem de modo natural dentro do ritmo escolhido

118 Oliva Neto e Nogueira (2013) possuem um excelente artigo que investiga usos anteriores ao de Nunes para o hexacircmetro dactiacutelico vernaacuteculo119 Antes do tratado de Castilho (1858) contavam-se as siacutelabas poeacuteticas do verso lusoacutefono agrave maneira espanhola tomando a terminaccedilatildeo paroxiacutetona (grave) como o modelo para nomeaacute-lo Assim o que hoje conhecemos como decassiacutelabo era antes conhecido como hendecassiacutelabo Apoacutes o trato de Castilho passou-se a usar a maneira francesa de contar tomando por modelo a terminaccedilatildeo oxiacutetona (aguda) de um verso para nomeaacute-lo120 Por vezes o leitor sentiraacute necessidade de forccedilar algum desses acentos em especial o primeiro121 Outras soluccedilotildees meacutetricas incluem (mas natildeo se resumem a) o verso composto por duas redondilhas maiores com que Andreacute Malta (2000 e 2006) traduziu partes da Iliacuteada o hexacircmetro anapeacutestico de Jair Gramacho em sua traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos (2003) o hexacircmetro dactiacutelico com possibilidade de uma siacutelaba aacutetona inicial empregado por Eacuterico No-gueira em sua traduccedilatildeo dos Idiacutelios de Teoacutecrito (2012) o pentacircmetrohexacircmetro dactiacutelico-trocaico proposto por Marcelo Taacutepia em seu estudo de possibilidades riacutetmicas para a traduccedilatildeo de Homero (2012) e tambeacutem empregado apenas como hexacircmetro por Guilherme Gontijo Flores em suas traduccedilotildees das Odes de Horaacutecio (2014) e por Bruno Palavro em sua tra-duccedilatildeo da Teogonia de Hesiacuteodo (2019) o dodecassiacutelabo usado por Haroldo de Campos e por Trajano Vieira ao traduzirem respectivamente a Iliacuteada e a Odisseia e last but not least o decassiacutelabo com que Manuel Odorico Mendes inaugurou no seacuteculo XIX a tradiccedilatildeo de traduccedilotildees de Homero em liacutengua portuguesa aleacutem de tambeacutem ter traduzido a Eneida de Virgiacutelio da mesma forma

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Canto Demeacuteter de belos cabelos deidade solenejunto da filha de esguios tornozelos a quem Edoneuarrebatou por presente de Zeus de ampla vista troantelonge Demeacuteter de espada dourada de fruto brilhantequando brincava entre as oceaninas de bustos profundosde colher flores de rosa accedilafratildeo e violetas bonitassobre um gramado macio e de iacuteris bem como jacintoe de narciso ndash num dolo de Gaia agrave garota florentedentro do plano de Zeus alegrando o que tudo recebe ndashmaravilhoso e brilhante um espanto de ver para todospara os eternos divinos e para os humanos mortaisDele a partir das raiacutezes cem brotos de flor despontavamDuacutelcido odor exalava tatildeo doce que tudo do ceacuteuagrave vasta terra e ateacute a onda salina do mar lhe sorriuMaravilhada buscou alcanccedilaacute-lo com ambas as matildeosbelo ornamento Poreacutem a vastiacutevia terra se abriujunto agrave planiacutecie de Nisa e o que tudo reteacutem irrompeucom montaria imortal o Cronida de muacuteltiplos nomesTendo-a tomado contraacuterio agrave vontade ao palaacutecio douradofoi-se com ela em lamentos Gritava com voz incessantesuacuteplica ao pai que de Crono nasceu o mais alto e mais nobreNenhum dos deuses eternos nenhum dos humanos mortaispocircde escutar sua voz nem olivas de frutos brilhantesmas a donzela nascida de Perses de tenro pensarHeacutecate do diadema esplendente da gruta a escutoue Heacutelios tambeacutem o senhor que de Hipeacuterion nasceu reluzenteouve o pedido da moccedila ao pai Crocircnida mas apartadodos demais deuses estava em seu templo onde muitos suplicama receber oferendas venustas dos homens mortaisContra a vontade a levava (seguindo um alvitre de Zeuspai da donzela e irmatildeo do que tudo reteacutem e recebe)com imortal montaria o Cronida de muacuteltiplos nomesQuanto ainda pocircde mirar para terra e pro ceacuteu estreladoe para o mar de correntes possantes repleto de peixese para o brilho do sol ela teve esperanccedila de vera matildee zelosa e a famiacutelia dos deuses eternossurgentestanto a esperanccedila acalmava-lhe a mente sobeja na dor e ressoaram os cumes dos montes e o fundo do marjunto da voz imortal escutou-lhe sua matildee senhorilDor aguccedilada assaltou-lhe no seu coraccedilatildeo Das madeixasambrosiais a mantilha rasgou com as matildeos em pedaccedilosde ambos os ombros lanccedilou para o chatildeo o seu manto ciacircnicoe disparou como um paacutessaro ao longo da terra e das aacuteguasa procurar Mas dizer a verdade natildeo houve ningueacutemdentre os divinos nem dentre os humanos mortais que oquisesse nem dentre as aves ndash nenhuma lhe foi mensageiro ve-raz

Por nove dias depois pela terra a senhora Demeacuteterfoi-se vagando com tochas acesas levadas agraves matildeosNem de ambrosia jamais nem de neacutectar deliacutecia potaacutevelse alimentou sofredora nem aacutegua em seu corpo aspergiuMas quando a deacutecima aurora chegou ateacute ela brilhanteHeacutecate veio encontraacute-la trazendo luzeiros nas matildeose anunciando-lhe entatildeo proferiu a palavra e falouldquoDona Demeacuteter que guia as sazotildees donataacuteria de luzquem dentre os deuses celestes ou dentre os humanos mortaisrapta Perseacutefone e causa-te dor para o teu coraccedilatildeoVoz eu ouvi mas natildeo pude contudo enxergar com os olhosquem o seria De pronto professo-te tudo sem errordquoHeacutecate assim lhe falou mas natildeo houve resposta em discursovinda da filha de Reia que subitamente com elavai-se com tochas acesas brilhando portadas nas matildeosA Heacutelios chegaram vigia dos deuses bem como dos homensFrente aos cavalos puseram-se e a deusa entre as deusas lhedisseldquoHeacutelios ao menos respeita-me deusa que sou se jamaisminhas palavras ou feitos ao teu coraccedilatildeo te aqueceramMoccedila eu gerei um rebento tatildeo doce esplendente na formaDela pelo eacuteter infeacutertil eu ouvi um gemido adensadocomo sofresse poreacutem com os olhos natildeo pude miraacute-laTu todavia por tudo que existe na terra e no mardo alto do eacuteter divino perscrutas usando teus raiosDiz-me sem falha o querido rebento ndash se acaso tu viste ndashquem apartado de mim agarrando em forccedilosa violecircnciafoi que o levou se um dos deuses ou um dos humanos mortaisrdquoDisse-lhe assim Em resposta o nascido de Hipeacuterion falou-lheldquoFilha de Reia de belos cabelos senhora Demeacutetertu saberaacutes pois venero-te muito e de ti me apiedosocircfrega pela menina de esguio tornozelo natildeo outrofoi causador dentre eternos senatildeo o nubiacutecogo Zeusque a concedeu para Hades chamaacute-la de esposa formosadeu-a ao irmatildeo que por vez para o fundo do breu nevoentorapta-a e a carrega em seu carro por mais que ela muito gritasseCessa contudo divina esse ingente gemido Natildeo devester tanta coacutelera em vatildeo dessa forma Natildeo eacute um improacutepriogenro entre eternos aquele Edoneu o de muacuteltiplos nomeseacute teu irmatildeo foi gerado em conjunto tambeacutem ndash quanto agraves honrasque ele ganhou quando em trecircs a partilha foi feita de iniacutecio ndashentre os que vivem consigo seu lote eacute ser rei sobre todosrdquoTendo assim dito chamou os cavalos Por sob ameaccedilaslogo carregam o carro veloz quais aliacutegeras avesNela vem dor mais terriacutevel e infame no seu coraccedilatildeoPelo Cronida de nuvens escuras irada a tal pontoela apartou-se da grege divina e do Olimpo elevado

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indo agraves cidades dos homens e para seus fartos cultivosbranda em beleza por longo interstiacutecio Ningueacutem dos varotildeesa distinguiu quando a viu nem das damas de funda cinturaantes de que ela chegasse na casa do experto Celeuque era senhor nesse tempo de Elecircusis fragrante em incensoCom coraccedilatildeo dolorido sentou-se por perto da estradajunto do poccedilo da virgem de que os cidadatildeos aduavamnum sombreado debaixo de onde cresciam olivasassemelhada a uma velha vetusta que da gestaccedilatildeojaacute se gastou e dos dotes da amante de laacuteurea Afrodite da qualidade das amas de reis que ministram as leise governantas de infantes ao longo de ecoantes alcovasViram-na as filhas do filho nascido de Elecircusis Celeuvindo por aacutegua de faacutecil extraccedilatildeo que depois levariamdentro de jarras de bronze a caminho da casa paternaQuatro elas eram quais deusas ornadas na flor juvenilbela Demoacute e Caliacutedice junto a Clesiacutedice e aindaCalitoeacute que entre todas as outras nascera primeiroNatildeo a souberam os deuses satildeo aacuterduos de ver por mortaisPondo-se proacuteximas dela disseram palavras aladasldquoQuem eacutes e donde anciatilde que nasceste entre os homensde outroraQual a razatildeo de partires da poacutelis e nem das moradaste aproximares Aqui haacute mulheres nas casas vultosasvelhas assim como tu bem como outras mais jovens tambeacutemAmbas teriam a ti por amiga em palavras e em atosrdquoIsso disseram Entatildeo respondeu a senhora das deusasldquoFilhas queridas ndash quem quer que voacutes fordes em meio agravesmulheres ndasheu vos sauacutedo e vos digo ademais que natildeo eacute vergonhosopronunciardes discursos dizendo palavras verazesEu sou chamada Dosoacute Deu-me o nome a senhora maternaVim logo agora de Creta no dorso comprido do marmesmo que natildeo o quisesse forccedilada em forccedilosa violecircnciaHomens ladinos levaram-me embora Depois em seguidaforam com raacutepida nau para Toacuterico Laacute as mulheresdesembarcaram em grupos seguidas por elese preparavam banquete do lado da proa da nauMas coraccedilatildeo natildeo me aprouve o repasto gentil para menteDesembarcando em segredo atraveacutes da melacircnica terraeu escapei dos meus mestres soberbos que enfim natildeo lucrassemcom minha honra por me carregarem agrave venda no marVim para caacute dessa forma uma errante Tampouco sabiaqual era a terra e quem eram aqueles que aqui satildeo nascidosQue vos concedam contudo os que fazem morada no Olimpotodos varotildees que vos sejam esposos e filhos de prolecomo desejam os pais mas de mim tende pena meninas

Isso me estabelecei claramente que assim eu o saibafilhas queridas zelosas de quem eacute a casa a que chegoDe qual varatildeo ou senhora Que assim eu os sirva zelosanos afazeres cabiacuteveis a velhas mulheres fazeremPara um bebecirc neonato levado em meus braccedilos dobradosbelo cuidado daria e tambeacutem manteria o palaacutecioesticaria os lenccediloacuteis no interior das alcovas bem-feitasdo meu senhor e os trabalhos iria ensinar agraves mulheresrdquoDisse a deidade Depois respondeu a virgiacutenea donzeladita Caliacutedice que era a mais bela entre as filhas CeleidasldquoMatildee os presentes dos deuses por mais que soframos agrave forccedilanoacutes suportamos humanos pois satildeo bem mais fortes que noacutesVou te dizer claramente isso tudo e informar-te por nomequais os varotildees a quem haacute um enorme poder nesta terraeles que tecircm o respeito do povo e a mantilha da poacutelissalvam por meio do alvitre e da sua justiccedila escorreitaambos Triptoacutelemo de resoluta vontade e Dioacuteclese Polixeno tambeacutem junto do irreprovaacutevel Eumolpojunto de Doacutelico bem como de nosso pai varonilHaacute para todos esposas que cuidam do lar nos palaacuteciosDentre elas todas natildeo haacute quem iria agrave primeira das vistasdesestimando-te a forma da casa por isso expulsar-temas sim iratildeo receber-te pois eacutes claramente deiformeSe tu quiseres espera que iremos agrave casa paternapara informar nossa matildee Metaneira de funda cinturadesses assuntos de todos a fim de que sejas chamadaagrave nossa casa natildeo tendo que uma outra morada buscarEla possui um soacute filho tardio no palaacutecio bem-feitotardinascido mas muito bem-vindo apoacutes muacuteltiplas precesSe tu puderes criaacute-lo ateacute que ele se torne um rapazmui facilmente qualquer das femiacuteneas mulheres ao ver-tete invejaria satildeo daacutedivas tais que em criaacute-lo teriasrdquoDisse-lhe assim Assentiu por sua vez com o rosto Luzentesbaldes entatildeo tendo enchido com aacutegua carregam briosasLogo chegaram no enorme palaacutecio paterno e contaramraacutepido agrave matildee o que viram e ouviram Mais raacutepido aindavindo ordenou que a chamassem a fim de ter paga infinitaTal como cervos ou mesmo bezerros que na primaveravatildeo saltitando num prado aplacado o desejo com pastoelas assim segurando nas dobras das vestes amaacuteveisiam correndo por via deserta Ao redor os cabelossobre seus ombros fluiacuteam semelhos agrave flor do accedilafratildeoProacuteximo agrave estrada encontraram a deusa esplendente ondea haviamantes deixado Depois para a casa do pai estimadoforam agrave frente Detraacutes com o seu coraccedilatildeo doloridoela seguia com rosto abaixado Ao redor um vestido

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cor do oceano envolvia-lhe os peacutes delicados de deusaLogo a mansatildeo de Celeu alcanccedilaram aluno de ZeusForam adentro do poacutertico ateacute onde a matildee senhoriljunto agrave coluna do teto de firme feitura sentavacom um bebecirc neonato no colo Acorreram-lhe as filhasMas quando pocircs os seus peacutes na soleira alcanccedilou o batentecom a cabeccedila e um divino esplendor preencheu os umbraisPor reverecircncia respeito e esverdeado temor foi tomadaDe seu assento se ergueu e ordenou que ela ali se sentasseMas natildeo Demeacuteter que guia as sazotildees donataacuteria de luznatildeo desejou se assentar sobre o trono de aspecto brilhantemas se mantinha silente com seus belos olhos baixadosantes de Iambe sabendo cuidados dispocircr para elaoutra cadeira do lado e cobri-la com peles argecircnteasLaacute se sentando mantinha seguro nas matildeos o seu veacuteuPor muito tempo sofrendo silente quedou sobre o bancoNem por palavras saudava as pessoas tampouco por gestosmas sem risada mantendo o jejum sem comer nem beberela minguava agrave saudade da filha de funda cinturaantes de Iambe sabendo cuidados por meio de troccedilasmuitas fazendo piadas mudar a solene senhorapara se rir e sorrir e ter acircnimo mais benfazejo(Ela mais tarde tambeacutem num porvir agradou seus humores)Oferecia-lhe entatildeo Metaneira uma taccedila que encheracom vinho doce qual mel mas natildeo quis Disse improacuteprio tomarvinho vermelho Mandava que dessem cevada com aacuteguamistas a fim de tomar com um toque gentil de poejoFeita a poccedilatildeo ofertou-a conforme pedira agrave deidadeTendo a aceitado por sacro costume Demeacuteter excelsa Principiou Metaneira de bela cintura a falar-lheldquoSalve mulher Eu natildeo temo que vinda de maus genitoressejas mas sim de excelentes pois vecirc-se respeito em teus olhose gratidatildeo como se descendesses de reis julgadoresMas os presentes dos deuses por mais que soframos agrave forccedilanoacutes suportamos humanos pois tem-se o pescoccedilo no jugoMas como aqui tu chegaste teraacutes tudo quanto eu puder cria meu filho nascido tardio para aleacutem da esperanccedilaeste que os deuses mandaram que eacute muito querido por mimSe tu puderes criaacute-lo ateacute que ele se torne um rapazmui facilmente qualquer das femiacuteneas mulheres ao ver-tete invejaria satildeo daacutedivas tais que em criaacute-lo teriasrdquoPor sua vez proferiu-lhe Demeacuteter de bela coroaldquoEu te sauacutedo mulher Que os divinos te deem benessesReceberei de bom grado o teu filho conforme me ordenasHei de criaacute-lo e jamais por descuido da sua babaacutehaacute de um feiticcedilo afligi-lo nem mesmo lsquoo que ceifa por baixorsquopois sei de antiacutedoto muito mais forte que lsquoo ceifa-madeirarsquo

sei de excelente resguardo a feiticcedilo de muacuteltiplas doresrdquoTendo dessarte falado aceitou-o no peito olorosocom suas matildeos imortais Em seu iacutentimo alegra-se a matildeeDessa maneira passou a criar no palaacutecio o brilhantefilho do arguto Celeu Demofonte que de Metaneirabem-cinturada nascera Cresceu como um par dos divinospatildeo natildeo comia nem mesmo sugava do leite da matildeevisto que ao longo do dia Demeacuteter de bela coroacom ambrosia o ungia qual fosse rebento de um deustendo-o bem junto do peito e insuflando-o com sopro adoccediladomas pela noite encobria-o em chamas qual fosse um ticcedilatildeosem que seus pais o soubessem Crescia-lhes como um prodiacutegiotanto precoce cresceu parecia ser um dos divinosE com efeito o teria tornado imortal sem velhicecaso com insensatez Metaneira de bela cinturaespionando de noite a partir de seu quarto olorosonatildeo os notasse Mas ela gritou e espalmou suas coxasapavorada por conta do filho e afligida em seu peitoe lamentando-se entatildeo proferiu as palavras aladasldquoMeu Demofonte a estrangeira com chamas ingentes te encobree me coloca em gemidos e preocupaccedilotildees lutuosasrdquoDisse dessarte em lamento e a divina entre as deusas a ouviuColerizada com ela Demeacuteter de bela coroatendo tirado do fogo com matildeos imortais o meninoque ela gerara na casa jaacute quando natildeo tinha esperanccedilalanccedila-o no chatildeo irritada no seu coraccedilatildeo sobremodoe ao mesmo tempo maldiz Metaneira de bela cinturaldquoNeacutescios humanos Ineptos em reconhecer a medidade quanto bem sobreveacutem para voacutes tanto quanto do malTu pela tua insciecircncia causaste incuraacutevel feridaSaiba-se a jura dos deuses pela aacutegua implacaacutevel do Estigepois imortal e tambeacutem sem velhice por todos os diastua crianccedila eu teria tornado com honra indeleacutevelOra natildeo mais poderaacute se evadir do destino e da morteHonra indeleacutevel lhe iraacute persistir para sempre contudopor ter subido em meu colo e dormido amparado em meusbraccedilosAo lhe chegarem as Horas e os anos findando seu cursovede que os filhos de Elecircusis com guerras e gritos terriacuteveisvatildeo engajar-se uns aos outros constantes por todos os diasEu sou Demeacuteter quem honras deteacutem geratriz dos maioresjuacutebilos para imortais e mortais e tambeacutem benefiacuteciosVamos agora Que um templo bem grande e um altar logo abaixoos cidadatildeos sob a poacutelis e as altas muralhas me faccedilamsobre o Caliacutecoro na cumeeira de um monte elevadoRitos secretos eu mesma vos ensinarei que depoisao perfazecirc-los sem maacutecula ireis alegrar meu sentidordquo

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Tendo assim dito a deidade alterou sua forma e estaturaposta a velhice de lado Ao redor exalava belezadesde os vestidos fragrantes um amabiliacutessimo olorse dissipava de longe luzia da derme imortalbrilho da deusa dourados cabelos cresciam-lhe aos ombroscom o claratildeo preencheu-se a morada robusta qual raioFoi-se em seguida da casa Jaacute dela os joelhos vacilampermaneceu muito tempo sem voz nem sequer do meninotardinascido lembrou de tomaacute-lo de volta do chatildeoSuas irmatildes todavia escutando-lhe a voz lamentaacutevellogo saltaram dos leitos cobertos entatildeo uma delastendo-o tomado nas matildeos o coloca de junto do peitooutra reacende a lareira e a terceira com peacutes delicadoslogo se apressa em trazer sua matildee do aposento fragranteAglomeradas em torno lavavam-no enquanto choravadando-lhe muito carinho mas seu coraccedilatildeo natildeo calmavaeram piores as aias e as amas que agora o guardavamElas entatildeo toda a noite aplacavam a deusa famosatrecircmulas pelo terror No momento em que a Aurora surgiuao poderoso Celeu infaliacuteveis palavras disseramcomo mandara a deidade de bela coroa DemeacuteterEle depois de chamar para a aacutegora o povo abundantemanda que um templo opulento a Demeacuteter de belos cabelosfaccedilam tambeacutem um altar sobre o cume de um monte elevadoEles de pronto escutaram e lhe obedeccedilaram aos ditosComo mandara fizeram e o filho cresceu como um numeQuando por fim terminaram e deram por feito o trabalhoforam-se ao lar cada qual para o seu mas a loura Demeacuteterlaacute se sentando apartada de todos os outros ditososinda minguava agrave saudade da filha de funda cinturaO mais terriacutevel dos anos na terra de farto sustentofez para os homens um ano de catildeo As sementes a terranatildeo germinava ocultava-as a bem-coroada DemeacuteterMuitos arados recurvos os bois arrastavam em vatildeoMuita cevada brilhante no chatildeo se jogou sem sucessoEla teria arrasado a linhagem dos homens mortaispela estiagem terriacutevel privando das honras famosase sacrifiacutecios aqueles que fazem morada no OlimpoZeus natildeo houvesse notado e no espiacuterito entatildeo compreendidoIacuteris primeiro aurialada enviou para que ela chamassea de adoraacutevel figura Demeacuteter de belos cabelosDisse Ela ao mando de Zeus do Cronida de nuvens escurasobedeceu e cruzou o entremeio com raacutepidos peacutesLogo chegou agrave cidade eleusina fragrante de incensoonde no templo encontrou com vestido soturno Demeacutetere lhe falou proferindo as seguintes palavras aladasldquoZeus pai te chama Demeacuteter o saacutebio em saberes perenes

para que vaacutes agrave famiacutelia dos deuses eternossurgentesVai E que natildeo se descumpra a palavra de Zeus que lhe digordquoDisse-lhe assim suplicante mas seu coraccedilatildeo natildeo consenteMais uma vez o pai manda-lhe os deuses ditosos e eternostodos um deus atraacutes de outro Partindo ordenados assimeles chamavam-na e davam presentes venustos e vaacuteriose honras tambeacutem tantas quantas pudesse querer entre eternosMas ningueacutem pocircde suadir as entranhas nem o pensamentodela iracunda no seu coraccedilatildeo rechaccedilava os discursospois prometera jamais ascender para o Olimpo fragrantenem enviar para cima de dentro da terra a colheitaantes de ver com seus olhos a filha de belo semblanteZeus que ressoa profundo o de vasta visatildeo quando o ouviufez com que o auricetrado argicida para o Eacuterebo fosseque ele falando de perto palavras suaves com Hadesexconduzisse Perseacutefone augusta do breu nevoentorumo da luz junto aos deuses a fim de que entatildeo sua matildeeao contemplaacute-la com seus proacuteprios olhos cessasse o rancorHermes natildeo desacatou mas de suacutebito ao fundo da terraele partiu apressado baixando do assento do OlimpoLogo encontrou o senhor da morada no seu interiorem um sofaacute reclinado com a pudorosa consortemuito contraacuterio agrave vontade saudosa da matildee que agrave distacircnciaplanos terriacuteveis pensava por atos dos deuses ditososPondo-se proacuteximo dele falou-lhe o potente ArgicidaldquoHades de negros cabelos reinante entre os jaacute perecidosZeus pai mandou-me guiar para fora Perseacutefone augustado Eacuterebo para com eles a fim de que a matildee vendo a moccedilacom olhos proacuteprios refreie o rancor e sua coacutelera horriacutevelcontra os eternos pois ela intenciona um ingente trabalhoarruinar a impotente famiacutelia dos homens terrestresao ocultar as sementes na terra privando das honrasos imortais Ela tem um terriacutevel rancor nem aos deusesjunta-se mas no interior de seu templo fragrante apartadasenta-se enquanto deteacutem a cidade rochosa de ElecircusisrdquoDisse dessarte Sorriu-lhe Edoneu que entre os iacutenferos reinacom os sobrolhos mas natildeo descumpriu o comando de Zeus reipois de imediato ordenou a Perseacutefone percipienteldquoVai-te Perseacutefone para tua matildee de vestido soturnotendo uma forccedila gentil em teu peito e no teu coraccedilatildeonem tenhas oacutedio excessivo demais do que aos outros por mimNatildeo te serei um consorte de nada indevido entre eternosvisto que sou mesmo irmatildeo de Zeus pai Quando aqui teencontrarestu seraacutes mestre de todos de quantos viverem e andareme honras ainda teraacutes entre eternos maiores que todasDentre os injustos teraacute pagamento por todos os dias

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quem natildeo fizer sacrifiacutecios a fim de agradar teu poderfeitos sem maacutecula todos cumpridos com dons adequadosrdquoDisse dessarte Sorriu-lhe Perseacutefone muito prudenterapidamente se ergueu de alegria mas ele contudodoces sementes lhe deu de romatilde que comesse em segredosendo cuidoso que natildeo demorasse por todos os diasjunto de novo a Demeacuteter augusta de peplo soturnoOs seus cavalos agrave frente do carro dourado no jugopocircs imortais Edoneu que exercita o comando de muitosEla subiu para o carro e a seu lado o potente Argicidatendo tomado nas matildeos tanto as reacutedeas quanto o chicotefoi-se atraveacutes do palaacutecio e partiu seus cavalos voaramAtravessaram velozes estradas compridas Nem marnem mesmo as aacuteguas dos rios nem os vales gramados dosmontesnem as montanhas puderam deter seus cavalos eternosque sobre todos singraram os ares profundos correndoFecirc-los parar onde estava Demeacuteter de bela coroalogo de frente do templo fragrante Quando ela a notoufoi-se correndo qual mecircnade ao longo de um monte silvosoJaacute por seu turno Perseacutefone ao ver os beliacutessimos olhosde sua matildee afastou-se de carro e cavalos num saltopara alcanccedilaacute-la e lanccedilou-se-lhe em torno ao pescoccediloabraccedilando-aMas ao reter sua filha querida no entorno das matildeosseu coraccedilatildeo desconfia de um dolo e recua em terrorLogo cessando o carinho em discurso lhe fez a perguntaldquoFilha encontrado-se ao fundo da terra tu natildeo me comestede um alimento Relata e natildeo guardes que as duas saibamospara que vinda da tua estadia com Hades horriacutevelpossas viver junto a mim e ao Cronida de nuvens escurastendo honrarias tambeacutem entre todos os outros eternosMas se comeste de novo voltando ao profundo da terratu moraraacutes por um terccedilo das Horas a cada um dos anose as outras duas ao lado de mim e dos outros eternosMas quando a terra com flores fragrantes e primaverisde toda sorte florir novamente do breu nevoentotu voltaraacutes grande espanto aos divinos e aos homens mortaisMas dize como levou para baixo do breu nevoentoe com que dolo raptou-te o potente que tudo reteacutemrdquoDisse-lhe entatildeo em resposta Perseacutefone muito venustaldquoEu para ti minha matildee vou dizer por completo a verdadeQuando a mim Hermes chegou mensageiro veloz que traz sortepara agrave presenccedila do Crocircnida pai e dos outros celestesdo Eacuterebo me retirar que me vendo com teus proacuteprios olhosapaziguasses rancor aos eternos e coacutelera horriacuteveleu de imediato saltei de alegria Mas ele em segredo

doces sementes me deu de romatilde com que me alimentassee a contragosto por meio de forccedila forccedilou-me a comecirc-lasComo levou-me por soacutelida astuacutecia do filho de Cronomeu proacuteprio pai carregando-me para o profundo da terraeu contarei e direi sobre tudo conforme me pedesTodas de fato brincaacutevamos sobre um gramado amoraacutevelFano e Leucipo assim como Electra e tambeacutem Ianteacutejunto a Melite e Iaqueacute com Rodeia e Calirroeacutecom Meloboacutesis e Tique e com Ociroeacute rosto-em-flore com Criseida Ianeira Acaste e tambeacutem Admetee Rodopeacute e Plutoacute e tambeacutem a amoraacutevel Calipsoe com Estige e Uracircnia e com Galaxaure adoraacuteveljunto de Palas guerreira e com Aacutertemis atiradoratodas brincaacutevamos de colher flores amaacuteveis nas matildeosentre o accedilafratildeo delicado e entre a iacuteris jacinto tambeacutembem como brotos de rosas e liacuterios espanto de vere de narciso que a terra gerava semelho a accedilafratildeoTudo eu colhia feliz mas a terra por baixo se abriudela saltou o senhor poderoso que tudo reteacutemque me levou para baixo da terra em seu carro douradomuito contraacuterio agrave vontade Na voz eu gritei estridoresEssa por mais que me doa te digo ser toda a verdaderdquoElas concordes em acircnimo entatildeo pelo resto do diamuito no seu coraccedilatildeo e em seu acircnimo se acalentaramcom calorosos abraccedilos cessando-se a dor em seu acircnimoMuita alegria uma a outra ofertava e tambeacutem recebiaAproximou-se-lhes Heacutecate do diadema esplendenteMuito abraccedilou a menina sagrada nascida a DemeacuteterDesde esse tempo a senhora lhe foi atendente e ministraZeus de amplo olhar que ressoa profundo enviou-lhes de nuacutencioReia de belos cabelos a fim de que agrave grei dos divinosela levasse Demeacuteter de escuro vestido Honrariaslhe prometeu quais pudesse querer entre os deuses eternose concordou que sua filha demore por cada um dos anosuma das triacuteplices partes abaixo do breu nevoentoe as outras duas ao lado da matildee e dos outros eternosDisse e a deidade natildeo desacatou as mensagens de ZeusRapidamente lanccedilou-se voando dos picos do OlimpoLogo chegou ateacute Raacuterio nutriz a mais rica das terrasantes poreacutem nesse tempo natildeo era nutriz mas inertetoda sem folhas A branca cevada encontrava-se ocultaplano que foi de Demeacuteter de esguios tornozelos Contudologo se iria cobrir com espigas compridas de trigoao florescer da estaccedilatildeo e os opiacuteparos sulcos da terralogo estariam repletos de gratildeos e de feixes de espigasLaacute sobreveio primeiro partindo do eacuteter infeacutertilMutuamente se viram contentes com acircnimo alegre

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Reia com seu diadema esplendente lhe disse o seguinteldquoVamos filhinha que Zeus de amplo olhar que ressoa profundochama-te junto da grei dos divinos Tambeacutem honrariaslhe prometeu quais puderes querer entre os deuses eternose concordou que tua filha demore por cada um dos anosuma das triacuteplices partes abaixo do breu nevoentoe as outras duas ao lado da matildee e dos outros eternosDisse cumprir-se dessarte e assentiu com a sua cabeccedilaVem minha filha Obedece o que digo De modo excessivonatildeo te enfureccedilas mais com o Cronida de nuvens escurasFaz com que cresccedilam os frutos nutrizes de pronto aos humanosrdquoDisse e Demeacuteter de bela coroa natildeo desobedeceLogo ela fez despontarem os frutos nos feacuterteis terrenosToda com folhas e flores tambeacutem a vastiacutessima terrase carregou Em seguida indo aos reis que ministram as leisela mostrou a Triptoacutelemo e para Dioacutecles ginetee para a forccedila de Eumolpo e a Celeu comandante de povosa liturgia dos ritos e a todos tambeacutem os misteacuteriosMas para forccedila de Eumolpo e a Celeu e tambeacutem a Dioacuteclesdeu ritos sacros que natildeo se transgridem nem mesmo se aprendemnem se proferem pois grande respeito aos divinos os calaProacutespero eacute aquele que os viu entre os homens que vivem na terramas incompleto quem natildeo participa dos ritos nem nuncatem bom destino morrendo debaixo do breu nevoentoLogo depois quando tudo perfez a divina entre os deusasfoi-se a caminho do Olimpo ao encontro dos outros divinosonde demoram do lado de Zeus que se apraz com trovotildeese junto agrave augusta e sagrada Muitiacutessimo proacutespero eacute quemeles soliacutecitos amam dos homens que vivem na terraLogo lhe enviam ao fogo do lar no seu grande palaacutecioPluto que aos homens mortais oferece abundacircncia e riquezaMas vamos laacute portadora da terra fragrante eleusinaParos marinha e a rochosa cidade de Antrona tambeacutemdona que cedes a luz que conduz as sazotildees Deo rainhatu e tambeacutem tua filha Perseacutefone muito venustapela canccedilatildeo meu sustento agradaacutevel soliacutecitas mandaOra de ti eu irei me lembrar e de uma outra canccedilatildeo122

122Δήμητρ᾽ ἠύκομον σεμνὴν θεόν ἄρχομ᾽ ἀείδειν αὐτὴν ἠδὲ θύγατρα τανύσφυρον ἣν Ἀιδωνεὺς ἥρπαξεν δῶκεν δὲ βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεύς νόσφιν Δήμητρος χρυσαόρου ἀγλαοκάρπου παίζουσαν κούρῃσι σὺν Ὠκεανοῦ βαθυκόλποις ἄνθεά τ᾽ αἰνυμένην ῥόδα καὶ κρόκον ἠδ᾽ ἴα καλὰ λειμῶν᾽ ἂμ μαλακὸν καὶ ἀγαλλίδας ἠδ᾽ ὑάκινθον νάρκισσόν θ᾽ ὃν φῦσε δόλον καλυκώπιδι κούρῃ Γαῖα Διὸς βουλῇσι χαριζομένη Πολυδέκτῃ θαυμαστὸν γανόωντα σέβας τό γε πᾶσιν ἰδέσθαι

ἀθανάτοις τε θεοῖς ἠδὲ θνητοῖς ἀνθρώποις τοῦ καὶ ἀπὸ ῥίζης ἑκατὸν κάρα ἐξεπεφύκει κὦζ᾽ ἥδιστ᾽ ὀδμή πᾶς τ᾽ οὐρανὸς εὐρὺς ὕπερθεν γαῖά τε πᾶσ᾽ ἐγελάσσε καὶ ἁλμυρὸν οἶδμα θαλάσσης ἣ δ᾽ ἄρα θαμβήσασ᾽ ὠρέξατο χερσὶν ἅμ᾽ ἄμφω καλὸν ἄθυρμα λαβεῖν χάνε δὲ χθὼν εὐρυάγυια Νύσιον ἂμ πεδίον τῇ ὄρουσεν ἄναξ Πολυδέγμων ἵπποις ἀθανάτοισι Κρόνου πολυώνυμος υἱός ἁρπάξας δ᾽ ἀέκουσαν ἐπὶ χρυσέοισιν ὄχοισιν ἦγ᾽ ὀλοφυρομένην ἰάχησε δ᾽ ἄρ᾽ ὄρθια φωνῇ

κεκλομένη πατέρα Κρονίδην ὕπατον καὶ ἄριστον οὐδέ τις ἀθανάτων οὐδὲ θνητῶν ἀνθρώπων ἤκουσεν φωνῆς οὐδ᾽ ἀγλαόκαρποι ἐλαῖαιdagger εἰ μὴ Περσαίου θυγάτηρ ἀταλὰ φρονέουσα ἄιεν ἐξ ἄντρου Ἑκάτη λιπαροκρήδεμνος Ἠέλιός τε ἄναξ Ὑπερίονος ἀγλαὸς υἱός κούρης κεκλομένης πατέρα Κρονίδην ὃ δὲ νόσφιν ἧστο θεῶν ἀπάνευθε πολυλλίστῳ ἐνὶ νηῷ δέγμενος ἱερὰ καλὰ παρὰ θνητῶν ἀνθρώπων τὴν δ᾽ ἀεκαζομένην ἦγεν Διὸς ἐννεσίῃσι πατροκασίγνητος Πολυσημάντωρ Πολυδέγμων ἵπποις ἀθανάτοισι Κρόνου πολυώνυμος υἱός ὄφρα μὲν οὖν γαῖάν τε καὶ οὐρανὸν ἀστερόεντα λεῦσσε θεὰ καὶ πόντον ἀγάρροον ἰχθυόεντα αὐγάς τ᾽ ἠελίου ἔτι δ᾽ ἤλπετο μητέρα κεδνὴν ὄψεσθαι καὶ φῦλα θεῶν αἰειγενετάων τόφρα οἱ ἐλπὶς ἔθελγε μέγαν νόον ἀχνυμένης περ ἤχησαν δ᾽ ὀρέων κορυφαὶ καὶ βένθεα πόντου φωνῇ ὑπ᾽ ἀθανάτῃ τῆς δ᾽ ἔκλυε πότνια μήτηρ ὀξὺ δέ μιν κραδίην ἄχος ἔλλαβεν ἀμφὶ δὲ χαίταις ἀμβροσίαις κρήδεμνα δαΐζετο χερσὶ φίλῃσι κυάνεον δὲ κάλυμμα κατ᾽ ἀμφοτέρων βάλετ᾽ ὤμων σεύατο δ᾽ ὥστ᾽ οἰωνός ἐπὶ τραφερήν τε καὶ ὑγρὴν μαιομένη τῇ δ᾽ οὔτις ἐτήτυμα μυθήσασθαι ἤθελεν οὔτε θεῶν οὔτε θνητῶν ἀνθρώπων οὔτ᾽ οἰωνῶν τις τῇ ἐτήτυμος ἄγγελος ἦλθεν ἐννῆμαρ μὲν ἔπειτα κατὰ χθόνα πότνια Δηὼ στρωφᾶτ᾽ αἰθομένας δαΐδας μετὰ χερσὶν ἔχουσα οὐδέ ποτ᾽ ἀμβροσίης καὶ νέκταρος ἡδυπότοιο πάσσατ᾽ ἀκηχεμένη οὐδὲ χρόα βάλλετο λουτροῖς ἀλλ᾽ ὅτε δὴ δεκάτη οἱ ἐπήλυθε φαινολὶς ἠώς ἤντετό οἱ Ἑκάτη σέλας ἐν χείρεσσιν ἔχουσα καί ῥά οἱ ἀγγελέουσα ἔπος φάτο φώνησέν τεπότνια Δημήτηρ ὡρηφόρε ἀγλαόδωρε τίς θεῶν οὐρανίων ἠὲ θνητῶν ἀνθρώπων ἥρπασε Περσεφόνην καὶ σὸν φίλον ἤκαχε θυμόν φωνῆς γὰρ ἤκουσ᾽ ἀτὰρ οὐκ ἴδον ὀφθαλμοῖσιν ὅστις ἔην σοὶ δ᾽ ὦκα λέγω νημερτέα πάνταὣς ἄρ᾽ ἔφη Ἑκάτη τὴν δ᾽ οὐκ ἠμείβετο μύθῳ Ῥείης ἠυκόμου θυγάτηρ ἀλλ᾽ ὦκα σὺν αὐτῇ ἤιξ᾽ αἰθομένας δαΐδας μετὰ χερσὶν ἔχουσα Ἠέλιον δ᾽ ἵκοντο θεῶν σκοπὸν ἠδὲ καὶ ἀνδρῶν στὰν δ᾽ ἵππων προπάροιθε καὶ εἴρετο δῖα θεάωνἠέλι᾽ αἴδεσσαί με θεὰν σύ περ εἴ ποτε δή σευ ἢ ἔπει ἢ ἔργῳ κραδίην καὶ θυμὸν ἴηνα κούρην τὴν ἔτεκον γλυκερὸν θάλος εἴδεϊ κυδρήν τῆς ἀδινὴν ὄπ᾽ ἄκουσα δι᾽ αἰθέρος ἀτρυγέτοιο ὥστε βιαζομένης ἀτὰρ οὐκ ἴδον ὀφθαλμοῖσιν ἀλλά σὺ γὰρ δὴ πᾶσαν ἐπὶ χθόνα καὶ κατὰ πόντον αἰθέρος ἐκ δίης καταδέρκεαι ἀκτίνεσσι νημερτέως μοι ἔνισπε φίλον τέκος εἴ που ὄπωπας ὅστις νόσφιν ἐμεῖο λαβὼν ἀέκουσαν ἀνάγκῃ οἴχεται ἠὲ θεῶν ἢ καὶ θνητῶν ἀνθρώπωνὣς φάτο τὴν δ᾽ Ὑπεριονίδης ἠμείβετο μύθῳῬείης ἠυκόμου θύγατερ Δήμητερ ἄνασσα εἰδήσεις δὴ γὰρ μέγα σ᾽ ἅζομαι ἠδ᾽ ἐλεαίρω ἀχνυμένην περὶ παιδὶ τανυσφύρῳ οὐδέ τις ἄλλος αἴτιος ἀθανάτων εἰ μὴ νεφεληγερέτα Ζεύς

ὅς μιν ἔδωκ᾽ Ἀίδῃ θαλερὴν κεκλῆσθαι ἄκοιτιν αὐτοκασιγνήτῳ ὃ δ᾽ ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα ἁρπάξας ἵπποισιν ἄγεν μεγάλα ἰάχουσαν ἀλλά θεά κατάπαυε μέγαν γόον οὐδέ τί σε χρὴ μὰψ αὔτως ἄπλητον ἔχειν χόλον οὔ τοι ἀεικὴς γαμβρὸς ἐν ἀθανάτοις Πολυσημάντωρ Ἀιδωνεύς αὐτοκασίγνητος καὶ ὁμόσπορος ἀμφὶ δὲ τιμὴν ἔλλαχεν ὡς τὰ πρῶτα διάτριχα δασμὸς ἐτύχθη τοῖς μεταναιετάειν τῶν ἔλλαχε κοίρανος εἶναιὣς εἰπὼν ἵπποισιν ἐκέκλετο τοὶ δ᾽ ὑπ᾽ ὀμοκλῆς ῥίμφα φέρον θοὸν ἅρμα τανύπτεροι ὥστ᾽ οἰωνοί Τὴν δ᾽ ἄχος αἰνότερον καὶ κύντερον ἵκετο θυμόν χωσαμένη δὴ ἔπειτα κελαινεφέι Κρονίωνι νοσφισθεῖσα θεῶν ἀγορὴν καὶ μακρὸν Ὄλυμπον ᾤχετ᾽ ἐπ᾽ ἀνθρώπων πόλιας καὶ πίονα ἔργα εἶδος ἀμαλδύνουσα πολὺν χρόνον οὐδέ τις ἀνδρῶν εἰσορόων γίγνωσκε βαθυζώνων τε γυναικῶν πρίν γ᾽ ὅτε δὴ Κελεοῖο δαΐφρονος ἵκετο δῶμα ὃς τότ᾽ Ἐλευσῖνος θυοέσσης κοίρανος ἦεν ἕζετο δ᾽ ἐγγὺς ὁδοῖο φίλον τετιημένη ἦτορ Παρθενίῳ φρέατι ὅθεν ὑδρεύοντο πολῖται ἐν σκιῇ αὐτὰρ ὕπερθε πεφύκει θάμνος ἐλαίης γρηὶ παλαιγενέι ἐναλίγκιος ἥτε τόκοιο εἴργηται δώρων τε φιλοστεφάνου Ἀφροδίτης οἷαί τε τροφοί εἰσι θεμιστοπόλων βασιλήων παίδων καὶ ταμίαι κατὰ δώματα ἠχήεντα τὴν δὲ ἴδον Κελεοῖο Ἐλευσινίδαο θύγατρες ἐρχόμεναι μεθ᾽ ὕδωρ εὐήρυτον ὄφρα φέροιεν κάλπισι χαλκείῃσι φίλα πρὸς δώματα πατρός τέσσαρες ὥστε θεαί κουρήιον ἄνθος ἔχουσαι Καλλιδίκη καὶ Κλεισιδίκη Δημώ τ᾽ ἐρόεσσα Καλλιθόη θ᾽ ἣ τῶν προγενεστάτη ἦεν ἁπασῶν οὐδ᾽ ἔγνον χαλεποὶ δὲ θεοὶ θνητοῖσιν ὁρᾶσθαι ἀγχοῦ δ᾽ ἱστάμεναι ἔπεα πτερόεντα προσηύδωντίς πόθεν ἐσσί γρῆυ παλαιγενέων ἀνθρώπων τίπτε δὲ νόσφι πόληος ἀπέστιχες οὐδὲ δόμοισι πίλνασαι ἔνθα γυναῖκες ἀνὰ μέγαρα σκιόεντα τηλίκαι ὡς σύ περ ὧδε καὶ ὁπλότεραι γεγάασιν αἵ κέ σε φίλωνται ἠμὲν ἔπει ἠδὲ καὶ ἔργῳὣς ἔφαν ἣ δ᾽ ἐπέεσσιν ἀμείβετο πότνα θεάων

τέκνα φίλ᾽ αἵ τινές ἐστε γυναικῶν θηλυτεράων χαίρετ᾽ ἐγὼ δ᾽ ὑμῖν μυθήσομαι οὔ τοι ἀεικὲς ὑμῖν εἰρομένῃσιν ἀληθέα μυθήσασθαι Δωσὼ ἐμοί γ᾽ ὄνομ᾽ ἐστί τὸ γὰρ θέτο πότνια μήτηρ νῦν αὖτε Κρήτηθεν ἐπ᾽ εὐρέα νῶτα θαλάσσης ἤλυθον οὐκ ἐθέλουσα βίῃ δ᾽ ἀέκουσαν ἀνάγκῃ ἄνδρες ληιστῆρες ἀπήγαγον οἳ μὲν ἔπειτα νηὶ θοῇ Θόρικόνδε κατέσχεθον ἔνθα γυναῖκες ἠπείρου ἐπέβησαν ἀολλέες ἠδὲ καὶ αὐτοί δεῖπνόν τ᾽ ἐπηρτύνοντο παρὰ πρυμνήσια νηός ἀλλ᾽ ἐμοὶ οὐ δόρποιο μελίφρονος ἤρατο θυμός λάθρη δ᾽ ὁρμηθεῖσα δι᾽ ἠπείροιο μελαίνης φεύγου ὑπερφιάλους σημάντορας ὄφρα κε μή με ἀπριάτην περάσαντες ἐμῆς ἀποναίατο τιμῆς οὕτω δεῦρ᾽ ἱκόμην ἀλαλημένη οὐδέ τι οἶδα ἥ τις δὴ γαῖ᾽ ἐστι καὶ οἵ τινες ἐγγεγάασιν ἀλλ᾽ ὑμῖν μὲν πάντες Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχοντες

202 203

δοῖεν κουριδίους ἄνδρας καὶ τέκνα τεκέσθαι ὡς ἐθέλουσι τοκῆες ἐμὲ δ᾽ αὖτ᾽ οἰκτείρατε κοῦραι [τοῦτο δέ μοι σαφέως ὑποθήκατε ὄφρα πύθωμαι] προφρονέως φίλα τέκνα τέων πρὸς δώμαθ᾽ ἵκωμαι ἀνέρος ἠδὲ γυναικός ἵνα σφίσιν ἐργάζωμαι πρόφρων οἷα γυναικὸς ἀφήλικος ἔργα τέτυκται καὶ κεν παῖδα νεογνὸν ἐν ἀγκοίνῃσιν ἔχουσα καλὰ τιθηνοίμην καὶ δώματα τηρήσαιμι καί κε λέχος στορέσαιμι μυχῷ θαλάμων εὐπήκτων δεσπόσυνον καί κ᾽ ἔργα διδασκήσαιμι γυναῖκαςφῆ ῥα θεά τὴν δ᾽ αὐτίκ᾽ ἀμείβετο παρθένος ἀδμής Καλλιδίκη Κελεοῖο θυγατρῶν εἶδος ἀρίστημαῖα θεῶν μὲν δῶρα καὶ ἀχνύμενοί περ ἀνάγκῃ τέτλαμεν ἄνθρωποι δὴ γὰρ πολὺ φέρτεροί εἰσι ταῦτα δέ τοι σαφέως ὑποθήσομαι ἠδ᾽ ὀνομήνω ἀνέρας οἷσιν ἔπεστι μέγα κράτος ἐνθάδε τιμῆς δήμου τε προὔχουσιν ἰδὲ κρήδεμνα πόληος εἰρύαται βουλῇσι καὶ ἰθείῃσι δίκῃσιν ἠμὲν Τριπτολέμου πυκιμήδεος ἠδὲ Διόκλου ἠδὲ Πολυξείνου καὶ ἀμύμονος Εὐμόλποιο καὶ Δολίχου καὶ πατρὸς ἀγήνορος ἡμετέροιο τῶν πάντων ἄλοχοι κατὰ δώματα πορσαίνουσι τάων οὐκ ἄν τίς σε κατὰ πρώτιστον ὀπωπὴν εἶδος ἀτιμήσασα δόμων ἀπονοσφίσσειεν ἀλλά σε δέξονται δὴ γὰρ θεοείκελός ἐσσι εἰ δ᾽ ἐθέλεις ἐπίμεινον ἵνα πρὸς δώματα πατρὸς ἔλθωμεν καὶ μητρὶ βαθυζώνῳ Μετανείρῃ εἴπωμεν τάδε πάντα διαμπερές αἴ κέ σ᾽ ἀνώγῃ ἡμέτερόνδ᾽ ἰέναι μηδ᾽ ἄλλων δώματ᾽ ἐρευνᾶν τηλύγετος δέ οἱ υἱὸς ἐνὶ μεγάρῳ εὐπήκτῳ ὀψίγονος τρέφεται πολυεύχετος ἀσπάσιός τε εἰ τόν γ᾽ ἐκθρέψαιο καὶ ἥβης μέτρον ἵκοιτο ῥεῖά κέ τίς σε ἰδοῦσα γυναικῶν θηλυτεράων ζηλώσαι τόσα κέν τοι ἀπὸ θρεπτήρια δοίηὣς ἔφαθ᾽ ἣ δ᾽ ἐπένευσε καρήατι ταὶ δὲ φαεινὰ πλησάμεναι ὕδατος φέρον ἄγγεα κυδιάουσαι ῥίμφα δὲ πατρὸς ἵκοντο μέγαν δόμον ὦκα δὲ μητρὶ ἔννεπον ὡς εἶδόν τε καὶ ἔκλυον ἣ δὲ μάλ᾽ ὦκα ἐλθούσας ἐκέλευε καλεῖν ἐπ᾽ ἀπείρονι μισθῷ αἳ δ᾽ ὥστ᾽ ἢ ἔλαφοι ἢ πόρτιες εἴαρος ὥρῃ ἅλλοντ᾽ ἂν λειμῶνα κορεσσάμεναι φρένα φορβῇ ὣς αἳ ἐπισχόμεναι ἑανῶν πτύχας ἱμεροέντων ἤιξαν κοίλην κατ᾽ ἀμαξιτόν ἀμφὶ δὲ χαῖται ὤμοις ἀίσσοντο κροκηίῳ ἄνθει ὁμοῖαι τέτμον δ᾽ ἐγγὺς ὁδοῦ κυδρὴν θεόν ἔνθα πάρος περ κάλλιπον αὐτὰρ ἔπειτα φίλου πρὸς δώματα πατρὸς ἡγεῦνθ᾽ ἣ δ᾽ ἄρ᾽ ὄπισθε φίλον τετιημένη ἦτορ στεῖχε κατὰ κρῆθεν κεκαλυμμένη ἀμφὶ δὲ πέπλος κυάνεος ῥαδινοῖσι θεᾶς ἐλελίζετο ποσσίν αἶψα δὲ δώμαθ᾽ ἵκοντο διοτρεφέος Κελεοῖο βὰν δὲ δι᾽ αἰθούσης ἔνθα σφίσι πότνια μήτηρ ἧστο παρὰ σταθμὸν τέγεος πύκα ποιητοῖο παῖδ᾽ ὑπὸ κόλπῳ ἔχουσα νέον θάλος αἳ δὲ πὰρ αὐτὴν ἔδραμον ἣ δ᾽ ἄρ᾽ ἐπ᾽ οὐδὸν ἔβη ποσὶ καὶ ῥα μελάθρου κῦρε κάρη πλῆσεν δὲ θύρας σέλαος θείοιο τὴν δ᾽ αἰδώς τε σέβας τε ἰδὲ χλωρὸν δέος εἷλεν εἶξε δέ οἱ κλισμοῖο καὶ ἑδριάασθαι ἄνωγεν ἀλλ᾽ οὐ Δημήτηρ ὡρηφόρος ἀγλαόδωρος

ἤθελεν ἑδριάασθαι ἐπὶ κλισμοῖο φαεινοῦ ἀλλ᾽ ἀκέουσ᾽ ἀνέμιμνε κατ᾽ ὄμματα καλὰ βαλοῦσα πρίν γ᾽ ὅτε δή οἱ ἔθηκεν Ἰάμβη κέδν᾽ εἰδυῖα πηκτὸν ἕδος καθύπερθε δ᾽ ἐπ᾽ ἀργύφεον βάλε κῶας ἔνθα καθεζομένη προκατέσχετο χερσὶ καλύπτρην δηρὸν δ᾽ ἄφθογγος τετιημένη ἧστ᾽ ἐπὶ δίφρου οὐδέ τιν᾽ οὔτ᾽ ἔπεϊ προσπτύσσετο οὔτε τι ἔργῳ ἀλλ᾽ ἀγέλαστος ἄπαστος ἐδητύος ἠδὲ ποτῆτος ἧστο πόθῳ μινύθουσα βαθυζώνοιο θυγατρός πρίν γ᾽ ὅτε δὴ χλεύῃς μιν Ἰάμβη κέδν᾽ εἰδυῖα πολλὰ παρασκώπτουσ᾽ ἐτρέψατο πότνιαν ἁγνήν μειδῆσαι γελάσαι τε καὶ ἵλαον σχεῖν θυμόν ἣ δή οἱ καὶ ἔπειτα μεθύστερον εὔαδεν ὀργαῖς τῇ δὲ δέπας Μετάνειρα δίδου μελιηδέος οἴνου πλήσασ᾽ ἣ δ᾽ ἀνένευσ᾽ οὐ γὰρ θεμιτόν οἱ ἔφασκε πίνειν οἶνον ἐρυθρόν ἄνωγε δ᾽ ἄρ᾽ ἄλφι καὶ ὕδωρ δοῦναι μίξασαν πιέμεν γλήχωνι τερείνῃ ἣ δὲ κυκεῶ τεύξασα θεᾷ πόρεν ὡς ἐκέλευε δεξαμένη δ᾽ ὁσίης ἕνεκεν πολυπότνια Δηώ τῇσι δὲ μύθων ἦρχεν ἐύζωνος Μετάνειραχαῖρε γύναι ἐπεὶ οὔ σε κακῶν ἄπ᾽ ἔολπα τοκήων ἔμμεναι ἀλλ᾽ ἀγαθῶν ἐπί τοι πρέπει ὄμμασιν αἰδὼς καὶ χάρις ὡς εἴ πέρ τε θεμιστοπόλων βασιλήων ἀλλὰ θεῶν μὲν δῶρα καὶ ἀχνύμενοί περ ἀνάγκῃ τέτλαμεν ἄνθρωποι ἐπὶ γὰρ ζυγὸς αὐχένι κεῖται νῦν δ᾽ ἐπεὶ ἵκεο δεῦρο παρέσσεται ὅσσα τ᾽ ἐμοί περ παῖδα δέ μοι τρέφε τόνδε τὸν ὀψίγονον καὶ ἄελπτον ὤπασαν ἀθάνατοι πολυάρητος δέ μοί ἐστιν εἰ τόν γε θρέψαιο καὶ ἥβης μέτρον ἵκοιτο ῥεῖά κέ τίς σε ἰδοῦσα γυναικῶν θηλυτεράων ζηλώσαι τόσα κέν τοι ἀπὸ θρεπτήρια δοίηντὴν δ᾽ αὖτε προσέειπεν ἐυστέφανος Δημήτηρκαὶ σύ γύναι μάλα χαῖρε θεοὶ δέ τοι ἐσθλὰ πόροιεν παῖδα δέ τοι πρόφρων ὑποδέξομαι ὥς με κελεύεις θρέψω κοὔ μιν ἔολπα κακοφραδίῃσι τιθήνης οὔτ᾽ ἄρ᾽ ἐπηλυσίη δηλήσεται οὔθ᾽ ὑποτάμνον οἶδα γὰρ ἀντίτομον μέγα φέρτερον ὑλοτόμοιο οἶδα δ᾽ ἐπηλυσίης πολυπήμονος ἐσθλὸν ἐρυσμόν

ὣς ἄρα φωνήσασα θυώδεϊ δέξατο κόλπῳ χείρεσσ᾽ ἀθανάτῃσι γεγήθει δὲ φρένα μήτηρ ὣς ἣ μὲν Κελεοῖο δαΐφρονος ἀγλαὸν υἱὸν Δημοφόωνθ᾽ ὃν ἔτικτεν ἐύζωνος Μετάνειρα ἔτρεφεν ἐν μεγάροις ὃ δ᾽ ἀέξετο δαίμονι ἶσος οὔτ᾽ οὖν σῖτον ἔδων οὐ θησάμενος [γάλα μητρὸς ἠματίη μὲν γὰρ καλλιστέφανος] Δημήτηρ χρίεσκ᾽ ἀμβροσίῃ ὡσεὶ θεοῦ ἐκγεγαῶτα ἡδὺ καταπνείουσα καὶ ἐν κόλποισιν ἔχουσα νύκτας δὲ κρύπτεσκε πυρὸς μένει ἠύτε δαλὸν λάθρα φίλων γονέων τοῖς δὲ μέγα θαῦμ᾽ ἐτέτυκτο ὡς προθαλὴς τελέθεσκε θεοῖσι γὰρ ἄντα ἐῴκει καί κέν μιν ποίησεν ἀγήρων τ᾽ ἀθάνατόν τε εἰ μὴ ἄρ᾽ ἀφραδίῃσιν ἐύζωνος Μετάνειρα νύκτ᾽ ἐπιτηρήσασα θυώδεος ἐκ θαλάμοιο σκέψατο κώκυσεν δὲ καὶ ἄμφω πλήξατο μηρὼ δείσασ᾽ ᾧ περὶ παιδὶ καὶ ἀάσθη μέγα θυμῷ καί ῥ᾽ ὀλοφυρομένη ἔπεα πτερόεντα προσηύδατέκνον Δημοφόων ξείνη σε πυρὶ ἔνι πολλῷ

κρύπτει ἐμοὶ δὲ γόον καὶ κήδεα λυγρὰ τίθησινὣς φάτ᾽ ὀδυρομένη τῆς δ᾽ ἄιε δῖα θεάων τῇ δὲ χολωσαμένη καλλιστέφανος Δημήτηρ παῖδα φίλον τὸν ἄελπτον ἐνὶ μεγάροισιν ἔτικτε χείρεσσ᾽ ἀθανάτῃσιν ἀπὸ ἕθεν ἧκε πέδονδε ἐξανελοῦσα πυρός θυμῷ κοτέσασα μάλ᾽ αἰνῶς καί ῥ᾽ ἄμυδις προσέειπεν ἐύζωνον Μετάνειραννήιδες ἄνθρωποι καὶ ἀφράδμονες οὔτ᾽ ἀγαθοῖο αἶσαν ἐπερχομένου προγνώμεναι οὔτε κακοῖο καὶ σὺ γὰρ ἀφραδίῃσι τεῇς νήκεστον ἀάσθης ἴστω γὰρ θεῶν ὅρκος ἀμείλικτον Στυγὸς ὕδωρ ἀθάνατόν κέν τοι καὶ ἀγήραον ἤματα πάντα παῖδα φίλον ποίησα καὶ ἄφθιτον ὤπασα τιμήν νῦν δ᾽ οὐκ ἔσθ᾽ ὥς κεν θάνατον καὶ κῆρας ἀλύξαι τιμὴ δ᾽ ἄφθιτος αἰὲν ἐπέσσεται οὕνεκα γούνων ἡμετέρων ἐπέβη καὶ ἐν ἀγκοίνῃσιν ἴαυσεν ὥρῃσιν δ᾽ ἄρα τῷ γε περιπλομένων ἐνιαυτῶν παῖδες Ἐλευσινίων πόλεμον καὶ φύλοπιν αἰνὴν αἰὲν ἐν ἀλλήλοισιν συνάξουσ᾽ ἤματα πάντα εἰμὶ δὲ Δημήτηρ τιμάοχος ἥτε μέγιστον ἀθανάτοις θνητοῖς τ᾽ ὄνεαρ καὶ χάρμα τέτυκται ἀλλ᾽ ἄγε μοι νηόν τε μέγαν καὶ βωμὸν ὑπ᾽ αὐτῷ τευχόντων πᾶς δῆμος ὑπαὶ πόλιν αἰπύ τε τεῖχος Καλλιχόρου καθύπερθεν ἐπὶ προὔχοντι κολωνῷ ὄργια δ᾽ αὐτὴ ἐγὼν ὑποθήσομαι ὡς ἂν ἔπειτα εὐαγέως ἔρδοντες ἐμὸν νόον ἱλάσκοισθεὣς εἰποῦσα θεὰ μέγεθος καὶ εἶδος ἄμειψε γῆρας ἀπωσαμένη περί τ᾽ ἀμφί τε κάλλος ἄητο ὀδμὴ δ᾽ ἱμερόεσσα θυηέντων ἀπὸ πέπλων σκίδνατο τῆλε δὲ φέγγος ἀπὸ χροὸς ἀθανάτοιο λάμπε θεᾶς ξανθαὶ δὲ κόμαι κατενήνοθεν ὤμους αὐγῆς δ᾽ ἐπλήσθη πυκινὸς δόμος ἀστεροπῆς ὥς βῆ δὲ διὲκ μεγάρων τῆς δ᾽ αὐτίκα γούνατ᾽ ἔλυντο δηρὸν δ᾽ ἄφθογγος γένετο χρόνον οὐδέ τι παιδὸς μνήσατο τηλυγέτοιο ἀπὸ δαπέδου ἀνελέσθαι τοῦ δὲ κασίγνηται φωνὴν ἐσάκουσαν ἐλεινήν κὰδ δ᾽ ἄρ᾽ ἀπ᾽ εὐστρώτων λεχέων θόρον ἣ μὲν ἔπειτα παῖδ᾽ ἀνὰ χερσὶν ἑλοῦσα ἑῷ ἐγκάτθετο κόλπῳ ἣ δ᾽ ἄρα πῦρ ἀνέκαι᾽ ἣ δ᾽ ἔσσυτο πόσσ᾽ ἁπαλοῖσι μητέρ᾽ ἀναστήσουσα θυώδεος ἐκ θαλάμοιο ἀγρόμεναι δέ μιν ἀμφὶς ἐλούεον ἀσπαίροντα ἀμφαγαπαζόμεναι τοῦ δ᾽ οὐ μειλίσσετο θυμός χειρότεραι γὰρ δή μιν ἔχον τροφοὶ ἠδὲ τιθῆναι αἳ μὲν παννύχιαι κυδρὴν θεὸν ἱλάσκοντο δείματι παλλόμεναι ἅμα δ᾽ ἠοῖ φαινομένηφιν εὐρυβίῃ Κελεῷ νημερτέα μυθήσαντο ὡς ἐπέτελλε θεά καλλιστέφανος Δημήτηρ αὐτὰρ ὅ γ᾽ εἰς ἀγορὴν καλέσας πολυπείρονα λαὸν ἤνωγ᾽ ἠυκόμῳ Δημήτερι πίονα νηὸν ποιῆσαι καὶ βωμὸν ἐπὶ προὔχοντι κολωνῷ οἳ δὲ μάλ᾽ αἶψ᾽ ἐπίθοντο καὶ ἔκλυον αὐδήσαντος τεῦχον δ᾽ ὡς ἐπέτελλ᾽ ὃ δ᾽ ἀέξετο δαίμονι ἶσος αὐτὰρ ἐπεὶ τέλεσαν καὶ ἐρώησαν καμάτοιο βάν ῥ᾽ ἴμεν οἴκαδ᾽ ἕκαστος ἀτὰρ ξανθὴ Δημήτηρ ἔνθα καθεζομένη μακάρων ἀπὸ νόσφιν ἁπάντων μίμνε πόθῳ μινύθουσα βαθυζώνοιο θυγατρός αἰνότατον δ᾽ ἐνιαυτὸν ἐπὶ χθόνα πουλυβότειραν ποίησ᾽ ἀνθρώποις καὶ κύντατον οὐδέ τι γαῖα

σπέρμ᾽ ἀνίει κρύπτεν γὰρ ἐυστέφανος Δημήτηρ πολλὰ δὲ καμπύλ᾽ ἄροτρα μάτην βόες εἷλκον ἀρούραις πολλὸν δὲ κρῖ λευκὸν ἐτώσιον ἔμπεσε γαίῃ καί νύ κε πάμπαν ὄλεσσε γένος μερόπων ἀνθρώπων λιμοῦ ὑπ᾽ ἀργαλέης γεράων τ᾽ ἐρικυδέα τιμὴν καὶ θυσιῶν ἤμερσεν Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχοντας εἰ μὴ Ζεὺς ἐνόησεν ἑῷ τ᾽ ἐφράσσατο θυμῷ Ἶριν δὲ πρῶτον χρυσόπτερον ὦρσε καλέσσαι Δήμητρ᾽ ἠύκομον πολυήρατον εἶδος ἔχουσαν ὣς ἔφαθ᾽ ἣ δὲ Ζηνὶ κελαινεφέι Κρονίωνι πείθετο καὶ τὸ μεσηγὺ διέδραμεν ὦκα πόδεσσιν ἵκετο δὲ πτολίεθρον Ἐλευσῖνος θυοέσσης εὗρεν δ᾽ ἐν νηῷ Δημήτερα κυανόπεπλον καί μιν φωνήσασ᾽ ἔπεα πτερόεντα προσηύδαΔήμητερ καλέει σε πατὴρ Ζεὺς ἄφθιτα εἰδὼς ἐλθέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν αἰειγενετάων ἄλλ᾽ ἴθι μηδ᾽ ἀτέλεστον ἐμὸν ἔπος ἐκ Διὸς ἔστωὣς φάτο λισσομένη τῇ δ᾽ οὐκ ἐπεπείθετο θυμός αὖτις ἔπειτα πατὴρ μάκαρας θεοὺς αἰὲν ἐόντας πάντας ἐπιπροΐαλλεν ἀμοιβηδὶς δὲ κιόντες κίκλησκον καὶ πολλὰ δίδον περικαλλέα δῶρα τιμάς θ᾽ daggerἅς κ᾽ ἐθέλοιτοdagger μετ᾽ ἀθανάτοισιν ἑλέσθαι ἀλλ᾽ οὔτις πεῖσαι δύνατο φρένας οὐδὲ νόημα θυμῷ χωομένης στερεῶς δ᾽ ἠναίνετο μύθους οὐ μὲν γάρ ποτ᾽ ἔφασκε θυώδεος Οὐλύμποιο πρίν γ᾽ ἐπιβήσεσθαι οὐ πρὶν γῆς καρπὸν ἀνήσειν πρὶν ἴδοι ὀφθαλμοῖσιν ἑὴν εὐώπιδα κούρην αὐτὰρ ἐπεὶ τό γ᾽ ἄκουσε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεύς εἰς Ἔρεβος πέμψε χρυσόρραπιν Ἀργειφόντην ὄφρ᾽ Ἀίδην μαλακοῖσι παραιφάμενος ἐπέεσσιν ἁγνὴν Περσεφόνειαν ὑπὸ ζόφου ἠερόεντος ἐς φάος ἐξαγάγοι μετὰ δαίμονας ὄφρα ἑ μήτηρ ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα μεταλήξειε χόλοιο Ἑρμῆς δ᾽ οὐκ ἀπίθησεν ἄφαρ δ᾽ ὑπὸ κεύθεα γαίης ἐσσυμένως κατόρουσε λιπὼν ἕδος Οὐλύμποιο τέτμε δὲ τόν γε ἄνακτα δόμων ἔντοσθεν ἐόντα ἥμενον ἐν λεχέεσσι σὺν αἰδοίῃ παρακοίτι πόλλ᾽ ἀεκαζομένῃ μητρὸς πόθῳ ἣ δ᾽ ἀποτηλοῦ ἔργοις θεῶν μακάρων [δεινὴν] μητίσετο βουλήν ἀγχοῦ δ᾽ ἱστάμενος προσέφη κρατὺς ἈργειφόντηςἍιδη κυανοχαῖτα καταφθιμένοισιν ἀνάσσων Ζεύς με πατὴρ ἤνωγεν ἀγαυὴν Περσεφόνειαν ἐξαγαγεῖν Ἐρέβευσφι μετὰ σφέας ὄφρα ἑ μήτηρ ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα χόλου καὶ μήνιος αἰνῆς ἀθανάτοις λήξειεν ἐπεὶ μέγα μήδεται ἔργον φθῖσαι φῦλ᾽ ἀμενηνὰ χαμαιγενέων ἀνθρώπων σπέρμ᾽ ὑπὸ γῆς κρύπτουσα καταφθινύθουσα δὲ τιμὰς ἀθανάτων ἣ δ᾽ αἰνὸν ἔχει χόλον οὐδὲ θεοῖσι μίσγεται ἀλλ᾽ ἀπάνευθε θυώδεος ἔνδοθι νηοῦ ἧσται Ἐλευσῖνος κραναὸν πτολίεθρον ἔχουσαὣς φάτο μείδησεν δὲ ἄναξ ἐνέρων Ἀιδωνεὺς ὀφρύσιν οὐδ᾽ ἀπίθησε Διὸς βασιλῆος ἐφετμῇς ἐσσυμένως δ᾽ ἐκέλευσε δαΐφρονι Περσεφονείῃἔρχεο Περσεφόνη παρὰ μητέρα κυανόπεπλον ἤπιον ἐν στήθεσσι μένος καὶ θυμὸν ἔχουσα μηδέ τι δυσθύμαινε λίην περιώσιον ἄλλων οὔ τοι ἐν ἀθανάτοισιν ἀεικὴς ἔσσομ᾽ ἀκοίτης αὐτοκασίγνητος πατρὸς Διός ἔνθα δ᾽ ἐοῦσα

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δεσπόσσεις πάντων ὁπόσα ζώει τε καὶ ἕρπει τιμὰς δὲ σχήσησθα μετ᾽ ἀθανάτοισι μεγίστας τῶν δ᾽ ἀδικησάντων τίσις ἔσσεται ἤματα πάντα οἵ κεν μὴ θυσίῃσι τεὸν μένος ἱλάσκωνται εὐαγέως ἔρδοντες ἐναίσιμα δῶρα τελοῦντεςὣς φάτο γήθησεν δὲ περίφρων Περσεφόνεια καρπαλίμως δ᾽ ἀνόρουσ᾽ ὑπὸ χάρματος αὐτὰρ ὅ γ᾽ αὐτὸς ῥοιῆς κόκκον ἔδωκε φαγεῖν μελιηδέα λάθρῃ ἀμφὶ ἓ νωμήσας ἵνα μὴ μένοι ἤματα πάντα αὖθι παρ᾽ αἰδοίῃ Δημήτερι κυανοπέπλῳ ἵππους δὲ προπάροιθεν ὑπὸ χρυσέοισιν ὄχεσφιν ἔντυεν ἀθανάτους Πολυσημάντωρ Ἀιδωνευς ἣ δ᾽ ὀχέων ἐπέβη πάρα δὲ κρατὺς Ἀργειφόντης ἡνία καὶ μάστιγα λαβὼν μετὰ χερσὶ φίλῃσι σεῦε διὲκ μεγάρων τὼ δ᾽ οὐκ ἀέκοντε πετέσθην ῥίμφα δὲ μακρὰ κέλευθα διήνυσαν οὐδὲ θάλασσα οὔθ᾽ ὕδωρ ποταμῶν οὔτ᾽ ἄγκεα ποιήεντα ἵππων ἀθανάτων οὔτ᾽ ἄκριες ἔσχεθον ὁρμήν ἀλλ᾽ ὑπὲρ αὐτάων βαθὺν ἠέρα τέμνον ἰόντες στῆσε δ᾽ ἄγων ὅθι μίμνεν ἐυστέφανος Δημήτηρ νηοῖο προπάροιθε θυώδεος ἣ δὲ ἰδοῦσα ἤιξ᾽ ἠύτε μαινὰς ὄρος κάτα δάσκιον ὕλῃ Περσεφόνη δ᾽ ἑτέρ[ωθεν ἐπεὶ ἴδεν ὄμματα καλὰ] μητρὸς ἑῆς κατ᾽ [ἄρ᾽ ἥ γ᾽ ὄχεα προλιποῦσα καὶ ἵππους] ἆλτο θέει[ν δειρῇ δέ οἱ ἔμπεσε ἀμφιχυθεῖσα] τῇ δὲ [φίλην ἔτι παῖδα ἑῇς μετὰ χερσὶν ἐχούσῃ] α[ἶψα δόλον θυμός τιν᾽ ὀίσατο τρέσσε δ᾽ ἄρ᾽ αἰνῶς] παυομ[ένη φιλότητος ἄφαρ δ᾽ ἐρεείνετο μύθῳ]τέκνον μή ῥά τι μοι σ[ύ γε πάσσαο νέρθεν ἐοῦσα] βρώμης ἐξαύδα μ[ὴ κεῦθ᾽ ἵνα εἴδομεν ἄμφω] ὣς μὲν γάρ κεν ἐοῦσα π[αρὰ στυγεροῦ Ἀίδαο] καὶ παρ᾽ ἐμοὶ καὶ πατρὶ κελ[αινεφέϊ Κρονίωνι] ναιετάοις πάντεσσι τετιμ[ένη ἀθανάτοι]σιν εἰ δ᾽ ἐπάσω πάλιν αὖτις ἰοῦσ᾽ ὑπ[ὸ κεύθεσι γαίης] οἰκήσεις ὡρέων τρίτατον μέρ[ος εἰς ἐνιαυτόν] τὰς δὲ δύω παρ᾽ ἐμοί τε καὶ [ἄλλοις ἀθανά]τοισιν ὁππότε δ᾽ ἄνθεσι γαῖ᾽ εὐώδε[σιν] εἰαρινο[ῖσι] παντοδαποῖς θάλλῃ τόθ᾽ ὑπὸ ζόφου ἠερόεντος αὖτις ἄνει μέγα θαῦμα θεοῖς θνητοῖς τ᾽ ἀνθρώποις [εἶπε δὲ πῶς σ᾽ ἥρπαξεν ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα] καὶ τίνι σ᾽ ἐξαπάτησε δόλῳ κρατερὸς Πολυδέγμωντὴν δ᾽ αὖ Περσεφόνη περικαλλὴς ἀντίον ηὔδατοιγὰρ ἐγώ τοι μῆτερ ἐρέω νημερτέα πάντα εὖτέ μοι Ἑρμῆς ἦλθ᾽ ἐριούνιος ἄγγελος ὠκὺς πὰρ πατέρος Κρονιδαο καὶ ἄλλων Οὐρανιώνων ἐλθεῖν ἐξ Ἐρέβευς ἵνα ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα λήξαις ἀθανάτοισι χόλου καὶ μήνιος αἰνῆς αὐτίκ᾽ ἐγὼν ἀνόρουσ᾽ ὑπὸ χάρματος αὐτὰρ ὃ λάθρῃ ἔμβαλέ μοι ῥοιῆς κόκκον μελιηδέ᾽ ἐδωδήν ἄκουσαν δὲ βίῃ με προσηνάγκασσε πάσασθαι ὡς δέ μ᾽ ἀναρπάξας Κρονίδεω πυκινὴν διὰ μῆτιν ᾤχετο πατρὸς ἐμοῖο φέρων ὑπὸ κεύθεα γαίης ἐξερέω καὶ πάντα διίξομαι ὡς ἐρεείνεις ἡμεῖς μὲν μάλα πᾶσαι ἀν᾽ ἱμερτὸν λειμῶνα Λευκίππη Φαινώ τε καὶ Ἠλέκτρη καὶ Ἰάνθη καὶ Μελίτη Ἰάχη τε Ῥόδειά τε Καλλιρόη τε Μηλόβοσίς τε Τύχη τε καὶ Ὠκυρόη καλυκῶπις

Χρυσηίς τ᾽ Ἰάνειρά τ᾽ Ἀκάστη τ᾽ Ἀδμήτη τε καὶ Ῥοδόπη Πλουτώ τε καὶ ἱμερόεσσα Καλυψὼ καὶ Στὺξ Οὐρανίη τε Γαλαξαύρη τ᾽ ἐρατεινὴ Παλλάς τ᾽ ἐγρεμάχη καὶ Ἄρτεμις ἰοχέαιρα παίζομεν ἠδ᾽ ἄνθεα δρέπομεν χείρεσσ᾽ ἐρόεντα μίγδα κρόκον τ᾽ ἀγανὸν καὶ ἀγαλλίδας ἠδ᾽ ὑάκινθον καὶ ῥοδέας κάλυκας καὶ λείρια θαῦμα ἰδέσθαι νάρκισσόν θ᾽ ὃν ἔφυσ᾽ ὥς περ κρόκον εὐρεῖα χθών αὐτὰρ ἐγὼ δρεπόμην περὶ χάρματι γαῖα δ᾽ ἔνερθε χώρησεν τῇ δ᾽ ἔκθορ᾽ ἄναξ κρατερὸς Πολυδέγμων βῆ δὲ φέρων ὑπὸ γαῖαν ἐν ἅρμασι χρυσείοισι πόλλ᾽ ἀεκαζομένην ἐβόησα δ᾽ ἄρ᾽ ὄρθια φωνῇ ταῦτά τοι ἀχνυμένη περ ἀληθέα πάντ᾽ ἀγορεύωὣς τότε μὲν πρόπαν ἦμαρ ὁμόφρονα θυμὸν ἔχουσαι πολλὰ μάλ᾽ ἀλλήλων κραδίην καὶ θυμὸν ἴαινον ἀμφαγαπαζόμεναι ἀχέων δ᾽ ἀπεπαύετο θυμός γηθοσύνας δ᾽ ἐδέχοντο παρ᾽ ἀλλήλων ἔδιδόν τε τῇσιν δ᾽ ἐγγύθεν ἦλθ᾽ Ἑκάτη λιπαροκρήδεμνος πολλὰ δ᾽ ἄρ᾽ ἀμφαγάπησε κόρην Δημήτερος ἁγνήν ἐκ τοῦ οἱ πρόπολος καὶ ὀπάων ἔπλετ᾽ ἄνασσα ταῖς δὲ μέτ᾽ ἄγγελον ἧκε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεὺς Ῥείην ἠύκομον Δημήτερα κυανόπεπλον ἀξέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν ὑπέδεκτο δὲ τιμὰς δωσέμεν ἅς κεν ἕλοιτο μετ᾽ ἀθανάτοισι θεοῖσι νεῦσε δέ οἱ κούρην ἔτεος περιτελλομένοιο τὴν τριτάτην μὲν μοῖραν ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα τὰς δὲ δύω παρὰ μητρὶ καὶ ἄλλοις ἀθανάτοισιν ὣς ἔφατ᾽ οὐδ᾽ ἀπίθησε θεὰ Διὸς ἀγγελιάων ἐσσυμένως δ᾽ ἤιξε κατ᾽ Οὐλύμποιο καρήνων ἐς δ᾽ ἄρα Ῥάριον ἷξε φερέσβιον οὖθαρ ἀρούρης τὸ πρίν ἀτὰρ τότε γ᾽ οὔτι φερέσβιον ἀλλὰ ἕκηλον ἑστήκει πανάφυλλον ἔκευθε δ᾽ ἄρα κρῖ λευκὸν μήδεσι Δήμητρος καλλισφύρου αὐτὰρ ἔπειτα μέλλεν ἄφαρ ταναοῖσι κομήσειν ἀσταχύεσσιν ἦρος ἀεξομένοιο πέδῳ δ᾽ ἄρα πίονες ὄγμοι βρισέμεν ἀσταχύων τὰ δ᾽ ἐν ἐλλεδανοῖσι δεδέσθαι ἔνθ᾽ ἐπέβη πρώτιστον ἀπ᾽ αἰθέρος ἀτρυγέτοιο ἀσπασίως δ᾽ ἴδον ἀλλήλας κεχάρηντο δὲ θυμῷ τὴν δ᾽ ὧδε προσέειπε Ῥέη λιπαροκρήδεμνοςδεῦρο τέκος καλέει σε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεὺς ἐλθέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν ὑπέδεκτο δὲ τιμὰς [δωσέμεν ἅς κ᾽ ἐθέλῃσθα] μετ᾽ ἀθανάτοισι θεοῖσι [νεῦσε δέ σοι κούρην ἔτεος π]εριτελλομένοιο [τὴν τριτάτην μὲν μοῖραν ὑπὸ ζόφον ἠ]ερόεντα [τὰς δὲ δύω παρὰ σοί τε καὶ ἄλλοις] ἀθανάτοισιν [ὣς ἄρ᾽ ἔφη τελέ]εσθαι ἑῷ δ᾽ ἐπένευσε κάρητι [ἀλλ᾽ ἴθι τέκνον] ἐμόν καὶ πείθεο μηδέ τι λίην ἀ[ζηχὲς μεν]έαινε κελαινεφέι Κρονίωνι α[ἶψα δὲ κα]ρπὸν ἄεξε φερέσβιον ἀνθρώποισινὣς ἔφατ᾽ οὐδ᾽ ἀπίθησεν ἐυστέφανος Δημήτηρ αἶψα δὲ καρπὸν ἀνῆκεν ἀρουράων ἐριβώλων πᾶσα δὲ φύλλοισίν τε καὶ ἄνθεσιν εὐρεῖα χθὼν ἔβρισ᾽ ἣ δὲ κιοῦσα θεμιστοπόλοις βασιλεῦσι δεῖξεν Τριπτολέμῳ τε Διοκλεῖ τε πληξίππῳ Εὐμόλπου τε βίῃ Κελεῷ θ᾽ ἡγήτορι λαῶν δρησμοσύνην θ᾽ ἱερῶν καὶ ἐπέφραδεν ὄργια πᾶσι Τριπτολέμῳ τε Πολυξείνῳ ἐπὶ τοῖς δὲ Διοκλεῖ σεμνά τά τ᾽ οὔπως ἔστι παρεξίμεν οὔτε πυθέσθαι

οὔτ᾽ ἀχέειν μέγα γάρ τι θεῶν σέβας ἰσχάνει αὐδήν ὄλβιος ὃς τάδ᾽ ὄπωπεν ἐπιχθονίων ἀνθρώπων ὃς δ᾽ ἀτελὴς ἱερῶν ὅς τ᾽ ἄμμορος οὔποθ᾽ ὁμοίων αἶσαν ἔχει φθίμενός περ ὑπὸ ζόφῳ ἠερόεντιαὐτὰρ ἐπειδὴ πάνθ᾽ ὑπεθήκατο δῖα θεάων βάν ῥ᾽ ἴμεν Οὔλυμπόνδε θεῶν μεθ᾽ ὁμήγυριν ἄλλων ἔνθα δὲ ναιετάουσι παραὶ Διὶ τερπικεραύνῳ σεμναί τ᾽ αἰδοῖαι τε μέγ᾽ ὄλβιος ὅν τιν᾽ ἐκεῖναι προφρονέως φίλωνται ἐπιχθονίων ἀνθρώπων αἶψα δέ οἱ πέμπουσιν ἐφέστιον ἐς μέγα δῶμα Πλοῦτον ὃς ἀνθρώποις ἄφενος θνητοῖσι δίδωσιν ἀλλ᾽ ἄγ᾽ Ἐλευσῖνος θυοέσσης δῆμον ἔχουσα καὶ Πάρον ἀμφιρύτην Ἀντρῶνά τε πετρήεντα πότνια ἀγλαόδωρ᾽ ὡρηφόρε Δηοῖ ἄνασσα αὐτὴ καὶ κούρη περικαλλὴς Περσεφόνεια πρόφρονες ἀντ᾽ ᾠδῆς βίοτον θυμήρε᾽ ὄπαζε αὐτὰρ ἐγὼ καὶ σεῖο καὶ ἄλλης μνήσομ᾽ ἀοιδῆς

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Referecircncias

CASTILHO Antoacutenio Feliciano de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa Lisboa Casa dos Editores 1858

FLORES Guilherme Gontijo Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horaacutecio Tese de Doutorado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2014

GRAMACHO Jair Hinos Homeacutericos Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2001

________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Vol I Satildeo Paulo Mandarim 2001b

________ IliacuteadaTraduccedilatildeo de Haroldo de Campos Vol II Satildeo Paulo Arx 2002

________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo PauloCampinas Ateliecirc EditorialUNICAMP 2008

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Edusp 2000

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2001c

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Satildeo Paulo Editora 34 2011

MALTA Andreacute A Selvagem Perdiccedilatildeo Erro e Ruiacutena na Iliacuteada Satildeo Paulo Odysseus 2006

________ O resgate do cadaacutever o uacuteltimo canto drsquoA Iliacuteada Satildeo Paulo Humanitas 2000

NOGUEIRA Eacuterico Verdade contenda e poesia nos Idiacutelios de Teoacutecrito Tese de dou-torado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2012

OLIVA NETO Joatildeo Angelo amp NOGUEIRA Eacuterico ldquoO Hexacircmetro Dactiacutelico Vernaacuteculo antes de Carlos Alberto Nunesrdquo Scientia Traductionis n 13 2013

PALAVRO Bruno A Theogonia de Hesiacuteodo traduzida amp anotada pela matildeo de Bruno Palavro Trabalho de Conclusatildeo de Curso Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2019

TAacutePIA Marcelo Diferentes percursos de traduccedilatildeo poeacutetica como paradigmas me-todoloacutegicos de recriaccedilatildeo poeacutetica Um estudo propositivo sobre linguagem poesia e traduccedilatildeo Tese de doutorado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2012

VIRGIacuteLIO Geoacutergicas ndash Eneida Volume III Traduccedilotildees de Antoacutenio Feliciano de Castilho

e Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo W M Jackson Inc Editores 1956

________ Eneida Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Editora 34 2014

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Pressupostos da comeacutedia grega entre os romanos

Quintiliano Ciacutecero Horaacutecioe Dioniacutesio

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Luciene Lages Silva

Logo direi no lugar apropriado que fim para a formaccedilatildeo dos jovens reservo agrave comeacutedia que muito pode conferir agrave eloquecircncia dado que envolve todos os caracteres e pai-xotildees Com efeito estando os bons costumes salvaguarda-dos deveraacute a comeacutedia ser lida entre as coisas principais Falo acerca de Menandro natildeo excluiria a outros pois os autores latinos tambeacutem produziram algo de utilidade Quintiliano

Propomos apresentar parte de uma pesquisa que investiga a recepccedilatildeo criacutetica da comeacutedia grega por alguns criacuteticos literaacuterios historiadores e poetas romanos duran-te o fim da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Os textos selecionados foram produzidos no decurso de pouco mais de 150 anos periacuteodo que contempla o domiacutenio de Juacutelio Ceacutesar (45 aC) ateacute o fim do reinado de Trajano (98-117 dC) Nossa pesquisa elenca seis fontes desse recorte temporal em que a preferecircncia por Menandro se consolida na tradiccedilatildeo latina nos textos de Horaacutecio Ciacutecero Dioniacutesio de Halicarnasso Quintiliano Pliacutenio (o jovem) e Plutarco

Os autores selecionados distam em torno de 100 a 150 anos do tempo aacuteureo da proacutepria comeacutedia latina do tempo de Plauto e Terecircncio mas conhecem a comeacutedia grega e a romana percebem os desdobramentos do gecircnero cocircmico de modo mais con-temporacircneo do que noacutes poderiacuteamos De tratados de esteacutetica literaacuteria como a Poeacutetica de Horaacutecio agraves cartas de Pliacutenio o jovem trocadas com o imperador Trajano nos depa-ramos com teorizaccedilotildees e revisotildees de determinadas premissas acerca da comeacutedia grega e do gecircnero cocircmico de modo geral Naturalmente Aristoacutefanes figura como o iacutecone da comeacutedia antiga enquanto Menandro da comeacutedia nova e natildeo eacute novidade certa predi-leccedilatildeo dos romanos pela comeacutedia de costumes ao inveacutes da comeacutedia poliacutetica daquele 124

A epiacutegrafe de Quintiliano que abre esse texto por exemplo e que foi extraiacuteda da obra Institutio Oratoria (Livro I VIII 6-8 na traduccedilatildeo de Marcos Aureacutelio Pereira) apresenta a preocupaccedilatildeo do retor na instruccedilatildeo dos jovens com o fim de orientaacute-los a alcanccedilar eloquecircncia primorosa em seus discursos A comeacutedia deve estar entre as prin-cipais leituras mas tal prerrogativa vem acompanhada de trecircs aspectos Um diz res-peito ao fato de que por ser rico em caracteres e paixotildees o gecircnero cocircmico favorece o desenvolvimento da eloquecircncia outro aspecto eacute o de que natildeo eacute qualquer comeacutedia que deve ser lida mas apenas as que respeitam os lsquobons costumesrsquo Por fim o fato de que da leitura da comeacutedia grega e latina pode-se extrair algo de uacutetil Quintiliano aponta natildeo

124 Veja-se a Introduccedilatildeo de Maria de Faacutetima Souza e Silva in MENANDRO 2007 p 7-41

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soacute porque a comeacutedia deve ser lida mas quem deve ser lido sendo Menandro o uacutenico comedioacutegrafo citado nominalmente ao lado da recomendaccedilatildeo de leitura de alguns au-tores latinos que natildeo satildeo nomeados

Sobre a literatura produzida em Roma Pompeu Silva e Silva (2017) afirmam que a trageacutedia e a comeacutedia perderam um pouco do espaccedilo para outros tipos de prosa e poesia na eacutepoca de Augusto como o gecircnero mimo e eacute somente com o imperador Nero que os gecircneros traacutegico e cocircmico voltaram a brilhar nos ambientes puacuteblicos atraveacutes dos festivais Ainda conforme as autoras as comeacutedias desenvolvidas e encenadas no periacute-odo imperial datavam dos seacuteculos III e II aC e na sua maior parte eram escritas por Plauto e Terecircncio comedioacutegrafos romanos com fortes influecircncias da comeacutedia nova

A indicaccedilatildeo de Menandro como leitura apraziacutevel e necessaacuteria tambeacutem eacute refe-rendada por Plutarco em seu pequeno tratado Compecircndio da Comparaccedilatildeo entre Aris-toacutefanes e Menandro ao lado de certa execraccedilatildeo agrave poesia de Aristoacutefanes125

As comeacutedias de Menandro contecircm sais abundantes e sa-grados como se viessem daquele mar do qual nasceu Afro-dite Em compensaccedilatildeo os sais de Aristoacutefanes satildeo amargos e aacutesperos possuem um sabor acre mordaz e ulceroso E eu natildeo sei onde reside a habilidade da qual ele se vanglo-ria nos discursos ou nos caracteres com certeza o que ele imita imita pior126

A criacutetica de Plutarco agrave imitaccedilatildeo dos caracteres produzida pela obra do poeta da comeacutedia antiga eacute um reflexo da criacutetica aristoteacutelica presente na Eacutetica a Nicomacos em que o filoacutesofo compara a comeacutedia antiga com a nova e conclui ldquoos autores das primeiras divertiam com a obscenidade mas os das uacuteltimas preferem as insinuaccedilotildees e as duas coisas diferem e natildeo pouco quanto agrave conveniecircnciardquo Aristoacuteteles discorre sobre a importacircncia do repouso e o lugar do entretenimento como parte da vida cotidiana mas eacute severo com a lsquoacircnsia de gracejarrsquo daqueles a que chama lsquobufotildees vulgaresrsquo que natildeo poupam a ningueacutem nem a si mesmos se isso puder provocar uma gargalhada sendo esses gracejos uma espeacutecie de abuso Levando em conta a predileccedilatildeo por Menandro e pela comeacutedia nova dos gregos observamos e selecionamos as impressotildees de Ciacutecero Horaacutecio e Dioniacutesio de Halicarnasso acerca do lugar da comeacutedia grega e do cocircmico de modo geral128

Em Do melhor gecircnero dos oradores De optimo genere oratorum Ciacutecero afir-ma que o texto de base oratoacuteria deve ser correto ter linguagem pura e adequada sem

125 Suetocircnio no entanto em A vida dos doze ceacutesares descreve a apreciaccedilatildeo de Augusto pela liacutengua e cultura grega e apesar de natildeo falar ou escrever em grego solicitava um tradutor se a circunstacircncia o exigisse De modo que ldquoA poesia grega natildeo lhe era tambeacutem inteiramente desconhecida Costumava deleitar-se com a comeacutedia antiga fazendo repre-sentaacute-la nos espetaacuteculos puacuteblicosrdquo SUETOcircNIO 1955 p 121 na traduccedilatildeo de Sady-Garibaldi126 (Moralia 854a-c) traduccedilatildeo nossa anteriormente publicada em artigo intitulado rsquoLiccedilotildees de Plutarco sobre a comeacutediarsquo 2013 p114 In Identidade e Alteridade no Mundo Antigo POMPEU et all Fortaleza Expressatildeo graacutefica editora 2013 127 Traduccedilatildeo Maacuterio da Gama Kury In ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Brasiacutelia editora UnB 1985

128 Os primeiros apontamentos dessa pesquisa foram publicados em A Palo Seco Escritos de Filosofia e Literatura Grupo de Estudos em Filosofia e Literatura Universidade Federal de Sergipe Aracaju Vol 1 n 5 2013 p 32-41129 (SEABRA FILHO 2013 p 17) Utilizamo-nos da traduccedilatildeo de Seabra nos extratos da obra citados adiante

viacutecios e estrangeirismos distinto no uso da palavra em seu sentido proacuteprio e tambeacutem em seu sentido figurado Natildeo aconselha o uso da linguagem popular na composiccedilatildeo do discurso devido ao descuido agraves regras gramaticais e aos decoros do estilo necessaacuterios agrave produccedilatildeo oratoacuteria De acordo com Seabra Filho tradutor da obra serve menos ainda para ldquoa transmissatildeo de todas as sutilezas de pensamentos e intenccedilotildees do oradorrdquo129

Ciacutecero alerta para o caraacuteter muacuteltiplo do gecircnero literaacuterio e que a partir dos gre-gos a praacutetica latina na composiccedilatildeo do poema quer seja traacutegico cocircmico eacutepico meacutelico e ditiracircmbico deve observar aquilo que eacute proacuteprio a tal gecircnero Atento para as especifici-dades de cada gecircnero elenca os principais autores da poesia latina Ecircnio para a poesia eacutepica assim ldquocomo Pacuacutevio o maior traacutegico e Ceciacutelio talvez o maior cocircmicordquo (CICERO De optimo genere oratorvm II 2) No entanto ldquoorador eu natildeo o divido em gecircnero procuro efetivamente o perfeitordquo (II3) Para o filoacutesofo o perfeito orador tanto ensina quanto deleita quanto comove os acircnimos porque ldquoensinar eacute devido deleitar honroso comover necessaacuteriordquo (II3)

Afirma mais adiante a autenticidade do pai da comeacutedia de costumes visto que natildeo se assemelha a Homero e escreve outro tipo de gecircnero conforme diz ldquoMas Menandro natildeo quis ser semelhante a Homero eacute que o gecircnero era outrordquo (CICERO De optimo genere oratorum II 6) Os limites do gecircnero devem ser observados pelos poetas ldquoE assim tanto na trageacutedia eacute errado o cocircmico como torpe na comeacutedia o traacutegi-co e nos demais gecircneros haacute como certo para cada um seu tom determinado e para os conhecedores um conhecido acento (CICERO De optimo genere oratorum I 1)

Aleacutem disso Ciacutecero nos fornece um testemunho da permanecircncia da poesia dra-maacutetica grega em traduccedilotildees latinas e apresenta uma resposta agrave certa resistecircncia de seus contemporacircneos agrave leitura de discursos da retoacuterica grega em traduccedilatildeo latina Ciacutece-ro pontua sistematicamente duas criacuteticas

A este nosso labor duas espeacutecies de criacuteticas se opotildeem Uma esta ldquoMas de maneira melhor os gregosrdquo A esse que fala assim perguntar-se-ia se porventura poderiam os gregos discursar de maneira melhor em latim Outra ldquoPor que eu leria de preferecircncia esses ao inveacutes dos discur-sos gregosrdquo Os mesmos que dizem isso aceitam Acircn-dria e Sinefebos e natildeo leem Terecircncio e Ceciacutelio menos que Menandro E natildeo admitiriam Androcircmaca ou Antiacuteopeou os Epiacutegonos em latim Mas todavia leem Ecircnio e Pacuacutevio e Aacutecio de preferecircncia a Euriacutepides e Soacutefocles Que eacute entatildeo o fastio deles quanto aos discursos traduzidos do grego quando nenhum haja quanto aos versos (CICERO De op-timo genere oratorum VI 18)

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Ressalta-se que os versos traduzidos natildeo causam fastio aos seus contemporacirc-neos jaacute que a leitura de Acircndria peccedila de Terecircncio ou Sinefebos peccedila perdida de Ceciacutelio eacute menos frequente do que a leitura de Menandro Do mesmo modo testemunha que os romanos liam Euriacutepides e Soacutefocles traduzidos para o latim sendo Antiacuteope e Epiacutegonos peccedilas que natildeo chegaram ateacute noacutes Ciacutecero faz questatildeo de marcar que os poetas traacutegicos gregos natildeo tecircm a preferecircncia sobre a leitura dos textos de autores traacutegicos latinos Ecircnio130 Aacutecio e Pacuacutevio No entanto a questatildeo central natildeo diz respeito agrave escolha da lei-tura dos gregos ou dos autores latinos natildeo eacute a questatildeo da primazia que estaacute em jogo e nem a negaccedilatildeo do discurso de alguns de que eacute melhor ler os gregos em grego Na verdade Ciacutecero criacutetica a postura de seus contemporacircneos que leem poesia grega em traduccedilatildeo mas resistem agrave leitura de oradores gregos pela mesma via

A seguir em sua busca Do melhor gecircnero dos oradores Ciacutecero faz defesa do la-bor do tradutor de discursos oratoacuterios gregos ele mesmo se dedicou a traduzir discur-sos de Eacutesquines e Demoacutestenes ldquoe natildeo traduzi como inteacuterprete mas como orador com as mesmas apresentaccedilotildees de ideias e de figuras natildeo tive necessidade de reproduzir palavra por palavra mas conservei o aspecto todo e o significado das expressotildeesrdquo (CI-CERO De optimo genere oratorum V 14) Ao explicar o tipo de traduccedilatildeo que pratica Ciacutecero deixa claro que como tradutor sua escolha natildeo eacute a de uma traduccedilatildeo ad verbum mas de uma traduccedilatildeo recriadora que tem como foco o gecircnero oratoacuterio de modo que o tradutor se vecirc mais como um agente tradutor-orador e natildeo tradutor-inteacuterprete131

Seabra Filho em seus comentaacuterios acerca da obra de Ciacutecero observa que os textos de Ciacutecero satildeo repletos de reflexotildees filosoacuteficas de ensinamentos de histoacuteria de teacutecnicas da redaccedilatildeo e da arte retoacuterica transpondo o objetivo praacutetico para o qual foram escritos (SEABRA FILHO 2013 p 13) Para o tradutor no que concerne agrave arte retoacuterica Ciacutecero apresenta ldquoQuase nada que seja substancial que seja da teacutecnica de composiccedilatildeo Em verdade ele passa para os romanos para a literatura latina toda a teacutecnica grega sistematizada na Retoacuterica de Aristoacutetelesrdquo (SEABRA FILHO 2013 p 16) Com exceccedilatildeo de apresentar preceitos sobre a figura do orador sobre sua cultura e dicccedilatildeo E ainda quando fala aos oradores natildeo podemos excluir a aplicabilidade de tal entendimento tambeacutem para o texto literaacuterio pois eacute necessaacuterio ensinar e persuadir o puacuteblico em am-bos os casos Ou como alertou Alberte (1989 p3) a presenccedila de aspectos retoacutericos no gecircnero poeacutetico eacute um fato que natildeo se limita ao gecircnero cocircmico mas remonta agraves origens da literatura

Ciacutecero postula o lugar do orador seu ofiacutecio e seus objetivos quando afirma ldquoOacutetimo eacute com efeito o orador que pelo discurso tanto ensina como deleita e comove os acircnimos dos ouvintes Ensinar eacute devido deleitar honroso comover necessaacuteriordquo (CICE-RO De optimo genere oratorum III 1) De modo paralelo Horaacutecio condena a criaccedilatildeo

130 Mesmo que Ecircnio obtenha destaque entre os romanos como poeta eacutepico a alusatildeo ao poeta nesse trecho parece se referir agraves suas trageacutedias jaacute que se contrapotildeem agraves peccedilas de Soacutefocles e Euriacutepides131 No original encontramos ldquonon verbum pro verbo necesse habui reddere sed genus omne verborum vinque servavirdquo literalmente lsquonatildeo achei necessaacuterio verter palavra por palavra mas conservei o gecircnero das palavras e sua forccedila expressi-varsquo O trecho deixa claro a predileccedilatildeo dos latinos pela trilha da emulaccedilatildeo e natildeo traduccedilatildeo literal essa premissa de Ciacutecero ecoaraacute na obra de outros autores e na Idade Meacutedia em que a potencializaccedilatildeo dessas duas formas de traduccedilatildeo se veem em disputa ad verbum (palavra por palavra) X ad sensum (pelo sentido) Sobre esse tema veja-se os apontamentos de FURLAN (2003) no artigo Breviacutessima histoacuteria da teoria da traduccedilatildeo no Ocidente - II A Idade Meacutedia

demasiada sem utilidade agrave vida Conforme se pode verificar em Epiacutestola aos Pisotildees obra posteriormente conhecida pela alcunha dada por Quintiliano de Arte Poeacutetica

Os poetas ou pretendem ser uteis ou deleitar ou ao mes-mo tempo dizer coisas belas e aproveitaacuteveis agrave vida O que quer que haacutes de ensinar secirc breve para que os espiacuteritos doacuteceis e fieis depressa apreendam e retenham os teus pre-ceitos Tudo que eacute supeacuterfluo se escapa da memoacuteria mui-to cheia As coisas inventadas em vista do prazer estejam proacuteximas da verdade que a faacutebula natildeo exija que se creia em tudo que ela queira nem retire vivo do ventre de Lacirc-mia o menino que ela almoccedilou (HORAacuteCIO Poeacutetica I 333-340 traduccedilatildeo de Dante Tringali)

Horaacutecio valoriza o empenho do poeta na sua produccedilatildeo aliada agrave arte e agrave utili-dade dessa produccedilatildeo Admite o prazer advindo das invenccedilotildees proacuteprias da ficccedilatildeo mas prefere que elas natildeo sejam demasiadas ou incoerentes Os limites devem por fim aos exageros e garantir a verossimilhanccedila (assim como Aristoacuteteles alertou na Poeacutetica XV 1454a) pois a liberdade ilimitada de inventar impede a utilidade da arte que para o poeta deve ser uacutetil verdadeira agradaacutevel e educativa

Horaacutecio prossegue tematizando um problema tradicional no debate das esco-las de retoacuterica a poeacutetica da arte X a poeacutetica do engenho Afinal um bom poema eacute con-sequecircncia da arte ou do engenho do poeta ldquoTecircm-se perguntado se um poema se torna digno de louvor pela natureza ou pela arte Eu natildeo vejo de que serve o trabalho sem uma veia feacutertil nem de que serve o engenho rude assim uma coisa reclama o auxiacutelio da outra e conspiram amigavelmenterdquo (vv 408-411) Nos versos 408 a 418 alerta que de nada serve o trabalho sem lsquorica intuiccedilatildeorsquo ou o lsquoengenho rudersquo com pouco trabalho Concluiraacute que ao bom poeta cabe o equiliacutebrio dessas duas qualidades que se comple-mentam a arte e o engenho (vv407-410) O talento precisa ser aperfeiccediloado o poeta eacute um artiacutefice do poema e como tal deve tambeacutem se atentar para o lugar da teacutecnica em sua criaccedilatildeo poeacutetica A soluccedilatildeo proposta aconselha o equiliacutebrio da arte e do talento de modo que as habilidades naturais sejam aprimoradas pelo trabalho contiacutenuo De nada adianta para Horaacutecio apenas o engenho sem praacutetica como do mesmo modo natildeo eacute possiacutevel o domiacutenio da teacutecnica sem a inspiraccedilatildeo sem a intuiccedilatildeo artiacutestica da qual depen-de o poeta ao exercer seu ofiacutecio

As premissas de Ciacutecero e Horaacutecio se convergem pois Ciacutecero fala para ensinar e ensinando se promove o deleite Horaacutecio fala sobre deleitar e deleitando se ensina Aleacutem disso outras aproximaccedilotildees entre os dois se destacam o conceito de orador ideal apresentado por Ciacutecero em De Oratore eacute similar ao conceito de poeta ideal na Arte Poeacutetica a utilidade social que o orador e o poeta devem render agrave paacutetria e tambeacutem ambos apresentam princiacutepios esteacuteticos similares em relaccedilatildeo ao conceito de unidade e harmonia da obra

Inicialmente pode causar estranhamento que na obra de Horaacutecio natildeo consta nenhuma referecircncia a Ciacutecero Segundo Alberte (1989 p88) Ciacutecero segue proscrito

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durante a eacutepoca de Augusto o proacuteprio Plutarco (Ciacutecero 49) relata que um sobrinho do Imperador se viu atemorizado enquanto lia uma obra de Ciacutecero e eacute interrompido pela chegada inesperada de Augusto Natildeo soacute Horaacutecio mas outros poetas do tempo de Au-gusto natildeo falavam em Ciacutecero pelo menos natildeo nos ciacuterculos de amizade do Imperador

Em outra obra na Republica livro IV 11-2 Ciacutecero trata da comeacutedia e expotildee seu julgamento acerca do que considera um excesso do teatro grego a liberdade sem limites nos gracejos

Jamais a comeacutedia se natildeo a tivessem autorizado os costu-mes puacuteblicos teria podido apresentar no teatro tatildeo vergo-nhosas infacircmias Os gregos mais antigos nos seus viacutecios permitiam que se dissesse no teatro tudo quanto se qui-sesse como se quisesse sem respeitar os nomes proacuteprios A quem natildeo aludiu a comeacutedia Ou antes a quem natildeo dei-xou A quem perdoou Pode permitir-se que fustigasse homens populares na Repuacuteblica como iacutemprobos e sedi-ciosos Cleatildeo Cleofonte Hipeacuterbolo Pode tolerar-se que para essa gente mais eficaz do que a alusatildeo do poeta fosse a censura dos seus cidadatildeos Mas ultrajar em verso e na cena Peacutericles que durante tantos anos na paz como na guerra com um creacutedito tatildeo legiacutetimo regeu os destinos de sua paacutetria eacute menos toleraacutevel do que se entre noacutes ultra-jasse Plauto e Neacutevio ou Cipiatildeo Catatildeo Ceciacutelio (traduccedilatildeo Neacutelson Jahr Garcia)

A criacutetica diz respeito agrave comedia antiga agrave comeacutedia praticada por Aristoacutefanes (tambeacutem por outros como Cratino e Eupocirclis por exemplo) mesmo sem nomeaacute-lo diretamente os homens citados como objeto de troccedila satildeo personagens das peccedilas do comedioacutegrafo Em certo sentido tal trecho dialoga com a passagem da ldquoEacutetica a Nico-macosrdquo anteriormente citada ali Aristoacuteteles critica aquele que estaacute agrave caccedila do riso faacutecil a qualquer preccedilo aqui Ciacutecero condena o excesso de liberdade dos comedioacutegrafos antigos em ultrajar figuras puacuteblicas mesmo a quem natildeo o mereccedila como eacute o caso de Peacutericles Liberdade essa que para o filoacutesofo natildeo deveria ser tolerada

Uma criacutetica parecida eacute aludida por Horaacutecio na Arte Poeacutetica quando se refere

a Teacutespis como inventor do gecircnero dramaacutetico a Eacutesquilo como inventor da maacutescara e da declamaccedilatildeo grandiloquente e ldquoa esses sucedeu a comeacutedia antiga e foi recebida natildeo sem vivo aplauso mas a liberdade degenerou em viacutecio e em abuso que teve de ser re-primido pela lei Depois de aceite a lei calou-se o coro para sua vergonha porque se lhe tirara o direito de injuriarrdquo (vv 275-284)132 Horaacutecio natildeo nega o sucesso alcanccedilado pela comeacutedia antiga mas marca como Ciacutecero o excesso de liberdade daqueles poetas cocircmicos que retratavam personagens puacuteblicas com injuacuterias abusivas Na sequecircncia natildeo se refere a outras fases da comeacutedia grega como a comeacutedia nova da antiga passa a abordar a comeacutedia latina

132 Na traduccedilatildeo de RM Rosado Fernandes

O poeta traz uma proposta de reforma para o teatro romano em moldes gre-gos busca a harmonia entre o seacuterio e o jocoso e condena excessos no espetaacuteculo dra-maacutetico seja traacutegico ou cocircmico O primeiro ponto de sua reforma eacute a moderaccedilatildeo que a trageacutedia modere o grau do pateacutetico e a comeacutedia modere o uso da vulgaridade Horaacutecio vecirc no drama satiacuterico uma resposta para abrandar o grau solene do traacutegico e para uma elevaccedilatildeo do cocircmico

Natildeo faccedilas no entanto representar na cena o que deva passar-se nos bastidores retira muitas coisas da vista es-sas que melhor descreve a facuacutendia de uma testemunha Que Medeia natildeo trucide os filhos diante do puacuteblico nem o nefando Atreu cozinhe publicamente entranhas huma-nas tatildeo-pouco em ave Procne se transforme ou Cadmo em serpente Detestarei tudo o que assim me mostrares porque ficarei increacutedulo Que a peccedila nunca tenha mais do que cinco actos nem me-nos do que esse nuacutemero se acaso desejar que voltem a pedi-la e tornar agrave cena depois de estreadaQue na peccedila natildeo intervenha um deus a natildeo ser que o de-senlace seja digno de um vingador nem tatildeo pouco se lan-ce um quarto actor a falar na mesma cena (vv 183-194)133

As premissas estabelecidas por Horaacutecio para a arte dramaacutetica se iniciam pelos caracteres pela representaccedilatildeo da accedilatildeo pela verossimilhanccedila pelo nuacutemero de atos pelo uso ponderado do deus ex-machina Primeiramente o poeta chama a aten-ccedilatildeo para a construccedilatildeo dos caracteres em versos anteriores no 113 a 127 estabelece que se siga a tradiccedilatildeo ou que se atente para a construccedilatildeo de caracteres apropriados tal como um Aquiles inexoraacutevel uma Medeia indomaacutevel ou uma Ino chorosa Dos carac-teres agrave representaccedilatildeo da accedilatildeo Horaacutecio condena a representaccedilatildeo de cenas sangrentas ou demasiadas espetaculosas como uma metamorfose em palco por exemplo Sobre o uso do deus ex-machina Horaacutecio parece admitir se o desenlace da peccedila necessitar de tal interventor ao contraacuterio de Aristoacuteteles que na Poeacutetica recomenda ldquoeacute pois evidente que tambeacutem os desenlaces devem resultar da proacutepria estrutura do mito e natildeo do deus ex machina como acontece na Medeacuteia ou naquela parte da Iliacuteada em que se trata do regresso das navesrdquo Nos versos seguintes o estagirita abre uma exceccedilatildeo ao uso do recurso de um deus ex-machina se a representaccedilatildeo de fatos sucedidos dizem respeito a fatos que aconteceram antes do drama comeccedilar ou em acontecimentos que ao homem eacute vedado conhecer como em prediccedilotildees mas natildeo deve ser usado para o desfecho do drama

As regras ou instruccedilotildees para o gecircnero dramaacutetico apresentadas por Ho-

133 Aristoacuteteles afirma que querer produzir emoccedilotildees no espectador ldquounicamente pelo espetaacuteculo eacute processo alheio agrave arterdquo Cf Poeacutetica 1453b 1-8134 Maacutequina no sentido de maravilhoso ou sobrenatural que no teatro grego contava com um aparato mecacircnico em que a personagem era elevada acima do cenaacuterio ressaltando seu aspecto sobrenatural ou divino Veja-se a nota 219 da traduccedilatildeo triliacutengue da Poeacutetica de Yebra (1974)135 Poeacutetica 1454b1-2 traduccedilatildeo de Eudoro de Souza No Craacutetilo(425d) Platatildeo tambeacutem condena o uso do ex-machina dizendo que os tragedioacutegrafos recorrem a maacutequinas elevando deuses porque natildeo sabem como terminar o desenlace

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raacutecio partem da valorizaccedilatildeo da capacidade do poeta de respeitar as regras especiacuteficas que compete a cada gecircnero Na instruccedilatildeo agrave famiacutelia dos Pisotildees afirma

ldquoSe natildeo posso nem sei observar as funccedilotildees prescritas e os tons caracteriacutesticos dos diversos geacuteneros por que hei-de ser saudado como poeta Qual a razatildeo por que prefiro com falso pudor desconhececirc-los a aprendecirc-los Mesmo a comeacutedia natildeo quer seus assuntos expostos em versos traacute-gicos e igualmente a ceia de Tiestes natildeo se enquadra na narraccedilatildeo em metro vulgar mais proacuteprio dos socos136 da comeacutediardquo (vv 85-92)

Horaacutecio alerta aos seus interlocutores que a um poeta cabe o conhecimento daquilo que eacute proacuteprio a cada gecircnero se o poeta natildeo o sabe e natildeo busca aprendecirc-lo natildeo deveria ser chamado de poeta Natildeo se compotildee uma comeacutedia em estilo proacuteprio da trageacutedia nem se usa na composiccedilatildeo de uma trageacutedia aquilo que eacute proacuteprio do estilo cocirc-mico Cada gecircnero tem seus limites e suas peculiaridades e os assuntos devem ser de-senvolvidos observando esses aspectos conforme se queira suscitar laacutegrimas ou risos A reformulaccedilatildeo necessaacuteria ao teatro deve considerar os limites da emoccedilatildeo para Ho-raacutecio agraves vezes a comeacutedia eleva sua voz e ldquoCremes indignado ralha em tom pateacuteticordquo (v94) Cremes eacute personagem de uma comeacutedia de Terecircncio um tipo de anciatildeo avarento e irasciacutevel Na representaccedilatildeo da comeacutedia a personagem cocircmica natildeo deve assumir um tom mais elevado improacuteprio ao gecircnero como no exemplo dado Em relaccedilatildeo a esses versos Tringali (1993 p79) afirma que ldquoHoraacutecio jaacute comeccedila a insinuar seu programa de reformas do teatro Deseja que a comeacutedia fique acima da vulgaridade e que a trageacute-dia modere a solenidade e o emocionalismordquo Para o tradutor aos poucos a digressatildeo caminha em direccedilatildeo ao drama satiacuterico que na visatildeo de Horaacutecio parece representar uma redenccedilatildeo dos desvios da trageacutedia e comeacutedia

O poeta marca o meacuterito dos antigos escritores que introduziram o teatro la-tino ldquoOs nossos poetas nada deixaram que natildeo experimentassem nem foi pequeno o louvor que mereceram os que ousando abandonar o grego trilho celebraram os paacutetrios feitos ora criando as faacutebulas pretextas ora as togadasrdquo (vv285-288) Horaacutecio natildeo nega a influecircncia do teatro grego na formaccedilatildeo do teatro latino mas enfatiza a ousadia daqueles que natildeo se renderam agrave forma de um modelo importado e transcen-deram o modelo considerando suas proacuteprias questotildees nacionais A criaccedilatildeo de peccedilas de argumento romano fizeram surgir as peccedilas pretextas que eram uma modalidade de trageacutedia aos moldes romanos em que os personagens vestiam togas como a dos altos magistrados nas cerimocircnias puacuteblicas e as togadas comeacutedias em que os atores se ves-tiam com a toga comum do cidadatildeo romano (TRINGALI 1993p 92)137

Horaacutecio continua suas admoestaccedilotildees aos Pisotildees afirmando no verso 309 que

136 O soco era o calccedilado tiacutepico da comeacutedia sem salto enquanto o coturno era o calccedilado tiacutepico da trageacutedia e tinha um solado mais alto 137 Sobre a origem das pretextas e a repercussatildeo dos temas romanos na trageacutedia italiana veja-se CARDOSO Zelia de Almeida O drama histoacuterico latino e suas projeccedilotildees no mundo Renascentista e Barroco Letras Claacutessicas n 6 p 161 ndash 195 2002

ldquosaber eacute o princiacutepio e a fonte do bem escreverrdquo e portanto apresenta suas premissas para a composiccedilatildeo teatral

Ao douto imitador aconselharei que atente no modelo da vida e dos costumes e daiacute retire viacutevido discurso Comeacutedias haacute por vezes que embora parcas de elegacircncia medida e arte por apresentarem temas atraentes e caracteres bem delineados agradam mais ao puacuteblico e o prendem muito mais do que versos sem realidade ou harmoniosas baga-telas poeacuteticas (vv317-322) 138

O poeta recomenda atenccedilatildeo agrave construccedilatildeo dos caracteres e temas adequados apoacutes a observaccedilatildeo pessoal da vida cotidiana A vida cotidiana como modelo eacute uma re-gra comumente associada agrave comeacutedia nova e agrave comeacutedia de Menandro Horaacutecio critica o uso dos versos muito ornamentados eacute preferiacutevel um estilo simples desde que os caracteres sejam consistentes A imitaccedilatildeo da vida e dos costumes eacute uma premissa que faz eco a um dito atribuiacutedo a Ciacutecero e que foi transmitido por Donato a conhecida formulaccedilatildeo segundo a qual lsquoa comeacutedia eacute a imitaccedilatildeo da vida o espelho de costumes e a imagem da verdadersquo imitatio uitae speculum cansuetudinis imago veritatis139 De acordo com Cordeiro

Esta definiccedilatildeo da comeacutedia gozou de uma extraordinaacuteria repercussatildeo na literatura e na poeacutetica dos seacuteculos XVI e XVII Eacute presenccedila obrigatoacuteria nas introduccedilotildees agraves comeacutedias dos autores claacutessicos figura em muitos tratados compre-ensivos de poeacutetica sendo tambeacutem frequente nos proacutelogos das comeacutedias em latim e em vulgar do periacuteodo humaniacutes-tico Haacute ecos desta regra em Saacute de Miranda Antoacutenio Fer-reira e Jorge Ferreira de Vasconcelos e tambeacutem em outros autores coevos bem no Quixote de Cervantes ou de uma forma mais distante no Hamlet de Shakespeare (DONA-TO 2011 p8)

A observaccedilatildeo da vida como modelo jaacute eacute uma regra bastante conhecida por Horaacutecio e Ciacutecero visto que tal premissa se consolida na transformaccedilatildeo do gecircnero cocircmico entre os gregos a partir do seacuteculo IV a C se consolida a comeacutedia nova ou co-meacutedia de costumes Tal modalidade foi ganhando ou ocupando um terreno habitado antes pelos temas poliacuteticos e os temas do cotidiano aos poucos passaram a prevalecer no gosto popular provocando assim uma mudanccedila no gecircnero teatral Para Souza e Silva pesquisadora e tradutora da obra de Menandro

A substituiccedilatildeo do plano domeacutestico ao ciacutevico na acccedilatildeo da

138 No texto latino consta ldquofabulardquo e natildeo ldquocomoediardquo a escolha da tradutora RM Rosado Fernandes pode estar pautada no fato de que Horaacutecio estrutura uma peccedila que deve observar os costumes cotidianos caracteriacutestica proacutepria da comeacutedia e natildeo da trageacutedia 139 Cf DONATO Eacutelio De Comoedia Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Adriano Milho Cordeiro Coimbra Artciencia 2011 p8 e 27

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comeacutedia consumou-se na Greacutecia na segunda metade do seacuteculo IV a C depois de sinais evidentes de mudanccedila que marcavam jaacute as uacuteltimas comeacutedias de Aristoacutefanes (Mulhe-res na Assembleia e Pluto) Os temas da comeacutedia caem agora em definitivo no terreno do quotidiano privado onde situaccedilotildees banais como viver em abastanccedila ou carecircn-cia o trabalho a alimentaccedilatildeo a agitaccedilatildeo do mercado as relaccedilotildees familiares dominam E dentro do mesmo espiacuteri-to os ldquoheroacuteisrdquo que lhes datildeo vida satildeo gente comum como a que habita uma qualquer rua da cidade (MENANDRO 2007 p12)

A ecircnfase na construccedilatildeo dos caracteres consolidada pela comeacutedia havia sido apontada anteriormente pelo historiador e criacutetico literaacuterio Dioniacutesio de Halicarnasso (60 aC ndash 7 dC) que no tratado Sobre a imitaccedilatildeo (II 9-14) afirma que dos comedioacutegra-fos se deve imitar o vocabulaacuterio puro e claro por serem bons construtores de caracte-res O tratado Sobre a Imitaccedilatildeo nos chegou apenas em fragmentos sendo recuperado parte dos dois primeiros livros e uma epiacutetome do segundo livro do terceiro nada ainda foi recuperado140 No tratado o historiador trata sobre o conceito de imitaccedilatildeo e aponta os poetas e prosadores que considera mais ilustres com o intuito de indicar os melho-res modelos aos que almejam aprender a escrever e falar bem Para Dionisio a imi-taccedilatildeo eacute uma atividade que parte da contemplaccedilatildeo do modelo a fim de reproduzi-lo O criacutetico atribui uma consequecircncia positiva decorrente de tal contemplaccedilatildeo a emulaccedilatildeo ou seja o desejo de exceder aos considerados ceacutelebres que seria um impulso da alma provocado pela admiraccedilatildeo do que eacute belo (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten I 2) No que concerne ao talento e ao gosto literaacuterio o criacutetico afirma que a parte mais importante do talento reside na natureza e natildeo em noacutes mesmos o gosto literaacuterio no entanto depende unicamente de noacutes (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten I 3)

Desse modo se o talento natildeo depende necessariamente do artista mas o gosto literaacuterio sim o historiador passa a elencar o que haacute de melhor nos autores instruindo para que se beba nas fontes consideradas as mais proveitosas Ele assinala a impor-tacircncia de se ler os antigos natildeo soacute para buscar temas mas tambeacutem para se esforccedilar na superaccedilatildeo das formas e das expressotildees Sobre os autores dramaacuteticos Dioniacutesio consi-dera Eacutesquilo sublime pois sabe utilizar adequadamente os caracteres e os sentimentos e eacute superior na capacidade de adornar tanto a linguagem figurada quanto a habitual aleacutem de ser criador de palavras e temas proacuteprios Soacutefocles se distingue tambeacutem nos caracteres e sentimentos e por colocar em cena personagens sempre dignos aleacutem de adornar seu discurso somente com o necessaacuterio Quanto a Euriacutepides Dioniacutesio afirma que ao poeta agrada mais a busca da verdade mais proacutexima da vida real lhe escapando agraves vezes o devido decoro e acerto na representaccedilatildeo de caracteres elevados apesar de descrever com maior detalhe os sentimentos indignos covardes e baixos das persona-gens (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten II 2 12)

140 Juan Segura(2005) tradutor da ediccedilatildeo espanhola da Gredos afirma que a obra nos chegou por quatro fontes distin-tas e incompletas mas natildeo haacute muitas duacutevidas quanto agrave autenticidade do tratado visto que o proacuteprio Dioniso eacute uma das fontes pois parte do livro II foi transmitida na Carta a Pompeu 32-611 Cf Tratados de Critica Literaacuteria p 478

No que diz respeito aos comedioacutegrafos Dioniacutesio natildeo se refere a Aristoacutefanes ou qualquer outro poeta da comeacutedia antiga Dos traacutegicos passa a um pequeno comentaacuterio sobre a importacircncia de se imitar todas as virtudes de expressatildeo dos comedioacutegrafos tais como a utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio puro e claro breve grandioso veemente proacute-prio do gecircnero comeacutedia Como jaacute foi mencionado Dioniacutesio considera os comedioacutegrafos bons construtores de caracteres e aleacutem de citar nominalmente a Menandro alerta que se deve observar como se daacute o tratamento dos fatos em suas peccedilas (DIONISIO DE HA-LICARNASSO Imitacioacuten II 2 14)

Dioniacutesio tende a evitar polecircmicas apresenta uma linguagem natural nem elo-quente por demais nem simploacuteria tem apurado olhar analiacutetico e apresenta um estu-do cronoloacutegico em que se dispotildee a escrever um tratado sobre a imitaccedilatildeo e portanto discorre especificamente sobre o que se deve imitar Consoante agrave imitaccedilatildeo conclamada pelo historiador Juan Segura (2005) nota em suas observaccedilotildees acerca da obra de Dioniacutesio aspectos negativos causados por essa concepccedilatildeo como a limitaccedilatildeo imposta a criaccedilatildeo dos artistas que deveriam estar sempre embasados nos modelos considerados perfeitos e o fato das produccedilotildees dos autores considerados em segunda categoria natildeo terem sido copiadas jaacute que se buscava copiar apenas as dos considerados perfeitos

Nossa pesquisa centra-se no estudo da criacutetica dos romanos sobre a produccedilatildeo literaacuteria grega com isso as postulaccedilotildees de Horaacutecio Ciacutecero e Dioniacutesio de Halicarnas-so enveredam para a elevaccedilatildeo dos modelos considerados egreacutegios Aleacutem disso outra perspectiva que poderia ser considerada eacute a investigaccedilatildeo da valorizaccedilatildeo da cultura gre-ga observando se constitui em valoraccedilatildeo ou preponderacircncia sobre a cultura romana como um modo de hierarquizaccedilatildeo Quanto a isso Luiz Fernando Dias Pita em Visotildees da identidade romana em Ciacutecero e Secircneca observa

Diversos autores pensarem ser a literatura grega ldquohierar-quicamenterdquo superior agrave latina esta seria enfim um con-junto de simples repeticcedilotildees dos processos desenvolvidos por aquela com os autores latinos servindo-se reitera-damente dos modelos gregos para criar obras que quase nunca poderiam igualar-se ao original Contudo devemos noacutes tambeacutem prevenir nosso olhar e nossa capacidade de julgamento quanto agrave ultravalorizaccedilatildeo ndash propugnada pelos romacircnticos e repetida por seus sucessores ndash da originali-dade como quesito avaliativo da primeira ordem (PITA 2010 p 21)

Por fim salientamos que nossa pesquisa natildeo tem como objetivo hierarquizar e sim apontar o que os criacuteticos conjecturaram como relevante para ser imitado e tal imitaccedilatildeo eacute percebida como positiva e como uma amaacutelgama e que contribui para a formaccedilatildeo do que poderiacuteamos denominar de cultura greco-latina mas ressaltamos que tal investigaccedilatildeo eacute um caminho possiacutevel para confirmar ou corrigir nossa concepccedilatildeo Inicialmente em atenccedilatildeo ao mote emprestado de Quintiliano o da lsquoobservaccedilatildeo dos

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bons costumesrsquo e o do lsquocaraacuteter uacutetil da comeacutediarsquo procuramos observar essas mesmas premissas em extratos da obra de Ciacutecero e Horaacutecio Horaacutecio natildeo soacute toma a arte como verossiacutemil e imitativa da vida a arte como imitaccedilatildeo da vida eacute um conceito imbricado ao prazer que vem da imitaccedilatildeo e da funccedilatildeo educativa que se exerce ao imitar E como na Poeacutetica (1458b 59) nos lembra o proacuteprio Aristoacuteteles ldquoo imitar eacute congecircnito ao homem () e os homens se comprazem no imitadordquo

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TRINGALI Dante Arte Poeacutetica de Horaacutecio Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de D Trin-gali Satildeo Paulo Musa Editora 1993

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Qual eacute o seu OrfeuBreve apreciaccedilatildeo do mitode helecircnico reinventado

pelas muacuteltiplas linguagens artiacutesticas

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Fernanda Lemos de Lima

Ah quero ser teu Orfeu cantar nos teus braccedilos meu poema ateu E fazer do teu sexo o meu verso controverso

Com os versos de Thiago Petit como epiacutegrafe inicio o presente texto so-bre uma das figuras miacuteticas e miacutesticas de maior impacto da antiguidade helecircnica Orfeu Todavia mesmo buscando compreender alguns pontos de sua escatologia no ambiente claacutessico o estudo aqui empreendido visa perceber a permanecircncia e reinven-ccedilatildeo do mito atraveacutes de diferentes teacutecnicas artiacutesticas as quais natildeo apenas revisitam o mito mas o reescrevem no processo incessante da estrada da Arte

Orfeu eacute o heroacutei miacutetico encantador de feras capaz de fazer adormecer o catildeo

triceacutefalo dos infernos eacute tambeacutem a personagem a sofrer um diasparagmoacutes (desmem-brado) por obra das bacantes as seguidoras do deus Dioniso curiosamente deidade cujo culto tem correlaccedilatildeo com os misteacuterios oacuterficos O que leva a outro ponto fortiacutessimo da histoacuteria sobre o cantor miacutetico o Orfismo como um culto de misteacuterios

Orfeu eacute filho de um rei com uma das Musas que no seacuteculo XX seraacute torna-

do tambeacutem em sambista de Vinicius de Moraes em personagem apropriada por Neil Gaiman no Sandman em tema de muacutesica Por essas breves menccedilotildees eacute possiacutevel com-preender a intensidade do mito que eacute atualizado de vaacuterias formas e ultimamente tambeacutem o seraacute pela arte pop

Para empreendermos a jornada em busca desse heroacutei eacute preciso compreender o

processo de construccedilatildeo do mito para em seguida percorrer os rastros das adaptaccedilotildees

1 Quem eacute Orfeu

De acordo com Junito de Sousa Brandatildeo (BRANDAtildeO 1997 p196) Orfeu eacute fi-lho do rei-rio Eagro e da Musa Caliacuteope nada mais nada menos que a musa da poesia eacutepica Outras versotildees filiam o cantor mortal ao deus Apolo o condutor das Musas Sua vinculaccedilatildeo a Apolo eacute compreensiacutevel em funccedilatildeo de sua habilidade musical Haacute vaacuterias passagens do mito em que o heroacutei se destaca por conta de seu canto e de sua capacida-de de encantar todos os seres atraveacutes da muacutesica

Aleacutem da ligaccedilatildeo com o culto Apoliacuteneo haacute as correlaccedilotildees entre o heroacutei de ori-gem traacutecia e a figura de Dioniso outra divindade que embora considerada grega uma vez que fora concebida em Tebas tem todo o processo de entrada e aceitaccedilatildeo do culto marcado em sua escatologia fazendo com que esse seja percebido como algo vindo de fora da Greacutecia Tais dados levam agrave compreensatildeo do mito e culto em torno da figura de Orfeu como de origem natildeo-helecircnica ou seja como um processo religioso incorporado agrave cultura da Heacutelade

Eacute interessante pensar no entanto como Orfeu eacute representado iconografica-

mente como grego mesmo ao ser representado ao lado de personagens reconhecidas

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como de origem Traacutecia como eacute destacado por Ordep Serra e visiacutevel na imagem de um vaso publicada na beliacutessima e importantiacutessima traduccedilatildeo dos Hinos Oacuterficos (SERRA p 754) Na referida imagem eacute preciso destacar que Orfeu traja uma tuacutenica e tange sua Lira de nove cordas sua proacutepria invenccedilatildeo uma vez que a lira tradicional apresentava sete cordas O contraste com os guerreiros traacutecios salienta a imagem selvagem e rude daqueles homens que se vestem com peles de leotildees todavia se encontram calmos a escutar o canto de Orfeu Esse retrato reforccedila a ideia de que o cantor filho da Musa eacute capaz de acalmar a selvageria de homens e animais

Haacute outras iconografias que ligam Orfeu agrave capacidade de acalmar as feras O

Museu Bizantino e Cristatildeo de Atenas guarda uma escultura do seacuteculo IV que justa-mente representa Orfeu a cantar e tocar para os animais que calmos escutam-no

O nome Orfeu tem uma etimologia obscura e nesse ponto eacute necessaacuterio res-

saltar novamente a hipoacutetese de se tratar originalmente de um heroacutei traacutecio que foi incluiacutedo no universo miacutetico helecircnico o que explicaria a obscuridade da etimologia de seu nome Novamente recorrendo a Brandatildeo observa-se que o estudioso levanta uma possibilidade para a compreensatildeo do nome Orfeu

A hipoacutetese de uma derivaccedilatildeo de orbho- ὀρφο- (orpho-) ldquoprivado derdquo( e Orfeu o foi de Euriacutedice) eacute apenas uma hi-poacutetese bastante influenciada pela existecircncia de ὀρφανός (orphanoacutes)

Em outra obra Brandatildeo (BRANDAtildeO 1995 p141) aventa a hipoacutetese de o nome estar ligada agrave palavra que em grego significaria a ldquoobscurordquo

A despeito da dificuldade etimoloacutegica de seu nome provavelmente de origem

preacute-helecircnica seu mito tem uma importacircncia bastante evidente na antiguidade como jaacute foi mencionado aqui Sua escatologia envolve accedilotildees que satildeo sobre-humanas e justa-mente por isso colocam o heroacutei na posiccedilatildeo de um mortal que ultrapassa sua medida seja pela capacidade ilimitada de encantar com a muacutesica seja por ter decidido ir ao mundo dos mortos mesmo estando ainda vivo Ordep Serra ao comentar os feitos de Orfeu no processo de encantar as feras com a muacutesica como apresentado nos versos de Simocircnides ldquoSatildeo imagens de beleza oniacuterica mas eacute evidente que essas faccedilanhas desa-fiam a ordem do mundo que a subvertemrdquo (SERRA p 41)

Para compreender essas desmedidas de Orfeu eacute preciso falar dos passos do

mito mesmo que de modo conciso Orfeu o muacutesico para aleacutem da sua filiaccedilatildeo agrave musa Caliacuteope e ao rei-rio da Traacutecia Eagro mais tarde associado a Apolo foi um dos heroacuteis a participar da expediccedilatildeo da nau Argo ao lado de Jasatildeo Heacuteracles e outros heroacuteis todos retratados na Argonautica de Apolocircnio de Rodes Nesse ponto eacute interessante pensar no papel de um cantor e poeta na expediccedilatildeo em busca do velocino de Ouro uma vez que Orfeu natildeo eacute reconhecido exatamente por suas virtudes guerreiras

Como entatildeo um cantor e poeta poderia ser imprescindiacutevel para aventura de

busca e captura de um objeto precioso em meio a uma regiatildeo baacuterbara Sobretudo em

uma terra cujo rei Aetes era conhecido por sua selvageria e violecircncia contra os estran-geiros Ele seraacute o indiviacuteduo que marcaraacute o ritmo das remadas e seraacute responsaacutevel por tudo que esteja ligado agrave canccedilatildeo e agrave calmaria Ele seraacute fundamental na viagem da nau Argo por ser o uacutenico capaz de encantar as sereias Sua forccedila natildeo eacute fiacutesica mas divina atraveacutes da muacutesica Serra ressalta em seu estudo introdutoacuterio agrave traduccedilatildeo dos Hinos Oacuter-ficos o que caracteriza Orfeu Ele era ldquosiacutembolo do fazer criativo que os gregos chama-vam de poicircesis uma atividade que daacute frutos em todas as esferas da imaginaccedilatildeordquo(SER-RA p21) Sua capacidade de accedilatildeo estaacute ligada portanto agrave arte criativa e em termos miacutesticos agrave capacidade encantatoacuteria Nesse sentido embora ele seja ligado ao deus da medida Apolo ele eacute o indiviacuteduo que supera seus limites humanos encantando seres sobre-humanos bem como os deuses Haacute algo de desmedido tambeacutem no mitologema de Orfeu

Aleacutem da aventura ao lado dos Argonautas o tema que mais marca o mito de Orfeu eacute seu infortuacutenio amoroso Aliaacutes na maioria das referecircncias contemporacircneas ao mito de Orfeu haacute a ideia de se falar da histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice Justamente a per-da de Euriacutedice marcaraacute a trajetoacuteria do heroacutei filho de Caliacuteope Essa passagem para aleacutem dos contornos amorosos da imagem de amor que se perde para morte natildeo uma vez mas duas traz traccedilos importantiacutessimos para a compreensatildeo dos passos dos misteacuterios

Antes de adentrar o tema do Orfismo opto por falar do enlace amoroso fun-damental para os passos do mito Orfeu casou-se com Euriacutedice depois de sua aventura junto aos Argonautas Vale ressaltar que o nome de Euriacutedice tem um significado de extrema relevacircncia Orfeu em uma hipoacutetese etimoloacutegica o obscuro ndash algo que remete agrave obscuridade dos misteacuterios ndash eacute casado com a ldquojusticcedila amplardquo pois o nome de Euriacutedice eacute composto pela raiz euri- que significa amplo e pelo vocaacutebulo diacuteke ordem justiccedila direito correccedilatildeo Karl Kereacuteny em sua obra Os heroacuteis gregos acrescenta a informaccedilatildeo de que o nome Euriacutedice significaria tambeacutem ldquoa que governa extensamenterdquo epiacuteteto atribuiacutedo agrave Perseacutefone esposa de Hades O mesmo autor elenca ainda outros nomes atribuiacutedos agrave amada de Orfeu como Agriacuteope e Argiacuteope respectivamente ldquoa de rosto selvagemrdquo e ldquoa de rosto argecircnteordquo (KEREacuteNYI p 232) Levando em consideraccedilatildeo a proposta de reflexatildeo da presente investigaccedilatildeo a respeito da permanecircncia do mito de Orfeu opto por me ater ao nome Euriacutedice Isso se daacute por ser esse o nome pelo qual se conhece a amada de Orfeu nas obras a serem trabalhadas aqui

Assim atendo-me ao nome Euriacutedice eacute interessante pensar esse desposar da ldquojusticcedila amplardquo que seraacute perdida por Orfeu No mito cantado por Virgiacutelio Euriacutedice eacute perseguida por Aristeu um apicultor que deseja a estuprar Em sua fuga Euriacutedice eacute picada por uma serpente e vem a falecer Orfeu natildeo aceita a morte da esposa e decide ir ao Hades para a resgatar

A decisatildeo de ir ao Hades eacute fundamental para a associaccedilatildeo de Orfeu aos mis-teacuterios namedida em que a ideia de ir ao mundo dos mortos e de laacute retornar implica numa espeacutecie de renascimento miacutestico renascimento do iniciado que precisa morrer e deixar sua vida anterior para traz renascendo ao voltar dos mortos

A passagem da morte da jovem Euriacutedice e da dor e busca de reparo por parte

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de Orfeu eacute contada em versos por Virgiacutelio como jaacute foi dito Mais precisamente nas Geoacutergicas IV versos 453-527 em que se vecirc Aristeu o apicultor procurando compreen-der que maldiccedilatildeo se abate sobre ele causando o perecimento de todas as suas abelhas

A resposta vem do velho Proteu o qual eacute uma figura tomada dentro da tradi-

ccedilatildeo literaacuteria claacutessica agrave Odisseia como bem lembra Veiga no comentaacuterio que antecede a apresentaccedilatildeo do texto original de Virgiacutelio e de sua proposta de traduccedilatildeo Assim o apicultor apoacutes aprisionar Proteu e esperar suas metamorfoses cessarem obteacutem final-mente a resposta

Eacute a ira a ira de uma divindade que te persegue pagas os grandes atentados o pobre Orfeu de nenhum modo se os destinos natildeo se opotildeem alivia a ti estas penas por causa do teu comportamento e se enfurece severamente por causa da esposa raptada De fato aquela menina prestes a mor-rer enquanto fugia de ti precipitada atraveacutes dos rios natildeo viu diante dos peacutes na relva densa a feroz cobra que vigiava as margens142 (Veiga p 175)

Eacute necessaacuterio perceber como o eu-liacuterico se refere a Orfeu como divindade a qual natildeo alivia as penas do apicultor na responsabilidade pela morte de Euriacutedice natildeo nomeada nessa passagem Os versos de Virgiacutelio destacam como morre a jovem esposa de Orfeu picada por uma viacutebora escondida na relva todavia isso ocorre apenas por-que a moccedila foge aos ataques do Apicultor Assim a responsabilidade pela morte de Euriacutedice cai sobre Aristeu

11 A simbologia do desapego agrave mateacuteria Continuando a observar o mitologema de Orfeu passamos a passagem que soacute

pode ocorrer devido agrave morte de Euriacutedice Com isso quero chamar a atenccedilatildeo para o fato de que o processo de iniciaccedilatildeo simboacutelica de Orfeu soacute pode se dar devida a perda daque-la que o completaria Nesse sentido eacute interessante pensar em outro par miacutetico e miacutesti-co Eacuteros e Psiquecirc Todavia no caso da busca empreendida por Psiquecirc na recuperaccedilatildeo de seu amor perdido por sua desconfianccedila haacute o reencontro e uniatildeo definitiva do casal Algo que natildeo se daraacute na versatildeo claacutessica do mito de Orfeu e Euriacutedice como seraacute visto a partir dos versos de Virgiacutelio por meio da traduccedilatildeo de Veiga Observe-se a passagem em que Orfeu comeccedila a empreender sua cataacutebase ou descida ao mundo dos mortos

Penetrou nas gargantas do Tecircnaro entrada profunda de Dite e no bosque obscuro sob o negro temor e dirigiu-se aos manes ao rei temiacutevel e aos coraccedilotildees que natildeo sabem se abrandar com as suacuteplicas dos homens Mas comovi-das pelo canto as sombras tecircnues e os espectros dos ca-

142 Non te nullius exercent numinis irae magna lui scommissa tibi has miserabilis Orpheus haudquaquam ob meritum poenas ni fata resistant 455 suscitat et rapta grauiter pro coniuge saeuit Illaquidem dum te fugeret per flumina prae-ceps immanem ante pedes hydrum moritura puella seruantem ripas alta non uidit in herba

rentes de luz acorriam das moradas profundas do Eacuterebo () Aleacutem disso os proacuteprios recintos e tambeacutem os abismos mais profundos da morte pararam e as Eumecircnides en-trelaccediladas de serpentes azuis nos cabelos detiveram-se e Ceacuterbero desejando abrir segurou as trecircs bocas tambeacutem o giro da roda de Ixiatildeo com o vento cessou143 (VEIGA p173)

As gargantas do Tecircnaro conduzem agrave entrada do Dite outro nome para Plutatildeo o senhor dos mortos O mundo daqueles que natildeo mais vecircm o sol leva o nome de seu senhor do mesmo modo que o Hades na cultura helecircnica eacute o nome dado ao reino do Zeus dos mortos Assim Orfeu adentra a morte como em um processo de iniciaccedilatildeo no qual o neoacutefito morre para a vida antiga e renasce O cantor filho da Musa adentra o Dite para encantar os senhores de laacute e convencecirc-los a devolver sua amada perdida para a morte Nesse sentido Orfeu segue buscando o amor que se foi e portanto voltando--se para um passado

No poema virgiliano observa-se perfeitamente o dom musical sobre humano de Orfeu ao encantar a todos inclusive agraves Eumecircnides as tatildeo terriacuteveis justiceiras do sangue congecircnito derramado Por conta desse dom Proseacuterpina permite o retorno de Euriacutedice mas com a condiccedilatildeo que ele natildeo se voltasse para traacutes buscando a ver antes de ter saiacutedo do Dite Todavia ele natildeo resiste e se volta para sua amada receacutem retornada dos mortos

E jaacute prosseguindo de todo acidente se evadira e Euriacutedi-ce restituiacuteda vinha para a superfiacutecie seguindo atraacutes (pois Proseacuterpina tinha imposto esta lei) quando uma loucura suacutebita que decerto deveria ser perdoada se os manes sou-bessem perdoar tomou o incauto amante parou e para a sua Euriacutedice jaacute sob a luz olhou esquecido ai e vencido pela paixatildeo Nesse momento todo o esforccedilo se perdeu e a lei do cruel tirano foi infringida e trecircs vezes se ouviu um estrondo nos lagos do Averno Ela disse ldquoQual oacute Orfeu arruinou a mim miacutesera e a ti Qual tamanha loucura Eis que os destinos crueacuteis pela segunda vez me chamam de volta e o sono encerra meus olhos em laacutegrimas E agora adeus sou levada envolta por uma noite sem fim e esten-dendo a ti as invaacutelidas matildeos ai jaacute natildeo sou mais tua144

(VEIGA p 176) O natildeo pertencimento de Euriacutedice em relaccedilatildeo agrave Orfeu eacute marcado no uacuteltimo

verso citado Esse natildeo pertencimento estaacute relacionado agravequilo que simbolicamente precisa ser deixado para traacutes pelo iniciado Olhar para traacutes eacute estar apegado ao passado

143 Taenarias etiam fauces alta ostia Ditis et caligantem nigra formidine lucum ingressus Manisque adiit regemque tre-mendum nesciaque humanis precibus mansuescere corda470 At cantu commotae Erebi de sedibus imis umbrae ibant tecircnues simulacraque luce carentum () Quin ipsae stupuere domus at que intima Leti Tartara caeruleosque implexa ecrinibus angues Eumenides tenuitque inhians tria Cerberus ora atque Ixionii uento rota constitit orbis

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agravequilo que simboliza a existecircncia antes da iniciaccedilatildeo reveladora e do renascimento do neoacutefito De acordo com Brandatildeo as direccedilotildees carregam dimensotildees simboacutelicas impor-tantes

Eacute assim que olhar para frente eacute desvendar o futuro e pos-sibilitar a revelaccedilatildeo() para traacutes eacute o regresso ao passado agraves harmatiacuteai agraves faltas aos erros eacute a renuacutencia ao espiacuterito e agrave verdade (BRANDAtildeO 1997 199)

A partir dessa reflexatildeo podemos compreender o ato de olhar para traacutes pelo menos na cultura que molda o Ocidente como um sinal de apego ao passado ou agrave vida que precisa ser deixada Brandatildeo em outra obra que trata do mito de Orfeu e do Orfismo corrobora a ideia de que o gesto de voltar para traacutes simbolizaria um apego agrave mateacuteria e ao passado representado por Euriacutedice Isso seria um reflexo do momento de desenvolvimento em que se encontra o heroacutei um a pessoa ainda natildeo preparada para ldquojunccedilatildeo harmocircnica e definitiva com sua animardquo (BRANDAtildeO 1995 p144)

12 O dilaceramento de Orfeu Apoacutes ter perdido definitivamente sua Euriacutedice Virgiacutelio canta como Orfeu cho-

rou por sete meses seguidos e chamou o nome de Euriacutedice Ele natildeo consegue mais cantar apenas chama por Euriacutedice

O passo seguinte seria o seu dilaceramento por Bacantes talvez por ter esque-cido o culto a Dioniso talvez por ter rejeitado o convite das Bacas para participar em seus folguedos dionisiacuteacos talvez ainda por ter fundado um culto vedado agraves mulheres todas essas hipoacuteteses satildeo aventadas por autores como Brandatildeo e Serra Kereacutenyi traz uma versatildeo baseada em Oviacutedio em sua obra Metamorfoses na qual

Segundo as histoacuteria mais antiga as mulheres da Traacutecia do-eram-se de que Orfeu se mantivesse afastado do amor das mulheres por trecircs anos inteiros Acostumado a procurar apenas a companhia dos moccedilos dele se dizia que intro-duziu a paixatildeo homoeroacutetica na Traacutecia (KEREacuteNYI p234)

Serra menciona a hipoacutetese de Pausacircnias segundo a qual Orfeu ter sido fulmi-nado por um raio de Zeus por ter revelado aos humanos os misteacuterios divinos De certo modo o Orfismo do qual se falaraacute mais a diante traz a promessa de uma vida apoacutes a morte a partir das praacuteticas miacutesticas e dos cultos de misteacuterios Os Hinos Oacuterficos embo-ra se saiba que satildeo textos bem posteriores a esse passado miacutetico da personagem Orfeu satildeo considerados escritos recitados a Museu disciacutepulo do canto traacutecio ou em algumas

144Iamque pedem referens casus euaserat omnis 485redditaque Eurydice superas ueniebat ad auras pone sequens (manque hanc dederat Proserpina legem) cum suacutebita incautum dementia cepit amantem ignoscenda quidems ci-rent si ignoscere Manes restitit Eurydicenque suam iam luce sub ipsa 490 immemor heu Uictusque animi respexit Ibi omnis effusus labor atque immitis rupta tyranni foedera terque fragor stagnis auditus Auerni Illa ldquoquisetmerdquo inquit ldquomiseram et te perdidit Orpheu quistan tus furor Em iterum crudelia retro 495 fata uocant conditque na-tantia lumina somnus Iamque uale feror ingenti circumdata nocte inualidasque tibi tendens heu Non tua palmasrdquo

tradiccedilotildees seu filho

Voltando ao episoacutedio do desmembramento mesmo com tantas variantes tem--se a ideia de que Orfeu tem o corpo destroccedilado por mulheres um tema recorrente em imagens de vasos aacuteticos como seraacute comentado mais agrave frente Desse processo de spa-ragmoacutes ou diaspagamoacutes o qual tambeacutem poderia ser considerado como um passo de uma ritualiacutestica simboacutelico-miacutetica encontrada em mitologemas de Dioniso e de Osiacuteris o deus Egiacutepcio resulta a viagem da cabeccedila de Orfeu lanccedilada ao rio Hebro Sua cabeccedila encontrada por um pescador na embocadura do rio Meles na Jocircnia eacute conservada em um templo erguido para esse fim donde a cabeccedila passaraacute a vaticinar

13 O Orfismo e os misteacuterios

Muitas vezes ouve-se falar dos misteacuterios no acircmbito da cultura religiosa he-lecircnica Sabe-se da existecircncia dos misteacuterios de Elecircusis dos misteacuterios ligados ao culto de Dioniso e dos misteacuterios Oacuterficos e no acircmbito do Impeacuterio Romano dos misteacuterios de Mitra De fato exatamente como eram os cultos de misteacuterios natildeo se pode falar jus-tamente por seu caraacuteter interdito aos natildeo-iniciados Entretanto eacute possiacutevel investigar alguns dados sobre os misteacuterios e compreender suas configuraccedilotildees em linhas gerais Serra (SERRA p22) referindo-se ao Orfismo afirma

O culto de Misteacuterios envolvia iniciaccedilatildeo alentada pela es-peranccedila de comunhatildeo com a divindade () Essa forma de culto distinguia-se de todas as outras na Greacutecia Antiga pelo imperativo do segredo O nome substantivo mysteria ndash que sempre se registra assim no plural nos documentos mais antigos ndash tal como seu cognato myeicircn (ldquoiniciarrdquo) e myeicircsthai (ldquoser iniciadordquo) deriva de uma raiz um [pre-sente no latim mutus donde o portuguecircs ldquomudordquo] que tem o significado baacutesico de fechar O mystes iniciado eacute algueacutem que mantem os laacutebios cerrados guardando segre-do religioso

Ou seja pela observaccedilatildeo do autor citado compreende-se o caraacuteter secreto das praacuteticas religiosas que envolvem os Misteacuterios

O Orfismo seria uma das formas de cultos de misteacuterios no ambiente helecircnico que ultrapassou os limites do periacuteodo arcaico e claacutessico e chegou ateacute a chamada an-tiguidade tardia Os Hinos Oacuterficos satildeo exemplo disso embora haja uma controveacutersia histoacuterica a respeito da existecircncia ou natildeo do Orfismo como comentam Brandatildeo (1995 p 150) e Serra (p 77) De qualquer modo a soteriologia ou seja um processo religioso que pretende a salvaccedilatildeo de seu adepto era algo evidente na praacutetica religiosa conhecida como Orfismo sendo a figura de Orfeu a do cantor iniciado a transmitir os ensinamen-tos para a salvaccedilatildeo O processo de culto oacuterfico a despeito da filiaccedilatildeo do muacutesico traacutecio a Apolo estaacute mais ligado agrave figura de Dioniso Vale ressaltar que tanto Dioniso quanto Orfeu apresentam em seus mitos a cataacutebase e o despedaccedilamento De acordo com Eliade (1978 p215)

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Diodoro da Siciacutelia refere-se ao que parece aos mis-teacuterios dionisiacuteacos quando escreve que ldquoOrfeu trans-mitiu nas cerimocircnias dos misteacuterios o despedaccedilamen-to de Dionisordquo (V 75 4) E em outro trecho Orfeu eacute apresentado como um reformador dos misteacuterios dio-nisiacuteacos ldquoeacute por esse motivo que as iniciaccedilotildees devidas a Dioniso satildeo denominadas Oacuterficasrdquo (III 65 6) () Com efeito Orfeu era proclamado ldquoprofeta de Dioni-sordquo e ldquofundador de todas as iniciaccedilotildeesrdquo

Os Hinos Oacuterficos oferecem ao leitor a ideia de que se trata de uma coleccedilatildeo de cantos celebrando os deuses ou os invocando com um ar ritualiacutestico como eacute possiacutevel perceber pelos dois uacuteltimos versos do ldquoProecircmiordquo de Orfeu a Museu ldquoPropiacutecios vinde oacute deuses de coraccedilatildeo alegreAo miacutestico sacrifiacutecio e agrave libaccedilatildeo perfeitardquo145

Essa breve abordagem do mitologema de Orfeu e de seus desdobramentos simboacutelicos aleacutem da menccedilatildeo ao Orfismo oferece ao leitor uma ideia da potecircncia do re-ferido mito Tal apreciaccedilatildeo auxilia a compreender a constante retomada do mito oacuterfico e em especial da passagem em que haacute a perda de Euriacutedice e a cataacutebase ao mundo dos mortos Assim passo a abordar a permanecircncia e as modificaccedilotildees do mito de Orfeu em diversas expressotildees de arte para aleacutem da palavra escrita

2 Tantos Orfeus Em vaacuterias expressotildees artiacutesticas o mito de Orfeu e seu amor por Euriacutedice satildeo

retomados e adaptados ao longo dos seacuteculos Desde o Renascimento ateacute a contempora-neidade No presente estudo selecionei apenas algumas obras de expressotildees bastante distintas para que fosse possiacutevel ter uma ideia da variedade de formas com as quais essa passagem da mitologia claacutessica eacute percebida e reconstruiacuteda como narrativa

21 A oacutepera canta Orfeu e Euriacutedice Assim comeccedilo a apreciaccedilatildeo por uma oacutepera que natildeo seraacute a primeira a retomar

a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice A primeira foi a oacutepera Orfeo de Monteverdi em 1607 (GARDNER 2015) A estoacuteria de amor interrompida pela morte que enreda Orfeu e Euriacutedice foi tomada como tema por Christoph Willinband Gluck na oacutepera Orpheacutee et Eurydice em 1762 Todavia se nas passagens miacuteticas claacutessicas Orfeu perde definitiva-mente sua Euriacutedice Gluck reescreve o mito e em sua oacutepera oferece ao casal um final feliz sob os auspiacutecios do deus Amor o Eacuteros da mitologia grega

Eacute interessante pensar como o desfecho da oacutepera oferece agrave audiecircncia o canto do deus Amor que celebra altivo as dores e alegrias do amor que traz dores e laacutegrimas mas eacute ldquopreferiacutevel agrave liberdaderdquo Definitivamente celebra-se o amor romacircntico com final feliz ecoando os romances gregos que satildeo amplamente lidos no mesmo periacuteodo histoacute-rico de Gluck e que sempre contam com o finais felizes

145 εὐμενἐας ἐλθεῖν κεχαρημένον ἦτορ ἔχονταςτήνδε θυηπολίην ἱερὴν σπονδήν τ´ἐπὶ σεμνήν

Eacute relevante refletir como a versatildeo de Gluck ao modificar o desenlace do episoacute-dio de ida ao mundo dos mortos elimina os outros passos da narrativa miacutetica Isso se daacute na medida em que tendo recuperado sua amada Orfeu natildeo cairaacute em tristeza e natildeo teraacute seu fim agraves matildeos das bacantes natildeo passando por um diaspargmoacutes e natildeo tendo sua cabeccedila lanccedilada ao rio

22 O pathosformel do dilaceramento Se para Gluck o final feliz eacute possiacutevel para alguns pintores gravuristas e escul-

tores o diasparagmoacutes baacutequico seraacute o tema eleito para dar plasticidade ao mito claacutessico como ocorre na imagem de Albrecht Duumlrer na gravura intitulada Morte de Orfeu de 1494

Albrecht Duumlrer A Morte de Orfeu 1494 (Hambourg Kunsthalle) (CARERI 2003 p 46)

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Vale ressaltar que em relaccedilatildeo a essa obra de Duumlrer pode-se tomar a ideia de Aby Warburg de pathosformel uma vez que haacute a repeticcedilatildeo de um tema formal a ser emulado a partir de um modelo Giovanni Careri aponta isso em seu artigo Rituel Pa-thosformel et forme intermeacutediaire referindo-se justamente ao tema de Orfeu Nesse caso a repeticcedilatildeo temaacutetica formal partiria de um vaso aacutetico que retrata a morte do He-roacutei pelas matildeos das bacantes repetido por Duumlrer e igualmente por Andrea Mantegna em um afresco como se vecirc nas imagens que se seguem Eacute possiacutevel perceber a seme-

La mort drsquoOrpheacutee vase grec de Nola (Louvre) (CARERI 2003 p48)

Andrea Mantegna A morte de Orfeu (palaacutecio de Mantoue) (CARERI 2003 p 51)

Morte de Orfeu (Wikimidia Commons 2020)

lhanccedila no conjunto de bacantes a agredir Orfeu caiacutedo ao chatildeo As obras se diferenciam pela teacutecnica suporte e estilo todavia apresentam o mesmo pathosformel

Acrescento agrave reflexatildeo de Careri que natildeo se limita ao mito de Orfeu outras obras que repetem o tema do dilaceramento pelas matildeos das bacantes caso da obra de Jean Baptiste Bin de 1874

23 O mito oacuterfico no cinema

Deixando a plasticidade busco agora as artes populares do seacuteculo XX como o cinema Jean Cocteau e Marcel Camus levaram Orfeu agraves telas mas de maneiras intei-ramente diferentes

Natildeo obstante antes de abordar as produccedilotildees ambientadas no Brasil vale men-cionar mesmo que natildeo venha a ser trabalhado no presente estudo o filme de produccedilatildeo grega de Nikos Nikolaiacutedis Euriacutedice BA 2037 em que a protagonista eacute Euriacutedice vivendo em um ambiente de clausura dentro de casa e lidando com a burocracia e a espera por Orfeu

Lidando com os filmes que trazem Orfeu como personagem busco observar as

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diferenccedilas entre a proposta de Cocteau e Camus Se o cinema de Cocteau traz uma ver-satildeo que lida com uma espeacutecie de fantasmagoria em que o poeta adentra o mundo dos mortos pelo espelho a obra de Camus seraacute baseada na livre adaptaccedilatildeo do mito para o contexto carioca das favelas do Rio de Janeiro realizada por Vinicius de Moraes em sua peccedila musical Orfeu da conceiccedilatildeo Na presente investigaccedilatildeo opto por me debruccedilar mais atentamente sobre o filme baseado no teatro brasileiro

Orfeu da Conceiccedilatildeo foi composto pelo poeta Vinicius de Moraes e musicado por Tom Jobim O espetaacuteculo teatral foi levado agrave cena em 1956 pelo grupo do TEM Tea-tro Experimental do Negro dirigido por Abdias do Nascimento A despeito da maneira folcloacuterica e romantizada como o ambiente da favela eacute retratado a adaptaccedilatildeo do mito eacute extremamente interessante e isso fica evidente na adaptaccedilatildeo para o cinema a qual daacute acesso ao puacuteblico de hoje agravequela rescrita do mito

Orfeu aleacutem de um condutor de bonde eacute um sambista que vai tirar o violatildeo do prego para poder voltar a tocar O filme se passa no periacuteodo do Carnaval e eacute esse o mo-mento em que Euriacutedice uma moccedila do interior que foge de uma figura fantasmagoacuterica ndash a morte destino do qual natildeo pode se livrar ndash chega agrave Favela e conhece o sambista

Haacute tomadas que procuram marcar a imagem do tempo de Carnaval como um momento de festa desregrada que atordoa Euriacutedice A imagem da barca atracando na Praccedila XV e de onde desembarca uma multidatildeo de foliotildees traz algo do frenesi exacerba-do como eacute percebido o Carnaval pela lente de Camus o universo caoacutetico do Carnaval

Orfeu aleacutem de condutor de bonde canta para o sol nascer remetendo a ima-gem do sambista agrave ideia apoliacutenea da conduccedilatildeo do carro do Sol ou seja de responsabi-lidade pelo amanhecer de cada dia Outras personagens que colaboram na economia do mito seratildeo encontradas em Orfeu Negro Hermes seraacute o chefe dos condutores de bonde Caronte seraacute retratado como um faxineiro da reparticcedilatildeo puacuteblica em que Orfeu vai buscar notiacutecias sobre sua amada desaparecida como se observa na imagem

Orfeu negro (CAMUS 1959)

Orfeu negro (CAMUS 1959)

Caronte o condutor da barca que leva os mortos para a travessia do rio Estige ateacute seu destino final no Hades seraacute tambeacutem no filme aquele que conduz o sambista na busca sobrenatural por Euriacutedice Caronte conduz Orfeu para ter contato com os mortos em uma toma de plasticidade iacutempar

Aqui a cataacutebase oacuterfica eacute representada pela imensa escada em espiral A ima-gem daacute uma sensaccedilatildeo de descida infinita como a penetrar o interior desse mundo subterracircneo que eacute a morada miacutetica dos mortos

O lugar do misteacuterios seraacute um centro religioso de matriz africana Na porta o catildeo Ceacuterbero guarda a entrada Euriacutedice se comunicaraacute com Orfeu estando incorporada em uma meacutedium O problema eacute Orfeu natildeo aceitar a morte de Euriacutedice e olhar para direccedilatildeo de onde vem a voz da amada

Orfeu eacute encontrado por Hermes (chefe dos condutores) na mitologia grega o psicopompo ndash condutor de almas ndash e o leva para buscar o cadaacutever de Euriacutedice I n -teressante perceber como pela leitura de Vinicius de Moraes levada agrave tela por Camus Orfeu apoacutes recuperar o cadaacutever de Euriacutedice encontra a morte pelas matildeos de sua ex-namorada Mira Mira na pronuacutencia do grego moderno eacute moira ou seja ldquodestinordquo em grego Pode-se perceber como eacute essa a personagem que sela o destino a moira de Orfeu Ele carregando o cadaacutever no colo cai colina abaixo e morre ao receber uma pedrada de Mira Em uma leitura de iniciaccedilatildeo miacutestica seria possiacutevel compreender como esse Orfeu natildeo consegue transcender a mateacuteria ele estaacute preso agrave finitude da vida encarnada

Em 1999 Cacaacute Diegues lanccedila sua versatildeo par o mito O tiacutetulo do filme eacute Orfeu o que jaacute constitui uma mudanccedila destacaacutevel para o tiacutetulo de Camus Do mesmo modo a ambientaccedilatildeo eacute outra a favela de Diegues natildeo eacute a romantizada pelo olhar de Camus e

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de Moraes mas a que traz a violecircncia cotidiana em que a poliacutecia sobe o morro ldquoescula-chandordquo e haacute o domiacutenio do narcotraacutefico Uma frase traduz a abordagem mais realista na fala de um policial que pergunta a Orfeu ldquoo que vocecirc ainda taacute fazendo aqui no meio desse monte de lixordquo referindo-se agrave populaccedilatildeo residente na favela com desrespeito Na abordagem de Diegues Orfeu jaacute eacute um sambista conhecido mas que natildeo deixa suas origens E mesmo com toda a truculecircncia eacute o mesmo policial que chora e faz o sinal da cruz com o cano de seu revolver ao constatar o assassinato de Orfeu Mesmo em meio a tanta violecircncia e brutalidade haacute espaccedilo para a expressatildeo do sentimento

Destaco a imagem de Orfeu ainda sambista e responsaacutevel pelo amanhecer e me detenho na letra na muacutesica tema do filme de autoria de Caetano Veloso em que se destaca a imagem da mulher que completa o homem

Mar sob o ceacuteuCidade na luzMundo meuCanccedilatildeo que eu compusMudo tudoAgora eacute vocecircA minha vozQue era da amplidatildeoDo universo da imensidatildeoHoje canta soacute por vocecircMinha mulher meu amor meu lugarAntes de vocecirc chegarEra tudo saudadeMeu canto mudo no arFaz do seu nome hoje o ceacuteu da cidadeLua no mar estrelas no chatildeoAos seus pegraves entre as suas matildeosTudo quer alcanccedilar vocecircLevanta o sol do meu coraccedilatildeoJagrave natildeo vivo nem morro em vatildeoSou mais euPorque sou vocecirc

A Letra de Caetano Veloso traz a ideia de completude no outro sou vocecirc e soacute posso ser ldquomais eu porque sou vocecircrdquo Importante notar a mudanccedila do eu-liacuterico cuja voz era do universo da amplidatildeo e agora canta soacute pela mulher amada ldquominha mulher meu amor meu lugarrdquo O viver passa a ter sentido pelo completar-se no outro

24 Orfeu nos quadrinhos Passando para cultura pop e mais especificamente para os quadrinhos o

mito de Orfeu eacute reinventado por Neil Gaiman e Brian Talbot na histoacuteria A canccedilatildeo de Orpheus publicada na saga de Sadman entre 1989 e 1996

Na versatildeo de Gaiman e Talbot Orfeu filho eacute de Oacuteneiros a personagem prin-cipal da saga Sandman Ele eacute portanto filho do senhor dos sonhos e tem uma famiacutelia emblemaacutetica que eacute apresentada ao leitor logo na primeira parte de A canccedilatildeo de Or-pheus

Seus tios e tias satildeo alegorias de sentimentos e potecircncias divinas satildeo eles Te-leute Aponia Ptomos Epithymia Eacute interessante pensar n significado dos nomes des-ses parentes de Orfeu Comeccedilo por Teleute que eacute a personagem Morte da saga de Sadman Em grego Teleute significa aquilo que se completa que chega ao fim o fim da vida ou simplesmente morte

Aponia em grego significa preguiccedila para epicuro seria o estado de liberta-ccedilatildeo da dor mas tambeacutem poderia significar em termos meacutedicos a ausecircncia da razatildeo correspondendo ao termo mania E eacute justamente a acepccedilatildeo de demecircncia que eacute eviden-ciada na abordagem dos quadrinhos Haacute ainda a tia Epithimia que significa desejo e o tio Ptomos o destino

Aristeu ao inveacutes de ser um apicultor seraacute um saacutetiro amigo de Orfeu O que torna o morte de Euriacutedice mais dramaacutetica ainda pois eacute causada por um amigo de seu noivo A saga se inicia no dia do casamento de Euriacutedice e Orfeu Aqui eacute interessante pensar em como a figura do saacutetiro eacute colocada no lugar do apicultor do mito original Isso pode ter se dado pela ideia que a imagem miacutetica do saacutetiro traz em si a ideia de desregramento de descomedimento

Vale ressaltar que a morte de Euriacutedice segue o padratildeo da tradiccedilatildeo claacutessica Natildeo obstante a trajetoacuteria de busca empreendida por Orfeu apresenta detalhes surprenden-tes como o momento em que o cantor vai ter com sua tia Morte e tem um choque com o ambiente em que ela vive que remete agrave segunda metade do seacuteculo XX

(GAIMAN TALBOT 1993 p 22)

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A canccedilatildeo de Orpheus seraacute uma releitura bastante proacutexima da tradiccedilatildeo claacutessica a exceccedilatildeo dos detalhes mencionados anteriormente A concepccedilatildeo da ida ao Hades o perda de Euriacutedice no momento em que ele se volta para olhar a amada e ter certeza de que ela o segue para fora do mundo dos mortos satildeo totalmente baseadas na tradiccedilatildeo miacutetica claacutessica Seu desmembramento pelas bacantes tambeacutem segue a tradiccedilatildeo Ape-nas o desfecho da obra apresenta o desvio em que Oneiros o pai de Orfeu no contexto de Sandman vai se despedir da cabeccedila que ainda fala

24 Orfeu no mangaacute no anime e no game

Entre 1985 e 1990 Masami Kuramada comeccedila a publicar seu mangaacute intitulado Saint Seiya no Japatildeo A seacuterie de anime conhecida como Cavaleiros do Zodiacuteaco foi ao ar em 1994 na extinta Manchete a rede de Televisatildeo A saga desse anime teraacute uma seacuterie de diaacutelogos com a antiguidade helecircnica e seus desdobramentos Eacute interessante pensar nos nomes de alguns cavaleiros rivais dos cavaleiros de Atena como o cavaleiro de Ceacuterbero Dante cujo nome remete ao catildeo triceacutefalo do Hades e ao poeta que retrata o ciacuterculos infernais em sua Divina Comeacutedia

Orfeu seraacute abordado duas vezes nesse anime Haveraacute o Orfeu de Lira e o Orfeu de Harpa dois cavaleiros diferentes

O cavaleiro que interessa especialmente agrave presente pesquisa eacute o Orfeu de Lira pois seraacute ele o cavaleiro que viveraacute os passos do mito tradicional com algumas adap-taccedilotildees evidentemente

Em Saint Seiya O Santo Guerreiro um filme autocircnomo da saga dos Cavaleiros do Zodiacuteaco Orfeu eacute um dos cavaleiros fantasmas revividos pela deus Eacuteris a discoacuterdia Nesse filme eacute apresentada a relaccedilatildeo amorosa de Orfeu e Euriacutedice na qual o casal tam-beacutem eacute separado pela morte Todavia ao trazer sua amada de volta do Hades o cavalei-ro cantor natildeo duvida de que sua Euriacutedice o segue um ponto interessante Na verdade ele eacute enganado pela personagem Pandora Ela o induz a erro ao fazer com que Orfeu acreditasse estar jaacute sob luz solar Assim o heroacutei se volta para Euriacutedice antes da hora adequada e ela eacute transmutada em estaacutetua de pedra Curioso perceber como o tema da materialidade que aprisiona eacute abordado tambeacutem nessa obra uma vez que natildeo eacute o espectro de Euriacutedice que desaparece mas eacute uma personagem com corpo transmutado em rocha que se torna prisioneira desse meio de caminho entre vida e morte

Entretanto Orfeu durante muito tempo preso diante da imagem de Euriacutedice- rocha decide libertar a amada para que ela tambeacutem possa ter paz A partir daiacute vem um passo importante na saga de Orfeu na animaccedilatildeo o momento em que reconhece o erro cometido ao tentar vencer a morte e promete agrave Euriacutedice que destruiraacute Hades realizando a chamada ldquoserenata mortalrdquo Um contraste forte entre o Orfeu da tradiccedilatildeo claacutessica e aquele da obra de Kuramada eacute o fato de que o Orfeu do anime tem um poder agressivo a serenata eacute mortal Jaacute o Orfeu da tradiccedilatildeo emociona e acalma atraveacutes de sua muacutesica

Por fim eacute interessante notar como Orfeu se torna personagem do jogo Cava-leiros do Zodiacuteaco sendo caracterizado pelo poder de cura O que eacute relevante pois vem

a ser uma caracteriacutestica nada belicista a que ele teraacute o que eacute curioso para uma perso-nagem de uma jogo de accedilatildeo e de luta Todavia sua canccedilatildeo natildeo mais acalma

3 Tantos Orfeus

Nesse breve passeio de apreciaccedilatildeo da permanecircncia e releitura do mito de Or-feu percebe-se natildeo apenas quatildeo profiacutecua eacute essa narrativa miacutetica mas como ela se desdobra em diferentes teacutecnicas sendo retratada inclusive pela arte pop e adentrando a induacutestria de games

Para terminar essa reflexatildeo volto agrave muacutesica escolhida como epiacutegrafe em que o eu-liacuterico quer ser o Orfeu que almeja natildeo a sua Euriacutedice mas deseja ser

o amante Que vocecirc devora de traacutes para frente Feito Bacante lambendo seus dentes Pra mastigar meu coraccedilatildeopelos bares da Consolaccedilatildeo

Nessa experiecircncia fagia eroacutetica ambientada em Satildeo Paulo fabrica-se o poeta de uma busca corporal por prazer

E assim derretendo na tua saliva Ser a substacircncia enlouquecida com que se escrevem cartas de amor

Desse modo encerro o pequeno passeio em torno da imagem do poeta-cantor miacutetico revisitado de inuacutemeras formas Creio eu que Orfeu continuaraacute sendo mateacuteria de poiesis para muitas e vaacuterias experimentaccedilotildees artiacutesticas

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Referecircncias

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BRANDAtildeO Junito de Souza Mitologia Grega 6 ed Petroacutepolis Vozes 1997 v 2

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ELIADE Mircea Histoacuteria das crenccedilas e das ideacuteias religiosas Rio de Janeiro Zahar 1978

GAIMAN Neil TALBOT Brian A canccedilatildeo de Orpheus Sandman Satildeo Paulo n1 1993 Ediccedilatildeo especial

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KEREacuteNYI Karl Os heroacuteis gregos Satildeo Paulo Cultrix 1993

ORFEU Direccedilatildeo Carlos Diegues Rio de Janeiro Globo Filmes 1999 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecom watchv=4fIbjaHFX-k Acesso em 27092020

ORFEU negro Direccedilatildeo Marcel Camus Satildeo Paulo Vera Cruz Paris Dispat Film 1959 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=fWIwTOtvbSkampt=5003s Acesso em 27092020

SAINT Seiya O Santo Guerreiro Direccedilatildeo Kocirczocirc Morishita Toacutequio Toei Animation 1987

SEU ORFEU Compositor e inteacuterprete Thiago Petit Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatch v=tvYLywWgtjc Acesso em 27092020

VEIGA Paulo Eduardo de Barros O mito de Orfeu e Euriacutedice no Livro IV das Geoacutergicas de Virgiacutelio Roacutenai Juiz de Fora n 1 v 6 p 172-178 2018

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Proecircmio de Metamorfoses aula de Poesia

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Milton Marques Juacutenior

ldquoIl fatto egrave che il traduttore non deve solo conoscere la lin-gua ma anche la storia e la topografia di ogni singola cit-tagraverdquo (Umberto Eco ndash Dire quasi la stessa cosa p 193)

ldquoQue ele o conselheiro depois de os citar em prosa nossa repetiu-os no proacuteprio texto grego e os dois gecircmeos senti-ram-se ainda mais eacutepicos tatildeo certo eacute que traduccedilotildees natildeo valem originaisrdquo (Machado de Assis Esauacute e Jacoacute Capiacutetulo XLV ldquoMusa cantardquo)

O proecircmio de Metamorfoses de Oviacutedio eacute miacutenimo quando levamos em conta o tamanho do poema Satildeo meros 4 versos num livro de exatos 11994 versos Pensemos por exemplo no proecircmio da Teogonia de Hesiacuteodo com 115 versos num total de 1022 Se no seu tamanho o proecircmio eacute iacutenfimo no seu sentido eacute de uma densidade iacutempar so-bretudo pelo fato de que nesses 4 versos Oviacutedio nos daacute uma aula de poesia no sentido aristoteacutelico do termo de ποίησις como a accedilatildeo de criar

O que se pode compreender do proecircmio em uma primeira leitura eacute a inten-ccedilatildeo do poeta de cantar as mudanccedilas ou metamorfoses de alguns dos personagens da narrativa desde a origem do mundo ateacute a sua contemporaneidade ndash esta eacute a proposi-ccedilatildeo ndash e o pedido aos deuses divindades aqui natildeo especificadas para o favorecimento e conduccedilatildeo de seu canto ndash esta eacute a invocaccedilatildeo

A partir do momento em que nos entregamos a um exerciacutecio de traduccedilatildeo desse proecircmio vemos que o poeta natildeo soacute diz qual o objeto de seu canto e natildeo soacute invoca os deuses para a sua proteccedilatildeo O poeta vai aleacutem e nos revela a proacutepria arte de construccedilatildeo poeacutetica dentro dos moldes da poesia claacutessica a eacutepica sobretudo que natildeo desprezava a invocaccedilatildeo Abramos um parecircntesis para dizer que embora composta em hexacircmetros ndash uacutenico poema de Oviacutedio a usar soacute este tipo de verso ndash Metamorfoses natildeo pode ser vista como exclusivamente eacutepica Obedecendo agrave proacutepria loacutegica interna do poema vemos no decorrer do enredo como ali se encontram o liacuterico e o traacutegico lado a lado com o eacutepi-co Se o amor frustrado de Apolo por Dafne no Livro I eacute um momento liacuterico objeto inclusive de um soneto camoniano ndash ldquoO filho de Latona esclarecidordquo ndash o mito de Me-leagro no Livro VIII eacute traacutegico embora ambos derivem de um nuacutecleo eacutepico no poema Do mesmo modo do Livro XII ao Livro XV vemos as suiacutetes troianas e romanas que confirmam o tom eacutepico mesmo que aiacute se encontrem os amores frustrados de Glauco e Cila e de Polifemo e Galateia Desse modo se haacute metamorfoses de personagens haacute metamorfose de gecircnero ao longo do poema diversidade que faz a sua beleza por que-brar a monotonia do eacutepicoccxxviii

Faccedilamos uma anaacutelise do proecircmio a partir de uma traduccedilatildeo por noacutes proposta

O acircnimo me conduz a cantar as formas mudadas para no-vos corpos deuses as minhas empresas (pois voacutes tambeacutem as mudastes)favorecei e desde a origem primeira do mundo

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ateacute os meus tempos conduzi meu canto contiacutenuo147

De modo a iniciar com alguns esclarecimentos sobre a nossa proposta de tra-duccedilatildeo gostariacuteamos de comentar o capiacutetulo XLV de Esauacute e Jacoacute ndash ldquoMusa cantardquo ndash de Machado de Assis que nos apresenta o conselheiro Aires definindo o caraacuteter dos gecircme-os antagonistas Pedro e Paulo a partir do proecircmio da Iliacuteada e da Odisseia de Homero Para Paulo o conselheiro escolheu a Iliacuteada que trata da fuacuteria funesta de Aquiles para Pedro a Odisseia que trata das mil voltas do astuto Odisseu Depois de ler o poema em prosa portuguesa o conselheiro cita as passagens diretamente do grego certo de que as traduccedilotildees natildeo valem o original Ainda assim natildeo faltou nada para que os dois ir-matildeos se acusassem mutuamente Pedro acusou Paulo de furioso como Aquiles Paulo acusou Pedro de velhaco como Odisseu distorcendo o caraacuteter de cada um dos heroacuteis Eacute aiacute que entra uma observaccedilatildeo final do conselheiro no sentido de que eles deveriam dizer isto em grego que eacute melhor do que a nossa prosa Tem razatildeo o conselheiro ao dizer que a traduccedilatildeo natildeo vale o original Na realidade traduccedilatildeo alguma vale o original Haacute sempre por melhor que seja a traduccedilatildeo a possibilidade de o tradutor voluntaacuteria ou involuntariamente distorcecirc-la quando natildeo manipulaacute-la

Digamos portanto que a nossa traduccedilatildeo se orienta pelos moldes do que pra-ticamos e ensinamos aos nossos estudantes em nossas aulas no curso de Letras Claacutes-sicas na Universidade Federal da Paraiacuteba Trata-se de uma traduccedilatildeo operacional cujo intuito eacute procurar extrair do texto original a concepccedilatildeo que ali se encontra Nesse processo orientamos os nossos alunos no sentido de perceber que a traduccedilatildeo da mor-fossintaxe latina natildeo eacute suficiente Haacute que se levar em consideraccedilatildeo ao menos dois requisitos O primeiro eacute o contexto cultural em que o texto foi criado o segundo eacute a estrutura do texto a ser traduzido Como se trata de um texto literaacuterio obviamente que temos de buscar saber como aquele texto se estrutura literariamente de modo que consigamos uma traduccedilatildeo que dele se aproxime Veja-se pois que natildeo estamos falan-do de traduccedilatildeo literal mas de uma maior aproximaccedilatildeo possiacutevel com o texto original de acordo com o que nos impotildee a sua estrutura Se por um lado estamos de acordo com todos os teoacutericos que apregoam a traduccedilatildeo ser escolha por outro lado vemos como necessaacuterio limitar essas escolhas para ficar com aquelas que traduzem melhor a estrutura do texto

Em seu livro A traduccedilatildeo como manipulaccedilatildeo Cyril Aslanov discute vaacuterios as-pectos da traduccedilatildeo procurando sempre estabelecer o contexto e a vivecircncia da liacutengua quando possiacutevel como elementos importantes no processo de traduzir Referindo-se agraves traduccedilotildees mecacircnicas do Google que para ele se assemelham agraves tentativas de tradu-ccedilotildees literais de alunos ruins sem levar em conta o contexto da liacutengua a ser traduzida Aslanov nos diz o seguinte

ldquoO modo demasiadamente mecacircnico pelo qual o Google

147In noua fert animus mutatas dicere formascorpora di coeptis (nam uos mutastis et illas)adspirate meis primaque ab origine mundiad mea perpetuum deducite tempora carmen

Tradutor traduz os idiomatismos de uma liacutengua para ou-tra relembra os alunos ruins que transpotildeem literalmente o texto a ser traduzido Ou seja em outro contexto faz pensar no modo de falar dos serviccedilos de propaganda ou de espionagem em tempo de guerra quando o conhecimento teoacuterico da liacutengua do inimigo natildeo eacute suficiente porque lhe falta a paacutetina da experiecircncia viva da liacutengua Conta-se que quando a Raacutedio Cairo difundia emissotildees em hebraico para desmoralizar o exeacutercito israelense durante a Guerra do Atrito (1969-1970) os jornalistas egiacutepcios que pensavam conhecer o hebraico cometeram gafes memoraacuteveis Refe-rindo-se ao Lado dos Cisnes que a raacutedio escolheu para servir de intermezzo musical o locutor usou a expressatildeo brekhat ha-barvazim (literalmente ldquopiscina dos patosrdquo) e vez do tiacutetulo canocircnico agam ha-barburim Nesse caso o efeito produzido foi diametralmente oposto agrave exaltaccedilatildeo que acompanha a escolha de tiacutetulos mais eloquentes que o original para as obras literaacuterias ou cinematograacuteficasrdquo (2015 p 38)

De igual modo nos parece que o entendimento de Umberto Eco em Dire qua-se la stessa cosa sobre traduccedilatildeo como negociaccedilatildeo eacute o mais indicado tendo em vista que se natildeo podemos dizer a mesma coisa numa traduccedilatildeo devemos procurar dizer pelo menos quase a mesma coisa num processo contiacutenuo de negociaccedilatildeo de termos considerando sobretudo que uma traduccedilatildeo eacute sempre um trabalho em processo Eacute exatamente o quase que se encontra no tiacutetulo que induz agrave negociaccedilatildeo dos termos para que o tradutor natildeo troque as matildeos pelos peacutes e passe a traduzir ldquopiscina dos pa-tosrdquo por ldquoLago dos cisnesrdquo por haver aacutegua e aves aquaacuteticas envolvidas no processo ou ainda ldquogarccedilardquo por ldquoalicaterdquo afinal de contas ambos tecircm bico e pernas compridas como mostra a capa da ediccedilatildeo italiana da obra de Eco Acreditamos que nada traduz melhor o conceito de infectum latino do que o processo de traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra

Eco chama a atenccedilatildeo para um fato oacutebvio mas como todo oacutebvio geralmente esquecido ldquoLe parole assumono significati diversi secondo il contestordquo (2016 p 28) para mais adiante ser bem claro no que diz respeito agrave contextualizaccedilatildeo

ldquoQuesto ci fa sospettare che una traduzione non dipenda solo dal contesto linguistico ma anche da qualcosa che sta al di fuori del testo e chi chiamaremo informazione circa il mondo o informazione enciclopedicardquo (2016 p 31)

Partindo do princiacutepio de que Metamorfoses eacute um texto literaacuterio e segue as regras da poeacutetica claacutessica comecemos a discutir a nossa traduccedilatildeo a partir do verbo dicō que aparece no texto em sua forma de infinitivo infectum dicĕre Como verbo im-portante em qualquer liacutengua dicō tem o sentido primeiro de mostrar fazer conhecer pela palavra dizer segundo Ernout (2011) agindo tanto na esfera juriacutedica quanto na religiosa Eacute na passagem para a esfera comum da linguagem que dicō perde seu caraacuteter

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solene passando a significar dizer Recordemos que esse verbo pode ainda significar cantar e celebrar termos que se adequam agrave criaccedilatildeo poeacutetica quando lembramos que o tipo de poesia que encontramos em Metamorfoses natildeo pode ser dissociado da religiosi-dade greco-latina ainda que sob a forma de representaccedilatildeo A nossa escolha portanto por cantar estaacute associada ao canto como celebraccedilatildeo noccedilatildeo naturalmente arraigada ao eacutepico e ao hino tendo em vista que seguimos a nossa compreensatildeo a respeito de traduccedilatildeo devidamente corroborada pela afirmaccedilatildeo de Umberto Eco de que ldquoil testo tradotto deve trasportare il lettore nel mondo e nella cultura in cui lrsquooriginale egrave stato scrittordquo (2016 p 64)

A escolha de anĭmus como acircnimo explica-se pelo fato de este termo correspon-der ao grego θυμός aplicando-se agraves coisas do espiacuterito ao coraccedilatildeo como sede da cora-gem do desejo das inclinaccedilotildees conforme ensina Ernout (2011) termo que assume um duplo valor racional e afetivo Assim o poeta eacute movido pela forccedila do acircnimo como um sopro que o leva a cantar a celebrar aquilo que ele propotildee Nesse momento nunca eacute demais lembrar duas coisas a primeira eacute a de que anĭmus tem um corresponde exato afirma Ernout em grego que eacute νέμος sopro A outra eacute a presenccedila do verbo ferō em sua terceira pessoa do singular do presente infectum do indicativo fert com o sentido de levar ou conduzir Vecirc-se que o poeta natildeo diz que eacute ele quem vai cantar mas eacute o acircnimo que o conduz a cantar Este acircnimo que se encontra dentro dele e o move eacute o acircnimo das Musas ou no caso de Metamorfoses dos deuses natildeo especificados o que engloba todos Natildeo se trata de um querer individual de um poeta mas de uma decisatildeo divina que o move agrave celebraccedilatildeo Se o Gaffiot (2000) abona a construccedilatildeo fert animus acompa-nhada de infinitivo com o sentido de ter a intenccedilatildeo de usando para isto Suetocircnio e o primeiro verso de Metamorfoses natildeo significa que esta construccedilatildeo tenha sempre que ser traduzida desse modo A abonaccedilatildeo tambeacutem aparece no Oxford com o sentido de to prompt suggest quando diz respeito agrave construccedilatildeo de ferō com infinitivo e quando se trata do vocaacutebulo anĭmus aparece com o sentido de ldquomente como sede do desejo e da voliccedilatildeordquo Para Suetocircnio que estaacute fazendo um relato histoacuterico da vida do imperador Otatildeo vemos como adequada essa traduccedilatildeo por se tratar de uma narrativa que se quer verdadeira e objetiva No caso de Oviacutedio e de outros poetas o que se quer eacute o contraacute-rio deseja-se a subjetividade inerente agrave criaccedilatildeo literaacuteria e uma verdade poeacutetica sob a orientaccedilatildeo dos deuses Voltamos aqui ao sopro criativo das Musas que transforma o pastor o homem apenas ventre em poeta em vate ao mesmo tempo em que subs-tituem o seu cajado por um cetro a partir de um ramo florescente de loureiro como bem o diz Hesiacuteodo na Teogonia (versos 26-34) de modo que o poeta glorie o passado e o futuro com o seu canto divino devidamente protegido por Apolo deus da inspiraccedilatildeo da muacutesica da poesia e da profecia Natildeo seria este o desejo de Oviacutedio no proecircmio de Metamorfoses Veremos a resposta a esta pergunta mais adiante

A proposiccedilatildeo traz o que eacute importante e essencial no poema Assim como a Iliacute-ada inicia-se com a palavra μῆνιν e o segundo verso inicia com οὐλομένην para dizer que a essecircncia desse canto homeacuterico eacute a fuacuteria funesta de Aquiles a Odisseia inicia-se com ἄνδρα completada por πολύτροπον de modo a expressar que o mais importante naquela narrativa eacute cantar o heroacutei de mil voltas ndash mil voltas fiacutesicas em suas viagens errantes e mil voltas no pensamento pela sua astuacutecia ndash no caso Odisseu Jaacute na Enei-da as palavras iniciais satildeo arma uirumque as armas e o heroacutei essecircncia desse poema

eacutepico que se centra na figura de Eneias e nas guerras travadas para a posse da nova terra no Laacutecio Oviacutedio comeccedila o seu poema com o adjetivo noua regido da preposiccedilatildeo in com sentido acusativo e com o substantivo correspondente ndash corpora ndash iniciando o verso seguinte A utilizaccedilatildeo de in com regecircncia de acusativo eacute decisiva para se entender que o poema se estrutura em movimentos para transformaccedilotildees A proposiccedilatildeo se defi-ne com o acircnimo levando a se cantar as formas mudadas para novos corpos O sentido direcional nos parece claro vez que o Oxford apresenta uma das formas de in regendo acusativo quando acompanhado de ldquopalavras que exprimam movimento ou mudanccedila de posiccedilatildeordquo Haacute uma diferenccedila fundamental entre cantar as formas mudadas para no-vos corpos e cantar as formas mudadas em novos corpos O poema natildeo vai cantar as formas mudadas nos novos corpos a proposiccedilatildeo eacute cantar como eacute que se deu esse mo-vimento essa metamorfose de um corpo para um novo corpo Quando isto acontece o mito se fecha e passa-se a outro mito e assim por diante A liccedilatildeo de Oviacutedio iniciando o seu poema com a preposiccedilatildeo in que nesse caso indica movimentaccedilatildeo nos daacute a medida exata do porquecirc seu poema se chama Metamorfoses Embasando a nossa escolha cito a explicaccedilatildeo de Eco agrave recorrecircncia do termo negociaccedilatildeo em seu livro

ldquoSe farograve ricorso tante volte allrsquoidea di negoziazione per spiegare i processi di traduzione egrave percheacute egrave sotto lrsquoinsegna di questo concetto che porrei anche la nozione sino a ora abbastanza imprendibile di significato Si negozia il signi-ficato che la traduzione deve sprimere percheacute si negozia sempre nella vita quotidiana il significato che dobbiamo attribuire alle spressioni che usiamordquo (2016 p 87-88)

Qual teria sido a mudanccedila provocada nas empresas de Oviacutedio O poeta queria fazer um poema essencialmente eacutepico e viu-se levado pela inspiraccedilatildeo divina a fazer um poema que se transforma ao longo de sua narrativa e mescla vaacuterios gecircneros literaacute-rios Ou estaria falando o poeta de que suas intenccedilotildees foram mudadas com o decreto de seu banimento para Tomi no Mar Negro por Augusto Georges Lafaye que estabe-lece e traduz umas das ediccedilotildees de Metamorfoses diz que seu poema estava terminado embora natildeo tivesse recebido a forma definitiva quando de seu banimento no fim do ano 8 de nossa era O poeta o havia comeccedilado informa Lafaye talvez no ano 1 a C e quando soube da sentenccedila que o atingia ele queimou os manuscritos ou por despeito com relaccedilatildeo agraves Musas causas de sua desgraccedila ou pela imperfeiccedilatildeo do poema (Ovide Introduction 1928 p I-II) Impedido de corrigir seu texto Oviacutedio ainda sofre o golpe de ser mantido distante das bibliotecas puacuteblicas expurgado que fora Mesmo quando Metamorfoses chega agraves matildeos de Secircneca pai um dos primeiros a citaacute-lo o seu texto eacute jaacute incerto em vaacuterios lugares diz Lafaye (id Ibid p III)

Qualquer que tenha sido a ordem da mudanccedila operada pelos deuses nos proje-tos de Oviacutedio ela vem a calhar num poema que tem por tiacutetulo mudanccedilas Nessa invo-caccedilatildeo Oviacutedio apela para os deuses ndash di ndash natildeo para uma divindade especiacutefica como as Musas o que se coaduna com outra invocaccedilatildeo que existe no Livro XVccxxix encerrando a narraccedilatildeo para que se abra o epiacutelogo do poema Aos deuses Oviacutedio pede o favoreci-mento e a conduccedilatildeo de seus versos O favorecimento vem com o verbo adspirō em sua forma de imperativo presente adspirāte Voltamos ainda uma vez agraves Musas de Hesiacuteo-

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do Se as Musas inspiraram o poeta soprando o divino para dentro dele agora na hora da criaccedilatildeo na hora da ποίεσις eacute preciso que elas soprem em direccedilatildeo de alguma coisa soprem para fora natildeo mais para dentro O primeiro sentido de adspīrō eacute exatamente soprar em direccedilatildeo de que nos eacute dado pela preposiccedilatildeo inicial regente de acusativo de movimento ad O sopro divino por sua vez mostra-se bem estruturado com o anĭmus do primeiro verso O poeta cria usa de sua racionalidade mas natildeo descarta a ajuda dos deuses que o motivam a criar Uma vez criado o poema eacute preciso que as divindades o soprem para fora favorecendo os seus versos de modo que eles se movimentem visto que a essecircncia da metamorfose eacute o movimento a mudanccedila Mas natildeo basta o sopro favoraacutevel eacute preciso que eles os deuses conduzam os versos do poeta de um lugar para outro retirando-o de dentro dele e fazendo-os mover-se num canto contiacutenuo Eacute nesse momento que entra o verbo dedūcō tambeacutem no imperativo presente deducĭte cujo sentido primordial eacute de deslocamento assegurado pela proposiccedilatildeo de ablativo de A nossa escolha por conduzi e natildeo por outro significado do verbo vem obviamente do verbo ducō cujo significado eacute conduzir estando agrave frente tornando niacutetido o sentido que o poeta quer para seus versos que eles sejam natildeo soacute favorecidos pelos deuses mas que eles proacuteprios os conduzam postando-se agrave frente puxando-os num contiacutenuo para que seus versos natildeo morram consigo Percebendo como o carmen perpetuum eacute parte estrutural de dicĕre e de di os deuses parece-nos ter respondido nesse momento agrave pergunta retoacuterica que fizemos antes Cantar as formas mudadas para novos corpos eacute uma celebraccedilatildeo em que o cantoprofecia (carmen) tem que ser perpeacutetuo contiacutenuo perene O sentido de perpetuum adjetivo importantiacutessimo no proecircmio eacute ambivalente pois significa que o que se canta das origens primeiras aos dias atuais do poeta natildeo tem quebra natildeo sofre soluccedilatildeo de continuidade por maiores e mais complicados que sejam a trama e os desvatildeos em Metamorfoses Por outro lado diz tambeacutem da perpe-tuidade do ato de criar ato que imortaliza o poeta Entendendo como Eco que ldquouna buona traduzione egrave sempre un contributo critico alla comprensione dellrsquoopera tradot-tardquo (2016 p 247) temos a consciecircncia de que um tradutor natildeo pode querer facilitar a sua traduccedilatildeo numa atitude do que chamamos de siacutendrome de Theacutetis No Canto XVIII da Iliacuteada Homero constroacutei o hexacircmetro do verso 54 com o epiacuteteto δυσαριστοτόκεια para Theacutetis a matildee de Aquiles que compreende quase todo o segundo hemistiacutequioccxxx

Ai de mim eu mesma infeliz ai de mim a infortunada que pariu o melhor 148

Muitos preferem a tiacutetulo de facilitaccedilatildeo a traduccedilatildeo interpretativa esquecendo que a interpretaccedilatildeo deve ser do leitor outros simplificam o verso desfazendo todo o esforccedilo do poeta que o construiu de modo a caber no hexacircmetro e para que ao mesmo tempo fosse uma siacutentese da condiccedilatildeo dessa divindade de matildee desafortunada por ter parido o melhor dos Aqueus ποίησις no caso o epiacuteteto de Aquiles conforme o heroacutei eacute apresentado desde o proecircmio da Iliacuteada O epiacuteteto diz de Theacutetis mas diz tambeacutem do oraacuteculo e da escolha de Aquiles de morrer jovem em combate Aquiles natildeo eacute apenas o uacutenico dos Aqueus que vai a Troia sabendo que morreraacute Ele eacute sobretudo o uacutenico que ali se encontra em busca da bela morte a uacutenica via para alcanccedilar a gloacuteria impereciacutevel κλέος ἄφθιτον Simplificar o epiacuteteto eacute destruir um contexto importante dentro da Iliacute-148 Ὤ μοι ἐγὼ δειλή ὤ μοι δυσαριστοτόκεια

ada

Enfim esperamos ter demonstrado a densidade do proecircmio de Metamorfoses bem como ter explicado as nossas escolhas tradutoacuterias fruto de negociaccedilotildees com o contexto e a com a estrutura do poema No nosso entendimento natildeo poderia haver maior exemplo na poeacutetica claacutessica do que esta liccedilatildeo que Oviacutedio nos daacute nesse proecircmio A poesia eacute criaccedilatildeo da racionalidade do poeta que natildeo exclui o sopro divino que o anima agrave criaccedilatildeo favorece os seus versos e os guia agrave perpetuidade mostrando como a invocaccedilatildeo pode se transformar em evocaccedilatildeo no sentido de que os deuses satildeo chamados a contri-buir com a inspiraccedilatildeo e com a expiraccedilatildeo retirando o canto e o perpetuando

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Referecircncias

ASLANOV Cyril A traduccedilatildeo como manipulaccedilatildeo 1ordf Ed Satildeo Paulo Perspectiva Casa Guilherme de Almeida 2015

ASSIS Machado de Esauacute e Jacoacute introduccedilatildeo e notas Heacutelio Guimaratildees 1 Ed Penguin Classics Companhia das Letras 2012

ECO Umberto Dire quasi la stessa cosa esperienze di traduzione VI edizione Mila-no Bompiani 2016

ERNOUT Alfred et MEILLET Alfred Dictionnaire eacutetymologique de la langue latine histoire des mots Paris Klincksieck 2001

GAFFIOT Feacutelix Le grand Gaffiot dictionnaire latin-franccedilais 3e eacuted revue et aug-menteacutee sous la Direction de Pierre Flobert Paris Hachette 2000

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano 4 ed Iluminuras Satildeo Paulo 2001

HOMEgraveRE Iliade texte eacutetabli et traduit par Paul Mazon notes drsquoHeacutelegravene Monsacreacute Paris Les Belles Lettres 2002 (3 tomes)

HOMEgraveRE Lrsquoiliade texte bilingue preacutesenteacute par Claude Michel Cluny Paris Eacuteditions de la Diffeacuterence 1989

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2002

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Odorico Mendes prefaacutecio e notas verso a verso de Saacutel-vio Nienkoumltter Campinas Ateliecirc Editorial Editora a Unicamp 2008

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo e prefaacutecio de Frederico Lourenccedilo introduccedilatildeo e appendices de Peter Jones introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 1950 E V Rieu 1ordf ed Satildeo Paulo Penguin Clas-sics Companhia das Letras 2013

OVIDE Les meacutetamorphoses texte eacutetabli et traduit par Georges Lafaye Paris Les Belles Lettres 1928 (III Tomes)

OVIDIO Metamorfosi vol I Libri I-II a cura di Alessandro Barchiesi con um saggio introdutivo di Charles Segal texto critico basato sullrsquoedizione oxoniense di Richard Tarrant traduzione di Ludovica Koch III edizione Fondazione Lorenzo Valla Arnaldo Mondadori Editore 2011

OXFORD LATIN DICTIONNAIRE Oxford Clarendon Press 1968

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Semacircntica Aristoteacutelica

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Joseacute R Seabra F

A obra completa de Aristoacuteteles publicada nos dias de hoje inicia-se pelo Oacuterga-non seacuterie de seis tratados de loacutegica escritos em estilo direto seco breve Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Primeiros Analiacuteticos Segundos Toacutepicos Dos Elencos So-fiacutesticos Nesses seis livros o leitor vai encontrar em resumo respectivamente anaacutelise dos elementos das proposiccedilotildees estudo da proposiccedilatildeo teoria do silogismo silogismo cientiacutefico pontos da dialeacutetica os sofismas e os meios de refutaacute-los Mas que relaccedilatildeo com a gramaacutetica tecircm essas obras do filoacutesofo Eacute o que se confere a seguir Os livros de loacutegica englobados pelo tiacutetulo Oacuterganon apresentam em geral significado da palavra significado da linguagem semacircntica analisada e desenvolvida para entendimento de proposiccedilotildees isto eacute de frases de afirmaccedilotildees em uacuteltima anaacutelise tambeacutem assunto gra-matical loacutegica filosoacutefico-gramatical

Categorias (Κατηγορίαι) eacute o tratado que abre a seacuterie o nome vem de κατεγορείν

(acusar) e o significado seria entatildeo ldquoacusaccedilotildeesrdquo mas em Aristoacuteteles o sentido eacute de ldquoatributosrdquo Por exemplo na frase ldquoo homem eacute brancordquo homem seria a categoria da substacircncia e branco a da qualidade A classificaccedilatildeo aiacute de tipos de categorias (atributos predicados) serve para dar maior capacidade de anaacutelise e interpretaccedilatildeo a elementos e argumentos do discurso Conforme anaacutelise de estudiosos as categorias (os atributos) seriam uma espeacutecie de reflexatildeo sobre a gramaacutetica grega assim por exemplo seguindo a ordem do livro as quatro primeiras categorias ndash substacircncia qualidade quantidade relaccedilatildeo ndash correspondiam aos substantivos e adjetivos as quatro uacuteltimas ndash posiccedilatildeo possessatildeo accedilatildeo paixatildeo ndash aos verbos as duas do meio ndash lugar e tempo ndash aos adveacuterbios Exemplo de categoria quantidade Aristoacuteteles observa que as coisas em si mesmas e isoladamente natildeo satildeo ou grandes ou pequenas e soacute o satildeo por comparaccedilatildeo assim di-zemos que uma colina eacute grande que um gratildeo de milho eacute pequeno mas na realidade queremos dizer ldquomaiorrdquo ou ldquomenorrdquo do que coisas semelhantes do gecircnero pois nos referimos a algum padratildeo externo se tais termos fossem usados ldquoabsolutamenterdquo ja-mais deveriacuteamos chamar uma colina de grande como jamais deveriacuteamos chamar um gratildeo de milho de pequeno

O segundo da seacuterie Da Interpretaccedilatildeo (Περὶ ἑρμενείας) apresenta estudo das proposiccedilotildees e anaacutelise semacircntica dos elementos do enunciado A palavra ἑρμενεία sig-nifica para Aristoacuteteles ldquocomunicaccedilatildeo ou manifestaccedilatildeo do pensamentordquo Natildeo eacute livro propriamente de gramaacutetica mas acaba por tratar de noccedilotildees baacutesicas da linguagem no-ccedilotildees de que se serviraacute toda uma tradiccedilatildeo gramatical posterior Segundo nossa anaacutelise trecircs noccedilotildees sobressaem a distinccedilatildeo entre fonema e letra a definiccedilatildeo de nome (o nome como convencional) o futuro como tempo eventual Noccedilotildees repercutidas nas gramaacute-ticas modernas Exemplos a seguir de trechos com as principais definiccedilotildees Assim a respeito de fonema e letra

Das afecccedilotildees na alma existem certamente os siacutembolos na voz e das [afecccedilotildees] na voz existem as coisas grafadas150 (16a3-16a4)

150 ἔστι μὲν οὖν τὰ ἐν τῇ φωνῇ τῶν ἐν τῇ ψυχῇ παθηματων σύβολα καὶ τὰ γραφόμενα τῶν ἐν τῇ φωνῇ

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ldquoAfecccedilatildeordquoccxxxv traduz πάθημα (tudo o que afeta o corpo ou a alma ou a mente) no trecho consta παθημάτων (das afecccedilotildees) traduccedilatildeo pois bem literal o significado aiacute seria os sons da voz humana siacutembolos dos estados da alma as palavras escritas siacutembolos dos sons da voz Hoje muito comum nas gramaacuteticas a distinccedilatildeo entre fonema (som da voz humana vogal consoante) e letra (siacutembolo que representa o fonema) Adiante acerca do nome

Nome certamente entatildeo eacute voz significativa por convenccedilatildeo sem [referecircncia a] tempo da qual nenhuma parte eacute signi-ficativa isoladamente 151 (16a19-16a21)

Notem-se aiacute as expressotildees φωνὴ σημαντικὴ voz significativa som significati-vo e συνθήκη o ato o resultado de ldquocolocar juntordquo arranjo convenccedilatildeo Parece que a linguiacutestica moderna estabelece hoje como convenccedilatildeo o substantivo o nome das coisas mas desde a antiguidade houve discussatildeo sobre o assunto Sobre o verbo afirma-se

Verbo poreacutem eacute o que indica tempo do qual [verbo] uma parte nada significa separadamente e eacute o sinal das coisas ditas de outra coisa152 (16b6-16b7)

Aristoacuteteles diz que o verbo apresenta aleacutem da significaccedilatildeo proacutepria a de tem-po ὑγίεια (sauacutede) eacute nome ὑγιαίνει (estar satildeo) verbo pois este junta agrave sua proacutepria significaccedilatildeo a existecircncia atual desse estado Sobre o discurso afirma-se

E eacute o discurso todo certamente significativo natildeo como instrumento [natural] poreacutem mas como precisamente se disse por convenccedilatildeo153 (16b33-17a2)

Mais adiante capiacutetulo IX nas ediccedilotildees europeias modernas Aristoacuteteles anali-sa a oposiccedilatildeo dos futuros contingentes cada coisa necessariamente eacute ou natildeo eacute seraacute ou natildeo seraacute e entretanto se se consideram separadamente essas alternativas natildeo se pode dizer qual das duas eacute necessaacuterio λέγω δὲ οἷον (e digo como exemplo)ἀνάγκη με ἔσεσθαι ναυμαχίαν αὔριον ἢ μὴ ἒσεσθαι (eacute necessidade decerto haver de ser batalha naval amanhatilde ou natildeo haver de ser) οὐ μέντοι γενέσθαι αὔριον ναυμαχίαν ἀναγκαῖον (seguramente natildeo eacute necessaacuterio vir a ocorrer amanhatilde batalha naval) οὐδὲ μὴ γενέσθαι (nem natildeo vir a ocorrer) γενέσθαι μέντοι ἢ μὴ γενέσθαι ἀναγκαῖον (seguramente eacute necessaacuterio vir a ocorrer ou natildeo vir a ocorrer) Em traduccedilatildeo mais fluente ldquoNecessa-riamente haveraacute amanhatilde batalha naval ou natildeo haveraacute mas natildeo eacute necessaacuterio que haja amanhatilde batalha naval e natildeo eacute necessaacuterio que natildeo haja mas que haja ou que natildeo haja amanhatilde batalha naval eis o que eacute necessaacuteriordquo Entende-se proposiccedilatildeo natildeo-necessaacuteria

151 ὄνομα μὲν οὖν ἐστὶ φωνὴ σημαντικὴ κατὰ συνθήκην ἄνευ χρόνου ἧς μηδὲν μέρος ἐστὶ σημαντικὸν κεχωρισμένον152 ῥῆμα δέ ἐστι τὸ προσσημαῖνον χρόνον οὗ μέρος οὐδὲν σημαίνει χωρίςmiddot ἔστι δὲ τῶν καθʼ ἑτέρου λεγομένων σημεῖον153 ἔστι δὲ λόγος ἅπας μὲν σημαντικός οὐχ ὡς ὄργανον δέ ἀλλʼὥσπερ εἴρηται κατὰ συνθήκην154 ἀνάγκη δὲ πάντα λόγον ἀποφαντικὸν ἐκ ῥήματος εἶναι ἢ πτώσεωςmiddot καὶ γὰρ ὁ τοῦ ἀνθρώπου λόγος ἐὰν μὴ τὸ ἔστιν ἤ ἔστασι ἢ ἦν ἤ τι τοιοῦτο προστεθῇ οὔ πω λόγος ἀποφαντικός

ldquoamanhatilde haveraacute batalha navalrdquo proposiccedilatildeo natildeo-necessaacuteria ldquoamanhatilde natildeo haveraacute ba-talha navalrdquo proposiccedilatildeo necessaacuteria ldquoamanhatilde ou haveraacute ou natildeo haveraacute batalha navalrdquo ndash eis aiacute a oposiccedilatildeo dos futuros contingentes (incertos) ndash o futuro necessaacuterio sempre de oposiccedilatildeo de alternativas

Os tratados seguintes satildeo os dois Analiacuteticos o terceiro da seacuterie Analiacuteticos Ana-liacuteticos Primeiros de raciociacutenio em geral o quarto Analiacuteticos Segundos da metodolo-gia do conhecimento cientiacutefico Eacute costume dizer ldquotratados de loacutegicardquo mas em vez da palavra ldquoloacutegicordquo (λογικός) Aristoacuteteles usa ldquoanaliacuteticordquo (ἀναλυτικός) Que quer dizer esse termo ldquoanaliacuteticordquo trata-se do meacutetodo analiacutetico decompor em partes as questotildees e problemas

Os Analiacuteticos Primeiros (Αναλυτικὰ πρότερα) terceira parte do Oacuterganon constituem o maacuteximo da loacutegica aristoteacutelica Tarefa difiacutecil estudar esta obra sutilezas de linguagem requerem aiacute concentraccedilatildeo e esforccedilo por parte do leitor Texto sobre ciecircn-cia demonstrativa os Analiacuteticos Primeiros constam de dois livros teoria do silogismo no livro I propriedades do silogismo no livro II em resumo estudo da natureza e funcionamento do silogismo em geral Esta nossa anaacutelise contempla apenas o livro I que apresenta teoria do raciociacutenio em geral as leis do silogismo a anaacutelise dos ldquoargu-mentosrdquo (isto eacute das ldquoafirmaccedilotildees com justificativasrdquo) Tem-se aiacute o estudo exaustivo do silogismo que eacute para o filoacutesofo estagirita o raciociacutenio loacutegico por excelecircncia Enfim o objetivo eacute expor a natureza e funcionamento do silogismo em geral Consideram-se di-ficuldades de compreensatildeo imediata do texto toto os raciociacutenios esboccedilados e indicados por letras do alfabeto grego como a concisatildeo e brevidade e ainda verbo de ligaccedilatildeo su-bentendido e expressotildees que parecem impliacutecitas no texto Mostra-se a seguir que essas aparentes ldquodificuldadesrdquo podem ser consideradas ldquofacilidadesrdquo visto ser seca e objetiva e de palavras somente necessaacuterias a redaccedilatildeo de Aristoacuteteles Objetiva-se entatildeo mostrar tambeacutem o valor semacircntico que tinham quando foram aiacute usados os termos e expres-sotildees A loacutegica aristoteacutelica tem por base a ideia da deduccedilatildeo quer dizer a existecircncia de argumento particular a partir de argumento universal Aristoacuteteles considera premissa (πρότασις) o discurso (λόγος) que ou afirma ou nega alguma coisa esse discurso pode ser ou universal (καθόλου) ou particular (ἐν μέρει) ou indefinido (ἀδιόριστος) uni-versal a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo a algo tomado universalmente particular a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo a algo tomado particularmente ou natildeo-universalmente indefinido a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo feita sem indicaccedilatildeo de universalidade ou de particularidadeccxxxviii Vecirc-se entatildeo em Analiacuteticos Primeiros I a definiccedilatildeo de ldquoproacuteta-serdquo como oraccedilatildeo que afirma ou nega alguma coisa de algum sujeito

Proacutetase decerto eacute pois um enunciado afirmativo ou nega-tivo de algo acerca de algo155 (24a17-19)

Entre noacutes hoje em loacutegica esta palavra ldquoproacutetaserdquo indica a primeira proposiccedilatildeo duma demonstraccedilatildeo Forma-se de θέσις (a posiccedilatildeo o ato de pocircr de colocar) e πρό (an-tes diante) Em vez de ldquopremissardquo ou ldquoproposiccedilatildeordquo pode-se usar ao traduzir o texto aristoteacutelico a mesma palavra ldquoproacutetaserdquo A seguir algumas definiccedilotildees baacutesicas ainda do

155 Προτάσις μὲν οὖν ἐστι λόγος καταφατικὸς ἢ ἀποφατικὸς τινὸς κατὰ τινος

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livro I Definiccedilatildeo do silogismo

E silogismo eacute enunciado (discurso) em que colocadas certas coisas outra diferente das estabelecidas necessa-riamente decorrer pelo [fato de] existirem essas coisas E digo pelo [fato de] existirem essas coisas o em virtude dessas coisas decorrer e [digo] o em virtude dessas coisas decorrer o [fato de] natildeo ser necessaacuterio nenhum termo de fora para ter-se produzido necessariamente [a consequecircn-cia]156 (24b19-22)

Fala-se em silogismo aristoteacutelico mas discutem os estudiosos o que Aristoacutete-les entendia exatamente por silogismo Em geral muitos estudiosos consideram que silogismo tal como apresentado nos Analiacuteticos Primeiros possa ser resumido como laquo argumento vaacutelido com estrutura peculiar raquo Alguns tradutores preferem traduzir συλλογισμός por laquo raciociacutenio raquo ou por laquo deduccedilatildeo raquo Considera-se enfim o silogis-mo como um raciociacutenio ou deduccedilatildeo ou conclusatildeo a partir de premissas A palavra συλλογισμίς eacute constituiacuteda por συν (com) mais λογισμός (caacutelculo) indica ldquoconexatildeo de ideiasrdquo e ldquoraciociacuteniordquo Com essa palavra Aristoacuteteles designa a argumentaccedilatildeo loacutegica per-feita Pode-se dizer em resumo que o silogismo se constitui de trecircs proposiccedilotildees decla-rativas primeira premissa segunda premissa conclusatildeo

A seguir em pouco mais de quarenta capiacutetulos apresentam-se formas de ar-gumentos vaacutelidos como tais formas se relacionam entre si para construir sistema loacute-gico as propriedades de tal sistema loacutegico Em traduccedilotildees francesas e espanholas ndash natildeo no original ndash aparecem tiacutetulos dos capiacutetulos por exemplo laquo silogismos modais com uma proacutetase necessaacuteria e outra assertoacuteria (categoacuterica) raquo laquo silogismos modais sobre o admissiacutevel raquo etc Entende-se aiacute como silogismo modal aquele que pressupotildee pelo me-nos uma proacutetase modalizada ndash a modalidade em filosofia aristoteacutelica eacute uma particu-laridade da proacutetase uma proacutetase pode afirmar que algo precisa ser ou que realmente eacute (assertoacuteria) ou que pode ser Como exemplos de proacutetases assertoacuterias (proposiccedilotildees categoacutericas) podem-se considerar as relaccedilotildees seguintes

duas proposiccedilotildees satildeo contraditoacuterias se ndash e somente se ndash natildeo podem ambas ser verda-deiras e natildeo podem ambas ser falsas

duas proposiccedilotildees satildeo contraacuterias se ndash e somente se ndash ambas podem ser falsas mas natildeo podem ambas ser verdadeiras

Com estudo das sutilezas do texto original veem-se a seguir trecircs exemplos de alguns capiacutetulos em que Aristoacuteteles analisa silogismos[conversatildeo das proacutetases]

156 Συλλογισμὸς δὲ ἐστι λόγος ἐν ᾧ τεθέντων τινῶν ἕτερόν τι τῶν κειμέμων ἐξ ἀνάγκης συμβαίνει τῷ ταῦτα εἶναι Λέγω δὲ τῷ ταῦτα εἶναι τὸ διὰ ταυτᾶ συμβαίνειν τὸ δὲ διὰ ταῦτα συμβαίνειν τὸ μηδενὸς ἔξωθεν ὅρου προσδεῖν πρὸς τὸ γενέσθαι τὸ ἀναγκαῖον

Pois natildeo [se segue] se ldquohomemrdquo acaso natildeo esteja (natildeo es-teja como base) (natildeo exista) em algum vivente (animal) tambeacutem ldquoviventerdquo (animal) natildeo estaacute (natildeo estaacute como base) (natildeo existe) em algum homem157 (I 25a12-13)

Embora no subjuntivo na traduccedilatildeo eacute de se notar que no original o verbo apa-rece duas vezes sempre no indicativo ὑπάρχει mas na primeira vez antecedido de μή (que eacute um ldquonatildeordquo eventual) e na segunda antecedido de οὐχ (que eacute um ldquonatildeordquo real)

[silogismo assertoacuterio (categoacuterico)]

Se pois o M em certamente nenhum N estaacute (estaacute como base) (existe) poreacutem em algum Ξ necessidade o Ν em al-gum Ξ natildeo estar (natildeo estar como base) (natildeo existir)158 (I 27a32-33)

Em traduccedilotildees europeias duas negativas ldquose Μ natildeo estaacute em nenhum Νrdquo ndash o que natildeo parece bem em texto de loacutegica

[silogismo com duas proacutetases contingentes (com duas premissas admissiacuteveis)]

Quando entatildeo o Α aplicar-se a todo Β e o Β a todo o Γ silo-gismo haveraacute perfeito por [pelo fato de] ser fundamento o Α aplica-se a todo o Γ159 (I 32b38-40)

Na obra seguinte Analiacuteticos Segundos consta a ideia de que toda disciplina vem a partir de algum conhecimento preacute-existente Conforme Analiacuteticos Segundos 71a e toda disciplina dianoeacutetica se adquirem de um saber que precede o conhecimentordquo Em suma o objetivo neste quarto tratado eacute a demonstraccedilatildeo Conforme Aristoacuteteles ldquoOs meios pelos quais os argumentos retoacutericos convencem satildeo precisamente os mesmos uma vez que utilizam paradigmas que satildeo um tipo de raciociacutenio indutivo ou entime-mas que satildeo um tipo de raciociacutenio silogiacutesticordquo

Depois dos Analiacuteticos vem o tratado Toacutepicos (Τοπικά) que analisa o τόπος que se entende por ldquolugarrdquo donde se descobrem ou se inventam argumentos e por ldquoargu-mentordquo ou ldquomateacuteria de um discurso Esta obra se refere tambeacutem agrave arte oratoacuteria tra-ta-se dum tratado filosoacutefico-retoacuterico O objetivo dos Τοπικά penuacuteltima parte da seacuterie Oacuterganon jaacute eacute indicado de iniacutecio

ἡ μὲν πρόθεσις τῆς πραγματείας (o propoacutesito do tra-balho) μέθοδον (achar meacutetodo) ἀφʼ ἧς δυνησόμεθα συλλογίζεσθαι περὶ παντὸς τοῦ προτεθέντος προβλήματος ἐξ ἐνδόξων (pelo qual seremos capazes de raciocinar desde opiniotildees renomadas sobre todo problema colocado) καὶ αὐτοὶ λόγον ὑπέχοντες μηθὲν ἐροῦμεν ὑπεναντίον (e noacutes mesmos ao sustentar um

157 Οὐ γὰρ εἰ ἄνθρωπος μὴ ὑπάρχει τινὶ ζῴῳ καὶ ζῷον οὐχ ὑπάρχει τινὶ ἀνθρώπῳ158 Εἰ γὰρ τὸ Μ τῷ μὲν Ν μηδενὶ τῷ δὲ Ξ τινὶ ὐπάρχει ἀνάγκη τὸ Ν τινὶ τῷ Ξ μὴ ὐπὰρχειν

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argumento evitar dizer algo contraditoacuterio) O que se quer entatildeo eacute descobrir meacutetodo que capacite o raciociacutenio a partir de

opiniotildees de aceitaccedilatildeo geral acerca de qualquer problema que se apresente Aristoacuteteles repete em seguida tendo em vista agora a dialeacutetica a definiccedilatildeo de silogismo ldquoum dis-curso argumentativo no qual uma vez formuladas certas coisas alguma coisa distinta dessas coisas resulta necessariamente atraveacutes delasrdquo

Dos Elencos Sofiacutesticos (Περὶ σοφιστικῶν ἔλεγχῶν) o sexto e uacuteltimo da seacuterie trata do sofisma da falaacutecia A palavra ldquoelencordquo (ἔλεγχος) entre noacutes hoje eacute mais usa-da no sentido de cataacutelogo ou lista mas em Aristoacuteteles tem o sentido de ldquoargumento para refutarrdquo Iniacutecio do texto περὶ δὲ τῶν σοφιστικῶν ἔλεγχῶν [a respeito dos elencos sofiacutesticos (das refutaccedilotildees sofiacutesticas)] καὶ τῶν φαινομένων μὲν ἐλέγχων ὄντων [e que aparecem como sendo (parecem ser) certamente elencos (argumentos refutaccedilotildees contestaccedilotildees)] δὲ παραλογισμῶν ἀλλʼ ἐκ ἐλέγχῶ [poreacutem que satildeo paralogismos (enga-nos caacutelculos falsos falaacutecias) mas natildeo elencos (e natildeo refutaccedilotildees)] λέγωμεν [falemos] Para exemplificar pode-se ver um trecho do capiacutetulo IV ldquorefutaccedilotildees verbais e refu-taccedilotildees relativas agraves coisasrdquo consta aiacute o paraacutegrafo 4 de anaacutelise de refutaccedilotildees verbais Apresentam-se entatildeo exemplos de anfibologia agraves vezes difiacuteceis de passar numa tradu-ccedilatildeo Eacute o caso de ambiguidade ou duplo sentido neste periacuteodo composto com oraccedilatildeo reduzida τὸ βούλεσθαι λαβεῖν με τοὺς πολεμίους de dois significados literalmente ldquoo querer-se eu ter pego os inimigosrdquo e ldquoo querer-se os inimigos me terem pegordquo isto eacute ldquoquerem que eu tenha pego os inimigosrdquo e ldquoquerem que os inimigos me tenham pegordquo Frase correta mas ambiacutegua A oraccedilatildeo em negrito reduzida de infinitivo apresenta dois sentidos o sujeito do infinitivo λαβεῖν tanto pode ser o acusativo με como o acusativo τοὺς πολεμίους

159 Οταν οὖν τὸ Α παντὶ τῷ Β ἐνδέχηται καὶ τὸ Β παντὶ τῷ Γ συλλογισμὸς ἔσται τέλειος ὅτι τὸ Α παντὶ τῷ Γ ἐνδέχεται ὑπάρχειν

Referecircncias

Aristotelis opera ndash Academia regia Borussica Berlin 1960 vol I

Aristote ndash Organon (eacutedition J Tricot) Paris 1946 v 1

Cateacutegories v 2 De lrsquoInterpreacutetation v 3 Premiers

Analytiques v 4 Seconds Analytiques v 5 Topiques v 6 Les Reacutefutations SophistiquesAristotelis liber de interpretatione London Oxford University Press 1956

Aristotle ndash The Orgnon ndash Prior Analytics Hugh Tredennick Harvard University Press London 1955

Aristoacuteteles ndash Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Analiacuteticos Primeros Miguel Candel Sanmartiacuten Editorial Gredos Madrid 1995

Aulo Geacutelio ndash Noites Aacuteticas Londrina EDUEL 2010

Introduccedilatildeo de Bruno Fregni Bassetto traduccedilatildeo e notas de Joseacute Rodrigues Seabra Filho Nova tiragem revisada 2014

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Notas Finais

i LIDDELL Henry George and SCOTT Robert A Greek-English Lexicon Oxford University Press New York 1996 ii GENNEP Arnold Van The rites of passage Translated by Monika B rVizedon Routledge Library Editions London 2004 iii wwwperseustuftsedu (Apollodorus Library and Epitomes 2512) iv HOMERO Odyssey Translated by A T Murray Harvard University Press London 2002 (Loeb Classical Library) Book XI v VIRGIL Ecogles Georgics Aeneid 2V Translated by H R Fairclough Harvard University Press London 2001 (Loeb Classical Library) Georgics Book IV 453 ss vi wwwperseustuftsedu (Apollodorus Library and Epitomes 2512) vii Para a referecircncia da astuacutecia de Hera com relaccedilatildeo a Zeus fazendo de Euristeu o rei quando Zeus pensava em Heacutercules v Iliacuteada XIX 90-133 viii MIRCEA Eliade Rites and symbols of initiation the mysteries of birth and rebirth Translated by Willard R Trask Putnam Spring Publications 2005 p 112 ix HOMERO Odisseia XIX v 399-409 x HOMERO Odisseia XIX v 124-129 xi V Canto VIII da Odisseia na recepccedilatildeo a Odisseu entre os Feaacutecios em que Demoacutedoco canta o episoacutedio do cavalo de Troacuteia xii VIRGIacuteLIO Livro I v 257-296 xiii VIRGIacuteLIO Livro III v 441-444 xiv VIRGIacuteLIO Livro V v 724-739 xv VIRGIacuteLIO Livro VIII v 608-731 xvi HOMER Iliad Translated by A T Murray Harvard University Press London 2003 (Loeb Classical Library) Σ 478-608 xvii VIRGIacuteLIO Livro VIII v 626-728 xviii VOLPIS Leone Virgilio Eneide Libro sesto Milano Carlos Signorelli 1953 xix GLARE 2003 p 1238 xx Daiacute o significado do nome proposto pelo proacuteprio Virgiacutelio Averno seria proveniente do grego ἄορνος significando sem paacutessaro (VI 236-242) xxi VERNANT Jean-Pierre Mito e religiatildeo na Greacutecia antiga Trad Joana Angeacutelica DrsquoAvila Melo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 xxii Ver Iliacuteada Canto I v 37-42 na prece de Crises a Apolo e v 62-67 na fala de Aquiles sugerindo a consulta a um adivinho para saber o motivo de Apolo ter enviado ao acampamento a peste que dizimava o exeacutercito grego xxiii HOMERO Odisseia XI v 23-50 xxiv HESIacuteODO Teogonia v 383-403

xxv O escudo (ancile) segundo Tito Liacutevio teria caiacutedo do ceacuteu caelestiaque arma quae ancilia appellantur (Ab Vrbe Condita I 20) armas celestes que satildeo chamadas de escudos xxvi Espeacutecie de toga de cor puacuterpura usada pelos reis xxvii Primeiro ato de arar a terra xxviii O pronome hi estes faz referecircncia a Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e Marco Fuacuterio Camilo xxix Interregnum eacute o espaccedilo decorrente entre dois reinados xxx O termo nonae era empregado pois das nonae para os idus havia um espaccedilo de nove dias Sendo assim nos meses em que as nonae determinavam o 7ordm dia de cada mecircs os idus marcavam o 15ordm dia Nos meses de abril junho setembro e novembro as nonae determinavam o 5ordm dia e os idus o 13ordm dia xxxi A relaccedilatildeo de tais deuses se encontra em Le Culte Chez les Romains p11 xxxii Teogonia v 542 e v643 xxxiii Eneida I v 65 xxxiv Idem I v 254 xxxv Ibidem I v665 xxxvi Ibidem I v60 III v251 xxxvii Ibidem II v689 xxxviii Fulgurator eacute o que lanccedila relacircmpagos Tonitrualis e Fulminator os que lanccedilam raios Imbricitor o que faz chover Serenator o que acalma Frugiferum o que gera frutos o feacutertil o fecundo Tropaeophorus o que traz o trofeacuteu o vencedor xxxix Respectivamente Vencedor Invenciacutevel Auxiliador Instigador Mantenedor De cem peacutes Destruidor Sustentador Alimentador Nutridor xl Salii eram os antigos sacerdotes de Marte xli Flamen era o sacerdote que se consagrava a uma divindade particular Flamen Dialis Flamen Martialis Flamen Quirinalis respectivamente sacerdote de Juacutepiter sacerdote de Marte sacerdote de Quirino xlii vir refere-se a Varratildeo xliii O triacutemetro jacircmbico era composto por trecircs diacutepodas de jambo justapostas Jaacute Aristoacuteteles em sua Poeacutetica argumenta sobre seu uso na trageacutedia e na comeacutedia associando-o agrave fala cotidiana (1449a) ldquoquando se desenvolveu o diaacutelogo o engenho natural logo encontrou o metro adequado pois o jambo eacute o metro que mais se conforma ao ritmo natural da linguagem corrente demonstra-o o fato de muitas vezes proferirmos jambos na conversaccedilatildeo e soacute raramente hexacircmetros quando nos elevamos acima do tom comumrdquo (Trad Eudoro de Souza 1973) xliv Todas as traduccedilotildees exceto se especificado o contraacuterio satildeo de minha responsabilidade Adoto a ediccedilatildeo de Stevens (1971) para o texto grego xlv O diacutestico elegiacuteaco alterna hexacircmetros datiacutelicos o metro proacuteprio da poesia eacutepica ndash composto por seis peacutes datiacutelicos ou espondeus ndash com pentacircmetros (ou mais propriamente dois hemistiacutequios de hexacircmetro justapostos) Na traduccedilatildeo do passo elegiacuteaco da Androcircmaca embora natildeo busque em nenhum sentido reproduzir tal metro em liacutengua portuguesa busquei manter ao menos graficamente a estruturaccedilatildeo em diacutesticos xlvi Adoto a ediccedilatildeo de Garvie (2009) xlvii Adoto aqui em suas linhas gerais o argumento de Arthur (1981) Schein (1984 p168-191) e Redfield (1994 pp109-110) xlviii Um exemplo eacute o episoacutedio da morte de Paacutetroclo que incorpora cenas motivos e linguagem atinentes agrave morte de Aquiles que natildeo eacute contada no poema (ver Schein 1984 p 155-156) xlix Adoto a ediccedilatildeo de van Thiel (2010) para a traduccedilatildeo dos excertos da Iliacuteada l A traduccedilatildeo adota a ediccedilatildeo de Bury (1926)

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li Traduccedilatildeo de Iacutecaro Francesconi Gatti (2012) A ediccedilatildeo do texto grego eacute de Severyns (1977) lii Para a traduccedilatildeo deste excerto da Odisseia usei a ediccedilatildeo de Allen (1975) liii Traduccedilatildeo de Giuliana Ragusa (2011) segundo a ediccedilatildeo de Eva-Maria Voigt (1971) liv Um indiacutecio de canto lamentoso em Safo eacute o fragmento 140 Voigt um canto responsoacuterio agrave morte de Adocircnis embora natildeo definido tecnicamente como um treno lv Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira (2017) a partir da ediccedilatildeo de Burnet (1949) lvi Ver Swift (2010) lvii Adoto para a traduccedilatildeo a ediccedilatildeo de Dodds (1960) lviii Usado tambeacutem no Hino Deacutelfico a Dioniso de Filodamo e no hino de Iacuteaco nas Ratildes de Aristoacutefanes (vv324ss) Ver Dodds 1960 pp 72-74 lix Satildeo fundadores os textos de West (1974) e Bowie (1986) Para um desenvolvimento da discussatildeo aqui apresentada ver Brunhara (2014) lx Ediccedilatildeo do texto Diggle (1982) lxi Ver Fowler (1987) lxii Sobre o Poliacircndrio de Ambraacutecia ver DrsquoAlessio (1995) Uma traduccedilatildeo destes versos pode ser lida em Brunhara (2014 p27) lxiii Utilizo a ediccedilatildeo de Martin West (1972) para a traduccedilatildeo das elegias arcaicas de Arquiacuteloco e Tirteu lxiv Aristoacutefanes Aves v214 lxv Troianas v199 Ifigecircnia em Taacuteuris v146 Helena v185 Orestes v968 Euriacutepides Hipsiacutespile 8-10 Cocke) lxvi COSTA 2014 p 11 61 cf o prefaacutecio de Anatol Rosenfeld em LESKY 2003 p 14 lxvii LESKY 2003 p 21-23 lxviii Para atender agrave leitura do texto grego faz-se necessaacuterio transliterar pelo menos palavras e expressotildees isoladas na primeira ocorrecircncia A transliteraccedilatildeo eacute escrita entre colchetes quando segue a proacutepria palavra grafada em caracteres gregos (ROSSETTI 2006 p 327-337) lxix palavra ἁμαρτία [hamartia] eacute uma palavra composta e deverbal derivada do verbo ἁμαρτάνω [hamartanō] que literalmente significa errar o alvo errar a marca Assim ἁμαρτάνω tem amiuacutede a acepccedilatildeo de falhar no propoacutesito fazer errado negligenciar O ἀ de ἁμαρτάνω eacute privativo Por fim a palavra ἁμαρτία [hamartia] significa falha falta ou erro Essa culpa natildeo eacute senatildeo o estado de esquecimento diante dos verdadeiros objetivos reais (MORWOOD TAYLOR 2002 p 17 PEREIRA 1998 p 29 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 77 Confronte com a acepccedilatildeo judaico-cristatilde em LUST EYNIKEL HAUSPIE 1992 pt 1 p 22-23 RUSCONI 2003 p 36) lxx LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1150-1151 lxxi ARISTOTELES 1965 p 10-11 MARTINS 2009 p 128 lxxii ARISTOTELES 1965 p 11 lxxiii ARISTOTELES 1965 p 12 lxxiv ARISTOTELES 1965 p 12 MARTINS 2009 p 128-129 lxxv ARISTOTELES 1965 p 17 MARTINS 2009 p 128-129 lxxvi ARISTOTELES 1965 p 17 MARTINS 2009 p 128-129 lxxvii ARISTOTELES 1965 p 14 lxxviii HOMERO 2008 v 1 p 168 JEBB 2010 v 1 p xiv lxxix JEBB 2010 v 1 p xiv lxxx JEBB 2010 v 1 p xv lxxxi JEBB 2010 v 1 p xiv lxxxii MORWOOD TAYLOR 2002 p 8 PEREIRA 1998 p 16 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 36

lxxxiii FREIRE 1991 p 205-206 lxxxiv NIETZSCHE 2014 p 7-8 lxxxv LESKY 2003 p 34-35 lxxxvi JEBB 2010 v 1 p xvii xxi lxxxvii Ocorre o verbo ἁμαρτάνω [hamartanō] mas esse natildeo se aplica a Eacutedipo Faz parte da pergunta retoacuterica do servo e pastor de Laio quando inquirido (Oedipus Tyrannus 1149) lxxxviii Cf Ethica Nicomachea 1114a7-8 ARISTOTELES 2010 p 50 VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 40 lxxxix ARISTOTELES 1965 p 20 xc LESKY 2003 p 29-31 41-43 xci LESKY 2003 p 29-30 xcii A doutrina do estoicismo defendia a perfeiccedilatildeo do saacutebio Para Secircneca o proacuteprio saacutebio natildeo pode natildeo pecar Ainda segundo ele o verdadeiro saacutebio natildeo existe se natildeo peca natildeo existe Apenas existe um saacutebio que natildeo erradicando o pecado afasta-se dele aos poucos REALE 2008 v 7 p 79-80 xciii LESKY 2003 p 42 REALE 2008 v 7 p 79-80 Natildeo obstante as acepccedilotildees de ἁμαρτία e ἁμαρτάνω [hamartanō] como erro pecado falha errar pecar falhar podem ser encontradas na Septuaginta mas geralmente ligadas agraves observacircncias religiosas (LUST EYNIKEL HAUSPIE 1992 pt 1 p 22-23 RUSCONI 2003 p 36 GLARE 2015 p 1448) xciv ARISTOTELES 1965 p 20 LESKY 2003 p 43 xcv ARISTOTELES 1965 p 20 JEBB 2010 v 1 p xxvii LESKY 2003 p 43 xcvi LESKY 2003 p 28-29 xcvii NIETZSCHE 2014 p 5 xcviii ARISTOTELES 1965 p 20 xcix LESKY 2003 p 28-29 c JEBB 2010 v 1 p xxvii COULANGES 2004 p 95-102 ci LESKY 2003 p 28-29 cii ARISTOTELES 1965 p 19-20 MARTINS 2009 p 127-128 ciii ARISTOTELES 1965 p 28-29 MORWOOD TAYLOR 2002 p 22 PEREIRA 1998 p 36 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 101 civ MORWOOD TAYLOR 2002 p 70 PEREIRA 1998 p 114 115 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 350 355 cv MORWOOD TAYLOR 2002 p 3 PEREIRA 1998 p 6 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 12 cvi MORWOOD TAYLOR 2002 p 222 PEREIRA 1998 p 391 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1180-1181 FERRATER MORA 1964 t 2 p 303-304 FOBES 1959 p 284 cvii A palavra παράνοια [paranoia] eacute um substantivo composto e deverbal derivado do verbo παρανοέω [paranoeō] que pensamento desviado loucura ou deliacuterio uma anormalidade do νοῦς [nous] MORWOOD TAYLOR 2002 p 245 PEREIRA 1998 p 433 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1319 FREIRE 2001 p 268 cviii Platatildeo Leges 9860d (PLATO 1926 v 2 p 222-223) Platatildeo Leges 5731c 5734b (PLATO 1926 v 1 p 336-337 346-347) Platatildeo Timaeus 86e (PLATO 1929 v 9 p 234-235) cix VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 36-37 cx VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 35 cxi VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxii VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxiii VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 35-36 cxiv MORWOOD TAYLOR 2002 p 245 PEREIRA 1998 p 433 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1319 FREIRE 2001 p 268

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cxv VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxvi VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37-38 cxvii ARISTOTELES 1965 p 20 cxviii NIETZSCHE 2014 p 5 cxix ARISTOTELES 1965 p 22 cxx Cf a nota sobre a linha 1360 em SOPHOCLES 2010 v 1 p 246-247 A palavra ὅσιος significa santificado pela divina lei ou pela lei da natureza sagrado aprovado pelos deuses santo pio casto puro MORWOOD TAYLOR 2002 p 225 A palavra ἀνόσιος eacute a negaccedilatildeo do ὅσιος cxxi Este capiacutetulo eacute parte de meu poacutes-doutorado supervisionado pelo Prof Dr Joseacute Antocircnio Alves Torrano na Universidade de Satildeo Paulo (USP) com financiamento da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo (FAPESP) cxxii Sobre a importacircncia da vida praacutetica em Diaacutelogo do Amor consultar FRAZIER 2008 p XXXIII-XXXVIII cxxiii Do caraacuteter conselheiro da filosofia agrave eacutepoca de Plutarco ver FOUCAULT 2010 cxxiv A intenccedilatildeo de Plutarco de unir a filosofia agrave praacutetica demonstra a influecircncia vinda da poesia grega anterior como Platatildeo e Aristoacuteteles sobre isso verificar PRICE 2011 cxxv Da misoginia de Euriacutepides averiguar MARCH 1990 cxxvi Segundo o Cataacutelogo de Lacircmprias Plutarco escreveu o tratado n 205 dedicado ao pensamento de Heraacuteclito intitulado Sobre o que pensou Heraacuteclito que natildeo chegou ao nosso tempo Aleacutem disso Plutarco eacute uma fonte importante dos fragmentos de Heraacuteclito (HERSHBELL 1977) cxxvii De acordo com o Cataacutelogo de Lacircmprias Plutarco escreveu o tratado de n 43 intitulado No Deacutecimo Livro de Empeacutedocles ainda que natildeo tenha sido preservado Nosso autor cita muitos pensamentos do filoacutesofo e poeta siciliano em sua obra o que o torna uma importante fonte de fragmentos pertencentes a Empeacutedocles (HERSHBELL 1971) cxxviii Para uma anaacutelise mais detalhada do uso plutarquiano do fragmento de Parmecircnides e dos versos de Hesiacuteodo consultar MARTIN JR 1969 cxxix Como notou Peacuterez Jimeacutenez (2004) Plutarco segue o pensamento cosmogocircnico hesioacutedico porque o poeta de Ascra sistematizou o corpus miacutetico tradicional conhecido por todos os gregos cxxx O pensamento de Crisipo representa a contribuiccedilatildeo do ceticismo na reflexatildeo plutarquiana quanto ao amor Para a leitura que Plutarco faz dos ceacuteticos verificar DeLACY 1953 cxxxi Homero eacute um autor importante para a finalidade pedagoacutegica desse tratado plutarquiano por conta de seus siacutemiles e de sua fama entre os gregos de ldquomestre da sabedoriardquo Para uma leitura mais aprofundada sobre a questatildeo ver DrsquoIPPOLITO 2004 cxxxii Em Hipoacutelito Euriacutepides exalta a amizade e a honestidade entre os homens (PAGLIALUNGA 20022003) cxxxiii O amor entre os guerreiros estaacute presente na tradiccedilatildeo literaacuteria grega em particular entre os espartanos Haacute dois importantes artigos sobre o poder de Eros em um campo de batalha HINDLEY 1994 e 1999 cxxxiv Acerca do amor entre Aquiles e Paacutetroclo averiguar CLARKE 1978 cxxxv Para uma melhor compreensatildeo do poema consultar SUTTON 1983 e HORDERN 1999 cxxxvi Haacute uma anaacutelise hermenecircutica na obra de Piacutendaro da autoria de Fera (1992) a respeito do significado da frase ldquoescaparam de Aqueronterdquo cxxxvii Existe a versatildeo platocircnica de Eros filho de Poros e Penia em que a matildee daquele Meacutetis tem participaccedilatildeo nos atributos de Eros como Diotima que herdou dela e Poros a habilidade na criaccedilatildeo e execuccedilatildeo de expedientes para alcanccedilar seus fins (PLATAtildeO O Banquete 203b-d) Conforme notaram Deacutetienne e Vernant (2008 p 135) a associaccedilatildeo entre Meacutetis e Eros jaacute fora

registrada por Parmecircnides (frag 13) o que evidencia a recepccedilatildeo em Platatildeo de um pensamento jaacute existente natildeo se tratando de uma criaccedilatildeo sua Para uma anaacutelise mais detalhada do episoacutedio ver NEUMANN 1965 cxxxviii Para ver uma lista de obras sobre a Histoacuteria da Linguiacutestica desde 1882-1976 ver Koerner (1978) De acordo com Koerner (2014 p 11) ldquoEacute verdade que podiacuteamos talvez falar de uma tradiccedilatildeo de 200 anos de escrita da histoacuteria da Linguiacutestica talvez a comeccedilar com o Tableau des progregraves de la science grammaticale (1796 cf Andresen 1978) de Franccedilois Thurot (1768- 1832) embora vaacuterias obras anteriores jaacute tenham sido citadas por exemplo o Versuch einer Historie der deutschen Sprachkunst (1747) de Elias Caspar Reichard (1714-1791) (cf Koerner 1978c para referecircncias a outras obras do seacuteculo XVIII) Poreacutem como sugerem as fontes (Koerner 1978c 1-4) eacute apenas a partir de finais da deacutecada de 1860 que surge um tipo de tratamento mais profundo da histoacuteria da Linguiacutestica do qual a Geschichte der Sprachwissenschaft (1869) de Theodor Benfey (1809-1881) pode ser considerada como o exemplo mais paradigmaacutetico Este trabalho tinha sido precedido pela obra de Heymann Steinthal (1823-1899) de 1863 que procurou substituir os trecircs volumes de Die Sprachphilosophie der Alten (1838-1841) de Laurenz Lersch (1811-1849) mas que soacute trata das contribuiccedilotildees da Greacutecia e Roma para o pensamento linguiacutesticordquo Essa mesmas informaccedilotildees satildeo encontradas tambeacutem em Koerner 1995 p 03 2004 p 28) cxxxix Robins (1979 [1967] p xvi) chega mesmo a afirmar que ldquoO interesse atual que os linguistas demonstram pelo desenvolvimento passado e recente da sua ciecircncia eacute em si mesmo sinal da maturidade que a linguiacutestica independentemente das suas possiacuteveis aplicaccedilotildees praacuteticas alcanccedilou como disciplina acadecircmicardquo cxl Podemos citar que um dos resultados desse empreendimento foi precisamente a compilaccedilatildeo de antologias multiautorais sobre a histoacuteria da Linguiacutestica entre as quais podemos destacar por exemplo Auroux (ed 1989ndash2000) Auroux Koerner Niederehe Versteegh (eds 2000ndash2006) Lepschy (ed 1994ndash98) Schmitter (ed 1987ndash2007) entre outros cxli Como observa Vivien Law (1993 p 2) os tratados gramaticais entre os textos antigos ateacute mesmo entre os filoacutelogos e os classicistas pareciam prescindir de um ldquovalor intriacutensecordquo que justificasse o interesse em sua pesquisa Diferente dos aacuteridos e por vezes sem graccedila tratados em torno da linguagem escrito por gramaacuteticos gregos e romanos os textos poeacuteticos retoacutericos e filosoacuteficos por outro lado em virtude seus meacuteritos esteacuteticos ou conceituais sempre tiveram a predileccedilatildeo dos estudiosos da Antiguidade cxlii Robins (1967 p 9) chega a afirmar que Its simply that the Greek thinkers on language and on the problems raised by linguistic investigations initiated in Europe the studies that we can call linguistic Science in its widest sense and that this Science was a continuing focus of interest from ancient Greece until the present day cxliii Como por exemplo Fortes (2012) Dezotti (2011 2013) e Beccari (2013) No Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica da UFJF na linha de Pesquisa Linguagem e Humanidades orientamos os seguintes trabalhos nessa perspectiva Rocha (2015) Freitas (2016) Silva (2018) Rodrigues (2020) cxliv Com a neutralidade epistemoloacutegica o classicista colabora para a concepccedilatildeo de que ldquonatildeo faz parte do nosso papel dizer se isto eacute mais ciecircncia do que aquilo mesmo se nos acontecer de sustentar que isto ou aquilo eacute concebido como ciecircncia por este ou aquele criteacuteriordquo E com o historicismo moderado traz com o seu vastiacutessimo corpus de textos gregos e latinos informaccedilotildees decisivas para que a comunidade cientiacutefica se possa convencer de que ldquoo valor de um saber eacute dado de acordo com o grau de adequaccedilatildeo desse saber a um fim dado (o que entretanto natildeo conduz ao ldquomito da incomparabilidaderdquo segundo o qual seria impossiacutevel ler textos do passado)rdquo

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cxlv Disponiacutevel em httpwwwmlatuzhchMLSxanfangphpcorpus=13amplang=0 cxlvi Por exemplo as dissertaccedilotildees de Dezotti (2007) Freitas (2016) e Rodrigues (2020) cxlvii Cf ldquothe history of linguistics may well serve as a guard against exaggerated claims in terms of novelty originality breakthrough and revolution in our (re)discoveries and thus lead to a less polemic kind of scientific discourse or as the late Paul Garvin suggested many years ago (Garvin 1970) a lsquomoderation in linguistic theoryrdquo (traduccedilatildeo nossa) cxlviii O presente trabalho faz parte do projeto de poacutes-doutoramento que atualmente desenvolvo no Departamento de Estudos Claacutessicos financiado pela Faculdade de Artes e Ciecircncias da Universidade de Toronto cxlix Trecho inicial do diaacutelogo 2 (22) ldquoCaronte e Menipordquo da obra ldquoDiaacutelogo dos Mortosrdquo de Luciano de Samoacutesata (ativo no seacutec II dC) na traduccedilatildeo de Henrique G Murachco (1996 p 53) Agradeccedilo ao caro professor e colega Breno Battistin Sebastiani que gentilmente me enviou as fotos do diaacutelogo pois meu exemplar do livro estaacute no Brasil infelizmente cl Pequena moeda grega que equivaleria a um centavo cli Diferentemente do que o filme ldquoTroiardquo(2004) infelizmente disseminou a moeda era colocada entre os laacutebios ou mesmo na boca do morto A relaccedilatildeo entre as moedas e as praacuteticas mortuaacuterias eacute discutida por exemplo por Stevens (1991) clii Utilizo aqui o mesmo termo que estabeleci na anaacutelise dos epigramas fuacutenebres da minha tese de doutorado (AMARAL 2018) O termo aglutina as duas funccedilotildees assumidas pelo leitor do epigrama pois a construccedilatildeo do epigrama com base epigraacutefica pressupotildee como interlocutor algueacutem que passa diante da laacutepide e lecirc o que estaacute escrito nela Como o termo passante natildeo abarca a funccedilatildeo do leitor do epigrama jaacute em contexto literaacuterio foi adotado o composto transeunte-leitor para apreender as duas funccedilotildees que o leitor do epigrama literaacuterio deve assumir ao estar diante de um exemplar do gecircnero cliii O epigrama 89 de Caliacutemaco foi incluiacutedo por conta do recorte temporal do corpus Entretanto ele natildeo eacute um epigrama fuacutenebre embora esteja arrolado no livro 7 da Antologia Grega Jaacute o epigrama 165 eacute atribuiacutedo por Gow and Page (1965) a Aacuterquias mas algumas outras ediccedilotildees mantecircm a dupla atribuiccedilatildeo de Antiacutepatro ou Aacuterquias Como foi adotada a ediccedilatildeo que considera a atribuiccedilatildeo a Aacuterquias eacute importante registrar que a dataccedilatildeo desse epigrama pode ser posterior ao periacuteodo heleniacutestico cliv Todos os epigramas do corpus foram traduzidos para o portuguecircs por Jesus (2019) Todos os epigramas de Caliacutemaco haviam sido traduzidos primeiramente por Silva (2014) sendo que o 524 havia sido traduzido pelo mesmo autor em artigo no ano anterior O mesmo epigrama (524) havia sido traduzido por Paes (1995) Em 2019 Flores publicou a traduccedilatildeo integral de Caliacutemaco e em 2018 Amaral havia traduzido o epigrama 725 do mesmo epigramatista Por fim os epigramas de Meleagro do corpus haviam sido traduzidos por Amaral (2009) clv Vale lembrar entretanto que apesar do desenvolvimento do epigrama novo gecircnero as inscriccedilotildees seguem sendo produzidas ao longo do tempo passando tambeacutem por mudanccedilas graacuteficas e ganhando novas localidades e liacutenguas Dessa maneira haveraacute uma muacutetua influecircncia da praacutetica de ambas as modalidades ao longo do tempo fenocircmeno que os pesquisadores da aacuterea tecircm estudado nos uacuteltimos anos clvi Haacute poreacutem discussatildeo sobre como a forma dialogada ocorre considerando tambeacutem as inscriccedilotildees e natildeo apenas os epigramas literaacuterios como aponta Kauppinen (2015) citando Rasche (1910) e Tueller (2008) clvii Encontra-se um ciclo de epigramas de Gregoacuterio de Nazianzo (AG 8104-117) que eacute justamente sobre tuacutemulos violados Floridi (2013) faz uma anaacutelise que compara inscriccedilotildees de mesma temaacutetica com os epigramas literaacuterios de Gregoacuterio clviii Pode-se fazer essa afirmaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos epigramas dialogados da Antologia Grega

Entretanto ainda natildeo foram analisadas as inscriccedilotildees dialogadas e portanto natildeo se pode afirmar sobre como o fenocircmeno se daacute nesse contexto clix Para maiores detalhes sobre o poeta cf Gutzwiller (1998) e Amaral (2009) clx Para recentes discussotildees sobre Meleagro e sua obra cf ldquoA Guirlanda de Meleagro de Gadara e o Epigrama Gregordquo na seacuterie ldquoEstudos Claacutessicos em Diardquo (YouTube) promovida pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo e ldquoMeleagro um poeta na era das bibliotecasrdquo na seacuterie ldquoCafeacute Gregordquo promovida pelo NUPEL (Nuacutecleo Permanente de Extensatildeo em Letras) da Universidade Federal da Bahia (YouTube) clxi Ainda natildeo haacute previsatildeo de publicaccedilatildeo do estudo clxii Entretanto foram recolhidos cento e trinta e cinco epigramas dialogados da AG no total durante a minha pesquisa atualmente em andamento clxiii Eacute curioso notar que todos os epigramatistas do corpus foram nomeados no proecircmio de Meleagro (AG 41) clxiv Agradeccedilo ao caro colega Rafael Brunhara por ter me enviado uma foto do poema pois infelizmente o meu exemplar do livro se encontra no Brasil clxv O texto desta pequena Introduccedilatildeo bem como o texto da seccedilatildeo 1 (As Mythologiae) satildeo de Joseacute Amarante e refletem ideias e textos de sua autoria presentes em O livro de mitologias de Fulgecircncio (2019) Para traduccedilotildees das Mythologiae de Fulgecircncio para outras liacutenguas vd Whitbread (1971) Wolff Dain (2013) e restrita ao Proacutelogo do Livro I Venuti (2018) clxvi A questatildeo eacute jaacute bem discutida de forma que hoje a confusatildeo natildeo mais se sustenta (AMARANTE 2019 vd tb VENUTI 2018 pp 11-21) Satildeo leituras obrigatoacuterias para esse tema os trabalhos de Gregory Hays constantes no site sob sua organizaccedilatildeo lthttppeoplevirginiaedu~bgh2nfulgbibhtmlgt onde se encontra uma bibliografia anotada do nosso autor clxvii Vd Moltzer (1535) Petrus (1536) Commelinus (1599) Muncker (1681) Staveren (1742) clxviii A traduccedilatildeo de Martina Venuti (2018) do Proacutelogo do Livro I das Mythologiae eacute acompanhada de uma nova ediccedilatildeo criacutetica referente a essa parte do texto com a inclusatildeo de novos manuscritos considerados Para o texto de Helm vd Fulgentii (1898) clxix A ediccedilatildeo de Helm (1898) nos daacute a obra como da autoria do bispo homocircnimo ldquoS Fulgentii Episcopi Super Thebaidenrdquo clxx ldquoEgli calpesta ogni regola di buon senso in modo cosigrave aperto grossolano e quasi brutale che mal srsquointende come un cervello sano abbia potuto concepire sul serio un cosigrave pazzo lavorordquo (COMPARETTI 1872 v I p 149) ldquoBoth Divine Comedy and Botticellirsquos Primavera would be very different works if Fulgentius had not writtenrdquo (HAYS 1996) As traduccedilotildees citadas neste trabalho satildeo nossas exceto quando informamos outro tradutor clxxi Uma parte significativa do que hoje afirmamos em relaccedilatildeo a Fulgecircncio e sua obra se deve principalmente aos estudos desenvolvidos por Gregory Hays em sua tese de doutorado Fulgentius the Mythographer (Cornell 1996) e a estudos desenvolvidos em sequecircncia (vd HAYS 1999-2019) Outros estudos sobre o autor costumam nos uacuteltimos anos girar em torno dos trabalhos de Martina Venuti Eacutetienne Wolff Massimo Manca e Silvia Mattiacci Vd Hays (1999-2019) clxxii Para outros estudos no Brasil vd pe Santos (2016) clxxiii O caso mais evidente eacute o da sequecircncia de interpretaccedilotildees evemeristas para explicar o ocorrido a Dacircnae e a Ganimedes em que se citam os mesmos ndash e outras ndash personagens numa mesma sequecircncia e com visiacuteveis decalques leacutexico-sintaacuteticos (vd AMARANTE 2019 p 84) Sobre as fontes fulgencianas veja-se tambeacutem Hays (1996 partic cap IV) clxxiv Segundo Brisson seraacute com a redescoberta dos textos gregos no Renascimento que haveraacute uma predominacircncia da influecircncia do neoplatonismo (2014 p 227) clxxv Para alguma bibliografia sobre essas tradiccedilotildees vd Amarante (2019 p 41-51)

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clxxvi ldquoPropone unrsquoanalisi complessiva dellrsquoldquoarchitetturardquo delle Mythologiae fornendone una lettura unitaria avanzando ipotesi sullrsquoorganizzazione ldquoorizzontalerdquo della materia e interessanti proposte critiche riguardo ai tituli delle fabulaerdquo clxxvii ldquoRather than relying on wide-ranging semantic matrixes Amarante concentrates on the micro-level of the transitions from one fabula to another He aims to demonstrate that the Mythologiae not only constitute a network but also that this network is linearly organized its rationale emerges through the succession of myths which far from being disjointed are proved to be readable ldquocover-to-coverrdquo As a result Amarantersquos analysis substitutes Wolffrsquos structural cohesion by resorting to a kind of flow cohesion ndash but cohesion is still the goalrdquo clxxviii Cf Venuti (2009 2018) que apresenta uma bem cuidada revisatildeo da ediccedilatildeo de Helm no tocante ao Proacutelogo do Livro I e faz uma uacutetil discussatildeo sobre seu conteuacutedo e sobre sua estrutura (essa mesma estrutura eacute retomada por Wolff e Dain 2013 pp 12-15) Cf tambeacutem Hays (1996 [2001] e 2003) e Mattiacci (2002) clxxix Dados os limites deste trabalho natildeo se faz aqui um detalhamento do conteuacutedo e da estrutura do proacutelogo Vd a leitura de Venuti (2018 pp 21-30) e de Mattiacci (2002) Em portuguecircs veja-se um resumo do Proacutelogo em Amarante (2019 p 25-26) clxxx Obviamente fazemos referecircncia aqui a esta narrativa no iniacutecio do Livro I como uma faacutebula em separado a partir do que a tradiccedilatildeo tem considerado Segundo Amarante (2018a e 2019) contudo trata-se apenas de uma narrativa introdutoacuteria numa sequecircncia discursiva una em todo o Livro I em que as faacutebulas natildeo se encontram divididas como narrativas independentes separadas por tiacutetulos clxxxi Cf Livro da Sabedoria 14 15 A ediccedilatildeo utilizada da Biacuteblia Sagrada eacute a ediccedilatildeo pastoral da Editora Paulus clxxxii O texto e as notas desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Raul Oliveira Para traduccedilotildees da Virgilianae a outras liacutenguas vd Whitbread (1971) Rosa (1997) Valero Moreno (2005) e Wolff (2009) clxxxiii Cf Comparetti (1943[1872] p 61) clxxxiv O texto desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Shirlei Almeida Para traduccedilotildees da Sermonum a outras liacutenguas vd Pizzani (1968) Whitbread (1971) clxxxv ldquo[hellip] entries 1-11 deal with terms involved with burial customs divination sacrifice and minor deities while 12-62 (except for 14 and 48 which may be misplaced and belong in the first category) cover odd words mdashcolloquial and technical termsmdashfor foods boats utensils women of the streets and so forth particularly as found in plays poems and romancesrdquo clxxxvi ldquoDei vari testimonia riportati da Fulgenzio nella esemplificazione dei sermones soltanto tre trovano rispondenza presso altri studiosi o eruditi o lessicografi quali Festo o Nonio o Servio o Isidoro a parte le voci addirittura ignote a codesti eruditirdquo clxxxvii O texto desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior Dadas as particularidades lipogramaacuteticas da De aetatibus em especial comentam-se questotildees tradutoacuterias especialmente nesta seccedilatildeo deste capiacutetulo clxxxviii O epiacuteteto de Mitoacutegrafo eacute muito utilizado para distinguir o Fulgecircncio das Mitologias de seu homocircnimo o Bispo de Ruspe em razatildeo de uma problemaacutetica de ordem filoloacutegica que foi explorada em liacutengua portuguesa por Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019b) clxxxix Em seu proacutelogo Fulgecircncio afirma que seu alfabeto teria 23 elementos a diferenccedila do claacutessico que possui 22 caracteres Tendo isso em conta Leslie Whitbread (1971) e Massimo Manca (2003) consideram que a letra adicional seria o lsquoyrsquo Para o excerto do proacutelogo em que satildeo abordados os elementos grafecircmicos vd traduccedilatildeo de Santos Juacutenior (2020ae) cxc Esta problemaacutetica filoloacutegica jaacute foi explorada em nossas duas traduccedilotildees lipogramaacutetica e alipogramaacutetica do proacutelogo da De aetatibus (SANTOS JUacuteNIOR 2020ae)

cxci Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019a) aponta natildeo apenas autores antigos e tardios como integrantes dessa tradiccedilatildeo mas tambeacutem aqueles do Classicismo Barroco Arcadismo Romantismo Simbolismo e Concretismo cxcii Para mais dados relativos agrave tradiccedilatildeo de escrita constrangida vd Santos Juacutenior (2019a 2020d) e Santos Juacutenior Amarante (2019) cxciii Jaacute foram publicadas as traduccedilotildees do proacutelogo lipogramaacutetica e alipogramaacutetica e as traduccedilotildees lipogramaacuteticas do Livro I (Ausente A) do Livro II (Ausente B) do Livro III (Ausente C) do Livro IV (Ausente D) do Livro VII (Ausente G) e do Livro XII (Ausente M) efetuadas por Santos Juacutenior (2019cd e 2020abcef) e por Santos Juacutenior em coautoria com Amarante (2020) cxciv Cf eg KROLL 1953 P 70 ROBINS 1979 p 42 DELLA CASA 1973 p 76 CAcircMARA JR 1975 p 21 LAW 2003 p 65ndash80 cxcv Essa busca aparece explicitamente manifesta em algumas passagens da Ars (propter compendium HOLTZ 1981 p 656 ne nimis longum sit p 660) Para o gramaacutetico e comentador Pompeio Donato escreveu sua arte ldquomais para oferecer a mateacuteria a se tratar do que tratar dela ele proacutepriordquo (re uera ars ista scripta est ut materiam potius dederit tractandi quam ipse tractauerit in Grammatici Latini vol 5 p 281 linhas 26-27) cxcvi et uide quem ad modum tractat tractat primo de illis communibus et postea redit ad istos speciales casus (Grammatici Latini vol 5 p 103 linhas 4ndash5) cxcvii Mencione-se que a recente ediccedilatildeo de Holtz (1981) traz uma nova divisatildeo em dois ldquovolumesrdquo (editiones) o primeiro com as noccedilotildees elementares (Arte menor Arte maior 1) o segundo com o ldquocurso superiorrdquo (Arte maior 2 e 3) cxcviii Grammaticae initia ab elementis surgunt elementa figurantur in litteras litterae in syllabas coguntur syllabis conprehenditur dictio dictiones coguntur in partes orationis partibus orationis consummatur oratio oratione uirtus ornatur uirtus ad euitanda uitia exercetur cxcix Marc Baratin (1989a p 198 1994 p 145) atribui essa ldquovisatildeo tradicionalrdquo aos estudos de K Barwick (1922 1957) cc Plerique artem scribentes a litterarum tractatu inchoauerunt plerique a uoce plerique a definitione artis grammaticae sed omnes uidentur errasse non enim propriam rem officii sui tractauerunt sed communem et cum oratoribus et cum philosophis nam de litteris tractare et orator potest de uoce nemo magis quam philosophi tractant definitio etiam Aristotelicorum est unde proprie Donatus et doctius qui ab octo partibus inchoauit quae specialiter ad grammaticos pertinent cci Um amplo estudo sobre o surgimento e estabelecimento da doutrina das partes da oraccedilatildeo da filosofia agrave gramaacutetica encontra-se em DEZOTTI (2011) e DEZOTTI (2015) ccii Aristotelici duas dicunt esse partes orationis nomen et uerbum Stoici quinque grammatici octo plerique nouem plerique decem plerique undecim (Grammatici Latini vol 4 p 428 linhas 12ndash13) cciii Nomina declinare et uerba in primis pueri sciant neque enim aliter peruenire ad intellectum sequentium possunt cciv hellipbene fecit Donatus partem illam priorem scribere infantibus posteriorem omnibus (Grammatici Latini vol 5 p 98 linhas 6ndash7 traduccedilatildeo nossa) ccv quare inchoauit Donatus a nomine et non a littera cum alii a littera inchoassent sciens Donatus quia et ipsa littera nomen erat ideo inchoauit a nomine et non a littera (YENES ed 1973 p 9 linhas 15-18) ccvi adtendendum quod Donatus strenuissime peritissimeque suam edidit artem primum enim componens minorem ad instruendos pueros eam in exordio sui uoluminis imposuit secundam uero editionem a littera ceterisque particulis ad superficiem pertinentibus

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inchoauit et postea octo partes his autem positis ad complendam secundam editionem barbarismum et cetera uitia posuit et sicut primitus partes id est uocem litteram syllabam ceterasque quae ad superficiem pertinent posuerat ita de uitiis disputans barbarismum in capite ponere studuit qui corrumpit superficiem in secundo loco soloecismum quod uitium corrumpit sensum contextumque partium ccvii scripsit enim artem duplicem id est octo partes quas minores uocant artes a quibus secunda haec est editio sed notandum est quibus personis primam quibusque scripsit secundam et interrogandum quot et quibus causis artes minores scripsit hoc est personis puerorum et causis tribus prima ut scirent quibus modis esset ars secunda ut discerent interrogare ut est partes orationis quot sunt tertia causa uti nossent soluere interrogata ut est octo et rel(iqua) in prima ad docendos pueros interrogationi satisfacit et solutioni in secunda autem editione personas perfectas docet scientiam Latinitatis sed nos nunc dicere conuenit quibus modis sit interrogatio id est tribus quasi discere uolens uel docere an quaestionis promendae gratia sed in artibus minoribus quasi docere uolens interrogat Donatus ccviii CICERO FILIUS Studeo mi pater Latine ex te audire ea quae mihi tu de ratione dicendi Graece tradidisti ndash si modo tibi est otium et si vis CICERO PATER An est mi Cicero quod ego malim quam te quam doctissimum esse Otium autem primum est summum quoniam aliquando Roma exeundi potestas data est deinde ista tua studia vel maximis occupationibus meis anteferrem libenter CF Visne igitur ut tu me Graece soles ordine interrogare sic ego te vicissim eisdem de rebus Latine interrogem CP Sane si placet Sic enim et ego te meminisse intellegam quae accepisti et tu ordine audies quae requires CF Quot in partes distribuenda est omnis doctrina dicendi CP In tres CF Cedo quas CP Primum in ipsam vim oratoris deinde in orationem tum in quaestionem CF In quo est ipsa vis CP In rebus et verbis (CICERO 1942) ccix partes orationis quot sunt octo quae nomen pronomen uerbum aduerbium participium coniunctio praepositio interiectio nomen quid est pars orationis cum casu corpus aut rem proprie communiterue significans nomini quot accidunt sex quae qualitas conparatio genus numerus figura casus qualitas nominum in quo est bipertita est aut enim unius nomen est et proprium dicitur aut multorum et appellatiuum ccx hellipin responsionibus callidi debemus esse plerumque aut male respondentes faciunt nos facere soloecismum aut male interrogantes ut puta siqui dicat Africanus sic debeo interrogare sic respondere Africanus quae pars orationis et puer dicat nomen ego interrogo quale nomen debet ille respondere proprium debeo interrogare quae pars proprii et debet ille dicere agnomen ipse est ordo uerus secundum interrogationem prius est enim ut dicas quod est generale et postea ut dicas quod est speciale ceterum si te interroget Africanus quae pars orationis et tu dicas agnomen ab imis coepisti non mihi dixisti quia nomen est deinde non mihi dixisti utrum proprium sit an appellatiuum sed dixisti quod erat imum ergo sic debes dicere nomen est est autem proprium pars autem proprii nominis est agnomen sic similiter et reliqua ccxi solent aliqui homines plerumque esse callidi et interrogat te aliquis et dicit tibi Lucius quale nomen est proprium quae pars est proprii nominis dicis illi praenomen dicit tibi falsum est nam ecce seruus meus ita appellatur et non habet praenomen ccxii Para um comentaacuterio contextualizado sobre as disputas de Geacutelio com gramaacuteticos de seu tempo cf KASTER 1988 pp 50-62 ccxiii laquoarma uirumque cano Troiae qui primus ab orisraquo hellip quot partes orationis habet iste uersus nouem quot nomina sex arma uirum Troiae qui primus oris quot uerba unum cano quot praepositiones unam ab quot coniunctiones unam que arma quae pars

orationis nomen quale appellatiuum cuius est speciei generalis cuius generis neutri quare quia omnia quae in plurali numero in a desinunt sine dubio neutri generis sunt hellip cuius est figurae simplicis fac ab eo compositum armiger armipotens inermis cuius est casus in hoc loco accusatiui unde hoc certum est a structura id est ordinatione et coniunctione sequentium cano enim uerbum accusatiuo iungitur ccxiv No que diz respeito agrave forma textual em perguntas e respostas o artigo de Papadoyannakis (2006) foi fundamental para delinear as hipoacuteteses aqui levantadas a despeito de tratar especificamente do uso das erotapokriacuteseis no ambiente filosoacutefico bizantino ccxv Tais como RITTER (2010) uma abordagem mais teoacuterica ETTENHUBER (2007) STANIVUKOVIC (2007) e JOHNSON (2010) que exploram aspectos teoacutericos a serviccedilo da anaacutelise de seus respectivos corpora especiacuteficos no acircmbito dos estudos claacutessicos LAW (1926) sobre a hipeacuterbole como recurso para narrativas mitoloacutegicas e PHILBRICK (2016) estudo mais aprofundado sobre a hipeacuterbole em Oviacutedio ccxvi Consideramos aqui a hipeacuterbole como figura em sentido vago agrave maneira que aparece na exposiccedilatildeo de Quintiliano sem implicar uma oposiccedilatildeo entre figura e tropo oposiccedilatildeo essa comum nos manuais e dicionaacuterios especializados cf MOISEacuteS (1974) ccxvii Cf siacutentese da bibliografia atualizada em POPA-WYATT (2010) ccxviii As passagens relativas agrave hipeacuterbole em autores anteriores a Quintiliano satildeo Aristoacuteteles Retoacuterica 311 Retoacuterica a Herecircnio 444 Ciacutecero Toacutepicos 1045 Apoacutes Quintiliano mas ainda na Antiguidade tardia eacute possiacutevel encontrar tratamentos da hipeacuterbole em Demeacutetrio Do Estilo 123ss Longino Do Sublime 38 Macroacutebio Saturnaacutelia 42 e 46 e Isidoro de Sevilha Etimologias 13621 ccxix VON ALBRECHT (1997 1254-5) ccxx VON ALBRECHT (1997 1262) ccxxi Na passagem original os navios satildeo tambeacutem comparados a montanhas se chocando umas contra as outras Quintiliano omite a segunda hipeacuterbole em sua citaccedilatildeo repetindo esse procedimento nas demais passagens virgilianas que apresentam um par consecutivo de hipeacuterboles ccxxii Na passagem original Niso eacute comparado tambeacutem aos ventos (vide nota 11) ccxxiii Na passagem original haacute tambeacutem a hipeacuterbole de Camila correndo sobre os mares sem sequer tocar a aacutegua (vide nota 11) ccxxiv A passagem explorada por Quintiliano natildeo eacute como pode parecer de Nemeias 4 e sim de um texto perdido cf BUTLER (1922 340) ccxxv SCHMIDT (2019 14) ldquo[O] diferencial das hipeacuterboles nos Tristia eacute anexaccedilatildeo de um discurso de que a hipeacuterbole eacute insuficiente para relatar a verdade Quintiliano diz que a hipeacuterbole eacute a figura adequada para exprimir aquilo que natildeo se pode exprimir Oviacutedio diz que mesmo a hipeacuterbole eacute incapaz de exprimir aquilo que ele quer exprimir Assim Oviacutedio faz da hipeacuterbole uma meta-hipeacuterbole no sentido de hiperbolizar a incapacidade da hipeacuterbole que em princiacutepio seria total Em pelos menos seis passagens o poeta faz questatildeo de expor a incapacidade da figura dizendo que mesmo esta estaacute aqueacutem da verdade Trata-se de um jogo com a estrutura da figura e com o efeito de verossimilhanccedila pois a hipeacuterbole estaacute aleacutem da verdade (supra fidem) mas Oviacutedio a trata como aqueacutem da verdade (1550 non habitura fidem 5642 minor quam verum) de tatildeo exagerada que eacute sua proacutepria verdaderdquo ccxxvi A ldquocacozeliardquo eacute definida em Inst 8356-8 ldquoA cacozelia isto eacute a afetaccedilatildeo perversa peca em qualquer gecircnero de oratoacuteria pois sob esse nome se encontra tudo o que eacute excessivo trivial luxurioso redundante rebuscado e extravagante Aleacutem disso chamamos cacozelia tudo o que vai aleacutem da virtude quando o engenho perde seu senso criacutetico e se engana com a aparente beleza o que eacute o pior de todos os viacutecios no discurso Pois os demais erros satildeo

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causados sem intenccedilatildeo mas este eacute causado de maneira intencional No entanto isso soacute ocorre na elocuccedilatildeo Pois os erros da mateacuteria (invenccedilatildeo) satildeo a tolice o mais do mesmo a incoerecircncia e a superficialidade jaacute o deslize na elocuccedilatildeo consiste principalmente no emprego de palavras inapropriadas ou redundantes ou de um estilo confuso ou de um ritmo dissonante ou ainda de uma busca infantil por expressotildees semelhantes ou ambiacuteguas A cacozelia eacute tambeacutem sempre insincera embora nem toda insinceridade seja uma cacozelia pois esta consiste em dizer algo de uma maneira artificial ou inconveniente ou supeacuterfluardquo (κακόζηλον id est mala adfectatio per omne dicendi genus peccat nam et tumida et pusilla et praedulcia et abundantia et arcessita et exultantia sub idem nomen cadunt Denique κακόζηλον vocatur quidquid est ultra virtutem quotiens ingenium iudicio caret et specie boni fallitur omnium in eloquentia vitiorum pessimum Nam cetera parum vitantur hoc petitur Est autem totum in elocutione Nam rerum vitia sunt stultum commune contrarium supervacuum corrupta oratio in verbis maxime inpropriis redundantibus compressione obscura compositione fracta vocum similium aut ambiguarum puerili captatione consistit Est autem omne κακόζηλον utique falsum etiamsi non omne falsum κακόζηλον est enim quod dicitur aliter quam se natura habet et quam oportet et quam sat est) ccxxvii Ciacutecero De Oratore 3155 ldquoO terceiro modo de figuraccedilatildeo das palavras eacute bem amplo pois foi criado pela necessidade gerada pela falta e pela carecircncia mas depois incrementado pelo prazer e deleite Pois assim como primeiro se utilizou as roupas para combater o frio e depois se comeccedilou a vesti-las por elegacircncia e dignidade do corpo tambeacutem a metaacutefora foi utilizada por causa da falta de palavras e em seguida recorrida por causa do deleite que proporciona Pois expressotildees como lsquobrotar em vinhasrsquo lsquoser luxuoso na gramarsquo lsquocampos felizesrsquo satildeo utilizadas ateacute pelos incultos Eacute porque se algo eacute difiacutecil de dizer com uma palavra em sentido literal quando eacute dito por uma metaacutefora a comparaccedilatildeo ilustra bem o que queremos dizer expressando por meio de uma palavra diferente de seu sentido literalrdquo (Tertius ille modus transferendi verbi late patet quem necessitas genuit inopia coacta et angustiis post autem iucunditas delectatioque celebravit Nam ut vestis frigoris depellendi causa reperta primo post adhiberi coepta est ad ornatum etiam corporis et dignitatem sic verbi translatio instituta est inopiae causa frequentata delectationis Nam gemmare vitis luxuriem esse in herbis laetas segetes etiam rustici dicunt Quod enim declarari vix verbo proprio potest id translato cum est dictum inlustrat id quod intellegi volumus eius rei quam alieno verbo posuimus similitudo) Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de WILKINS (1902) ccxxviii Para o texto utilizamos a ediccedilatildeo criacutetica de R J Tarrant reproduzida em OVIDIO (2011) ccxxix Seria interessante comparar esta Invocaccedilatildeo inicial com a Invocaccedilatildeo final de Metamorfoses em que vaacuterias divindades satildeo citadas Quirino Marte Vesta Febo Juacutepiter (Livro XV versos 861-870) ccxxx Eacute de pensar em um ensaio enfocando a traduccedilatildeo deste trecho da Iliacuteada Em seis traduccedilotildees diferentes temos as seguintes soluccedilotildees para dusaristotokeia Odorico Mendes ldquoMiseranda O maior dos heroacuteis pari mesquinhardquo (HOMERO 2008) Paul Mazon ldquoMegravere infortuneacutee drsquoun preuxrdquo (HOMEgraveRE 2002) Claude Michel Cluny ldquoAh miseacuterable et malheureuse megravere que je suisrdquo (HOMEgraveRE 1989) Haroldo de Campos ldquoAi de mim dolorosa geratriz do bravoentre os bravosrdquo (HOMERO 2002) Carlos Alberto Nunes ldquoQue sinater dado agrave luz ao maior dos heroacuteis para um Fado tatildeo tristerdquo (HOMERO 2002) Frederico Lourenccedilo ldquoAi de mim desgraccedilada Infeliz parturiente de um priacutenciperdquo (HOMERO 2013) ccxxxi Aristoacuteteles usa as palavras ουσία (substacircncia) ποιόν (qualidade) ποσόν (quantidade) πρός τι (relaccedilatildeo)

ccxxxii Κεῖσθαι estar em tal situaccedilatildeo (estado posiccedilatildeo) ἔχειν ter (possessatildeo) ποιεῖν fazer (accedilatildeo) πάσχειν padecer (paixatildeo) ccxxxiii Ποῦ onde (lugar) ποτέ quando (tempo) ccxxxiv Hoje entre noacutes a laquohermenecircuticaraquo interpretaccedilatildeo dos signos etc ccxxxv Hoje usa-me mais essa palavra no sentido de doenccedila de oacutergatildeo afetado ccxxxvi Veja-se por exemplo o capiacutetulo X 4 de Aulo Geacutelio intitulado laquo foi costume ser procurado entre os filoacutesofos se os nomes existiriam por natureza (φύσει) ou por convenccedilatildeo (θέσει)raquo ccxxxvii laquo Loacutegica raquo (τέχνη λογική) foi usada por comentadores posteriores ccxxxviii Anal Pr I 24a16-21 ccxxxix Que diz respeito ao pensamento agrave inteligecircncia (de διάνοιαfaculdade intelectiva inteligecircncia) ccxl Haacute um tratado filosoacutefico-retoacuterico de Ciacutecero denominado Topica que compreende os lugares-comuns (os topica) dos discursos e apresenta conselhos aos juristas para que achem argumentos e os ordenem eacute mais ou menos uma traduccedilatildeo uma adaptaccedilatildeo de Aristoacuteteles

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Sobre os autores e as autoras

Alcione Lucena AlbertimProfessora do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Universidade Federal da Paraiacuteba e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPB Coordenadora do MYTHOS - Nuacutecleo de Estudos da Mitologia Greco-Latina Doutorado em Letras pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPB Bacharela em Psicologia pelo Centro Universitaacuterio de Joatildeo Pessoa PB - UNIPEcirc e Especialista em Psicanaacutelise pelo Espaccedilo Psicanaliacutetico ndash EPSI

Willy Paredes SoaresPoacutes-Doutorado pela Universidade de Satildeo Paulo Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraiacuteba Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Universidade Federal da Paraiacuteba Liacuteder no grupo de pesquisa Grutta - Grupo de Tradu-ccedilatildeo de Textos da Antiguidade Membro do grupo de pesquisa Grec - Grupo de Estudos Claacutessicos

Rafael BrunharaProfessor de liacutengua e literatura grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul Possui Bacharelado em Letras Portuguecircs e Grego pela Universidade de Satildeo Paulo ins-tituiccedilatildeo pela qual tambeacutem obteve o tiacutetulo de Mestre e Doutor em Letras Claacutessicas Eacute do-cente permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFRGS e coordenador do Nuacutecleo de Estudos de Traduccedilatildeo Olga Fedossejeva (NET) Atua principalmente nos seguintes temas elegia poesia grega arcaica traduccedilatildeo gecircneros poeacuteticos na Antiguida-de Desenvolveu com a Profa Dra Giuliana Ragusa (USP) uma Antologia de traduccedilatildeo e comentaacuterio da poesia elegiacuteaca grega arcaica prevista para 2020 (Editora Ateliecirc)

David Pessoa de LiraProfessor Doutor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco na aacuterea Liacutengua e Literatura Latinas Docente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPE na Aacuterea de Teoria Literaacuteria Professor Permanente do Programa de Poacutes-Gra-duaccedilatildeo em Ciecircncias das Religiotildees da Universidade Federal da Paraiacuteba

Maria Aparecida de Oliveira SilvaPoacutes-Doutora em Estudos Literaacuterios pela Universidade Estadual Paulista Poacutes-Doutora em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo Pesquisadora do Grupo HeroacutedotoUnifesp Pesquisadora do Taphos Grupo de Pesquisa em Praacuteticas Mortuaacuterias no Medi-

terracircneo AntigoUSP Professora Orientadora Ad-hoc do PPGHUnB Liacuteder do Grupo CNPq LABHANUFPI Pesquisadora do Grupo CNPq LinceuUnesp-Araraquara Pes-quisadora do Grupo Retoacuterica Texto y Comunicacioacuten da Universidad de Caacutediz Membro do Conselho Acadecircmico do Seminaacuterio de Histoacuteria e Filosofia das Religiotildees da Universi-dad Autoacutenoma de Ciudad Juaacuterez - Meacutexico

Fabio FortesO presente trabalho decorre de pesquisa de Poacutes-Doutorado realizada no Deacutepartement de Sciences de lrsquoAntiquiteacute da Universidade de Liegravege na Beacutelgica (2019-2020) e foi re-alizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001 Bolsa Professor Visitante Juacutenior

Flaacutevia Vasconcellos AmaralPoacutes-doutoranda do Departamento de Estudos Claacutessicos da Universidade de Toronto com o projeto ampquotNarrative strategies in Greek dialogue epigramsampquot Doutora em Letras Claacutessicas pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Univer-sidade de Satildeo Paulo Faz parte do grupo de pesquisa Hellenistica da USP e do Taphos do MAEUSP

Joseacute Amarante Santos SobrinhoMestre em Letras e Linguiacutestica doutor em Liacutengua e Cultura Professor e pesquisador de Liacutengua e Literatura Latinas da Universidade Federal da Bahia atuando na Poacutes-gra-duaccedilatildeo em Liacutengua e Cultura na aacuterea de traduccedilatildeo dedicando-se principalmente a au-tores da Antiguidade tardia Membro do grupo de pesquisa NALPE (Nuacutecleo de Anti-guidade Literatura Perfomance e Ensino) do Instituto de Letras da UFBA Em 2016 poacutes-doutorado no Centro Antropologia e Mondo Antico da Universitagrave di Siena de que resultou O livro de Mitologias de Fulgecircncio

Raul Oliveira MoreiraPesquisador e tradutor na aacuterea de liacutengua e literatura latinas mestre em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatura e Cultura da Universidade Fe-deral da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Professor substituto da UFBA

Shirlei Patriacutecia Silva Neves AlmeidaEspecializaccedilatildeo em Gramaacutetica e Texto pela Universidade Salvador ndash UNIFACS mestra-do em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Doutorando pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Liacutengua e Cultura da Universidade Federal da Bahia Cristoacutevatildeo

Joseacute dos Santos JuacuteniorDoutor e mestre em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatu-ra e Cultura da Universidade Federal da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Mestrando em Estudo de Linguagens pela Universida-de do Estado da Bahia (UNEB)

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Lucas Consolin DezottiMestre em Letras Claacutessicas e Licenciado em Letras pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Univer-sidade Federal da Paraiacuteba

Pedro SchmidtProfessor de Liacutengua e Literatura Latina na Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutor em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo

Leonardo AntunesProfessor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Doutor em Letras Claacutessicas pela USP Docente Permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFRGS

Luciene Lages SilvaDoutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais Pro-fessora do curso de Letras da UFS Desenvolve pesquisas com ecircnfase no teatro claacutessico recepccedilatildeo dos claacutessicos (teatro e cinema) Mitografia grega e ediccedilatildeo de textos Participa de dois grupos de pesquisa Vice-liacuteder do NALPE Nuacutecleo de Antiguidade Literatura Performance e Ensino CNPQUFBA (2008) e membro do grupo de pesquisa GEFELIT- Grupo de Estudos de Filosofia e LiteraturaCNPQUFS(2008) Membro colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da UFS

Fernanda Lemos de LimaDoutora em Ciecircncia da LiteraturaLiteratura Comparada Fernanda Lima eacute professora de Grego Claacutessico Literatura Grega e Literatura Claacutessica Koineacute Neotestamentaacuteria e Grego Moderno na Universidade do Estado do Rio de Janeiro Professora do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UERJ e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas da UFRJ Coordenadora da Especializaccedilatildeo em Koneacute Neotestamentaacuteria em processo de instalaccedilatildeo

Milton Marques JuacuteniorProfessor Titular da Universidade Federal da Paraiacuteba Coordena o GREC - Grupo de Estudos Claacutessicos e Literaacuterios - com produccedilatildeo na aacuterea das Literaturas Grega e Latina e Literatura Comparada

Joseacute R Seabra FLivre-docecircncia e Doutorado pela Universidade de Satildeo Paulo Professor Associado da Universidade de Satildeo Paulo Sua aacuterea de especializaccedilatildeo eacute Gramaacutetica Latina e traduccedilatildeo de textos do latim claacutessico

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Desenho em tinta sobre cartolina ndash Pilar Roca

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Conselho Editorial

Alessandra Soares Brandatildeo (UFSC)Ana Graccedila Canan (UFRN)

Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)Anco Maacutercio Tenoacuterio Vieira (UFPE)

Anita Martins Rodrigues de Moraes (UFF)Arnaldo Saraiva (Universidade do Porto)

Brenda Carlos de Andrade (UFRPE)Gastoacuten A Alzate (California State University)

Inocecircncia Mata (Universidade de Lisboa)Joatildeo Batista Pereira (UFRPE)

Joseacute Rodrigues Seabra Filho (USP)Juliana Luna Freire (UFPB)

Juliana Pasquarelli Perez (USP)Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB)

Maria Nazareth de Lima Arrais (UFCG)Maurizio Gnerre (Universitagrave di Napoli Lrsquoorientale)

Maximiliano Torres (UERJ)Ramayana Lira (UFSC)

Regina Dalcastagnegrave (UnB)Saulo Neiva (Universiteacute Blaise Pascal - Clermont-Ferrand)

Simone Schmidt (UFSC)Suzi Frankl Sperber (UNICAMP)

Yuri Jivago Amorim Caribeacute (UFPE)

Projeto GraacuteficoCDM Design e Consultoria Empresarial Ltda

Camille Barbosa de AquinoRoberta Lima Designer

DiagramaccedilatildeoRoberta Lima Designer

Escritos claacutessicosgreco-latinos

Alcione Lucena de AlbertimWilly Paredes Soares

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Sumaacuterio

A gramaacutetica como livro didaacutetico testemunhos sobre meacuteto-do e praacutetica escolar na Antiguidade Lucas Consolin Dezotti

Exagerando a verdade a hipeacuterbole em Quintiliano Pedro Schmidt

Hino Homeacuterico 2 a DemeacuteterLeonardo Antunes

Pressupostos da comeacutedia grega entre os romanos Quinti-liano Ciacutecero Horaacutecio e DioniacutesioLuciene Lages Silva

Qual eacute o seu Orfeu Breve apreciaccedilatildeo do mito helecircnico reinventado pelas muacuteltiplas linguagens artiacutesticasFernanda Lemos de Lima

Proecircmio de Metamorfoses aula de PoesiaMilton Marques Jr

Semacircntica Aristoteacutelica Joseacute R Seabra F

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A Religiatildeo Romana Arcaica Willy Paredes Soares

A Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia grega antiga Rafael Brunhara

A ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou ParanoiaDavid Pessoa de Lira

Amor e poesia em Plutarco Maria Aparecida de Oliveira Silva

Contribuiccedilotildees dos Estudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da linguageFaacutebio Fortes

Falando com os mortos alguns epigramas heleniacutesticos dialogados em traduccedilatildeoFlaacutevia Vasconcellos Amaral

Fulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade como programaJoseacute Amarante Santos Sobrinho Raul Oliveira Moreira Shirley Patriacutecia S N Almeida e Cristoacutevatildeo Joseacute dos S Juacutenior

Notas Finais

Sobre os autores e as autoras

Apresentaccedilatildeo

Catabasis um rito de passagem e a busca da imortalidadeAlcione Lucena de Albertim

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Apresentaccedilatildeo

Escritos claacutessicos greco-latinos tiacutetulo escolhido a partir da diversidade e ri-queza dos textos que compotildeem a presente obra faz parte da Coleccedilatildeo Poacutes-Letras do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da Universidade Federal da Paraiacuteba Trata-se de um livro composto por capiacutetulos que discorrem sobre assuntos especiacuteficos mas que estatildeo vinculados por provirem da mesma fonte as liacutenguas e literaturas grega e latina Nesse sentido os autores apresentam atraveacutes da sua escrita singular temas que pos-sibilitam o conhecimento de um universo tatildeo profiacutecuo como o da antiguidade claacutessica greco-latina Diante disso apresentamos a seguir ao leitor o tema de cada capiacutetulo

Em ldquoCatabasis um rito de passagem e a busca da imortalidaderdquo Alcione Lu-cena de Albertim traccedila um panorama acerca da cataacutebase a partir dos mitos de He-racleacutes Odisseu Orfeu Teseu e Piriacutetoo a fim de averiguaacute-la no modelo latino que tem Eneias como protagonista Para isso a autora descreve cada uma delas e dis-corre sobre os pontos de convergecircncia existentes como tambeacutem sobre as suas es-pecificidades mostrando que todas concorrem para a imortalizaccedilatildeo do heroacutei

Em ldquoA Religiatildeo Romana Arcaicardquo Willy Paredes Soares investiga as transfor-maccedilotildees sofridas pela religiatildeo romana em seus primoacuterdios considerando a ordem cro-noloacutegica de acontecimentos no periacuteodo monaacuterquico observam-se seus principais deu-ses cultos sacerdotes para tanto vale-se dos escritos remanescentes de comentadores latinos e gregos inseridos em periacuteodos posteriores Obras relevantes que ressaltam os elementos religiosos satildeo revisitadas para a explicitaccedilatildeo de tais fenocircmenos como Eneida Fasti Ab Vrbe Condita Antiquitates Romanae De Lingua Latina De Ciuitate Dei De Re Publica Ad Aeneidem De Mundo Saturnalia possibilitando certa apro-ximaccedilatildeo entre o periacuteodo comentado e os textos utilizados na investigaccedilatildeo sugerida

Em ldquoA Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia grega anti-gardquo Rafael Brunhara traz tomando como base o estudo da autora Margaret Alexiou a discussatildeo acerca do lamento como recurso poeacutetico tratando-se de um canto res-ponsoacuterio em que pessoas enlutadas alternavam vozes agrave perda de algueacutem querido Esse canto dividia-se em duas categorias o threnos canccedilatildeo elaborada e profissional

que honrava e exaltava o morto realizado por homens e o goos canto improvisado entoado por parentes e pessoas proacuteximas agravequele que morreu geralmente mulheres Em Androcircmaca de Euriacutepedes aleacutem deles estaacute presente a elegia forma poeacutetica tam-beacutem associada ao lamento Nesse sentido o autor discorre sobre as trecircs formas poeacute-ticas para mostrar a confluecircncia do threnos do goos e da elegia na peccedila euripidiana

Em ldquoA ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou Paranoiardquo David Pessoa de Lira propotildee analisar os aspectos conceptuais da ἁμαρτία traacutegica em Eacutedipo Tirano de Soacutefocles a partir da Arte Poeacutetica de Aristoacuteteles e do pensamento grego sobre a culpabilidade Nes-se sentido o autor procedendo a uma abordagem da culpa traacutegica situa a ἁμαρτία como uma ἁγνοία e consequentemente como παράνοια Ele demonstra que a ἀγνοία eacute a natureza da ἁμαρτία (culpa) de Eacutedipo na trageacutedia Eacutedipo Tirano e explica que o conceito aristoteacutelico da ἀναγνώρισις possibilita encontrar a natureza da ἁμαρτία a saber a ἀγνοία Aleacutem disso fundamenta atraveacutes da teoria da culpabilidade pes-soal e da responsabilidade a partir do direito e da filosofia dos antigos gregos que a ἀγνοία de Eacutedipo evidencia uma ἁμαρτία escusaacutevel um estado de deliacuterio e paranoia

Em ldquoAmor e poesia em Plutarcordquo Maria Aparecida de Oliveira Silva discorre sobre a teoria plutarquiana do amor a partir da leitura da obra Diaacutelogo do Amor tratando em especial do uso da poesia na escrita deste tratado e na construccedilatildeo de seu argumento favoraacutevel agrave adoccedilatildeo de Eros como o deus do amor Assim agrave per-gunta ldquoOra se haacute a necessidade de um deus para que accedilotildees humanas sejam bem--sucedidas e se o amor eacute um sentimento importante e fundamental para a conti-nuidade da espeacutecie humana por meio do casamento por que esse sentimento natildeo possuiria um deus regenterdquo Plutarco procura mostrar a imprescindibilidade da accedilatildeo do deus Eros como protetor e encorajador das relaccedilotildees amorosas sobretudo o casamento Nesse sentido em razatildeo da diversidade de autores selecionados para compor sua argumentaccedilatildeo sobre a necessidade de um deus regente do amor Plu-tarco entra em contato com autores de variadas eacutepocas e estilos Assim ele verifi-ca que haacute visotildees diferentes sobre Eros entre os poetas os filoacutesofos e os legisladores

Em ldquoContribuiccedilotildees dos Estudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da Linguagemrdquo Faacutebio Fortes discorre inicialmente a respeito da histoacuteria da ciecircn-cia e da linguagem a partir do estudo publicado em 1962 por Thomas Kuhn em seguida comenta os estudos claacutessicos e a teoria gramatical antiga e como os anti-gos percebiam conceitos teorias linguiacutesticas motivados pela sua maneira de ver o mundo percebe o autor que dentre os estudos que tentam recuperar elemen-tos da tradiccedilatildeo sobre a linguagem o que demonstra acentuada produtividade eacute o da Historiografia da Linguiacutestica Por fim o autor explicita que haacute maior facilidade de acesso agrave documentaccedilatildeo claacutessica atualmente devido agrave possibilidade do uso de meios eletrocircnicos fato que haacute alguns anos seria possiacutevel apenas presencialmente

Em ldquoFalando com os mortos alguns epigramas heleniacutesticos dialogados em tra-duccedilatildeordquo Flaacutevia Vasconcellos Amaral apresenta epigramas do livro 7 da Antologia Grega (AG) O recorte temporal diz respeito ao periacuteodo heleniacutestico momento de maior inova-ccedilatildeo no gecircnero epigramaacutetico situado entre a morte de Alexandre o Grande em 323 aC

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e a batalha de Aacutecio em 31 aC A princiacutepio as inscriccedilotildees eram encontradas em objetos votivos laacutepides funeraacuterias monumentos e ceracircmica e tinham funccedilatildeo pragmaacutetica de registro A partir do seacuteculo IV aC passam a ser dissociadas de seus objetos e ganham o papiro como suporte Assim as inscriccedilotildees comeccedilam a abarcar outras temaacuteticas como a eroacutetica e a simposial Os epigramas fuacutenebres dialogados do periacuteodo heleniacutestico aqui apresentados em traduccedilatildeo se ancoram no espaccedilo fuacutenebre e seus objetos (Dioscoacuteri-des 37 Antiacutepatro161 424 e 426) e especulam sobre a vida do morto (Leocircnidas 163 e 503 Antiacutepatro 164 Aacuterquias 165 Caliacutemaco 277 e 725 Damageto 355 e Meleagro 470)

Em ldquoFulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade como programardquo Joseacute Amarante Santos Sobrinho Raul Oliveira Moreira Shirley Patriacutecia S N Almeida e Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior apresentam o fruto de um projeto inaugural reali-zado na Universidade Federal da Bahia cujo foco principal foi a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa e o estudo da obra completa de Fulgecircncio (Fabius Planciades Fulgentius) autor do seacuteculo II dC O primeiro resultado do projeto diz respeito agrave publicaccedilatildeo de O li-vro das Mitologias de Fulgecircncio por Joseacute Amarante estudo e traduccedilatildeo das Mythologiae (As Mitologias) Advieram tambeacutem trabalhos de mestrado e doutorado defendidos na mesma universidade a saber a traduccedilatildeo da Expositio Virgilianae continentiae (ldquoA ex-plicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacuteliordquo) por Raul Oliveira Moreira a traduccedilatildeo da Expositio sermonum antiquorum (ldquoA elucidaccedilatildeo de termos antigosrdquo) por Shirlei Patriacutecia Silva Neves Almeida e a traduccedilatildeo dupla de De aetatibus mundi et hominis (ldquoSobre as idades do mundo e da humanidaderdquo) uma alipogramaacutetica e outra lipogramaacutetica por Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior Os dois primeiros trabalhos satildeo frutos da dissertaccedilatildeo de mestra-do dos autores e o terceiro da tese de doutorado O presente capiacutetulo eacute composto por quatro seccedilotildees respeitantes respectivamente ao estudo de cada uma das obras referidas

Em ldquoA gramaacutetica como livro didaacutetico testemunhos sobre meacutetodo e praacute-tica escolar na Antiguidaderdquo Lucas Consolin Dezotti apresenta alguns modos de estudos de textos gramaticais latinos testemunhos de reflexotildees sobre a gramaacute-tica grega reflexotildees da eacutepoca claacutessica evidentes na gramaacutetica latina ensino for-mal da gramaacutetica baseado em riacutegido formato da eacutepoca heleniacutestica O autor utili-za-se de diversas obras teoacutericas para explanaccedilatildeo da teoria gramatical de Donato como Ars Donati grammatici urbis Romae de Louis Holtz aleacutem de muacuteltiplas refe-recircncias a obras greco-latinas visando a uma metodologia de descriccedilatildeo sistemaacutetica

Em ldquoExagerando a verdade a hipeacuterbole em Quintilianordquo Pedro Schmidt pro-potildee apoacutes apresentaccedilatildeo de breve contextualizaccedilatildeo uma traduccedilatildeo para a liacutengua por-tuguesa da passagem 8667-76 da obra Institutio Oratoria de Quintiliano um tratado sobre retoacuterica e sobre a instruccedilatildeo oratoacuteria composto em doze livros pro-cedendo a seguir agrave sua anaacutelise a fim de estabelecer uma definiccedilatildeo e uma tipolo-gia da hipeacuterbole de acordo com os termos de Quintiliano Nesse sentido o autor conclui que a hipeacuterbole cujo efeito pode ser tambeacutem o riso indo aleacutem do embele-zamento e do poder de persuasatildeo do discurso possui natureza orgacircnica haja vista nascer de maneira espontacircnea na fala corriqueira de qualquer indiviacuteduo disso re-sultando sua funccedilatildeo que reside em expressar aquilo que natildeo pode ser expresso

Em ldquoHino Homeacuterico 2 a Demeacuteterrdquo Leonardo Antunes propotildee uma traduccedilatildeo poeacutetica para o Portuguecircs do hino agrave deusa Demeacuteter que trata sobretudo do rapto de Perseacutefone sua filha pelo deus Hades com a aquiescecircncia de Zeus Na traduccedilatildeo a preocupaccedilatildeo principal foi a construccedilatildeo de um texto eufocircnico buscando natildeo soacute uma cadecircncia agradaacutevel de sons mas tambeacutem vocaacutebulos que se encadeassem de modo na-tural dentro do ritmo escolhido Assim ele emprega uma espeacutecie de hexacircmetro dac-tiacutelico vernaacuteculo o mesmo utilizado por Carlos Alberto Nunes na traduccedilatildeo da Iliacuteada e na Odisseia de Homero e da Eneida de Virgiacutelio Trata-se de um verso de 16 siacutelabas com acento na primeira quarta seacutetima deacutecima deacutecima terceira e deacutecima sexta siacutelaba

Em ldquoPressupostos da comeacutedia grega entre os romanos Quintiliano Ciacutecero Ho-raacutecio e Dioniacutesiordquo a autora Luciene Lages Silva propotildee a apresentaccedilatildeo de uma pesquisa e investiga a recepccedilatildeo da criacutetica da comeacutedia grega por alguns criacuteticos literaacuterios poetas e his-toriadores romanos nos anos finais da Repuacuteblica e iniciais do Impeacuterio romano A seleccedilatildeo dos textos produzidos se estende por pouco mais de 150 anos do domiacutenio de Juacutelio Ceacutesar ateacute o fim do reinado de Trajano Ao longo do texto satildeo demonstradas as impressotildees de Ciacutecero Horaacutecio Dioniacutesio de Halicarnasso sobre o lugar da comeacutedia grega e do cocircmico em geral

Em ldquoQual eacute o seu Orfeu Breve apreciaccedilatildeo do mito helecircnico reinventado pelas muacutel-tiplas linguagens artiacutesticasrdquo Fernanda Lemos de Lima apoacutes delinear uma breve aborda-gem do mitologema de Orfeu e de seus desdobramentos simboacutelicos aleacutem da menccedilatildeo ao Orfismo oferecendo ao leitor uma ideia da potecircncia do referido mito mostra em algumas expressotildees artiacutesticas a sua retomada de modo a dar uma ideia da variedade de formas com as quais essa passagem da mitologia claacutessica eacute percebida e reconstruiacuteda como narrativa

Em ldquoProecircmio de Metamorfoses Aula de Poesiardquo Milton Marques Jr realiza uma anaacutelise do proecircmio de Metamorfoses de Oviacutedio composto de apenas 4 versos Haacute comparaccedilotildees com proecircmios de outros textos da literatura ocidental como Teogonia de Hesiacuteodo Iliacuteada e Odisseia de Homero Eneida de Virgiacutelio de modo a mostrar como Oviacutedio concentra uma ideia de uma transformaccedilatildeo das formas dos personagens para novos corpos numa metamorfose que se exaure nesse movimento Haacute tambeacutem desta-que para a importacircncia da traduccedilatildeo na compreensatildeo dos textos claacutessicos cujo objeto eacute segundo o autor ldquoprocurar extrair do texto original a concepccedilatildeo que ali se encontrardquo

Em ldquoSemacircntica Aristoteacutelicardquo Joseacute R Seabra F comenta o Oacuterganon de Aristoacutete-les seacuterie de seis tratados em estilo direto e breve Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacute-ticos Primeiros Analiacuteticos Segundos Toacutepicos Dos Elencos Sofiacutesticos Nesses tratados o leitor vai encontrar em resumo respectivamente anaacutelise dos elementos das proposi-ccedilotildees estudo da proposiccedilatildeo teoria do silogismo silogismo cientiacutefico pontos da dialeacutetica os sofismas e os meios de refutaacute-los Verifica-se tambeacutem a relaccedilatildeo entre essas obras e a gramaacutetica grega Em geral os livros de loacutegica englobados pelo tiacutetulo Oacuterganon apresen-tam em geral significados de palavras significados da linguagem semacircntica analisada e desenvolvida para entendimento de proposiccedilotildees de frases de afirmaccedilotildees Joseacute Sea-bra constata que haacute relaccedilotildees entre o assunto gramatical e a loacutegica filosoacutefico-gramatical

Esperamos que o puacuteblico a quem o livro se destina possa se beneficiar com os

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conteuacutedos aqui expostos e que eles possam suscitar um profiacutecuo diaacutelogo no futuro

Alcione Lucena de Albertim (UFPB)Willy Paredes Soares (UFPB)

Organizadores

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Catabasis um rito de passagem e a busca da

imortalidade

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Alcione Lucena de Albertim

O vocaacutebulo κατάβασις composto pela preposiccedilatildeo κατά que exprime um mo-vimento para baixo e pelo substantivo βάσις que significa lsquopasso sequecircnciarsquo prove-niente do verbo βαίνω que quer dizer lsquoafastar as pernas atraveacutes do andarrsquo etimologi-camente significa lsquocaminhar no sentido para baixorsquo denotando portanto uma descida Em contraponto haacute a ἀνάβασις formado pela preposiccedilatildeo ἀνά que exprime um mo-vimento para cima e pelo verbo mesmo verbo βαίνω significando desse modo uma subida lsquocaminhar para cimarsquo A κατάβασις ao Hades com a conseguinte ἀνάβασις estaacute presente na tradiccedilatildeo miacutetica grega cujo motivo serviu de modelo para a elabora-ccedilatildeo do mesmo episoacutedio na tradiccedilatildeo latina representando um ritual de passagem que eacute caracterizado pela transformaccedilatildeo do heroacutei submetido a esse ritual passando ele por uma separaccedilatildeo de um status anterior depois por uma fase intermediaacuteria que o levaraacute a uma nova condiccedilatildeo Por esse processo passam Heracleacutes Odisseus Orfeu Teseu e Piriacutetoo como tambeacutem o heroacutei troiano Eneias todos eles protagonistas de uma desci-da ao submundo cuja consequecircncia foi a transformaccedilatildeo desses heroacuteis para uma nova condiccedilatildeo A partir dessas consideraccedilotildees visa-se neste trabalho delinear a trajetoacuteria de cada um desses heroacuteis mostrando a particularidade de cada um rumo agrave conquista da imortalidade mormente a de Eneias demonstrando a permanecircncia da tradiccedilatildeo miacutetica grega na cultura romana

A comeccedilar por Heracleacutes em torno da figura desse heroacutei pertencente a uma ge-raccedilatildeo anterior agrave guerra de Troacuteia coadunam-se inuacutemeros mitemas entre eles os doze trabalhos Estes estatildeo ligados agrave figura da deusa Hera cuja perseguiccedilatildeo ao heroacutei ocorre por causa da infidelidade de Zeus seu esposo e pai de Heracleacutes

Conta o mito que Zeus aproveitando a ausecircncia de Anfitriatildeo rei de Tirinte que saiacutera em uma expediccedilatildeo toma a sua forma e aspecto a fim de enganar Alcmena Une-se entatildeo agrave rainha e engendra Heracleacutes Anfitriatildeo retorna pela manhatilde e faz-se re-conhecer pela esposa concebendo um filho com ela Iacuteficles irmatildeo gecircmeo de Heracleacutes apenas uma noite mais novo que ele Antes mesmo de o heroacutei nascer Hera enciumada comeccedila a persegui-lo Zeus inadvertidamente afirma que a crianccedila a nascer da raccedila de Perseu reinaria sobre Argos No momento de Alcmena dar agrave luz Hera impede sua filha Iliacutetia deusa dos partos de ajudaacute-la e favorece Nicipe que estaacute com sete meses de gravidez esperando Euristeu tambeacutem descendente de Perseu Ele entatildeo herda o po-der sobre a Argoacutelida Hera continua sua perseguiccedilatildeo a Heracleacutes Jaacute adulto ela o enlou-quece fazendo-o matar os filhos que tem com Meacutegara O heroacutei consulta o oraacuteculo de Delfos a fim de saber como expiar o seu crime e eacute aconselhado a submeter-se agrave deusa

Ela o potildee a serviccedilo de Euristeu que o sujeita a doze trabalhos irrealizaacuteveis para um heroacutei de menor valor que Heracleacutes O deacutecimo segundo trabalho diz respeito agrave sua descida ao Hades Euristeu exige que ele desccedila ao reino de Dite e traga o catildeo guardiatildeo da entrada do mundo subterracircneo impedindo os vivos de laacute entrarem e os mortos de laacute saiacuterem Ceacuterbero era um monstro de trecircs cabeccedilas de catildeo cauda formada por uma serpente e no dorso inuacutemeras cabeccedilas de serpente levantadas Heracleacutes acompanhado por Hermes deus condutor das almas ψυχοπομπός desce ao Hades mas natildeo antes de ser iniciado nos Misteacuterios de Elecircusis Laacute o deus permite que o heroacutei conduza o catildeo mas sob a condiccedilatildeo de natildeo o machucar com suas armas Heracleacutes luta

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com Ceacuterbero soacute com a forccedila dos seus braccedilos Quase sufocando-o domina-o Ao levar para Euristeu este tem medo e ordena que o heroacutei o leve de volta A descriccedilatildeo acima de caraacuteter meramente parafraacutestico visa comprovar a estrutura ritualiacutestica do mito Heracleacutes antes de descer ao Hades eacute purificado por Eumolpo rei da Traacutecia pois havia matado os Centauros Em seguida eacute iniciado nos Misteacuterios de Elecircusis desse modo fi-cando em condiccedilotildees apropriadas para adentrar o Hades jaacute que os Misteacuterios ensinavam precisamente aos fieacuteis os meios de chegar ao outro mundo com toda a seguranccedila apoacutes a morte Natildeo eacute sabido o que eram os Misteacuterios mas eacute notoacuterio que aqueles iniciados participavam de experiecircncias ritualiacutesticas de modo a transcender a condiccedilatildeo humana e obter uma forma sobrenatural de ser ainda em vida Mas aleacutem disso Heracleacutes tem a companhia de dois deuses Atena e Hermes a fim de enfrentar com menor risco as sombras e os monstros laacute existentes a qual permite inclusive a sua passagem pelo rio Aqueronte na barca de Caronte Heracleacutes eacute denotado sobretudo por sua forccedila fiacutesica descomunal e por sua coragem sem limites uacutenicas armas que utiliza para encarar Ha-des e sua esposa Perseacutefone e para dominar Ceacuterbero Tal fato mostra a singularidade da κατάβασις de Heracleacutes Do mesmo modo ocorre com os demais heroacuteis quando descem ao mundo subterracircneo cada um tem em sua trajetoacuteria peculiaridades con-cernentes agrave singularidade de cada um caracteriacutesticas respeitantes a sua pessoalidade

Retornar pela segunda vez agrave terra depois que devolve Ceacuterbero ao Hades en-frentando por duas vezes o caminho que leva ao mundo do esquecimento dos silen-ciosos confere a Heracleacutes a conquista da imortalidade haja vista ter encarado a morte duas vezes Tal imortalidade seraacute confirmada com a sua divinizaccedilatildeo por Zeus ao mor-rer envenenado involuntariamente por Djanira sua esposa

Quanto a Odisseu rei de Iacutetaca ele se destaca no cenaacuterio da guerra de Troacuteia sobretudo por sua inteligecircncia e astuacutecia Seu principal epiacuteteto πολύμητις muito ar-diloso expressa bem o atributo que faz do heroacutei uma figura proeminente no combate mais do que pela sua forccedila fiacutesica Essa caracteriacutestica jaacute estaacute presente no perfil dos seus antepassados Seu avocirc por parte de matildee Autoacutelico herdou do pai o deus Hermes o dom de roubar sem nunca ser surpreendido por isso causou muito oacutedio naqueles que foram suas viacutetimas Desse fato surge o nome Odisseu Quando o heroacutei nasce Autoacutelico que na ocasiatildeo encontrava-se em Iacutetaca escolhe o nome da crianccedila proveniente do fato de haver durante a sua vida provocado muitas malquerenccedilas O nome Ὀδυσσεύς proveacutem do verbo ὀδύσσασθαι que significa ldquodetestar estar irado contrardquo

Na Odisseia Canto XI versos 23-50 Odisseu faz uma νέκυια invocaccedilatildeo agraves almas dos mortos para saber sobre o futuro em relaccedilatildeo agrave sua volta para casa e para o seu reino Ele apenas bordeja a entrada do Hades natildeo chegando propriamente a entrar nele O mundo subterracircneo segundo Homero fica nas paragens da cidade dos homens Cimeacuterios povo fabuloso cujo territoacuterio situa-se nos limites do mundo Chegando ao local a partir das indicaccedilotildees da feiticeira Circe o heroacutei oferece libaccedilotildees agraves almas dos mortos e um sacrifiacutecio de duas reses de pelo negro aos deuses subterracircneos

Laacute Perimedes e Euriacuteloco seguraram as viacutetimasEu a pontiaguda espada saco de junto da coxa

Um fosso cavei de um cuacutebito aqui e acolaacuteAo redor nele libaccedilatildeo verti a todos os mortosPrimeiramente de leite e mel misturados depois de doce vinhoe por terceiro aacutegua sobre ele branca cevada espalheiMuito supliquei agraves cabeccedilas exangues dos mortos tendo ido para Iacutetaca uma vaca esteacuteril a melhor irei sacrificar no meu palaacutecio e uma pira cobrir com as melhores coisas Agrave parte irei consagrar soacute a Tireacutesias toda negra uma ovelha que se distingue entre as nossas crias E quando com votos e preces supliquei ao coro dos mortos e tendo tomado o gado degolei rumo ao fosso e negro sangue escorreu As almas daqueles que estatildeo mortos afluiacuteram do Eacuterebo moccedilas e moccedilos solteiros sofridos anciatildeos jovens donzelas que tecircm o coraccedilatildeo incipiente no sofrer e muitos heroacuteis abatidos por Ares que foram perfurados com lanccedila de bronze segurando as armas manchadas de sangueMuitos ao redor do fosso chegavam de uma parte e de outra com grito ensurdecedor O medo deixava-me verdeDepois os companheiros exortei tendo ordenado queimar as reses esfoladas que jaziam no chatildeo pelo bronze cruel abatidas e orar aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone e eu mesmo tendo puxado a pontiaguda espada de junto da coxa sento natildeo permitia que as exangues cabeccedilas dos mortos viessem mais perto antes de ouvir Tireacutesias sup2

sup2 ἔνθ᾽ ἱερήια μὲν Περιμήδης Εὐρύλοχός τεἔσχον ἐγὼ δ᾽ ἄορ ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦβόθρον ὄρυξ᾽ ὅσσον τε πυγούσιον ἔνθα καὶ ἔνθα ἀμφ᾽ αὐτῷ δὲ χοὴν χεόμην πᾶσιν νεκύεσσιπρῶτα μελικρήτῳ μετέπειτα δὲ ἡδέι οἴνῳτὸ τρίτον αὖθ᾽ ὕδατι ἐπὶ δ᾽ ἄλφιτα λευκὰ πάλυνονπολλὰ δὲ γουνούμην νεκύων ἀμενηνὰ κάρηναἐλθὼν εἰς Ἰθάκην στεῖραν βοῦν ἥ τις ἀρίστη ῥέξειν ἐν μεγάροισι πυρήν τ᾽ ἐμπλησέμεν ἐσθλῶνΤειρεσίῃ δ᾽ ἀπάνευθεν ὄιν ἱερευσέμεν οἴῳπαμμέλαν᾽ ὃς μήλοισι μεταπρέπει ἡμετέροισιτοὺς δ᾽ ἐπεὶ εὐχωλῇσι λιτῇσί τε ἔθνεα νεκρῶνἐλλισάμην τὰ δὲ μῆλα λαβὼν ἀπεδειροτόμησα ἐς βόθρον ῥέε δ᾽ αἷμα κελαινεφές αἱ δ᾽ ἀγέροντοψυχαὶ ὑπὲξ Ἐρέβευς νεκύων κατατεθνηώτων

νύμφαι τ᾽ ἠίθεοί τε πολύτλητοί τε γέροντεςπαρθενικαί τ᾽ ἀταλαὶ νεοπενθέα θυμὸν ἔχουσαιπολλοὶ δ᾽ οὐτάμενοι χαλκήρεσιν ἐγχείῃσιν ἄνδρες ἀρηίφατοι βεβροτωμένα τεύχε᾽ ἔχοντεςοἳ πολλοὶ περὶ βόθρον ἐφοίτων ἄλλοθεν ἄλλοςθεσπεσίῃ ἰαχῇ ἐμὲ δὲ χλωρὸν δέος ᾕρειδὴ τότ᾽ ἔπειθ᾽ ἑτάροισιν ἐποτρύνας ἐκέλευσαμῆλα τὰ δὴ κατέκειτ᾽ ἐσφαγμένα νηλέι χαλκῷ δείραντας κατακῆαι ἐπεύξασθαι δὲ θεοῖσινἰφθίμῳ τ᾽ Ἀΐδῃ καὶ ἐπαινῇ Περσεφονείῃαὐτὸς δὲ ξίφος ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦἥμην οὐδ᾽ εἴων νεκύων ἀμενηνὰ κάρηνααἵματος ἆσσον ἴμεν πρὶν Τειρεσίαο πυθέσθαι (Odisseia XI v 23-50)

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Odisseu saiacutedo de Troacuteia apoacutes sua destruiccedilatildeo defronta-se com inuacutemeras vicis-situdes a fim de chegar a Iacutetaca entre elas estaacute a descida ao Hades Eacute possiacutevel perceber o perfil ardiloso do heroacutei quando depois que oferece o sangue sacrificial das reses depositado no fosso primeiramente a Tireacutesias adivinho tebano com o intuito de ques-tionaacute-lo sobre a sua volta usa-o como isca para atrair as almas daqueles pelos quais se interessa Depois que Tireacutesias discorre sobre os perigos com os quais Odisseu ainda se depararaacute outras almas se aproximam e apoacutes sorverem do sangue relatam suas his-toacuterias Entre elas encontra-se a alma de Agamecircmnon que o adverte sobre o perigo de se confiar nas mulheres remetendo agrave traiccedilatildeo da sua proacutepria esposa Clitemnestra que o mata em um banquete oferecido em comemoraccedilatildeo agrave sua volta da guerra Essa adver-tecircncia condiz com o encontro entre Peneacutelope e o proacuteprio Odisseu ainda disfarccedilado de mendigo Alter ego do esposo concernente agrave astuacutecia Peneacutelope cujo epiacuteteto περίφρων (περί = ao redor de + φρωνέω = ser sensato prudente ter conhecimento) faz jus a tal caracteriacutestica desconstroacutei sensatamente o discurso do heroacutei quando ele tenta desviar a atenccedilatildeo de Peneacutelope sobre ele para si proacutepria insuflando-lhe a vaidade de maneira sutil e inteligente Entretanto a rainha o contesta dizendo que sua grandeza tanto da forma de ser quanto da beleza foi destruiacuteda no dia em que o esposo seguiu com os argivos e que muito maior seraacute com o seu regresso para o lar

A νέκυια de Odisseu reitera a sua imortalidade Imortalizado pelo canto dos aedos visto serem suas faccedilanhas de heroacutei guerreiro jaacute conhecidas de todos ao despre-zar a luz do sol e visitar os mortos nas sombras ele conquista uma espeacutecie de imor-talidade fiacutesica pois jaacute natildeo teme mais a proacutepria morte Essa conquista tem seu reflexo quando enfrenta os pretendentes que pilham a sua riqueza e desrespeitam o seu lar Disfarccedilado de mendigo derrota os inimigos com forccedila proveniente da sua destreza e da sua coragem Dado como morto por todos Odisseu sai do anonimato da sua apa-rente morte e atraveacutes da sua habilidade particular com o arco e a flecha mata deste-midamente todos os inimigos

Jaacute Orfeu filho do deus-rio Eagro e da musa da poesia liacuterica Caliacuteope Καλλιόπη cujo nome significa lsquoa que tem uma bela vozrsquo apaixona-se por Euriacutedice e se casa com ela Mas Euriacutedice eacute tatildeo bonita que pouco tempo depois do casamento atrai um api-cultor chamado Aristeu Quando ela recusa suas atenccedilotildees ele a persegue Tentando escapar ela tropeccedila em uma serpente que a pica e a mata Orfeu fica transtornado de tristeza Levando a sua lira vai ateacute o mundo dos mortos para tentar trazecirc-la de volta A canccedilatildeo pungente e emocionada de sua lira convence o barqueiro Caronte a levaacute-lo vivo pelo Rio Estige A canccedilatildeo da lira adormece Ceacuterbero o catildeo de trecircs cabeccedilas que vigia os portotildees seu tom carinhoso alivia os tormentos dos condenados Finalmente Orfeu chega ao trono de Hades O rei dos mortos fica irritado ao ver que um vivo ti-nha entrado em seu domiacutenio mas a agonia na muacutesica de Orfeu o comove e ele chora laacutegrimas de ferro Sua esposa a deusa Perseacutefone implora-lhe que atenda ao pedido de Orfeu Assim Hades acolhe seu desejo Euriacutedice poderia voltar com Orfeu ao mundo dos vivos Mas com uma uacutenica condiccedilatildeo que ele natildeo olhasse para ela ateacute que estivesse outra vez agrave luz do sol

Orfeu parte pela trilha iacutengreme que leva para fora do escuro reino da morte

tocando muacutesicas de alegria e celebraccedilatildeo enquanto caminha para guiar a sombra de Euriacutedice de volta agrave vida Ele natildeo olha nenhuma vez para traacutes ateacute atingir o limiar da entrada do submundo no entanto nesse momento vira-se para se certificar de que Euriacutedice estaacute seguindo-o Por um momento ele a vecirc perto da saiacuteda do tuacutenel escuro perto da vida outra vez Mas enquanto ele olha ela se torna de novo um fino fantas-ma seu grito final de amor e pena natildeo eacute mais do que um suspiro na brisa que saiacutea do mundo dos mortos Orfeu a havia perdido para sempre Em total desespero Orfeu se torna amargo Recusa-se a olhar para qualquer outra mulher natildeo querendo se lembrar da perda de sua amada Furiosas por terem sido desprezadas um grupo de mulheres Traacutecias selvagens chamadas Mecircnades cai sobre ele freneacuteticas atirando dardos Os dardos de nada valem contra a muacutesica do lirista mas elas abafando sua muacutesica com gritos conseguem atingi-lo e o matam Depois despedaccedilam seu corpo e jogam sua cabeccedila cortada no Rio Hebrus e ela flutua ainda cantando ldquoEuriacutedice Euriacutedicerdquo

Chorando as nove musas reuacutenem seus pedaccedilos e os enterram no Monte Olim-po Dizem que desde entatildeo os rouxinoacuteis das proximidades cantam mais docemente do que os outros pois Orfeu na morte se uniu a sua amada Euriacutedice

Orfeu muacutesico por excelecircncia e poeta tem como salvo-conduto para a entrada no Hades o som da sua lira que eacute capaz de acalmar as feras e comover ateacute mesmo o deus terriacutevel dos mortos O amor por uma mulher eacute a causa da sua κατάβασις Expe-rimentando a morte na figura da pessoa amada ele mesmo quer conhececirc-la indo ateacute o Hades Para resgatar a esposa e salvar a si mesmo do esquecimento da morte utiliza o atributo que lhe confere notoriedade no mundo dos vivos a muacutesica Entretanto natildeo confia no proacuteprio talento e inadvertidamente quer conferir se a sua amada o segue de volta agrave luz Momentaneamente a perde e tambeacutem a si mesmo para em seguida conquistar a imortalidade juntamente com Euriacutedice

Quanto a Teseu ele eacute o heroacutei por excelecircncia da Aacutetica Conta o mito que Egeu seu pai natildeo podendo ter filhos de mulheres sucessivas interroga o oraacuteculo de Delfos O deus responde-lhe que abrisse o odre de vinho antes de chegar agrave cidade de Atenas Natildeo compreendendo Egeu se afasta do seu caminho para consultar o rei de Trezeacutenia Piteu um dos filhos de Peacutelops o qual compreende logo o sentido do oraacuteculo Consegue embriagar Egeu e durante a noite deita ao seu lado a filha Etra Dessa uniatildeo nasce Teseu Outra tradiccedilatildeo diz que o pai seria Posiacutedon que teria se unido a Etra na mesma noite que Egeu um dia em que ela teria ido oferecer um sacrifiacutecio numa ilha e o deus a possuiacutera agrave forccedila

Piriacutetoo amigo de Teseu eacute um heroacutei da Tessaacutelia filho de Zeus e Dia A sua ami-zade com Teseu ocorre de maneira singular Ao ouvir falar dos feitos do heroacutei decide pocirc-lo agrave prova e rouba gados dos rebanhos de Teseu Os dois se veem um dia frente a frente e cada um deles eacute seduzido pela beleza do outro Selam entatildeo com um jura-mento a amizade que nascia e a partir desse instante os dois vivem juntos todas as aventuras entre elas o combate dos Laacutepitas contra os centauros e a descida ao Hades

A κατάβασις de Teseu e Piriacutetoo ocorre quando cada um deles jura dar ao ou-tro uma filha de Zeus como esposa Piriacutetoo entatildeo ajuda Teseu a raptar Helena filha

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de Zeus e Leda e em troca recebe sua ajuda para ir ao Hades raptar Perseacutefone filha de Zeus e Demeacuteter Conta o mito que os dois conseguiram entrar no mundo dos mortos mas natildeo conseguiram sair ficando prisioneiros Heracleacutes ao descer ao submundo en-contra os dois e consegue libertar Teseu mas ao tentar resgatar Piriacutetoo a terra treme O heroacutei percebe que natildeo eacute vontade dos deuses libertar Piriacutetoo e desiste de salvaacute-lo

A entrada de Teseu e Piriacutetoo no mundo dos mortos eacute aquiescida por Hades pela intenccedilatildeo do deus de prendecirc-los no mundo subterracircneo Aparentemente bem aco-lhidos foram recebidos com um banquete Ao se sentar ficaram presos nos assentos Teseu foi libertado mas Piriacutetoo permaneceu eternamente sentado na Cadeira do Es-quecimento Sua passagem pelo Hades lhe trouxe uma imortalidade anocircnima Para Teseu a ἀνάβασις lhe trouxe a derrocada Regressando a Atenas encontrou o poder partilhado entre facccedilotildees e passou a ser rei apenas no nome Foi morto pelo rei Licurgo

O Livro VI da Eneida trata da descida de Eneacuteias aos Infernos que vem sendo anun-ciada no decurso da narrativa Primeiramente em Butroto depois de saiacutedos de Troacuteia ha-verem os troianos parado na Traacutecia em Delos em Creta nas ilhas Estroacutefades Depois em Aacutecio Heleno filho de Priacuteamo e sacerdote de Apolo em transe vaticina os destinos de Eneacuteias e remete agrave sua visita aos lagos dos Infernos

Quanto agrave tradiccedilatildeo latina respaldando-se na tradiccedilatildeo grega Virgiacutelio busca o mito da cataacutebase para compor o Livro mais importante da sua epopeia que confirma as prediccedilotildees de Juacutepiter desde o iniacutecio da narrativa e depois pelos oraacuteculos de Apolo a edificaccedilatildeo da futura gloacuteria romana O Livro VI da Eneida trata da descida de Eneacuteias aos Infernos que vem sendo anunciada no decurso da narrativa Primeiramente em Butroto depois de saiacutedos de Troacuteia haverem os troianos parado na Traacutecia em Delos em Creta nas ilhas Estroacutefades Depois em Aacutecio Heleno filho de Priacuteamo e sacerdote de Apolo em transe vaticina os destinos de Eneacuteias e remete agrave sua visita aos lagos dos Infernos Pela segunda vez haacute a referecircncia agrave ida de Eneacuteias ao mundo dos mortos agora atraveacutes da alma de Anquises que aparece ao filho quando este se encontra na Siciacutelia Eacute o momento em que estatildeo sendo realizados os jogos fuacutenebres em sua honra pois mor-rera havia um ano

Na modalidade do arco e flecha ocorre um prodiacutegio que soacute mais tarde eacute anunciado pelos adivinhos Quando Aceste atira o dardo a fim de atingir a pomba este incendeia no percurso e esvanece antes de atingir o alvo Algum tempo depois os na-vios troianos que estatildeo ancorados na praia satildeo incendiados por Iacutesis a mando de Juno Considerando que o arco e flecha representam Apolo na sua funccedilatildeo de arqueiro e do mesmo modo o fogo simboliza a sua funccedilatildeo de deus da luz e que a pomba a ave de Vecircnus representa metonimicamente o povo troiano eacute clara a participaccedilatildeo do deus no prodiacutegio na tentativa de alertar os guerreiros quanto ao incecircndio contra as naus Tal episoacutedio leva Eneacuteias a seguir o conselho do velho Nauta de deixar na ilha o contingente excedente pela perda dos navios fundando uma cidade para que laacute permanecessem Entretanto antes de anuir agrave proposta do anciatildeo Eneacuteias vecirc a sombra de Anquises que o aconselha a fazecirc-lo tambeacutem remetendo agrave necessidade da sua ida agrave morada das som-bras guiado pela Sibila a fim de conhecer a posteridade da sua descendecircncia

sup3 From one point of view we may say that these myths and sagas have an initiatory structure to descend into Hell alive confront its monsters and demons is to undergo an initiatory ordeal I may add that similar flesh-andblood descend into Hell are characteristic of heroic initiations whose goal is the conquest of bodily immortality Of course these instances belong to initiatory mythology and not to ritual properly speaking but myths are often more valuable than rites for our understanding of religious behavior For it is the myth which most completely reveals the deep and often unconscious desire of the religious man (ELIADE 2005 p 112)

A κατάβασις de Eneacuteias simboliza a sua morte como homem mortal pereciacute-vel para que na sua ἀνάβασις seja imortalizado na memoacuteria de todos como heroacutei semideus alegoricamente simbolizando a imortalidade do impeacuterio romano e por me-toniacutemia a do proacuteprio Augusto Eacute nesse episoacutedio que ocorre a lsquobela mortersquo de Eneacuteias Depois da entrevista com Anquises que lhe garante o ecircxito do seu empreendimento a edificaccedilatildeo do novo reino com a aquiescecircncia dos proacuteprios deuses jaacute percebida no momento em que o heroacutei consegue o salvo-conduto para a entrada no reino dos mor-tos a sua consagraccedilatildeo e perenidade na μνήμη memoacuteria das geraccedilotildees vindouras estaacute perpetuada Do mesmo modo ao adentrar o seio da terra siacutembolo de vida e de morte ao mesmo tempo Eneacuteias tem o seu σῆμα estabelecido seu tuacutemulo monumento divi-no representativo da existecircncia do heroacutei O enfrentamento dos monstros e dos perigos que perpassam a travessia pelo reino de Plutatildeo confirma-lhe a bravura e o desbrava-mento heroico terceiro requisito para se obter uma lsquobela mortersquo

Mircea Eliade em suas reflexotildees tece um pensamento profundo acerca da simbologia da cataacutebase ao reino dos mortos

A partir de um ponto de vista noacutes podemos dizer que es-tes mitos e sagas tecircm uma estrutura iniciatoacuteria descer vivo ao Inferno confrontar monstros e democircnios eacute sub-meter-se a uma provaccedilatildeo iniciatoacuteria Podemos acrescentar que similares descidas em ldquocarne e ossordquo ao Inferno satildeo caracteriacutesticas de iniciaccedilotildees heroicas cujo objetivo eacute a con-quista da imortalidade fiacutesica Naturalmente esses exem-plos pertencem agrave mitologia de iniciaccedilatildeo e natildeo ao ritual propriamente falando mas mitos satildeo frequentemente mais significativo do que os ritos para nosso entendimen-to do comportamento religioso Por isso eacute o mito aquilo que mais completamente revela o profundo e frequente-mente inconsciente desejo do homem religioso3

O teoacuterico refere-se a uma lsquomitologia de iniciaccedilatildeorsquo que remete ao que eacute narrado mais do que o experienciado na vivecircncia ritualiacutestica do mito Envolto por uma aura religiosa o ritual narrado da cataacutebase estaacute circunscrito na categoria dos heroacuteis apon-tando uma ordem em que ocorre uma provaccedilatildeo iniciaacutetica e uma conseguinte trans-formaccedilatildeo Eacute preciso passar por uma morte para alcanccedilar a imortalidade finalidade propulsora do homem religioso

Eneacuteias atinge o aacutepice da sua Pietas ndash valor sagrado de reverecircncia aos deuses e aos antepassados ndash ao descer aos Infernos pois atende ao chamado de Anquises Apoacutes

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4 Quale solet silvis brumali frigore viscum Fronde virere nova quod non sua seminat arbos Et croceo fetu teretis circumdare truncos Talis erat species auri frondentis opaca Ilice sic leni crepitabat brattea vento (VIRGIacuteLIO Eneida VI v 205-209)

a sua ἀνάβασις e a sua chegada ao Laacutecio Eneacuteias tem seu status de heroacutei reconhecido e ratificado no momento em que recebe da deusa Vecircnus sua matildee as armas produzidas por Vulcano episoacutedio este respaldado no exemplo grego de Aquiles considerado o melhor dos guerreiros gregos que tambeacutem teve suas armas forjadas pelo deus ferreiro

A armadura eacute iacutecone da excelecircncia guerreira do heroacutei que diz respeito a ἀρετή grega e a virtus romana Dentro do conjunto em que figuram o elmo as cnecircmides a couraccedila a lanccedila e a espada o escudo tem proeminecircncia pois carrega em si a repre-sentaccedilatildeo do universo em que o heroacutei estaacute inserido O escudo eacute instrumento ao mesmo tempo de proteccedilatildeo e ataque no campo de batalha O heroacutei ao colocaacute-lo contra o ini-migo potildee diante de si seu proacuteprio mundo servindo-lhe este de anteparo e de ofensiva

A descriccedilatildeo das imagens representadas no escudo de Eneacuteias diz respeito agrave his-toacuteria de Roma desde Rocircmulo e Remo alimentados por uma loba ateacute Ceacutesar Augusto portanto todo um futuro desconhecido para o heroacutei Carregar tal representaccedilatildeo mol-dada exclusivamente para ele significa ser o empreendedor da gloacuteria futura dos seus descendentes A entrada de Eneacuteias nos Infernos eacute aquiescida pelos deuses O heroacutei tem a proteccedilatildeo de Apolo atraveacutes da Sibila de Cumas sacerdotisa de Apolo que atua como guia no seu itineraacuterio Ela estipula os requisitos necessaacuterios para que o heroacutei possa realizar tal empreendimento com seguranccedila a saber o ramo de ouro a purificaccedilatildeo da frota pela morte de um dos seus companheiros e um sacrifiacutecio aos deuses subterracirc-neos Esses elementos seratildeo determinantes para a empreitada do heroacutei e consequente conquista da imortalidade

Cataacutebase de Eneias

A κατάβασις de Eneacuteias requer trecircs condiccedilotildees para que se realize I) a anuecircncia das divindades II) a purificaccedilatildeo necessaacuteria para o contato com o sagrado (sacer) III) a oferenda aos deuses atraveacutes do sacrifiacutecio animal A primeira diz respeito ao salvo-con-duto que lhe garantiraacute a passagem livre pelas regiotildees inferiores que consiste em um ramo cujo aspecto se assemelha a um visco planta parasitaacuteria que cresce em torno do tronco de aacutervores destacando-se sobretudo por sua resistecircncia agraves intempeacuteries climaacute-ticas e por sua coloraccedilatildeo ativa Ele representa a perenidade da imortalidade que seraacute conferida a Eneias com a sua descida aos Infernos

Qual eacute comum nos bosques com o frio sosticialVerdejar com nova folhagem o visco que a aacutervore semeia natildeo sua e com croacuteceo ramo circundar os troncos Tal era o aspecto do frondoso ouro na sombria azinheira Assim a lacircmina crepitava com a leve brisa4

A explicaccedilatildeo da escolha de Virgiacutelio segundo a criacutetica teria raiz em uma crenccedila popular que atribuiacutea ao visco o poder de neutralizar os perigos advindos da aacutegua e do fogo e mais tarde teria tambeacutem o poder de desmanchar magias e de expulsar democirc-nios

Outra razatildeo coadunada a esta seria o fato de que o visco brota mesmo sem tocar a terra crescendo durante o inverno quando o restante da natureza estaacute imerso no sono da morte Tal caracteriacutestica faria dessa planta siacutembolo de vida para os homens Suas folhas sempre verdes davam ao homem a segura esperanccedila de que a natureza sempre voltaria a florescer e frutificar

No pensamento miacutetico morte e vida formam uma uacutenica unidade Proseacuterpina deusa da vegetaccedilatildeo e do mundo subterracircneo reuacutene em si a forccedila da vida e da morte Metaforicamente ela seria o proacuteprio visco pois apesar da condiccedilatildeo de deusa dos mor-tos ela tambeacutem conteacutem o atributo da germinaccedilatildeo O ramo que serve de salvaguarda a Eneacuteias eacute caracterizado como sendo de ouro fazendo menccedilatildeo agrave coloraccedilatildeo accedilafroada das suas bagas as quais possuem propriedades medicinais A cor concerne tambeacutem agrave construccedilatildeo poeacutetica tendo em vista a localizaccedilatildeo da planta no meio do bosque som-brio Eacute importante perceber que mesmo reluzente o ramo de ouro soacute pode ser visto e sobretudo colhido com a aquiescecircncia dos deuses Natildeo eacute agrave toa que Eneacuteias o encontra com o concurso de Vecircnus sua matildee Esta lhe envia duas pombas suas aves para guiar o filho Aleacutem disso a facilidade com que o ramo se desprende no momento em que o heroacutei o colhe denota tal anuecircncia divina pois caso contraacuterio nem mesmo o ferro seria capaz de removecirc-lo

Eneacuteias com tais palavras orava e ocupava o altar quando assim comeccedilou a falar a sacerdotisa ldquoTroiano gerado de sangue divino filho de Anquises faacutecil eacute a descida ao Aver-no noite e dia a porta do aacutetrio de Dite estaacute aberta mas retornar a marcha e subir rumo agraves brisas do alto este eacute o trabalho esta a dificuldade Poucos descendentes dos deuses aos quais Juacutepiter amou ou a ardorosa coragem transportou ao eacuteter puderam Florestas ocupam todo o centro e o Cocito corrente circunda-o com negra sinuo-sidadePorque tua mente tem tanta acircnsia e tanto desejo de por duas vezes navegar o lago do Estige e ver o negro Taacuterta-ro e agrada-te abandonar-se a um insano labor escuta o que primeiro deve ser realizado De folhas e haste flexiacutevel em aacutervore opaca um ramo de ouro permanece escondido consagrado a Juno infernal Todo um bosque o oculta e as sombras o encerram em vale sombrio Mas natildeo eacute dado a algueacutem penetrar o recesso da terra antes que tenha co-lhido o ramo de ouro da aacutervore Esta daacutediva para si a bela Proseacuterpina ordena trazerTendo arrancado o primeiro outro de ouro natildeo falta e de siacutemil metal um ramo floresce Portanto procura-o su-tilmente com os olhos e colhe a descoberta segundo os ritos com a matildeoDe fato ele mesmo propiacutecio cede facilmente se os fados te chamam De outra maneira com forccedila alguma poderaacutes

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vencer nem arrancar com duro ferro Aleacutem disso o corpo de um amigo teu jaz exacircnime (Ai tu que desconheces) e mancha todo o exeacutercito com o cadaacutever enquanto pedes oraacuteculos e pendes em nosso limiar Antes entrega-o agrave sua morada e encerra-o no sepulcroConduze negras reses sejam estas as primeiras expiaccedilotildeesApenas assim avistaraacutes os bosques sagrados do Estige e o reino inacessiacutevel aos vivosrdquo Disse e premendo a boca calou-se 5

O trecho acima descreve a entrevista entre Eneacuteias e a Sibila especificamente a resposta dada ao heroacutei quando este lhe pede para ver Anquises visto ser ali a entrada para o mundo dos mortos Ela entatildeo discorre sobre o que eacute necessaacuterio para a reali-zaccedilatildeo do seu pedido Mesmo tendo a ajuda divina na busca do ramo de ouro Eneacuteias precisa agir com acuidade ao procuraacute-lo No verso 145 a sacerdotisa adverte-o quanto a isso Entretanto faz-se necessaacuterio ir um pouco aleacutem em relaccedilatildeo ao sentido dessa ad-vertecircncia a fim de se ter uma compreensatildeo mais profunda na interpretaccedilatildeo do texto

A vocaacutebulo oculis (= olho visatildeo) em outra acepccedilatildeo possiacutevel denota a visatildeo com os olhos da mente o que remete ao verbo meacutedio grego ὄσσομαι (= ver em espiacute-rito ou com o olho da mente) Portanto eacute preciso que Eneacuteias busque o ramo de ouro compenetrado em si mesmo em seu espiacuterito piedoso Isso lhe facultaraacute o encontro com seu pai haja vista ser este sentimento de devoccedilatildeo e de respeito aos antepassados aquilo que impulsiona o heroacutei a enfrentar tamanho perigo Depois que sabe da morte de um dos companheiros Eneacuteias segue rumo ao acampamento Laacute chegando fica cien-te de que se trata de Miseno

Companheiro de Heitor junta-se a Eneacuteias depois que ο Priamida morre pelas matildeos de Aquiles Era exiacutemio trombeteiro mas comete um desatino ao desafiar Tri-tatildeo divindade marinha tocador de buacutezio dizendo-se mais habilidoso do que qualquer imortal Para castigaacute-lo o deus surpreende-o com uma vaga e o afoga Eacute a ele que a Sibila se refere como a causa de contaminaccedilatildeo da frota Por pertencer ao culto sagrado dos Penates troianos o descomedimento (ὕὕβρις) que comete contra Tritatildeo atinge a todos A hyacutebris diz respeito a um excesso cometido por um mortal a qual sempre acar-reta uma puniccedilatildeo A ultrapassagem do μέτρον da medida do limite a que os homens

6 Nec minus interea Misenum in litore Teucri flebant et cineri ingrato suprema ferebantprincipio pinguem taedis et robore secto ingentem stru-xere pyram cui frondibus atris intexunt latera et feralis ante cupressos constituunt decorantque super fulgenti-bus armispars calidos latices et aeumlna undantia flammis expediunt corpusque lavant frigentis et unguuntfit gemitus tum membra toro defleta reponunt purpure-asque super vestis velamina nota coniciunt pars ingenti subiere feretro triste ministerium et subiectam more pa-rentum aversi tenuere facem congesta cremantur turea

dona dapes fuso crateres olivopostquam conlapsi cineres et flamma quievit reliquias vino et bibulam lavere favillam ossaque lecta cado texit Corynaeus aeumlnoidem ter socios pura circumtulit unda spargens rore levi et ramo felicis olivae lustravitque viros dixitque novissi-ma verbaat pius Aeneas ingenti mole sepulcrum imponit suaque arma viro remumque tubamque monte sub aeumlrio qui nunc Misenus ab illo dicitur aeternumque tenet per saecula nomen(VIRGIacuteLIO Eneida VI 212-235)

devem se submeter conscientes da sua inferioridade em relaccedilatildeo aos deuses provoca o μίασμα a mancha que atinge aqueles vinculados por um mesmo laccedilo religioso por deuses em comum Eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo dessa contaminaccedilatildeo atraveacutes de rituais que expiem tal procedimento

A morte de um heroacutei demanda que seja sepultado pelos companheiros Caso natildeo ocorram os ritos fuacutenebres e o devido sepultamento significa incorrer em ato de impiedade acarretando malefiacutecios que contaminaratildeo todos aqueles que estiverem li-gados pelos mesmos laccedilos religiosos Desse modo Miseno eacute sepultado logo que Eneacuteias retornando da entrevista com a Siblila percebe o companheiro morto

No meio tempo os Teucros na praia choravam Miseno e prestavam as uacuteltimas honras agrave cinza ingrataA princiacutepio erigiram uma enorme pira abundante em car-valho seco e madeira resinosa cujas laterais cobrem com folhagem escura Erguem na frente ciprestes fuacutenebres e as adornam no cume com as armas fulgentes Parte pre-para a aacutegua quente e os vasos de bronze que borbulham sobre as chamas Lavam e untam o corpo frioO pranto se faz Entatildeo potildeem o corpo sobre o leito fuacutenebre e lanccedilam em cima as vestes puacuterpuras traje familiarParte levantou o pesado feacuteretro triste mister e segundo o costume dos antepassados voltando as costas pegaram o facho submetendo-o agrave pira Todo o amontoado queima as oferendas de incenso a carne dos sacrifiacutecios as crateras com o oacuteleo derramando Depois que as cinzas caiacuteram e a chama cessou lavaram com vinho os restos e a cinza se-denta Corineu recolhendo os ossos encerra-os em uma urna de bronze Trecircs vezes passou aacutegua lustral em torno dos soacutecios aspergindo-os em leve orvalho com um ramo de fecunda oliveira Purificou-os e disse as uacuteltimas pala-vras E o piedoso Eneacuteias constroacutei um enorme tuacutemulo para o companheiro e potildee as suas armas o remo e a trombeta ao peacute de um alto monte que agora por ele eacute chamado Mi-seno e que manteraacute atraveacutes dos seacuteculos o eterno nome6

5 Talibus orabat dictis arasque tenebat cum sic orsa lo-qui vates laquosate sanguine divum Tros Anchisiade facilis descensus Averno noctes atque dies patet atri ianua Ditissed revocare gradum superasque evadere ad auras hoc opus hic labor est pauci quos aequus amavit Iuppiter aut ardens evexit ad aethera virtus dis geniti potuere tenent media omnia silvae Cocytusque sinu labens circumvenit atro quod si tantus amor menti si tanta cupido estbis Stygios innare lacus bis nigra videre Tartara et insano iuvat indulgere labori accipe quae peragenda prius latet arbore opaca aureus et foliis et lento vimine ramusIunoni infernae dictus sacer hunc tegit omnis lucus et obscuris claudunt convallibus umbrae sed non ante datur telluris operta subire auricomos quam quis decerpserit ar-

bore fetus hoc sibi pulchra suum ferri Proserpina muacutenusinstituit primo avulso non deficit alter aureus et simili frondescit virga metalloergo alte vestiga oculis et rite repertum carpe manu nam-que ipse volens facilisque sequetur si te fata vocant aliter non viribus ullis vincere nec duro poteris convellere ferropraeterea iacet exanimum tibi corpus amici (heu nescis) totamque incestat funere classem dum consulta petis nostroque in limine pendes sedibus hunc refer ante suis et conde sepulcro duc nigras pecudes ea prima piacula suntosic demum lucos Stygis et regna invia vivis aspiciesraquo dixit pressoque obmutuit ore (VIRGIacuteLIO Eneida VI v 124-170)

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O funeral consiste em um ritual composto por etapas diversas No Canto XXIII da Iliacuteada versos 117-897 acontece o funeral de Paacutetrocles morto por Heitor quando enfrentava as hostes troianas vestindo as armas de Aquiles Seu funeral tem a seguinte sequecircncia construccedilatildeo da pira com carvalho deposiccedilatildeo do corpo sobre a pira sacrifiacute-cio de ovelhas e de bois espalhando-se a gordura sobre o cadaacutever e dispondo a carne ao seu redor posicionamento de duas acircnforas ao lado do leito uma com oacuteleo outra com mel sacrifiacutecio de catildees e de cavalos atirados agrave chama da pira sacrifiacutecio de doze mancebos troianos mortos com o bronze e em seguida lanccedilados agrave chama lavagem dos ossos depois de queimado o corpo para serem depositados em uma urna de ouro construccedilatildeo do tuacutemulo para guardar os ossos e realizaccedilatildeo dos jogos em homenagem ao morto Comparando o funeral de Paacutetrocles com o de Miseno eacute possiacutevel perceber poucas diferenccedilas entre o rito funeraacuterio grego e o latino Com relaccedilatildeo ao ritual latino a diferenccedila consiste apenas no ato de virar o rosto no momento de atear fogo ao corpo apontado no verso 123 Este costume dos antepassados repousava na crenccedila de que no instante em que o corpo era submetido agraves chamas a alma do morto se retirava e para natildeo presenciar esse acontecimento virava-se o rosto

Apoacutes a realizaccedilatildeo do funeral e jaacute tendo encontrado o ramo de ouro Eneacuteias e a Sibila seguem rumo ao Averno lago que fica na entrada da caverna que leva ao mundo subterracircneo cujo odor puacutetrido impedia os paacutessaros de voarem sobre ele Em laacute che-gando oferecem o sacrifiacutecio aos deuses infernais a fim de abrandar-lhes a ira

Aqui primeiro quatro novilhos de pecirclo negro a sacerdo-tisa escolheu e verteu-lhes vinho na fronte e tirando os sumos pecirclos entre os cornos deposita-os no sagrado fogo primeiras oferendasinvocando em alta voz Heacutecate poderosa no ceacuteu e no EacutereboOutros cravam as facas por baixo e recolhem o teacutepido san-gue em paacuteteras O proacuteprio Eneacuteias fere com a espada uma ovelha de latilde negra para a matildee das Eumecircnides a Noite e para a sua grande irmatilde a Terra e para ti Proseacuterpina uma vaca esteacuteril Depois ergue altares noturnos ao rei do Es-tige Plutatildeo e potildee sobre o fogo o corpo inteiro dos bois vertendo oacuteleo pingue sobre as viacutesceras ardentes 7

O sacrifiacutecio feito agraves divindades pertencentes aos Infernos difere daquele ofe-recido aos deuses superiores os quais recebem a oferenda de animais de pelo branco ocorrendo o sacrifiacutecio θυσία sobre um altar βωμός durante a luz do dia Consiste em uma oferenda aos deuses e ao mesmo tempo um repasto de festa para os homens Quanto ao sacrifiacutecio da viacutetima a cabeccedila do animal eacute levantada e seu pescoccedilo cortado

7 quattuor hic primum nigrantis terga iuvencos constituit frontique invergit vina sacerdos et summas carpens media inter cornua saetas ignibus imponit sacris libamina primavoce vocans Hecaten caeloque Ereboque potentemsupponunt alii cultros tepidumque cruorem succipiunt pateris ipse atri velleris agnam Aeneas matri Eumenidum mag-naeque sorori ense ferit sterilemque tibi Proserpina vaccam tum Stygio regi nocturnas incohat aras et solida imponit taurorum viscera flammis pingue super oleum fundens ardentibus extis(VERGILIUS op cit 243-254)

de modo que o sangue a princiacutepio esguiche para o alto e depois seja recolhido em um recipiente O animal eacute aberto e suas viacutesceras extraiacutedas para que sejam consultadas Caso os deuses sejam propiacutecios a carne eacute logo devorada depois de retalhada e assada Os ossos cobertos com a gordura satildeo queimados para que a fumaccedila suba em direccedilatildeo aos deuses seu alimento

Jaacute o sacrifiacutecio feito agraves divindades subterracircneas demanda que a viacutetima tenha pelo negro e seja completamente carbonizada ndash holocausto sendo vedado ao homem consumir sua carne Deve ser realizado durante a noite e em lugar do altar cava-se um fosso para que o sangue apoacutes o corte no pescoccedilo do animal que tem a cabeccedila voltada para baixo escorra para dentro da terra Tanto o sacrifiacutecio feito por Odisseu quanto o realizado por Eneacuteias seguem os requisitos exigidos para o cumprimento do ritual de sacrifiacutecio aos deuses infernais a saber libaccedilatildeo de vinho imolaccedilatildeo de viacutetimas com pelo negro degola do animal direcionado para baixo de modo que o sangue escorra rumo ao fosso combustatildeo total do animal e suacuteplica agraves divindades infernais

Eneacuteais oferece o sacrifiacutecio a Heacutecate deusa das encruzilhadas agraves Eumecircnides comumente conhecidas por Fuacuterias entidades vingadoras do crime parental a Pro-seacuterpina identificada como Juno infernal pois eacute a deusa soberana dessa regiatildeo assim como Juno eacute soberana nas regiotildees superiores e a Plutatildeo deus soberano dos Infernos Em seguida queima o animal esfolado em uma fogueira [Eneida VI v52 aras noctur-nas (ἐσχάρα)] erigida a Estige rio dos Infernos

Estige eacute a filha mais velho de Oceano e Teacutetis Durante a Titanomaquia ela socorre Zeus contribuindo para a sua vitoacuteria O deus a recompensa Ela como perso-nificaccedilatildeo do rio eacute abonadora dos juramentos solenes pronunciados pelos deuses Caso algum deles perjurasse seria condenado a passar um ano inteiro em estado cataleacutepti-co sem beber do neacutectar nem comer da ambrosia Depois por mais nove anos ficaria sem participar dos banquetes e festas do Olimpo tal era o seu poder A invocaccedilatildeo agraves divindades infernais caracteriza o tipo de sacrifiacutecio realizado como tambeacutem demarca o acircmbito que conferiraacute a Eneias a imortalidade

Assim a sequecircncia percorrida na abordagem dos mitos cujo fio condutor da narrativa foi a cataacutebase buscou mostrar os pontos convergentes existentes entre eles mas tambeacutem a sua singularidade denotando a especificidade de cada um proacutepria da essecircncia do mito Nesse sentido foi possiacutevel corroborar a permanecircncia da tradiccedilatildeo miacute-tica grega na romana especificamente em relaccedilatildeo ao mito de Eneias

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Referecircncias

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VOLPIS Leone Virgilio Eneide Libro sesto Milano Carlos Signorelli 1953

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A Religiatildeo Romana Arcaica

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Willy Paredes Soares

Sabe-se que a religiatildeo sofrera vaacuterias transformaccedilotildees ateacute que chegasse a se constituir como eacute mais comumente conhecida atraveacutes dos escritos histoacuterico-literaacuterios sobretudo dos autores que estatildeo inseridos no periacuteodo aacuteureo da literatura latina seacutec I aC Nossa investigaccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees religiosas leva em consideraccedilatildeo a sua ordem cronoloacutegica de acontecimentos pois isso garante uma melhor compre-ensatildeo dos fenocircmenos religiosos vigentes no seacutec I aC possibilitando explicitaccedilotildees de tais fenocircmenos religiosos vigentes tambeacutem na posteridade Assim seraacute demonstra-da a religiatildeo que era praticada no Periacuteodo Monaacuterquico romano 753 aC - 509 aC seus principais deuses cultos sacerdotes seu envolvimento com as questotildees poliacuteticas atraveacutes dos escritos remanescentes de comentadores que estatildeo inseridos em periacuteodos posteriores A tentativa de reconstituiccedilatildeo cronoloacutegica da trajetoacuteria religiosa romana eacute certamente aacuterdua principalmente no que se refere agraves praacuteticas religiosas concernen-tes a periacuteodos anteriores ao seacuteculo I aC considerado como eacutepoca aacuteurea da literatura latina que deixou grande legado literaacuterio devido agrave conservaccedilatildeo de grande nuacutemero de obras de diversos autores No entanto deve ser considerada a afirmaccedilatildeo de Jean-Pierre Vernant (2010 p 90) sobre a religiatildeo grega que neste aspecto coaduna-se agrave religiatildeo arcaica romana Haacute entre as origens romanas e os primoacuterdios de sua organizaccedilatildeo so-

Da mesma maneira um grego do seacuteculo V talvez conheccedila menos coisas sobre as origens de Hermes que um especialista contem-poracircneo isso natildeo o impede de crer no deus Hermes de sentir a presenccedila do deus em determinadas circunstacircncias

cial que data de meados do seacutec VIII aC e o seu relato escrito considerado pela criacutetica como o mais antigo ou seja a traduccedilatildeo da Odisseia por Liuius Andronicus aproxima-damente em 240 aC cerca de cinco seacuteculos que podem ser chamados de obscuros no que se refere a documentos escritos que poderiam garantir o esclarecimento de muitos aspectos referentes aos ritos aos cultos religiosos e principalmente ao momento em que a religiatildeo grega atraveacutes de sua forte tradiccedilatildeo mitoloacutegica passou a influenciar o pensamento da arcaica civilizaccedilatildeo romana

Historicamente podem-se fazer comparaccedilotildees entre essas duas civilizaccedilotildees no acircmbito da ausecircncia de material de manuscritos capazes de elucidar principalmente a transiccedilatildeo de comportamentos religiosos e a influecircncia recebida de outros povos pri-mitivos Na Greacutecia esse periacuteodo se verifica entre o seacutec XII aC em que havia o uso da escrita denominada Linear B e o seacutec VIII aC com a reutilizaccedilatildeo da escrita nos poemas homeacutericos ou seja satildeo aproximadamente quatro seacuteculos sem registro escrito Em Roma o periacuteodo - em que haacute poucos ou quase uma total ausecircncia de manuscritos - estende-se de 753 aC data que marca a sua fundaccedilatildeo miacutetica e aproximadamente 240 aC marco inicial da literatura latina com a Odissia de Liuius Andronicus

A proacutepria origem de Roma eacute abordada com certa ausecircncia de especificidades e combina elementos miacuteticos histoacutericos e principalmente religiosos Rocircmulo e Remo teriam recebido autorizaccedilatildeo de seu avocirc Numitor para fundar uma cidade agraves margens do Laacutecio onde eles teriam sido criados por uma loba ou Fauna e por Acca Larentia Os reis de Alba Longa eram soberanos que tinham o privileacutegio de interrogar os auspiacutecios

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para conhecer as vontades dos deuses Conforme indicam os versos de Virgiacutelio desde suas primeiras referecircncias histoacutericas atributos divinos e religiosos ca-

elestiaque arma ldquoarmas celestesrdquo natildeo soacute por terem caracteriacutesticas divinas mas tam-beacutem por terem segundo Tito Liacutevio caiacutedo do ceacuteu e que garantiriam aos romanos arcai-cos uma proteccedilatildeo divina

O proacuteprio Pico mostrava-se com o escudo na matildeo esquerda e vestido com a curta trabea estava sentado com o lituus de Qui-rino 9 (Eneida VII v187-9)

ldquoNatildeo eacute necessaacuteriardquo ndash disse Rocircmulo ndash ldquoalguma disputa Grande eacute a fides das aves Recorramos agraves avesrdquo Eacute agradaacutevel o fato um vai ao rochedo do nemoroso Palatino outro vai pela manhatilde ao cume do Aventino Remo vecirc seis paacutessaros Rocircmulo vecirc duas vezes seis que voam em fila Manteacutem-se o fato pelo pacto e Rocircmulo tem a sentenccedila da cidade 10 (Fasti IV v 813-818)

9 Ipse Quirinali lituo paruaque sedebat succinctus trabea laeuaque ancile gerebat Picus10 ldquoNil opus estrdquo dixit ldquocertaminerdquo Romulus ldquoullo magna fides auium est experiamur auesrdquo Res placet alter init ne-morosi saxa Palati alter Auentinum mane cacumen init Sex Remus hic uolucres bis sex uidet ordine pacto statur et arbitrium Romulus urbis habet

Lendariamente Rocircmulo e Remo autorizados por Numitor observaram os voos dos paacutessaros para saber onde a cidade poderia ser fundada de acordo com o desejo di-vino Rocircmulo teria subido o monte Palatino Remo o Monte Aventino de onde teriam observado os auspiacutecios divinos para a fundaccedilatildeo da urbs ldquocidaderdquo Conforme afirma Oviacutedio

Tentando evitar desavenccedilas certamine ullo com seu irmatildeo Rocircmulo decide consultar a vontade divina sobre a fundaccedilatildeo da cidade atraveacutes dos auspiacutecios magna fides auium est demonstrando natildeo soacute a pietas para com os deuses mas tambeacutem o espiacuterito religioso em que estava envolvido o primitivo povo da Roma arcaica Como os

auspiacutecios divinos foram favoraacuteveis a Rocircmulo jaacute que os paacutessaros que voaram sobre o seu monte apresentaram um nuacutemero duas vezes maior uolucres bis sex do que os que voaram sobre o monte de seu irmatildeo sex Remus uidet Rocircmulo deveria fundar a cidade arbitrium Romulus urbis habet segundo a vontade dos deuses

Divergindo da tradiccedilatildeo literaacuteria latina poreacutem embasado nas palavras de Je-an-Pierre Vernant de que um especialista contemporacircneo possa conhecer mais sobre a Antiguidade do que uma pessoa em que na eacutepoca tenha vivido Andrea Carandi-ni afirma que Rocircmulo teria subido primeiramente ao monte Aventino somente em um segundo momento teria subido ao Palatino Remo poreacutem apenas teria subido ao Monte Murco de onde teriam observado os auspiacutecios divinos para a fundaccedilatildeo da urbs Os ritos preliminares ocorreram em localidades rurais proacuteximas ao monte Palatino

Neste momento teria sido criado o que poderiacuteamos chamar de primeiro tem-

Para interrogar a vontade dos deuses e receber as becircnccedilatildeos que implicavam mudanccedilas irreversiacuteveis de status precisava criar um recinto de cerca de dez metros de cada lado marcados por nove colunas inscritas (templum) das quais aquela a nordeste ndash em que se lia a inscriccedilatildeo bene iuuante aue ndash indicava o voo dos paacutessaros mais favoraacuteveis 11

Depois de ter sacrificado o rei vai provavelmente ao centro do lado ocidental do Palatino e ali cria um novo templum para ob-servar os paacutessaros 12

11 Per interrogare la volontagrave degli dei e ottenerne benedizioni che comportavano mutamenti irreversibili de statusbisognava creare un recinto di una decina di metri per lato segnato da nove cippi iscritti (templum) di cui quello anord-est ndash su cui si leggeva la scritta bene iuuante aue ndash indicava il volo degli uccelli piugrave favorevole13 Dopo aver sacrificato Il re si reca verosimilmente al centro del lato occidentale del Palatino e qui crea un secondo tem-plum per osservare gli uccelli

plo romano delimitado por nove pedras que demarcavam seus limites conforme afir-ma Andrea Carandini (2007 p39)

Apesar de divergir de Oviacutedio quanto ao monte subido por Remo para verifi-caccedilatildeo dos auspiacutecios favoraacuteveis pode-se observar nas palavras de Andrea Carandini a importacircncia da religiatildeo para o homem primitivo romano principalmente no que se refere agrave construccedilatildeo do templo que demonstra as primeiras manifestaccedilotildees e consolida-ccedilatildeo da religiatildeo romana

No primeiro templo primitivo o aacuteugure sacerdote que interpretava o voo dos paacutessaros situava-se no sentido oeste-leste no meio desse templo onde estava o monte Albano O aacuteugure movimentava no ar o seu lituus no espaccedilo delimitado pelas colunas e caso os paacutessaros voassem no sentido noroeste acreditava-se que os deuses haviam concedido que determinado fato fosse realizado

Os estudos arqueoloacutegicos de Andrea Carandini demonstram que a Roma pri-mitiva entre os anos de 900 aC e 650 aC situa-se basicamente em uma regiatildeo quadrada que tem por limite a Curiae Veteres a Porta Romanula o Sacelum Martis et Opis e a Ara Consi regiatildeo denominada pelo arqueoacutelogo de ldquoRoma Quadratardquo Entre os anos de 750 aC e 650 aC ao lado da ruacutestica habitaccedilatildeo de Rocircmulo estava situado o sacellum ldquopequeno santuaacuteriordquo de Marte e de Ops As duas construccedilotildees foram instala-das onde anteriormente entre os anos de 900 aC e 750 aC havia uma uacutenica e mais ampla construccedilatildeo que seria o correspondente arqueoloacutegico do tugurium ldquohabitaccedilatildeo choupanardquo de Acca Larentia e de Faustulus pastor que encontrou e criou Rocircmulo e Remo O segundo templo romano construiacutedo ficava no lado ocidental do monte Palati-no segundo Carandini (2007 p44)

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Primeiramente Rocircmulo definiu os limites entre os montes propiacutecios para a observaccedilatildeo dos auguacuterios os quais foram observados em primeiro momento na sua su-bida ao monte Aventino para ser escolhido rei ou fundador da cidade Somente em um segundo momento em que a ldquoRoma Quadratardquo comeccedilava a ser habitada e consagrada aos deuses com a construccedilatildeo de templos o Palatino teve o seu templo igualando-se aos demais montes da urbs que estava em processo de fundaccedilatildeo

Para cumprir o ritual de fundaccedilatildeo da urbs Rocircmulo se dirige ao noroeste do monte Palatino onde estava localizado o santuaacuterio de Acca Larentia em posiccedilatildeo inversa na ldquoRoma Quadratardquo de Alba Longa situada no acircngulo oposto Andrea Carandini (2007 p49) afirma que no rito de fundaccedilatildeo da cidade Rocircmulo se vestia agrave maneira dos habitantes do Gaacutebio cinctus Gabinus

Aqui o rei trajando uma toga agrave maneira dos Gaacutebios que lhe cobria a cabeccedila (cinctus Gabinus) daacute iniacutecio ao rito etrusco de sulcus primigenius apenas aprendido com os sacerdotes etrus-cos convocados 13

Como estes tivessem comeccedilado a magistratura logo depois do interregno natildeo consultaram o Senado sobre nada antes que consultassem sobre as coisas religiosas Primeiramente foram procurados cuidadosamente tratados de paz e leis ndash poreacutem ha-via aquelas Doze Taacutebuas e algumas leis reacutegias ndash que ordenaram ser recolhidas e que estabeleceram outras ordens daquelas em direccedilatildeo ao povo as que poreacutem referiam-se agraves coisas sagradas foram suprimidas sobretudo pelos pontiacutefices a fim de que os acircnimos das pessoas estivessem fortemente presos agrave religiatildeo (Ab Vrbe Condita VI 9-10) 14

No rito aprendido com os etruscos Rocircmulo realiza o sulcus primigenius ao redor dos limites da urbs que estava sendo fundada usava um julgum ldquoaradordquo de bronze puxado por uma vaca e por um touro

Os estudos arqueoloacutegicos vecircm auxiliar na tentativa de resgate dos costumes religiosos dos romanos primitivos poreacutem a insuficiecircncia de documentos escritos a obscuridade de informaccedilotildees a distacircncia temporal entre os cultos mais antigos e o autor que primeiramente os tenha comentado e o sigilo de algumas praacuteticas religiosas dificultam uma descriccedilatildeo objetiva da religiatildeo arcaica romana

Tito Liacutevio (50 aC - 17 dC) comentara a dificuldade em explicitar muitos fatos histoacutericos e tambeacutem religiosos jaacute que vaacuterios documentos e comentaacuterios de pontiacutefices que poderiam conduzir a muitos esclarecimentos haviam sido destruiacutedos antes mesmo que autor tivesse podido consultaacute-los quando escrevia entre 27 e 25 aC sua obra Ab Vrbe Condita sobre a histoacuteria romana como se observa em

13 Qui Il re indossata una toga alla maniera di Gabii che gli copriva Il capo (cinctus Gabinus) dagrave inizio al rito etrusco de sulcus primigenius appena appreso dai sacerdoti etruschi convocati

14 Hi ex interregno cum extemplo magistratum inissent nulla de re prius quam de religionibus senatum consuluere in primis foedera ac leges - erant autem eae duodecim tabulae et quaedam regiae leges - conquiri quae comparerent ius-serunt alia ex eis edita etiam in uolgus quae autem ad sacra pertinebant a pontificibus maxime ut religione obstrictos haberent multitudinis animos suppressa

A perda de manuscritos ocasionou inuacutemeras lacunas para o estudo da religiatildeo arcaica romana poreacutem como assinala Tito Liacutevio muitas informaccedilotildees foram propositalmente ocultadas com o objetivo de manipular a populaccedilatildeo impelindo no povo certo receio em relaccedilatildeo aos cultos religiosos

Pode-se afirmar certamente que a palavra religiatildeo religio para os romanos possui caraacuteter bastante especiacutefico pois determina obrigaccedilotildees que devem ser cumpridas em relaccedilatildeo aos deuses Impelir esse sentimento na populaccedilatildeo garante aos governantes um meio poderoso de conseguir manipulaacute-la jaacute que os ritos religiosos natildeo tinham sido estabelecidos por um profeta ou por um poeta como havia acontecido com os gregos mas pelos chefes do estado romano

As palavras de Tito Liacutevio satildeo de suma importacircncia para o entendimento da manipulaccedilatildeo informativa elas tornam-se mais claras em nulla de re prius quam de religionibus senatum consuluere ldquonatildeo consultaram o Senado sobre nada antes que consultassem sobre as coisas religiosasrdquo que mostram dois momentos distintos acerca do saber religioso pois indica que aqueles que natildeo faziam parte da magistratura ou que natildeo ocupavam altos cargos religiosos natildeo tinham acesso a que realmente se referem os cultos

Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e Marco Fuacuterio Camilo parecem segundo o texto que natildeo tinham acesso a informaccedilotildees importantes sobre o funcionamento da religiatildeo por isso buscam no iniacutecio de sua magistratura magistratum inissent verificar primeiramente as coisas religiosas consuluere de religionibus e apenas posteriormente consultar o estado senatum consuluere sobre as decisotildees que deveriam ser tomadas por eles

A busca de ambos os magistrados conduz agrave descoberta de leis reacutegias e das Doze Taacutebuas que no texto natildeo fica claro se jaacute tinham sido organizadas erant autem eae duodecim tabulae et quaedam regiae leges ldquoporeacutem havia aquelas Doze Taacutebuas e algumas leis reacutegiasrdquo Essas leis foram ordenadas poreacutem o verbo usado por Tito Liacutevio pode conduzir a outras possibilidades de entedimento conquiro pode significar ldquoprocurar com empenho ou cuidadosamente ajuntar reunirrdquo tanto conduz agrave ideia de que as leis jaacute tinham sido ordenadas em um uacutenico documento quanto agrave ideia de que foram retiradas de vaacuterios documentos e ordenadas pelos magistrados

A maior relevacircncia para os estudos sobre a religiatildeo se apresenta em quae autem ad sacra pertinebant a pontificibus maxime ut religione obstrictos haberent multitudinis animos suppressa ldquoas que poreacutem referiam-se agraves coisas sagradas foram suprimidas sobretudo pelos pontiacutefices a fim de que os acircnimos das pessoas estivessem fortemente presos agrave religiatildeordquo pois as verdadeiras referecircncias natildeo eram permitidas ao povo de um modo geral para que esse povo sempre fosse conduzido por uma religiatildeo que era de interesse basicamente das classes dominantes e que provavelmente detinham o verdadeiro significado dos cultos e ritos religiosos

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A construccedilatildeo usada por Tito Liacutevio apresenta caraacuteter bem particular e representativo que garante ao seu texto um valor criacutetico das praacuteticas dominantes O uso do particiacutepio do verbo supprimo em suppressa poderia ter um valor bem mais intriacutenseco jaacute que pode tambeacutem significar ldquoafundar enterrar fazendo pressatildeo fazer desaparecerrdquo o que demonstra a possibilidade de que muitos documentos ligados agraves origens da religiatildeo romana foram propositalmente apagados suprimidos ou mesmo enterrados sob forte pressatildeo principalmente daquelas classes que detinham o poder e queria preservaacute-lo com uso de conhecimentos religiosos que fossem de seu interesse direto

Mesmo com a manipulaccedilatildeo de informaccedilotildees relevantes sobre a religiatildeo seus cultos permaneceram e muitas vezes se confundiam com a vida cotidiana e com a proacutepria histoacuteria da civilizaccedilatildeo romana como Georges Dumeacutezil (2000 p31) observa

A religiatildeo eacute sempre em qualquer lugar coisa atual e ativa seus ritos satildeo diaacuteria ou anualmente celebrados seus conceitos e seus deuses intervecircm na rotina dos tempos calmos como no ardor dos tempos de crise 15

A religiatildeo modera os acircnimos durante todo tempo nas guerras nas atividades diaacuterias nos dias escolhidos para a colheita havia sempre a consulta a um especialista em religiatildeo um sacerdote que definia qual seria a melhor escolha em caso de uma decisatildeo difiacutecil em qualquer esfera da sociedade As informaccedilotildees que natildeo eram divulgadas ao povo em geral conduziram a religiatildeo a manter sua proacutepria loacutegica interna e de certo modo tambeacutem sua autonomia Apesar de fazer parte da vida cotidiana de todas as camadas da populaccedilatildeo tal preservaccedilatildeo natildeo expocircs a religiatildeo a muitos eventos profanos Por um lado a manutenccedilatildeo de informaccedilotildees sigilosas pelos sacerdotes e poucos membros do estado preservaram em sua essecircncia o verdadeiro sentido dos cultos religiosos por outro tal manutenccedilatildeo natildeo forneceu possibilidades ao povo de ter conhecimento sobre os ritos que tanto influenciavam o seu cotidiano jaacute que segundo os romanos os deuses intervinham tanto nos tempos de paz quanto nos tempos de guerra ou de crise de qualquer natureza

Os elementos religiosos eram tatildeo inerentes agrave vida romana que a medida de tempo que era utilizada e chegava a todos sem distinccedilatildeo de classes ou funccedilatildeo ocupada foi inicialmente baseada em aspectos religiosos pois os pontiacutefices confeccionaram o calendaacuterio tendo em vista a observaccedilatildeo da natureza Essa concepccedilatildeo temporal atingia a todos pois muita supersticcedilatildeo se vinculava tambeacutem agrave medida de tempo conforme aponta Dioniacutesio de Halicarnassus

15 La religion est toujours en tout lieu chose actuelle et active ses rites sont journellement ou annuellement ceacuteleacutebreacutes ses concepts et ses dieux interviennent dans la routine des temps calmes comme dans la fiegravevre des temps de crise 16 Τῇ νέᾳ σελήνῃ ἡ Ὲλληνες μέν νουμηνίαν Ρωμαῖοι δὲ καλάνδρας καλοῦσιν

Em relaccedilatildeo agrave lua nova que os Helenos chamam de primeiro dia do mecircs os Romanos chamam de Kalendas 16

(Antiquitates Romanae VIII 55)

A religiatildeo eacute sempre em qualquer lugar coisa atual e ativa seus ritos satildeo diaacuteria ou anualmente celebrados seus conceitos e seus deuses intervecircm na rotina dos tempos calmos como no ardor dos tempos de crise 15

O mesmo criou os dias nefastos e fastos porque algumas vezes era uacutetil nada vir a ser tratado com o povo 18 (Ab Vrbe Condita I 19 7)

18 Idem nefastos dies fastosque fecit quia aliquando nihil cum populo agi utile futurum erat

A relaccedilatildeo de observaccedilatildeo das fases da lua para a definiccedilatildeo e estabelecimento das partes que compotildeem o mecircs ou mais propriamente o mecircs lunar tem direta ligaccedilatildeo com o conhecimento da natureza e do movimento dos corpos celestes consequentemente da religiatildeo e dos cultos religiosos A lua era observada pelo pontiacutefice menor que determinava a sua primeira fase que os helenos chamavam de νουμηνίαν os romanos de καλίνδρας em latim Kalendae em seguida o rei determinava os resultados da observaccedilatildeo do pontiacutefice o povo era convocado e se estabelecia em quais dias se dariam as nonae e os idus Conforme afirma T Mommsen (sd p339)

Novamente se verifica a determinaccedilatildeo de todas as camadas sociais pela religiatildeo o pontiacutefice como observador e inteacuterprete dos fenocircmenos naturais e divinos o rei como representante maior do estado e que devia determinar o que havia sido verificado pelo representante religioso Por sua vez as determinaccedilotildees religiosas eram seguidas por todos os membros da sociedade sacerdotes reis camponeses soldados artesatildeos Diante de tais observaccedilotildees natildeo se poderia esquecer o culto aos deuses que possibilitavam o entendimento da natureza ou mesmo enviavam suas mensagens atraveacutes do membro responsaacutevel por estabelecer o elo entre o mundo terreno e o divino o pontiacutefice Sobre isso Tito Liacutevio afirma

Essas praacuteticas fazem parte da cultura romana desde os mais remotos tempos em que a religiatildeo o estado a histoacuteria e os mitos das lendas romanas estavam tatildeo intimamente ligados que dificilmente se conseguia delimitar quais eram suas aacutereas de atuaccedilatildeo especificamente Desde a Roma arcaica segundo Tito Liacutevio fatos histoacutericos se confundiram com os mitos e as faacutebulas criadas pelos poetas transmitidas ao longo dos tempos conforme se observa na lenda de Numa Pompiacutelio sucessor de Rocircmulo como rei de Roma Numa Pompiacutelio que primeiro estabelecera os dias denominados de fas ou seja ldquoaqueles em que haacute a expressatildeo da ordem divina ou aqueles em que algo eacute permitido pelos deusesrdquo dias em que segundo o direito o pretor tomava suas decisotildees judiciais usando de expressotildees como do dico addico ldquoconcedordquo ldquodigordquo ldquoconsintordquo por sua vez os dias denominados de nefas eram ldquoaqueles em que algo era contraacuterio agraves leis divinas agraves leis da religiatildeordquo dias em que havia o culto dos deuses infernais e que eram improacuteprios para os afazeres terrestres

Pode-se verificar a influecircncia desses dias criados por Numa Pompiacutelio nos quais natildeo se devia tratar de qualquer que fosse o assunto passar ao longo da histoacuteria Conforme atestam textos de escritores latinos mais recentes Oviacutedio (43 - 18 aC) e

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Varratildeo (116 - 27 aC) fazem referecircncia a eles em seus escritos

Dias fastos durante os quais eacute permitido aos pretores profeti-zar todas as palavras sem impiedade[] o contraacuterio destes satildeo chamados os dias nefastos durante os quais (natildeo eacute permitido) o pretor profetizar ldquoconcedordquo ldquodigordquo ldquoconsintordquo assim natildeo pode se dizer 19

(De Lingua Latina VI 4)

Aquele seraacute nefasto durante o qual as trecircs palavras se silenciam Seraacute fasto durante o qual eacute permitido ser dito 20

(Fasti I 46-7)

Em nenhum momento da histoacuteria noacutes lemos que um destes sacerdotes tenha sido encarregado de fazer a partir de tal data outra coisa senatildeo o que fazia desde o iniacutecio[] Hoje noacutes sabe-mos quanto eacute recente nossa tradiccedilatildeo sobre Roma Sim mas que importa se no uacuteltimo seacuteculo da Repuacuteblica os homens da arte repetiam ainda fielmente as palavras e os gestos dos tempos re-ais 21

19 Dies fasti per quos praetoribus omnia uerba sine piaculo licet fari[] Contrarii horum uocantur dies nefasti per quos dies nefas fari praetorem ldquodordquo ldquodicordquo ldquoaddicordquo itaque non potest agi 20 Ille nefastus erit per quem tria uerba silentur Fastus erit per quem licebit agi 21 A aucun moment de lrsquohistoire nous lisons qursquoun de ces precirctres ait eacuteteacute charge de faire agrave partir de telle date autre chose que ce qursquoil faisait depuis le deacutebut[] Aujourdrsquohui nous savons combien est reacutecent notre tradition sur Rome Oui mais qursquoimporte si au dernier siegravecle de la Reacutepublique les hommes de lrsquoart reacutepeacutetaient encore fidegravelement les mots et les gestes des temps royaux

Vale salientar que mesmo com o distanciamento das eacutepocas em que viveram o personagem histoacuterico referenciado por Tito Liacutevio neste caso Numa Pompiacutelio que seria o criador dos dias nefas e fas e os autores Varratildeo e Oviacutedio os conceitos atribuiacutedos a esses dias permaneceram devido a suas atribuiccedilotildees religiosas Tito Liacutevio se refere agrave invenccedilatildeo desses dias afirmando que eles foram criados ainda na Roma arcaica Uma explicaccedilatildeo plausiacutevel para isso eacute apresentada O autor afirma que apoacutes o reinado de Numa ele tratou de estabelecer tratados de paz com os povos vizinhos e para que eles natildeo fossem violados idem nefastos dies fastosque fecit objetivando impelir o temor dos deuses naqueles povos baacuterbaros e rudes

Apesar do distanciamento temporal de mais de cinco seacuteculos que separa os autores Tito Liacutevio e Oviacutedio dos atos religiosos da Roma arcaica Georges Dumeacutezil afirma que a perda de manuscrito do iniacutecio da civilizaccedilatildeo romana e a ausecircncia de fontes informativas seguras que datem dos primoacuterdios da civilizaccedilatildeo romana natildeo satildeo fatores determinantes que conduzam a natildeo compreensatildeo da religiatildeo durante a Monarquia romana Para Dumeacutezil (2000 p 98-103)

Se os sacerdotes desde os primoacuterdios estiveram encarregados das mesmas funccedilotildees que sempre exerceram desde o iniacutecio da religiatildeo romana natildeo se mostra problemaacutetico o uso de textos de autores do seacutec I aC ou mesmo de eacutepocas mais

Varratildeo diz tambeacutem que os antigos romanos tecircm cultuado os deuses sem simulacros mais de cento e setenta ano 22 (De Ciui-tate Dei IV 31)

22 (Varro) dicit etiam antiquos Romanos plus annos centum e septuaginta deos sine simulacro coluisse

recentes como os escritos de Santo Agostinho acerca das caracteriacutesticas dos ritos religiosos romanos Mesmo que seja recente nossa tradiccedilatildeo sobre a religiatildeo romana se as palavras e gestos usados durante os cultos se conservaram esses autores da nossa recente tradiccedilatildeo devem ser considerados autoridades pois satildeo as uacutenicas fontes conservadas das eacutepocas mais remotas

Na Roma arcaica e em outras sociedades estabelecer as relaccedilotildees sociais e de bom conviacutevio entre os cidadatildeos de uma mesma cidade ou mesmo de povos vizinhos pode ser considerada uma funccedilatildeo baacutesica atribuiacuteda agrave religiatildeo mesmo que certos contratos sociais de civilidade sejam estabelecidos atraveacutes da supersticcedilatildeo religiosa e do medo associado a essas praacuteticas

Nos primeiros seacuteculos da histoacuteria romana o culto aos deuses era proveniente de uma evoluccedilatildeo consciente que fixava as leis e os caracteres recebidos dos primeiros reis nessa eacutepoca o culto romano diferia do praticado pelos gregos jaacute que os romanos natildeo representavam os deuses por meio de estaacutetuas ou simulacros Satildeo quase dois seacuteculos para que os romanos comeccedilassem a representar os seus deuses agrave semelhanccedila dos gregos isto eacute por meio de suas imagens conforme as palavras de Varratildeo apud Santo Agostinho

Partindo do princiacutepio de que os deuses na Roma arcaica natildeo satildeo representados por simulacros coluisse sine simulacro ldquotecircm cultuado os deuses sem simulacrosrdquo podem ser estabelecidas as devidas comparaccedilotildees com a religiatildeo grega pois partem de princiacutepios evolutivos semelhantes Como se pode observar na Teogonia de Hesiacuteodo (v 116-122) os gregos natildeo costumavam apresentar os deuses primordiais Caos Terra Taacutertaro e Eros personificados diferentemente do que acontecia com os demais deuses principalmente com aqueles que se destacaram apoacutes a organizaccedilatildeo do cosmos por Zeus

Desse modo pode-se observar um princiacutepio de semelhanccedila entre as duas culturas Somente apoacutes a estruturaccedilatildeo do cosmos mesmo considerando as referecircncias poeacuteticas os deuses passam a ser representados semelhantemente aos seres humanos uma vez que a forma humana era entendida como mais desenvolvida e completa em se estabelecendo as devidas comparaccedilotildees com os animais desprovidos de razatildeo

Partindo de tal princiacutepio e de tal semelhanccedila a religiatildeo romana parece seguir os mesmos passos da grega pois os deuses inicialmente natildeo eram personificados eram entendidos como forccedilas naturais Somente com a evoluccedilatildeo religiosa e o contato com a cultura grega houve a necessidade de representaacute-los em formas mais concretas personificados

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Apesar de o momento a que se refere Santo Agostinho cronologicamente estar bastante distante do mito explicativo da origem e organizaccedilatildeo coacutesmica sugerido por Hesiacuteodo o seu caraacuteter evolutivo eacute bastante semelhante Os romanos aproximadamente entre os primeiros anos de monarquia 753 aC e 583 aC natildeo representaram seus deuses personificados e os gregos segundo a explicaccedilatildeo miacutetica de Hesiacuteodo tambeacutem natildeo personificavam os seus deuses primordiais Essa comparaccedilatildeo conduz a uma forma mais ruacutestica do princiacutepio religioso em que haacute apenas a associaccedilatildeo dos deuses com as forccedilas primitivas da natureza ou seja as divindades eram apenas abstraccedilotildees sem uma representaccedilatildeo fiacutesica nem mesmo havia a associaccedilatildeo divina com a forma humana que seria considerada a mais bela e perfeita das formas e que conduziria a grandes desavenccedilas filosoacuteficas durante o seacuteculo I aC em Roma A representaccedilatildeo primitiva de certa forma em seu mais alto grau de abstraccedilatildeo garantia aos cultos dos deuses mais pureza representativa

A respeito de tal ausecircncia de representaccedilatildeo divina Georges Dumeacutezil (2000 p 44-45) faz indagaccedilotildees

Por que os primeiros romanos natildeo representavam Marte nem mesmo outros deuses Seguindo Varratildeo percebemos eacute apenas falta de maturidade artiacutestica () por reverecircncia pelo sentimen-to de que toda representaccedilatildeo e tambeacutem todo ldquoencerramento em um templordquo seria um aprisionamento Pode ser enfim por eles natildeo sentirem necessidade natildeo eacute necessaacuterio colocar como equi-valecircncias necessaacuterias e reciacuteprocas ldquopersonalidade = contornordquo ldquoantropomorfismo = figuraccedilatildeordquo 23

23 ldquoPourquoi les premiers Romains ne figuraient-ils pas Mars ni drsquoailleurs drsquoautres dieux Suivant Varron on lrsquoa vu crsquoest seulement faute de maturiteacute artistique () par reacuteveacuterence par le sentiment que tout repreacutesentation et aussi toute ldquomise en templerdquo serait un emprisonnement Ce peut ecirctre enfin parce qursquoils nrsquoen eacuteprouvaient pas le besoin il ne faut pas poser comme des eacutequivalences neacutecessaires et reacuteciproques ldquopersonnaliteacute = contourrdquo ldquoantropomorphisme = figurationrdquo

Seria pouco plausiacutevel considerar apenas a afirmaccedilatildeo de que a ausecircncia de representaccedilatildeo artiacutestica das coisas divinas era falta de maturidade no acircmbito da arte evidentemente que natildeo permaneceram muitos artefatos que a pudessem comprovar apenas alguns bastante ruacutesticos poreacutem eacute mais aceitaacutevel a segunda afirmaccedilatildeo de que toda representaccedilatildeo artiacutestica seria um aprisionamento fato que corrobora as palavras de Varratildeo a religiatildeo romana arcaica estava mais preocupada com a natureza e com o entendimento de seus elementos do que com a mera representaccedilatildeo em simulacros de suas forccedilas naturais de seus deuses Isso demonstra que a observaccedilatildeo da natureza pelos antigos era acentuada e revela modificaccedilotildees religiosas no decorrer da histoacuteria romana a partir do momento em que os deuses passam a ser representados por iacutecones que se assemelham agrave figura humana ou mesmo agrave figura de animais

Com as representaccedilotildees que aconteceriam apoacutes os dois primeiros seacuteculos da histoacuteria romana os deuses deixam de ter caraacuteter meramente abstrato e o distanciamento entre deuses e seres humanos diminui garantindo aqueles por meio de seus simulacros teor mais concreto Por um lado tornavam-se menos abstratos os cultos religiosos jaacute que as forccedilas naturais e seus representantes passaram a ser vistos

24 Sacrorum autem ipsorum diligentiam difficilem apparatum perfacilem esse uoluit nam quae perdiscenda quaeque obseruanda essent multa constituit sed ea sine impensa

em forma de simulacros por outro lado os deuses passaram a fazer parte do cotidiano dos romanos estavam mais proacuteximos e por isso segundo as crenccedilas populares tambeacutem passaram a agir como os seres humanos sentiam oacutedio amor rancor medo e todos os demais sentimentos tiacutepicos da humanidade Nesse momento os deuses passaram a se relacionar com os humanos em atos de tamanha intimidade que geraram vaacuterios semideuses filhos de deuses com humanos

Apesar dos primitivismos religiosos da eacutepoca arcaica romana e de suas concepccedilotildees que se distanciavam daquelas presentes em Roma no seacutec I aC os ritos religiosos primitivos eram bastante complexos apenas os instrumentos usados neles eram simples fato que reforccedila a afirmaccedilatildeo de Georges Dumeacutezil a respeito da falta de maturidade artiacutestica dos romanos Ciacutecero afirma a respeito dos ritos religiosos na Roma arcaica

Poreacutem das proacuteprias coisas sagradas decidiu que a aplicaccedilatildeo fos-se difiacutecil o instrumento fosse muito simples pois aquelas coisas devem ser aprendidas por inteiro cada uma deve ser observada instituiu muitas coisas mas aquelas sem instrumentos 24 (De Re Publica II 14 27)

A afirmaccedilatildeo de Ciacutecero reforccedila o pensamento de Georges Dumeacutezil de que a arte na Roma arcaica era precaacuteria sem grandes representaccedilotildees de instrumentos muito simples apparatum perfacilem poreacutem os cultos eram muito complexos de difiacutecil aplicaccedilatildeo diligentiam difficilem fatores que garantiam aos sacerdotes a completa manipulaccedilatildeo dos ritos religiosos e tambeacutem a preservaccedilatildeo dos ideais dos reis jaacute que nesse momento religiatildeo e estado estavam intimamente ligados na conservaccedilatildeo tanto dos ritos religiosos quanto na manipulaccedilatildeo do povo que natildeo tinha acesso ao manuseio dos cultos

Eacute importante observar que os cultos na Roma arcaica natildeo reverenciavam ou invocavam apenas um uacutenico deus em cada ritual era comum a reverecircncia e a invocaccedilatildeo coletiva dos deuses por parte dos sacerdotes quer fosse um ritual de prece quer fosse de sacrifiacutecio aos deuses Ato semelhante eacute realizado por Virgiacutelio (70 ndash 19 aC) apesar de ser um poeta do seacutec I aC no proecircmio de seu poema Geoacutergicas apoacutes fazer a dedicatoacuteria a Mecenas e anunciar os temas que seratildeo abordados pelo poema O poeta realiza entre os versos 1 e 42 a invocaccedilatildeo dos deuses do ceacuteu da terra e do mar que protegem os pastores e os camponeses respectivamente Liber e Ceres (v7) Acheloias (v9) Neptunus (v14) Minerua (v18) Siluanus (v20) e Tethys (v31)

O ato de invocaccedilatildeo coletiva de Virgiacutelio muito tem de semelhante com as praacuteticas religiosas do periacuteodo arcaico romano o problema maior eacute aquele a que se refere Ciacutecero diligentiam difficilem pois pouco se sabe sobre os rituais profanos da Antiguidade haja vista que a maior parte dos manuscritos natildeo se conservou e muitas das inferecircncias satildeo

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feitas por analogia com os rituais realizados no periacuteodo claacutessico romano

T Mommsen menciona uma lista com doze deuses que estatildeo associados agrave simples personificaccedilatildeo dos atos realizados pelos homens e que raramente satildeo citados pelos escritores do periacuteodo claacutessico Esses deuses revelam certo grau de primitivismo da religiatildeo romana arcaica em que se tentava compreender a natureza e suas forccedilas sem preocupaccedilatildeo com sua representaccedilatildeo por meio de simulacros Segundo T Mommsen (sd p11)

Estes satildeo Veruactor para o primeiro trabalho dado ao terreno Redarator para o segundo trabalho Imporcitor para percorrer o traccedilo do arado Insitor para fazer a semeadura Arator para o novo trabalho Occator para o cultivo Sarritor para cavar com a enxada Subruncinator para livrar o cultivo de maacutes ervas Mes-sor para a colheita Conuector para juntar a colheita Conditor para reintroduzi-la Promitor para retiraacute-la do celeiro 25

Esses deuses reafirma T Mommsen seriam a simples personificaccedilatildeo dos atos que eles representavam e estavam tatildeo presentes na mente romana arcaica que posteriormente passaram a nomear os profissionais responsaacuteveis por seu desempenho e natildeo as divindades Redarator passou a ser o camponecircs que arava novamente o campo arator o lavrador occator o gradador sarritor o sachador messor o que colhe os frutos conditor o que faz algo promitor o que faz brotar Era a accedilatildeo praticada pelos camponeses que os nomeava accedilatildeo em primeiro lugar atribuiacuteda aos deuses apenas realizadas com sua concessatildeo mas que posteriormente passou a nomear o proacuteprio ato realizado ganhando conotaccedilatildeo mais humana e se distanciando da divina

O distanciamento e as novas atribuiccedilotildees das palavras podem estar associados agraves novas concepccedilotildees religiosas desenvolvidas pelos romanos a partir da instituiccedilatildeo da Repuacuteblica entre 507 e 27 aC periacuteodo em que os deuses jaacute seriam representados por simulacros e em que a cultura romana sofreu bastante influecircncia da grega Se houve a desvinculaccedilatildeo dessas palavras da forccedila divina haveria a necessidade de que existisse a invenccedilatildeo ou substituiccedilatildeo dessas forccedilas entatildeo os deuses ganharam novas e mais concretas representaccedilotildees muitos deles por exemplo que estavam ligados ao cultivo da terra foram substituiacutedos ou associados a Ceres

Na Roma arcaica aleacutem dos deuses que se associavam agraves atividades com a terra havia muitos outros deuses que os romanos acreditavam estarem ligados agraves mais diversas atividades ou fases da vida humana Servindo-se dos poucos textos conservados T Mommsen classifica esses deuses ligando-os agraves diversas fases da vida em sete grupos A partir dos comentaacuterios de autores do periacuteodo claacutessico podem-se

25 ldquoCe sont Veruactor pour le premier labour donneacute agrave la friche Redarator pour le deuxiegraveme labor Imporcitor pour traverser les sillons Insitor pour faire les semailles Abarator pour le nouveau labour Occator pour le hersage Sarritor pour houer Subruncinator pour le sarclage Messor pour la moisson Conuector pour rassembler la reacutecolte Conditor pour la rentrer Promitor pour la retirer des greniersrdquo

estabelecer comparaccedilotildees a fim de se ter uma ideia de qual seria o pensamento dos romanos arcaicos sobre as forccedilas da natureza e as atribuiccedilotildees dos deuses na Antiguidade

O primeiro grupo eacute o dos deuses que se relacionam com o desenvolvimento do homem desde a sua concepccedilatildeo ateacute o seu nascimento Janus Consiuius Saturnus Liber et Libera Fluonia Alimonia Nona Decima Partula Vitumnus Sentinus O segundo grupo eacute o dos deuses que concedem o nascimento Juno Lucina et Diespiter que permitem o nascimento da crianccedila Candelifera que conduz a vela ateacute o parto Carmentes Prorsa et Postuerta Egeria Numeria O terceiro satildeo as divindades invocadas apoacutes o nascimento Intercidona Deuerra Pilumnus Picumnus Opis Deus Vagitanus Cunina Rumina Nundina Geneta Mana que protege contra a morte aqueles que nascem em casa Fata Scribunda que fixam o destino do nascido O quarto grupo eacute o dos deuses da primeira infacircncia Potina et Educa que ensinam a crianccedila a comer e a beber Cuba que protege a crianccedila transportada da cama Ossipago Carna que fortalece a pele Leuana que apoia sobre a terra Statanus Statilinus Statina que ensina a crianccedila a ficar em peacute Abeona et Adeona que ensinam seus primeiros passos Farinus et Fabulinus que ensinam a falar O quinto grupo eacute composto pelos deuses da adolescecircncia Iterduca et Domiduca que acompanham os adolescentes quando eles saem Mens Deus Catius pater Consus et Sentia que lhes datildeo inteligecircncia Diuus Volumna Diua Volumna aut Voleta Stimula Diua Peta que lhes datildeo a vontade Praestana aut Praestitia Pollentia Agonius Peragenor Agenoria Strenia que lhes datildeo forccedila Numeria et Camena que lhes ensinam a contar e a cantar Minerua que fortalece sua memoacuteria Pauentia aut Pauentina que afasta o medo Venilia que lhes daacute esperanccedila Volupia Lubentina aut Lubia et Liburnus que procuram as alegrias da juventude Juuentas et Fortuna barbata que protegem os adultos O sexto grupo eacute dos deuses do casamento Juno iuga Deus Jugatinus Domiducus Domitius Manturna Unxia Cinxia Virginiensis dea Mutunus Tutunus O seacutetimo grupo eacute composto pelas divindades protetoras das diversas fases da vida Tutanus et Tutilina que satildeo invocados em momentos de afliccedilatildeo Viriplaca que reconcilia os esposos Orbona a quem os oacuterfatildeos fazem suas preces Caeculus o deus dos cegos Viduus que separa a alma do corpo e a quem se implora quando se estaacute em situaccedilatildeo que pode levar agrave morte Libitina et Nenia que satildeo as deusas da morte

T Mommsen organiza os deuses seguindo o ciclo da vida humana desde a sua concepccedilatildeo ateacute a morte aleacutem disso muitas palavras que eram usadas pelos romanos para nomeaacute-los tinham significado intriacutenseco com a accedilatildeo desempenhada pelo deus Diespiter eacute composto de dies ldquodiardquo acrescido de piter gt pater ldquopairdquo o que concede a luz do dia ou seja o nascimento Candelifera composto de candela ldquovelardquo acrescido de fero ldquoconduzir levarrdquo isto eacute a que ilumina para o nascimento Fata Scribunda composto de fata lt fatum ldquodestinordquo acrescido de scribunda lt scribo ldquomarcar assinalarrdquo ou seja a que assinala o destino Abeona composto de ab preposiccedilatildeo que indica afastamento acrescido de eo ldquoir andarrdquo ou seja o oposto de Adeona pois uma ensina o caminho de ida e a outra o de volta Iterduca composto de iter ldquocaminhordquo acrescido de duco ldquolevar conduzirrdquo juntamente com Domiduca composto de domus ldquocasardquo acrescido de duco ensinam o caminho de volta para a casa

Essa ligaccedilatildeo da accedilatildeo com a palavra atribuiacuteda ao deus pode ser considerada

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um dos fatores que fazia com que os romanos arcaicos natildeo representassem as suas divindades por meios fiacutesicos pois consideravam a accedilatildeo divina bem mais ampla do que sua mera representaccedilatildeo garantindo ao deus um campo de atuaccedilatildeo que natildeo se restringia apenas ao templo ou agrave cidade em que estivesse inserido como se acreditava no Periacuteodo Claacutessico

Havia vaacuterios deuses associados agraves mais diversas atividades da vida humana divindades arcaicas que satildeo pouco mencionadas no seacutec I aC ou que caiacuteram no completo esquecimento dos romanos T Mommsen se refere a alguns Tutanus e Tutilina que satildeo invocados em momentos de afliccedilatildeo Viriplaca que reconcilia os casais Caeculus que eacute o deus dos cegos Viduus que separa a alma do corpo a quem se implora quando haacute proximidade da morte Libitina e Nenia que satildeo as deusas da morte

Com a economia basicamente baseada na atividade agriacutecola natildeo seria de se admirar que houvesse um grande nuacutemero de deuses protetores da terra e de seu cultivo geralmente comeccedilado por Janus Os deuses vinculados agrave agricultura desempenhavam funccedilotildees bem especiacuteficas Sator era o deus da plantaccedilatildeo Seia deusa da terra semeada Segeia deusa das plantaccedilotildees Proserpina deusa das plantas germinadas Nodutus estabelecia a germinaccedilatildeo Volutina estabelecia a precipitaccedilatildeo das vagens Patelana fazia aparecer as vagens e brotar as espigas Hostilina fazia crescer os novos frutos Flora deusa das pradarias que fazia florescer os gratildeos Lactans que vertia os frutos e os fazia se esconder Lacturnus que protegia os trigos receacutem-gerados Matuta que os tornava maduros Rucina que os sachava e os tirava da terra Messia deusa da colheita Terensis que protegia os frutos debulhados Picumnus Pilumnus Stercutius Sterquilinius Spiniensis que erradicavam as dificuldades

Assim como o campo e as atividades desenvolvidas nele as partes das casas romanas e os ambientes puacuteblicos tambeacutem tinham suas divindades especiacuteficas que garantiam a proteccedilatildeo dos lugares S Agostinho afirma

Esses estabeleceram trecircs deuses Forculus para as portas da casa Cardea para o eixo Limentius para a soleira da porta Assim natildeo poderia ao mesmo tempo Forculus guardar o eixo da porta e a soleira da porta 26

(De Ciuitate Dei IV 8)

26 Tres deos isti posuerunt Forculum foribus Cardeam cardini Limentium limini Ita non poterat Forculus simul et cardinem limenque seruare

As palavras de Santo Agostinho exemplificam bem o sentimento religioso do romano arcaico que atribuiacutea funccedilotildees especiacuteficas a cada divindade apesar de Forculus Cardea e Limentius terem a mesma funccedilatildeo ou seja garantir a proteccedilatildeo da casa essa proteccedilatildeo estava vinculada apenas a partes bastante especiacuteficas o que garantia a preservaccedilatildeo na memoacuteria da populaccedilatildeo a respeito da existecircncia de muitos deuses fato que com a evoluccedilatildeo da civilizaccedilatildeo e da religiatildeo romanas gradativamente vai se perdendo fazendo com que muitos desses deuses fossem esquecidos Assim natildeo seria inexplicaacutevel a diminuiccedilatildeo no nuacutemero de deuses entre os romanos pois muitas vezes

houve a associaccedilatildeo dessa multiplicidade de deuses e de suas funccedilotildees a uma uacutenica divindade que por sua vez prevaleceu sobre as demais e manteve a preservaccedilatildeo de sua memoacuteria entre os romanos

Os espaccedilos que rodeavam as casas e muitos objetos tambeacutem estavam sob a proteccedilatildeo dos deuses Rusina protegia o campo rus Jugatinus protegia o jugo que atrelava os cavalos juga Collatina protegia as colinas colles Vallonia guardava os vales ualles Alguns garantiam a preservaccedilatildeo de localidades especiacuteficas como o monte Vaticano Vaticanus mons que era guardado por Vaticanus e o monte Aventino Auentinus mons que era protegido por Auentinus

Haacute de se observar que os primitivos romanos por vezes confundiam os dons divinos com os proacuteprios deuses o que conduz ao pensamento de que quando eles natildeo descobriam os nomes dos deuses que atuavam em determinada situaccedilatildeo atribuiacuteam-lhes o proacuteprio nome das coisas tal atribuiccedilatildeo geralmente se dava atraveacutes do processo de derivaccedilatildeo das palavras conforme se verifica em Bellona lt bellum (guerra) Cunina lt cuna (berccedilo) Segetia lt seges (seara) Bubona lt bos (boi) Pomona lt poma (fruto)

As palavras que nomeiam todos esses deuses assim como muitos daqueles que garantiam o desenvolvimento da crianccedila e a conduziam ateacute a fase adulta possuem o mesmo radical dos lugares ou dos objetos nomeados Entende-se entatildeo que a religiosidade romana arcaica natildeo estava delimitada apenas a alguns locais especiacuteficos em que se realizavam os cultos tambeacutem natildeo se restringia a alguns instrumentos usados nos ritos religiosos fato que pode explicar a utilizaccedilatildeo da mesma raiz da palavra atribuiacuteda agrave divindade ao lugar e ao objeto protegido pelo deus Rusina e rus Jugatinus e juga Collatina e colles Vallonia e ualles os respectivos homocircnimos Vaticanus mons e Vaticanus Auentinus mons e Auentinus

Tambeacutem atribuiacuteam sem qualquer alteraccedilatildeo da palavra o nome da coisa agraves seguintes divindades Pecunia deusa que concedia os bens (pecunia) Virtus deusa que concedia a virtude (uirtus) Honor deusa que dava a honra (honor) Concordia deusa que permitia a concoacuterdia (concordia) Victoria deusa que concedia a vitoacuteria (uictoria) Verifica-se assim tamanha confusatildeo em se fazer a distinccedilatildeo entre a divindade e o dom por ela concedido como afirma S Agostinho

Assim dizem quando se diz que a Felicidade eacute uma deusa natildeo eacute a proacutepria felicidade que eacute concedida mas aquela divindade por quem a felicidade eacute concedida 27 (De Ciuitate Dei IV 24)

27 Ita inquiunt cum Felicitas dea dicitur non ipsa quae datur sed numen illud adtenditur a quo felicitas datur

Assim divindade e atribuiccedilatildeo divina eram constantemente confundidas sem que houvesse clareza distintiva entre o ser e a accedilatildeo produzida Isto promovia na Roma arcaica certamente dois aspectos distintos em primeiro lugar a preservaccedilatildeo da pureza do culto devido agrave ausecircncia da representaccedilatildeo das divindades por meio de simulacros

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em segundo lugar uma possiacutevel confusatildeo generalizada entre os deuses e os dons por eles concedidos

Apesar da existecircncia de muitos deuses com funccedilotildees particulares as suacuteplicas lhes eram atribuiacutedas com especificidade e indicaccedilatildeo de seus poderes o que segundo as crenccedilas romanas garantia a atenccedilatildeo por parte da divindade invocada Se natildeo houvesse certeza sobre qual deus se deveria invocar para a realizaccedilatildeo de determinada accedilatildeo fazia-se uso de uma foacutermula geral conforme atesta Seacutervio

Juacutepiter todo poderoso ou por qual outro nome desejares ser chamado 28 (Ad Aeneidem VI 166)

Essa invocaccedilatildeo generalizada pode ser considerada uma das causas do desaparecimento na tradiccedilatildeo romana sobretudo no periacuteodo claacutessico da literatura romana de muitas divindades que faziam parte da cultura arcaica poreacutem soacute com o advento da Repuacuteblica entre 507 a C e 27 aC a figura de Juacutepiter passa a se destacar atraveacutes do uso da expressatildeo invocatoacuteria Iupiter omnipotens atribuindo a este deus uma espeacutecie de incorporaccedilatildeo de muitos outros que foram paulatinamente esquecidos

Tal fato fez com que a figura de Juacutepiter se sobressaiacutesse em relaccedilatildeo agrave figura de Jano sobretudo posteriormente quando a literatura latina passou a sofrer influecircncia da grega em que a figura de Ζεύς Πατήρ (piter) era constantemente exaltada venerada nomeada por Hesiacuteodo como ldquopai dos deuses e dos homensrdquo devido a seus feitos em relaccedilatildeo agrave organizaccedilatildeo do Cosmos e seus atributos guerreiros aleacutem de ser o deus disseminador o que espalha o secircmen Por isso Vergiacutelio faz uso de expressotildees como diuum pater atque hominum rex ldquopai dos deuses e rei dos homensrdquo hominum sator atque deorum ldquosemeador dos homens e dos deusesrdquo pater summus ldquosumo pairdquo pater omnipotens ldquopai onipotenterdquo e Iupiter omnipotens ldquoJuacutepiter onipotenterdquo que seriam meras traduccedilotildees das expressotildees usadas por Hesiacuteodo

Por outro lado a unificaccedilatildeo de vaacuterias divindades na figura de Juacutepiter fazia com que ele fosse invocado por uma multiplicidade de epiacutetetos em diferentes lugares da Roma arcaica Conforme verifica T Mommsen (sd p27) havia um Iupiter Libertas um Iupiter Iuuentus um Iupiter Fulgur um Iupiter Pecunia um Iupiter Lapis um Iupiter Liber Certamente esses qualificativos atribuiacutedos a Juacutepiter estavam associados agrave sua capacidade no desempenho de vaacuterias funccedilotildees Primeiramente era uma forma de especificar o seu poder de realizaccedilatildeo verificado no adjetivo omnipotens observado por Seacutervio em segundo lugar determinava as funccedilotildees que anteriormente eram realizadas por outras divindades arcaicas

Apuleio menciona alguns dos qualificativos de Juacutepiter garantindo ao deus uma infinidade de funccedilotildees naturais e guerreiras

28 Jupiter omnipotens uel quo alio nomine appellari uolueris

29 Fulgurator et Tonitrualis et Fulminator etiam Imbricitor et item Serenator et plures eum Frugiferum uocant multi urbis Custodem alii Hospitalem Amicalem et omnium officiorum nominibus appellant Est Militaris et Triumphator et Propagator Tropaeophorus 30 Dixerunt eum Victorem Inuictum Opitulum Inpulsorem Statorem Centumpedam Supinalem Tigillum Almum Ruminum et alia quae persequi longum est 31 Saliorum quoque antiquissimis carminibus deorum deus canitur[] patrem inuocamus quasi deorum deum

Fulgurator tanto Tonitrualis quanto Fulminator tambeacutem Im-bricitor e aleacutem disso Serenator muitos tambeacutem o chamam de Frugiferum muitos o chamam de Protetor da cidade outros de Hospitaleiro de Amigaacutevel e por muitos nomes de todos os ofiacute-cios Eacute Guerreiro tanto Triunfador quanto Conquistador Vence-dor 29 (De Mundo XXXVII)

Chamaram-no Victor Inuictus Opitulus Inpulsor Stator Cen-tumpedam Supinalis Tigillus Almus Ruminus e outros nomes que eacute longo de se prosseguir 30 (De Ciuitate Dei VII 11)

O deus dos deuses eacute cantado tambeacutem nos antiquiacutessimos cantos dos Saacutelios [] Invocamos o deus como se fosse o pai dosdeuses 31 (Saturnais I 9 14 I 9 16)

A respeito dos nomes recebidos por Juacutepiter S Agostinho comenta que o deus era em si mesmo um conjunto de vaacuterios deuses devido aos muacuteltiplos poderes a ele associados

Essa infinidade de qualificativos fazia com que o deus certamente fosse lembrado constantemente por seus feitos grandiosos e por seus atributos que poderiam beneficiar aquele que os invocasse A atribuiccedilatildeo do epiacuteteto dependeria da situaccedilatildeo em que se encontrava a pessoa que o invocava Se se encontrasse em situaccedilatildeo adversa causada por forccedilas naturais invocaria certamente o Iupiter Fulgurator ou o Tonitrualis ou o Fulminator ou o Imbricitor ou o Serenator ou o Frugiferum se se encontrasse em situaccedilatildeo de guerra certamente invocaria o Iupiter Militaris Triumphator Propagator Tropaeophorus Victor Inuictus Opitulus Inpulsor e Stator

S Agostinho especifica os vaacuterios atributos de Juacutepiter gerados pelas vaacuterias accedilotildees capazes de serem realizadas pelo deus as quais estatildeo presentes em seus qualificativos criados pelos processos de derivaccedilatildeo e de composiccedilatildeo Fulgurator lt fulgor ldquorelacircmpagordquo Tonitrualis lt tonitrus ldquotrovatildeordquo Fulminator lt fulmen ldquoraiordquo Imbricitor lt imbricus ldquode chuva chuvosordquo Serenator lt serenatus ldquoque torna tranquilordquo Frugiferum lt frux mais fero ldquogerador de frutosrdquo

No entanto o destaque recebido por Juacutepiter em ser o primeiro entre os deuses imortais natildeo se daria no Periacuteodo Arcaico romano entre 753 aC e 509 aC mas durante o regime republicano porque Roma sofreria grande influecircncia da cultura grega No iniacutecio da Repuacuteblica romana o primeiro entre os deuses ainda era Jano conforme observa Macroacutebio

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Eacute importante observar que apesar de Macroacutebio ser um comentador tardio nascido no seacutec IV dC seus comentaacuterios sobre os costumes dos primeiros romanos satildeo bastante relevantes incluindo em seu texto uma construccedilatildeo tipicamente grega retirada de Hesiacuteodo πατήρ θεῶν correspondendo em latim a pater deorum Tal comparaccedilatildeo conduz a uma equiparaccedilatildeo de tratamento entre o pai dos deuses pater deorum dos latinos que durante todo o Periacuteodo Monaacuterquico e iniacutecio do Republicano foi Jano e o pai dos deuses πατήρ θεῶν dos gregos que sempre fora Zeus

Um pouco antes do iniacutecio da Repuacuteblica romana aleacutem de existir uma hierarquia entre os deuses no que tange ao grau de importacircncia existia tambeacutem uma hierarquia entre os sacerdotes responsaacuteveis pela realizaccedilatildeo dos rituais religiosos A relevacircncia sacerdotal apresentava-se respectivamente da seguinte maneira em primeiro lugar estava o Rex seguido do Flamen Dialis Flamen Martialis Flamen Quirinalis e por uacuteltimo o Pontifex Maximus Entre os deuses o lugar de maior relevacircncia era ocupado por Jano seguido por Juacutepiter em terceiro lugar estava Marte que era seguido por Quirino

A hierarquia divina foi alterada ainda na Roma arcaica no Periacuteodo Monaacuterquico eacutepoca em que houve a fusatildeo entre os Ramnes que ocupavam o monte Palatino e os Sabinos que ocupavam o monte Quirinal A uniatildeo entre esses dois povos conduziu agrave mistura dos ritos dos sacerdotes dos deuses poreacutem a superioridade dos Ramnes se sobressaiu impondo sua hierarquia sacerdotal conforme afirma T Mommsen (sd p35)

Jaacute esta primeira mistura das duas raccedilas parece ter tido uma in-fluecircncia capital sobre as transformaccedilotildees da religiatildeo dos Ramnes Marte e Quirino nos aparecem desde entatildeo como os represen-tantes poliacuteticos das duas raccedilas Juacutepiter como o protetor de toda a naccedilatildeo enfim Jano que era outrora o primeiro dos deuses para os Ramnes cai pouco a pouco no esquecimento 32

A mistura entre as duas raccedilas ocasionou mudanccedilas significativas sobretudo em relaccedilatildeo agrave religiatildeo dos Ramnes e em relaccedilatildeo agrave modificaccedilatildeo da hierarquia religiosa romana primitiva A partir desse momento Juacutepiter passaria a desempenhar um papel singular e a se sobressair sobre a figura de Jano Quais seriam as causas de tal mudanccedila hieraacuterquica divina Por que deste momento em diante Juacutepiter passaria a Pater deorum fato que lhe atribuiria tantos epiacutetetos

A causa de alteraccedilatildeo hieraacuterquica dos deuses nos dizeres de Santo Agostinho foi explicada por Varratildeo

Por ter nas matildeos as coisas uacuteltimas penes Iouem summa Juacutepiter passou a ser mais reverenciado do que Jano que tinha em matildeos as coisas primeiras penes Ianum

32 Deacutejagrave ce premier meacutelange des deux races parait avoir eu une influence capitale sur les transformations de la religion de Ramnes Mars et Quirinus nous apparaissent depuis lors comme les repreacutesentants politiques des deux races Jupiter comme le protecteur suprecircme de toute la nation enfin Janus qui eacutetait autrefois le premier des dieux pour les Ramnes tombe peu agrave peu dans lrsquooubli

33 Hoc nobis uir ille acutissimus doctissimusque respondeat ldquoQuoniam penes Ianum inquit sunt prima penes Iouem summardquo

Entatildeo aquele homem tatildeo douto e tatildeo astuto responda-nos ldquoporque nas matildeos de Jano diz ele estatildeo as primeiras coisas nas matildeos de Juacutepiter estatildeo as uacuteltimas 33

(De Ciuitate Dei VII 9)

sunt prima Natildeo se trata unicamente de uma relaccedilatildeo sequencial de fatos e referecircncias mas de uma representaccedilatildeo valorativa dos romanos primitivos que satildeo explicitados por Varratildeo A Juacutepiter associavam as soluccedilotildees as superaccedilotildees as vitoacuterias em vaacuterios aspectos da vida desse modo Juacutepiter passou a ser o primeiro entre os deuses romanos superando em todos os aspectos os atributos dos demais deuses Jano era entendido como a causa o que propiciava o iniacutecio da accedilatildeo poreacutem o desenlace das causas a superaccedilatildeo dos desafios iniciais era garantida por Juacutepiter fatos que lhe propiciaram os mais variados epiacutetetos

A observaccedilatildeo dos fatos relacionados a Religio romana e o acompanhamento de sua progressatildeo cronoloacutegica nos primeiros seacuteculos da formaccedilatildeo de Roma 753 aC - 509 aC satildeo bastante relevantes para que se possa compreender com mais coerecircncia as transformaccedilotildees por que passaram as praacuteticas religiosas desde a fundaccedilatildeo da cidade de Roma ateacute o iniacutecio do Periacuteodo Republicano

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Referecircncias

CARANDINI Andrea Roma Il Primo Giorno 2007

DUMEacuteZIL George La Religon Romaine Archaiumlque Paris Payot 2000

Mommsen Theodor Les Cultes Chez les Romains sd

VERNANT Jean-Pierre Mito e Sociedade na Greacutecia Antiga Traduccedilatildeo Myriam Cam-pello 4ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2010

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A Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia

grega antiga

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Rafael Brunhara (UFRGS)

No proacutelogo da Androcircmaca de Euriacutepides a rainha lamenta o seu destino Escra-va de Neoptoacutelemo ela servia a contragosto o leito do filho de Aquiles e gerara dele um filho varatildeo uacuteltimo acalanto de seus males Mas a nova esposa de Neoptoacutelemo Hermiacute-one filha de Helena planeja mataacute-la Acusa-a de drogaacute-la secretamente para que natildeo tenha filhos e de persuadir Neoptoacutelemo a rejeitar seu leito A heroiacutena escravizada reve-la o seu plano agrave antiga serva agora colega na escravidatildeo esconder o filho e abrigar-se no santuaacuterio da Deusa Teacutetis Quando a serva parte Androcircmaca estende aos ceacuteus suas lamuacuterias e elenca os motivos para seu pranto a terra natal perdida o marido morto a proacutepria escravidatildeo

A trageacutedia grega em suas partes natildeo-corais usa como praxe um metro espe-ciacutefico apropriado ao diaacutelogo o triacutemetro jacircmbico Sozinha em cena abandonada pela serva eacute nele que Androcircmaca enuncia seus males (vv91-102)

35 χώρει νυν ἡμεῖς δrsquo οἷσπερ ἐγκείμεσθrsquo ἀεὶθρήνοισι καὶ γόοισι καὶ δακρύμασι πρὸς αἰθέρrsquo ἐκτενοῦμεν ἐμπέφυκε γὰργυναιξὶ τέρψις τῶν παρεστώτων κακῶν ἀνὰ στόμrsquo αἰεὶ καὶ διὰ γλώσσης ἔχεινπάρεστι δrsquo οὐχ ἓν ἀλλὰ πολλά μοι στένειν πόλιν πατρώιαν τὸν θανόντα θrsquo Ἕκτορα στερρόν τε τὸν ἐμὸν δαίμονrsquo ὧι συνεζύγηνδούλειον ἦμαρ ἐσπεσοῦσrsquo ἀναξίως χρὴ δrsquo οὔποτrsquo εἰπεῖν οὐδένrsquo ὄλβιον βροτῶνπρὶν ἂν θανόντος τὴν τελευταίαν ἴδηιςὅπως περάσας ἡμέραν ἥξει κάτω

Pois vaacute Mas eu estenderei ao firmamentoos trenos os lamentos [gooi] e as laacutegrimas que para sempre me cercam Estaacute na naturezadas mulheres o prazer de os males presentester na boca sempre e na liacutengua E natildeo me haacute soacute um mas muitos a gemer a poacutelis paterna Heitor morto e o riacutegido destino ao qual me atrelo caiacuteda sem merecer no dia da escravidatildeo Dos mortais nenhum deves dizer que eacute felizantes de veres depois de morto como passou pelo dia final e desceu aos iacutenferos 35

Pois vaacute Mas eu estenderei ao firmamentoos trenos os lamentos [gooi] e as laacutegrimas que para sempre me cercam Estaacute na naturezadas mulheres o prazer de os males presentes

O que vem depois destes versos eacute notaacutevel e torna a Androcircmaca uacutenica entre as trageacutedias que nos restaram um exemplo do virtuosismo de Euriacutepides Abruptamente os versos ditos por Androcircmaca deixam de ser os triacutemetros jacircmbicos proacuteprios dos diaacutelo-gos traacutegicos e mudam para um metro que os atenienses do seacuteculo V aC normalmente atribuiacuteam ao lamento o diacutestico elegiacuteaco (vv103-116) Eacute certo que a transiccedilatildeo entre os

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ter na boca sempre e na liacutengua E natildeo me haacute soacute um mas muitos a gemer a poacutelis paterna Heitor morto e o riacutegido destino ao qual me atrelo caiacuteda sem merecer no dia da escravidatildeo Dos mortais nenhum deves dizer que eacute felizantes de veres depois de morto como passou pelo dia final e desceu aos iacutenferos 36

36 Ἰλίωι αἰπεινᾶι Πάρις οὐ γάμον ἀλλά τινrsquo ἄτανἀγάγετrsquo εὐναίαν ἐς θαλάμους Ἑλένανἇς ἕνεκrsquo ὦ Τροία δορὶ καὶ πυρὶ δηϊάλωτονεἷλέ σrsquo ὁ χιλιόναυς Ἑλλάδος ὠκὺς Ἄρηςκαὶ τὸν ἐμὸν μελέας πόσιν Ἕκτορα τὸν περὶ τείχηεἵλκυσε διφρεύων παῖς ἁλίας Θέτιδοςαὐτὰ δrsquo ἐκ θαλάμων ἀγόμαν ἐπὶ θῖνα θαλάσσαςδουλοσύναν στυγερὰν ἀμφιβαλοῦσα κάραι πολλὰ δὲ δάκρυά μοι κατέβα χροός ἁνίκrsquo ἔλειπονἄστυ τε καὶ θαλάμους καὶ πόσιν ἐν κονίαιςὤμοι ἐγὼ μελέα τί μrsquo ἐχρῆν ἔτι φέγγος ὁρᾶσθαιἙρμιόνας δούλαν ἆς ὕπο τειρομέναπρὸς τόδrsquo ἄγαλμα θεᾶς ἱκέτις περὶ χεῖρε βαλοῦσατάκομαι ὡς πετρίνα πιδακόεσσα λιβάς

versos tinha mais impacto em sua performance original pois talvez viessem acompa-nhados pelo som do aulo antiga flauta dupla com uma melodia repetida e invariaacutevel que juntamente com o metro ajudava a desencadear uma percepccedilatildeo outra para a cena e para a fala da personagem

As regras de decoro poeacutetico tambeacutem tinham um papel importante a cada me-tro forma ou gecircnero literaacuterio correspondia uma forma literaacuteria especiacutefica Alterar os versos abruptamente poderia ser um sinal que Euriacutepides dava ao puacuteblico de que es-taria se vinculando a uma nova circunstacircncia que demandava seus proacuteprios procedi-mentos formais para que fosse reconhecida colocando em operaccedilatildeo um coacutedigo sutil compartilhado por autor e audiecircncia

A traduccedilatildeo antes preocupada com o rigor semacircntico e a precisatildeo conceitual e longe de qualquer possibilidade de performance empalidece estas caracteriacutesticas mas nos ajuda a pensar as representaccedilotildees do feminino e o seu estreito viacutenculo com a tradi-ccedilatildeo do lamento na Greacutecia Antiga Logo no iniacutecio de sua primeira fala Androcircmaca rela-ciona trecircs palavras importantes ndash ldquolamentosrdquo (a palavra grega γόοισι gooisi) ldquotrenosrdquo (do grego θρήνοισι threnoisi) e laacutegrimas (δακρύμασι dakrumasi) Cito novamente o trecho

ldquoPois vaacute Mas eu estenderei ao firmamento os trenos os la-mentos e as laacutegrimas que para sempre me cercam ()rdquo

Na trageacutedia grega gooi e threnoi eram muitas vezes pensados como sinocircni-mos natildeo sendo possiacutevel verificar um sentido particular que os distinguisse Um exem-plo eacute a seguinte passagem de Persas de Eacutesquilo trageacutedia mais antiga que nos chegou mas que jaacute retrata o pendor deste gecircnero em usar os termos de modo intercambiaacutevel atenuando seus contrastes (vv684-688) Satildeo as palavras do fantasma do rei Dario ao seu povo

37 λεύσσων δrsquo ἄκοιτιν τὴν ἐμὴν τάφου πέλαςταρβῶ χοὰς δὲ πρευμενὴς ἐδεξάμηνὑμεῖς δὲ θρηνεῖτrsquo ἐγγὺς ἑστῶτες τάφουκαὶ ψυχαγωγοῖς ὀρθιάζοντες γόοιςοἰκτρῶς καλεῖσθέ μrsquo ()

Vendo minha consorte junto agrave sepultura eu temo mas propiacutecio libaccedilotildees aceito E voacutes carpis um treno [threneitrsquo] junto agrave sepultura E elevando lamentos [goois] que conjuram mortos em pranto me chamais () 37

Apesar de seu uso difuso na trageacutedia goos e threnos conservaram certa es-pecificidade teacutecnica sendo utilizados para designar e classificar dois tipos de canccedilatildeo praticados na Greacutecia Arcaica nos quais o proacuteprio gestual do pranto (dakruon) e a ma-terialidade do lamento eram incorporados Analisemos agora cada um deles

O Goos Margaret Alexiou (2002 p13) em estudo seminal sustenta que o lamento eacute

um canto responsoacuterio isto eacute um canto em que se alternavam vozes agrave perda de algueacutem querido Neste canto segundo a estudiosa ldquodois grupos de pessoas enlutadas estra-nhos e mulheres proacuteximas cantavam cada qual um verso e eram seguidos por um re-fratildeo em uniacutessonordquo Este lamento era assim dividido em duas categorias o do primeiro grupo era chamada threnos canccedilatildeo elaborada e profissional que honrava e exaltava o morto e a do segundo grupo era o goos canto improvisado entoado por natildeo-profis-sionais ndash parentes e pessoas proacuteximas (philoi) ao morto geralmente mulheres

Em Homero a palavra goos aparece de acordo com as definiccedilotildees aqui apresen-tadas Sua primeira ocorrecircncia relevante eacute no Canto 6 o episoacutedio conhecido como ldquoA Homilia de Heitor e Androcircmacardquo Este eacute um episoacutedio muito curioso da Iliacuteada repleto de paradoxos Nele Homero parece explorar os lugares e fronteiras do masculino e o feminino fazendo por exemplo com que Heitor adentre o espaccedilo domeacutestico ndash o mun-do dentro das muralhas de Troia esfera proacutepria de Androcircmaca e de outras mulheres ndash enquanto faz Androcircmaca transitar brevemente pelo mundo de Heitor ndash o espaccedilo da guerra das tomadas de decisatildeo da vista do campo de batalha para aleacutem das muralhas Em certo momento do poema (6433-439) Androcircmaca daraacute ateacute mesmo conselho mi-litar a Heitor um movimento tatildeo inusitado para mulheres que levou o editor alexan-drino Aristarco da Samotraacutecia (seacutec I aC) a suspeitar da autenticidade da passagem O helenista Christos Tsagalis (2008) levanta a interessante poreacutem indemonstraacutevel hipoacutetese de que ao caracterizar a esposa de Heitor o poema se serviria de mitos mais antigos sobre ela que a representavam como Mecircnade ou mulher guerreira talvez uma amazona seguindo um expediente comum no poema eacutepico de aludir e incorporar ver-sotildees variantes

Tambeacutem eacute o momento em que Homero explora pela primeira vez as contradi-ccedilotildees e a inevitabilidade do destino de Heitor Com seu filho nos braccedilos Heitor deseja que Astiacuteanax seja tatildeo importante quanto ele no futuro Mas natildeo haacute futuro para Troia pois a morte de Heitor e portanto a queda da cidade eacute certa fadado que estaacute a con-frontar o mais implacaacutevel guerreiro grego Desse modo quando se despede de Androcirc-

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maca sabemos que ele natildeo voltaraacute mais E Homero representa isso fazendo Androcircma-ca entoar um canto que atende todas as circunstacircncias de um lamento fuacutenebre goos Outro paradoxo deste episoacutedio entatildeo ocorre Androcircmaca e as servas da casa choram a morte de Heitor ainda vivo (vv497-502)

E logo depois chegou ao palaacutecio bem habitaacutevelDe Heitor matador de guerreiros e encontrou laacute muitas escra-vas em todas elas incitou os lamentos Elas lamentavam Heitor ainda vivo em sua casa pois sabiam que ele natildeo voltaria mais da guerra natildeo escaparia da fuacuteria e das matildeos dos Aqueus 38

A dor dos Troianos natildeo me preocuparaacute tanto ndash nem a da proacutepria Heacutecuba ou do soberano Priacuteamo nem a dos meus irmatildeos numerosos e nobres que na poeira sucumbiratildeo por matildeos inimigas ndash quanto a tua quando Aqueus em roupas de bronze te levarem chorando roubando-te o dia da liberdade 39

38 αἶψα δrsquo ἔπειθrsquo ἵκανε δόμους εὖ ναιετάονταςἝκτορος ἀνδροφόνοιο κιχήσατο δrsquo ἔνδοθι πολλὰςἀμφιπόλους τῆισιν δὲ γόον πάσηισιν ἐνῶρσεναἳ μὲν ἔτι ζωὸν γόον Ἕκτορα ὧι ἐνὶ οἴκωιοὐ γάρ μιν ἔτrsquo ἔφαντο ὑπότροπον ἐκ πολέμοιοἵξεσθαι προφυγόντα μένος καὶ χεῖρας Ἀχαιῶν 39 ἀλλrsquo οὔ μοι Τρώων τόσσον μέλει ἄλγος ὀπίσσωοὔτrsquo αὐτῆς Ἑκάβης οὔτε Πριάμοιο ἄνακτοςοὔτε κασιγνήτων οἵ κεν πολέες τε καὶ ἐσθλοὶἐν κονίῃσι πέσοιεν ὑπrsquo ἀνδράσι δυσμενέεσσινὅσσον σεῦ ὅτε κέν τις Ἀχαιῶν χαλκοχιτώνωνδακρυόεσσαν ἄγηται ἐλεύθερον ἦμαρ ἀπούρας

Nestes versos breves o poeta da Iliacuteada descreve algumas das principais caracte-riacutesticas do canto lamentoso goos quem ldquopuxardquo o canto (em grego eacute enorse ldquoimpeliurdquo) e passa a regecirc-lo eacute a pessoa mais afetada pela perda geralmente (mas nem sempre) uma mulher Homero prepara a audiecircncia para que veja desde o iniacutecio do canto que esta pessoa para Heitor eacute Androcircmaca atraveacutes de uma convenccedilatildeo da poesia oral cunhada pela primeira vez pelo estudioso JT Kakridis chamada ldquotoacutepica da escala ascendente de afeiccedilotildeesrdquo (Arthur 1981 p29) Nessa toacutepica o heroacutei eacute mostrado se encontrando ou se referindo a companheiros parentes ou pessoas proacuteximas em uma sequecircncia crescente que indica a elevaccedilatildeo do amor que sente e recebe dessas pessoas e culmina no amor conjugal como superior agravequele dos amigos e parentes Condizente agrave essa toacutepica Heitor diraacute a Androcircmaca (vv 450-455)

Assim a ordem dos encontros de Heitor ao longo deste canto ndash primeiro as esposas e filhos dos troianos (6237-250) depois Heacutecuba (6251-285) Helena e Paacuteris (6313-368) e por fim Androcircmaca (6394-496) ndash cumpre a funccedilatildeo de realccedilar a honra e a afeiccedilatildeo que ele devota agrave esposa mais do que aos outros troianos e o quanto a sua morte seraacute mais significativa para ela do que para qualquer outro

Homero natildeo faz isso apenas atraveacutes desta convenccedilatildeo poeacutetica mas tambeacutem tomando emprestado caracteriacutesticas tradicionais do lamento fuacutenebre feminino Ao re-presentar neste canto um predomiacutenio de discursos femininos (das esposas de Troia a

Vamos Depois nos acertamos caso Zeus afinal conceda que aos celestiais Deuses sempre vivos fixemos a taccedila da libertaccedilatildeo em nossos salotildees quando de Troia expulsarmos Aqueus de belas grevas 40

Quando retomou o ar e no imo refez-se o coraccedilatildeo com renovados lamentos (goosa) em meio agraves troianas disse ldquoHeitor sou infeliz Nascemos para um soacute destinonoacutes dois tu em Troia na casa de Priacuteamo e eu em Tebas ao peacute do Placo frondoso na casa de Eeacutecion que me criou desde pequenao desfortunado agrave mal-afortunada Ah se natildeo tivesse me gerado Agora ao palaacutecio de Hades nos recessos profundos da terratu vais e em odiosa dor me abandonas

40 ἀλλrsquo ἴομεν τὰ δrsquo ὄπισθεν ἀρεσσόμεθrsquo αἴ κέ ποθι Ζεὺςδώῃ ἐπουρανίοισι θεοῖς αἰειγενέτῃσικρητῆρα στήσασθαι ἐλεύθερον ἐν μεγάροισινἐκ Τροίης ἐλάσαντας ἐϋκνήμιδας Ἀχαιούς

Heacutecuba e Helena) que culminaratildeo com Androcircmaca puxando o lamento entre as servas evidencia-se que o goos ainda que seu conteuacutedo central sejam os sentimentos de dor daquele que inicia o canto eacute sobretudo uma experiecircncia comunitaacuteria na qual a dor de quem canta se transfere para a comunidade representada (quase sempre mas natildeo necessariamente) pelas mulheres que a compotildeem

Essa sucessatildeo de encontros do Canto VI entatildeo tambeacutem nos prepara para en-tendermos as palavras de Androcircmaca como um goos (= lamento fuacutenebre feminino) para seu marido em vida o que intensifica seu efeito Alexiou (2002 p4-5) observan-do que o lamento natildeo eacute mera exposiccedilatildeo da dor mas eacute cuidadosamente regrado por ritual diz que Androcircmaca eacute desatenta ao entoar um lamento fuacutenebre com o marido ainda vivo No entanto aiacute que se faz importante notar que natildeo se trata de um teste-munho real de uma praacutetica mas de um artifiacutecio poeacutetico que se vale da estrutura dos ritos de lamento para potencializar a cena seguinte que fecha o Canto 6 e encarece o paacutethos traacutegico de Heitor A cena mostra o heroacutei troiano dirigindo-se com o irmatildeo Paacuteris agrave guerra e rogando aos Deuses por vitoacuteria sobre os gregos mas sabemos por causa de toda a elaboraccedilatildeo do canto como um lamento fuacutenebre o quanto esse pedido eacute vatildeo uma das muitas ironias traacutegicas que a Iliacuteada opera (6 527-530)

A experiecircncia comunitaacuteria do lamento se expressa no goos como um canto responsoacuterio ao lamento da cantora principal responde um coro de mulheres lamentando junto Vamos recorrer de novo agraves falas de Androcircmaca na Iliacuteada para ver outras pistas disso Aleacutem do Canto 6 Androcircmaca conduz mais dois cantos lamentosos um no Canto 22 e outro no Canto 24

No Canto 22 Androcircmaca primeiro lamenta sozinha ao ver o cadaacutever de seu marido ser arrastado pelo carro de Aquiles em palavras que o poeta denomina expli-citamente goos (vv477-515)

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viuacuteva no palaacutecio O filho que geramos eu e tu desafortunados eacute soacute um bebecirc E para elenatildeo seraacutes um bem Heitor pois morreste nem ele a ti Mesmo se escapar da luta multilaacutecrime com aqueusele sempre teraacute trabalho e anguacutestias no futuropois outros homens tomaratildeo suas lavourasO dia da orfandade tira da crianccedila os amigos sempre acabrunhado com laacutegrimas no rostoem necessidade aborda os amigos do paide um puxa o manto de outro a tuacutenica Com pena um lhe daacute seu copo brevemente ela molha os laacutebios o palato natildeo molha mas outro com pai e matildee vivos do festim o expulsacom as matildeos golpeando e com censuras maltratandolsquoVai-te daqui teu pai natildeo partilha conosco do festimrsquo Em laacutegrimas volta agrave matildee viuacuteva o menino Astiacuteanax que antes nos joelhos de seu pai comia soacute o tutano e a gordura pingue de ovelhase quando o sono o pegasse e parasse as criancices dormia no leito nos braccedilos da ama na cama macia o peito repleto de juacutebilo Agora muito sofreraacute pois perdeu o pai amado Astiacuteanax Senhor da Cidade como apelidam troianos pois soacute tu defendias seus portotildees e altas muralhasAgora junto agraves naus recurvas longe dos paisvermes retorcidos roeratildeo depois que os catildees se saciaremteu corpo nu Tuas vestes jazem no palaacutecio finas e elegantes feitas por matildeos de mulheres Eu antes queimarei todas no fogo ardente em nada te serviratildeo pois com elas natildeo jazeraacutesMas seratildeo tua gloacuteria junto a troianos e troianasrdquo Assim falou em pranto em seguida as mulheres punham-se a lamentar 41

41 Ἕκτορ ἐγὼ δύστηνος ἰῇ ἄρα γεινόμεθrsquo αἴσῃἀμφότεροι σὺ μὲν ἐν Τροίῃ Πριάμου κατὰ δῶμααὐτὰρ ἐγὼ Θήβῃσιν ὑπὸ Πλάκῳ ὑληέσσῃἐν δόμῳ Ἠετίωνος ὅ μrsquo ἔτρεφε τυτθὸν ἐοῦσανδύσμορος αἰνόμορον ὡς μὴ ὤφελλε τεκέσθαινῦν δὲ σὺ μὲν Ἀΐδαο δόμους ὑπὸ κεύθεσι γαίηςἔρχεαι αὐτὰρ ἐμὲ στυγερῷ ἐνὶ πένθεϊ λείπειςχήρην ἐν μεγάροισι πάϊς δrsquo ἔτι νήπιος αὔτωςὃν τέκομεν σύ τrsquo ἐγώ τε δυσάμμοροι οὔτε σὺ τούτῳἔσσεαι Ἕκτορ ὄνειαρ ἐπεὶ θάνες οὔτε σοὶ οὗτοςἤν περ γὰρ πόλεμόν γε φύγῃ πολύδακρυν Ἀχαιῶναἰεί τοι τούτῳ γε πόνος καὶ κήδεrsquo ὀπίσσωἔσσοντrsquo ἄλλοι γάρ οἱ ἀπουρίσσουσιν ἀρούραςἦμαρ δrsquo ὀρφανικὸν παναφήλικα παῖδα τίθησι πάντα δrsquo ὑπεμνήμυκε δεδάκρυνται δὲ παρειαίδευόμενος δέ τrsquo ἄνεισι πάϊς ἐς πατρὸς ἑταίρουςἄλλον μὲν χλαίνης ἐρύων ἄλλον δὲ χιτῶνοςτῶν δrsquo ἐλεησάντων κοτύλην τις τυτθὸν ἐπέσχεχείλεα μέν τrsquo ἐδίηνrsquo ὑπερῴην δrsquo οὐκ ἐδίηνετὸν δὲ καὶ ἀμφιθαλὴς ἐκ δαιτύος ἐστυφέλιξε χερσὶν πεπλήγων καὶ ὀνειδείοισιν ἐνίσσωνἔρρrsquo οὕτως οὐ σός γε πατὴρ μεταδαίνυται ἡμῖνδακρυόεις δέ τrsquo ἄνεισι πάϊς ἐς μητέρα χήρην Ἀστυάναξ ὃς πρὶν μὲν ἑοῦ ἐπὶ γούνασι πατρὸςμυελὸν οἶον ἔδεσκε καὶ οἰῶν πίονα δημόν αὐτὰρ ὅθrsquo ὕπνος ἕλοι παύσαιτό τε νηπιαχεύων εὕδεσκrsquo ἐν λέκτροισιν ἐν ἀγκαλίδεσσι τιθήνηςεὐνῇ ἔνι μαλακῇ θαλέων ἐμπλησάμενος κῆρνῦν δrsquo ἂν πολλὰ πάθῃσι φίλου ἀπὸ πατρὸς ἁμαρτὼν Ἀστυάναξ ὃν Τρῶες ἐπίκλησιν καλέουσινοἶος γάρ σφιν ἔρυσο πύλας καὶ τείχεα μακράνῦν δὲ σὲ μὲν παρὰ νηυσὶ κορωνίσι νόσφι τοκήωναἰόλαι εὐλαὶ ἔδονται ἐπεί κε κύνες κορέσωνταιγυμνόν ἀτάρ τοι εἵματrsquo ἐνὶ μεγάροισι κέονταιλεπτά τε καὶ χαρίεντα τετυγμένα χερσὶ γυναικῶν ἀλλrsquo ἤτοι τάδε πάντα καταφλέξω πυρὶ κηλέῳοὐδὲν σοί γrsquo ὄφελος ἐπεὶ οὐκ ἐγκείσεαι αὐτοῖςἀλλὰ πρὸς Τρώων καὶ Τρωϊάδων κλέος εἶναιὫς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες

ldquoMarido da existecircncia partiste jovem e viuacuteva meabandonas no palaacutecio O filho que geramos eu e tu desafortunados eacute soacute um bebecirc Penso que ele natildeo chegaraacute agrave juventude Antes a poacutelis de cima a baixoarrasaratildeo porque tu seu vigilante morreste tu que aprotegias e mantinhas devotadas esposas e filhos pequenosseguros Logo elas seratildeo levadas em naus cocircncavas tambeacutem eu com elas E tu meu filho a mim mesmaseguiraacutes laacute onde aviltantes trabalhos faraacutes labutando ante um duro senhor ou um aqueute jogaraacute ao pegaacute-lo pelo braccedilo da torre ndash triste fim ndash um com raiva de quem Heitor matou o irmatildeo o pai ou o filho jaacute que muito muitos aqueus pelas matildeos de Heitor morderam o solo imensoDoce natildeo era teu pai no triste preacutelioPor isso o povo chora pela cidade e inefaacutevel lamento (goon) e anguacutestia infligiste aos pais Heitor mas em mim restaratildeo as mais tristes doresPois quando morrias tu natildeo me deste as tuas matildeosnatildeo me disseste uma palavra firme que para sempre eu guardaria dia e noite vertendo laacutegrimasrdquo Assim falou em pranto em seguida as mulheres punham-se a lamentar 42

42 ἆνερ ἀπrsquo αἰῶνος νέος ὤλεο κὰδ δέ με χήρηνλείπεις ἐν μεγάροισι πάϊς δrsquo ἔτι νήπιος αὔτωςὃν τέκομεν σύ τrsquo ἐγώ τε δυσάμμοροι οὐδέ μιν οἴωἥβην ἵξεσθαι πρὶν γὰρ πόλις ἧδε κατrsquo ἄκρηςπέρσεται ἦ γὰρ ὄλωλας ἐπίσκοπος ὅς τέ μιν αὐτὴνῥύσκευ ἔχες δrsquo ἀλόχους κεδνὰς καὶ νήπια τέκνααἳ δή τοι τάχα νηυσὶν ὀχήσονται γλαφυρῇσικαὶ μὲν ἐγὼ μετὰ τῇσι σὺ δrsquo αὖ τέκος ἢ ἐμοὶ αὐτῇἕψεαι ἔνθά κεν ἔργα ἀεικέα ἐργάζοιοἀθλεύων πρὸ ἄνακτος ἀμειλίχου ἤ τις Ἀχαιῶνῥίψει χειρὸς ἑλὼν ἀπὸ πύργου λυγρὸν ὄλεθρον χωόμενος ᾧ δή που ἀδελφεὸν ἔκτανεν Ἕκτωρἢ πατέρrsquo ἠὲ καὶ υἱόν ἐπεὶ μάλα πολλοὶ ἈχαιῶνἝκτορος ἐν παλάμῃσιν ὀδὰξ ἕλον ἄσπετον οὖδαςοὐ γὰρ μείλιχος ἔσκε πατὴρ τεὸς ἐν δαῒ λυγρῇτὼ καί μιν λαοὶ μὲν ὀδύρονται κατὰ ἄστυ ἀρητὸν δὲ τοκεῦσι γόον καὶ πένθος ἔθηκαςἝκτορ ἐμοὶ δὲ μάλιστα λελείψεται ἄλγεα λυγράοὐ γάρ μοι θνῄσκων λεχέων ἐκ χεῖρας ὄρεξαςοὐδέ τί μοι εἶπες πυκινὸν ἔπος οὗ τέ κεν αἰεὶμεμνῄμην νύκτάς τε καὶ ἤματα δάκρυ χέουσα Ὣς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες43 ὥς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες

No Canto 24 por sua vez assistimos ao funeral de Heitor e aos discursos de trecircs mulheres Androcircmaca Heacutecuba e Helena Sendo Androcircmaca a primeira a falar Homero a apresenta ldquocomeccedilando o lamentordquo (erkhe gooio ἦρχε vv725-746)

Nessas duas ocasiotildees Homero usa um verso cristalizado uma foacutermula que mostra como o lamento de Androcircmaca eacute formalmente respondido pelas mulheres da cidade A foacutermula aparece em ambas as passagens citadas os versos 515 do Canto 22 e no verso 746 do Canto 24 ldquoassim [Androcircmaca] falou em pranto em seguida as mu-lheres punham-se a lamentarrdquo

Na Androcircmaca de Euriacutepides o aspecto responsoacuterio do goos parece aludir-se nos versos 93-95 entendidos como uma caracteriacutestica de todo o gecircnero feminino

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ldquoEstaacute na natureza das mulheres o prazer de os males presentes ter na boca sempre e na liacutenguardquo De fato o coro composto por mulheres da Ftia entra na peccedila logo depois dos diacutesticos elegiacuteacos de Androcircmaca e acudiraacute a rainha em resposta

Se na Iliacuteada natildeo podemos ver realmente como as mulheres respondem aos prantos de Androcircmaca na peccedila o proacuteprio coro a partir do verso 117 cumpriraacute este papel respondendo ao lamento da rainha troiana

O Threnos

Agora falemos do termo threnos (θρῆνος) Sabemos que este termo seraacute con-sagrado como um gecircnero poeacutetico especiacutefico do lamento praticado por Simocircnides e Piacutendaro e reconhecido por Platatildeo em suas Leis como uma das formas (eideacute) da poesia meacutelica (700 a-b3)

Naquela eacutepoca a arte das Musas estava dividida entre noacutes se-gundo gecircneros (eide είδή) e estilos (skhemata σχήματα) um gecircnero de canto as preces aos deuses era chamada ldquohinordquo Ha-via um outro gecircnero de canto oposto a este ndash pode-se melhor chamaacute-los ldquotrenosrdquo Outro era o Peatilde e outro ndash creio que nascido de Dioniso ndash o ldquoditirambordquo 44

O treno difere do epiceacutedio [epikeacutedion] porque o epiceacutedio se diz a partir do proacuteprio kecircdos [luto funeralκίδος] com o corpo ain-da jazendo exposto enquanto o treno natildeo se circunscreve a um periacuteodo de tempo45

44 Τοῖς περὶ τὴν μουσικὴν πρῶτον τὴν τότε ἵνα ἐξ ἀρχῆς διέλθωμεν τὴν τοῦ ἐλευθέρου λίαν ἐπίδοσιν βίου διῃρημένη γὰρ δὴ τότε ἦν ἡμῖν ἡ μουσικὴ κατὰ εἴδη τε ἑαυτῆς ἄττα καὶ σχήματα καί τι ἦν εἶδος ᾠδῆς εὐχαὶ πρὸς θεούς ὄνομα δὲ ὕμνοι ἐπεκαλοῦντο καὶ τούτῳ δὴ τὸ ἐναντίον ἦν ᾠδῆς ἕτερον εἶδος ndash θρήνους δέ τις ἂν αὐτοὺς μάλιστα ἐκάλεσεν ndash καὶ παίωνες ἕτερον καὶ ἄλλο Διονύσου γένεσις οἶμαι διθύραμβος λεγόμενος45 Διαφέρει δὲ τοῦ ἐπικηδείου ὁ θρῆνος ὅτι τὸ μὲν ἐπικήδειον παρrsquo αὐτὸ τὸ κῆδος ἔτι τοῦ σώματος προκειμένου λέγεται ὁ δὲ θρῆνος οὐ περιγράφεται χρόνῳ

O termo tambeacutem eacute conservado na literatura da Antiguidade Tardia Proclo por exemplo quando conceituou os diversos gecircneros literaacuterios em sua Crestomatia possivelmente no seacutec V dC usa a denominaccedilatildeo threnos para um tipo de meacutelica des-tinada aos homens (32-35) que se distinguia de outros gecircneros de lamento por sua performance natildeo limitada a uma ocasiatildeo especiacutefica (67)Li

Mas as suas ocorrecircncias arcaicas satildeo mais escassas ocorre apenas uma vez na Iliacuteada e na Odisseia Em ambas as passagens reforccedila a ideia de que se tratava de um canto coral profissionalizado e eminentemente masculino distinto do goos entoado pelas pessoas queridas ao morto A primeira passagem estaacute no Canto 24 uacuteltimo da Iliacuteada que retrata o funeral de Heitor A cerimocircnia comeccedila com o corpo sendo colocado em um leito e com um canto que imediatamente se segue (vv720-723)

em leitos perfurados o puseram e ao lado assentaram os aedosregentes dos trenos Uma gemente canccedilatildeo o treno (threnon) eles entoavam em seguida as mulheres punham-se a lamentarE entre elas Androcircmaca de niacuteveos braccedilos comeccedilava o lamento (gooio) 46

Agrave volta estavam as meninas do Velho do Marcom pena gemendo e vestiram-te roupas imortais Entatildeo as nove Musas todas alternando-se com bela voz entoavam o treno (threneon) Natildeo verias ali nenhum argivosem chorar tatildeo forte comovia a clara Musa 47

ldquopois natildeo eacute correto na casa dos servos das Musashaver o tre-noisso natildeo nos seria adequadordquo 48

46 τρητοῖς ἐν λεχέεσσι θέσαν παρὰ δrsquo εἷσαν ἀοιδοὺςθρήνων ἐξάρχους οἵ τε στονόεσσαν ἀοιδὴνοἳ μὲν ἄρrsquo ἐθρήνεον ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκεςτῇσιν δrsquo Ἀνδρομάχη λευκώλενος ἦρχε γόοιοἐκάλεσεν ndash καὶ παίωνες ἕτερον καὶ ἄλλο Διονύσου γένεσις οἶμαι διθύραμβος λεγόμενος47 ἀμφὶ δέ σrsquo ἔστησαν κοῦραι ἁλίοιο γέροντοςοἴκτρrsquo ὀλοφυρόμεναι περὶ δrsquo ἄμβροτα εἵματα ἕσσανΜοῦσαι δrsquo ἐννέα πᾶσαι ἀμειβόμεναι ὀπὶ καλῇθρήνεον ἔνθα κεν οὔ τινrsquo ἀδάκρυτόν γrsquo ἐνόησαςἈργείων τοῖον γὰρ ὑπώρορε Μοῦσα λίγεια48 οὐ γὰρ θέμις ἐν μοισοπόλων daggerοἰκίαι θρῆνον ἔμμενrsquo οὔ κrsquo ἄμμι τάδε πρέποι

A ocorrecircncia do termo na Odisseia estaacute no Canto 24 na narraccedilatildeo dos ritos fuacutenebres de Aquiles (vv58-62)Lii

Algumas palavras empregadas nesses trechos parecem indicar o threnos como um canto profissional Na Iliacuteada os liacutederes do canto satildeo homens aedos (ἀοιδοὺς aoi-dous 24720) que regem (ἐξάρχους eksarkhous 24721) os cantos A Odisseia por sua vez nos mostra uma cerimocircnia sobre-humana como tudo que diz respeito a Aquiles em vez de mulheres da cidade quem chora o goos satildeo as ninfas do oceano e os ldquocan-tores profissionaisrdquo que entoam o threnos satildeo aqui as proacuteprias Musas

Deve-se notar mesmo assim que a distinccedilatildeo entre masculino e feminino tatildeo marcada na Iliacuteada (mas natildeo na Odisseia) pode ser enganosa fruto de nossa parca evidecircncia pois jaacute na literatura arcaica verifica-se certa sobreposiccedilatildeo Em um de seus fragmentos por exemplo Safo utiliza a palavra treno proibindo seu uso na ldquoCasa das Musasrdquo (fr150) Liii

A proibiccedilatildeo no poema de Safo sugere presumivelmente que o treno era pra-ticado e no caso entoado por coros femininos Contudo embora pairem incertezas o termo indicava para aleacutem de seu uso corriqueiro um gecircnero poeacutetico complexo vin-culado a um tom mais reflexivo e abrangente que se opotildee ao lamento do goos e que sobretudo Euriacutepides parecia atento agraves suas distinccedilotildees na peccedila

Feitas estas proposiccedilotildees ateacute agora natildeo entramos nas questotildees formais do la-

mento de Androcircmaca na peccedila homocircnima Sabemos que o lamento eacute um canto respon-

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soacuterio e que haacute dois tipos o threnos lamento profissional masculino e o goos lamen-to amador predominantemente feminino Androcircmaca menciona ambos dizendo que iraacute entoaacute-los aparentemente natildeo colocando uma diferenccedila entre um e outro Mas o novo canto que comeccedila abruptamente (porque em outro metro) ldquoAgrave iacutengreme Iacutelion Paacuteris trouxe natildeo nuacutepcias mas ruiacutenardquo (v103) introduz na peccedila o diacutestico elegiacuteaco e coloca o discurso de Androcircmaca ainda em uma terceira tradiccedilatildeo poeacutetica a da elegia

Assim trecircs formas tradicionalmente associadas ao lamento confluem nesta fala threnos goos e elegia O motivo desta confluecircncia sugere Gregory Nagy em seu texto ldquoAncient Greek Elegyrdquo (2010) se deve agrave circunstacircncia de performance Se o thre-nos eacute masculino e profissional e o goos eacute feminino e amador isso pouco importa no contexto do teatro de Dioniso uma vez que 1-) todos os atores eram do sexo mascu-lino Se eacute notoacuterio que os melhores atores representavam as melhores falas dos prin-cipais personagens pode-se supor tambeacutem que o ator representando Androcircmaca era um virtuoso profissional haacutebil em sua arte capaz de operar uma transiccedilatildeo sutil entre os diferentes registros e tradiccedilotildees poeacuteticas de lamento e 2-) o coro masculino com-posto por cidadatildeos nem sempre profissionais representa aqui mulheres da Ftia que respondem ao lamento da senhora troiana Nesses termos a fala de Androcircmaca eacute a dramatizaccedilatildeo de um goos que se aproxima no entanto de um threnos uma vez que entoado por um cantor profissional que eacute seguido por toda a comunidade

Eacute a trageacutedia em pleno funcionamento da mimese imitando e incorporando em sua performance outros gecircneros A trageacutedia se apropria do tiacutepico lamento feminino e o representa por um coro masculino interpretando mulheres Platatildeo via com certo desconforto esta possibilidade pois poderia fazer com que homens passassem tambeacutem a agir falar e pensar como mulheres Ele trata deste tipo de representaccedilatildeo do lamento como um exemplo do potencial ameaccedilador da mimese (Repuacuteblica Livro 3 395d-e)LV

Logo natildeo ordenaremos a um daqueles de quem queremos ocupar-nos que eacute preciso que se tornem homens superio-res que sendo homens imitem uma mulher nova ou ve-lha ou a injuriar o marido ou a criticar os deuses ou a gabar-se por se supor feliz ou dominada pela desgraccedila pelo desgosto e pelos gemidos [threnois] muito menos quando estaacute doente ou apaixonada ou com as dores da maternidade 49

49 Οὐ δὴ ἐπιτρέψομεν ἦν δrsquo ἐγώ ὧν φαμὲν κήδεσθαι καὶ δεῖν αὐτοὺς ἄνδρας ἀγαθοὺς γενέσθαι γυναῖκα μιμεῖσθαι ἄνδρας ὄντας ἢ νέαν ἢ πρεσβυτέραν ἢ ἀνδρὶ λοιδορουμένην ἢ πρὸς θεοὺς ἐρίζουσάν τε καὶ μεγαλαυχουμένην οἰομένην εὐδαίμονα εἶναι ἢ ἐν συμφοραῖς τε καὶ πένθεσιν καὶ θρήνοις ἐχομένην κάμνουσαν δὲ ἢ ἐρῶσαν ἢ ὠδίνουσαν πολλοῦ καὶ δεήσομεν

No entanto a estrateacutegia de incorporar outros cantos natildeo parecia estranha a Euriacutepides que a utiliza em outras ocasiotildees tampouco ao gecircnero traacutegico que acomoda gecircneros liacutericos como o Peatilde e outros Lii

Um exemplo ocorre em uma das uacuteltimas trageacutedias de Euriacutepides Bacantes

De laacute da terra da Aacutesiacruzei o sacro Tmolo e corroa Brocircmio doce afatildefadiga infatigaacutevel em evoeacute eu chamo Baco Quem vai pela rua quem vai Quemestaacute em casa Cada um abra espaccediloe se faccedila todo sacro em reverecircncia pois hinos costumeiros semprea Dioniso cantarei

ldquoOacute venturoso quem feliz conhece ritos de Deusesconsagra a vidae no tiacuteaso potildee a almaeacute bacante nas montanhasem sacras purificaccedilotildeesMisteacuterios da grande matildeeCiacutebele satildeo a leio tirso agita no altoem hera coroadocultua Baco

Abruptamente ao teacutermino da chegada de Dioniso a Tebas no proacutelogo da peccedila o coro composto por Mecircnades entra em cena recitando palavras que descrevem a sua origem e os bens concedidos pelo Deus aos seus iniciados (vv 64-88) Lvii

No trecho acima o proacuteprio coro imita um verdadeiro hino cultual A expressatildeo do verso 69 ldquoQuem vai pela rua quem vai rdquo eacute uma foacutermula caracteriacutestica da procis-satildeo um ldquopreluacutedio tiacutepico de um ato ritualrdquo (Dodds 1960 pp75) ao qual se segue a lin-guagem beatiacutefica dos macarismos (ldquoOacute venturoso quem felizrdquo v74) e a dramatizaccedilatildeo de gritos rituais ldquoavante Bacas avanterdquo (v85) O coro mesmo indica a sua proximi-dade com os hinos ao anunciar que cantaraacute literalmente ldquoas coisas costumeirasrdquo de Dioniso (tagrave nomisthenta τὰ νομίσθεντα v 72) Aleacutem disso assim como o emprego de diacutesticos elegiacuteacos em Androcircmaca o poeta indica a mudanccedila de tom pela alteraccedilatildeo no metro servindo-se em Bacantes de um metro tradicional do culto a DionisoLviii

Natildeo eacute estranho supor portanto levando em conta que o lamento de Androcirc-

maca ocupa a posiccedilatildeo similar a deste hino e a que Euriacutepides demonstra predileccedilatildeo por incorporar outras tradiccedilotildees poeacuteticas em suas peccedilas que tambeacutem na Androcircmaca ele estivesse subsumindo agrave arte traacutegica e adequando a ela elementos tradicionais de lamentos rituais tipicamente femininos O que natildeo conseguimos responder por ora eacute porque ele tambeacutem incorpora o diacutestico elegiacuteaco ao tratar destes lamentos e isso se deve sobretudo aos vazios da historiografia deste gecircnero poeacutetico tatildeo longevo

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A Elegia

Mesmo modernamente atribuiacutemos ao termo elegia a ideia de lamento em honra aos mortos Os gregos do periacuteodo claacutessico vatildeo ver na palavra elegos (ἔλεγος) ldquocanto de lamentordquo a etimologia deste gecircnero O que a maioria dos estudiosos observa eacute que quanto mais recuamos a elegia agraves suas origens ateacute o seacuteculo VII aC percebemos que este gecircnero tinha como tema o canto solo de quase todos os assuntos no horizonte da vida grega a guerra o amor a poliacutetica Menos um o lamento

A discussatildeo sobre a elegia geralmente se concentra em trecircs palavras gregas usadas para descrevecirc-la elegos (ἔλεγος) elegeia (ἐλεγεία) e elegeion (ἐλεγεῖον) Con-tudo nenhuma destas palavras estaacute nas ocorrecircncias mais antigas do gecircnero Depen-demos de autores que vieram depois e tentaram categorizaacute-la Elegeia e elegeion natildeo trazem problemas Elegeion aparece primeiro e traz uma referecircncia meacutetrica Data do tempo de Euriacutepides (seacutec V aC) O singular indica o diacutestico elegiacuteaco o plural uma se-quecircncia de diacutesticos ou poemas compostos neste metro Elegeia aparece mais tarde no seacutec IV aC e seu sentido eacute o mesmo da palavra elegia em portuguecircs Podia ser usada como referecircncia tanto ao metro como a um poema composto neste metro

Elegos poreacutem eacute o termo mais problemaacutetico e mais antigo dos trecircs Aparece numa inscriccedilatildeo dos Jogos Piacuteticos de 586 dC que anuncia que o vencedor do concurso de aulo cantara aos gregos melea kai elegous ldquoCanccedilotildees e elegousrdquo Esses elegous satildeo entendidos como elegias lamentosas e por serem de extremo mau-agouro teriam sido proibidos a partir ediccedilatildeo seguinte destes jogos

Equecircmbroto da Arcaacutedia dedicou a Heacuteraclesesta daacutediva ao vencer nos jogos dos Anfictiotildeescantando aos gregos canccedilotildees e elegias (elegous) 50

Oh escravas em que trenos de tristes trenosenvolvo-me Canto e danccedila de natildeo boa Musa elegias [elegois] sem lira ndash aiai - em fuacutenebres lamuacuterias 51

50 Ἐχέμβροτος Ἀρκὰςθῆκε τῷ Ἡρακλεῖνικήσας τόδrsquo ἄγαλμrsquoἈμφικτυόνων ἐν ἀέθλοιςἝλλησι δrsquo ἀείδωνμέλεα καὶ ἐλέγους51 ἰὼ δμωαίδυσθρηνήτοις ὡς θρήνοις ἔγκειμαιτᾶς οὐκ εὐμούσουμολπᾶς ἀλύροις ἐλέγοις αἰαῖἐν ηδείοις οἴκτοισιν τὸ γὰρ θρῆνος ἔλεγον ἐκάλουν οἱ παλαιοὶκαὶ τοὺς τετελευτηκότας διrsquo αὐτοῦ εὐλόγουν

Embora a interpretaccedilatildeo desta inscriccedilatildeo natildeo seja conclusiva por volta do seacuteculo V aC elegos jaacute eacute atestado em Euriacutepides com o sentido de canto lamentoso Por exem-plo na trageacutedia Ifigecircnia em Taacuteuris o ator interpretando Ifigecircnia canta (vv143-147) Lx

Tardiamente passa a ser comum a associaccedilatildeo entre elegos e threnos como nos mostra excerto da Biblioteca de Foacutecio (319b8-9 ldquopois os antigos chamavam de elegos o treno e elogiavam com ele os falecidosrdquo) 52

Os lutos satildeo gementes Peacutericles e cidadatildeo nenhumhaacute de censuraacute-los e se regozijar em festas ndash nem a cidadePois tais os homens que as ondas do poliacutessono marsubmergiram e inchados de dor temos os pulmotildees Mas os deuses para invictos malesoacute amigo aplicam a forte resistecircncia como faacutermaco Ora um ora outro sofre este mal para noacutes voltou-se agora e chaga sangrenta cho-ramos que logo passaraacute a outros Mas vamos ndash o mais raacutepido resisti a feminina dor afastando 53

53 κήδεα μὲν στονόεντα Περίκλεες οὔτέ τις ἀστῶνμεμφόμενος θαλίηις τέρψεται οὐδὲ πόλιςτοίους γὰρ κατὰ κῦμα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης ἔκλυσεν οἰδαλέους δrsquo ἀμφrsquo ὀδύνηις ἔχομενπνεύμονας ἀλλὰ θεοὶ γὰρ ἀνηκέστοισι κακοῖσινὦ φίλrsquo ἐπὶ κρατερὴν τλημοσύνην ἔθεσανφάρμακον ἄλλοτε ἄλλος ἔχει τόδε νῦν μὲν ἐς ἡμέαςἐτράπεθrsquo αἱματόεν δrsquo ἕλκος ἀναστένομενἐξαῦτις δrsquo ἑτέρους ἐπαμείψεται ἀλλὰ τάχιστατλῆτε γυναικεῖον πένθος ἀπωσάμενοι

Muitas teorias jaacute foram aventadas para relacionar o ritmo da elegia isto eacute o diacutestico elegiacuteaco agrave ideia de lamento e assim explicar a elegia de Androcircmaca Uma delas que ganhou forccedila nos uacuteltimos anos foi proposta por Denys Page em 1936 no artigo ldquoThe Elegiacs in Euripidesrsquo Andromacherdquo

O autor observando formas propriamente doacutericas nos versos de Androcircmaca sugere a existecircncia de uma escola de poetas na regiatildeo do Peloponeso no seacuteculo VI aC que se notabilizou por compor diacutesticos elegiacuteacos de teor lamentoso

O problema desta hipoacutetese eacute a sua falta de evidecircncia soacute teriacuteamos versos dos supostos herdeiros desta tradiccedilatildeo e o principal deles seria a proacutepria elegia de Androcircmaca Aleacutem disso parece estranho que um gecircnero poeacutetico de lamento arcaico tenha desparecido sem deixar rastros mas que tenha sido tatildeo importante a ponto de dar nome agrave elegia como um todo Lxi

Duas evidecircncias recentes parecem colaborar no entanto para fortalecer o ar-

gumento de que a elegia tinha propoacutesitos fuacutenebres a descoberta de um longo epitaacutefio em diacutesticos elegiacuteacos inscrito em um monumento funeraacuterio coletivo do seacuteculo VI aC o ldquoPoliacircndriordquo de Ambraacutecia e uma elegia de Simocircnides descoberta haacute poucos anos sobre a batalha entre Gregos e Persas em Plateia (fr11 W) Essas descobertas lanccedilaram a possibilidade de interpretar outros pequenos fragmentos de elegia que jaacute conheciacute-amos como possiacuteveis canccedilotildees de lamento Eacute o caso por exemplo do fragmento 13 de Arquiacuteloco Lxiii

De certo modo parece que a elegia era um gecircnero envolvido com a celebraccedilatildeo da morte de heroacuteis em um gesto muitas vezes comedido que expressa a voz do poeta refletindo e articulando o luto da cidade Satildeo poemas que mesmo com uma temaacutetica natildeo lamentosa celebram os heroacuteis (andres agathoi ldquohomens de valorrdquo) mortos em combate encenando e dramatizando o luto coletivo Eacute o caso de poemas como de Tir-teu um dos mais antigos poetas elegiacuteacos que nos restou cuja poesia exorta a lutar e morrer bravamente em combate para que seu nome e seu tuacutemulo sejam para sempre

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exaltados (fragmento 12 vv 27-34)

A outra evidecircncia (na verdade mais uma constataccedilatildeo) eacute que o mesmo metro da elegia jaacute era utilizado desde o periacuteodo arcaico (pelo menos a partir do seacutec VI aC) em outro gecircnero poeacutetico o epigrama a inscriccedilatildeo dedicatoacuteria em tuacutemulos ou oferendas

A ele [= ao homem de valor] pranteiam por igual jovens eanciatildeos e com dolorosa saudade a cidade toda se enluta Seu tuacutemulo e filhos satildeo insignes entre os homens e os filhos dos filhos e a geraccedilatildeo no porvir e jamais nobre gloacuteria ou o nome dele perecem mas mesmo sob a terra se torna imortalaquele que primando por manter-se em combatepela terra e pelos filhos o impetuoso Ares mata 54

54 τὸν δrsquo ὀλοφύρονται μὲν ὁμῶς νέοι ἠδὲ γέροντεςἀργαλέωι δὲ πόθωι πᾶσα κέκηδε πόλιςκαὶ τύμβος καὶ παῖδες ἐν ἀνθρώποις ἀρίσημοικαὶ παίδων παῖδες καὶ γένος ἐξοπίσωοὐδέ ποτε κλέος ἐσθλὸν ἀπόλλυται οὐδrsquo ὄνομrsquo αὐτοῦ ἀλλrsquo ὑπὸ γῆς περ ἐὼν γίνεται ἀθάνατοςὅντινrsquo ἀριστεύοντα μένοντά τε μαρνάμενόν τεγῆς πέρι καὶ παίδων θοῦρος Ἄρης ὀλέσηι

Assim podemos propor que a elegia poderia ter passado por um estreitamento de sentido em parte devido sua relaccedilatildeo com o epigrama e a sua predisposiccedilatildeo e alusotildees a contextos de lamento O lamento natildeo seria a uacutenica caracteriacutestica mas aquela que po-deria destacar a elegia de outras formas de poesia arcaica Este processo teria se dado ou alcanccedilado sua concretude no seacutec V aC com a palavra elegoi significando tanto ldquolamentordquo desprovido de qualquer implicaccedilatildeo meacutetrica como passando a circunscrever a elegia gecircnero poeacutetico definido pela sucessatildeo de diacutesticos elegiacuteacos

Quem teria comeccedilado esse processo Ora considerando que todas as ocorrecircn-cias de elegoi no seacutec V aC com esse sentido exceto uma estatildeo no proacuteprio Euriacutepides e a proacutepria elegia de Androcircmaca eacute um claro exemplar deste fenocircmeno ele proacuteprio eacute nosso melhor candidato ou ao menos teve um papel fundamental no estabelecimento da relaccedilatildeo entre elegia e lamento Se pensarmos desse modo a elegia ndash em distinccedilatildeo ao threnos e ao goos ndash se coloca como o uacutenico gecircnero poeacutetico envolvendo o lamento que natildeo eacute um canto coral e sim uma monodia que prescindia da resposta de um coro Tambeacutem era um canto masculino natildeo necessariamente profissionalizado mas um canto solo que circulava nos banquetes e simpoacutesios gregos o que acrescentaria mais uma camada metapoeacutetica agrave fala em diacutesticos de Androcircmaca ela mesma uma monodia entoada por um ator do sexo masculino

Por todos esses motivos a elegia de Androcircmaca eacute singular na trageacutedia e na histoacuteria da literatura mostrando-se um ponto fulcral para o entendimento de tradi-ccedilotildees literaacuterias e histoacutericas que convergem e podem nos dizer algo sobre a praacutetica do lamento e os gecircneros poeacuteticos na Antiguidade

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A ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou

paranoia

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David Pessoa de Lira

Introduccedilatildeo

O traacutegico sendo uma categoria esteacutetica e um princiacutepio filosoacutefico pode ser es-tudado e analisado a partir das diferentes expressotildees literaacuterias e artiacutesticas como o romance as artes plaacutesticas a muacutesica a comeacutedia a trageacutedia etc Destarte o fenocircmeno traacutegico natildeo estaacute circunscrito apenas agrave trageacutedia Ademais esse conceito compreende vaacuterios outros conceitos como a culpa traacutegica a situaccedilatildeo traacutegica o conflito traacutegico e o sujeito traacutegico O que natildeo se pode negar eacute que a trageacutedia grega se torna o ponto re-ferencial de onde se deve partir e aonde se deve retornar para tratar da concepccedilatildeo do traacutegico ou especificamente da culpa traacutegica

O que vem depois destes versos eacute notaacutevel e torna a Androcircmaca uacutenica entre as trageacutedias que nos restaram um exemplo do virtuosismo de Euriacutepides Abruptamente os versos ditos por Androcircmaca deixam de ser os triacutemetros jacircmbicos proacuteprios dos diaacutelo-gos traacutegicos e mudam para um metro que os atenienses do seacuteculo V aC normalmente atribuiacuteam ao lamento o diacutestico elegiacuteaco (vv103-116) Eacute certo que a transiccedilatildeo entre os Estritamente este texto se propotildee a analisar os aspectos conceptuais da ἁμαρτία [ha-martiā] traacutegica em Oedipus Tyrannus de Soacutefocles a partir da Arte Poeacutetica de Aristoacutete-les e do pensamento grego sobre a culpabilidade

Procedendo a uma abordagem conceptual da culpa traacutegica leva-se em consi-deraccedilatildeo que a trageacutedia sofocleana de Oedipus Tyrannus se enquadra nos pressupos-tos do conceito aristoteacutelico de ἁμαρτία como uma ἀγνοία [agnoiā] e consequente-mente como παράνοια [paranoia] Assim objetiva-se a) Demonstrar que a ἀγνοία eacute a natureza da ἁμαρτία (culpa) de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus b) Explicar que o conceito aristoteacutelico da ἀναγνώρισις [anagnōrisis] possibilita encontrar a natureza da ἁμαρτία a saber a ἀγνοία c) Fundamentar atraveacutes da teoria da culpabilidade pessoal e da responsabilidade a partir do direito e da filosofia dos antigos gregos que a ἀγνοία de Eacutedipo evidencia uma ἁμαρτία escusaacutevel um estado de deliacuterio e paranoia

Para tal em um primeiro momento faz-se necessaacuterio explicar que o motivo de uma ignoracircncia mental (ἀιδρείη νόοιο) no mito de Eacutedipo incide na Odisseia 11271-275 Embora essa ignoracircncia mental (ἀιδρείη νόοιο) se refira a Jocasta de qualquer maneira se trata do tema da ignoracircncia em relaccedilatildeo aos atos supostamente delituosos praticados Em um segundo momento busca-se destacar que a ἁμαρτία a partir de Aristoacuteteles em sua De Arte Poetica eacute diferente da ideia de culpa ou peccatum de Secircne-ca Demonstra-se assim em uma parte ulterior que a ignoracircncia constitui a natureza da ἁμαρτία em Oedipus Tyrannus Finalmente a partir dos dados anteriores pode-se se obter a comprovaccedilatildeo de que a ἀγνοία em uma anaacutelise da culpabilidade escusa Eacutedi-po de qualquer crime cometido justamente por se enquadrar como um homo demens

O motivo da ἀιδρείη νόοιο (ignoracircncia da mente) no mito homeacuterico de Eacutedipo

A priori conveacutem explanar algumas caracteriacutesticas do μῦϑος [mythos] na tra-geacutedia A palavra μῦϑος na De Arte Poetica de Aristoacuteteles tem acepccedilatildeo de argumento enredo roteiro e narrativa De acordo com esse filoacutesofo o enredo ou o μῦϑος eacute uma das seis partes qualitativas de uma trageacutedia sendo uma imitaccedilatildeo das accedilotildees ou a or-

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ganizaccedilatildeo sinteacutetica das accedilotildees (De Arte Poetica 1450a3-5 7-15) Assim as accedilotildees e o μῦϑος constituem a finalidade da trageacutedia sendo o mais importante de tudo (De Arte Poetica 1450a22-23) Em uacuteltima anaacutelise diz-se que o enredo eacute o princiacutepio e a alma da trageacutedia (De Arte Poetica 1450a38-39) As partes do μῦϑος utilizadas como meios para a trageacutedia exercer a psicagogia satildeo os reconhecimentos (ἀναγνώρισεις) e as peripeacutecias (περιπέτειαι [peripeteiai]) (De Arte Poetica 1450a33-35) Em um enredo complexo haacute uma mudanccedila de fortuna com o reconhecimento ou com a peripeacutecia ou com ambos (De Arte Poetica 1452a16-18) A peripeacutecia eacute a mudanccedila das accedilotildees para o contraacuterio enquanto que o reconhecimento eacute a mudanccedila da ignoracircncia para o conheci-mento (De Arte Poetica 1452a22-31)

Ainda no que concerne ao μῦϑος muitos eventos satildeo produzidos em uma quantidade incomensuraacutevel e nem todos formam uma unidade propriamente dita As-sim uma personagem pode exercer muitas accedilotildees que natildeo implicam em uma accedilatildeo de forma unitaacuteria (De Arte Poetica 1451a16-19) O mito pode apresentar uma pluralidade de accedilotildees que natildeo constam em uma uacutenica obra literaacuteria Ademais oμῦϑος eacute assaz im-portante para se vislumbrar as accedilotildees praticadas no decorrer da histoacuteria

Na Iliacuteada 4378 haacute uma referecircncia agrave guerra de Polinice e seus aliados contra Tebas Ainda na Iliacuteada 23677-679 relata-se que ldquoEuriacutealo filho de Micisteus rei Talai-ocircneo foi um dia a Tebas ao tuacutemulo de Eacutedipo caiacutedo em guerra (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo A palavra δεδουπότος [dedoupotos] indica que Eacutedipo sofreu morte violenta em comba-te ou pelas matildeos de um assassino Aleacutem disso natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma incidecircncia sobre Eacutedipo e seus antecedentes Assim sendo nessa obra homeacuterica eacute pressuposto que Eacutedipo sofreu uma morte violenta e recebeu um tuacutemulo em Tebas antes mesmo do acontecimento da guerra de Troia Esse fato natildeo eacute mencionado por Soacutefocles em Oe-dipus Tyrannus Nota-se que seu mito apresenta uma pluralidade de informaccedilotildees que vatildeo aleacutem de um uacutenico texto literaacuterio

Em todo caso na Odisseia 11271-275 o esquema principal da histoacuteria de Eacutedipo eacute explicitado

Vi a matildee de Eacutedipo bela Epicasta a qual realizou um grande feito por ignoracircncia de mente casando com seu filho e ele tendo matado seu pai casou e rapidamen-te os deuses estabeleceram coisas notoacuterias aos homens Todavia ele reinava sobre os cadmeus em Tebas mui ama-da sofrendo dores por causa da dolorosa vontade dos deuses (traduccedilatildeo proacutepria) 57

Com relaccedilatildeo a esse outline sobre o mito de Eacutedipo conveacutem explicar que Epicas-ta eacute um outro nome para Jocasta Ademais no texto supramencionado a) natildeo se men-ciona nada sobre a libertaccedilatildeo de Tebas da Esfinge b) a cegueira de Eacutedipo natildeo incide c) nada se comenta sobre o exiacutelio (expulsatildeo) de Eacutedipo ndash o que levaria a concordar com a Iliacuteada Tudo indica que o autor desse texto tenha excluiacutedo a ideia de que Epicasta tenha gerado filhos de Eacutedipo Lxxx

Na Odisseia 11271-275 reza-se Lxxxi ldquoVi a matildee de Eacutedipo bela Epicasta a qual

realizou um grande feito por ignoracircncia de mente casando com seu filho (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo 58 A expressatildeo ἀιδρείη νόοιο (ignoracircncia de mente) equivale agraves palavras ἀγνοία e ἁμαρτία indicando a falta de conhecimento e a ignoracircncia Epicasta realizou um grande feito por ignoracircncia descuido e negligecircncia a saber casando com o proacuteprio filho Eacute evidente que incide o motivo da ignoracircncia Lxxxii mas essa ἀιδρείη νόοιο (igno-racircncia de mente) adveacutem da personagem Epicasta e natildeo de Eacutedipo

Em todo caso aleacutem de outros pormenores essa passagem potildee em evidecircn-cia o fato do casamento entre Eacutedipo e Epicasta ter se dado por ignoracircncia O fato de ter destacado a maneira como a accedilatildeo foi realizada pode levar justamente agrave natureza da ἁμαρτία em Oedipus Tyrannus Entretanto deve-se verificar se a accedilatildeo de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus foi um ato por engano ou por ignoracircncia Em De Arte Poetica 1453a8-9 15-16 pode-se confirmar que a ἁμαρτία natildeo tem um caraacuteter moral Em todo caso soacute a atestaccedilatildeo da sua natureza na contraposiccedilatildeo entre ἀγνοία e γνῶσις [gnōsis] pode confirmar isso

A ἁμαρτία e o aspecto moral

Soacutefocles em suas trageacutedias assim como Eacutesquilo focalizava a accedilatildeo em uma soacute personagem destacando o seu caraacuteter e os traccedilos de sua personalidade Ele introduz personagens mais humanas Seus heroacuteis satildeo mais humanos e acessiacuteveis do que os de Eacutesquilo mais equilibrados e menos retoacutericos do que os de Euriacutepides O fatalismo foi banido das suas trageacutedias Assim o ser humano com seu complexo de virtudes e de-feitos de paixotildees violentas e de sentimentos ternos ocupa um lugar central e prepon-derante na dramaacutetica sofocleana Lxxxiii

Segundo Nietzsche na Antiguidade natildeo havia o conceito de indiviacuteduo O con-ceito de indiviacuteduo era pouco desenvolvido mas o de estirpe famiacutelia e estado era pra-ticamente geral No entanto como diz Nietzsche haacute um caraacuteter imeacuterito do destino no indiviacuteduo incidente em Oedipus Tyrannus de Soacutefocles Pode-se perceber isso atraveacutes do enigma do destino do homem da culpa sem consciecircncia do sofrimento imerecido Sendo assim de acordo com Nietzsche a trageacutedia aponta para algo mais transcenden-tal para aleacutem desse mundo aleacutem da vida que natildeo merece mais ser vivida A trageacutedia eacute pessimista e Soacutefocles deixou de lado a maldiccedilatildeo da estirpe para falar de um Eacutedipo mortal e mergulhado no infortuacutenio graccedilas aos deuses Entretanto essa calamidade natildeo eacute necessariamente uma puniccedilatildeo mas uma forma de redenccedilatildeo por meio da qual o homem emerge e eacute consagrado como um homem piedoso Em uacuteltima anaacutelise o sujei-to do ato traacutegico (em um conflito insoluacutevel) tem de alcanccedilar a consciecircncia para sofrer conscientemente Por isso natildeo haacute accedilatildeo imoral mas erro de percurso Lxxxv

57 Εὐρύαλος [] Μηϰιστῆος υἱὸς Ταλαϊονίδαο ἄναϰτος ὅς ποτε Θήβας δ᾽ ἦλϑε δεδουπότος Οἰδιπόδαο ἐς τάφον (HOMERO 2008 v 2 p 426)μητέρα τ᾽ Οἰδιπόδαο ἴδον ϰαλὴν Ἐπιϰάστην ἣ μέγα ἔργον ἔρεξεν ἀιδρείῃσι νόοιο γημαμένη ᾧ υἷι ὁ δ᾽ ὃν πατέρ᾽ ἐξεναρίξας γῆμεν ἄφαρ δ᾽ ἀνάπυστα ϑεοὶ ϑέσαν ἀνϑρώποισιν ἀλλ᾽ ὁ μὲν ἐν Θήβῃ πολυηράτῳ ἄλγεα πάσχων Καδμείων ἤνασσε ϑεῶν ὀλοὰς διὰ βουλάς (HOMERO 2011 p 332-335 JEBB 2010 v 1 p xiv)58 μητέρα τ᾽ Οἰδιπόδαο ἴδον ϰαλὴν Ἐπιϰάστην ἣ μέγα ἔργον ἔρεξεν ἀιδρείῃσι νόοιοHOMERO 2011 p 332-335

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Embora Oedipus Tyrannus de Soacutefocles natildeo tenha sido composto para uma tri-logia sendo uma obra completa essa trageacutedia natildeo apresenta nenhum antecedente da peccedila como um proacutelogo de toda a maldiccedilatildeo dos labdaacutecidas e do proacuteprio Eacutedipo Sabe-se que Eacutedipo eacute um parricida e casou incestuosamente com sua matildee por puro desconhe-cimento Sabe-se que isso foi uma maldiccedilatildeo dos deuses proferida por meio de uma pitonisa de Apolo em Delfos Natildeo haacute em Oedipus Tyrannus um proacutelogo formal que explique a origem da maldiccedilatildeo Lxxxvi

Natildeo haacute duacutevida de que Eacutedipo tenha realizado falhas ou faltas Sobre o assas-sinato de Laio ele mesmo pergunta a Creonte ldquoποῦ τόδ᾽ εὑρεϑήσεται ἴχνος παλαιᾶς δυστέϰμαρτον αἰτίας (onde se encontraraacute pista de um crime antigo) (traduccedilatildeo proacute-pria)rdquo59 Em Oedipus Tyrannus natildeo incide a palavra ἁμαρτία Lxxxiii Para uma falta um crime uma responsabilidade ou causa Eacutedipo usa αἰτία [aitiā] Esta palavra ocorre uma uacutenica vez em Oedipus Tyrannus Em termos eacuteticos aristoteacutelicos para Eacutediposer respon-saacutevel (αἴτιος) precisaria ser viciado mau ou algueacutem de uma vida desregrada Lxxxviii

Aristoacuteteles em De Arte Poetica 1453a15-16 sugere

Eacute necessaacuterio que o mito seja mais simples do que duplo como alguns dizem e que mude natildeo do infortuacutenio para a boa sorte mas do contraacuterio da boa sorte para o infor-tuacutenio natildeo por causa da maldade mas por causa de um grande desvio (traduccedilatildeo proacutepria) 60

Ele menciona que se houver um infortuacutenio deve-se consideraacute-lo como ἁμαρτίαν τινά natildeo como um defeito moral ou como um viacutecio (ϰαϰὶα ϰαὶ μοχϑηρία) (De Arte Poetica 1453a8-9) Assim aqui ίμαρτία natildeo tem qualquer conotaccedilatildeo moral A culpa (ἁμαρτία) natildeo eacute necessariamente um viacutecio ou um mal mas uma culpa em es-tado de falha que leva agrave queda ao infortuacutenio e agrave perda de prestiacutegio O homem culpado natildeo eacute moralmente culpado natildeo eacute perfeito (proeminentemente virtuoso ou justo) mas tambeacutem natildeo eacute reprovaacutevel (inferior sem gloacuteria)xc

Segundo Lesky a partir da definiccedilatildeo de Aristoacuteteles eacute possiacutevel que haja uma indicaccedilatildeo daquilo que se julga como situaccedilatildeo basicamente traacutegica do ser humano Por isso Eacutedipo eacute mencionado como um exemplo dessa concepccedilatildeo do traacutegico xci

A culpa traacutegica com caraacuteter moral vem de Secircneca Secircneca aplicou seu caraacuteter estoico-moralizante apropriando-se do conceito de ἁμαρτία (peccatum) como culpa de caraacuteter moral Ele se distancia do antigo estoicismo e da maioria dos filoacutesofos gregos ao acentuar o sentido do peccatum e da culpa como marca de todo homem Para Secircne-ca natildeo existe homem sem pecado e consequentemente se afasta do ideal de saacutebio do antigo estoicismo xcii

59 Oedipus Tyrannus 108-109 SOPHOCLES 2010 v 1 p 3460 Ἀνάγϰη ἄρα τὸν ϰαλῶς ἔχοντα μῦϑον ἁπλοῦν εἶναι μᾶλλον ἢ διπλοῦν ὥσπερ τινές φασι ϰαὶ μεταβάλλειν οὐϰ εἰς εὐτυχίαν ἐϰ δυστυχίας ἀλλὰ τοὐναντίον ἐξ εὐτυχίας εἰς δυστυχίαν μὴ διὰ μοχϑηρίαν ἀλλὰ δι᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην (ARISTOTELES 1965 p 20)

Segundo Secircneca estruturalmente o homem eacute peccator incorrendo sempre em peccatum e natildeo ocasionalmente Nota-se que o conceito de peccatum estaacute relacionado com a ideia de voluntas Segundo o filoacutesofo latino a voluntas eacute o querer em consonacircn-cia com a accedilatildeo fazer querendo e natildeo se trata do fazer sabendo Como o peccatum natildeo estaacute relacionado agrave ignoracircncia assim a voluntas ultrapassando o niacutevel do saber res-ponde a solicitaccedilotildees que natildeo satildeo apenas de ordem do conhecimento Assim em uacuteltima anaacutelise a vontade torna os seres humanos bons ou maus xciii

Aristoacuteteles preveniu cuidadosamente para que a ἁμαρτία natildeo fosse interpreta-da moralmente Deve-se observar a importacircncia disso pelo fato de ao mencionar sobre a reviravolta salienta que esssa natildeo deve se basear em consequecircncia de uma grave falha (De Arte Poetica 1453a15-16) Sendo viacutetima de uma queda o sujeito traacutegico natildeo pode ser de acordo com Aristoacuteteles distinto por virtude e justiccedila nem por viacutecio e mal-dade mas por alguma falha (ἁμαρτίαν τινά) Assim Aristoacuteteles destaca que o sujeito traacutegico tem um caraacuteter meacutedio (μεταξύ [metaxy]) cuja reviravolta natildeo seja devido ao crime mas ao erro inconsciente (De Arte Poetica 1453a7-12) xcv

A ignoracircncia como natureza da ἁμαρτία em oedipus tyrannus

Segundo Albin Lesky para Aristoacuteteles a finalidade da poesia traacutegica eacute justa-mente a catarse De Arte Poetica de Aristoacuteteles trata da criaccedilatildeo literaacuteria e tem domi-nado as opiniotildees quando o assunto eacute trageacutedia Partindo para a finalidade da poesia traacutegica chega-se agrave catarsexcvi Seria possiacutevel encontrar aqui a natureza da ἁμαρτία

Segundo Nietzsche se considerar o conceito do traacutegico atraveacutes de uma esteacutetica moderna esse equiliacutebrio entre caraacuteter e destino culpa e puniccedilatildeo natildeo deve ser levado absolutamente do ponto de vista esteacutetico mas moral Isso soacute pode ser considerado em termos juriacutedicos delimitados O espectador faz parte de um juacuteri e compete ao mesmo dar sua aprovaccedilatildeo ao castigo de Eacutedipo ou natildeo Se assim for a ϰάϑαρσις [katharsis] traacute-gica seria aceita como uma espeacutecie de julgamento cataacutertico esteacutetico-moral empregan-do o seguinte criteacuterio o triunfo do homem justo comedido e apatoloacutegico No entanto de acordo com Nietzsche isso natildeo eacute a fonte do gecircnero traacutegico O conceito de traacutegico natildeo explica a origem da trageacutedia xcvii

Seja qual for a origem e fonte da trageacutedia em todo caso Eacutedipo natildeo pode ser julgado moralmente Natildeo se trata de um desvio por viacutecio ou maldade (ϰαϰὶα ϰαὶ μοχϑηρία) (De Arte Poetica 1453a8-9) xcviii Veja-se em De Arte Poetica 1449b27-28 Aristoacuteteles menciona o seguinte ldquorealizando por meio da compaixatildeo e do medo a catarse desses sentimentos (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo61 Sendo assim a catarse eacute um ele-mento purificador Ela eacute empregada em termos meacutedicos com o sentido de causar aliacutevio e dar prazer Entatildeo aqui a compaixatildeo e o medo satildeo os elementos causadores de uma purificaccedilatildeo agradaacutevel dos afetos e sentimentos xcix

Natildeo obstante a ϰάϑαρσις excita a piedade e o temor pelo ouvir sem ver (o abandono do filho o assassinato de Laio e a morte de Jocasta) A desintegraccedilatildeo dos

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laccedilos familiares a desestruturaccedilatildeo da piedade familiar a desestrutura do pietas erga parentes e do pietas erga liberos tudo isso gera o sentimento de falta de virtude As-sim o puacuteblico estaacute diante da impiedade c

Em todo caso esse efeito traacutegico soacute deve ser entendido contextualmente le-vando em consideraccedilatildeo os aspectos culturais do medo do horror e da moral Para Aris-toacuteteles por um lado o conceito de ϰάϑαρσις natildeo tinha efeito moral e por outro ela natildeo causava danosci Deve-se salientar que o sentimento compugente se daacute diante da mudanccedila de sorte principalmente com relaccedilatildeo aos que natildeo merecem o infortuacutenio O medo eacute decorrente do sentimento que coloca algueacutem em situaccedilatildeo semelhante agrave do de-safortunado (De Arte Poetica 1453a1-7) cii Obviamente isso trata especificamente dos efeitos do sentido para o espectador exercendo um jogo de emoccedilotildees paixotildees e terror

A catarse diante da situaccedilatildeo traacutegica de Eacutedipo aponta para uma soluccedilatildeo de na-tureza dupla a) ele merece ou natildeo chegar ao infortuacutenio b) deve se colocar em sua situaccedilatildeo Assim a ἁμαρτία de Eacutedipo eacute a a culpa traacutegica que a humanidade deve assumir em situaccedilatildeo de infortuacutenio a qual natildeo depende necessariamente dos seus planos Em uacuteltima anaacutelise ele fez o que fez por total ignoracircncia Aqui reside o ponto chave a saber a ἀγνοία (ignoracircncia e desconhecimento) Um conceito aristoteacutelico que trata especifi-camente do desconhecimento eacute justamente a ἀναγνώρισις

De acordo com Aristoacuteteles De Arte Poetica 1452a29 ldquoo reconhecimento [eacute] como tambeacutem o nome significa a mudanccedila da ignoracircncia para o conhecimento (tra-duccedilatildeo proacutepria)rdquo62 A palavra ἀναγνώρισις eacute reconhecimento ou accedilatildeo de reconhecer Na trageacutedia trata-se do reconhecimento que conduz ao desenlace (λῦσις [lysis]) (De Arte Poetica 1455b24-34) ciii

Etimologicamente o substantivo grego γνῶσις [gnōsis] e o verbo γιγνώσϰω [gignōskō] tecircm o sentido primaacuterio de conhecimento ou percepccedilatildeo Natildeo eacute muito difiacutecil tambeacutem perceber a relaccedilatildeo sinoniacutemica de gnose com νοῦς [nous] A palavra ἀγνοία [agoniā] indica justamente falta de conhecimento falta de percepccedilatildeo e ignoracircncia (com ou sem conduta moral) Consequentemente essa palavra tem a acepccedilatildeo de conduta equivocada de conduta errada ou de erro falta cometida por ignoracircncia e descuido cv

Em Oedipus Tyrannus 1347-1348 o coro em diaacutelogo com Eacutedipo diz ldquoInfeliz de consciecircncia e de sorte igualmente gostaria que tu natildeo tivesses conhecido nada (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo63 O texto descreve o estado de Eacutedipo pobre de mente (δείλαιε τοῦ νοῦ) o qual chegou ao conhecimento (γνῶναι ndash infinitivo de γιγνώσϰω) Embora o νοῦς [nous] seja o oacutergatildeo da gnose ele eacute descrito como uma metoniacutemia de gnose Em geral νοῦς [nous] denota mente mas pode conotar significado sensibilidade recorda-ccedilatildeo alma coraccedilatildeo intenccedilatildeo razatildeo intelecto entendimento pensamento intelecccedilatildeo sabedoria percepccedilatildeo intuiccedilatildeo cvi

61 δι᾽ ἐλέου ϰαὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παϑημάτων ϰάϑαρσιν (ARISTOTELES 1965 p 10)62 ἀναγνώρισις δέ ὥσπερ ϰαὶ τοὔνομα σημαίνει ἐξ ἀγνοίας εἰς γνῶσιν μεταβολή (ARISTOTELES 1965 p 17)

Diferente de Medeia de Euriacutepides Eacutedipo de Soacutefocles age sem saber ou conhe-cer por total ignoracircncia Ademais sua accedilatildeo natildeo incide no drama Soacutefocles criou uma peccedila em torno de uma situaccedilatildeo paranoica cvii das accedilotildees anteriores de Eacutedipo bem como seus precedentes

Pois eacute possiacutevel que a accedilatildeo siga como os antigos [poetas] faziam [as personagens] sabedoras e conhecedo-ras como tambeacutem Euriacutepides fez Medeia matar os filhos mas eacute possiacutevel agir desconhecendo para entatildeo depois reconhecer a relaccedilatildeo familiar como Eacutedipo de Soacutefocles as-sim isso estaacute fora do drama (traduccedilatildeo proacutepria)64

Medeia sabia que estava matando os filhos enquanto Eacutedipo tinha desconheci-mento de sua relaccedilatildeo parental com Laio As accedilotildees de Eacutedipo satildeo consequecircncias de uma rede de pensamento que o perseguia sobre sua verdadeira paternidade Mais adiante ele se enreda no drama de Tebas em torno da morte de Laio Entre esses acontecimen-tos a personagem dramaacutetica realiza tragicamente um ato paranoico

Oacute habitantes da Paacutetria Tebas olhai esse Eacutedipo que era um homem famoso conhecia os enigmas e era o mais poderoso de quem algueacutem dentre os cidadatildeos fica-va com inveja observando a sorte Entrou em uma onda de terriacutevel acontecimento Desse modo natildeo se conhece o ser mortal que guarda aquele uacuteltimo dia nem o considera feliz antes que o teacutermino da vida se complete e que sofra o desprazer (traduccedilatildeo proacutepria) 65

63 Δείλαιε τοῦ νοῦ τῆς τε συμφορᾶς ἴσον ὡς σ᾽ ἠϑέλησα μηδέ γ᾽ ἂν γνῶναί ποτεhellip (SOPHOCLES 2010 v 1 p 242-243)64 De Arte Poetica 1453b26-32 ἔστι μὲν γὰρ οὕτω γίνεσϑαι τὴν πρᾶξιν ὥσπερ οἱ παλαιοὶ ἐποίουν εἰδότας ϰαὶ γιγνώσϰοντας ϰαϑάπερ ϰαὶ Εὐριπίδης ἐποίησεν ἀποϰτείνουσαν τοὺς παῖδας τὴν Μήδειαν ἔστιν δὲ πρᾶξαι μέν ἀγνοοῦντας δὲ πρᾶξαι τὸ δεινόν εἶϑ᾽ ὕστερον ἀναγνωρίσαι τὴν φιλίαν ὥσπερ ὁ Σοφοϰλέους Οἰδίπους τοῦτο μὲν οὖν ἔξω τοῦ δράματος (ARISTOTELES 1965 p 22)65 Soacutefocles Oedipus Tyrannus 1524-1530 ὦ πάτρας Θήβης ἔνοιϰοι λεύσσετ᾽ Οἰδίπους ὅδε ὃς τὰ ϰλείν᾽ αἰνίγματ᾽ ᾔδει ϰαὶ ϰράτιστος ἦν ἀνήρ οὗ τίς οὐ ζήλῳ πολιτῶν ἦν τύχαις ἐπιβλέπων εἰς ὅσον ϰλύδωνα δεινῆς συμφορᾶς ἐλήλυϑεν ὥστε ϑνητὸν ὄντrsquo ἐϰείνην τὴν τελευταίαν ἰδεῖν ἡμέραν ἐπισϰοποῦντα μηδέν᾽ ὀλβίζειν πρὶν ἂν τέρμα τοῦ βίου περάσῃ μηδὲν ἀλγεινὸν παϑών (SOPHOCLES 2010 v 1 p 274-276)

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A ἀγνοία e a culpabilidade de Eacutedipo

Incide nos diaacutelogos platocircnicos uma tendecircncia a defender a teoria de que nin-gueacutem faz o mal voluntariamente mas por ignoracircnciacvii A partir dessa assertiva de-ve-se observar a teoria da culpabilidade pessoal do mal e a responsabilidade de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus Para isso faz-se necessaacuterio considerar segundo as condiccedilotildees internas e a psicologia do agente as vaacuterias modalidades de accedilatildeo um ato realizado de bom grado com pleno conhecimento de causa depois de uma decisatildeo e deliberaccedilatildeo e um ato de mau grado realizado inconscientemente por ignoracircncia ou coerccedilatildeo exter-na Ademais conveacutem observar se a accedilatildeo eacute premeditada e intencional de maneira que se estabeleccedila a distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo repreensiacutevel ou escusaacutevel Aqui natildeo se trata de uma distinccedilatildeo entre accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria mas em termo de conhecimento e ignoracircncia

Para ser culpada a pessoa deve ter agido conscientemente ou ldquosabendordquo As-sim a ἀγνοία constitui a proacutepria essecircncia da falta definindo a categoria de crime ou delito de mau grado sem intenccedilatildeo ou premeditaccedilatildeo delituosa Do ponto de vista do antigo direito grego a oposiccedilatildeo entre o ato realizado de bom grado e um ato realizado de mau grado foi definida em termos de conhecimento e ignoracircncia Por isso as faltas cometidas por ἀγνοία satildeo consideradas como de mau grado cix Isso adveacutem do fato de que na mentalidade grega antiga toda accedilatildeo estava relacionada ao conhecimento ou ao saber Na Antiguidade onde se esperava a ideia do querer ou da voluntas os gregos empregavam a ideia do saber do agir consciente premeditado deliberado e inten-cional Soacute a partir dessa concepccedilatildeo pode-se afirmar se uma accedilatildeo eacute imputaacutevel ou natildeo imputaacutevel ao sujeito repreensiacutevel ou escusaacutevel cx

Assim natildeo se pode defender definitivamente que Eacutedipo quis matar o pai e se casar com a matildee deliberadamente ou conscientemente Esses atos natildeo eram vislum-brados por Eacutedipo Seria necessaacuterio que seu crime fosse realizado ldquosabendordquo Platatildeo ad-mite a ἀγνοία como princiacutepio geral do delito mas ao lado desse princiacutepio ele entende que a ἀγνοία eacute a base de uma accedilatildeo natildeo delituosa Sendo assim esse paradoxo entre o princiacutepio essencial da falta e da escusa se exprime por conta da evoluccedilatildeo semacircntica das palavras que constituem a famiacutelia de ἁμαρτία cxi

Algueacutem natildeo mentiria dizendo que a terceira cau-sa dos delitos eacute a ignoracircncia Essa causa poreacutem o advo-gado poderia fazer melhor dividindo em duas partes por um lado leva-se em consideraccedilatildeo que a [forma] simples dela eacute a causa dos delitos leves por outro lado a forma dupla [eacute] quando algueacutem ignorar natildeo soacute sendo oprimido mas tambeacutem por falsa opiniatildeo da sabedoria conhecendo inteiramente sobre as coisas que ele nada conhece (tra-duccedilatildeo proacutepria) 66

66 Platatildeo Leges 9863c τρίτον μὴν ἄγνοιαν λέγων ἄν τις τῶν ἁμαρτημάτων αἰτίαν οὐκ ἂν ψεύδοιτο διχῇ μὴν διελόμενος αὐτὸ ὁ νομοθέτης ἂν βελτίων εἴη τὸ μὲν ἁπλοῦν αὐτοῦ κούφων ἁμαρτημάτων αἴτιον ἡγούμενος τὸ δὲ διπλοῦν ὅταν ἀμαθαίνῃ τις μὴ μόνον ἀγνοίᾳ συνεχόμενος ἀλλὰ καὶ δόξῃ σοφίας ὡς εἰδὼς παντελῶς περὶ ἃ μηδαμῶς οἶδεν (Plato 1926 v 2 p 232-233)

Segundo Jean-Pierre Vernant a evoluccedilatildeo semacircntica das palavras que consti-tuem a famiacutelia de ἁμαρτία eacute dupla Por um lado os termos podem indicar intenccedilatildeo Por exemplo ἁμαρτῶν (culpado intencionalmente cometeu ato criminoso) e οὐχ ἁμαρτῶν (agiu de mau grado sem intenccedilatildeo) Nesse sentido ἁμαρτάνω significa ἀδικέω (come-ter injusticcedila agir de forma injustificaacutevel cometer delito intencional) Em todo caso o verbo ἁμαρτάνω deixa impliacutecita uma ideia primitiva que comeccedila a se disseminar no seacutec V aEC a saber de falta e de cegueira de espiacuterito Assim o verbo ἁμαρτάνω se aplica agrave falta escusaacutevel sem intencionalidade ou sem plena consciecircncia xii Eacutedipo age de mau grado sem intenccedilatildeo por total cegueira da ignoracircncia Natildeo se pode negar que sua atitude vinha acompanhada de inconsequecircncias e sem plena consciecircncia de seus atos

Platatildeo alarga as concepccedilotildees mais antigas acerca da falta A palavra ἁμάρτημα [hamartēma] incide na Antiguidade como erro do espiacuterito (mental) como poluccedilatildeo religiosa ou fraqueza moral Como se percebeu anteriormente o verbo ἁμαρτάνω tem a acepccedilatildeo de enganar-se com sentido de desvario de inteligecircncia de cegueira danosa de uma cegueira que precipita ou leva agrave ruiacutena Em uacuteltima anaacutelise a ἁμαρτία eacute uma doenccedila mental e o criminoso eacute um doente viacutetima da proacutepria ἁμαρτία do deliacuterio O ἁμαρτίνοος eacute um homo demens que perdeu o senso A loucura da ἁμαρτία assedia a pessoa como uma ἄτη [atē] interiormente penetrando como uma forccedila religiosa do mal A forccedila da loucura da ἁμαρτία age tanto internamente como exteriormente atin-gindo desde o sujeito da accedilatildeo passando pelos familiares ateacute uma poacutelis inteira cxiii

Foi mencionado anteriormente que Soacutefocles criou uma peccedila em torno de uma situaccedilatildeo paranoica das accedilotildees anteriores de Eacutedipo bem como seus precedentes Deve--se entender essa paranoia como um ato de pensar equivocadamente pensar errado entender mal conceber errado estar sem sentido ou delirar pensamento desviado loucura ou deliacuterio Trata-se de uma anormalidade do νοῦς [nous] A situaccedilatildeo de Eacutedipo eacute um estado paranoico de cegueira danosa e de doenccedila mental Trata-se de uma locura causada pela ἁμαρτία enquanto deliacuterio cxiv

Desde o final do seacutec IV aEC a palavra ἁμάρτημα estava associada agrave noccedilatildeo de delito natildeo intencional Isso eacute tatildeo notoacuterio que o proacuteprio Aristoacuteteles diferencia ἁμάρτημα de ἀδίκημα (delito intencional e premeditado) ἀτύχημα (um delito acidental estranho ao saber do agente) cxv Se assim for a coexistecircncia paradoxal e de sentidos contradi-toacuterios na mesma famiacutelia de ἁμαρτία se prolongou por muitos seacuteculos No entanto isso soacute ocorre porque a noccedilatildeo de ἀγνοία incide em dois niacuteveis distintos de pensamento Por um lado pode-se concebecirc-la como forccedila sinistra que assedia o espiacuterito humano impelindo-o para uma cegueira maleacutefica Por outro lado trata-se de uma falta de co-nhecimento por parte do ser humano em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees proacuteprias dos atos cxvi

A palavra ἁμαρτία De Arte Poetica 1453a8-9 15-16 ainda carrega em seu bojo o sentido paradoxal e ambiacuteguo entre a falta imputaacutevel e natildeo imputaacutevel ao sujeito entre a falta repreensiacutevel e escusaacutevel Destarte Aristoacuteteles alerta constamente sobre a especificidade da ἁμαρτία cxvii Assim Eacutedipo esse homem culpado sofrido dolorido e esmagado eacute um homem envolvido em uma desgraccedila imerecida por ocasiatildeo de sua ignoracircncia e jogado ao caminho Esse homem uma vez era um heroacutei (homo divinus

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homo heros) decaiacutedo na sua proacutepria humanidade indo nesta existecircncia ateacute o mais baixo status da humanidade

Conclusatildeo

Em Oedipus Tyrannus como supramencionado a concepccedilatildeo da ἀγνοία pode ser compreendida e interpretada a partir de dois niacuteveis de pensamento No entanto como natildeo fica expliacutecito a atuaccedilatildeo dos astros deuses e a maldiccedilatildeo de sua estirpe pro-cura-se encontrar um erro em Eacutedipo gerando muitas vezes mal-entendido na semiose da trageacutedia A arrogacircncia de Eacutedipo sua falta de medida (ὕβρις [hybris]) compele a culpaacute-lo por sua escolha Em todo caso Soacutefocles natildeo apresentou nenhuma πρώταρχος ἄτη [prōtarkhos atē] ou seja uma culpa maleacutefica ou perversa cxviii Poreacutem nem em Oedipus Tyrannus nem em De Arte Poetica incidem as expressotildees ὕβρις e πρώταρχος ἄτη em consonacircncia com ἁμαρτία De qualquer maneira essas palavras configuram um aspecto esteacutetico-moral

Eacute plausiacutevel que Eacutedipo se apresente com uma ἀγνοία de segundo niacutevel a saber uma falta de conhecimento por parte do ser humano em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees proacuteprias das suas accedilotildees De Arte Poetica 1453b26-32 Aristoacuteteles menciona refererindo-se a Eacutedipo que eacute possiacutevel as pessoas agirem desconhecendo (ἀγνοοῦντας πρᾶξαι) cxix Ora em termos de uma concepccedilatildeo grega antiga para ser culpado o indiviacuteduo deveria agir sabendo Logo Eacutedipo natildeo poderia ser culpado

Eacute possiacutevel aventar levando os antecedentes de Eacutedipo que ele foi simplesmente usado pelas forccedilas divinas principalmente no que diz respeito agrave maldiccedilatildeo de sua estir-pe Quanto a isso Eacutedipo seria inocente e natildeo poderia pagar pelos seus atos uma vez que foi compelido ou estava sob um estado de coerccedilatildeo da fatalidade agindo como agiu No entanto ateacute o fato de ter nascido de iacutempios era totalmente desconhecido dele Aleacutem do incesto e do parriciacutedio uma maldiccedilatildeo veio a ser explicitada e ele percebeu que era um ldquoateurdquo ldquofilho de iacutempios

Entatildeo daqueles que fui gerado eu natildeo viria como assassino do pai nem noivo [da matildee] seria chamado entre os mortais E ago-ra eu sou um sem deus e filho de iacutempios E consaguiacuteneo infeliz dos quais fui gerado (traduccedilatildeo proacutepria)67

Em Oedipus Tyrannus a maldiccedilatildeo da estirpe eacute substituiacuteda por uma falta de conscientizaccedilatildeo de reconhecimento A posteriori Eacutedipo reconhece que eacute filho de uma famiacutelia maldita mas suas accedilotildees estatildeo em relevo A maldiccedilatildeo da estirpe ficaraacute subjacen-te agraves atitudes equivocadas de Eacutedipo e aquela soacute viraacute agrave baila com o reconhecimento Natildeo obstante na passagem anterior natildeo fica claro se Soacutefocles usou esse lamento de Eacutedipo para expressar que ele Eacutedipo ldquosujourdquo ou ldquomaculourdquo sua estirpe sua famiacutelia e o culto

67 Soacutefocles Oedipus Tyrannus 1357-1361 οὔκουν πατρός γ᾽ ἂν φονεὺς ἦλθον οὐδὲ νυμφίος βροτοῖς ἐκλήθην ὧν ἔφυν ἄπο νῦν δ᾽ ἄθεος μέν εἰμ᾽ ἀνοσίων δὲ παῖς ὁμογενὴς δ᾽ ἀφ᾽ ὧν αὐτὸς ἔφυν τάλας Sophocles 2010 v 1 p 246-247

aos antepassados ou se havia uma maldiccedilatildeo anterior a ele Ao que tudo indica Eacutedipo maculou seus antepassados e descendecircncia profanando sua famiacutelia A passagem que poderia apontar para uma maldiccedilatildeo da estirpe na verdade aponta o resultado da ἁμαρτία enquanto ἀγνοία Jocasta eacute profanada por causa de Eacutedipo e isso explica por que Eacutedipo eacute um ἀνοσίων παῖςcxx Portanto Eacutedipo em Oedipus Tyrannus natildeo eacute viacutetima do destino uma vez que a maldiccedilatildeo resulta de suas accedilotildees tendo implicaccedilotildees no futuro e para os antepassados Eacutedipo eacute a arma de vinganccedila da maldiccedilatildeo de Laio ao agir de forma equivocada alterando a rota de posteridade da sua estirpe e aniquilando o culto aos antepassados

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Amor e poesiaem Plutarco

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Maria Aparecida de Oliveira Silva

Plutarco utiliza tanto a poesia quanto a filosofia aproximando-as para elabo-rar seus conceitos sobre o amor em Diaacutelogo do Amor Notamos que o autor se volta para a praacutetica da teoria cxxii por isso o caraacuteter prescritivo de seu textocxxii A teoriaplutarquiana do amor em sua gecircnese prioriza a accedilatildeo uma vez que sua base foi cons-truiacuteda a partir de um episoacutedio amoroso Portanto eacute uma teoria praacutetica que tenciona ensinar como o homem e a mulher devem atuar para viver tal sentimento no seu ca-samento cxxiv Neste capiacutetulo trataremos em especial do uso da poesia na escrita deste tratado e na construccedilatildeo de seu argumento favoraacutevel a adoccedilatildeo de Eros como o deus do amor O tema principal de Diaacutelogo do Amor eacute a relaccedilatildeo de Ismenodora e Baacutecon con-siderada incomum pois se trata do casamento de uma mulher viuacuteva abastada e de famiacutelia ilustre com um jovem belo de origem bastante modesta De acordo com Rist (2001 p 577) Ismenodora teria por volta de trinta anos de idade e Baacutecon em torno de dezoito O diaacutelogo acontece logo apoacutes o casamento de Plutarco com Timocircxena quando ele levou sua esposa para realizar sacrifiacutecios em honra do deus Eros devido agrave desaven-ccedila ocorrida entre seus pais Assim a ida do casal agrave cidade de Teacutespias teve por finalidade estreitar seus laccedilos afetivos evitando que a contenda de seus pais interferisse em seu casamento (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B)

Diaacutelogo do Amor se inicia com Flaviano pedindo ao filho de Plutarco Autobulo que relate o debate sobre o amor ocorrido durante as Erotiacutedias festividades dedicadas a Eros realizadas na cidade de Teacutespias (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 748E-F) As personagens do diaacutelogo satildeo Flaviano Autobulo Plutarco Dafneu Soclaro Protoacutegenes Zeuxipo Antecircmion e Piacutesias Tambeacutem assistem ao debate os amigos beoacutecios que acom-panharam Plutarco na viagem e alguns cidadatildeos teacutespios presentes no momento do diaacutelogo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B-C)

Como jaacute dissemos a discussatildeo ocorreu durante as Erotiacutedias festividades dedi-cadas a Eros realizadas na cidade de Teacutespias (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 748E-F) e que por estarem ao peacute do Monte Heacutelicon igualmente se estendiam agraves Musas Mas o casal natildeo estava sozinho na ocasiatildeo Plutarco viajava tambeacutem com um grupo de ami-gos que resolveram caminhar pela cidade e encontraram outros companheiros logo sendo interpelados por Baacutecon O jovem promove entatildeo um debate sobre se deveria ou natildeo desposar Ismenodora No entanto o narrador do diaacutelogo natildeo eacute Plutarco mas o seu filho Autobulo que eacute indagado por seu amigo Flaviano Nosso autor repete a estrutura dialoacutegica de Platatildeo em O Banquete no qual vemos um diaacutelogo dentro de outro com um narrador que natildeo presenciou a discussatildeo original

Em seu uso da poesia euripidiana na conversa nosso autor revela o pensa-mento misoacutegino corrente natildeo apenas na Greacutecia Claacutessica como ainda em seu tempo Quando os debatedores satildeo avisados de que Ismenodora raptou Baacutecon o primeiro a demonstrar insatisfaccedilatildeo com o noticiado foi Zeuxipo Ele havia sido apresentado por Plutarco ldquocomo amigo de Euriacutepidesrdquo (φιλευριπίδην ὄντα) e ironizado pela fama de mi-soacutegino do tragedioacutegrafo porque o lacedemocircnio comenta a notiacutecia do rapto com este verso de Euriacutepides de uma peccedila desconhecida (frag 986 Nauck-Snell) ldquoenvaidecida pela riqueza como mortal mulher pensasrdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 755B) As criacuteticas de Zeuxipo estatildeo direcionadas ao modo inconsequente como atuou Ismenodo-

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ra ao conceber o rapto de Baacutecon e por valer-se de sua riqueza para realizar sua vonta-de Depois dessa afirmaccedilatildeo apoacutes vaacuterias manifestaccedilotildees dos presentes sobre o ocorrido Plutarco cita Heraacuteclito cxxvi para justificar o ato desmedido de Ismenodora e explica que contra Eros ldquoeacute difiacutecil combaterrdquo (frag 85 Diels) (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 755D) No momento em que Pemptides coloca em duacutevida o poder de Eros nosso autor escla-rece que a soberania desse deus suplanta a razatildeo humana e cita o verso 203 das Bacas de Euriacutepides ldquoNem se o saber fosse descoberto por um espiacuterito mais elevadordquo (PLU-TARCO Diaacutelogo do Amor 756B) Com essa citaccedilatildeo nosso autor mostra a Pemptides que o divino natildeo eacute conhecido em sua totalidade e que precisa da crenccedila para existir uma vez que nem tudo eacute comprovado pela razatildeo humana no campo do divino Aleacutem disso Plutarco explica o sentido dessa confianccedila humana no culto aos deuses

Mas ela eacute um apoio e uma base comum para sustentar a piedade se por um for estremecida se a seguranccedila dela for abalada e considerada ela se torna em tudo instaacutevel e suspeita(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756B)

Acerca do trecho citado Babut (2003 p 543) afirma que Plutarco revela nele o seu propoacutesito de fortalecer os valores transmitidos pela religiatildeo tradicional grega por entender que a religiosidade dos antigos gregos tem sua visatildeo de mundo embasada na filosofia Consequentemente ele demonstra seu conservadorismo em mateacuteria de culto e sua preocupaccedilatildeo de natildeo tocar o intocaacutevel Sua intenccedilatildeo eacute valorizar o espiacuterito em detrimento da razatildeo comprovadora Plutarco ainda afirma que Pemptides estaacute sob a influecircncia de Euriacutepides por meio de seu proecircmio de Melanipo Saacutebia uma peccedila natildeo preservada (frags 480 e 481 Nauck)

Estaacutes ouvindo sem duacutevida Melanipo aquele contestado proacutelogo composto por Euriacutepides

Zeus quem quer que seja Zeus natildeo o conheccedilo exceto por discurso

apoacutes trocar um coro por outro (como parece estava con-fiante com seu drama porque o havia escrito com pompa e distinccedilatildeo) mudou o verso para como agora estaacute escrito

Zeus como dito pela verdadePortanto o que difere pocircr em duacutevida pela razatildeo a repu-taccedilatildeo de Zeus ou de Atena ou de Eros e o desconhecido (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756B-C)

Ao trazer agrave memoacuteria o episoacutedio do proecircmio euripidiano Plutarco adverte os presentes sobre as implicaccedilotildees da impiedade contra os deuses Sobre Melanipo filha de Posiacutedon que responde pela origem do povo beoacutecio Euriacutepides escreveu duas peccedilas a saber Melanipo Saacutebia e Melanipo Acorrentada Em nosso entendimento as alteraccedilotildees

euripidianas apontadas indicam que seu puacuteblico natildeo aceitou sua duacutevida sobre a exis-tecircncia de Zeus O resultado disso configura-se no fato de o proacuteprio autor reconhecer de bom grado ou natildeo que a divindade eacute inquestionaacutevel que a arrogacircncia diante dos assuntos divinos implica em atos insensatos como os do proacuteprio tragedioacutegrafo Plu-tarco faz uso dos versos de Euriacutepides para sustentar este questionamento ldquoPortanto o que difere pocircr em duacutevida pela razatildeo a reputaccedilatildeo de Zeus ou de Atena ou de Eros e o desconhecidordquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756C) direcionado agrave defesa de Eros como o deus do amor e rebatendo as criacuteticas a essa divindade Plutarco reforccedila sua opiniatildeo sobre o poder de Eros como o deus do amor citando estes versos do filoacutesofo e poeta siciliano Empeacutedocles cxxvii (frags 20-21 Diels-Kranz)

Mas quando ouves o dito por Empeacutedocles companheiro

e a afeiccedilatildeo entre eles eacute equivalente em largura e compri-mento tu examina-a com o pensamento natildeo fiques com o olhar parado por estares atocircnito o mesmo pensas que deve ser dito sobre Eros Pois ele natildeo eacute visiacutevel mas esse deus eacute honrado por noacutes entre os mais antigos(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D)

Neste debate entre o culto de Eros como o deus do amor defendido por Plutar-co e as criacuteticas de Pemptides ao deus nosso autor segue seu discurso afirmando que

se exigires uma prova sobre cada coisa investigando cada santuaacuterio e aplicando sua experiecircncia sofiacutestica em cada al-tar admitirias que nenhum eacute irrepreensiacutevel e nem funda-mentado (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D)

Novamente Plutarco estabelece que o campo do sagrado natildeo eacute alcanccedilaacutevel pela razatildeo humana em sua totalidade Na construccedilatildeo de seu discurso argumentativo o autor une versos de trageacutedias distintas para acrescer ao seu argumento o caso de Afro-dite O primeiro verso citado pertence a uma trageacutedia desconhecida de Euriacutepides (frag 898 1 Nauck-Snell) os dois subsequentes satildeo os versos 449 e 450 de Hipoacutelito tambeacutem de Euriacutepides Em seguida cita a frase ldquodoadora de vidardquo de Empeacutedocles (frag 31 B 151 Diels-Kranz) e ldquofeacutertilrdquo de Soacutefocles (frag 8551-4 Nauck)

Natildeo vou longe

com relaccedilatildeo agrave Afrodite natildeo vecircs o quatildeo eacute deusa -Ela eacute semeadora e concessora de amorpor ele todos somos seus descendentes na terra

ldquoDoadora de vidardquo Empeacutedocles e ldquoFeacutertilrdquo Soacutefocles assim a nomeiam com muita propriedade e conveniecircncia

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(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D-E)

Apoacutes comparar o fragmento supracitado por Plutarco com os versos pindaacuteri-cos Rinaldi (2010 p 213) afirma que o tema central de sua ode eacute o poder de Afrodite visto que ela nutre todos os mortais e concorre para sua disseminaccedilatildeo Dando conti-nuidade agrave construccedilatildeo de seu discurso em uma manobra retoacuterica para associar Afrodite a Eros nosso autor faz referecircncias ao verso 295 retirado da peccedila Coeacuteforas de Eacutesquilo e a um pensamento de Parmecircnides (frag 28 B 13 Diels-Kranz) Plutarco continua

Mas igualmente eacute de Eros essa magniacutefica e espantosa obra de Afrodite porque ele estaacute subordinado agrave Afrodite dan-do-lhe assistecircncia se natildeo lhe assiste com cuidado seu fei-to seria abandonado ao descasosem honra nem amizade

Eacute uma uniatildeo sem amor tal com a fome e a sede que tem sua satisfaccedilatildeo mas natildeo atinge o belo Mas a deusa com o auxiacutelio de Eros refuta o fastio do prazer e realiza a ami-zade e a alianccedila Por isso Parmecircnides declara que Eros eacute o mais antigo feito de Afrodite na Cosmogonia escreve

Concebeu Eros primeiro do que todos os deuses(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756E-F)

Entatildeo percebemos que embora registre o dito por Empeacutedocles na sequecircncia de sua exposiccedilatildeo Plutarco afirma concordar com a anterioridade do deus em relaccedilatildeo agrave Afrodite e fundamenta seu pensamento referindo-se a Hesiacuteodo cxxvii

Parece-me que Hesiacuteodo eacute o mais natural ao compor que Eros nasceu primeiro do que todos para que todos por meio dele participassem da geraccedilatildeo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756F)

Ainda que nosso autor declare sua concordacircncia com a cosmogonia de Hesiacuteodo ndash felizmente preservada apresentada por ele em sua obra intitulada Teogonia ndash nota-mos que Plutarco ignora a anterioridade do Caos da Terra e do Taacutertaro para conferir a primogenitura a Eros dado que pode ser constatado com a leitura dos seguintes versos hesioacutedicos

Sim bem primeiro nasceu o Caos depois tambeacutemTerra de amplo seio de todos sedeirresvalaacutevel sempredos imortais que tecircm a cabeccedila do Olimpo nevadoe Taacutertaro nevoento no fundo do chatildeo deamplas viase Eros o mais belo entre os Deuses imortaissolta-membros dos Deuses todos e doshomens todos

ele doma no peito o espiacuterito e a prudente vontade(HESIacuteODO Teogonia vv 116-122)

Em seu intento sofiacutestico puramente retoacuterico Plutarco seleciona e redirecio-na as informaccedilotildees de Hesiacuteodo para construir seu discurso sobre a anterioridade do deus Eros Embora os versos seguintes natildeo tenham sido registrados em seu diaacutelogo eacute possiacutevel perceber os ecos destes ldquodos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espiacuterito e a prudente vontaderdquo (HESIacuteODO Teogonia vv 121-122) na concepccedilatildeo plutarquiana da onipotecircncia de Eros como o deus do amor pensamento igualmente reproduzido por Platatildeo (O Banquete 178b)

No entanto por ignoracircncia da meritoacuteria participaccedilatildeo de Eros na relaccedilatildeo amo-rosa Plutarco demonstra que ainda assim ele eacute uma divindade desrespeitada com estes versos da peccedila perdida Dacircnae de Euriacutepides (frag 3221 Nauck-Snell)

Natildeo haacute nada a dizer sobre por que alguns insultam Eros e voltam suas preces agravequelamas de uma cena ouvimos

Eros eacute ocioso e nasceu para tais(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757A)

Assim Plutarco continua seu argumento sobre Eros natildeo ser o uacutenico deus inju-riado pelos mortais e registra os seguintes comentaacuterios sobre Afrodite e Hades agora apoiado em versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 855 1-4 Nauck)

e outra vez

Meninos a Ciacutepria natildeo eacute somente Ciacutepriamas haacute epocircnimo de muitos nomes para elaHaacute Hades haacute vida imortal e haacute uma loucura delirante

tal como quase nenhum dos outros deuses escapou ao in-sulto da injuriante ignoracircncia(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757A)

Nosso autor prossegue argumentando que a impiedade humana se estende aos demais deuses que igualmente satildeo alvo de suas maledicecircncias e assim relativiza a forccedila de qualquer argumento contraacuterio ao deus Eros E novamente com versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 754 Nauck) ademais dos de Homero (Iliacuteada V 31 e 831) e de uma frase do filoacutesofo Crisipo cxxx (frag 2 von Arnim) Plutarco revela que embora seja uma divindade reconhecida por seus atributos Ares tambeacutem recebe insultos dos autores gregos

quantas honras suntuosas Ares obteve dos homens e ain-da o quanto se ouve falar mal dele

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cego oacute mulheres sem ver Arescom cara de porco revolve todos os males

e como o proacuteprio Homero o chama ldquosujo de sanguerdquo e ldquovoluacutevelrdquo E Crisipo ao interpretar o nome do deus faz--lhe uma acusaccedilatildeo e uma caluacutenia pois afirma que Ares eacute relativo a ldquodestruirrdquo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757B)

Em busca da consolidaccedilatildeo de seus argumentos nosso autor destaca o parado-xo existente na relaccedilatildeo humana com os deuses porque os homens os injuriam e ao mesmo tempo pedem seu auxiacutelio nos momentos em que necessitam resolver um pro-blema ou esperam por uma atuaccedilatildeo infaliacutevel numa disputa Por isso citando primeiro Caliacutemaco (frag 379 Schneider) e depois um verso de Eacutesquilo (frag 200 Nauck) da sua peccedila perdida Prometeu Libertado nosso autor declara

ldquoMas caccedilam antiacutelopes lebres e cervos por Agrotera uma deusa que os estimula com seus gritos e os incita ao com-bate e oram a Aristeu os que se apoderam com fossos e redes dos lobos e ursos

Quem primeiro construiu armadilhas para as feras

E Heacuteracles invoca outro deus quando quer atirar o arco em um paacutessaro como Eacutesquilo diz

Apolo Agreus conduziria reto esta flecha(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757D)

Ora se haacute a necessidade de um deus para que accedilotildees humanas sejam bem-su-cedidas e se o amor eacute um sentimento importante e fundamental para a continuidade da espeacutecie humana por meio do casamento por que esse sentimento natildeo possuiria um deus regente Debruccedilado sobre essa questatildeo nosso autor volta a postular pela neces-sidade de um deus do amor ao referenciar Homero (Odisseia V 69)

E ao homem que potildee as matildeos na mais bela presa por es-colher a amizade natildeo haacute um deus nem um nume que in-tervenha e participe de sua empresaEu pelo menos nem o carvalho nem a oliveira sagrada ou a que Homero em celebraccedilatildeo declarou ldquocultivadardquo acre-dito que natildeo seja um ramo mais belo e superior que o da planta humana amigo Dafneu por ter um instinto de ger-minaccedilatildeo que nos revela juventude e beleza simultacircneas no corpo e na almardquo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757E)

Com esse paralelo estabelecido entre o homem e as aacutervores o discurso plutar-

quiano enfatiza o papel da naturalidade da reproduccedilatildeo humana sobretudo o quanto a amizade eacute fundamental na relaccedilatildeo amorosacxxxi Plutarco segue com seu siacutemile pelos versos de Piacutendaro (frags 165 e 153 Snell-Maehler) para destacar que ateacute as aacutervores tecircm divindades que as protegem para a reproduccedilatildeo

Ou para eles algumas natildeo satildeo Ninfas Driacuteades

que da mesma aacutervore o termo da vida obtecircme Dioniso jubiloso aumenta o alimento das aacutervoresesplendor puro no fim do veratildeo

segundo Piacutendaro(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757E-F)

Logo a questatildeo que Plutarco coloca aos presentes eacute se ateacute mesmo as aacutervores dispotildeem de divindades protetoras para sua reproduccedilatildeo por que os homens natildeo teriam um deus que protegesse o amor responsaacutevel pela uniatildeo de um homem com uma mu-lher e pela sua consequente reproduccedilatildeo da espeacutecie Em seguida nosso autor induz os presentes a pensar em outra contradiccedilatildeo se por um lado natildeo haacute um deus protetor da relaccedilatildeo amorosa que culmina no casamento e na continuaccedilatildeo da raccedila humana por outro o homem dispotildee de divindades protetoras quando morto Como explicar isso Para fundamentar tal raciociacutenio Plutarco usa os seguintes versos de uma trageacutedia de nome e autoria desconhecidos (frag 405 Kannicht-Snell)

eacute servo e condutor de almas para Plutatildeo

Noite natildeo me gerou senhor da liranem adivinho nem meacutedico mas um condutor de almas(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758B)

Por conseguinte Plutarco declara Hermes Psicopompo o condutor de almas e Plutatildeo como os regentes dos homens quando mortos Como resultante disso em uma sequecircncia de citaccedilotildees que comeccedila com Euriacutepides (Bacas 66) passa por Homero (Odis-seia II 372 e XV 531) e se encerra com Melaniacutepides (frag 7(763) Page) nosso autor torna mais soacutelido o seu argumento em favor de Eros como o deus regente da relaccedilatildeo amorosa

Pois nada haacute nisso de vergonhoso nem forccediloso mas haacute persuasatildeo e graccedila que concede uma ldquopena prazerosardquo na verdade ldquotambeacutem um esforccedilo faacutecilrdquo que conduz agrave virtude e agrave ami-zade visto que as tomam para o conveniente fim e natildeo ldquosem um deusrdquo mas natildeo tecircm outro comandante e sobera-no deus que Eros companheiro das Musas das Caacuterites e de Afrodite

No doce veratildeo do homem semeando o desejo no coraccedilatildeo

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segundo Melaniacutepides mescla as mais prazerosas com as mais belas(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758B-C)

Plutarco relata que a manifestaccedilatildeo de Eros no amoroso ou seja naquele que eacute capaz de amar eacute tal qual a de outros deuses como Apolo e Dioniso por meio ldquode ins-piraccedilatildeo e possessatildeordquo (ἐπιπνοίας καὶ κατοχῆς) (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758E) Para embasar seu discurso o autor cita primeiramente um verso de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 778 Nauck) depois um pensamento de Platatildeo (Fedro 245a) e os ver-sos de Eacutesquilo (Suplicantes 681-682) conforme lemos no trecho a seguir

ldquoA adivinhaccedilatildeo entusiaacutestica proveacutem de Apolo de sua ins-piraccedilatildeo e possessatildeo e a baacutequica de Dioniso Conforme os Coribantes danccedilai

diz Soacutefocles os assuntos de Demeacuteter e Pan satildeo comuns agraves orgias baacutequicas ldquoA terceira origem vinda das Musas toma uma alma delicada e imaculadardquo provoca e estimula o entusiasmo poeacutetico e musical Haacute essa tambeacutem chamada loucura de Ares que preside a guerra e em tudo estaacute claro qual deus concede e anima o deliacuterio miacutestico

Ao armar Ares sem danccedila nem ciacutetara lacrimoso e um grito nativo

ldquoE parte dessa confusatildeo e ilusatildeo que subsiste no homem natildeo eacute impliacutecita nem tranquila(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758E-F e 759A)

Na sequecircncia desse discurso por meio de um verso de uma trageacutedia de nome e autoria desconhecidos (frag 406 Nauck) e de Homero (Iliacuteada VII 121-122) notamos que nosso autor desenvolve sua argumentaccedilatildeo sobre a necessidade de afastar essa lou-cura da relaccedilatildeo amorosa para atrair a tranquilidade

Qual deus sacode o tirso de belo frutoesta empolgaccedilatildeo amorosa por meninos nobres e mulheres prudentes que eacute muito mais lancinante e ardenteldquoOu natildeo vecircs que o soldado ao depor suas armas encerra a loucura da guerra

entatildeo logojubilosos guardiotildees retiraram-lhe as armas dos ombros

e senta ao lado de suas armas como um paciacutefico expecta-

dor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759A)

Plutarco segue descrevendo essa ldquoloucura amorosardquo (τὴν δrsquo ἐρωτικὴν) como algo que perturba o pensamento humano Citando Euriacutepides (Hipoacutelito 478) afirma que natildeo haacute ldquocanto maacutegico sedutorrdquo que lhe mantenha calmo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759B)cxxxii No entanto lembrando uma maacutexima dos filoacutesofos ciacutenicos Plutarco diz que se houver um deus que o guie o amante permanece em uma caminhada ldquocon-tiacutenua e curta descobre uma passagem para a virtuderdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759D)

Pelos versos sofoclianos nosso autor inicia sua defesa sobre a natureza da par-ticipaccedilatildeo de Afrodite na relaccedilatildeo amorosa ao mencionar Traquiacutenias verso 497

Grande eacute a forccedila da vitoacuteria que Ciacutepris obteacutem(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759E)

Pela atuaccedilatildeo conjunta de Eros e Afrodite na relaccedilatildeo amorosa Plutarco ale-ga com um verso de uma trageacutedia desconhecida (frag 407 Kannicht-Snell) e um de Homero (Iliacuteada XVIII 57) o destempero daquele que se deixa levar puramente pelo desejo fiacutesico bem como demonstra que o amoroso quando regido pelos deuses natildeo se comporta desta maneira

durante o poente ela acendia a chama da lamparinaesperando e chamando para si muitas vezes passa pertoe o vento vindo suacutebitocom muito amor e desejo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759F)

O benefiacutecio maior de um relacionamento amoroso regido por Eros e Afrodite natildeo estaacute somente no equiliacutebrio do desejo sexual dos amantes mas tambeacutem no de suas accedilotildees A coragem eacute outro elemento constituinte de um relacionamento amoroso regido por Eros Segundo Plutarco em uma paraacutefrase da peccedila de Soacutecrates (Antiacutegona 783-784) e de versos contidos em uma trageacutedia desconhecida (frag 408 Kannicht-Snell) o deus supera Ares nessa virtude

quanto agraves obras de Ares Eros excele porque natildeo eacute inativo como Euriacutepides dizia nem inexperiente na guerra nemdorme nas macias bochechas das adolescentes

Pois um homem pleno de Eros em nada carece de Ares ao lutar contra os inimigos mas acompanhado de seu proacute-prio deus

fogo mar e ventos do eacuteterestaacute disposto a atravessar

pelo amigo aonde o chamar

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(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 760D-E)

Entatildeo os envolvidos em uma relaccedilatildeo amorosa satildeo igualmente contemplados por Eros com o destemor que os transforma em guerreiros inseparaacuteveis cxxxii sempre dispostos agrave luta e contando um com o outro nos embates Plutarco demonstra esta afirmaccedilatildeo ao empregar um verso de Niacuteobe uma trageacutedia perdida de Soacutefocles (frag 410 Nauck)

Os Nioacutebidas de Soacutefocles depois de atingidos mesmo mor-rendo nenhum deles invocou outro auxiliar nem aliado que natildeo o seu amante

Oacute envolve-me pelos flancos(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 760E-F)

Nosso autor confere ecircnfase ao seu pensamento a respeito da decisiva influecircn-cia de Eros na coragem dos amantes com os seguintes versos populares pronunciados entre os calciacutedios (Carmina Popularia 27 frag 873 Page)

Oacute filhos que receberam graccedila e nobreza paternanatildeo recuseis aos bons a convivecircncia da juventudePois com valentia tambeacutem o debilitante Erosaflora na cidade dos calciacutedios(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761A-B)

E em uma construccedilatildeo argumentativa bem convincente ele relata que o ge-neral tebano Pacircmenes criticou Homero por dividir as tropas aqueias ldquopelas tribos e fratriasrdquo (Iliacuteada II 362) e por natildeo ter considerado os amantes nessa divisatildeo Retorica-mente Plutarco une dois versos de Homero (Iliacuteada XIII 131-215 e XVI) em apenas um soacute para expor a criacutetica ao proacuteprio poeta

Pacircmenes mudou e renovou a ordem dos hoplitas um ho-mem amoroso que reprovou Homero por natildeo ter sido amaacutevel porque alinhou as tropas dos aqueus ldquopelas tribos e fratriasrdquo e natildeo pocircs o amante ao lado do amado para que assim fosse escudo um escudo suportasse e elmo um elmo

Eros eacute o uacutenico invenciacutevel por todas suas estrateacutegias(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761B)

Ao lermos esses versos homeacutericos percebemos que o contexto natildeo nos remete a uma relaccedilatildeo sexual entre Aquiles e Paacutetroclo poreacutem haacute a sugestatildeo de uma amiza-de muito grande entre eles Esse eacute um exemplo importante para suscitar reflexotildees a respeito de Plutarco aceitar a manifestaccedilatildeo de Eros em episoacutedios militares que nos remetem a relaccedilotildees supostamente homoeroacuteticas Por isso notamos que nosso autor

considera a manifestaccedilatildeo de Eros na amizade que nasce entre os guerreiros durante o exerciacutecio de sua funccedilatildeo militar sem a necessidade de relaccedilotildees sexuais apenas como fraternais Conveacutem lembrar que Eros concorre para a amizade entre o casal o que natildeo impede que esse modelo se transfira para a amizade dos guerreiros nos campos de treinamento e de batalha Contudo essa relaccedilatildeo natildeo eacute duradoura Ela tem o tempo de uma carreira militar e natildeo contribui para a continuidade da espeacutecie Isso posto natildeo tem a duradoura proteccedilatildeo de Eros

Jaacute a amizade cultivada nos campos de treinamento e batalha entre os guer-reiros regida por Eros responde pela excelecircncia militar de alguns povos e por suas demonstraccedilotildees de bravura e coragem Tal questatildeo eacute demonstrada por Plutarco nos vaacuterios exemplos a seguir

ldquoPortanto natildeo somente os povos mais combatentes satildeo os de iacutendoles mais amorosas beoacutecios lacedemocircnios e cre-tenses mas tambeacutem os mais antigos Meleacuteagro Aquiles Aristocircmenes Ciacutemon e Epaminondas Este teve como amados Asoacutepico e Cefisodoro o qual morreu junto com ele em Mantineia e foi enterrado com honras funeraacuterias ao seu lado E Asoacutepico tornou-se o mais temido e terriacutevel aos inimigos o primeiro a enfrentaacute-lo e a golpeaacute-lo foi Eucna-mo de Anfissa que obteve honras heroicas do foceus ldquoPela quantidade eacute uma difiacutecil tarefa falar sobre os outros amantes de Heacuteracles consideram que Iolau foi amado por ele e os amantes ateacute hoje o veneram e os honram fazendo juramentos e dando provas de fidelidade sobre seu tuacutemu-lo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761D-E)

A coragem que Eros confere ao amante poreacutem natildeo ocorre somente na esfera militar ou no campo de batalha Entre os vaacuterios episoacutedios relatados por Plutarco em que os amantes deram provas singulares de amor um pelo outro o mais conhecido eacute aquele contado na peccedila Alceste de Euriacutepides Embora sua plateia no momento do dis-curso seja composta por gregos sabemos que Plutarco proferia palestras filosoacuteficas em Roma e que seus tratados morais satildeo o registro de grande parte delas Dessarte o seu puacuteblico tambeacutem era composto por romanos filogregos ou simpaacuteticos agrave cultura grega A intenccedilatildeo plutarquiana de divulgar a produccedilatildeo literaacuteria grega em Roma eacute evidente em toda a sua obra entretanto algumas delas jaacute eram bem conhecidas dos romanos como eacute o caso da peccedila Alceste de Euriacutepides segundo sugere o estudo de Wood (1978) Po-reacutem na construccedilatildeo de seu discurso Plutarco interpreta por outra perspectiva o episoacute-dio da mulher que se oferece para morrer no lugar do marido fato visto como grande prova de amor e de valor moral de Alceste Ele nos mostra que grande tambeacutem era o amor de Heacuteracles e de Apolo por Admeto como nosso autor exemplifica neste excerto utilizando um verso atribuiacutedo a Caliacutemaco (frag 380 Schneider)

Diz-se que (Heacuteracles) atuou como meacutedico para Alceste

98 99

pois a salvou depois que ela havia perdido a esperanccedila para agradar a Admeto tomado de amor pela proacutepria mulher porque ele tambeacutem era seu amante Contam que tambeacutem Apolo era seu amante

Serviu Admeto com grandeza por um ano

ldquoComo nos veio bem Alceste agrave lembranccedila Uma mulher natildeo partilha muito de Ares eacute a possessatildeo de Eros que a faz avanccedilar com coragem sobre-humana e morrer(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761E)

Ao recontar esse episoacutedio da trageacutedia euripidiana nosso autor revela que o amor homoeroacutetico somente conhece sua grandeza quando envolve um deus ou um semideus Tal exceccedilatildeo ocorre porque o amor divino eacute superior ao de um ser humano Aliaacutes como Plutarco afirmou alhures os assuntos divinos natildeo devem ser questionados pela razatildeo humana Sobre a indulgecircncia divina de Eros e o destemor de que imbui o amante vejamos mais este esclarecimento dado por Plutarco no qual ele cita versos de uma trageacutedia desconhecida de Soacutefocles (frag 703 Nauck)

Protesilau e Euriacutedice de Orfeu que dos deuses somente a Eros Hades faz o prescrito Todavia diante de todos os outros como afirma Soacutefocles

Nem comedimento nem graccedilaconhece apenas apreciou a simples justiccedila

Eacute indulgente com os amantes e somente com eles natildeo eacute indocircmito nem amargo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761F)

Os poderes de Eros sobre os amantes satildeo tatildeo intensos que se mostram capa-zes de aprimorar seus caraacuteteres dado que sempre os conduzem agrave virtude Podemos observar tal ponto neste excerto em que Plutarco cita Estenebeia uma peccedila perdida de Euriacutepides (frag 663 Nauck-Snell)

embora Euriacutepides fosse amoroso ele se maravilhou com o mais insignificante quando afirmou

Ora Eros ensina um poeta mesmo se antes sem Musa

Pois torna inteligente quem antes era indolente e corajo-so como se diz o covarde tal como os que incandescem as vigas fazem das fracas firmes(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762B)

As transformaccedilotildees sofridas pelo amante regido por Eros satildeo perceptiacuteveis aos

demais Para corroborar tal assertiva nosso autor utiliza um verso da pseudo-biografia de Homero conhecida como Certame de Homero e Hesiacuteodo (274)

Eros natildeo faz dos desagradaacuteveis e carrancudos os mais hu-manos e encantadores Pois

ao acender o fogo a casa mostra-se digna de honra

tambeacutem um homem como parece eacute mais radiante sob o calor do amor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762D)

Citando Homero (Odisseia XIX 40) Plutarco continua sua demonstraccedilatildeo so-bre os efeitos das visiacuteveis transformaccedilotildees que Eros provoca no amante

quando veem uma alma vulgar parca e ignoacutebil de repente preencher-se de inteligecircncia liberdade desejo de honra graccedila e generosidade natildeo se veem obrigados a dizer como Telecircmaco Sem duacutevida haacute um deus dentro dessa casa(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762E)

A coragem dos amantes soacute eacute abalada quando o amante encontra o seu amado ocasiatildeo em que se mostra fraco e covarde diante deste Lembrando Piacutendaro (Piacutetica I 5) Plutarco compara o momento do encontro do amante com o amado ao de algueacutem que eacute atingido por um ldquopungente raiordquo e fica abatido tal como o descrito por este verso de Friacutenico (frag 17 Snell)

ao ver seu belo eacute

tal o galo se encolhe como um escravo recolhendo a asa

sua ousadia eacute abatida e despedaccedilado o orgulho de sua alma(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762E-F)

Conforme nosso autor a forccedila do sentimento amoroso regido por Eros mani-festa-se ainda nos seres mais inusitados o que estaacute em concordacircncia com o que lemos no seguinte trecho

Os romanos narram que o filho de Hefesto Caco expelia fogo pela boca de fluentes chamas a proacutepria lanccedilava em verdade um som mesclado ao fogo e emitia o calor de seu coraccedilatildeo pelas palavras

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Com as Musas de belas vozes curando o amor

segundo Filoacutexeno(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762F-763A)

Apesar de Plutarco fazer referecircncia a um episoacutedio relatado pelos romanos a citaccedilatildeo que norteia seu raciociacutenio eacute a do poeta peloponeacutesio Filoacutexeno (seacutec V aC) de um poema intitulado Ciclope e Galateia (frag 9 [822] Page) Nosso autor continua demonstrando a forccedila do sentimento amoroso regido por Eros colocando em prosa estes versos de uma ceacutelebre ode de Safo (frag 31 Loebe-Page)

Mas se por causa de Lisandra oacute Dafneu natildeo esqueceste dos antigos rapazes lembra-nos que a bela Safo diz em seus versos que ao surgir da amada sua voz refreia seu corpo inflama e apoderam-se dela a palidez o devaneio e a vertigem(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763A)

Em seu diaacutelogo com a tradiccedilatildeo poeacutetica grega Plutarco discorda da avaliaccedilatildeo de Menandro sobre o caraacuteter doentio assumido pelo amoroso registrado em fragmentos de uma comeacutedia desconhecida (frag 791 7-8 Nauck-Snell) e reforccedila seu argumento contraacuterio ao comedioacutegrafo com um verso de uma trageacutedia tambeacutem desconhecida de Eacutesquilo (frag 351 Nauck)

Natildeo apreendemos nem compreendemos o dito porMenandro perigosa doenccedilada alma o ferido de bom grado eacute golpeado

Mas o deus eacute a causa que ataca um e aprova outroEntatildeo o que mais tinha de ser dito no princiacutepio e neste instante ldquoporque agora veio agrave bocardquo conforme Eacutesquiloparece-me que nada se pode ocultar por ser em tudograndioso(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763B)

Em razatildeo da diversidade de autores selecionados para compor sua argumen-taccedilatildeo sobre a necessidade de um deus regente do amor Plutarco entra em contato com autores de variadas eacutepocas e estilos Assim ele verifica que haacute visotildees diferentes sobre Eros entre os poetas os filoacutesofos e os legisladores Para demonstrar suas concepccedilotildees diferenciadas nosso autor nos apresenta primeiro a noccedilatildeo que os filoacutesofos tecircm dos deuses apresentando os seguintes versos de Piacutendaro (frag 143 Snell-Maehler)cxxxvi

De fato os deuses dos filoacutesofos satildeo os sem doenccedila nem velhicee inexperientes em penas que porruidosa

via escaparam de Aqueronte(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763C)

Entretanto apesar de os poetas e os legisladores divergirem em muitos aspec-tos (PLUTRACO Diaacutelogo do Amor 763D) Plutarco nos mostra que eles satildeo concordes quanto a Eros ser o deus regente dos relacionamentos amorosos Outrossim registra os versos de Alceu e de Euriacutepides respectivamente fragmento 348 Lobel-Page e frag-mento 595 Nauck-Snell para concluir que

Seguramente os melhores poetas legisladores e filoacutesofos concordam sobre um e juntos inscrevem Eros entre os deuses que ldquoem uniacutessona voz tanto louvaramrdquo como dizia Alceu sobre Piacutetaco quando eleito tirano pelos mitilecircnios Para noacutes Eros eacute rei arconte e harmosta nas matildeos de He-siacuteodo Platatildeo e Soacutelon ele eacute conduzido coroado do Heacuteli-con para a Academia e adornado entra triunfante entre muitas parelhas de amizade e uniatildeo natildeo como Euriacutepides afirma

subjugado por grilhotildees natildeo de bronze

envolta pelo frio e pelo peso na carne sob vergonhosa ne-cessidade mas alada condutora para as mais belas e di-vinas coisas do ser sobre as quais outros falaram melhor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763E-F)

Plutarco prossegue seu discurso refutando a comparaccedilatildeo que se costuma esta-belecer entre Eros e o sol O autor afirma que o poder do deus eacute superior ao do astro porque nos guia agraves praacuteticas virtuosas e nos conduz agrave busca pela verdade Para funda-mentar seu discurso nosso autor exemplifica seu pensamento com uma passagem de Euriacutepides (Hipoacutelito 193-195) conforme lemos a seguir

o convence a demandar em si mesmo e ao seu redor pela verdade e pelo resto dos assuntos e nada de outro lugar

Parecemos ensandecidos de amorpor tudo que brilha sobre a terra

como Euriacutepides diz

por inexperiecircncia de outra vida(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 764E)

A escolha de versos dessa peccedila euripidiana indica a habilidade retoacuterica de Plu-tarco Ele tenta transmitir o comedimento sexual dos cocircnjuges ao lembrar Hipoacutelito o personagem casto e adorador da virgem Aacutertemis que evita as investidas de sua ma-drasta Fedra A clareza do jovem diante da impostura de sua madrasta eacute relaciona-

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da por Plutarco ao amor que ele dedica agrave deusa caccediladora um sentimento ao qual se manteacutem fiel pela lucidez que Eros lhe traz por meio de seu amor Entatildeo a clareza estaacute em Eros e a claridade excessiva estaacute no sol pois este ldquoparece que atordoa a memoacuteria e envenena o raciociacuteniordquo (ἐκπλήττειν ἔοικε τὴν μνήμην καὶ φαρμάττειν τὴν διάνοιαν ὁ ἥλιος) (764E-F) A verdadeira realidade contudo natildeo estaacute no raciociacutenio mas na alma que Eros possui e conforme lemos neste hexacircmetro do poeta Caliacutemaco (frag 381 Sch-neider)

Em torno dela dolosos e afaacuteveis sonhos verte(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 764F)

Haacute neste tratado a acentuada referecircncia a versos de poetas gregos de diversos estilos e periacuteodos para fundamentar o discurso de Plutarco sobre a importacircncia de Eros no relacionamento amoroso Dado que leva nosso autor a reconhecer que natildeo haacute unidade no pensamento dos poetas sobre a natureza divina do deus e a endereccedilar suas criacuteticas a grande parte deles afirmando que

A maioria dos poetas parece zombar e ridicularizar o deus quando escreve sobre ele e o celebra em cantos e pouco foi dito com seriedade por eles quer pela inteligecircncia e ra-ciociacutenio quer pela vontade divina que tocasse a verdade nestes versos haacute um dado sobre sua origem

O mais terriacutevel dos deusesque Iacuteris de belas sandaacutelias gerouapoacutes unir-se a Zeacutefiro de aacuteurea cabeleira

A natildeo ser que os gramaacuteticos tenham vos persuadido por dizerem que sua representaccedilatildeo nasce para brilho e colori-do da paixatildeo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 765E)

Embora Plutarco construa parte significativa de sua argumentaccedilatildeo apoiado na produccedilatildeo poeacutetica grega percebemos nos versos supracitados a sua manobra re-toacuterica para desautorizar a versatildeo dada pelo poeta Alceu (frag 327 Lobel-Page) para a origem de Eros Isso porque ele jaacute havia dado razatildeo a Hesiacuteodo que o nomeou um deus primordial do qual todos vieram depois (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D-F) No trecho acima nosso autor ironiza ainda o entendimento que os gramaacuteticos tecircm da participaccedilatildeo de Eros cxxvii no relacionamento amoroso como se o deus fosse apenas um expediente para conferir imaginaccedilatildeo aos poetas e para o deleite de seus leitores ou ouvintes

Recorrendo a dois versos (frag 360 Kock e frag 355 Kannicht-Snell) de auto-ria e tiacutetulos desconhecidos Plutarco constroacutei o seguinte discurso

O voluptuoso natildeo ao ser interrogado se

ao feminino tende mais do que ao masculino

e ele responder

agrada-me onde houver beleza sou ambidestro

parece que respondeu pelo desejo sexual O nobre e afeito ao belo natildeo pela beleza nem pelo fiacutesico mas pelas diferenccedilas dos genitais escolhe seus amores(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 766F-767A)

Nosso autor mostra claramente que a relaccedilatildeo regida por Eros eacute a estabelecida entre um homem e uma mulher Salvo em conduta militar ou amor por alguma divin-dade o relacionamento homoeroacutetico natildeo pertence ao domiacutenio do verdadeiro deus No-tamos que a defesa do amor e do casamento demanda ainda a participaccedilatildeo da mulher como um ser confiaacutevel e virtuoso Portanto empregando uma expressatildeo de Crisipo (frag 718 von Arnim) um filoacutesofo estoico e dois versos de uma peccedila desconhecida de Eacutesquilo (frag 2431-2 Nauck) nosso autor segue sua explicaccedilatildeo esclarecendo que as mulheres tambeacutem satildeo influenciadas pelo poder de Eros

Todavia afirmam que a juventude eacute ldquoa flor da virtuderdquo e que o gecircnero feminino natildeo mostraria tal florescecircncia nem teria a aparecircncia natural para a virtude isso eacute um absur-do Pois tambeacutem Eacutesquilo com correccedilatildeo compocircs da jovem mulher natildeo me escapa o inflamadoolhar a que por um homem foi provada

Entatildeo de um caraacuteter impudente licencioso e corrupto di-funde-se sinais na aparecircncia das mulheres(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767B)

A participaccedilatildeo feminina no amor nasce da necessidade dos amantes regidos por Eros de formar uma unidade por se tratar de uma fusatildeo de almas natildeo de uma ldquocomunhatildeo de amigosrdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767E) conforme a expressatildeo contida em Dioacutegenes de Laeacutercio (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres VIII 10) atri-buiacuteda aos filoacutesofos estoicos Citando um verso de uma peccedila desconhecida de Eacutesquilo (frag 785 Nauck) Plutarco reafirma que Eros atua sobre a mulher envolvida em um relacionamento amoroso no casamento pois o matrimocircnio eacute

Obra de muitas reacutedeas e lemes

estaacute sempre nas matildeos dos cocircnjuges Compartilha com Eros tamanho autodomiacutenio dececircncia e confianccedila de modo que quando um dia toca uma alma licenciosa ela retira-se dos outros amantes extirpa a audaacutecia e abate a

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soberba e a imoralidade levando ao pudor quietude e de-coro e veste-a de forma decente e torna-a a ouvinte de um uacutenico(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767E-F)

Como exemplos de suas afirmaccedilotildees sobre o poder de Eros atuar por igual em homens e mulheres Plutarco relata vaacuterios exemplos de mulheres que mudaram seus haacutebitos ou que mantiveram sua honra quando tomadas de amor por um homem Se-lecionamos o exemplo de Laiacutes notaacutevel cortesatilde da cidade de Corinto no seacuteculo V aC onde nosso autor usa um verso de uma peccedila perdida de Euriacutepides (frag 1084 Nauck--Snell) para afirmar que

Depois que o amor a tocou pelo tessaacutelio Hipoacutelico

ela deixou para traacutes a Acrocorinto banhada por verdesaacuteguas

e fugiu escondida da grande tropa de outros amantes e de um grande exeacutercito de cortesatildes partiu com dececircncia(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767F-768A)

Nosso autor costura seu argumento sobre a virtude feminina no casamento para edificar o matrimocircnio entre um homem e uma mulher Como contraponto Plu-tarco lanccedila seu olhar sobre a relaccedilatildeo de indiviacuteduos do sexo masculino tratada como desprovida de amor conforme exemplifica com um verso de uma peccedila de tiacutetulo e autoria desconhecidos (frag 409 Nauck) e dois versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 770 Nauck)

A comunhatildeo de um do gecircnero masculino com outro que eacute mais pela intemperanccedila e coacutepula algueacutem com reflexatildeo diria que

Este feito eacute de Hiacutebris natildeo de Ciacutepris

Por isso pondo os que se comprazem em ser passivos consideramos o pior gecircnero de viacutecio sem participaccedilatildeo de confianccedila nem pudor e nem de amizade mas na verdade conforme Soacutefocles

Os de tais amigos destituiacutedosalegram-se os que tecircm desejam fugir(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 768E)

A relaccedilatildeo amorosa entre homens se mostra incompleta e fugaz pela ausecircncia de amizade e de respeito entre os amantes O amor entre homens e mulheres diferen-cia-se pela profundidade de sua amizade e pela constituiccedilatildeo de seu caraacuteter virtuoso

Por isso Plutarco continua seu discurso com versos de um desconhecido poeta cocircmico (frags 222-224 Kock) para demonstrar como a relaccedilatildeo pederasta carece de virtude

ao ver teu semblante familiar perdi o chatildeoImberbe tenro e belo jovemunido a ele eu morra e que isso valha um epigrama(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 769B)

A desmedida do amor entre homens contrapotildee-se ao equiliacutebrio de um homem unido a uma mulher virtuosa como nos mostra nosso autor com este verso de uma comeacutedia de autoria e tiacutetulo desconhecidos (frag 221 Kock)

A uma mulher honesta e prudente exortaria a sacrificar a Eros para que ele benevolente conviva em seu casamen-to e adornea-a com todos os temperos femininos que seu marido natildeo se perca por outra e seja obrigado a proferir falas de uma comeacutedia

Tal mulher injuriei eu sou um infeliz

Amar no casamento eacute um bem maior do que ser amado(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 769D)

Provavelmente Plutarco tece seus comentaacuterios tendo como referecircncia sua es-posa Timocircxena ldquouma mulher honesta e prudenterdquo visto que ele a trouxe para Teacutespias a fim de realizar sacrifiacutecios em honra a Eros (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B) Com isso ele exalta as qualidades de sua esposa e revela a sua felicidade no casamento Talvez isso explique porque nosso autor lembra em seguida de Homero (Odisseia VI 183-184) para registrar seu argumento de que o casamento eacute a maior fonte de prazer

quando concordes em pensamentos um lar tenhamum homem e uma mulher(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 770A)

De acordo com Plutarco trata-se de uma uniatildeo que eacute sustentada natildeo somente pelas leis humanas mas tambeacutem pelas leis da natureza Ambas necessitam da procria-ccedilatildeo a cidade para a sua manutenccedilatildeo do quadro de cidadatildeos e a espeacutecie humana para a sua continuidade Identificamos entatildeo a contribuiccedilatildeo da filosofia platocircnica (PLATAtildeO O Banquete 207a) quanto a definiccedilatildeo de Eros como a divindade que inspira o desejo de imortalidade no homem por isso a procriaccedilatildeo (SANTAS 1979 p 71) Da doutrina estoica nosso autor traz a visatildeo do filoacutesofo Zenatildeo de que Eros contribui para a salvaccedilatildeo da cidade conforme assinalado por Ateneu (Deipnosofistas 561c-d) (BOYS-STONES 1998 p 168) Por conseguinte Plutarco expotildee seu raciociacutenio usando um verso de uma trageacutedia desconhecida de Euriacutepides

De fato a lei os ampara e a natureza mostra que os deuses

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necessitam de Eros para a procriaccedilatildeo regular Assim os poetas dizem

a terra ama a chuva

e o ceacuteu a terra e os fiacutesicos dizem que o sol ama a lua para copular e fecundar(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 770A)

Com essa uacuteltima citaccedilatildeo de Plutarco em seu diaacutelogo encerramos nossa expo-siccedilatildeo do uso plutarquiano dos autores gregos Nela demonstramos que nosso autor referencia obras de vaacuterias escolas filosoacuteficas diversos estilos poeacuteticos e diferentes tipos de prosa para compor o seu discurso argumentativo o que revela seu vasto conheci-mento da produccedilatildeo literaacuteria grega Poucas satildeo as referecircncias a autores latinos como a citaccedilatildeo de Platatildeo (Diaacutelogo do Amor 749A) aludindo Petrocircnio (Satiacutericon 131) sobre o Ilisso e o mito de Caco (Diaacutelogo do Amor 762F) tambeacutem relatado por Virgiacutelio (Eneida VIII 184-275) Ao longo desta anaacutelise verificamos quatildeo importante eacute a contribuiccedilatildeo de Diaacutelogo do Amor para o conhecimento da visatildeo dos poetas gregos acerca desse sen-timento tal como a influecircncia da filosofia e da religiatildeo para a construccedilatildeo da teoria do amor de Plutarco

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Contribuiccedilotildees dosEstudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da

Linguagem 69

6

Fabio Fortes

A histoacuteria da ciecircncia e da linguagem

Em fevereiro de 1962 Thomas Kuhn publicava na Califoacuternia A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas O seu ldquoensaiordquo como despretensiosamente o autor o qualifica representou a incursatildeo de um fiacutesico teoacuterico no campo da histoacuteria e da filosofia da ciecircn-cia oferecendo agrave comunidade da eacutepoca uma concepccedilatildeo que teria grande impacto para pensar os processos de amadurecimento e transformaccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico

Na obra em questatildeo Thomas Kuhn conferia papel central agraves noccedilotildees de ldquopa-radigmardquo e ldquorevoluccedilatildeordquo sendo que em sua perspectiva tais conceitos natildeo derivavam exclusivamente de propriedades intriacutensecas agraves proacuteprias teorias mas tambeacutem de ten-sotildees culturais sociais e poliacuteticas existentes no interior da comunidade cientiacutefica Com efeito o que tornaria um paradigma dominante seria natildeo somente o resultado da ca-pacidade inerente de determinada teoria para resolver problemas colocados pelos cien-tistas mas tambeacutem decorreria da natureza dos proacuteprios problemas que se elegem e se mantecircm como agenda investigativa em dada eacutepoca

Aleacutem disso um paradigma dominante definidor da ldquociecircncia normalrdquo mobili-zaria grupos de cientistas em seu apoio os quais buscariam aperfeiccediloaacute-lo com inova-ccedilotildees e novas propostas mas natildeo no sentido de alteraacute-lo substancialmente ao contraacute-rio em diaacutelogo com a tradiccedilatildeo que o sustenta os pesquisadores da ldquociecircncia normalrdquo estariam antes preocupados em manter a estabilidade do que em reformular ou mudar o paradigma Qualquer mudanccedila radical soacute poderia portanto ocorrer via revoluccedilatildeo o que deslocaria natildeo somente as teorias do seu lugar mas tambeacutem as suas praacuteticas os seus meacutetodos as comunidades e sujeitos dessa ciecircncia

Na mesma eacutepoca Noam Chomsky publicava em 1966 o ensaio Linguiacutestica cartesiana no qual recuando aos seacuteculos XVIII e XIX o chamado ldquoPapardquo da Linguiacutestica Gerativa certamente ainda um dos maiores nomes da Linguiacutestica contemporacircnea re-conhecia alguns dos princiacutepios fundamentais de sua ciecircncia no chamado pensamento ldquocartesianordquo Segundo Chomsky os estruturalistas da primeira metade do seacuteculo XX haviam descartado um fecundo pensamento sobre a linguagem no acircmbito da obra dos pensadores racionalistas dos seacuteculos XVIII e XIX Em trabalhos de estudiosos como Descartes Schlegel Humboldt e outros jaacute estaria patente segundo o linguista ameri-cano a noccedilatildeo de que a linguagem humana conquanto fosse uma faculdade bioloacutegica e natural permitiria ao ser humano tambeacutem se diferenciar dos outros animais ao servir natildeo propriamente como forma de comunicaccedilatildeo mas como expressatildeo do pensamento

Tratava-se portanto de iluminar a concepccedilatildeo de linguagem como forma (e

natildeo substacircncia) da qual decorreria seus princiacutepios racionais intriacutensecos e universais responsaacuteveis pelas regras sintaacuteticas e morfoloacutegicas e natildeo necessariamente da manei-ra como ela seria efetivamente usada A oposiccedilatildeo humboldtiana por exemplo entre forma e caraacuteter reconhecer-se-ia como o geacutermen da dicotomia a ser fortemente de-fendida pelo proacuteprio Chomsky e os gerativistas logo na primeira fase de sua teoria a

69 O presente trabalho decorre de pesquisa de Poacutes-Doutorado realizada no Deacutepartement de Sciences de lrsquoAntiquiteacute da Universidade de Liegravege na Beacutelgica (2019-2020) e foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001 Bolsa Professor Visitante Juacutenior

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dicotomia entre competecircncia e performance (cf Chomsky 1975 p 90) Embora situadas dentro da mesma deacutecada e igualmente resultantes de refle-

xotildees epistemoloacutegicas talvez natildeo seja possiacutevel avanccedilarmos no paralelo entre as obras de Thomas Kuhn e Noam Chomsky por se erigirem sobre arcabouccedilos teoacutericos distintos e olharem para objetos e arcos temporais de dimensotildees natildeo necessariamente compatiacute-veis Em todo caso embora partissem da histoacuteria de duas disciplinas distintas ndash a Fiacutesica e a Linguiacutestica ndash o que Thomas Kuhn e Chomsky lograram realizar eacute uma espeacutecie de retorno ao passado uma historicizaccedilatildeo dos modos e das praacuteticas cientiacuteficas afastan-do-se nos dois casos ndash ainda que por pouco tempo ndash dos modelos imanentes formais e centrados no presente que reinavam absolutos ateacute entatildeo no domiacutenio das duas disci-plinas Em vez disso Thomas Kuhn e Noam Chomsky reivindicavam da histoacuteria e do passado de seus campos noccedilotildees que permitissem a compreensatildeo da ciecircncia praticada em sua eacutepoca Ambos traziam portanto para o seio da proacutepria ciecircncia uma inquieta-ccedilatildeo intelectual que se tornaria constante na segunda metade do seacuteculo XX a revisatildeo criacutetica de sua histoacuteria Satildeo provas de que revisar o passado tem se tornado crescente-mente um imperativo das ciecircncias apoacutes o seacuteculo XX essa atitude define talvez para nossa eacutepoca aquilo a que Hegel veio a chamar de Zeitgeist ldquoo espiacuterito do tempordquo em sua Filosofia da Histoacuteria

Com efeito data da segunda metade do seacuteculo XX o iniacutecio de um empreendi-

mento que teve por meta produzir uma histoacuteria das ciecircncias em geral e da linguagem em particular Os trabalhos do inglecircs Robins (1967) do francecircs Mounin (1967) doro-meno Coseriu (1969) e ateacute mesmo do brasileiro Mattoso Camara Jr (original de 1962)cxxxviii satildeo bons exemplos de manuais que tentaram escrever uma vigorosa histoacuteria do pensamento linguiacutestico (registrando como natildeo poderia deixar de ser uma raacutepida visi-ta aos mais remotos ancestrais gregos e latinos)cxxxix Todavia uma investigaccedilatildeo menos enviesada pelo olhar da proacutepria Linguiacutestica de suas preocupaccedilotildees e objetos teoacutericos soacute viria agrave tona com a emergecircncia de perioacutedicos internacionais dedicados ao tema tais como Historiographia Linguistica (1974-) a Histoire Eacutepistemologie Langage (1979-) e mais recentemente a Beitraumlge zur Geschichte der Sprachwissenschaft (1991-) que tor-naram possiacutevel o reconhecimento e a institucionalizaccedilatildeo desse amplo campo de estu-dos que tem como preocupaccedilatildeo um retorno agraves fontes histoacutericas do pensamento sobre a linguagem fora dos limites dos objetivos que outrora eram buscados o de legitimar praacuteticas presentes ou o de avaliar o niacutevel de cientificidadeverdade de determinado movimento teoacuterico do passado em uma atitude bastante anacrocircnica (Fortes 2011)

Os Estudos Claacutessicos e a teoria gramatical antiga

Para a assim considerada relevante incursatildeo dos historiadores da Linguiacutestica em domiacutenios da Antiguidade grega e latina em cujo bojo ter-se-iam fundado as ciecircn-cias e as instituiccedilotildees ocidentais ndash e ipso facto um capiacutetulo dessa histoacuteria ndash natildeo seria de pouca monta o empreendimento de esforccedilos para examinar e assimilar fontes muito afastadas no tempo fontes redigidas nas liacutenguas claacutessicas e rarissimamente visitadas ateacute entatildeo ateacute mesmo pelos classicistas cxli Em que pese isso vale ainda perguntar para aleacutem do aspecto propriamente tradicional dessa espeacutecie de ldquoretorno aos antigosrdquo cxlii restariam ainda contribuiccedilotildees objetivas dos textos em grego e latim para pensar a

histoacuteria do pensamento linguiacutestico

Em favor dessa pesquisa poder-se-ia aqui salientar em primeiro lugar que o aproveitamento de temas metalinguiacutesticos do remoto passado grego e romano refor-ccedilaria a ideia da proacutepria Linguiacutestica enquanto um empreendimento histoacuterico Embora natildeo fizessem uma Linguiacutestica ndash o que seria um flagrante anacronismo ndash os antigos gramaacuteticos filoacutesofos e retoacutericos do mundo grego e romano pensaram e desenvolve-ram conceitos teorias princiacutepios e aplicaccedilotildees tecnoloacutegicas da linguagem aplicados agrave resoluccedilatildeo de problemas de linguagem de sua eacutepoca ou motivados por inquietaccedilotildees in-telectuais proacuteprias agrave sua maneira de ver o mundo Com efeito se com Sylvain Auroux (1992 p 12) nos rendemos ao fato de que a Linguiacutestica natildeo resiste agrave estabilidade do seu proacuteprio nome visto que nascido de um neologismo alematildeo do seacuteculo XVIII ela a Linguiacutestica

se trata ldquode uma forma de estruturaccedilatildeo do saber eminen-temente transitoacuteria que estaacute provavelmente em vias de desaparecer sob nossos olhos (eacute por isto que recorremos cada vez mais agrave expressatildeo plural ldquociecircncias da linguagemrdquo)

Como sustentar o mito de que tal ciecircncia representaria um empreendimento estaacutevel monoliacutetico coerente e verdadeiro se ampliamos o arco de anaacutelise e encon-tramos nos seus ldquopredecessoresrdquo notaacuteveis contradiccedilotildees e desconcertantes paralelos Certamente com o avanccedilo das pesquisas em torno de antigos manuais compecircndios gramaacuteticas tratados filosoacuteficos ou retoacutericos que tematizavam a linguagem mais se revela a permanecircncia e a transformaccedilatildeo de conceitos que ora estavam na base do que os modernos chamaram de Linguiacutestica ndash ainda que os sujeitos do mundo antigo certa-mente estivessem movidos por propoacutesitos e problemas muito diferentes que os leva-vam a olhar para suas liacutenguas No entanto desse labirinto de reflexotildees antigas sobre a linguagem se podem destacar por vezes soluccedilotildees inesperadas para os problemas que ainda nos colocamos bem como o desenvolvimento de princiacutepios que embora possam estar esquecidos na noite do tempo satildeo suscetiacuteveis de uma reabilitaccedilatildeo para um necessaacuterio arejamento de nossas agendas de pesquisa talvez um tanto gastas pela manutenccedilatildeo longeva de um mesmo paradigma

Um breve exemplo a permanecircncia nos estudos linguiacutesticos modernos da ter-minologia gramatical claacutessica (como por exemplo o nome das partes do discurso ndash nome verbo pronome adveacuterbio etc) ou mesmo de conceitos (como o de caso con-cordacircncia oraccedilatildeo sintaxe entre outros) desafia o estudioso moderno a reconhecer a instabilidade e a relatividade dos princiacutepios teoacutericos da sua ciecircncia A permanecircncia de um mesmo quadro terminoloacutegico natildeo eacute banal tampouco irrelevante instiga uma bus-ca pela compreensatildeo das diferenccedilas e dos pontos de contato exerciacutecio de anaacutelise que tem o meacuterito de tornar histoacuteria da Linguiacutestica menos teleoloacutegica ndash os antigos como preparaccedilatildeo para um futuro mais avanccedilado ndash e tampouco subtrair agraves praacuteticas presentes as suas especificidades em nome de uma espeacutecie de elogio dos antigos uma versatildeo da jaacute encardida auctoritas veterum que em algum momento do passado alccedilou os gregos e os latinos agrave condiccedilatildeo de sujeitos de uma civilizaccedilatildeo superior Ambas as atitudes com efeito soam anacrocircnicas buscar nos antigos respostas a nossos questionamentos seria

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lanccedilar agrave sombra as suas idiossincrasias enquanto refutaacute-los por natildeo responderem aos nossos anseios seria exigir deles um conhecimento do futuro

O fato eacute que por soacutelida e contiacutenua que pareccedila a tradiccedilatildeo terminoloacutegica que co-

loca na mesma linha por exemplo Aristoacuteteles e os mais recentes gramaacuteticos e linguis-tas que parecem falar a mesma liacutengua quando se evocam nomes verbos conectivos cliacuteticos adveacuterbios caso etc quando vistos no detalhe poreacutem natildeo poucas comple-xidades reviravoltas especializaccedilotildees conceituais transposiccedilotildees para contextos dife-renciados etc tais termos parecem ter sofrido Um exame dos diferentes sentidos que tais termos engendraram no passado a maneira como foram lidos e aproveitados pelos coetacircneos e a maneira como foram recebidos e readaptados a outras reflexotildees no campo dos estudos da linguagem levam o estudioso a relativizar ou mesmo a abdicar de concepccedilotildees preestabelecidas a partir de seu tempo entre os quais aquele que consi-derava ateacute haacute pouco as liacutenguas e a linguagem como objetos exclusivos da Linguiacutestica um objeto delimitado e essencialmente imanente como diria Saussure ldquoas liacutenguas nelas e por elas mesmasrdquo (Saussure 1973 [1916] p 28) um objeto que desde o final do seacuteculo XIX buscou a sua autonomia a sua maioridade e independecircncia em relaccedilatildeo aos seus ancestrais Em suma por mais que na histoacuteria seja impossiacutevel voltar a ser grego ou romano e a pensar como os antigos pensavam eacute preciso reconhecer que ldquoesta longa duraccedilatildeo do passado natildeo deve no entanto impedir o historiador de se distanciar do passado uma distacircncia reverente necessaacuteria para que o respeite e evite o anacro-nismo (Le Goff 2003 p 26)

Sendo assim classicistas de renome internacional como Viacutevien Law (1984 1986 1993 2003 2005[1995]) Ildefonse (1997) Baratin (1981 1989) Desbordes (2007) Swiggers (1992 2010 2013) entre outros assim como classicistas brasileiros que a partir das duas uacuteltimas deacutecadas parecem encontrar nos textos metalinguiacutesticos antigos relevante fonte para variados estudos entre os quais a tiacutetulo de ilustraccedilatildeo poderiacuteamos destacar Moura Neves (1987) Borges Neto (1991 2004) Pereira (2002 2006) e Martinho (2002 2009) ndash e a obra de muitos de seus orientandos e ex-orien-tandos muitos dos quais aliaacutes jaacute ocupam posiccedilotildees nas universidades cxliii Tais estu-diosos para aleacutem de produzirem trabalhos que repercutem diretamente na maneira como a histoacuteria das ciecircncias da linguagem eacute contada acabam tambeacutem para sermos otimistas por influenciar a maneira como a Linguiacutestica ndash lato sensu ndash eacute pensada no Brasil

Diferentemente das primeiras posiccedilotildees adotadas como a de um Robins (1951

1967) que liam os latinos para detectar-lhes as omissotildees teoacutericas que cometeram se comparados com os estruturalistas de um tempo muito posterior ou mesmo um Mat-toso Camara Juacutenior (1979) que relegava a gramaacutetica antiga agrave desconfortaacutevel posiccedilatildeo de ldquopreacute-Linguiacutesticardquo um estaacutegio ainda carente da cientificidade e do acabamento da ciecircncia de sua eacutepoca esses novos estudos reforccedilam a neutralidade epistemoloacutegica e o historicismo moderado que conforme tambeacutem nos ensina Auroux (1992 p 14-15) satildeo princiacutepios fundamentais da nova histoacuteria do pensamento linguiacutestico cxliv o que nos remete agrave questatildeo metodoloacutegica envolvida no tratamento contemporacircneo desse corpus de autores do passado

A questatildeo metodoloacutegica No campo dos Estudos Claacutessicos as pesquisas sobre os diferentes textos gre-

gos e latinos podem ter como aporte diferentes teorias modernas de leitura tais como a anaacutelise do discurso a intertextualidade a filologia etc aleacutem de colher na proacutepria retoacuterica antiga elementos para subsidiar as interpretaccedilotildees modernas No campo dos estudos que tenham por objetivo recuperar os elementos de uma tradiccedilatildeo de estudos sobre a linguagem uma das perspectivas que se tem mostrado mais produtiva eacute a da Historiografia da Linguiacutestica (HL)

Nessa perspectiva teoacuterica um dos pontos centrais consiste em compreender o

corpus a partir daquilo que Swiggers (2013) chama de ldquonoccedilatildeo problemaacutetica de textordquo que envolve entre outros fatores 1) a sua inserccedilatildeo em circuitos mais amplos de circu-laccedilatildeo 2) a sua posiccedilatildeo nos sistemas culturais 3) a sua estrutura global 4) a natureza de seu papel dinacircmico

Por isso a pesquisa em torno desse tipo de corpus natildeo pode prescindir de um

atento e rigoroso estudo dos contextos de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo da obra in-vestigada amparado em bibliografia secundaacuteria e primaacuteria pertinentes Nesse sentido requer-se tambeacutem uma incursatildeo nos modos de transmissatildeo e difusatildeo manuscrita do texto bem como sua recepccedilatildeo agrave sua eacutepoca e seu modo de aplicaccedilatildeo nas praacuteticas de uso desse texto na eacutepoca em que foi produzido tendo em vista as questotildees que o motiva-ram os problemas que buscavam solucionar eou as suas aplicaccedilotildees

Em geral para esse tipo de anaacutelise levam-se em conta trecircs grandes princiacutepios formulados por Koerner (2014 p 58) que representam tambeacutem trecircs etapas da pes-quisa

1) o princiacutepio da contextualizaccedilatildeo que consiste em estabelecer o ldquoclima de opiniatildeordquo em que um determinado texto foi produzido o que representa levar em conta natildeo so-mente questotildees ligadas ao desenvolvimento teoacuterico em questatildeo nesse texto mas aos fatores sociais histoacutericos culturais que justificaram a sua proposiccedilatildeo enquanto um monumento da cultura de sua eacutepoca

Como afirma Koerner acerca desse princiacutepio

As ideias linguiacutesticas nunca se desenvolveram indepen-dentemente de outras correntes intelectuais do periacuteodo em que surgiram Na verdade o que Goethe chamou de Geist der Zeiten sempre deixou as suas marcas no pensa-mento linguiacutestico Por vezes a influecircncia da situaccedilatildeo so-cioeconoacutemica e mesmo poliacutetica deve igualmente ser tida em conta (considere-se a discussatildeo sobre a lsquoordem natu-ralrsquo da organizaccedilatildeo sintaacutetica na Franccedila do seacuteculo XVIII na qual o francecircs foi apresentado como uma liacutengua superior agraves outras e as aspiraccedilotildees de supremacia poliacutetica da Franccedila no mesmo periacuteodo)

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(Koerner 2014 p 58)

2) o princiacutepio da imanecircncia consiste na leitura imanente do texto do ponto de vista de seu estabelecimento criacutetico (filoloacutegico) de sua construccedilatildeo enquanto um objeto dis-cursivo (o seu gecircnero) e em relaccedilatildeo aos elementos teoacutericos analiacuteticos e empiacutericos que apresenta Trata-se portanto de uma espeacutecie de close reading para o que eacute crucial o esforccedilo que o analista empreende para se desvencilhar do seu arcabouccedilo teoacuterico do presente tendo em vista um esforccedilo de escutar os sentidos que os conceitos possuiacuteam no contexto em que foram formulados tendo em vista as finalidade do gecircnero em questatildeo (se eacute uma gramaacutetica escolar se eacute um tratado de loacutegica um manual de retoacuterica etc)

3) o princiacutepio da adequaccedilatildeo tendo realizado as duas primeiras etapas o estudioso poderaacute entatildeo buscar traccedilar aproximaccedilotildees comparaccedilotildees diferenciaccedilotildees entre o qua-dro conceptual da obra em questatildeo e eventualmente suas ressonacircncias em outros pe-riacuteodos inclusive na contemporaneidade Particularmente para a traduccedilatildeo de textos gregos e latinos eacute crucial que na anotaccedilatildeo o analista busque oferecer ao leitor iacutendices dessa adequaccedilatildeo para assegurar que o texto antigo seja compreensiacutevel aos leitores contemporacircneos

Como exemplifica Koerner (1995 p 59)

Claro que eacute necessaacuterio que o investigador explique porquecirc e ateacute que ponto o conceito tardo-medieval de lsquosignificatio vocisrsquo por exemplo pode ser traduzido como lsquosignificadorsquo ou ateacute que ponto a distinccedilatildeo saussuriana entre lsquosincroniarsquo e lsquodiacroniarsquo pode ser aplicada a propostas teoacutericas ante-riores que tecircm a ver com a relaccedilatildeo entre a linguiacutestica lsquodes-critivarsquo e lsquohistoacutericarsquo Como regra o historioacutegrafo da linguiacutes-tica deve alertar o leitor para o facto de as aproximaccedilotildees terminoloacutegicas terem sido introduzidas por ele por outras palavras deve ser expliacutecito e preciso no que respeita agravequi-lo que na realidade estaacute a fazer Koerner (2014 p 59)

A aplicaccedilatildeo desses trecircs princiacutepios pressupotildee uma ldquoneutralidade epistemoloacutegi-cardquo e um ldquohistoricismo moderadordquo (Auroux 1992 p 12) A neutralidade epistemoloacutegi-ca diz respeito agrave noccedilatildeo de ldquociecircnciardquo com que se opera ldquociecircnciardquo deve ser tomada como palavra descritiva natildeo normativa Segundo Auroux (1992) ldquonatildeo faz parte do nosso papel dizer se isto eacute mais ciecircncia do que aquilo mesmo se nos acontecer de sustentar que isto ou aquilo eacute concebido como ciecircncia por este ou aquele criteacuteriordquo Quanto ao his-toricismo moderado ele consiste na concepccedilatildeo que prevecirc em certa medida indepen-decircncia entre o saber historicamente construiacutedo e os fenocircmenos inerentes agrave linguagem enquanto expressatildeo humana em seus domiacutenios cognitivos e socio-culturais O valor de um saber linguiacutestico eacute dado de acordo com o grau de adequaccedilatildeo desse saber a um fim dado contudo isso natildeo deve conduzir ao ldquomito da incomparabilidaderdquo haja vista

que a linguagem instancia fenocircmenos que ao longo do tempo podem ter a mesma natureza como a sua relaccedilatildeo com identidade cultural norma variaccedilatildeo e mudanccedila organizaccedilatildeo loacutegica interna das palavras etc

Assim a consequecircncia da aplicaccedilatildeo dos trecircs hermenecircuticos da Historiografia da Linguiacutestica (o princiacutepio da contextualizaccedilatildeo o princiacutepio da imanecircncia e o princiacutepio da adequaccedilatildeo) articulados agrave noccedilatildeo problemaacutetica de texto agrave neutralidade epistemoloacute-gica e agrave abordagem historicista moderada eacute mitigar a noccedilatildeo de ciecircncia e de Linguiacutestica assentada sobre o mito do cientificismo progressista homogecircneo e estaacutevel e produzir em contrapartida a noccedilatildeo de que os saberes da Linguiacutestica como de resto de todo conhecimento satildeo em ampla medida uma realidade histoacuterica ainda que tenham como objeto de observaccedilatildeo fenocircmenos linguiacutesticos que podem ser em certa medida coteja-dos diacronicamente

Textos gramaticais antigos comentaacuterio e traduccedilatildeo

Se do ponto de vista teoacuterico a colaboraccedilatildeo do estudo de corpora de textos metalinguiacutesticos antigos para a histoacuteria das ciecircncias da linguagem parece-nos suficien-temente caracterizada tanto mais evidente mostra-se-nos a oportunidade de que se reveste a empreitada de traduzir tais textos Com as facilidades do mundo digital que franqueou aos estudiosos o acesso a parte consideraacutevel dos textos gramaticais antigos hoje classicistas podem se debruccedilar sobre farta documentaccedilatildeo que haacute apenas alguns anos se podia acessar somente presencialmente em determinadas bibliotecas sobre-tudo localizadas no Velho Mundo

Para termos a ideia da dimensatildeo do corpus atualmente disponiacutevel on-line acessarmos brevemente o portal do Corpus Corporumcxlv que reuacutene as obras conven-cionalmente atribuiacutedas aos gramaacuteticos latinos datadas de entre os seacuteculos III e VIII compiladas e editadas sobretudo pelo filoacutelogo alematildeo Heinrich Keil (Leipzig 1855-1880) somos confrontados com um cifra de mais de cem textos atribuiacutedos a cerca de 41 autores diferentes aleacutem de mais de duas dezenas de fragmentos e obras anocircnimas

Cobrindo desde manuais de ensino de gramaacutetica ndash as artes de extensatildeo varia-

da ndash ateacute longos tratados monograacuteficos sobre meacutetrica sintaxe figuras de linguagem entre outros que podem chegar ao montante de mais de um milhar de paacuteginas por obra a compilaccedilatildeo disponiacutevel assombra tanto pela sua complexidade ndash perfazem de fato diferentes gecircneros de textos gramaticais com assuntos variados e com propoacutesitos igualmente distintos natildeo permitindo por isso mesmo um tratamento global aleacutem de em vaacuterios casos serem exemplos de superposiccedilatildeo de textos recortes colagens paraacutefrases e ainda outros fenocircmenos textuais ligados agrave transmissatildeo ndash quanto tambeacutem impressionam pela sua dimensatildeo jaacute que com raras exceccedilotildees quase natildeo haacute traduccedilotildees em liacutenguas modernas

Sendo assim aleacutem de tratar dos aspectos propriamente teoacutericos desse corpus colaborando com subsiacutedios para a ldquohistoacuteria do pensamento gramaticalrdquo o classicista eacute tambeacutem convocado a dar a sua contribuiccedilatildeo com um amplo projeto de traduccedilatildeo co-

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mentaacuterio e anotaccedilatildeo desses textos que embora jaacute se consagre em iniciativas isoladas no Brasil (sobretudo fruto de dissertaccedilotildees e teses da aacuterea ) ainda natildeo se constitui como um grande projeto coletivo e unificado de caraacuteter multidisciplinar tal como ocorre em outros paiacuteses em particular na Franccedila Vejamos por exemplo o caso francecircs em relaccedilatildeo agrave traduccedilatildeo da obra de Prisciano

Ateacute precisamente 2008 a empreitada de traduccedilatildeo da obra de Prisciano (seacutec VI dC) gramaacutetico da Antiguidade Tardia natildeo havia sequer se iniciado em qualquer liacutengua moderna conquanto o lugar de proeminecircncia das suas Institutiones gramma-ticae para a compreensatildeo da transiccedilatildeo do pensamento antigo ao moderno fosse jaacute desde muito amplamente reconhecido o que sempre justificou o fato de ser aquela a obra mais citada pelos gramaacuteticos e dicionaristas medievais e modernos Com efeito dividida em 18 livros que cobrem dos domiacutenios miacutenimos da linguagem (os sons as siacutelabas os processos de formaccedilatildeo de palavras ndash Livro I) passando por uma exaustiva anaacutelise das partes da oraccedilatildeo (Livros II-XV) ateacute chegar no exame do domiacutenio da sin-taxe (Livros XVI e XVII) a obra de Prisciano perfaz seguramente mais de mil paacuteginas de texto latino em sua ediccedilatildeo moderna cobrindo temas de complexidade certamente ainda natildeo bem avaliada em seu conjunto

Na Franccedila o Grupo Ars grammatica formado por latinistas historiadores da ciecircncia e da gramaacutetica liderado por Marc Baratin e composto por Freacutedeacuterique Bivil-le Guillaume Bonnet Bernard Colombat Alessandro Garcea Louis Holtz Madeleine Keller Diane Marchand entre outros iniciaram a empreitada de traduzir Prisciano trabalho que jaacute rendeu a publicaccedilatildeo em 2010 do Livro XVII (Syntaxe I) e em 2012 dos Livros XIV XV e XVI (Les invariables) e em 2017 do Livro XVIII (Syntaxe II) O diferen-cial do trabalho de Baratin et alii eacute a apresentaccedilatildeo de uma traduccedilatildeo legiacutevel e fluente em francecircs moderno (em alguns casos adotando-se terminologia moderna da Linguiacutestica quando possiacutevel) mas tambeacutem o estudo criacutetico e as notas que auxiliam na compreen-satildeo do texto tornando-se portanto instrumental uacutetil tanto a classicistas que se voltam a textos outrora considerado ldquoperifeacutericosrdquo no amplo corpus de produccedilotildees escritas em latim quanto a historiadores da Linguiacutestica e a linguistas que perspectivam retomam e se revelam contemporaneamente interessados nos fundamentos histoacutericos e epis-temoloacutegicos de suas praacuteticas

No acircmbito brasileiro questotildees praacuteticas que envolvem o ainda pequeno contin-gente de profissionais dedicados agrave aacuterea (ainda que esteja em franco desenvolvimento com a multiplicaccedilatildeo de pesquisas fora dos maiores centros tradicionalmente dedicados aos Estudos Claacutessicos no Brasil) bem como restriccedilotildees proacuteprias do mercado editorial com espaccedilo reduzido a publicaccedilotildees de obras teacutecnicas da Antiguidade ndash principalmente biliacutengues ndash satildeo atualmente desafios que se apresentam no horizonte esperando solu-ccedilotildees que talvez passem pela crescente adesatildeo aos meacutetodos de trabalho coletivo media-dos pelo computador e pelas formas de publicaccedilatildeo alternativas em meio digital

Fora isso poder-se-ia tambeacutem elencar um certo estranhamento que tais pes-quisas geram ainda nos ciacuterculos linguiacutesticos ainda pouco afeitos ao caraacuteter essencial-mente inter- e transdisciplinar inerentes das pesquisas dos Estudos Claacutessicos ndash que oficialmente natildeo satildeo aacuterea reconhecida no Brasil a se considerar a tabela de aacuterea da

CAPES o que obriga classicistas se dividirem entre os estudiosos da subaacuterea de Letras (que envolve principalmente os Estudos Literaacuterios) e Linguiacutestica

Um terceiro aspecto importante mas certamente natildeo menor diz respeito ain-da agrave carecircncia de estudos em torno da proacutepria traduccedilatildeo Reconheccedilo muitas vezes uma lacuna teoacuterica e metodoloacutegica importante quando lidamos nessa aacuterea de forma que as traduccedilotildees realizadas pelos classicistas por bem cuidadas que o sejam ainda se ressen-tem de serem essencialmente artesanais e contarem minimamente com os recursos atualmente disponiacuteveis aos tradutores profissionais aleacutem de suscitarem pouca refle-xatildeo metatradutoacuteria (o que entretanto jaacute se inicia a fazer quanto agraves traduccedilotildees literaacute-rias de textos antigos no Brasil sobre as quais se jaacute se podem elencar significativos e valiosos exemplos)

Agrave guisa de conclusatildeo

Com esses apontamentos que natildeo se pretendem conclusivos parecem-nos ca-racterizados de algum modo os desafios mas tambeacutem a contribuiccedilatildeo que os Estudos Claacutessicos especialmente as investigaccedilotildees em torno da gramaacutetica antiga e os esforccedilos em torno da traduccedilatildeo e anotaccedilatildeo desse corpus tecircm a oferecer para pensar as refle-xotildees gramaticais erigidas pela tradiccedilatildeo ocidental contribuiccedilatildeo potencialmente capaz de produzir senatildeo impacto ao menos incocircmodo ou ruiacutedo entre os linguistas de nosso tempo Se essa tradiccedilatildeo representa tambeacutem uma teoria a investigaccedilatildeo de sua histoacuteria como tambeacutem nos informa Koerner

pode muito bem servir como um alerta contra as alega-ccedilotildees exageradas em termos de novidade originalidade inovaccedilatildeo e revoluccedilatildeo em nossas (re)descobertas e assim levar a um tipo menos polecircmico de discurso cientiacutefico () uma lsquomoderaccedilatildeo na teoria linguiacutesticarsquo (Koerner 2003 p 381)

Eacute claro que com essa histoacuteria tampouco podemos ter a presunccedilatildeo ingecircnua de chegarmos ao discurso dogmaacutetico do que seria ldquoa verdaderdquo ou de termos a posse de um recurso metodoloacutegico que nos permita medir como se tiveacutessemos uma reacutegua os trabalhos de colegas linguistas e gramaacuteticos de nosso tempo Paul Veyne afirmou certa vez que

A histoacuteria tem a faculdade de nos confundir ela nos con-fronta incessantemente com singularidades diante das quais nossa reaccedilatildeo mais natural eacute a de natildeo enxergar lon-ge de constatar que natildeo temos a chave adequada nem se-quer percebemos que natildeo haacute uma fechadura que deve ser aberta (VEYNE 1998 [1971] p 174)

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Falando com os mortosalguns epigramas

heleniacutesticos dialogadosem traduccedilatildeo cxvliii

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Flaacutevia Vasconcellos Amaral

CARONTE Vamos velhaco paga a passagemMENIPO Vai gritando se isso te daacute prazer CaronteCARONTE Paga jaacute disse pela travessiaMENIPO Natildeo poderias tomar de quem natildeo temCARONTE E haacute algueacutem que natildeo tem um oacuteboloMENIPO Se haacute um outro eu natildeo sei Eu natildeo tenhoCARONTE Por Plutatildeo seu safado vou te torcer o pescoccedilo se natildeo pagaresMENIPO E eu com este porrete vou te dar uma porreta-da e rachar a cabeccedilaCARONTE Entatildeo foi por nada que eu te fiz atravessarMENIPO O Hermes aqui presente que pague a passagem Foi ele que me entregou a ti HERMES Por Zeus Belo negoacutecio eacute o meu se ainda eu tenho que pagar pelos mortos () cxlix

A morte eacute um dos temas mais fascinantes e abundantes da literatura grega seja ela o fio condutor da obra como em ldquoDiaacutelogos dos Mortosrdquo de Luciano de Samoacute-sata texto que hospeda o trecho citado acima seja ela tema latente realccedilado em partes de uma composiccedilatildeo como no canto XI da Odisseia de Homero

Presente praticamente em quase todos os gecircneros poeacuteticos da literatura grega muitas vezes a morte ndash e todo o imaginaacuterio em torno dela ndash eacute discutida em formato de diaacutelogo entre vivos e mortos e divindades e mortos Tomemos como exemplo o trecho do diaacutelogo entre Caronte Menipo e Hermes acima citado de Luciano herdeiro dessa tradiccedilatildeo poeacutetica

O argumento central do diaacutelogo eacute o calote do morto que diz natildeo ter o dinheiro necessaacuterio para pagar Caronte o barqueiro encarregado de transportar os mortos pelo Aqueronte rio que leva ao Hades Caronte em troca do transporte recebe um oacutebolo que os mortos carregam nos laacutebios Hermes eacute o psykhopompos ou seja o que conduz as almas ateacute Caronte para que a travessia seja feita A terceira e mais intrigante perso-nagem eacute o finado Menipo famoso filoacutesofo ciacutenico do seacuteculo III aC cuja caracterizaccedilatildeo nesse diaacutelogo serve de exemplo sobre os ciacutenicos pobres e frugais e cujas vestimentas incluiacuteam um cajado (no trecho traduzido como porrete) e um saco (que aparece no trecho subsequente do diaacutelogo que natildeo foi reproduzido aqui)

Recheado do humor satiacuterico caracteriacutestico da obra de Luciano o trecho trans-porta o leitor para dentro de um diaacutelogo hipoteacutetico ambientado no tradicional espaccedilo limiar entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e desafia a noccedilatildeo comum da

Gostaria antes de mais nada de deixar registrado o meu profundo lamento por todas as mortes que a Covid-19 causou e que infelizmente ainda iraacute causar ateacute o momento que este livro for publicado ou ainda em momento posterior Escrevo este texto em setembro de 2020 e jaacute ultrapassamos mais de cento e trinta mil vidas perdidas somente no Brasil Eacute para mim praticamente impossiacutevel natildeo reconhecer o lamento fuacutenebre de tantas famiacutelias que perderam seus entes queridos ao escrever meu trabalho sobre a temaacutetica da morte Que a terra seja leve para todos os que perderam suas vidas para esse inimigo invisiacutevel

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praacutetica funeraacuteria do pagamento ao barqueiro Caronte Uma estrateacutegia narrativa se-melhante acontece nos epigramas 317 e 524 de Caliacutemaco a seguir Nesses epigramas ambientados no espaccedilo funeraacuterio onde estaacute a tumba o transeunte-leitor questiona o morto em relaccedilatildeo a elementos do senso comum como por exemplo se o morto prefe-re a escuridatildeo da morte ou a luz da vida (317) ou como eacute ldquoembaixordquo ou ainda se existe a volta ao mundo dos vivos (524)

Aleacutem do questionamento do morto sobre como satildeo as coisas ldquodo lado de laacuterdquo os epigramas fuacutenebres dialogados do periacuteodo heleniacutestico que seratildeo apresentados em traduccedilatildeo a seguir se ancoram no espaccedilo fuacutenebre e seus objetos (Dioscoacuterides 37 Antiacute-patro161 424 e 426) e especulam sobre a vida do morto (Leocircnidas 163 e 503 Antiacutepatro 164 Aacuterquias 165 Caliacutemaco 277 e 725 Damageto 355 e Meleagro 470)cliii

Antes de apresentar as propostas de novas traduccedilotildees dos epigramas dialoga-dos do periacuteodo heleniacutestico em portuguecircs clix satildeo necessaacuterias algumas palavras iniciais sobre o gecircnero epigramaacutetico a sua vertente fuacutenebre os poetas que fazem parte do corpus e as escolhas da traduccedilatildeo

O periacuteodo heleniacutestico (entre a morte de Alexandre o Grande em 323 aC e a batalha de Aacutecio em 31 aC) foi um momento de intensa produccedilatildeo literaacuteria e difusatildeo da cultura grega entre os reinos do impeacuterio de Alexandre O epigrama cuja origem eti-moloacutegica (epi + gramma = o que eacute escrito sobre) remonta agrave produccedilatildeo inscrita em ma-teriais duros foi um dos gecircneros com maior expansatildeo durante o periacuteodo natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave profusatildeo mas tambeacutem por conta da variedade de temas que passaram a ser tratados no gecircnero

A partir do seacuteculo IV aC as inscriccedilotildees que antes eram encontradas em obje-tos votivos laacutepides funeraacuterias monumentos e ceracircmica e tinham funccedilatildeo pragmaacutetica de registro passam a ser dissociadas de seus objetos e ganham o papiro como suporte Logo entatildeo as inscriccedilotildees comeccedilam a abarcar outras temaacuteticas como a eroacutetica e a sim-posial Nasce entatildeo o epigrama literaacuterio o qual seraacute um gecircnero duradouro desenvol-vido intensamente por Marcial em Roma e chegaraacute ateacute o Renascimento respingando tambeacutem na modernidade

Os epigramatistas heleniacutesticos seratildeo os maiores responsaacuteveis pelas inovaccedilotildees no gecircnero sempre respeitando o equiliacutebrio que Fantuzzi e Hunter (2004) denominam ao movimento de manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo com constante inovaccedilatildeo conceito nortea-dor de toda a poesia heleniacutestica Um exemplo desse movimento eacute justamente o que acontece com alguns dos epigramas fuacutenebres dialogados pois neles satildeo identificados elementos essenciais das inscriccedilotildees fuacutenebres (brevemente elencados a seguir) em di-aacutelogos que satildeo construiacutedos para ir aleacutem das informaccedilotildees sobre o morto e o lamento pela sua morte O proacuteprio subgecircnero epigrama dialogado surge nesse periacuteodo como atesta Vega (1989 p 190) clvi

O epigrama fuacutenebre eacute uma das vertentes mais antigas do gecircnero Em um pri-meiro momento as inscriccedilotildees fuacutenebres tinham a funccedilatildeo de marcar o espaccedilo do morto fornecendo as informaccedilotildees elementares sobre ele o nome a filiaccedilatildeo o local de origem

e a causa mortis A princiacutepio as inscriccedilotildees fuacutenebres poderiam ser em prosa ou em ver-so hexameacutetrico mas o metro que se consagrou como o metro epigramaacutetico foi o diacutestico elegiacuteaco (um hexacircmetro e um pentacircmetro)

Na antiguidade o espaccedilo do morto natildeo era regulado e estruturado como nos dias de hoje Muitas vezes os enterramentos aconteciam fora da cidade ao longo das estradas ou seja um espaccedilo limiar entre a comunidade e o externo Por se tratar por-tanto de um objeto disposto em espaccedilo puacuteblico ocupado por um indiviacuteduo e tambeacutem por potencialmente ser interceptado por transeuntes-leitores que desconheciam esse objeto as laacutepides funeraacuterias e suas inscriccedilotildees eram uma forma de instruir os transeun-tes estabelecendo conexotildees entre o morto e eles A meu ver a criaccedilatildeo dessa conexatildeo natildeo servia apenas para matar a curiosidade do transeunte a respeito do objeto desco-nhecido celebrar e preservar a memoacuteria do morto mas era uma forma subliminar de apelo para que o espaccedilo fosse preservado Talvez a leitura da inscriccedilatildeo por parte do transeunte (independentemente se fosse em voz alta ou em silecircncio) pudesse sensibi-lizar um potencial violador de tumbasclvii dissuadindo-o do delito

Nesse sentido natildeo eacute estranho que os textos das inscriccedilotildees passem a dar voz natildeo apenas ao morto mas tambeacutem agrave proacutepria laacutepide fenocircmeno que os estudiosos identifi-cam com oggetti parlanti objetos que falam (BURZACHECHI 1964 WACHTER 2010) O mesmo aconteceu com as inscriccedilotildees em objetos votivos sob o mesmo princiacutepio pois esses objetos se encontravam em ambiente puacuteblico e precisavam ser identificados com os seus respectivos depositantes ndash sem contar a funccedilatildeo ritualiacutestica que essas inscriccedilotildees tambeacutem possuiacuteam Tendo a crer que a voz em primeira pessoa dada aos objetos nada mais eacute do que uma resposta ao natural questionamento que o homem faz a todo objeto desconhecido que ele encontra em seu caminho Eacute natural algueacutem se perguntar o que algo eacute quando essa pessoa se depara com algo que natildeo pertence ao repertoacuterio de co-nhecimento Quando se visita um cemiteacuterio natildeo existe a curiosidade de se saber quem satildeo aqueles mortos de onde vieram e a qual famiacutelia pertenceram Pois bem acredito que esse fenocircmeno acontece desde a antiguidade Cria-se perguntas na mente de quem lecirc a inscriccedilatildeoo epigrama que os textos em primeira pessoa passaram a responder de maneira simples e que com o tempo eles incorporaram outras informaccedilotildees e ideias que constituem os diaacutelogos entre os vivos e os mortos

Eacute portanto tambeacutem um passo natural que a segunda voz seja acrescida agraves inscriccedilotildees fuacutenebres jaacute que esse diaacutelogo acontecia de certa maneira como exposto acima na mente do transeunte-leitor Aleacutem do diaacutelogo entre a laacutepide e o transeun-te-leitor encontra-se tambeacutem o diaacutelogo entre o morto e o transeunte-leitor e entre objetos dispostos na laacutepide ndash que tambeacutem poderiam estar entalhados ou pintados ndash e o transeunte-leitor Algumas inscriccedilotildees e epigramas fuacutenebres satildeo enunciados por mais de dois participantes mas em menor nuacutemero As primeiras inscriccedilotildees dialogadas satildeo breves e conteacutem apenas dados elementares do morto Com o passar do tempo e o de-senvolvimento do gecircnero os epigramas fuacutenebres dialogados passam a ser mais longos trazendo natildeo apenas as informaccedilotildees mais elementares como tambeacutem informaccedilotildees extras reflexotildees etc

O presente corpus apresentado em traduccedilatildeo tem como recorte temporal o pe-riacuteodo heleniacutestico momento de maior inovaccedilatildeo no gecircnero epigramaacutetico e tem tambeacutem

128 129

como fonte a Antologia Grega (AG) a maior coleccedilatildeo de epigramas que chegou ateacute os dias de hoje A AG eacute resultado de muacuteltiplos processos editoriais que aconteceram por muitos seacuteculos A AG com a sua enorme quantidade de epigramas vindos de um periacuteo-do de mais de dezesseis seacuteculos eacute uma fonte riquiacutessima natildeo apenas do gecircnero e para os estudos de vertente literaacuteria mas tambeacutem fornece material secundaacuterio para diversas outras aacutereas do conhecimento como a historiografia arqueologia e antropologia

A base dessa antologia foi a Guirlanda de Meleagro a primeira antologia de epigramas que se tem notiacutecia datada do seacuteculo I aC Meleagro epigramatista nascido em Gadara compunha seus poemas em grego e eacute um dos poetas mais importantes na vertente grega do gecircnero por conta da sua coleccedilatildeo de epigramas na qual ele inseriu suas proacuteprias composiccedilotildees Embora natildeo se tenha a sua composiccedilatildeo original sabe-se do seu projeto poeacutetico tanto pelo seu proecircmio (AG 41) como tambeacutem por estudos que reconhecem provaacuteveis sequecircncias de epigramas da Guirlanda que permaneceram in-tactas aos processos editoriais que a AG sofreu por seacuteculos (GUTZWLLER 1998) Con-siderando as menccedilotildees do proecircmio provavelmente a Guirlanda de Meleagro abrigava epigramas de pelo menos cinquenta e oito epigramatistas ndash sem contar o proacuteprio poeta ndash arranjados natildeo apenas em livros temaacuteticos mas tambeacutem por semelhanccedila compo-sicional E assim tambeacutem era o meacutetodo de composiccedilatildeo de Meleagro Ele emulava seus predecessores e pode-se entender seus poemas como os laccedilos da amarraccedilatildeo de rama-lhetes de epigramas que colocados juntos formavam a Guirlanda clx

Filipe no seacuteculo I dC compotildee a sua guirlanda agrave moda de Meleagro como registrado no seu proecircmio (AG 42) Haacute evidecircncias tambeacutem de sequecircncias da sua co-leccedilatildeo que teriam sido preservadas Os estudiosos tendem a assumir que o arranjo que Filipe adotou era em ordem alfabeacutetica (CAMERON 1993) poreacutem atualmente Regina Houmlschele realiza uma pesquisa que aponta argumentos a favor de um arranjo mais elaborado da coleccedilatildeo de Filipe clxi

A proacutexima coleccedilatildeo que forma a base da AG eacute o Ciclo de Agatias Escolaacutestico datado do seacuteculo VI dC e que teria como princiacutepio de composiccedilatildeo a divisatildeo em livros temaacuteticos Seu longo proecircmio (AG 43) tambeacutem se vale da imagem floril mas da pers-pectiva da abelha que visita muitas flores O proecircmio termina com a divisatildeo da sua coleccedilatildeo em sete livros temaacuteticos

A ediccedilatildeo final dos epigramas seraacute feita por Cefalas no seacuteculo X dC e ela passa-raacute a integrar mais oito livros No seacuteculo XIV dC Planudes cria a sua proacutepria ediccedilatildeo su-primindo e acrescentando alguns epigramas Os seus acreacutescimos atualmente formam o livro XVI da AG A Antologia Grega portanto se divide em dezesseis livros temaacuteticos Livro I ndash epigramas cristatildeos Livro II ndash descriccedilotildees de estaacutetuas Livro III ndash inscriccedilotildees em um templo em Ciacutezico Livro IV ndash proecircmios da Guirlanda de Meleagro Guirlanda de Filipe e Ciclo de Agatias Livro V ndash epigramas eroacuteticos Livro VI ndash epigramas votivos Livro VII ndash epigramas fuacutenebres Livro VIII ndash epigramas de Gregoacuterio de Nazianzo Livro IX ndash epigramas declamatoacuterios Livro X ndash epigramas de exortaccedilatildeo Livro XI ndash epigramas simposiais e satiacutericos Livro XII ndash epigramas homoeroacuteticos de Estratatildeo Livro XIII ndash epigramas em diversos metros Livro XIV ndash charadas enigmas e oraacuteculos Livro XV

ndash miscelacircnea Livro XVI ndash epigramas sobre obras de arte

Em meio a tantos seacuteculos de ediccedilotildees o livro 7 dos epigramas fuacutenebres sem-pre esteve presente como parte fundamental para as coleccedilotildees devido agrave importacircncia da temaacutetica fuacutenebre no gecircnero Os epigramas aqui traduzidos portanto satildeo provenientes do atual arranjo do livro 7 da AG O corpus eacute composto de dezesseis epigramas fuacutene-bres dialogados do periacuteodo heleniacutestico clxii

Os epigramatistas do corpus satildeo poetas ativos durante o seacuteculo III aC (Ca-liacutemaco Leocircnidas Dioscoacuterides e Damageto) seacuteculo II aC (Antiacutepatro) e seacuteculo I aC (Meleagro)clxiii De todos esses epigramatistas o que se destaca eacute Caliacutemaco de Cirene por conta de seu protagonismo no desenvolvimento de um sistema de catalogaccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria (os Pinakes) e a sua produccedilatildeo poeacutetica vasta e variada in-fluente natildeo apenas no seu periacuteodo e em grego mas tambeacutem na poesia latina posterior Leocircnidas de Tarento eacute conhecido como o ldquopoeta do povordquo (Gow and Page 1965 vol II p 308) por tratar de temaacuteticas mais campesinas e pobreza Seus poemas portanto seguem uma tendecircncia heleniacutestica de trazer tudo o que eacute diminuto e aparentemente sem o kleos claacutessico para o centro do palco Dioscoacuterides tem Caliacutemaco e Asclepiacuteades de Samos como seus modelos de composiccedilatildeo Merecem destaque seus epigramas fuacute-nebres para poetas como Safo e Anacreonte o que pode ser tomado como evidecircncia para o seu interesse na histoacuteria das forma literaacuterias segundo Gow and Page (1965 vol II p 236) Damageto por sua vez tem seus epigramas geralmente associados a even-tos e figuras histoacutericas com destaque para o epigrama AG 6 277 que celebra o voto de Arsiacutenoe filha de Ptolemeu Evergeta agrave deusa Aacutertemis Por fim Antiacutepatro de Siacutedon tinha como um dos seus modelos Leocircnidas e Tarento e foi ele proacuteprio um dos modelos de emulaccedilatildeo mais marcantes na poesia de Meleagro de Gadara Seus epigramas que merecem destaque satildeo os epigramas fuacutenebres enigmaacuteticos que o poeta constroacutei com base na linguagem da ekphrasis

Para facilitar a organizaccedilatildeo dos epigramas a seguir eles foram colocados em ordem numeacuterica sequencial levando em consideraccedilatildeo a sequecircncia deles no livro 7 da AG Poreacutem quando os epigramas satildeo referidos o nuacutemero base seraacute o da AG e natildeo o da disposiccedilatildeo da traduccedilatildeo no intuito de facilitar a busca dos textos em outras ediccedilotildees O texto original grego apresentado nas notas eacute acompanhado do nuacutemero do epigrama na ediccedilatildeo atual da AG e o nuacutemero do epigrama na ediccedilatildeo de Gow and Page de 1965 (GP) a qual eu sigo para estabelecimento do texto grego

A maioria dos epigramas fuacutenebres dialogados satildeo editados com as falas dife-renciadas pelo uso das letras α β e γ Apesar das trocas de turno todos os epigramas satildeo compostos em diacutesticos elegiacuteacos Embora os editores natildeo expliquem a escolha de separar os turnos por letras eacute evidente que isso acontece quando as trocas de turno natildeo satildeo interpoladas por nenhum narrador

Optou-se por manter a disposiccedilatildeo graacutefica do metro do texto original quando as trocas de turnos coincidem com o teacutermino dos diacutesticos Entretanto nos casos de trocas de turnos ocorridas dentro do verso decidiu-se seguir uma soluccedilatildeo graacutefica proposta por Joseacute Paulo Paes (1995 p 39clxiv ) ao poema 524 de Caliacutemaco reproduzido aqui

130 131

A Jaz Caridas sob ti B Sim se for filho de Arima o cireneuA Ei Caridas que tal aiacute embaixo C Trevas soacuteA E quanto agrave volta C Mentira A E Plutatildeo C Um mito A Entatildeo estamos fritos C Crecirc no que te digo Mas se queres algo de apraziacutevel haacute boi barato no Hades

De todas as traduccedilotildees consultadas em diversas liacutenguas (PATON 1917 BECKBY 1957 PONTANI 1979 FERNAacuteNDEZ-GALIANO 1993 PAES 1995 SILVA 2013 e 2014 JESUS 2019 e FLORES 2019) apenas a traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes (1995) considerou uma disposiccedilatildeo graacutefica mais facilitadora ao entendimento do poema por privilegiar uma disposiccedilatildeo de diaacutelogo tradicional separando os turnos Considerei essa soluccedilatildeo mais interessante por conferir ao texto de chegada a dinacircmica riacutetmica das trocas de turnos que o texto de partida possui ao fazer coincidir as trocas de turno com peacutes meacute-tricos e cesuras ndash algo que seria muito complexo de se reproduzir Apenas o epigrama 89 de Caliacutemaco resolveu-se dispor o texto de chegada de maneira fragmentada para separar as partes narrativas das falas das personagens

Os diaacutelogos a seguir satildeo entre o transeunte-leitor e o morto (dez epigramas ndash AG 7 79 163 164 165 277 317 355 424 470 e 725) transeunte-leitor e a laacutepide ou objetos que estatildeo junto agrave laacutepide (cinco epigramas ndash AG 7 37 161 426 503 e 524) e um transeunte que toma conselhos de um anciatildeo com a participaccedilatildeo dos meninos que estatildeo na cena (um ndash AG 7 89 epigrama natildeo fuacutenebre) Toma-se como padratildeo a voz como masculina sobretudo para o transeunte-leitor e quando natildeo facilmente indicada como feminina

A sequecircncia de epigramas 163 164 e 165 eacute uma seacuterie de emulaccedilotildees sobre o mesmo padratildeo de diaacutelogo um epigrama tradicional de especulaccedilatildeo sobre os detalhes sobre o morto Leocircnidas 163 serve de modelo para as duas variantes de Antiacutepatro (164 e 165) Eacute interessante notar natildeo apenas as escolhas que Antiacutepatro faz ao construir a sua imitaccedilatildeo primeira mas tambeacutem o que ele modifica na sua segunda imitaccedilatildeo

Por fim eacute importante chamar a atenccedilatildeo para o epigrama 79 de Meleagro pois o diaacutelogo diferentemente do padratildeo eacute iniciado pelo morto sem que ele responda a nenhuma pergunta sequer do transeunte-leitor Haacute portanto uma certa inversatildeo nos papeacuteis de ambos dentro do diaacutelogo pois o morto fornece informaccedilotildees segundo seus proacuteprios interesses e o transeunte-leitor apenas reage aos seus turnos

O corpus apresentado aqui em traduccedilatildeo eacute um retrato detalhado e rico das pos-sibilidades narrativas do gecircnero epigramaacutetico nas matildeos dos poetas heleniacutesticos Ele faz parte de um estudo maior que se debruccedila sobre as teacutecnicas narrativas dos epigramas dialogados de toda a AG e tambeacutem de coleccedilotildees de inscriccedilotildees (ainda estaacute em andamen-

to) Haacute muitas possibilidades de estudos na epigramaacutetica grega pois a quantidade de material ainda sem publicaccedilatildeo no Brasil abunda Espero que esta contribuiccedilatildeo possa despertar o interesse dos leitores para esse fascinante campo dos estudos de literatura grega no paiacutes

1 Dioscoacuterides 72

A Esta tumba eacute de Soacutefocles homem aquele que as Musas me concederam guardar como tesouro sagra-do jaacute que sagrado sou Foi ele quem me tomou em Fliunte onde eu pisava castanheiro fez da minha ma-deira uma estaacutetua dourada e me vestiu com um fino manto puacuterpura Depois de sua morte aqui plantei o passo preciso de danccedilarino

B Bem-afortunado por ter recebido lugar tatildeo ditoso E de qual peccedila eacute a maacutescara de cabelos cortados que tens nas matildeos

A Se quiseres dizer Antiacutegona ou Electra natildeo errarias pois ambas satildeo o que haacute de sublime

2 Meleagro 73

A Homem eu sou Heraacuteclito Afirmo que descobri a sa-bedoria sozinho mas meus serviccedilos ciacutevicos suplantam a sabedoria Com o peacute estrangeiro escorracei ateacute meus ge-nitores aqueles insensatos

B Bela recompensa aos que te criaram

A Longe de mim

B Natildeo sejas duro

A Em breve mais duras seratildeo as notiacutecias que receberaacutes da paacutetria

72 737 Dioscoacuterides (GP XXII)

α τύμβος ὅδ᾽ ἔστ᾽ ὤνθρωπε Σοφοκλέος ὃν παρὰ Μουσέων ἱρὴν παρθεσίην ἱερὸς ὢν ἔλαχονὅς με τὸν ἐκ Φλιοῦντος ἔτι τρίβολον πατέοντα πρίνινον ἐς χρύσεον σχῆμα μεθηρμόσατοκαὶ λεπτὴν ἐνέδυσεν ἁλουργίδα τοῦ δὲ θανόντος εὔθετον ὀρχηστὴν τῇδ᾽ ἀνέπαυσα πόδα β ὄλβιος ὡς ἁγνὴν ἔλαχες στάσιν ἡ δ᾽ ἐνὶ χερσί κούριμος ἐκ ποίης ἥδε διδασκαλίης

α εἴτε σοὶ Ἀντιγόνην εἰπεῖν φίλον οὐκ ἂν ἁμάρτοις εἴτε καὶ Ἠλέκτραν ἀμφότεραι γάρ ἄκρον

73779 Meleagro (GP CXXI)

α ὤνθρωπ᾽ Ἡράκλειτος ἐγὼ σοφὰ μοῦνος ἀνευρεῖν φαμί τὰ δ᾽ ἐς πάτραν κρέσσονα καὶ σοφίηςλὰξ γὰρ καὶ τοκεῶνας ἰὼ ξένε δύσφρονας ἄνδρας ὑλάκτευν β λαμπρὰ θρεψαμένοισι χάρις α οὐκ ἀπ᾽ ἐμεῦ β μὴ τρηχύς α ἐπεὶ τάχα καὶ σύ τι πεύσῃ τρηχύτερον πάτρας β χαῖρε α σὺ δ᾽ ἐξ Ἐφέσου

132 133

B Adeus

A Fica fora de Eacutefeso

3 Caliacutemaco 74

Certa vez um estrangeiro de Atarneia perguntou a Piacutetaco de Mitilene filho de Hirraacutedio

A Meu velho duas moccedilas me pediram em casamento uma eacute igual a mim no dinheiro e na linhagem e a outra me supera O que eacute melhor Diz para mim qual aconselhas que eu leve ao altar

E Piacutetaco aponta o cajado instrumento senil

B Olha Aqueles ali vatildeo te dizer tudo

(Havia alguns meninos rodando raacutepidos piotildees em uma ampla praccedila)

B Vai atraacutes deles

E entatildeo ele foi mais perto e eles diziam

C Segue pelo teu caminho

Ouvindo isso o estrangeiro deixou de almejar a casa mais rica pois entendeu o oraacuteculo dos meninos Ele entatildeo levou ao altar a noiva de menos posses Assim tambeacutem Diacuteon segue pelo teu caminho

4 Antiacutepatro de Siacutedon 75

A Ave mensageira de Zeus Cronida por que te re-pousassoturna sobre a tumba do ditoso AristocircmenesB Proclamo aos homens que assim como sou a me-lhor entre as aves ele tambeacutem o foi entre os jovens

74 789 Caliacutemaco (GP LIV)

ξεῖνος Ἀταρνείτης τις ἀνείρετο Πιττακὸν οὕτω τὸν Μυτιληναῖον παῖδα τὸν Ὑρράδιον lsquo ἄττα γέρον δοιός με καλεῖ γάμος ἡ μία μὲν δὴ νύμφη καὶ πλούτῳ καὶ γενεῇ κατ᾽ ἐμέ ἡ δ᾽ ἑτέρη προβέβηκε τί λώιον εἰ δ᾽ ἄγε σύν μοὶ βούλευσον ποτέρην εἰς ὑμέναιον ἄγωrsquoεἶπεν ὁ δὲ σκίπωνα γεροντικὸν ὅπλον ἀείρας

lsquo ἡνιδε κεῖνοί σοι πᾶν ἐρέουσιν ἔποςrsquo (οἱ δ᾽ ἄρ᾽ ὑπὸ πληγῇσι θοὰς βέμβικας ἔχοντες ἔστρεφον εὐρείῃ παῖδες ἐνὶ τριόδῳ῾κείνων ἔρχεοrsquo φησί lsquo μετ᾽ ἴχνιαrsquo χὠ μὲν ἐπέστη πλησίον οἱ δ᾽ ἔλεγον lsquo τὴν κατὰ σαυτὸν ἔλαrsquo ταῦτ᾽ ἀίων ὁ ξεῖνος ἐφείσατο μείζονος οἴκου δράξασθαι παίδων κληδόνα συνθέμενοςτὴν δ᾽ ὀλίγην ὡς κεῖνος ἐς οἰκίον ἤγετο νύμφην οὕτω καὶ σὺ Δἰὼν τὴν κατὰ σαυτὸν ἔλα

75 7161 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XX)

α ὄρνι Διὸς Κρονίδαο διάκτορε τεῦ χάριν ἔστας γοργὸς ὑπὲρ μεγάλου τύμβον Ἀριστομένους β ἀγγέλλω μερόπεσσιν ὁθούνεκεν ὅσσον ἄριστος οἰωνῶν γενόμαν τόσσον ὅδ᾽ ἠιθέων δειλαί τοι δειλοῖσιν ἐφεδρήσσουσι πέλειαι ἄμμες δ᾽ ἀτρέστοις ἀνδράσι τερπόμεθα

76 7163 Leocircnidas de Tarento (GP LXX)

α τίς τίνος εὖσα γύναι Παρίην ὑπὸ κίονα κεῖσαι β Πρηξὼ Καλλιτέλευς α καὶ ποδαπή β Σαμίη α τίς δέ σε καὶ κτερέιξε β Θεόκριτος ᾧ με γονῆες ἐξέδοσαν α θνῄσκεις δ᾽ ἐκ τίνος β ἐκ τοκετοῦ α εὖσα πόσων ἐτέων β δύο κεἴκοσιν α ἦ ῥὰ γ᾽ ἄτεκνος β οὔκ ἀλλὰ τριετῆ Καλλιτέλην ἔλιπον α Ζώοι σοι κεῖνός γε καὶ ἐς βαθὺ γῆρας ἵκοιτο β καὶ σοί ξεῖνε πόροι πάντα Τύχη τὰ καλά

Pombas covardes guardam covardesmas noacutes nos comprazemos com os destemidos

5 Leocircnidas de Tarento 76

A Quem eacutes mulher que jazes sob o maacutermore paacuterio e de qual pai

B Praxo filha de Caliacuteteles

A E de que terra

B Samos

A E quem fez as tuas honras fuacutenebres

B Teoacutecrito a quem meus pais me deram para casar

A E como morreste

B No parto

A Quantos anos tinhas

B Vinte e dois

A Entatildeo sem filhos

B Natildeo pois deixei Caliacuteteles de trecircs anos

A Que ele viva e alcance a idade avanccedilada

B E que a ti forasteiro a Fortuna decirc tudo de bom

6 Antiacutepatro de Siacutedon 77

A Diz mulher tua famiacutelia nome e terra natal

134 135

B Caliacuteteles foi meu pai Praxo meu nome e a terra Samos

A Quem erigiu este monumento

B Teoacutecrito o que soltou meu intocado cinturatildeo de virgem

A Como morreste

B Nas dores do parto

A Fala com qual idade

B Duas vezes onze

A E sem filhos

B Natildeo estrangeiro Deixei Caliacuteteles na infacircncia uma crianccedila de apenas trecircs anos

A Que ele atinja a grei velhice feliz

B Que a Fortuna viajante guie toda a tua vida por uma leve brisa

7 Aacuterquias 78

A Fala mulher quem foste

B Praxo

A De qual pai foste gerada

B De Caliacuteteles

A E de que terra foste

77 7164 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XXI) α φράζε γύναι γενεήν ὄνομα χθόνα β Καλλιτέλης μὲν ὁ σπείρας Πρηξὼ δ᾽ οὔνομα γῆ δὲ Σάμος α σῆμα δὲ τίς τόδ᾽ ἔχωσε β Θεόκριτος ὁ πρὶν ἄθικτα ἁμετέρας λύσας ἅμματα παρθενίης α πῶς δὲ θάνες β Λοχίοισιν ἐν ἄλγεσιν α εἰπὲ δὲ ποίην ἦλθες ἐς ἡλικίην β Δισσάκις ἑνδεκέτις α ἦ καὶ ἄπαις β οὐ ξεῖνε λέλοιπα γὰρ ἐν νεότητι Καλλιτέλη τριετῆ παῖδ᾽ ἔτι νηπίαχον α ἔλθοι ἐς ὀλβίστην πολιὴν τρίχα β καὶ σόν ὁδῖτα οὔριον ἰθύνοι πάντα Τύχη βίοτον

78 7165 Aacuterquias (GP XIII)α εἰπὲ γύναι τίς ἔφυς β Πρηξώ α τίνος ἔπλεο πατρός β Καλλιτέλευς α πάτρας δ᾽ ἐκ τίνος ἐσσί β Σάμου α μνᾶμα δέ σου τίς ἔτευξε β θεόκριτος ὅς με σύνευνον ἤγετο α πῶς δ᾽ ἐδάμης β ἄλγεσιν ἐν λοχίοις α εἰν ἔτεσιν τίσιν εὖσα β δὶς ἕνδεκα α παῖδα δὲ λείπεις β νηπίαχον τρισσῶν Καλλιτέλην ἐτέων α ζωῆς τέρμαθ᾽ ἵκοιτο μετ᾽ ἀνδράσι β καὶ σέο δοίη παντὶ Τύχη βιότῳ τερπνόν ὁδῖτα τέλος

79 7277 Caliacutemaco (GP L)α τίς ξένος ὦ ναυηγέ β Λεόντιχος ἐνθάδε νεκρὸν εὗρέ μ᾽ ἐπ᾽ αἰγιαλοῦ χῶσε δὲ τῷδε τάφῳ δακρύσας ἐπίκηρον ἑὸν βίον οὐδὲ γὰρ αὐτὸς ἥσυχος αἰθυίῃ δ᾽ ἶσα θαλασσοπορεῖ

80 7317 Caliacutemaco (GP LI) α Τίμων οὐ γὰρ ἔτ᾽ ἐσσί τί τοι σκότος ἢ φάος ἐχθρόν β τὸ σκότος ὑμέων γὰρ πλείονες εἰν Ἀίδῃ

B Samos

A Quem fez teu memorial

B Teoacutecrito aquele que me tomou como esposa

A Como morreste

B Nas dores do parto

A Com quantos anos

B Duas vezes onze

A Deixas algum filho

B Caliacuteteles uma crianccedila de trecircs anos

A Que ele chegue ao fim da vida entre os homens

B E que a Fortuna viajante decirc um fim prazeroso para toda a tua vida

8 Caliacutemaco 79

A Quem eacutes estrangeiro naacuteufrago

B Leocircntico aqui meu corpo encontrou nesta praia e me enterrou nesta cova chorando a sua proacutepria vida pereciacutevel Sem descanso ele navega no mar como uma gaivota

9 Caliacutemaco 80

A Finado Tiacutemon o que mais odeias a escuridatildeo ou a luz

B A escuridatildeo pois haacute muitos de voacutes no Hades

10 Damageto 81

Fazei saudaccedilatildeo alegre e honrosa transeuntes ao exce-lente Praxiacuteteles homem que serviu de competente instru-mento das Musas aleacutem de agradaacutevel parceiro no vinho

B Saudaccedilotildees Praxiacuteteles de Andros

136 137

11 Antiacutepatro 82

A Quero entender qual eacute o sentido deste entalheque Agis calcou em tua estela de pedra LisiacutediceUma reacutedea uma mordaccedila e uma ave nascidaem Tacircnagra rica em aves impetuosa incitadora de [batalhanatildeo agradam e nem combinam com as mulheres do larcomo os trabalhos na roca e no tear

B A ave noturna diraacute que eu acordada trabalhava a latildea reacutedea que eu era dona da minha casae esta mordaccedila de cavalo cantaraacute que eu natildeo era loquaznem tagarela mas plena de admiraacutevel silecircncio

12 Antiacutepatro de Siacutedon 83 A Diz leatildeo matador de bois de quem eacute a tumba que [guardas Quem foi digno de tua excelecircncia

B Telecircucias filho de Teodoro o mais corajoso de todosassim como eu sou julgado entre as ferasNatildeo eacute em vatildeo que me ergo aqui pois eu carrego o siacutembolo da forccedila do homem De fato ele era um leatildeo para os [ini-migos

13 Meleagro 84

A Diz a quem pergunta quem eacutes E filho de quem

B Filaulo filho de Eucraacutetides

A E de onde te orgulhas ser

B lt gt

81 7355 Damageto (GP VIII)τὴν ἱλαρὰν φωνὴν καὶ τίμιον ὦ παριόντες τῷ χρηστῷ χαίρειν rsquo εἴπατε Πραξιτέλει ἦν δ᾽ ὡνὴρ Μουσέων ἱκανὴ μερίς ἠδὲ παρ᾽ οἴνῳ κρήγυος ὦ χαίροις Ἄνδριε Πραξίτελες82 7424 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XXIX)α Μαστεύω τί σευ Ἆγις ἐπὶ σταλίτιδι πέτρῃ Λυσιδίκα γλυπτὸν τόνδ᾽ ἐχάραξε νόον ἁνία γὰρ καὶ κημός ὃ τ᾽ εὐόρνιθι Τανάγρᾳ οἰωνὸς βλαστῶν θοῦρος ἐγερσιμάχας οὐχ ἅδεν οὐδ᾽ ἐπέοικεν ὑπωροφίαισι γυναιξίν ἀλλὰ τὰ τ᾽ ἠλακάτας ἔργα τὰ θ᾽ ἱστοπόδων

β τάν μὲν ἀνεγρομέναν με ποτ᾽ εἴρια νύκτερος ὄρνις ἁνία δ᾽ αὐδάσει δώματος ἡνίοχον ἱππαστὴρ δ᾽ ὅδε κημὸς ἀείσεται οὐ πολύμυθον οὐ λάλον ἀλλὰ καλᾶς ἔμπλεον ἡσυχίης 83 α εἰπέ λέον φθιμένοιο τίνος τάφον ἀμφιβέβηκας βουφάγε τίς τᾶς σᾶς ἄξιος ἦν ἀρετᾶς β υἱὸς Θευδώροιο Τελευτία ὃς μέγα πάντων φέρτατος ἦν θηρῶν ὅσσον ἐγὼ κέκριμαι οὐχὶ μάταν ἕσαακα φέρω δέ τι σύμβολον ἀλκᾶς ἀνέρος ἦν γὰρ δὴ δυσμενέεσσι λέων

84 7 7470 Meleagro (GP CXXX)α εἶπον ἀνειρομένῳ τίς καὶ τίνος ἐσσί β φίλαυλος Εὐκρατίδεω α ποδαπὸς δ᾽ εὔχεαι β lt gtα Ἔζησας δὲ τίνα στέργων βίον β οὐ τὸν ἀρότρου οὐδὲ τὸν ἐκ νηῶν τὸν δὲ σοφοῖς ἕταρον α γήραϊ δ᾽ ἢ νούσῳ βίον ἔλλιπες β ἤλυθον Ἅιδαν αὐτοθελεί Κείων γευσάμενος κυλίκωνα ἠ πρέσβυς β καὶ κάρτα α λάβοι νύ σε βῶλος ἐλαφρὴ σύμφωνον πινυτῷ σχόντα λόγῳ βίοτον85 7503 Leocircnidas de Tarento (GP LXIV)α ἀρχαίης ὦ θινὸς ἐπεστηλωμένον ἄχθος

εἴποις ὅντιν᾽ ἔχεις ἢ τίνος ἢ ποδαπόν β Φίντων᾽ Ἑρμιονῆα Βαθυκλέος ὃν πολὺ κῦμα ὤλεσεν Ἀρκτούρου λαίλαπι χρησάμενον86 7524 Caliacutemaco (GP XXXI)α ἦ ῥ᾽ ὑπὸ σοὶ Χαρίδας ἀναπαύεται β εἰ τὸν Ἀρίμμα τοῦ Κυρηναίου παῖδα λέγεις ὑπ᾽ ἐμοί α ὦ Χαρίδα τί τὰ νέρθε γ πολὺς σκότος α αἱ δ᾽ ἄνοδοι τί γ ψεῦδος α ὁ δὲ Πλούτων γ μῦθος α ἀπωλόμεθα γ οὗτος ἐμὸς λόγος ὔμμιν ἀληθινός εἰ δὲ τὸν ἡδὺν βούλει Πελλαίου βοῦς μέγας εἰν Ἀίδῃ

A Qual vida gostavas de levar

B Natildeo a do arado nem a de naus mas a de acompanhante dos saacutebios

A Deixaste a vida por velhice ou doenccedila

B Vim ao Hades pelas proacuteprias matildeos ao tomar as taccedilas de Ceos

A Eras velho

B Sim muito

A Que seja leve esta terra que te envolve pois viveste em harmonia com o discurso prudente

14 Leocircnidas de Tarento 85

A Oacute pedra erguida nesta velha praia Diz quem abrigas De quem eacute filho ou de onde vem

B Fiacutenton filho de Baacuteticles de Hermiacuteone que onda enorme matou mesmo avisado da tempestade de Asturo

15 Caliacutemaco 86

A Por acaso jaz Caacuteridas sob ti

B Se for o filho de Arima de Cirene que dizes sim ele estaacute sob mim

A Caacuteridas como eacute aiacute embaixo

C Puro breu

A E a volta

138 139

C Mentira

A E Plutatildeo

C Mito

A Jaacute era para noacutes

C O que posso te dizer eacute que eacute verdade mas se queres algo prazeroso um boi grande no Hades custa um Pelaio

16 Caliacutemaco 87

A Tu Meneacutecrates de Eno natildeo muito tempo aqui estiveste O que te venceu melhor dos forasteiros O mesmo que ao Centauro

B O sono que nos cabe chegou mas o implacaacutevel vinho eacute o culpado

87 7725 Caliacutemaco (GP XLII)α Αἴνιε καὶ σὺ γὰρ ὧδε Μενέκρατες οὐκ ἐπὶ πουλύ ἦσθα τί σε ξείνων λῷστε κατειργάσατο ἦ ῥα τὸ καὶ Κένταυρον β ὅ μοι πεπρωμένος ὕπνος ἦλθεν ὁ δὲ τλήμων οἶνος ἔχει πρόφασιν

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Fulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade

como programa

8

Joseacute Amarante Santos SobrinhoRaul Oliveira Moreira

Shirlei Patriacutecia Silva Neves AlmeidaCristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior

Um autor tardo-antigo estreando em portuguecircs

Sobre a persona que assume o nome Fabius Planciades Fulgentius em boa parte dos manuscritos que chegaram ateacute noacutes nada se pode afirmar com muita segu-ranccedila haja vista o fato de que o que sabemos sobre o autor se limite agravequilo que nos eacute informado pelo Proacutelogo do Livro I de suas Mythologiae Evidentemente qualquer ge-neralizaccedilatildeo que se faccedila sobre sua vida ndash se esse for considerado um aspecto fundamen-tal ndash deve repousar no territoacuterio das suposiccedilotildees jaacute que natildeo se deve desprezar o fato de as informaccedilotildees aparentemente relativas agrave vida e ao escritor serem uma espeacutecie de ilusatildeo biograacutefica uma vez que estamos a considerar como informaccedilatildeo histoacuterica certas deduccedilotildees provindas de leituras dos proacuteprios textos Como jaacute propocircs Hays (1996) mui-to do que se declara na primeira parte das Mythologiae tem de retoacuterico e de captatio benevolentiae

Acresce complexidade ao problema de identificaccedilatildeo o fato de que durante muito tempo e em funccedilatildeo de alguma confusatildeo no processo de transmissatildeo de textos Fulgecircncio esteve associado ao seu homocircnimo bispo de Ruspe de forma a se criar o que tradicionalmente se conhece como ldquoquestatildeo fulgencianardquo um tema jaacute debatido e que parece repousar agora na aceitaccedilatildeo do separatist case (HAYS 2003 p 210) Hoje se afirma com algum niacutevel de seguranccedila que nosso autor que viveu entre finais do seacutec V e iniacutecio do seacutec VI natildeo eacute o bastante conhecido Satildeo Fulgecircncio bispo de Ruspe a pe-quena cidade da proviacutencia romana Bizacena (na Aacutefrica onde hoje eacute a Tuniacutesia) embora Fulgecircncio tambeacutem seja norte-africano

O epiacuteteto O Mitoacutegrafo por outro lado oferece-nos uma margem de seguran-

ccedila de compreensatildeo pois se deve agrave circulaccedilatildeo e sucesso das suas Mitologias durante a Idade Meacutedia ateacute serem suplantadas por obras como a Genealogia deorum gentilium de Boccaccio (1360) que cita Fulgecircncio vaacuterias vezes Seja como for transmitidas em vaacuterios manuscritos ao longo de seacuteculos as Mitologias fulgencianas chegam ao periacuteodo das ediccedilotildees impressas com focirclego suficiente para ganhar ediccedilotildees regulares nos seacuteculos XV XVI XVII e XVIII Depois da editio princeps de Pius (1498) e da ediccedilatildeo seguinte por Locher (1521) dedicadas esclusivamente a Fulgecircncio as ediccedilotildees impressas posteriores vatildeo estampar o nosso autor junto a outros mitoacutegrafos da Antiguidade

Apoacutes essas ediccedilotildees sucessivas o autor atinge o periacuteodo das ediccedilotildees criacuteticas Assim o seacuteculo XIX traraacute a lume a ediccedilatildeo de Rudolf Helm um texto ainda considerado de referecircncia e base para grande parte das traduccedilotildees que o seacuteculo XX e XXI viram sur-gir Apesar de os Oitocentos nos brindarem com essa ediccedilatildeo criacutetica do autor em que figura o conjunto das quatro obras atestadas como de sua autoria e se inclui a Super Thebaiden natildeo considerada do corpus fulgenciano a visatildeo sobre o autor e sua obra atravessou quase todo o seacuteculo passado mantendo certos juiacutezos aprioriacutesticos tiacutepico do seacuteculo XIX em relaccedilatildeo ao que era comentaacuterio de obras e o quanto seria impagaacutevel o seu deacutebito com os ditos ldquooriginaisrdquo Poderiacuteamos retomar duas posiccedilotildees criacuteticas como pro-potildee Amarante (2019 p 17) de forma a constatarmos que o modo como se considerou o autor ao longo do tempo natildeo se manteve estaacutevel

144 145

De Domenico Comparetti para quem o proceder de Ful-gecircncio seria a maacutexima expressatildeo da incoerecircncia e do de-liacuterio ldquoele pisoteia todas as regras do bom senso de forma tatildeo aberta crua e quase brutal que eacute difiacutecil entender como um ceacuterebro saudaacutevel poderia realmente ter concebido um trabalho tatildeo malucordquo (1872 v I p 149) a Gregory Hays para quem ele deveria atrair ao menos minimamente a atenccedilatildeo de qualquer um jaacute que teria influenciado gran-des obras ldquotanto a Divina Comeacutedia quanto a Primavera de Botticelli seriam obras muito diferentes se Fulgecircncio natildeo tivesse escrito a suardquo (1996 pref)clxx

Apoacutes as criacuteticas de Comparetti a obra fulgenciana soacute iraacute alcanccedilar algum niacutevel de interesse mais significativo no seacuteculo XX a partir de sua segunda metade quando surge a primeira traduccedilatildeo completa para o inglecircs da obra do Mitoacutegrafo no iniacutecio da deacutecada de setenta a de Whitbread de 1971 Daiacute em diante comeccedilam a surgir espe-cialmente nas uacuteltimas duas deacutecadas novos estudos e traduccedilotildees para outras liacutenguas de forma que o autor jaacute natildeo eacute mais tatildeo desconhecido entre os estudiosos da aacuterea clxxi

No Brasil os estudos da obra do autor satildeo ainda raros como o satildeo os de vaacuterios outros autores da Antiguidade Tardia Resultado de um projeto de estudo de obras desse periacuteodo na Universidade Federal da Bahia neste trabalho entatildeo noticiamos e destacamos a conclusatildeo da traduccedilatildeo completa da obra fulgenciana a partir da publica-ccedilatildeo de O livro das Mitologias de Fulgecircncio por Joseacute Amarante em 2019 (seccedilatildeo 1 deste capiacutetulo) e os trabalhos de mestrado e doutorado defendidos na mesma Universidade

a) A Expositio Virgilianae continentiae (ldquoA explicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Vir-giacuteliordquo) foi traduzida por Raul Oliveira Moreira e sua dissertaccedilatildeo de mestrado foi defen-dida em 2018 (seccedilatildeo 2 deste capiacutetulo)

b) A Expositio sermonum antiquorum (ldquoA elucidaccedilatildeo de termos antigosrdquo) foi traduzida por Shirlei Patriacutecia Silva Neves Almeida e sua dissertaccedilatildeo de mestrado foi defendida em 2018 (seccedilatildeo 3 deste capiacutetulo)

c) A De aetatibus mundi et hominis (ldquoSobre as idades do mundo e da hu-manidaderdquo) recebeu duas traduccedilotildees (uma alipogramaacutetica e outra lipogramaacutetica) por Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior e sua tese de doutorado foi defendida em 2020 (seccedilatildeo 4 deste capiacutetulo)

Ao lado de destacarmos a finalizaccedilatildeo da traduccedilatildeo completa da obra do autor ao portuguecircs nos parece oportuno retomarmos uma questatildeo ligada a um possiacutevel programa fulgenciano destacado por Amarante (2019) Certamente pela lista de obras acima listadas e consideradas de sua autoria eacute difiacutecil natildeo se observar algum programa miacutenimo e despretensioso que seja de explicaccedilatildeo dos conteuacutedos simboacutelicos da Anti-guidade A questatildeo retomada aqui liga-se a um ponto ainda em debate sobre a funccedilatildeo social do nosso autor para Whitbread (1971 p 6) Fulgecircncio eacute um grammaticus ou rhetor um professor de gramaacutetica e letras Hays analisando a terminologia que o au-

tor utiliza contesta essa posiccedilatildeo e coloca Fulgecircncio como um legal advocate um defen-sor legal (1996 p 42 e s) Manca (2003 p 56) apresenta uma proposta conciliadora inclinando-se a pensar que a obra parece nos colocar diante de um grammaticus mas que necessitasse lidar com as salas de aula de Direito em algumas ocasiotildees Analisan-do a presenccedila de Apuleio em Fulgecircncio Mattiacci inclui o autor entre os gramaacuteticos e eruditos de origem africana e o considera como uma figura singular de interesses muacuteltiplos (2003 p 230)

Contudo embora situado nos limiares da Idade Meacutedia o tema de Fulgecircncio eacute a Antiguidade ou seja ele teria apenas aparentemente uma multiplicidade de interes-ses mas provavelmente eles se resumiriam num uacutenico foco o mundo antigo E essa afirmaccedilatildeo leva em consideraccedilatildeo toda a sua obra uma vez que a sua produccedilatildeo se centra sempre em algum elemento referente a esse cenaacuterio cultural nas Mythologiae a relei-tura filosoacutefica de base cristatilde dos mitos claacutessicos na Expositio Virgilianae continentiae a releitura da Eneida de Virgiacutelio tambeacutem numa perspectiva filosoacutefica na Expositio sermonum antiquorum uma leitura explicada do leacutexico ligado a elementos culturais antigos na De aetatibus mundi et hominis a histoacuteria do mundo da Criaccedilatildeo ateacute a ascensatildeo de Valentiniano I no ano 365 No caso das duas primeiras obras eacute visiacutevel a motivaccedilatildeo os mitos antigos presentes tanto nas narraccedilotildees mitograacuteficas quanto na proacutepria Eneida eram um tesouro em vias de desaparecimento na realidade complexa das migraccedilotildees germacircnicas visiacutevel a Fulgecircncio Aleacutem disso a proacutepria obra virgiliana jaacute havia sido alvo de outros comentaacuterios como os de Donato e Seacutervio Em relaccedilatildeo agrave Expo-sitio Sermonum tambeacutem se observa um autor registrando um leacutexico antigo trazendo no tiacutetulo da obra esse termo que marca jaacute uma distacircncia em relaccedilatildeo ao tempo do autor antiquorum Na Aetatibus natildeo seria diferente Fulgecircncio segue uma trilha conhecida um Leitmotiv caro agrave literatura claacutessica que eacute a questatildeo das idades do mundo e da hu-manidade tema presente tanto entre os gregos quanto entre os latinos not

Sendo certamente um homem ligado agraves Letras o Mitoacutegrafo toma para si do mesmo modo como fizeram os principais intelectuais de sua eacutepoca a incumbecircncia de recuperar e reordenar a seu modo algo significativo do saber antigo visto que aquele conhecido patrimocircnio cultural do mundo greco-latino que se manteve apoacutes o fim do impeacuterio romano do Ocidente ldquoencontra-se disperso por uma miriacuteade de obras compli-cadas e de difiacutecil leitura por homens capazes de se referir apenas a conhecimentos e a noccedilotildees do tipo compendioso e simplificadordquo (STOPACCI 2012 p 502) Sendo assim para a conservaccedilatildeo do legado cultural literaacuterio e retoacuterico da Antiguidade naquele mo-mento se fazia necessaacuterio recolher reordenar e sintetizar o maacuteximo do saber prove-niente da Antiguidade e pelo vieacutes da filosofia moral submetecirc-lo agraves exigecircncias da nova cultura cristatilde

1 MYTHOLOGIAE (As Mitologias)

Quando Fulgecircncio escreve sua obra mitograacutefica ele segue uma tradiccedilatildeo de escrita do gecircnero estabelecida jaacute Apolodoro havia escrito a sua Biblioteca Higino as suas Fabulae e os mitos jaacute haviam povoado de modo diverso as Metamorfoses ovi-dianas Fulgecircncio contudo estaacute em outro tempo e registra em sua obra conforme vimos aspectos do periacuteodo de transiccedilatildeo entre a Antiguidade e o Medievo ou apresenta

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conforme nos lembram Wolff e Dain (2013) um testemunho dessa passagem do paga-nismo ao cristianismo nos deixando conhecer a visatildeo cristatilde sobre o mundo antigo no-tadamente no caso das suas Mythologiae uma leitura dos mitos pagatildeos sob a oacutetica da filosofia moral (secundum philosophiam como nos datildeo alguns coacutedices) o que resulta na perspectiva de uma humanidade regenerada no dizer de Wolff e Dain Mesmo nes-se aspecto interpretativo Fulgecircncio segue uma seara antes bem experimentada natildeo somente havia uma tradiccedilatildeo jaacute bem antiga de interpretaccedilatildeo dos mitos antes mesmo do Cristianismo como tambeacutem outros autores anteriores ao Mitoacutegrafo ndash como Lac-tacircncio Macroacutebio e Seacutervio ndash jaacute haviam apresentado suas versotildees afastando-se daqueles modelos claacutessicos (FRANCO DURAacuteN 1997) Lactacircncio por exemplo jaacute havia escrito as suas Institutiones de onde nosso Mitoacutegrafo retira alguns exemplos de interpretaccedilatildeo evemerista clxxiii

Distinguem-se em geral trecircs formas de interpretaccedilatildeo dos mitos todas de ins-piraccedilatildeo estoica praticadas durante toda a Idade Meacutedia a interpretaccedilatildeo dita evemeris-ta a interpretaccedilatildeo fiacutesica e a interpretaccedilatildeo moral Na interpretaccedilatildeo evemerista ndash com base em Evecircmero (seacutec III aC) tambeacutem chamada de histoacuterico-racionalista ndash os deuses teriam sido homens que foram divinizados por seus contemporacircneos em funccedilatildeo de seu poder ou influecircncia local (BRISSON 2014) A interpretaccedilatildeo fiacutesica eacute aquela segundo a qual os seres fiacutesicos poderiam ser ligados aos planetas ldquopor intermeacutedio destas qua-lidades fundamentais quente frio seco e uacutemidordquo (id p 231) A interpretaccedilatildeo moral ndash a predominante ndash consiste em descobrir uma significaccedilatildeo espiritual nas figuras dos deuses e em suas accedilotildees de forma a que se chegue a uma mitologia moralizada que ganharaacute focirclego na Idade Meacutedia como se vecirc na obra Ovide Moraliseacute uma espeacutecie de summa dos conhecimentos medievais no que se refere ao tema das metamorfoses

Os coacutedices nos datildeo o tiacutetulo Mythologiarum libri tres de forma que do ponto de vista de sua macro-estrutura as Mythologiae estatildeo organizadas em trecircs livros apa-rentemente sem sinais de uma disposiccedilatildeo programada e desiguais em sua distribuiccedilatildeo de narrativas o Livro I tem 22 faacutebulas o II 16 e o III 12 Amarante (2018a) apresenta uma proposta de arquitetura horizontal do conteuacutedo da obra segundo a qual as faacute-bulas se encontrariam atravessadas por elementos morais ligados a escolhas que se explicitam nas faacutebulas que abrem o livro central ndash o Livro II ndash funcionando essas faacute-bulas como a declaraccedilatildeo programaacutetica fulgenciana numa espeacutecie de proecircmio ao meio a faacutebula II 1 seguindo a tradiccedilatildeo interpretativa da escolha no julgamento de Paacuteris e as faacutebulas II 2 II 3 e II 4 ligadas agrave tradiccedilatildeo interpretativa da escolha conhecida como Heacutercules na encruzilhada clxxv Segundo Venuti o tradutor brasileiro das Mythologiae

propotildee uma anaacutelise global da ldquoarquitecturardquo das Mytho-logiae proporcionando uma leitura unitaacuteria levantando hipoacuteteses sobre a organizaccedilatildeo ldquohorizontalrdquo do material e interessantes propostas criacuteticas em relaccedilatildeo aos tiacutetulos das fabulas (VENUTI 2018 p 22 n 80) clxxvi

Tambeacutem Sacchi (2020) destaca a leitura da estrutura da obra proposta pelo tradutor Joseacute Amarante confrontando-a com a leitura de Wolff (da ediccedilatildeo de Wolff e Dain 2013)

Amarante se concentra no niacutevel micro das transiccedilotildees de uma faacutebula para outra Pretende demonstrar que as My-thologiae natildeo constituem apenas uma rede mas tambeacutem que esta rede se organiza de forma linear a sua loacutegica surge atraveacutes da sucessatildeo de mitos que longe de serem desarticulados se revelaram legiacuteveis ldquocapa a capardquo [ie do comeccedilo ao fim] Assim a anaacutelise de Amarante substitui a coesatildeo estrutural de Wolff recorrendo a uma espeacutecie de coesatildeo de fluxo ndash mas a coesatildeo continua a ser o objetivo (SACCHI 2020 p 128) clxxvii

O Proacutelogo do Livro I eacute a parte da obra de Fulgecircncio que de tatildeo enigmaacutetica certamente eacute a mais estudada clxxviii Estruturalmente eacute bastante diverso dos demais aleacutem de ser um proacutelogo programaacutetico de funcionar como uma espeacutecie de introduccedilatildeo para toda a obra (VENUTI 2009 2018 WOLFF DAIN 2013) ocupa 13 das 78 paacuteginas de todo o livro na ediccedilatildeo de Helm uma porcentagem razoaacutevel de texto em relaccedilatildeo ao conjunto enquanto os demais proacutelogos basicamente exercendo a tradicional funccedilatildeo de captatio beneuolentiae comum ao gecircnero ocupam apenas poucas linhas de seus livros clxxix

As narrativas e interpretaccedilotildees das Mythologiae se iniciam com a faacutebula Vnde idolum uma espeacutecie de introduccedilatildeo ao tema do surgimento dos deuses que seria ou de base biacuteblica ou alheia ao restante do conteuacutedo de toda a obra uma vez que nos trecircs li-vros se apresentam histoacuterias comuns da mitologia greco-latina ricamente documenta-das na literatura antiga clxxx Nessa faacutebula introdutoacuteria ficamos a conhecer a histoacuteria de um pai que perde prematuramente seu filho e que manda construir em sua casa uma escultura do adorado herdeiro pensando estar criando um remeacutedio para a tristeza da ausecircncia clxxxi Contudo segundo Fulgecircncio o pai acaba por criar ldquouma fonte maior de sofrimento porque somente o esquecimento seria o remeacutedio dos pesares92rdquo Estaria assim entatildeo criado o iacutedolo porque ldquoo conjunto de escravos em agrado ao senhor se acostumou ou a tecer coroas ou a levar flores ou ainda a queimar ervas aromaacuteticas agrave estaacutetuardquo93

Em defesa da estrateacutegia fulgenciana e de uma suposta consciecircncia autoral da importacircncia daquela narrativa naquela posiccedilatildeo poderia ser evocado o didatismo que se observa aqui e acolaacute em sua obra A presenccedila de um relato aparentemente destoante do conjunto da obra natildeo se encontraria entatildeo deslocada do conjunto de faacutebulas mas ndash ao contraacuterio ndash refletiria uma visatildeo programaacutetica do autor a selecionar uma histoacuteria que lhe seria uacutetil para abrir o complexo de narrativas dado que simboliza um amaacutel-gama entre o conteuacutedo pagatildeo e o conteuacutedo cristatildeo Dessa forma a sua inserccedilatildeo nessa posiccedilatildeo de destaque poderia ser compreendida assim se o autor projeta o livro como uma tentativa de valorizando a forccedila do conteuacutedo claacutessico ensinar aos jovens cristatildeos uma forma de poder ler esse conteuacutedo reinterpretado filosoficamente de acordo com os interesses cristatildeos nada mais apropriado que escolhesse uma histoacuteria que sendo

92 ldquoSeminarium potius doloris inuenit nesciens quod sola sit medicina miseriarum obliuiordquo (FVLG myht 1 1 (H 16 14-15)

148 149

tambeacutem biacuteblica representasse uma retomada de um conteuacutedo que eacute amplamente do-cumentado na Antiguidade seja em suas ldquoficccedilotildees fabulosasrdquo94 ndash a mitologia ndash seja no que chegou ateacute noacutes dos eventos narrados pelos proacuteprios historiadores (AMARANTE 2018b)

Para aleacutem do que se declara com escolhas toacutepicas (como a faacutebula Sobre a ori-gem da idolatria abrindo o livro ou as faacutebulas ligadas agraves tradiccedilotildees do julgamento de Paacuteris e de Heacutercules na encruzilhada como dobradiccedila ancorando a obra no livro do meio o Livro II) o programa fulgenciano nos eacute lembrado a todo tempo praticamen-te em todas as faacutebulas Tal programa poderia se resumir nas observaccedilotildees frequentes quanto ao fato de a mendax Graecia (ldquoa enganosa Greacuteciardquo) necessitar ser desvendada e pelo fato de que essas vendas dos olhos da razatildeo fossem retiradas por meio da etimo-logia muitas vezes puramente etimologia dita popular

As explicaccedilotildees etimoloacutegicas quase sempre a partir do grego aparecem inse-

ridas sob a foacutermula x enim Grece y dicitur como na Faacutebula das Harpias ldquoarpage de fato em grego quer dizer rapinardquo numa associaccedilatildeo com o substantivo grego ἁρπάγη (lsquorapinarsquo)95 relacionado ao verbo ἁρπάζω (lsquotomarrsquo lsquoarrebatarrsquo) mas essa eacute uma su-posiccedilatildeo considerada da esfera da etimologia popular Quando o decalque com uma palavra grega eacute difiacutecil a estrateacutegia eacute o uso do adveacuterbio quasi (lsquopraticamentersquo lsquomais ou menos lsquoquasersquo) promovendo uma aproximaccedilatildeo como na explicaccedilatildeo para o nome de Minerva em grego ldquoE depois Minerva em grego eacute dito Atena praticamente athanate parthene isto eacute uma virgem imortal porque a sabedoria natildeo poderaacute morrer nem ser corrompidardquo96 Nesse caso Fulgecircncio retira o nome de Atenas (cuja etimologia natildeo estaacute assentada) numa aproximaccedilatildeo com o adjetivo ἀθάνατος (lsquoimortalrsquo) e o substan-tivo παρθένος (lsquovirgemrsquo) Uma possibilidade final seria a de recorrer ao proacuteprio latim como na explicaccedilatildeo para o nome de Mercuacuterio ldquoQuiseram dizer Mercuacuterio quase como mercium-curum [lsquoo que cuida dos comeacuterciosrsquo]rdquo97 Aqui Fulgecircncio deve se basear num composto das palavras latinas merx (mercium em genitivo lsquodos negoacuteciosrsquo lsquodos co-meacuterciosrsquo) e alguma forma mal flexionada possivelmente para se aproximar do nome Mercuacuterio ligada ao verbo curare (lsquocuidar dersquo lsquoocupar-se dersquo)

Do ponto de vista da composiccedilatildeo as narrativas refletem grosso modo o uso de certas foacutermulas sendo a mais geral a que apresenta uma narrativa do mito seguida de sua interpretaccedilatildeo tendo por vezes a etimologia nos moldes do que se disse supra como o elemento comprovador da interpretaccedilatildeo oferecida ou de parte dela Veja-se pe a narrativa sobre o Ceacuterbero

VI Faacutebula de CeacuterberoJunto aos peacutes dele [de Plutatildeo] colocam o catildeo de trecircs cabe-ccedilas Ceacuterbero porque as invejas das disputas dos mortais satildeo compostas em estado ternaacuterio isto eacute natural causal e por acidente O oacutedio eacute natural como o dos catildees e das le-

93 ldquoUniuersa familia in domini adolatione aut coronas plectere aut flores inferre aut odoramenta simulacro succendere consueratrdquo (FVLG myth 1 1 H 16 19-21)94 ldquoFabulosa commentardquo (FVLG myth 1 18 H 30 22)95 ldquoArpage enim Grece rapina diciturrdquo (FVLG myth 1 9 H 21 16-17)

96 ldquoMinerua denique et Athene Grece dicitur quasi athanate parthene id est inmortalis uirgo quia sapientia nec mori poterit nec corrumpirdquo (FVLG myth 2 1 H 30 10-13)97 ldquoMercurium dici uoluerunt quasi mercium-curumrdquo (FVLG myth 1 18 H 29 8-9)98 ldquoFabula de Tricerbero Tricerberum uero canem eius subiciunt pedibus quod mortalium iurgiorum inuidiae terna-rio conflentur statu id est naturali causali accidenti Naturale est odium ut canum et leporum luporum et pecudum hominum et serpentium causale est ut amoris zelum atque inuidiae accidens est quod aut uerbis casualiter oboritur ut hominibus aut comestionis propter ut iumentis [Cerberus uero dicitur quasi creoboros hoc est carnem uorans et fingi-tur tria habere capita pro tribus aetatibus infantia iuuentute senectute per quas introiuit mors in orbem terrarum]rdquo (FVLG myth 1 6 H 20 8-18)99 ldquoIn secreta conscientiaerdquo (FVLG myth 3 12 H 80 14)

bres dos lobos e dos carneiros dos homens e das serpen-tes eacute causal como as invejas e o ciuacuteme do amor acidente eacute o que ou surge casualmente por exemplo ou atraveacutes de palavras entre os homens ou nas proximidades do consu-mo entre mulas Em verdade Ceacuterbero eacute conhecido como Creoboros isto eacute devorador de carne e eacute representado tendo trecircs cabeccedilas por causa das trecircs idades ndash a infacircncia a juventude e a velhice notndash pelas quais a morte entrou no mundo (FVLG myth 1 6) 98

Destaquem-se na narrativa os usos das conjunccedilotildees explicativas a loacutegica ar-gumentativa ad hoc e o nome do catildeo tomado de uma etimologia tambeacutem ad hoc a partir de κρεοβόρος carniacutevoro (vd κρέας lsquocarnersquo e βορός lsquovorazrsquo) Diriacuteamos pois que essa estrutura eacute modelar em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de composiccedilatildeo fulgenciana nessa obra mitograacutefica

As Mythologiae encerram o seu terceiro e uacuteltimo livro com a Faacutebula de Alfeu

e Aretusa de forma que assim convidam o leitor agrave descida ao submundo ie ldquoaos segredos da consciecircnciardquo99 algo que direciona o leitor agrave obra seguinte com a descida aos Infernos que eacute o tema central do Livro VI da Eneida e elemento fundamental para a interpretaccedilatildeo da obra virgiliana em sua Expositio Virgilianae Continentiae (WOLFF DAIN 2013 p 179)

2 Expostio virgilianae continentiae (Explicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacutelio)

ldquoAssim ao alcanccedilar a idade de muita sabedoria cruza o lamaccedilal temporaacuterio do turbilhatildeo de aacuteguas e impurezas dos costumes Eis que ele [Eneacuteias] faz Ceacuterbero adorme-cer com bolinhos de mel Jaacute posta anteriormente discuti a faacutebula de Ceacuterbero como de fato uma forma de disputa e um litiacutegio legalrdquo 100

Vista de modo avulso a passagem em destaque pode reforccedilar a grosseria e os inexplicaacuteveis absurdos atribuiacutedos por deacutecadas agrave ldquopenardquo de Fulgecircncioclxxxiii afinal natildeo soacute inexistem menccedilotildees a Ceacuterbero em toda a Vergilianae como tambeacutem eacute o personagem de Virgiacutelio e natildeo Fulgecircncio que faz essa observaccedilatildeo No entanto ao compreendermos a complexidade da sua produccedilatildeo e considerarmos suas outras obras identificamos aqui uma remissatildeo textual interna a sua obra anterior em especial agrave ldquoFaacutebula sobre

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Ceacuterberordquo do seu livro de mitologias (myth 1 6) Eacute atraveacutes dessa referecircncia que Rudol-ph Helm (1898) em sua ediccedilatildeo de Fulgecircncio estabelece a anterioridade das Mytholo-giae em relaccedilatildeo agrave Vergilianae assim como uma vinculaccedilatildeo desta com aquela

Seu texto eacute o primeiro comentaacuterio alegoacuterico sobre a Eneida de que se tem notiacutecia na Antiguidade tardia Eacute portanto o cruzamento de duas tradiccedilotildees literaacuterias a reinterpretaccedilatildeo da Antiguidade claacutessica sob a perspectiva cristatilde e as leituras e comen-taacuterios agrave obra de uma auctoritas romana o que resulta na uacutenica obra fulgenciana den-tro do seu projeto de releitura dedicada a um autor e obra especiacuteficos Seu comentaacuterio desconsiderando elementos de ordem formal e esteacutetico anteriormente elucidados por outros autores da tradiccedilatildeo virgiliana visa debruccedilar-se sobre os conhecimentos profun-dos ocultados pelos artifiacutecios poeacuteticos as continentiae

A introduccedilatildeo consiste em uma dedicatoacuteria e uma alusatildeo agraves dificuldades de sua eacutepoca a mediocritas temporis que natildeo lhe favorecem o labor intelectual num conjunto de topoi encontrados tambeacutem nas Mythologiae Sua intenccedilatildeo eacute explicar os misteacuterios naturais da obra virgiliana evitando contudo aqueles jaacute dispostos ao longo das Eacuteclogas e das Geoacutergicas ainda que na sequecircncia rememore esses mesmos textos O fechamento desse introacuteito se daacute com mais uma exortaccedilatildeo ao seu destinataacuterio alegan-do ser esse um opuacutesculo um ramalhete colhido dos jardins das Hespeacuterides e natildeo um pomo de ouro de forma que assim ele constitui uma situaccedilatildeo beneacutevola agrave sua exposiccedilatildeo ao promover o status de humilde enunciador

Seu empreendimento apesar disso eacute aacuterduo e eacute agraves musas todas elas a quem Fulgecircncio invoca natildeo apenas a Caliacuteope representante da poesia eacutepica ldquoAproximem--se Heliconiacuteades deem preacutestimos agrave minha mente [] uma de fato natildeo bastardquo101 Em resposta

eis que em direccedilatildeo a mim o proacuteprio Virgiacutelio tambeacutem se aproxima mais saciado do que se tivesse bebido da fonte ascreia assim como costumam ser as figuras dos poetas quando ndash arrogadas as tabuinhas para concluir a obra com a fisionomia extasiada ndash murmuram baixinho algum misteacuterio com a obra ladrando em seu interior102

Quem melhor que o autor da Eneida para validar ao longo da exposiccedilatildeo os misteacuterios escondidos sob a superfiacutecie do seu proacuteprio poema Sua presenccedila marca o iniacutecio do diaacutelogo atraveacutes do qual a interpretaccedilatildeo do eacutepico seraacute conduzida Contudo enquanto uma remissatildeo textual mal compreendida fruto do processo de transmissatildeo inerente a esse texto originou uma seacuterie de criacuteticas ao que parecem injustas ao seu autor a ldquoignoracircncia e inexperiecircnciardquo de Fulgecircncio satildeo reforccediladas por essa incursatildeo do vate de Macircntua uma vez que entabulada a discussatildeo seus turnos de fala por vezes se

100 ldquoErgo dum ad tempus multae scientiae quis peruenerit in temporales gurgitum cenositates morumque feculentias transit Deinde Tricerberum mellitis resopit offulis Tricerberi enim fabulam iam superius exposuimus in modum iurgii forensisque litigii positamrdquo (FVLG Virg cont 98 20 ndash 99 1 grifos nossos)101ldquoVos Eliconiades uocanda est [] date praemia menti [] nec enim mihi sufficit unardquo (FVLG Virg cont 85 5-7)

102 ldquoNam ecce ad me etiam ipse Ascrei fontis bractamento saturior aduenit quales uatum imagines esse solent dum adsumptis ad opus conficiendum tabulis stupida fronte arcanum quiddam latranti intrinsecus tractatu submurmurantrdquo (FVLG Virg cont 85 12-16)103 ldquo[] nobis uero erit maximum si uel extremas tuas praestringere contingerit fimbriasrdquo (FVLG Virg cont 86 12-13)104 ldquoEst enim natura in auro productionis et decoris sed ad perfectionem malleo proficit excudentisrdquo (FVLG Virg cont 90 7-8)

confundem e Fulgecircncio falaraacute por Virgiacutelio quando natildeo deveria e vice-versa (COMPA-RETTI 1943[1872] p 61)

De qualquer forma o aparecimento de Virgiacutelio consiste num expediente pa-dratildeo o de ldquovisita nos sonhosrdquo recurso jaacute empregado por Ciacutecero Boeacutecio e pelo proacuteprio Fulgecircncio nas Mythologiae Sua entrada eacute ainda fundamental agrave tradiccedilatildeo textual haja vista que sua visita situa a obra natildeo apenas dentre os textos que comentaram textos virgilianos assim como junto agravequeles em que ele Virgiacutelio foi tambeacutem representado quer anteriormente como na Saturnalia de Macroacutebio quer posteriormente como na Divina Comeacutedia de Dante (HAYS 1996 p i)

Numa referecircncia ao evangelho de Mateus (9 20-21) em que uma enferma resvala nas roupas de Jesus e com isso se cura Fulgecircncio afirma querer tocar-lhe ldquoas fiacutembrias das vestesrdquo103 reforccedilando seu status miacutestico convidando-lhe em seguida a as-sumir o papel professoral e discorrer sobre os conteuacutedos secretos de seu poema o peacute-riplo de Eneacuteias como alegoria das fases da vida humana do nascimento agrave maturidade

Os saberes intriacutensecos que jazem sob a superfiacutecie do poema no aguardo de serem esclarecidos conforme os anseios dessa nova mentalidade para a qual Fulgecircncio traduz a Eneida encontram jaacute no incipit uma relaccedilatildeo com sua interpretaccedilatildeo Arma ui-rum e primus representam pois trecircs estaacutegios a partir dos quais se compreende a vida conforme o modelo platocircnico tripartido arma tambeacutem natura a substacircncia corporal capacidade inata uirum tambeacutem doctrina substacircncia intelectual que guia a nature-za e primus tambeacutem felicitas substacircncia moral a fecundidade do conhecimento ad-quirido O corpo carece do intelecto para alcanccedilar a completude assim como ldquoo estado natural do ouro eacute de fato sua beleza e maleabilidade mas eacute batendo com o martelo do ferreiro que ele chega agrave perfeiccedilatildeordquo 104

A Exposiccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacutelio utiliza-se quando natildeo de filosofia neo-platocircnica do emprego de etimologias a fim de justificar sua interpretaccedilatildeo Eacute assim que se explica a tempestade causada por Eacuteolo a mando de Juno naufragando os troianos na costa da Liacutebia ela eacute a deusa que preside os partos donde o naufraacutegio representa os tumultos do nascimento e eonolus em grego eacute a ldquodestruiccedilatildeo do mundordquo105 O encontro de Eneacuteias com Vecircnus que o visitou sob um disfarce encontra similar expli-caccedilatildeo ldquovecirc a matildee mas natildeo a reconhece demonstrando precisamente a infacircncia pois que pelo parto aos receacutem-nascidos eacute dado ver a matildee mas natildeo eacute dada a habilidade de reconhececirc-lardquo106 O enterro de Anquises no porto de Dreacutepanos compreende a chegada agrave juventude e o topocircnimo formado do grego drimos lsquoaacutesperorsquo e pes lsquomeninorsquo simboliza a rebeldia da juventude rechaccedilando a autoridade paterna Mais agrave frente a tempesta-de que isola Eneacuteias e Dido e os faz ceder agrave paixatildeo representa as mesmas turbulecircncias que obscurecem o discernimento adolescente e essa mudanccedila de estado pode-se dar

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apenas com uma interferecircncia externa Mercuacuterio ao alertar Eneacuteias para a sua tarefa de alcanccedilar a Itaacutelia representa o chamado agrave razatildeo e o abandono da voluacutepia fruto dos desejos juvenis ldquodonde o amor desprezado se esvai e consumido pelo fogo transfor-ma-se em cinzasrdquo107

Eacute novamente a visatildeo de Dido mas dessa vez no mundo inferior que constitui o ponto alto do comentaacuterio feito ao livro VI ndash haja vista que sua sequecircncia os livros seguintes satildeo interpretados de modo raacutepido e encontram um encerramento abrupto outro ponto responsaacutevel por suscitar criacuteticas ao estilo de Fulgecircncio A exposiccedilatildeo alcan-ccedila a ldquoespinha dorsalrdquo da jornada de Eneacuteias sua descida aos infernos ndash que remete a uma descida agrave sua proacutepria consciecircncia minus no que eacute a seccedilatildeo mais volumosa em usos ale-goacutericos interpretativos ou etimoloacutegicos A Sibila de Cumas o orienta quanto aos ritos de entrada no submundo e sua trajetoacuteria eacute exibida atraveacutes de cataacutelogos constituindo inclusive um exerciacutecio mnemocircnico personagens virtuosos ou que padecem como Tacircntalo Siacutesifo e Deiacutefobo moleacutestias que assolam a humanidade a fome a guerra a peste dentre outras

Alcanccedilada a perfeiccedilatildeo da memoacuteria representadas por esse itineraacuterio de apren-dizados a capacidade intelectual deve ser consolidada para toda a eternidade assim como o ramo de ouro eacute fixado nos portotildees de entrada dos Campos Eliacuteseos O rumo aos caminhos que levam agrave doctrina no entanto natildeo eacute a uacutenica etapa que representa a perpetuaccedilatildeo da substacircncia intelectual e a chegada agrave uirilis aetas eacute antes o seu encontro com a sombra de Dido pois ldquoa paixatildeo esvaiacuteda pelo desprezo contemplando agrave razatildeo eacute chamada agrave memoacuteria entre laacutegrimas penitentesrdquo108 Eacute assim que sob o manto de uma histoacuteria alegoacuterica foi apresentado o pleno estado do homem e de todas as suas capa-cidades109

3 Expositio sermonum antiquorum (Elucidaccedilatildeo de termos antigos)clxxxiv

A Fulgentii expositio sermonum antiquorum como costuma ser denominada

nos manuscritos consiste em um sucinto glossaacuterio de palavras consideradas antigas ou raras O opuacutesculo abre-se com um curto proacutelogo direcionado a um desconheci-do dominus denominado Calcidium ou Chalcidium grammaticum e em seguida satildeo apresentadas de maneira recursiva e reiterativa as entradas com as explicaccedilotildees ou definiccedilotildees de 62 sermones Cada um dos termos com uma ou duas exceccedilotildees eacute defi-nido e ilustrado com uma breve citaccedilatildeo em que pelo menos um autor e uma obra determinada satildeo citados para endossar uma explicaccedilatildeo dada Essas palavras seriam aquelas encontradas em autores gregos e latinos da Antiguidade como Ecircnio Plauto Virgiacutelio Petrocircnio Propeacutercio ou alguns mais tardios como Apuleio Marciano Capela

105 ldquoSaeculi interitusrdquo (FVLG Virg cont 91 12)106 ldquoVt terram tangit matrem uidet nec agnoscit plenam designantes infantiam quia a partu recentibus matrem lidere datur non tamen statim cognoscere meritum contribuiturrdquo (FVLG Virg cont p 92 7-10)107 ldquoQui quidem amor contemptus emoritur et in cineres exustus emigratrdquo (FVLG Virg cont 94 23-24)108 ldquoContemplando enim sapientiam libido iam contemptu emortua lacrimabiliter penitendo ad memoriam reuocaturrdquo (FVLG Virg cont p 99 19-21) 109 ldquoErgo sub figuralitatem historiae plenum hominis monstrauimus statumrdquo (FVLG Virg cont p 89 25 - 902)

entre outros que vez ou outra fizeram uso de um vocabulaacuterio antigo em suas obras

A Expositio sermonum antiquorum traz em si fragmentos de diversos campos do saber antigo variando desde ritos funeraacuterios antigos a costumes ligados ao povo etrusco ainda elementos da oratoacuteria grega poemas peccedilas e narrativas romanas apre-sentando assim um caraacuteter ecleacutetico proacuteprio da sua especificidade enciclopeacutedica

[] as entradas de 1 a 11 tratam de termos ligados aos costumes de sepultamento adivinhaccedilatildeo sacrifiacutecios reli-giosos e divindades menores enquanto as de 12 a 62 (com exceccedilatildeo das entradas 14 e 48 que podem ser deslocadas e pertencerem agrave primeira categoria) referem-se agraves palavras estranhas (coloquiais e teacutecnicas) termos referentes a ali-mentos barcos utensiacutelios relativos agraves meretrizes e assim por diante especialmente os que satildeo encontrados em pe-ccedilas de teatro poemas e romances (WHITBREAD 1971 p 157) clxxxv

Conforme discutido acima o interesse maior do autor da Sermonum eacute a An-tiguidade ou seja como faz em outras obras Fulgecircncio busca reinterpretar o mundo antigo explicando-o de alguma forma a facilitar-lhe a compreensatildeo ou para impri-mir camadas de sentido adaptadas a sua nova realidade Assim sendo na Sermonum vemos esse interesse interpretativo mas numa outra perspectiva natildeo diretamente a literaacuteria mas a linguiacutestica quer dizer o que se vecirc aqui eacute um Fulgecircncio registrando um leacutexico ligado agrave Antiguidade e ndash ao que se depreende ndash natildeo mais em uso no periacuteodo em que vive portanto a motivaccedilatildeo grosso modo natildeo eacute diversa trata-se da necessidade de se registrar elementos do tesouro da Antiguidade em vias de desaparecimento mas agora elementos linguiacutesticos donde se potildee a liacutengua como tambeacutem um dos patrimocircnios de um povo (AMARANTE ALMEIDA 2015)

A obra visto seu caraacuteter compilatoacuterio e ecleacutetico faz parte de uma tradiccedilatildeo lexicograacute-fica que caracteriza a Antiguidade Tardia periacuteodo em que haacute uma tendecircncia agrave produccedilatildeo de compecircndios i e ao enciclopedismo momento em que houve uma emergecircncia de se prepa-rar as geraccedilotildees vindouras atraveacutes da produccedilatildeo de obras que embora consideradas de pouca profundidade e de escassa originalidade satildeo uacuteteis ao estudo e possibilitam de modo compreensiacutevel e assimilaacutevel o acesso agrave cultura claacutessica (BISOGNO 2012)

Segundo Whitbread (1971) a Sermonum assemelha-se mutatis mutandis a outras compilaccedilotildees e epiacutetomes da Antiguidade romana tardia como a De lingua latina do erudito Marcos Terecircncio Varratildeo e possivelmente tambeacutem do mesmo autor uma obra perdida a Quaestiones Plautinae que trata sobre palavras difiacuteceis das peccedilas de Plauto Haacute ainda a Naturalis Historia de Pliacutenio o Velho uma enciclopeacutedia que eacute um verdadeiro celeiro de material antigo haacute um epiacutetome organizado em vinte tomos do tratado enciclopeacutedico De verborum significatu de Marco Veacuterrio Flaco ceacutelebre gramaacuteti-co que floresceu durante o periacuteodo de Augusto e ainda a obra de Nocircnio Marcelo a De compendiosa doctrina (ou De proprietate sermonum) um compecircndio de vinte livros que tratam das funccedilotildees gramaticais e classes de palavras sobre termos mariacutetimos vestuaacuterio entre outros assuntos (WHITBREAD 1971 p 158)

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As citaccedilotildees apresentadas na Sermonum satildeo comuns agraves de eruditos nas re-laccedilotildees de limites de obras e periacuteodo como Varratildeo e Probo Veacuterrio e Pliacutenio Frontatildeo e Geacutelio os grandes da lexicografia as vozes dos lsquooriginaisrsquo da Antiguidade pois

dos vaacuterios testemunhos relatados por Fulgecircncio na exem-plificaccedilatildeo dos sermones apenas trecircs encontram corres-pondecircncia com outros estudiosos ou eruditos ou lexicoacute-grafos como Festo ou Nocircnio ou Seacutervio ou Isidoro aleacutem de vozes ateacute desconhecidas para esses estudiosos (PENNISI p 135-136)clxxxvi

Ainda a respeito da sua estrutura e conteuacutedo a Sermonum foge da padroni-zaccedilatildeo geral dos glossaacuterios antigos que satildeo geralmente organizados por temas ou por ordem alfabeacutetica Conforme vimos eacute possiacutevel a identificaccedilatildeo de certos agrupamentos temaacuteticos como palavras e frases ligadas a rituais religiosos (4-6 9-10 14) ritos fuacute-nebres (1-3 sandapilam vispillo pollinctor) alimentos (39-42 lentaculum edulium tucceta ferculum) e naacuteutica (29-30 stega lembum)

Como jaacute se mostra claro em seu tiacutetulo a obra eacute uma espeacutecie de expositio (em latim lsquoexposiccedilatildeorsquo lsquoexplicaccedilatildeorsquo) portanto busca lsquoexplicarrsquo lsquodefinirrsquo ou ainda lsquoelucidarrsquo termos considerados antigos ao periacuteodo do autor Daiacute a estrutura baacutesica da explicaccedilatildeo dos sessenta e dois sermones natildeo eacute complexa iniciada sempre com a afirmaccedilatildeo [Quid sitsint ] eacute seguida de um comentaacuterio explicativo que define a palavra a partir do aporte de uma ou duas breves citaccedilotildees de autores claacutessicos

7 [Que seriam suggrundaria] No tempo antepassado os antigos chamavam suggrundaria os tuacutemulos de crianccedilas que ainda natildeo tivessem completado quarenta dias por-que eles natildeo podiam ser chamados busta pois natildeo havia ossos que queimassem inteiramente nem tanta grandeza cadaveacuterica que preenchesse o lugar daiacute Rutiacutelio Gecircmino na trageacutedia Astianacte diz ldquoOacute infeliz melhor do que um sepulcro a pequena cova tu lamentasrdquo 110

Essa metodologia compositiva eacute utilizada por Fulgecircncio buscando-se a trans-missatildeo de trecircs itens principais a palavra ou frase a ser definida a definiccedilatildeo em si e uma citaccedilatildeo ilustrativa como pode ser visto no sermo 7 acima utilizado aqui como exemplo da teacutecnica fulgenciana aplicada nos demais sermones

4 De aetatibus mundi et hominis (Das idades do mundo e da humanidade)clxxxvii

A De aetatibus mundi et hominis eacute a obra fulgenciana nitidamente mais cristatilde Nesse escrito o Mitoacutegrafo descreve ndash poeticamente e a partir de sua oacutetica moral reli-giosa ndash quais seriam as fases cronoloacutegicas do mundo e do ser humano Desse modo a composiccedilatildeo em tela acaba adquirindo relevo natildeo apenas para o campo literaacuterio mas

110 ldquo7 [Quid sint suggrundaria] Priori tempore suggrundaria antiqui dicebant sepulchra infantium qui necdum qua-draginta dies implessent quia nec busta dici poterant quia ossa quae conburerentur non erant nec tanta inmanitas cadaueris quae locum tumisceret unde et Rutilius Geminus in Astianactis tragoedia ait lsquoMelius suggrundarium miser quereris quam sepulchrumrsquordquo (FVLG serm 113 19 ndash 114 5)

tambeacutem para pesquisas desenvolvidas em acircmbito histoacuterico filosoacutefico e teoloacutegico

A dimensatildeo formal da De aetatibus desperta alguma curiosidade visto que diz respeito a um lipograma uma modalidade de escrita constrangida em que seu autor evita deliberadamente o emprego de uma ou mais letras do alfabeto A produccedilatildeo ful-genciana consiste em um lipograma consecutivo na medida em que se omite sequen-cialmente o uso das 14 letras iniciais relativas ao alfabeto liacutebico-latino de Fulgecircncio

Assim o Mitoacutegrafo subdividiu sua obra em 14 seccedilotildees evitando em cada uma delas o uso de um determinado grafema o que foi empreendido de lsquoarsquo a lsquoorsquo Ocorre que nosso lipogramista parece em seu proacutelogo anunciar que utilizaria todas as 23 letras de seu alfabetoclxxxix Aleacutem disso o Livro XIV se encerra de modo abrupto com uma ligeira referecircncia ao imperador Valentiniano I Levando em conta tais elementos al-guns estudiosos como Reifferscheid (1883) e Franz Skutsch (1910 apud Manca 2003) entendem que a obra estaria inacabada enquanto outros como Helm (1898) e Pennisi (1963) advogam pela completude do lipograma considerando o proacuteprio desenvolvi-mento da narrativa

A nosso entender tambeacutem se afigura plausiacutevel sustentar a integralidade da De aetatibus Isso porque naquele que seria o penuacuteltimo Livro disponiacutevel (Ausente N) Fulgecircncio parece sugerir que jaacute encerraraacute sua obra na seccedilatildeo seguinte (Ausente O) Ademais sopesando a precedecircncia poeacutetica da oposiccedilatildeo entre os elementos lsquoarsquo e lsquoorsquo no tange ao contraste teoloacutegico-cristatildeo entre o alfa e o ocircmega entendidos como iniacutecio e fim dos tempos a hipoacutetese de completude se reforccedila Nesse sentido natildeo parece ser mero resultado de uma falha no processo de transmissatildeo textual que ndash em uma obra que visa exatamente a descrever as idades cronoloacutegicas do mundo e do ser humano ndash os marcos inicial e final coincidam com os termos lsquoarsquo e lsquoorsquo

Outra problemaacutetica filoloacutegica relevante versa sobre a natureza (a)lipogramaacute-

tica do proacutelogo Quanto a isso a ediccedilatildeo criacutetica de referecircncia da aacuterea estabelecida pelo filoacutelogo latinista Rudolf Helm (FVLGENTII 1898) estampa o proacutelogo como sendo ali-pogramaacutetico e separado do Livro I que se iniciaria apenas com a narrativa do Peca-do Original O comentador italiano Manca (2003) que foi seguido por Gregory Hays (2019) assevera contudo que o editor criacutetico teria ignorado jaacute no proacutelogo uma ins-criptio indicadora do iniacutecio do lipograma e presente nos manuscritos Vaticanus e Tau-rinensis Ademais ele tambeacutem ressalta que a maioria das unidades lexicais portadoras do grafema lsquoarsquo diriam respeito ao ditongo lsquoaersquo que poderia ter sido facilmente alvo de simplificaccedilatildeo Por fim assinala ainda que o primeiro Livro ostentaria uma extensatildeo desproporcional ante o todo orgacircnico da obra visto que ndash se excluiacutedo o proacutelogo de sua conformaccedilatildeo ndash seria significativamente menor que os demaiscxc

Atendo-nos mais especificamente quanto agrave dimensatildeo estiliacutestica da De aetati-bus eacute preciso ainda tecer algumas consideraccedilotildees a respeito de sua estrutura Seguindo

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as alegaccedilotildees de Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019a 2020d) essa obra se insere em uma tradiccedilatildeo de escrita constrangida que foi explorada desde a Antiguidade ateacute a Contem-poraneidade ainda que ocupando durante um largo periacuteodo um baixo grau de evi-decircncia Assim do ponto de vista estiliacutestico eacute tambeacutem perceptiacutevel uma aproximaccedilatildeo do lipograma com outros escritos a exemplo do centatildeo do acroacutestico do tautograma do anagrama e do paliacutendromocxcii

Em tal panorama o escrito ora analisado adquire uma posiccedilatildeo especial tendo em vista que segundo assevera Georges Perec (OULIPO 1973) ele teria sido o mais antigo lipograma atestado De fato a fortuna criacutetica costuma mencionar lipogramistas anteriores a Fulgecircncio a exemplo de Piacutendaro Partecircnio de Niceia Nestor de Laran-da Trifiodoro e Laso de Hermione Eacute de se ressaltar entretanto que de todos esses escritores teriam chegado ateacute noacutes tatildeo somente alguns fragmentos em grego antigo atribuiacutedos a Hermione Dessa maneira eacute apenas a partir de Fulgecircncio que se pode concretamente atestar a incidecircncias das constriccedilotildees lipogramaacuteticas

No proacutelogo da De aetatibus o Mitoacutegrafo utiliza a expressatildeo opus durissimum (ldquoobra duriacutessimardquo) para definir sua obra Nesse sentido verifica-se de fato curiosa a potecircncia estiliacutestica que o escrito acaba adquirindo na medida em que a cada seccedilatildeo da obra o desafio linguiacutestico se altera jaacute que a proacutepria frequecircncia das letras em latim se demonstra distinta Assim existem partes sensivelmente restritivas a exemplo dos Livros com constriccedilatildeo vocaacutelica enquanto outras seccedilotildees praticamente natildeo limitam seu escritor como ocorre com o Livro X em que a letra a ser evitada seria a lsquokrsquo muito rara em latim e em portuguecircs

A escrita lipogramaacutetica engendra uma seacuterie de dificuldades a seu compositor que se vecirc obrigado a evitar um conjunto de unidades lexicais Buscando contornar tal desafio Fulgecircncio se valeu de antonomaacutesias periacutefrases circunloacutequios metaacuteforas su-pressotildees arcaiacutesmos e grecismos fornecendo pistas tambeacutem para seu tradutor que em liacutengua portuguesa buscou se aventurar no jogo constritor sugerido pela De aetatibus

A estrutura formal adotada pelo autor Fulgecircncio tambeacutem reverberou em nos-so projeto tradutoacuterio jaacute que nos vimos desafiados pelas constriccedilotildees estiliacutesticas arti-culadas Assim considerando a relevacircncia em tal obra dessa marca responsaacutevel ateacute mesmo por inseri-la em uma posiccedilatildeo de destaque na Histoacuteria da Arte e em particular da Histoacuteria da Escrita Constrangida reputamos oportuna a realizaccedilatildeo de uma tra-duccedilatildeo lipogramaacutetica que cultivasse ativamente as restriccedilotildees linguiacutesticas ventiladas voltando-se para um singular processo de fruiccedilatildeo poeacutetica de natureza transcriadora Assim sendo estamos realizando a primeira traduccedilatildeo lipogramaacutetica da De aetatibus visto que essa obra soacute recebeu ateacute entatildeo duas traduccedilotildees alipogramaacuteticas uma para o inglecircs realizada por Leslie Whitbread (1971) e outra para o italiano efetuada por Massimo Manca (2003)

Por outro lado eacute tambeacutem sabido que no campo de Estudos Claacutessicos e Latinos Medievais os estudiosos muitas vezes anseiam por traduccedilotildees que lhes permitam um mergulho mais ceacutelere no conteuacutedo temaacutetico do texto de partida sendo ateacute mesmo relativamente comum a existecircncia de ediccedilotildees biliacutengues Assim o leitor do texto antigo

busca em instantes muito mais um acesso ao texto latino mediado por uma traduccedilatildeo do que efetivamente fruir de elementos relativos agrave sua dimensatildeo poeacutetica textual no texto de chegada Dessa maneira tambeacutem julgamos necessaacuteria a proposiccedilatildeo de um trabalho tradutoacuterio alipogramaacutetico que se revestisse de uma linguagem mais fluida e de maior valorizaccedilatildeo dos casos latinos e de sua sintaxe

Saliente-se por fim que nosso projeto buscou fornecer dois produtos tradu-toacuterios diversos que foram concebidos a partir de criteacuterios tradutoacuterios similarmente diferentes Assim buscou-se expandir o espectro de apreciaccedilatildeo da De aetatibus demo-cratizando ainda mais sua leitura a partir da inclusatildeo de objetivos variados por parte do puacuteblicocxciii

Consideraccedilotildees finais

Com a escrita deste texto registramos pois a conclusatildeo de um projeto que culmina com a traduccedilatildeo completa dos textos fulgencianos ao portuguecircs De suas obras a primeira intitulada O livro das Mitologias de Fulgecircncio (AMARANTE 2019) jaacute se encontra publicada assim como jaacute se publicaram partes da De aetatibus (vd Santos Jr nas referecircncias) A traduccedilatildeo completa da De aetatibus e da Virgilianae e Sermonum estatildeo em processo de encaminhamento para publicaccedilatildeo futura

Esperamos poder em breve apresentar publicados os quatro textos que foram objetos de discussatildeo nesse capiacutetulo Esperamos que o leitor perceba pela sua leitura dos proacuteprios textos alguma unidade de interesse nos propoacutesitos fulgencianos confor-me propusemos aqui

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A gramaacutetica como livrodidaacutetico testemunhos sobremeacutetodo e praacutetica escolar na

antiguidade

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Lucas Consolin Dezotti

1 Introduccedilatildeo Em sua monumental ediccedilatildeo da Ars Donati grammatici urbis Romae Louis

Holtz (1981) se refere a dois modos de se estudar os textos gramaticais latinos [a] como portadores de testemunhos tanto do nascimento da gramaacutetica grega e de sua adaptaccedilatildeo romana quanto das obras de reflexatildeo da eacutepoca claacutessica que tanto influen-ciaram a gramaacutetica latina (eg Varratildeo Palematildeo Pliacutenio) [b] como testemunhos do que era em seu tempo a gramaacutetica ensinada na escola conforme o riacutegido formato herdado da eacutepoca heleniacutestica

O segundo modo de estudo ressalta o fato de que os textos gramaticais satildeo essencialmente escolares e respondem agrave necessidade de se adquirir certas habilidades teacutecnicas e algum conhecimento teoacuterico acerca dos diferentes niacuteveis de anaacutelise da lin-guagem verbal Neste artigo procuramos apresentar alguns testemunhos pertinentes a esse modo de estudo a partir de consideraccedilotildees sobre a educaccedilatildeo praticada na Roma imperial e de uma apreciaccedilatildeo formal da principal obra produzida no periacuteodo a Arte de Donato

2 Breve panorama da educaccedilatildeo romana No seacuteculo IV dC de que datam os mais antigos testemunhos iacutentegros da gra-

maacutetica romana o ensino heleniacutestico jaacute estava consolidado em Roma Baseado numa cultura do livro e do texto que valorizava sobretudo a consciecircncia da palavra e o co-nhecimento erudito esse sistema se estabelecia em um programa de aprendizado orientado gradualmente do mais simples ao mais complexo ndash isto eacute da alfabetizaccedilatildeo ao discurso ndash no qual o curso de gramaacutetica ocupava o campo intermediaacuterio transformar estudantes receacutem-alfabetizados em homens e mulheres cultos e letrados prontos para receber a mais valiosa instruccedilatildeo para a vida social a retoacuterica

Destinado a capacitar os alunos na ediccedilatildeo de textos manuscritos o curso se constituia em atividades de leitura revisatildeo e interpretaccedilatildeo de obras literaacuterias especial-mente poeacuteticas Virgiacutelio sobretudo Para tanto os alunos contavam com dois tipos de material de apoio geralmente elaborados pelo professor [a] um commentarius que continha um estudo completo do texto analisado em todos os niacuteveis e disponiacutevel para consulta e [b] uma ars que fornecia os conceitos e os preceitos necessaacuterios agrave execuccedilatildeo daquelas atividades e que deviam ser memorizados

Nisto consiste a primeira condiccedilatildeo de existecircncia de uma ars apresentar um arcabouccedilo teoacuterico para orientar o trabalho com o texto De um lado noccedilotildees de foneacutetica meacutetrica prosoacutedia e pontuaccedilatildeo datildeo as diretrizes da leitura correta Do outro noccedilotildees de padratildeo e desvio uso e autoridade auxiliam na identificaccedilatildeo de efeitos de estilo ou erros de coacutepia nos exemplares analisados

3 Donato e sua Arte Eacutelio Donato eacute um ilustre desconhecido De sua existecircncia sabe-se apenas que

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participou da vida puacuteblica no decorrer do seacuteculo IV dC ocupando em Roma uma das cadeiras municipais de professor de gramaacutetica e que um de seus alunos mais ceacutelebres foi Jerocircnimo de Striacutedon De fato os testemunhos fornecidos pelo tradutor da Vulgata permitem estabelecer apenas duas datas com alguma seguranccedila o ano de 354 quando Donato recebe honrarias puacuteblicas em reconhecimento a seus meacuteritos profissionais e o ano de 363 quando Jerocircnimo estaacute frequentando o curso de gramaacutetica Daiacute se de-duz que Donato tenha nascido por volta de 310 embora natildeo se possa determinar por quanto tempo se manteve em atividade apoacutes a turma de Jerocircnimo (cf HOLTZ 1981 p 15ndash19) A propoacutesito eacute digno de nota que a importacircncia de Jerocircnimo para a histoacuteria da Igreja se deve em grande medida agrave sua traduccedilatildeo da Biacuteblia para o latim (a Vulgata) e a seus comentaacuterios exegeacuteticos das Escrituras produccedilotildees diretamente derivadas das praacuteticas gramaticais

Mas Donato tambeacutem eacute um dos gramaacuteticos antigos mais citados de todos os

tempos senatildeo o mais Na condiccedilatildeo de ldquogramaacutetico oficial da cidade de Romardquo (gramma-ticus urbis Romae) cargo oficial criado pela poliacutetica escolar implantada por Vespa-siano em busca de um maior controle estatal da educaccedilatildeo (cf MARROU 1966 pp 460ndash469) ele produziu uma Arte que atravessou os seacuteculos fornecendo o modelo fun-damental para a constituiccedilatildeo das gramaacuteticas vernaculares no iniacutecio do Renascimento e seu nome figura em praticamente todos os relatos sobre a histoacuteria do conhecimento linguiacutestico na Antiguidade dos mais resumidos aos mais detalhadoscxciv

De fato a recepccedilatildeo da obra gramatical donatiana eacute caracterizada pelo sucesso Uacutenico de todos os textos profanos a sobreviver sem interrupccedilatildeo da Antiguidade ao Renascimento a influecircncia da Ars Donati sobre o ensino de gramaacutetica pode ter come-ccedilado quase imediatamente apoacutes sua publicaccedilatildeo (c 350 dC) e aparece firmemente estabelecida jaacute no seacuteculo seguinte quando se torna objeto de comentaacuterios e citaccedilotildees de autoridade (por gramaacuteticos como Seacutervio Pompeio e Prisciano) antes de ser adaptada dois seacuteculos depois para o contexto cultural cristatildeo (por autores como Isidoro de Se-vilha e Juliano de Toledo)

Essa supremacia pode ser explicada em parte pelo status oficial de seu autor (HOLTZ 1981 p 95) mas principalmente pelo cuidado de adequaccedilatildeo pedagoacutegica que orienta as escolhas de composiccedilatildeo especialmente no que se refere agrave aplicaccedilatildeo rigorosa de dois esquemas de exposiccedilatildeo do conteuacutedo um meacutetodo sistemaacutetico de descriccedilatildeo e um esquema progressivo de organizaccedilatildeo

31 Meacutetodo de descriccedilatildeo sistemaacutetica

O primeiro deles se baseia numa estrutura conceitual em forma de piracircmide regida pelo princiacutepio da correlaccedilatildeo hiperoniacutemia-hiponiacutemia que pode ser representada esquematicamente como faz Holtz (1981 p 49)

ndash definiccedilatildeo geralndash enumeraccedilatildeo de categorias de anaacutelise (ldquoacidentesrdquo)ndash exposiccedilatildeo da primeira categoria contendo

ndash definiccedilatildeo da categoria (raramente)ndash enumeraccedilatildeo de subcategorias (sempre)ndash exposiccedilatildeo da primeira subcategoriandash definiccedilatildeo da subcategoria (raramente)ndash um ou mais exemplos (quase sempre)ndash exposiccedilatildeo da segunda subcategoriahellipndash exposiccedilatildeo da segunda categoriahellip

Assim prossegue ateacute o final do capiacutetulo ao qual se segue outro construiacutedo do mesmo modo Nesse sentido pode-se dizer que a abordagem canocircnica dos manuais de gramaacutetica consiste basicamente em definir (em termos semacircnticos vagamente funcionais) especificar (por uma seacuterie de caracteriacutesticas formais normalmente mor-foloacutegicas agraves vezes posicionais) e ilustrar (normalmente com exemplos igualmente ca-nocircnicos) (cf LENOBLE SWIGGERS WOUTERS 2001 p 281ndash2)

Esse meacutetodo apresenta vantagens como a de ldquopoder sempre se balisar pelo plano e controlar o saber sem perder-se na confusatildeo dos fatosrdquo e a de ldquopoder construir exposiccedilotildees bastante completas e ao mesmo tempo raacutepidas e esquemaacuteticasrdquo (HOLTZ 1981 p 51) que sem duacutevida explicam sua enorme funcionalidade didaacutetica Mesmo sua regularidade ideal natildeo eacute incompatiacutevel com certa diversidade exigida pelo objeto trata-do quanto mais proacuteximo da base da piracircmide mais se permite a adjunccedilatildeo de enuncia-dos complementares sobre as particularidades que escaparam agrave sistematizaccedilatildeo geral ainda que se oponham a esta afastam de todo modo o caos (HOLTZ 1981 p 53)

Por outro lado o meacutetodo sistemaacutetico natildeo eacute exclusivo da Antiguidade tardia nem se limita aos manuais de gramaacutetica Segundo Louis Holtz (1981 p 55ndash6) esse esquema eacute utilizado desde eacutepocas bem antigas e se impotildee para todas as disciplinas e artes liberais especialmente aquelas duas eminentemente escolares que satildeo a retoacuterica e a gramaacutetica Na verdade pode-se dizer que ldquoeacute esse quadro loacutegico que define uma ars (τέχνη) enquanto conjunto de conhecimentos logicamente ordenados acerca de um domiacutenio bem delimitadordquo

Nesse sentido o que parece distinguir Donato dos demais artiacutegrafos (isto eacute autores de artes) eacute o rigor em sua aplicaccedilatildeo materializado basicamente na busca pela brevidade e pela perfeiccedilatildeo formal condiccedilotildees primordiais para a necessaacuteria memoriza-ccedilatildeo da doutrina pelos estudantes (cf HOLTZ 1981 p 94ndash5)

De fato Donato tende a separar o essencial do acessoacuterio e procura formas de enunciar que sejam facilmente memorizaacuteveis ldquodas quatro etapas pressupostas na exposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo gramatical (termo definiccedilatildeo subdivisatildeo exemplo) ele des-preza conforme o caso aquela que poderia sobrecarregar inutilmente a memoacuteria dos alunosrdquo (HOLTZ 1981 91-92) Aleacutem disso suprime sistematicamente a indicaccedilatildeo de todas as suas fontes e em muitos casos agrupa no final de cada capiacutetulo todos os fatos anocircmalos ou teorias controversas provavelmente para que os alunos tivessem contato com as exceccedilotildees apenas depois de ter assimilado o padratildeo

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A pertinecircncia dessa estrateacutegia eacute apontada jaacute no seacuteculo V pelo gramaacutetico Pom-peio quando comenta o trecho a respeito das particularidades das letras i e u ldquorepare como [Donato] procede primeiro trata daquelas caracteriacutesticas comuns [agraves duas le-tras] e soacute depois se volta a esses casos especiaisrdquo cxcvi

32 Ordem progressiva O segundo esquema diz respeito agrave ordem de apresentaccedilatildeo os capiacutetulos que em

Donato se organizam em quatro partes

Primeiro um tratado inicial sobre as partes da oraccedilatildeo tradicionalmente co-nhecido como Arte menor que se apresenta na forma de perguntas e respostas e com-preende oito capiacutetulos que versam respectivamente sobre o nome o pronome o verbo o adveacuterbio o particiacutepio a conjunccedilatildeo a preposiccedilatildeo a interjeiccedilatildeo

Em seguida um conjunto de trecircs partes conhecido como Arte maior e compos-to por [1] um tratado elementar com seis capiacutetulos acerca da voz da letra da siacutelaba do peacute meacutetrico do acento e da pontuaccedilatildeo [2] um segundo tratado sobre as partes da oraccedilatildeo apresentando precisamente os mesmos capiacutetulos que constituiacuteam o primeiro tratado cuja mateacuteria eacute agora descrita com maior abrangecircncia de detalhes de forma expositiva [3] um tratado de seis capiacutetulos sobre os viacutecios da oraccedilatildeo (barbarismo solecismo outros) e as virtudes (metaplasmo figuras tropos) doutrina que parece de-pender amplamente do conteuacutedo dos dois tratados anteriores na medida em que tanto viacutecios quanto virtudes se dividem basicamente em alteraccedilotildees no niacutevel das letras siacutela-bas e acentos de um lado e em variaccedilotildees no emprego das partes da oraccedilatildeo de outrocxcvii

Tal divisatildeo do conteuacutedo gramatical em trecircs partes corresponde de certa ma-neira ao esquema progressivo de constituiccedilatildeo da proacutepria linguagem que serve de prin-ciacutepio e justificativa para a doutrina gramatical como mostra o testemunho do gramaacute-tico Diomedes

Os princiacutepios da gramaacutetica emergem dos elementos os elementos se configuram em letras as letras se combinam em siacutelabas pelas siacutelabas se forma a palavra (dictio) as palavras se combinam em partes da oraccedilatildeo pelas partes da oraccedilatildeo se perfaz a oraccedilatildeo (oratio) na oraccedilatildeo se distin-gue a virtude pratica-se a virtude para evitar os viacutecios (Grammatici Latini vol 1 pp 426-427)cxcviii

Por muito tempo se considerou que a organizaccedilatildeo dos tratados com base nesse esquema progressivo fosse um claro indiacutecio da influecircncia direta do estoicismo sobre a gramaacutetica romanacxcix De fato a progressatildeo parece estar impliacutecita na distinccedilatildeo estoica entre som vocal (φωνή uox) som articulado (λέξις dictio) e som significante (λόγος oratio) de maneira que o plano da Arte maior se assemelharia bastante ao plano do que se considera o ldquomais antigo arqueacutetipordquo das artes gramaticais a Teacutekhnē perigrave phōnecircs do estoico Dioacutegenes da Babilocircnia um primeiro tratado sobre os elementos constituti-vos da palavra enquanto som articulado (λέξεως στοικεία ie letras siacutelabas etc) um

segundo tratado sobre os elementos constitutivos do som significante (μέρη λόγου) e um terceiro sobre as qualidades e os defeitos a que estaacute sujeito o som significante (ἀρεταὶ λόγου [καὶ κακίαι])

Poreacutem essa visatildeo tem sido relativizada pelos estudos recentes Segundo Lou-is Holtz (1981 p 60) o esquema progressivo jaacute era tradicional quando os estoicos o adotaram sendo usado por Platatildeo ao supor o meacutetodo que o demiurgo teria seguido para criar a linguagem (eg Craacutetilo 424endash425a) e por Aristoacuteteles no estudo da elocuccedilatildeo poeacutetica (eg Poeacutetica capiacutetulos 20ndash22) Na verdade eacute possiacutevel que esse esquema fosse ldquoum tipo de apresentaccedilatildeo corrente e banal proacuteprio da pedagogia dos gramatisteacutesrdquo isto eacute dos alfabetizadores que para descrever o sistema de escrita grego baseado em um signo para cada fonema concebiam a anaacutelise e a siacutentese como teacutecnicas complementa-res relacionadas com os movimentos naturais de leitura e escrita

Essa perspectiva essencialmente pedagoacutegica se evidencia pela observaccedilatildeo dos capiacutetulos que compotildeem a primeira parte da Arte maior A progressatildeo gramatical em princiacutepio simples e estaacutevel ndash a voz quando eacute articulada eacute representada por letras que se combinam em siacutelabas ndash sofre uma espeacutecie de ldquobifurcaccedilatildeordquo a siacutelaba pode-se combi-nar em palavra mas tambeacutem em peacute meacutetrico Essa inserccedilatildeo pode estar relacionada com a utilidade dos esquemas quantitativos para a anaacutelise dos poemas bem como para a teoria das claacuteusulas a ser estudada futuramente pelo estudante no curso de retoacuterica Em outras palavras sua presenccedila se explica natildeo por sua origem na filosofia mas por seu papel na praacutetica escolar o mesmo podendo ser aformado dos capiacutetulos seguintes que trazem natildeo soacute as regras da acentuaccedilatildeo e da pontuaccedilatildeo mas tambeacutem os respectivos sinais graacuteficos usados para marcar os manuscritos que eram parte das habilidades aprendidas com o gramaacutetico (cf HOLTZ 1981 62-63)

Essa dificuldade de estabelecer um paralelismo rigoroso entre o plano progres-sivo da dialeacutetica estoica e a descriccedilatildeo gramatical tambeacutem eacute abordada por Marc Baratin (1989a p 200-201) Segundo esse pesquisador a progressatildeo gramatical eacute totalmente dependente de uma praacutetica de leitura e escrita e de seu ensino elementar (juntar letras em siacutelabas siacutelabas em palavras palavras em oraccedilotildees) ao passo que o esquema estoico consiste em ldquodistinguir em uma sequecircncia focircnica os aspectos coexistentes em toda sua extensatildeordquo nesse sentido pode-se considerar uma sequecircncia como vocal (φωνή) como articulada (λέξις) e como significante (λόγος) ldquomas eacute sempre a mesma realidade que eacute tomada em consideraccedilatildeordquo Portanto o esquema estoico natildeo corresponde a uma perspectiva ascendente (natildeo haacute a unidade ldquosiacutelabardquo por exemplo) e sim a uma anaacutelise da relaccedilatildeo entre som e sentido (BARATIN 1994 p 152)

Aleacutem disso o tratamento gramatical dos viacutecios e virtudes natildeo segue o esquema apresentado pelos estoicos Conforme testemunha Dioacutegenes Laeacutercio (759) os estoicos distinguiam cinco virtudes (helenismo clareza concisatildeo precisatildeo elegacircncia) e dois viacutecios (barbarismo e solecismo) ao passo que a terceira parte da Arte maior apresenta trecircs conjuntos de viacutecios (barbarismo solecismo outros) e trecircs de virtudes (metaplas-mo figuras e tropos) constituindo ldquoum verdadeiro desafio colocar os esquemas em paralelordquo (BARATIN 1989a p 201)

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Em suma a organizaccedilatildeo da Arte maior em trecircs partes que aparentemente motivara Barwick a pesquisar suas fontes estoicas por consideraacute-la representante exemplar da gramaacutetica latina natildeo passa de uma variante entre outras Ao contraacuterio as diferentes (e por vezes confusas) progressotildees adotadas por outros artiacutegrafos contem-poracircneos como Cariacutesio Diomedes Sacerdote leva a crer que a ars grammatica tardia natildeo tem uma estrutura preacute-definida (BARATIN 1989b p 211-212) Desse modo o es-quema de organizaccedilatildeo da Arte maior parece representar o mesmo esforccedilo de codifica-ccedilatildeo que observamos a respeito do meacutetodo sistemaacutetico sempre orientado por escolhas pedagoacutegicas (HOLTZ 1981 91)

Por outro lado eacute notaacutevel que o grande diferencial de Donato quanto agrave organi-zaccedilatildeo do conteuacutedo seja precisamente uma transgressatildeo do esquema tripartite iniciar a obra pelo tratado sobre as partes da oraccedilatildeo Essa intervenccedilatildeo teve recepccedilatildeo imediata e positiva como mostra um seacuteculo depois o testemunho de Seacutervio

Muitos comeccedilaram a escrever suas artes pelo tratado das letras muitos pela voz muitos pela definiccedilatildeo de gramaacuteti-ca Mas parece que todos erraram porque natildeo trataram de uma mateacuteria exclusiva de seu ofiacutecio mas comum tanto aos oradores quanto aos filoacutesofos Pois tambeacutem o orador pode tratar das letras e ningueacutem trata da voz mais que os filoacutesofos a definiccedilatildeo por sua vez eacute cara aos aristoteacuteli-cos Daiacute Donato ter procedido de modo mais inteligente e apropriado pois comeccedilou pelas oito partes da oraccedilatildeo que pertence especificamente ao gramaacutetico (Grammatici Lati-ni vol IV p 405 linhas 4-11 traduccedilatildeo nossa)cc

O texto sugere que o cerne do ensino gramatical eacute a doutrina das partes da oraccedilatildeo no que se distingue das outras disciplinas ainda que o proacuteprio desenvolvimen-to dessa doutrina tenha se dado a partir dos estudos filosoacuteficoscci como reconhece o mesmo comentador

Os aristoteacutelicos dizem que as partes da oraccedilatildeo satildeo duas o nome e o verbo os estoicos dizem que satildeo cinco os gramaacuteticos que satildeo oito muitos nove muitos dez mui-tos onze (Grammatici Latini vol IV p 428 linhas 12-13 traduccedilatildeo nossa)ccii

Em todo caso a inovaccedilatildeo de Donato ndash repita-se iniciar o tratado pelo estudo das partes da oraccedilatildeo ndash parece contemplar uma praacutetica corrente na educaccedilatildeo gramati-cal a julgar pelo testemunho de Quintiliano dois seacuteculos antes

Antes de mais nada que as crianccedilas saibam flexionar os nomes e os verbos pois natildeo podem de outro modo com-preender o que vem depois (QUINTILIANO Institutio oratoria I 4 22 traduccedilatildeo nossa)cciii

Outros comentadores de Donato fazem eco a essa afirmaccedilatildeo atestando sua pertinecircncia didaacutetica como eacute o caso de Pompeio (ldquofez bem Donato em escrever a pri-meira parte agraves crianccedilas e a segunda a todosrdquo)cciv de Juliano de Toledo (ldquoPor que Dona-to comeccedilou pelo nome e natildeo pela letra como fizeram outros Por saber que a proacutepria letra tambeacutem era um nomerdquo) ccv e tambeacutem de um gramaacutetico anocircnimo que escreve acerca do barbarismo (Fragmentum Monacense de barbarismo) referindo-se natildeo ape-nas agrave anteposiccedilatildeo do estudo das partes da oraccedilatildeo mas tambeacutem agrave simetria de ordena-ccedilatildeo das partes da Ars

Repare-se que Donato editou sua arte com extrema dili-gecircncia e habilidade compocircs primeiro a menor para ins-truir os meninos colocando-a no comeccedilo de seu volume jaacute a segunda ediccedilatildeo iniciou pela letra e as demais partiacutecu-las pertinentes agrave superfiacutecie e depois as oito partes Feito isso para completar a segunda ediccedilatildeo colocou o barba-rismo e os demais viacutecios ndash e assim como havia colocado as partes que pertencem agrave superfiacutecie (ie voz letra siacutelaba etc) da primeira vez tambeacutem ao discorrer a respeito dos viacutecios teve o cuidado de colocar no iniacutecio o barbarismo que corrompe a superfiacutecie e em segundo lugar o solecis-mo viacutecio que corrompe o sentido e a coesatildeo das partes (Grammatici Latini vol 5 p 327 linhas 3-12 traduccedilatildeo nossa)ccviv

Outro fragmento anocircnimo (Fragmentum Lauantinum in artes Donati) dis-correndo igualmente sobre a inteligecircncia da dispositio donatiana chama atenccedilatildeo para mais uma caracteriacutestica marcante desse tratado qual seja a forma de apresentaccedilatildeo em perguntas e respostas

[Donato] escreveu uma arte duplicada isto eacute as oito par-tes que se chamam artes menores das quais esta eacute a se-gunda ediccedilatildeo Mas eacute de se observar para quais pessoas es-creveu a primeira quais a segunda e indagar por quantas e quais causas escreveu as artes menores Eacute o seguinte para as pessoas dos meninos e por trecircs causas Primeira para que conhecessem de que modos se dava a arte se-gunda para que aprendessem a perguntar (eg ldquoquantas satildeo as partes da oraccedilatildeordquo) e a terceira causa para que soubessem resolver o que foi perguntado (eg ldquooitordquo etc) Assim na primeira ediccedilatildeo contempla o questionaacuterio e a resoluccedilatildeo para ensinar os meninos jaacute na segunda ediccedilatildeo ensina a ciecircncia da latinidade para pessoas adultas Mas conveacutem agora dizer de que modos se daacute o perguntar isto eacute de trecircs como que querendo aprender ou ensinar ou para produzir uma investigaccedilatildeo E nas artes menores Do-nato pergunta como que querendo ensinar (Grammatici

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Latini vol 5 p 326 linhas 8-19 traduccedilatildeo nossa)ccvii

Esse comentaacuterio enseja algumas consideraccedilotildees Primeiro a indicaccedilatildeo expliacutecita dos diferentes destinataacuterios de uma e outra arte (ldquomeninosrdquo vs ldquoadultosrdquo) sugere inda-gaccedilotildees sobre o efetivo uso de uma ou outra arte na praacutetica escolar do periacuteodo Segundo os diferentes ldquomodosrdquo (ou usos) do questionamento remontam a uma tradiccedilatildeo muito antiga de textos filosoacutefico-cientiacuteficos em relaccedilatildeo agrave qual eacute preciso situar a Arte menor

4 Perguntas e respostas como forma literaacuteria A forma literaacuteria que simula uma interaccedilatildeo verbal entre mestre e disciacutepulo

foi amplamente utilizada durante toda a Antiguidade Os diaacutelogos de Platatildeo parecem inaugurar esse processo de instruccedilatildeo e organizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico em perguntas e respostas simulando um meacutetodo de reflexatildeo mas fazendo acompanhar de um contexto conversacional (eg um banquete) e de personagens conhecidos ou ve-rossiacutemeis (Soacutecrates Aristodemos Agatatildeo Fedro Pausacircnias Aristoacutefanes) Em ambien-te latino o mesmo expediente eacute usado por Ciacutecero ndash um acadecircmico assumido ndash em qua-se todas as suas grandes obras filosoacuteficas (cf MARTIN amp GALLIARD 1990 224ndash34)

Por outro lado o mesmo Ciacutecero emprega essa forma supostamente para en-sinar retoacuterica a seu filho Aqui se coloca uma diferenccedila Enquanto muitos diaacutelogos filosoacuteficos tecircm uma ldquodata cecircnicardquo (em geral afastada no tempo) e personagens ilustres da repuacuteblica romana na obra Particcedilotildees oratoacuterias (De partitione oratoriae) vemos uma espeacutecie de exerciacutecio escolar entre Ciacutecero e seu filho acerca das ldquopartesrdquo que compotildeem a instruccedilatildeo oratoacuteria O iniacutecio do texto eacute bastante elucidativo

CIacuteCERO FILHO Tenho vontade de ouvir de vocecirc meu pai em Latim as instruccedilotildees acerca do meacutetodo de discursar que vocecirc me transmitiu em Grego ndash mas soacute se vocecirc estiver desocupado e quiser agoraCIacuteCERO PAI Ora meu querido Ciacutecero existe algo que eu queira mais do que vocecirc ser o mais instruiacutedo possiacutevel Em primeiro lugar meu oacutecio eacute total jaacute que me foi dado o direito de sair de Roma aleacutem disso eu colocaria esses teus estudos agrave frente das minhas maiores ocupaccedilotildees com o maior prazerCF Vocecirc quer entatildeo que assim como vocecirc costuma me perguntar em Grego segundo a ordem agora eu te per-gunte a respeito dos mesmos assuntos em LatimCP Pode ser se te agrada Assim eu poderei observar que vocecirc se lembra das instruccedilotildees que recebeu e vocecirc po-deraacute ouvir em ordem as coisas que quiser saberCF Em quantas partes deve ser dividida toda a doutrina do discursarCP Em trecircsCF Diga quaisCP Primeiro na proacutepria forccedila do orador segundo no

discurso terceiro na questatildeoCF Em que consiste essa forccedilaCP Nas ideias e nas palavrashellip ccviii

De fato esse texto eacute bem mais simples tanto pela cena quanto pelos persona-gens (pai e filho provavelmente em casa repassando instruccedilotildees teacutecnicas sobre a arte oratoacuteria) Eacute de se notar que os papeacuteis desempenhados satildeo invertidos (uicissim) quem costumava perguntar (Ciacutecero pai) agora passaraacute a responder em todo caso a sequecircn-cia metoacutedica (ordine) deveraacute ser respeitada A semelhanccedila com o meacutetodo utilizado na Arte menor eacute evidente

As partes da oraccedilatildeo satildeo quantas Oito Quais Nome pro-nome verbo adveacuterbio particiacutepio conjunccedilatildeo preposiccedilatildeo e interjeiccedilatildeo Nome eacute o quecirc Eacute a parte da oraccedilatildeo com caso que significa um corpo ou uma ideia de modo proacuteprio ou comum O nome tem quantos acidentes Seis Quais Qualidade comparaccedilatildeo gecircnero nuacutemero figura e caso A qualidade dos nomes em que consiste Em dois tipos pois ou eacute nome de um soacute e se chama proacuteprio ou eacute de muitos e se chama apelativo (DONATO 1981 p 585)ccix

Todavia falta-lhe a contextualizaccedilatildeo cecircnica que ainda que simples determina os papeacuteis quem pergunta quem responde na Ars minor Mais que isso que niacutevel de verossimilhanccedila com praacutetica escolar o texto donatiano poderia representar

Um testemunho de Pompeio traz alguma luz a essas questotildees Ao tratar dos

nomes proacuteprios em especial daqueles que proveacutem de um nome comum (os agnomi-na) este gramaacutetico afirma

hellipnas respostas devemos ser espertos Frequentemen-te nos fazem cometer solecismo tanto os que pergun-tam mal quanto os que respondem mal Pensa por exemplo se algueacutem diz ldquoAfricanordquo devo perguntar assim e assim responder ldquolsquoAfricanorsquo eacute que parte da oraccedilatildeordquo E o menino diz ldquoNomerdquo Eu pergunto ldquoQue tipo de nomerdquo Ele deve responder ldquoProacutepriordquo Devo perguntar ldquoQue parte do nome proacutepriordquo E ele deve dizer ldquoAgnomerdquo Essa eacute a ordem verdadeira segundo o questionaacuterio pois eacute primordial que vocecirc diga primeiro o que eacute geneacuterico e depois diga o que eacute especiacutefico Ora se ele te pergunta ldquolsquoAfricanorsquo eacute que parte da oraccedilatildeordquo e vocecirc diz ldquoagnomerdquo vocecirc comeccedilou pelo uacuteltimo vocecirc natildeo me disse que eacute um nome depois natildeo me disse se eacute proacuteprio ou apelativo mas soacute disse o que viria por uacuteltimo Por isso vocecirc deve dizer assim ldquoeacute um nome eacute proacuteprio essa parte do nome proacuteprio eacute agnomerdquo O mesmo vale para o restante (Grammatici Latini vol

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5 p 142-143 traduccedilatildeo nossa)

Vemos o interlocutor de Pompeio sendo convidado a se imaginar em duas posiccedilotildees tanto a de perguntar ao menino quanto a de ser questionado por ele Inde-pendente de quem assume qual posiccedilatildeo parece que o mais importante eacute respeitar a ordem isto eacute o meacutetodo do questionaacuterio (interrogatio) progredindo sempre do geneacute-rico para o especiacutefico demonstrando que o objeto do aprendizado natildeo tanto as formas linguiacutesticas mas o modo correto de classificaacute-las bem como o de apresentar essas classificaccedilotildees

Por fim um uacuteltimo testemunho parece sugerir uma certa relevacircncia social para o treinamento no meacutetodo de perguntas e respostas no mundo romano O trecho eacute do mesmo Pompeio ainda sobre a ambiguidade dos nomes proacuteprios e traz um convite agrave precauccedilatildeo para o interlocutor

Alguns homens costumam ser espertos com frequecircncia entatildeo algueacutem te pergunta dizendo ldquoLuacutecio eacute que tipo de nomerdquo ldquoProacutepriordquo ldquoQue parte do nome proacutepriordquo E vocecirc diz a ele ldquoPrenomerdquo E ele te diz ldquoErrado Pois um escravo meu se chama assim e natildeo tem prenomerdquo (Grammatici Latini vol 5 p 142 linhas 8-11 traduccedilatildeo nossa)

Agrave parte a ambiguidade do nome Luacutecio ndash usado ora como prenome ora como nome uacutenico no caso de escravizados ndash o cuidado proposto por Pompeio eacute em relaccedilatildeo a ldquoalguns homensrdquo possivelmente uma referecircncia ao tradicional ambiente extra-escolar de provaccedilotildees para os letrados como se observa nas Noites Aacuteticas de Aulo Geacutelio que traz relatos de interaccedilatildeo provocativa entre uma pessoa culta (em geral o proacuteprio autor) e um gramaacutetico pedante (e geralmente inepto) Em um desses relatos (livro 16 cap 6) um ldquoalfabetizador da liacutengua latina se oferecia ao povo para ser testadordquo Geacutelio conta que o homem estava lendo ldquode modo baacuterbaro e ineptordquo (barbare insciteque) o livro 7 da Eneida e dizia que ldquose algueacutem quisesse aprender alguma coisa que perguntasse a elerdquo Surpreso com a ldquoconfianccedila do indoutordquo (indocti hominis confidentiam) Geacutelio resolve ir ateacute ele ldquopor divertimentordquo (oblectamenti gratia) Ao final apoacutes revelar a ignoracircncia do sujeito com perguntas capciosas Geacutelio vai embora rindo das proezas do impostor (facetias nebulonis hominis)

5 Consideraccedilotildees finais Diante do que foi apresentado sobre as inovaccedilotildees metodoloacutegicas de Donato

particularmente pertinentes como vimos agrave organizaccedilatildeo e forma de apresentaccedilatildeo do conteuacutedo eacute possiacutevel perceber que o que se aprendia na aula de gramaacutetica natildeo era uma nova liacutengua mas um conjunto sistematizado de conceitos e formas (fornecido pela ars) e um meacutetodo de anaacutelise (as partitiones isto eacute a identificaccedilatildeo das lsquopartesrsquo) que permitia racionalizar o uso da liacutengua pelo falante e compreender as composiccedilotildees literaacuterias

Exemplo desse processo satildeo as Partitiones duodecim uersuum Aeneidos prin-

cipalium obra do gramaacutetico Prisciano cujo tiacutetulo bem poderia ser traduzido por Anaacute-lise dos doze versos principais da Eneida (quais sejam o primeiro verso de cada livro) em forma de questionaacuterio ordenado como vemos no excerto abaixo

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris [hellip] Quantas partes da oraccedilatildeo tem esse verso Nove Quan-tos nomes Seis arma uirum Troiae qui primus oris Quantos verbos Um cano Quantas preposiccedilotildees Uma ab Quantas conjunccedilotildees Uma que Arma eacute que parte da oraccedilatildeo Nome Qual Apelativo De que espeacutecie Geneacuterico De que gecircnero Neutro Por quecirc Porque todos os que no plural terminam em -a sem duacutevida satildeo do gecircnero neutro [hellip] De que figura Simples Faccedila dele alguns compostos armiger armipotens inermishellip De que caso eacute nessa passa-gem Acusativo Como ter certeza Pela estrutura isto eacute pela organizaccedilatildeo e conexatildeo com o que vem depois o ver-bo cano se constroacutei com acusativo (PASSALACQUA ed 1999 p 48-50)c

A intenccedilatildeo deste capiacutetulo foi apresentar alguns testemunhos da reflexatildeo sobre meacutetodo de ensino na Antiguidade A julgar pela produccedilatildeo bibliograacutefica parece que o foco de atenccedilatildeo dos estudos de textos gramaticais antigos satildeo os aspectos linguiacutesticos e filoloacutegicos desses textos de modo que a bibliografia disponiacutevel sobre os aspectos di-daacuteticos natildeo eacute farta Em todo caso se o exame da estrutura dos manuais de gramaacutetica ldquonatildeo pode se limitar a uma simples anaacutelise de sua organizaccedilatildeo [hellip] devendo levar em conta todas as dimensotildees desses textos na qualidade de documentos cientiacuteficos e pe-dagoacutegicos bem como de enunciados linguiacutesticosrdquo (LENOBLE SWIGGERS WOUTERS 2001 p 277) sem duvida os tratados e comentaacuterios gramaticais satildeo uma rica fonte de informaccedilotildees para explicar muitos aspectos relevantes sobre a escola antiga

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Exagerando a verdadea hipeacuterbole em

Quintiliano

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Pedro Schmidt

O estudo da hipeacuterbole sua histoacuteria suas definiccedilotildees seus empregos e suas interpretaccedilotildees eacute ainda um campo praticamente inexplorado junto aos estudos literaacute-rios Nisso acompanha a tendecircncia das figuras como um todo que agrave exceccedilatildeo talvez da metaacutefora tecircm recebido pouco ou quase nenhum tratamento seja de historiadores da literatura ou de teoacutericos da literatura desproporcional ao menos agrave importacircncia que se assume em geral em propostas metodoloacutegicas de anaacutelise literaacuteria No caso especiacutefico da hipeacuterbole para aleacutem das definiccedilotildees de dicionaacuterios e manuais pode-se encontrar algumas poucas monografiasccxv nos uacuteltimos anos houve um relativo aumento de produccedilotildees acadecircmicas sobre o tema muito embora oriundas das aacutereas da pragmaacutetica da filosofia da linguagem e da comunicaccedilatildeo apresentando escassa relaccedilatildeo com a apli-caccedilatildeo da figura ccxvi a textos literaacuterios ccxvii

Uma possiacutevel aproximaccedilatildeo ao estudo da hipeacuterbole e de sua histoacuteria eacute o enten-dimento de como essa figura foi tratada pelos teoacutericos de poeacutetica e retoacuterica da Antigui-dade greco-latina Pois esses tratamentos podem oferecer por um lado a descriccedilatildeo de como os autores literaacuterios entendiam e utilizavam a figura e por outro uma espeacutecie de prescriccedilatildeo sob a qual os autores viriam a modelar-se Aleacutem disso queda evidente que os tratamentos dados agraves figuras pelos teoacutericos antigos satildeo ainda a base na qual se fundamentam as definiccedilotildees modernas dos dicionaacuterios e manuais e da qual partem os estudos criacuteticos

Nesse sentido pode-se observar a histoacuteria da definiccedilatildeo da hipeacuterbole desde Aristoacuteteles de quem recebe uma breve menccedilatildeo perpassando ainda em condiccedilotildees bre-ves ou embrionaacuterias outro autores ccxviii ateacute chegar a uma exposiccedilatildeo relativamente elaborada e desenvolvida em Quintiliano que funciona como pedra fundamental para todos os tratamentos subsequentes desde a Antiguidade tardia ateacute nossos dias Nesse sentido faz-se crucial para todo estudo historicamente orientado da hipeacuterbole conhe-cer o tratamento dado agrave figura por Quintiliano Para tanto seraacute apresentada aqui apoacutes breve contextualizaccedilatildeo a traduccedilatildeo para liacutengua portuguesa da passagem para entatildeo se proceder agrave anaacutelise da mesma e para ao final propor uma definiccedilatildeo e tipologia da hipeacuterbole de acordo com os termos de Quintiliano

Marco Faacutebio Quintiliano nasceu por volta do ano 35 da era cristatilde na proviacutencia

romana da Hispacircnia em Calaguacuterris (hoje Calahorra) Ainda jovem mudou-se para Roma onde estudou gramaacutetica e oratoacuteria com professores renomados como Recircmio Palecircmon e Domiacutecio Afer Apoacutes seus estudos regressou agrave Hispacircnia mas logo voltaria a Roma na companhia de Galba em 68 Na capital tornou-se o primeiro professor de retoacuterica contratado oficialmente pelo governo imperial sob a dinastia flaviana cargo que ocuparia nos proacuteximos vinte anos tendo entre seus alunos personalidades ilustres da poliacutetica e da literatura Ao se aposentar recebeu a incumbecircncia de educar os sobri-nhos-netos do imperador Domiciano Faleceu em Roma por volta do ano de 96 ccxix

Embora se atribua a ele uma coleccedilatildeo de declamaccedilotildees sua uacutenica obra de autoria indisputada eacute a Institutio Oratoria um tratado sobre retoacuterica e sobre a instruccedilatildeo ora-

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toacuteria composto em doze livros A Institutio tornou-se desde logo uma referecircncia natildeo apenas de retoacuterica mas tambeacutem de ensino de retoacuterica e do processo educacional do jovem orador Seu impacto na Idade Meacutedia foi a julgar pela presenccedila de manuscritos apenas razoaacutevel mas sua influecircncia aumenta exponencialmente a partir do Renas-cimento Com o decliacutenio do estudo da retoacuterica nos ambientes escolares a Institutio passou a ser conhecida somente nos meios especializados sendo a base fundamental dos manuais e dicionaacuterios teacutecnicos e uma das principais fontes sobre a arte retoacuterica do mundo greco-romano

A Institutio tem uma estrutura bem delineada e objetiva O livro 1 trata dos

processos iniciais da educaccedilatildeo e da importacircncia da gramaacutetica da muacutesica e das artes li-berais na formaccedilatildeo do orador o livro 2 funciona como uma espeacutecie de introduccedilatildeo geral agrave arte retoacuterica os livros 3 a 6 compotildeem um bloco sobre a invenccedilatildeo em que o 3 explora as origens da retoacuterica os tipos de causa e os trecircs gecircneros de discurso (demonstrativo deliberativo e judiciaacuterio) o 4 as partes do discurso o 5 os tipos de prova e o 6 os apelos retoacutericos (ethos pathos logos) e o riso o livro 7 trata da disposiccedilatildeo os livros 8 a 11 completam os elementos canocircnicos da retoacuterica com a elocuccedilatildeo memoacuteria e accedilatildeo com destaque para o livro 10 onde haacute uma histoacuteria criacutetica da literatura e o livro 12 discorre sobre a carreira e a vida do orador formado e a relaccedilatildeo destas com a praacutetica oratoacuteria

Eacute no oitavo livro da Institutio que Quintiliano aborda dentro da discussatildeo

sobre o estilo as figuras de linguagem os ornamentos e os tropos No prefaacutecio ele adverte que o estilo ou a elocuccedilatildeo eacute a mais difiacutecil entre as cinco partes canocircnicas da retoacuterica (Inst 8Praef13) e eacute justamente essa parte que diferencia os oradores verda-deiramente excelentes em relaccedilatildeo aos oradores comuns (Inst 8Praef14-17) O livro divide-se em seis capiacutetulos No primeiro Quintiliano define e desenvolve o conceito de elocuccedilatildeo No segundo trata da propriedade das palavras No terceiro introduz o con-ceito do ornamento sua importacircncia e eficaacutecia em seguida lista os efeitos que devem ser evitados como cacofonia tautologia pleonasmo por fim discorre sobre o siacutemile e a ecircnfase No quarto ele passa a explorar ainda sob a definiccedilatildeo de ornamento a ampli-ficaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo No quinto trata daquele que considera o melhor dos ornamentos a sententia Por fim no sexto e uacuteltimo capiacutetulo adentra-se agrave exposiccedilatildeo dos tropos metaacutefora sineacutedoque metoniacutemia antonomaacutesia onomatopeia catacrese metalepse epiacuteteto alegoria periacutefrase hipeacuterbato e hipeacuterbole Satildeo estes na visatildeo de Quintiliano os tropos mais usuais e importantes

Eacute portanto o trecho final do sexto capiacutetulo do livro 8 que nos interessa aqui

Antes de passarmos a ele contudo faz-se necessaacuterio procurar entender a distinccedilatildeo que Quintiliano esboccedila entre tropo e ornamento e porque ele classifica a hipeacuterbole dentro da categoria dos tropos

Dentro do tratamento da elocuccedilatildeo Quintiliano apresenta dois tipos de recur-

sos estiliacutesticos que se pode fazer com as palavras tanto na poesia como nos discur-sos de oratoacuteria os ornamentos (ornati) e os tropos (tropi) Os ornamentos satildeo os tipos de figuraccedilatildeo em que natildeo haacute mudanccedila no sentido proacuteprio (literal ou denotativo) da palavra enquanto os tropos satildeo aquela em que necessariamente haacute mudanccedila no

sentido proacuteprio Essa divisatildeo de certa forma equivale agrave corrente discriminaccedilatildeo entre figura de linguagem e tropo no entanto o termo ldquofigurardquo (figura) em Quintiliano natildeo corresponde exatamente ao ornamento sendo antes um termo mais amplo Como veremos adiante a hipeacuterbole transita entre esses dois polos pois ela pode funcionar tanto com palavras denotativas como com palavras conotativas ou metaforizadas Ao longo do texto o tratadista iraacute se referir agrave hipeacuterbole como tropo como ornamento e como figura sendo que este uacuteltimo termo sugere um escopo que abarca as duas outras definiccedilotildees Antes mesmo da passagem em que discute a hipeacuterbole haacute no quarto capiacute-tulo uma breve discussatildeo sobre o lugar da mesma se deve ser estudada junto com os ornamentos ou com os tropos

Sei que a hipeacuterbole tambeacutem pode ser considerada por al-guns como uma espeacutecie de amplificaccedilatildeo jaacute que a hipeacuter-bole pode criar esse efeito de aumentar ou diminuir mas como esse termo se enquadra na categoria dos tropos vou adiar essa discussatildeo Eu ateacute trataria dos tropos agora mas essa parte da teoria [acerca das palavras metaforizadas e natildeo das palavras em sentido proacuteprio] costuma ser separa-da pelos demais autores113

Nessa passagem temos natildeo apenas uma clara distinccedilatildeo entre ornamento e tropo como tambeacutem a alocaccedilatildeo da hipeacuterbole como tropo No entanto essa aparente classificaccedilatildeo diz mais sobre a ordenaccedilatildeo do estudo de cada assunto do que da tipologia da hipeacuterbole Pois como se vecirc no capiacutetulo 6 a hipeacuterbole seraacute nomeada e explicada como ornamento e como tropo a depender da espeacutecie ou subtipo que se emprega Aqui Quintiliano retira a hipeacuterbole do escopo dos ornamentos ao qual pertence o efeito da amplificaccedilatildeo pois de acordo com a tradiccedilatildeo retoacuterica a figura se enquadra no grupo dos tropos

A exposiccedilatildeo sobre a hipeacuterbole ocorre de fato na lista dos tropos que preenche

todo capiacutetulo 6 do livro 8 contendo doze tropos os considerados mais importantes e usuais nos discursos Os uacuteltimos dez paraacutegrafos do capiacutetulo satildeo reservados agrave hipeacuterbole relegada ao final da lista por ser uma figura de difiacutecil trato como se fosse um assunto mais ldquoavanccediladordquo no curso de retoacuterica Citamos aqui o trecho completo para que pos-samos em seguida discuti-lo

Deixei a hipeacuterbole para o final por seu aspecto mais ou-sado Eacute um exagero decoroso da verdade pode ser usada para aumentar ou para diminuir de diversas maneiras Podemos dizer mais do que o fato como quando Ciacutecero diz ldquovomitando emporcalhou seu colo e todo o tribunal com restos de comidardquo ou ldquoe os dois rochedos que ameaccedilam o ceacuteurdquo Tambeacutem podemos usar a figura por semelhanccedila

113 Inst 8429 ldquoScio posse videri quibusdam speciem amplificationis hyperbolen quoque nam et haec in utramque partem valet sed quia excedit hoc nomen in tropos differenda est Quos continuo subiungerem nisi esset a ceteris separata ratio dicendi [quae constat non propriis sed translatis]rdquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de BUTLER (1922) Todas as traduccedilotildees aqui apresentadas satildeo de minha autoria

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como em ldquoacreditarias que as Ciacuteclades nadam soltas no marrdquo Tambeacutem por comparaccedilatildeo como em ldquomais raacutepido que as asas do relacircmpagordquo Tambeacutem por insinuaccedilatildeo como em ldquomesmo que ela voasse sobre os cimos dos campos de espigas maduras ela natildeo esbarraria nas tenras espigasrdquo Tambeacutem por metaacutefora como em ldquovoasserdquo no exemplo acima A hipeacuterbole pode tambeacutem ser aumentada dentro de outra hipeacuterbole como quando Ciacutecero profere contra Antocircnio ldquoQual Cariacutebde foi tatildeo voraz Digo Cariacutebde Ca-riacutebde se existiu foi apenas uma fera marinha O Oceano me parece dificilmente poderia abocanhar tantas coisas tatildeo longiacutenquas tatildeo distantes tatildeo rapidamenterdquo Penso ter encontrado um admiraacutevel exemplo desta figura no livro de Hinos de Piacutendaro o maior entre os poetas liacutericos Pois quando ele discorre sobre o ataque de Heacutercules contra os meacuteropes os lendaacuterios habitantes da ilha de Coacutes diz que foi natildeo como o fogo o vento ou o mar e sim como o re-lacircmpago sendo aqueles insuficientes e este decoroso Isso Ciacutecero imitou nas Verrinas ldquoDepois de um longo interva-lo aparecia na Siciacutelia natildeo outro Dioniacutesio ou outro Faacutelaris ndash pois essa ilha jaacute teve outrora muitos crueacuteis tiranos ndash mas um novo monstro oriundo daquela antiga barbaacuterie que se diz ser usual naquela regiatildeo Pois penso que nem Cariacuteb-de nem Cila foram tatildeo nefastas aos navios quanto Verres nesse mesmo estreito mariacutetimordquo Tambeacutem natildeo poucos satildeo os tipos de hipeacuterbole com efeito de diminuiccedilatildeo ldquomal se sustinham nos ossosrdquo e em Ciacutecero naquele livro engraccedila-do ldquoVetatildeo chama de latifuacutendio o terreno que se mede com uma funda se bem que o terreno caberia ateacute na baladeira da fundardquo Mas desse tipo tambeacutem deve ser mantida certa medida Pois embora toda hipeacuterbole vaacute aleacutem do criacutevel natildeo se deve ir aleacutem do uso e nem por outra via que caia na ca-cozelia Desnecessaacuterio enumerar os vaacuterios viacutecios que nas-cem disso principalmente porque natildeo satildeo desconhecidos ou raros Basta advertir que a hipeacuterbole mente mas sem querer enganar Por isso deve-se considerar ainda mais ateacute onde eacute possiacutevel exagerar naquilo que natildeo seraacute acredi-tado Muito frequentemente essa figura conduz ao riso se esse efeito foi intencional considera-se urbanidade mas se natildeo considera-se estultiacutecia Mas tambeacutem estaacute presen-te no uso comum tanto pelos natildeo estudados como pelos ruacutesticos visto que eacute da natureza de todos o desejo de au-mentar ou diminuir as coisas e ningueacutem se contenta com a simples verdade mas como dissemos isso eacute perdoaacutevel A hipeacuterbole eacute uma virtude quando o assunto de que se fala extrapola o que eacute natural pois eacute permitido dizer de manei-ra exagerada aquilo que natildeo pode ser dito e eacute melhor que

o discurso diga mais do que diga menos

O tratamento da hipeacuterbole fica para o final na lista dos tropos justamente por-que pertence ao rol das figuras ldquomais ousadasrdquo (audacior ornatus) ao longo da exposi-ccedilatildeo fica patente que essa ldquoousadiardquo estaacute relacionada ao fato de a hipeacuterbole ser de difiacutecil uso sendo mais comum emprega-la do modo errado do que do modo certo (piget referre plurima hinc orta vitia cum praesertim minime sint ignota et obscura)

Haacute no entanto um problema conceitual logo na primeira frase da exposiccedilatildeo

Pois Quintiliano descreve aqui a hipeacuterbole como um ornamento (ornatus) e nisso de certa forma contradiz a passagem em 8429 em que afirma preferir tratar a hipeacuterbole como tropo Contudo ao longo do desenvolvimento da exposiccedilatildeo nota-se que a hipeacuter-bole pode tanto funcionar como ornamento no sentido de uma construccedilatildeo em que a palavra ou grupo de palavras natildeo perde seu sentido denotativo como tambeacutem como tropo que ocorre quando a palavra sofre mudanccedila em seu significado

Em seguida podemos encontrar uma definiccedilatildeo sinteacutetica a hipeacuterbole ldquoeacute um

exagero decoroso da verdaderdquo (decens veri superiectio) Esse exagero pode ser usado para criar o efeito de aumentar ou diminuir e nisso se coaduna com os ornamentos de amplificaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo tratados no quarto capiacutetulo Natildeo deixa de ser interessante o fato de que essa propriedade da hipeacuterbole eacute igualmente mencionada por outros trata-distas como o autor anocircnimo da Retoacuterica a Herecircnio e Ciacutecero em Toacutepicos Na Retoacuterica a Herecircnio 444 haacute menccedilatildeo da figura de elocuccedilatildeo superlatio definida como ldquoum dis-curso que vai aleacutem da verdade para aumentar ou diminuir alguma coisardquo115 Jaacute Ciacutecero em Toacutepicos 1045 diz que

Eacute tambeacutem permitido aos oradores e filoacutesofos que deem voz agraves coisas mudas que faccedilam os mortos retornar do in-ferno de forma que algo impossiacutevel possa ser dito ou para

114 Inst 8667-76 ldquoHyperbolen audacioris ornatus summo loco posui Est haec decens veri superiectio virtus eius ex diverso par augendi atque minuendi fit pluribus modis Aut enim plus facto dicimus ut Vomens frustis esculentis gre-mium suum et totum tribunal implevit et geminique minantur in caelum scopuli aut res per similitudinem attollimus Credas innare revulsas Cycladas aut per comparationem ut Fulminis ocior alis aut signis quasi quibusdam Illa vel intactae segetis per summa volaret gramina nec teneras cursu laesisset aristas vel translatione ut ipsum illud volaret Crescit interim hyperbole alia insuper addita ut Cicero in Antonium dicit Quae Charybdis tam vorax Charybdin dico Quae si fuit fuit animal unum Oceanus medius fidius vix videtur tot res tam dissipatas tam distantibus in locis positas tam cito absorbere potuisse Exquisitam vero figuram huius rei deprendisse apud principem lyricorum Pindarum videor in libro quem inscripsit umnouz Is namque Herculis impetum adversus Meropas qui in insula Coo dicuntur habitasse non igni nec ventis nec mari sed fulmini dicit similem fuisse ut illa minora hoc par esset Quod imitatus Cicero illa composuit in Verrem Versabatur in Sicilia longo intervallo alter non Dionysius ille nec Phalaris (tulit enim illa quondam insula multos et crudelis tyrannos) sed quoddam novum monstrum ex vetere illa inmanitate quae in isdem versata locis dicitur Non enim Charybdin tam infestam neque Scyllam navibus quam istum in eodem freto fuisse arbitror Nec pauciora sunt genera minuendi vix ossibus haerent et quod Cicero in quodam ioculari libelo fundum Vetto vocat quem possit mittere funda ni tamen exciderit qua cava funda patet Sed huius quoque rei servetur mensura quaedam Quamvis enim est omnis hyperbole ultra fidem non tamen esse debet ultra modum nec alia via magis in kakoxhlian itur Piget referre plurima hinc orta vitia cum praesertim minime sint ignota et obscura Monere satis est mentiri hyperbolen nec ita ut mendacio facere velit Quo magis intuendum est quo usque deceat extollere quod nobis non creditur Pervenit haec res frequentissime ad risum qui si captatus est urbanitatis sin aliter stultitiae nomen adsequitur Est autem in usu vulgo quoque et inter ineruditos et apud rusticos videlicet quia natura est omnibus augendi res vel minuendi cupiditas insita nec quisquam vero contentus est Sed ignoscitur quia non adfirmamus Tum est hyperbole virtus cum res ipsa de qua loquendum est naturalem modum excessit Conceditur enim amplius dicere quia dici quantum est non potest meliusque ultra quam citra stat oratiordquo

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aumentar ou para diminuir o que se chama hipeacuterbole e muitas outras impossibilidades 116

Quintiliano segue seus predecessores de perto nessa definiccedilatildeo ateacute mesmo nas escolhas lexicais Contudo o desenvolvimento da figura em suas diferentes nuances e categorias assume um caraacuteter consideravelmente diverso daquele apresentado pela Retoacuterica a Herecircnio em que se diz que a figura eacute empregada ou separadamente (se-paratim) ou por comparaccedilatildeo (comparatio) nesta uacuteltima haacute ainda a divisatildeo entre se-melhanccedila (similitudo) e superioridade (praestantia) Por sua vez o autor da Institutio expande a classificaccedilatildeo para seis espeacutecies sem estabelecer uma hierarquia ou organo-grama entre elas

A primeira espeacutecie eacute a hipeacuterbole simples em que haacute mero exagero dos fatos (plus facto) O primeiro exemplo citado eacute extraiacutedo das Filiacutepicas de Ciacutecero (22563) em que a hipeacuterbole consiste em dizer que o vocircmito de Marco Antocircnio sujou todo o tribu-nal trata-se obviamente de um exagero poreacutem somente uma expansatildeo ou aumento do fato em si que seria o vocircmito de Antocircnio sujando sua roupa e suas cercanias no maacuteximo O outro exemplo vem da Eneida de Virgiacutelio (1162-3) onde os dois montes da ilha onde aporta Eneacuteias apoacutes a tempestade se erguem altos em direccedilatildeo ao ceacuteu Trata-se novamente de um mero exagero para ressaltar a altura dos montes mas sem implicar que o leitor de fato acredite que a montanha atinja o ceacuteu

A segunda espeacutecie eacute a hipeacuterbole por semelhanccedila (similitudo) onde o item

eacute comparado como que em um siacutemile a algum elemento impossiacutevel ou exagerado O exemplo aqui eacute tambeacutem extraiacutedo da Eneida (8691-2) na descriccedilatildeo do escudo de Eneacuteias em que podem ser vistos os portentos da histoacuteria romana os navios beacutelicos de Otaacutevio Augusto e Marco Antocircnio avanccedilando uns contra os outros naquela que seria a batalha final da guerra civil satildeo comparados agraves ilhas Ciacuteclades nadando soltasccxxi O efeito causado eacute o aumento do impacto ou da proporccedilatildeo da imagem sem no entanto que se perca o verossimilhanccedila ndash os leitores natildeo satildeo levados a acreditar que os navios satildeo as ilhas mas que ldquose parecemrdquo ldquosatildeo comordquo as ilhas avanccedilando no mar umas contra as outras

A terceira espeacutecie se daacute por comparaccedilatildeo (comparatio) em que a palavra ou no-ccedilatildeo hiperbolizada eacute ldquomaisrdquo ldquomaiorrdquo ldquomenosrdquo ou ldquomenorrdquo que o elemento comparado sendo esse elemento comparado um iacutendice de grande exagero para mais ou para me-nos O exemplo eacute novamente da Eneida (5319) onde durante as competiccedilotildees atleacuteticas o jovem Niso eacute descrito como mais raacutepido que as asas do raio (fulminis ocior alis)ccxxii O elemento comparado carrega um sentido de magnitude as asas do raio jaacute satildeo em si mesmas algo extremamente veloz por meio do adjetivo comparativo temos que Niso eacute ainda mais veloz que o proacuteprio raio e daiacute resulta o efeito hiperboacutelico

115 ldquosuperlatio est oratio superans veritatem alicuius augendi minuendive causardquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de MARX (1923)

116ldquoIn hoc genere oratoribus et philosophis concessum est ut muta etiam loquantur ut mortui ab inferis excitentur ut aliquid quod fieri nullo modo possit augendae rei gratia dicatur aut minuendae quae ίπερβολί dicitur multa alia mirabi-liardquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de WILKINS (1911)

A quarta espeacutecie tem uma definiccedilatildeo natildeo de todo clara em que se lecirc ldquocomo se por uns certos sinaisrdquo (signis quasi quibusdam) no sentido de uma insinuaccedilatildeo uma indicaccedilatildeo Mais uma vez o exemplo eacute extraiacutedo da Eneida (7808-9) Trata-se da descri-ccedilatildeo da guerreira Camila que eacute tatildeo veloz que se corresse por cima de um campo repleto de espigas natildeo arrebentaria nenhuma dessas ou seja nem sequer tocaria as espigas de tatildeo raacutepida que iria passar sobre elas Como se natildeo bastasse as espigas estatildeo madu-ras a ponto da colheita (intactae) de forma que qualquer leve toque as quebraria (te-neras) Aqui temos natildeo um mero exagero ou uma semelhanccedila ou uma comparaccedilatildeo temos uma construccedilatildeo fantasiosa em que a velocidade de Camila eacute descrita em uma imagem que a associe ao voo de ave ou ao vento a algo que possa passar correndo pelas espigas sem derrubaacute-las sem no entanto que essas palavras sejam citadas como se a comparaccedilatildeo ocorresse em um niacutevel sutil ao modo de uma insinuaccedilatildeo

A quinta espeacutecie eacute a metaacutefora (translatio) que natildeo deixa de ser um tropo em

si O exemplo eacute retirado da frase utilizada para a espeacutecie anterior em que o verbo voar (volare) eacute empregado para descrever a raacutepida corrida da jovem guerreira O uso de ldquovoarrdquo no lugar de ldquocorrerrdquo nada mais eacute do que o processo comum da metaacutefora e natildeo deixa de ser relevante o fato de que Quintiliano natildeo esboccedila uma hierarquia ou ascen-decircncia de um tropo sobre o outro ou seja aqui pode-se entender tanto uma hipeacuterbole do tipo metafoacuterico como uma metaacutefora de sentido hiperbolizado sendo as duas coisas na exposiccedilatildeo da Institutio uma coisa soacute Tambeacutem eacute importante notar que ao expor duas espeacutecies a partir de um uacutenico exemplo literaacuterio Quintiliano potildee em evidecircncia que as espeacutecies da hipeacuterbole natildeo satildeo categorias estanques e bem delimitadas no sentido de cada uma abarcar um campo exclusivo que natildeo pode ser abarcado por outra Pois ainda que o uso de ldquovoarrdquo ao inveacutes de ldquocorrerrdquo se constitua uma metaacutefora natildeo eacute a me-taacutefora que faz com que a passagem seja uma hipeacuterbole por insinuaccedilatildeo esta soacute se cons-titui com a reuniatildeo dos demais elementos como o campo repleto de espigas maduras a corrida por cima das espigas e a leveza de correr sem tocar nas espigas com exceccedilatildeo do ldquovoarrdquo todas as demais palavras aparecem em seu sentido proacuteprio e eacute a composiccedilatildeo de todas elas que resulta no efeito hiperboacutelico

A sexta e uacuteltima espeacutecie eacute aquela que poderiacuteamos chamar ldquometa-hipeacuterbo-

lerdquo pois eacute uma hipeacuterbole dentro de outra (hyperbole alia insuper addita) O primeiro exemplo citado volta a ser de Ciacutecero novamente das Filiacutepicas (267) em que o orador vocifera contra Marco Antocircnio nem Cariacutebde nem mesmo o Oceano que tudo devora tecircm o poder de devorar tantas coisas quanto a cupidez de Antocircnio O primeiro niacutevel hiperboacutelico reside na comparaccedilatildeo com Cariacutebde (quae Charybdis tam vorax) compa-raccedilatildeo que logo eacute dissipada como insuficiente (Charybdin dico Quae si fuit fuit animal unum) de Cariacutebde se passa por metoniacutemia para o oceano cuja capacidade de devorar coisas eacute diminuiacuteda na comparaccedilatildeo com Antocircnio comparaccedilatildeo esta que se constitui como o segundo niacutevel hiperboacutelico da construccedilatildeo

O segundo exemplo eacute extraiacutedo de Piacutendaro que Quintiliano natildeo cita e sim para-

fraseia onde a comparaccedilatildeo de Heacutercules com o fogo o vento e o mar satildeo considerados insuficientes ndash primeiro niacutevel da hipeacuterbole ndash de forma que soacute se pode comparaacute-lo com o relacircmpago ndash segundo niacutevel da hipeacuterboleccxxiv

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Haacute ainda um terceiro exemplo da meta-hipeacuterbole tirado do segundo discurso contra Verres de Ciacutecero (5145) Aqui a primeira comparaccedilatildeo eacute com Dioniacutesio e Faacutelaris tiranos crueacuteis da Siciacutelia e a segunda com Cila e Cariacutebde todas elas no entanto satildeo insuficientes para descrever a torpeza de Verres Eacute de se notar que os trecircs exemplos para a meta-hipeacuterbole trabalham com o aspecto da insuficiecircncia da proacutepria hipeacuterbole que eacute em princiacutepio a figura capaz de expressar em exagero aquilo que natildeo pode ser expressado Quando o poeta ou o orador afirmam que nem mesmo a hipeacuterbole que expressa o impossiacutevel eacute capaz de expressar o efeito hiperboacutelico eacute levado a um niacutevel exponencial ultrapassando todos os limites do exagero Esse aspecto da insuficiecircncia da hipeacuterbole para criaccedilatildeo de um efeito ainda mais hiperboacutelico foi tambeacutem explorado por Oviacutedio em sua poesia de exiacutelioccxxv

Apoacutes percorrer essas seis espeacutecies Quintiliano passa ao tratamento das hipeacuter-boles para diminuiccedilatildeo que satildeo na verdade as mesmas espeacutecies da amplificaccedilatildeo poreacutem com sentido negativo Para tanto satildeo citados dois exemplos ldquomal se sustinham nos ossosrdquo (vix ossibus haerent) de Virgiacutelio Eacutecloga 3103 e de um livro perdido de Ciacutecero uma passagem que brinca com o tamanho de um terreno que pode ser medido com uma funda e mais do que isso eacute comparaacutevel ao buraco de uma funda explorando o jogo lexical entre fundum (terreno) e funda (funda pequena arma de arremesso) No primeiro caso temos uma hipeacuterbole plus facto enquanto no segundo caso uma meta--hipeacuterbole

Em seguida a exposiccedilatildeo deixa a tipologia de lado e passa a advertir sobre os perigos da figura Deve-se usar a hipeacuterbole de acordo com a tradiccedilatildeo o usual (non tamen esse debet ultra modum) e com muita cautela pois eacute muito faacutecil cair em ldquoca-cozeliardquo ccxxvi ou seja no emprego errado ou abusivo do recurso Ligada ao risco que a figura conteacutem estaacute sua caracteriacutestica de ser uma mentira que natildeo engana (mentiri hyperbolen nec ita ut mendacio facere velit) o que gera alguma dificuldade junto agrave verossimilhanccedila do discurso os leitores e ouvintes perceberatildeo que se trata de uma mentira ou de um exagero e por isso o efeito precisa ser muito bem calculado

O mais das vezes a hipeacuterbole carrega consigo tambeacutem um efeito de riso Caso esse riso seja intencional o emprego eacute sem duacutevida uma virtude (urbanitatis) contudo se o orador ou poeta elabora uma hipeacuterbole tentando ser seacuterio e ainda assim causa o riso natildeo passa de uma ingenuidade (stultitiae) Essa consideraccedilatildeo sobre o sentido risiacutevel da hipeacuterbole eacute inaugural em Quintiliano pelo menos em relaccedilatildeo aos tratadistas anteriores a que temos acesso hoje serve tambeacutem como ferramenta uacutetil para analisar as passagens hiperboacutelicas presentes na produccedilatildeo literaacuteria da eacutepoca em especial de Oviacutedio e dos autores neronianos cuja utilizaccedilatildeo recorrente da figura tem sido por ve-zes considerada afetaccedilatildeo ou decadecircncia poeacutetica

Quintiliano identifica a hipeacuterbole no linguajar comum das pessoas desprovidas de instruccedilatildeo formal (ineruditos et rusticos) e com isso sustenta a teoria ciceroniana de que as figuras de linguagem satildeo da natureza orgacircnica da liacutengua sendo corriquei-ramente usadas para os efeitos de comunicaccedilatildeo e expressividadeccxxvii A organicidade da hipeacuterbole estaacute na base de sua principal funccedilatildeo conseguir dizer aquilo que natildeo pode ser dito aquilo para o que natildeo existem palavras suficientes (conceditur enim amplius

dicere quantum est non potest) Pois na poesia no discurso oratoacuterio ou mesmo na fala comum do dia a dia eacute melhor exagerar do que dizer algo aqueacutem daquilo que se precisa expressar (melius ultra quam citra stat oratio) porque em geral dizer algo aqueacutem equivale a nada dizer no sentido de natildeo se efetivar uma comunicaccedilatildeo qualquer

Com isso Quintiliano encerra o tratamento da hipeacuterbole e dos tropos em ge-ral e conclui o oitavo livro da Institutio Ao longo dos dez paraacutegrafos que compotildeem a exposiccedilatildeo o tratadista discorre sobre a definiccedilatildeo as espeacutecies os efeitos a natureza e a funccedilatildeo da hipeacuterbole Fica em aberto ainda que de maneira intencional a classificaccedilatildeo tipoloacutegica seria a hipeacuterbole uma figura um ornamento ou um tropo No quarto capiacute-tulo do livro 8 como vimos Quintiliano diz que a hipeacuterbole pode ser tratada no acircmbito do ornamento mas que ele iraacute tratar no acircmbito dos tropos seguindo uma ordenaccedilatildeo tradicional No entanto ao comeccedilar a exposiccedilatildeo ele diz que a hipeacuterbole eacute um orna-mento e depois iraacute se referir a ela como figura ou como tropo A partir dos exemplos arrolados eacute possiacutevel entender que o tratadista entende a hipeacuterbole nas duas chaves de ornamento e de tropo pois ela aparece tanto em situaccedilotildees em que o sentido proacuteprio da palavra natildeo se modifica (o que se configura um ornamento) como em situaccedilotildees em que o sentido proacuteprio de fato de modifica (o que se configura um tropo) O termo ldquofi-gurardquo por sua vez aparece ao longo do trecho em sentido pouco especiacutefico indicando que pode compreender em sua semacircntica tanto o ornamento como o tropo

A hipeacuterbole eacute definida como o aumento elegante ou decoroso da verdade o que faz dela uma mentira revelada jaacute exposta em si mesma sem intenccedilatildeo de enganar Suas espeacutecies satildeo a simples a semelhanccedila a comparaccedilatildeo a insinuaccedilatildeo a metaacutefora e a meta-hipeacuterbole Seu efeito para aleacutem do embelezamento e do poder de persuasatildeo do discurso pode ser tambeacutem o riso A sua natureza eacute orgacircnica no sentido em que a figura nasce de maneira espontacircnea na fala corriqueira de qualquer indiviacuteduo e disso resulta sua funccedilatildeo que reside em expressar aquilo que natildeo pode ser expresso Por isso a hipeacuterbole consta entre as mais ousadas das figuras por meio do exagero ela quebra o limite do criacutevel e verdadeiro para alccedilaacute-lo arremessaacute-lo ao alto em um movimento em direccedilatildeo ao incriacutevel ao impossiacutevel ao intangiacutevel movimento esse que somente a linguagem eacute capaz de fazer

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Hino Homeacuterico 2a Demeacuteter

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Leonardo Antunes

Ao traduzir os Hinos Homeacutericos empreguei uma espeacutecie hexacircmetro dactiacutelico vernaacuteculo de que Carlos Alberto Nunes jaacute fizera uso em suas traduccedilotildees da Iliacuteada da Odisseia e tambeacutem da Eneida de Virgiacutelio 118

Trata-se de um verso dactiacutelico de 16 siacutelabas (seguindo o modelo de contagem de Castilho)119 com acentos na primeira quarta seacutetima deacutecima deacutecima terceira e (como natildeo poderia deixar de ser) deacutecima sexta siacutelaba120

Com isso ignora-se uma peculiaridade importante do verso grego a possi-bilidade de contraccedilatildeo das siacutelabas breves dos daacutectilos em uma siacutelaba longa Poreacutem a soluccedilatildeo oferece bastante espaccedilo para que se trabalhe o texto e possui uma sonoridade singular fazendo com que seja a meu ver consistente para a traduccedilatildeo de hexacircmetros dactiacutelicos empenhada em imitar seu metroritmo121

Como exemplo ilustrativo cito o verso 49 do primeiro canto da Iliacuteada na tra-duccedilatildeo de Nunes

Do ar co de pra ta co me ccedila a ir ra diar -se um clan gor pa vo ro so

Sendo uma traduccedilatildeo que busca ser poeacutetica minha preocupaccedilatildeo principal ao traduzir estes hinos para o Portuguecircs foi a de construir um texto eufocircnico buscando natildeo soacute uma cadecircncia agradaacutevel de sons mas tambeacutem vocaacutebulos que se encadeassem de modo natural dentro do ritmo escolhido

118 Oliva Neto e Nogueira (2013) possuem um excelente artigo que investiga usos anteriores ao de Nunes para o hexacircmetro dactiacutelico vernaacuteculo119 Antes do tratado de Castilho (1858) contavam-se as siacutelabas poeacuteticas do verso lusoacutefono agrave maneira espanhola tomando a terminaccedilatildeo paroxiacutetona (grave) como o modelo para nomeaacute-lo Assim o que hoje conhecemos como decassiacutelabo era antes conhecido como hendecassiacutelabo Apoacutes o trato de Castilho passou-se a usar a maneira francesa de contar tomando por modelo a terminaccedilatildeo oxiacutetona (aguda) de um verso para nomeaacute-lo120 Por vezes o leitor sentiraacute necessidade de forccedilar algum desses acentos em especial o primeiro121 Outras soluccedilotildees meacutetricas incluem (mas natildeo se resumem a) o verso composto por duas redondilhas maiores com que Andreacute Malta (2000 e 2006) traduziu partes da Iliacuteada o hexacircmetro anapeacutestico de Jair Gramacho em sua traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos (2003) o hexacircmetro dactiacutelico com possibilidade de uma siacutelaba aacutetona inicial empregado por Eacuterico No-gueira em sua traduccedilatildeo dos Idiacutelios de Teoacutecrito (2012) o pentacircmetrohexacircmetro dactiacutelico-trocaico proposto por Marcelo Taacutepia em seu estudo de possibilidades riacutetmicas para a traduccedilatildeo de Homero (2012) e tambeacutem empregado apenas como hexacircmetro por Guilherme Gontijo Flores em suas traduccedilotildees das Odes de Horaacutecio (2014) e por Bruno Palavro em sua tra-duccedilatildeo da Teogonia de Hesiacuteodo (2019) o dodecassiacutelabo usado por Haroldo de Campos e por Trajano Vieira ao traduzirem respectivamente a Iliacuteada e a Odisseia e last but not least o decassiacutelabo com que Manuel Odorico Mendes inaugurou no seacuteculo XIX a tradiccedilatildeo de traduccedilotildees de Homero em liacutengua portuguesa aleacutem de tambeacutem ter traduzido a Eneida de Virgiacutelio da mesma forma

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Canto Demeacuteter de belos cabelos deidade solenejunto da filha de esguios tornozelos a quem Edoneuarrebatou por presente de Zeus de ampla vista troantelonge Demeacuteter de espada dourada de fruto brilhantequando brincava entre as oceaninas de bustos profundosde colher flores de rosa accedilafratildeo e violetas bonitassobre um gramado macio e de iacuteris bem como jacintoe de narciso ndash num dolo de Gaia agrave garota florentedentro do plano de Zeus alegrando o que tudo recebe ndashmaravilhoso e brilhante um espanto de ver para todospara os eternos divinos e para os humanos mortaisDele a partir das raiacutezes cem brotos de flor despontavamDuacutelcido odor exalava tatildeo doce que tudo do ceacuteuagrave vasta terra e ateacute a onda salina do mar lhe sorriuMaravilhada buscou alcanccedilaacute-lo com ambas as matildeosbelo ornamento Poreacutem a vastiacutevia terra se abriujunto agrave planiacutecie de Nisa e o que tudo reteacutem irrompeucom montaria imortal o Cronida de muacuteltiplos nomesTendo-a tomado contraacuterio agrave vontade ao palaacutecio douradofoi-se com ela em lamentos Gritava com voz incessantesuacuteplica ao pai que de Crono nasceu o mais alto e mais nobreNenhum dos deuses eternos nenhum dos humanos mortaispocircde escutar sua voz nem olivas de frutos brilhantesmas a donzela nascida de Perses de tenro pensarHeacutecate do diadema esplendente da gruta a escutoue Heacutelios tambeacutem o senhor que de Hipeacuterion nasceu reluzenteouve o pedido da moccedila ao pai Crocircnida mas apartadodos demais deuses estava em seu templo onde muitos suplicama receber oferendas venustas dos homens mortaisContra a vontade a levava (seguindo um alvitre de Zeuspai da donzela e irmatildeo do que tudo reteacutem e recebe)com imortal montaria o Cronida de muacuteltiplos nomesQuanto ainda pocircde mirar para terra e pro ceacuteu estreladoe para o mar de correntes possantes repleto de peixese para o brilho do sol ela teve esperanccedila de vera matildee zelosa e a famiacutelia dos deuses eternossurgentestanto a esperanccedila acalmava-lhe a mente sobeja na dor e ressoaram os cumes dos montes e o fundo do marjunto da voz imortal escutou-lhe sua matildee senhorilDor aguccedilada assaltou-lhe no seu coraccedilatildeo Das madeixasambrosiais a mantilha rasgou com as matildeos em pedaccedilosde ambos os ombros lanccedilou para o chatildeo o seu manto ciacircnicoe disparou como um paacutessaro ao longo da terra e das aacuteguasa procurar Mas dizer a verdade natildeo houve ningueacutemdentre os divinos nem dentre os humanos mortais que oquisesse nem dentre as aves ndash nenhuma lhe foi mensageiro ve-raz

Por nove dias depois pela terra a senhora Demeacuteterfoi-se vagando com tochas acesas levadas agraves matildeosNem de ambrosia jamais nem de neacutectar deliacutecia potaacutevelse alimentou sofredora nem aacutegua em seu corpo aspergiuMas quando a deacutecima aurora chegou ateacute ela brilhanteHeacutecate veio encontraacute-la trazendo luzeiros nas matildeose anunciando-lhe entatildeo proferiu a palavra e falouldquoDona Demeacuteter que guia as sazotildees donataacuteria de luzquem dentre os deuses celestes ou dentre os humanos mortaisrapta Perseacutefone e causa-te dor para o teu coraccedilatildeoVoz eu ouvi mas natildeo pude contudo enxergar com os olhosquem o seria De pronto professo-te tudo sem errordquoHeacutecate assim lhe falou mas natildeo houve resposta em discursovinda da filha de Reia que subitamente com elavai-se com tochas acesas brilhando portadas nas matildeosA Heacutelios chegaram vigia dos deuses bem como dos homensFrente aos cavalos puseram-se e a deusa entre as deusas lhedisseldquoHeacutelios ao menos respeita-me deusa que sou se jamaisminhas palavras ou feitos ao teu coraccedilatildeo te aqueceramMoccedila eu gerei um rebento tatildeo doce esplendente na formaDela pelo eacuteter infeacutertil eu ouvi um gemido adensadocomo sofresse poreacutem com os olhos natildeo pude miraacute-laTu todavia por tudo que existe na terra e no mardo alto do eacuteter divino perscrutas usando teus raiosDiz-me sem falha o querido rebento ndash se acaso tu viste ndashquem apartado de mim agarrando em forccedilosa violecircnciafoi que o levou se um dos deuses ou um dos humanos mortaisrdquoDisse-lhe assim Em resposta o nascido de Hipeacuterion falou-lheldquoFilha de Reia de belos cabelos senhora Demeacutetertu saberaacutes pois venero-te muito e de ti me apiedosocircfrega pela menina de esguio tornozelo natildeo outrofoi causador dentre eternos senatildeo o nubiacutecogo Zeusque a concedeu para Hades chamaacute-la de esposa formosadeu-a ao irmatildeo que por vez para o fundo do breu nevoentorapta-a e a carrega em seu carro por mais que ela muito gritasseCessa contudo divina esse ingente gemido Natildeo devester tanta coacutelera em vatildeo dessa forma Natildeo eacute um improacutepriogenro entre eternos aquele Edoneu o de muacuteltiplos nomeseacute teu irmatildeo foi gerado em conjunto tambeacutem ndash quanto agraves honrasque ele ganhou quando em trecircs a partilha foi feita de iniacutecio ndashentre os que vivem consigo seu lote eacute ser rei sobre todosrdquoTendo assim dito chamou os cavalos Por sob ameaccedilaslogo carregam o carro veloz quais aliacutegeras avesNela vem dor mais terriacutevel e infame no seu coraccedilatildeoPelo Cronida de nuvens escuras irada a tal pontoela apartou-se da grege divina e do Olimpo elevado

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indo agraves cidades dos homens e para seus fartos cultivosbranda em beleza por longo interstiacutecio Ningueacutem dos varotildeesa distinguiu quando a viu nem das damas de funda cinturaantes de que ela chegasse na casa do experto Celeuque era senhor nesse tempo de Elecircusis fragrante em incensoCom coraccedilatildeo dolorido sentou-se por perto da estradajunto do poccedilo da virgem de que os cidadatildeos aduavamnum sombreado debaixo de onde cresciam olivasassemelhada a uma velha vetusta que da gestaccedilatildeojaacute se gastou e dos dotes da amante de laacuteurea Afrodite da qualidade das amas de reis que ministram as leise governantas de infantes ao longo de ecoantes alcovasViram-na as filhas do filho nascido de Elecircusis Celeuvindo por aacutegua de faacutecil extraccedilatildeo que depois levariamdentro de jarras de bronze a caminho da casa paternaQuatro elas eram quais deusas ornadas na flor juvenilbela Demoacute e Caliacutedice junto a Clesiacutedice e aindaCalitoeacute que entre todas as outras nascera primeiroNatildeo a souberam os deuses satildeo aacuterduos de ver por mortaisPondo-se proacuteximas dela disseram palavras aladasldquoQuem eacutes e donde anciatilde que nasceste entre os homensde outroraQual a razatildeo de partires da poacutelis e nem das moradaste aproximares Aqui haacute mulheres nas casas vultosasvelhas assim como tu bem como outras mais jovens tambeacutemAmbas teriam a ti por amiga em palavras e em atosrdquoIsso disseram Entatildeo respondeu a senhora das deusasldquoFilhas queridas ndash quem quer que voacutes fordes em meio agravesmulheres ndasheu vos sauacutedo e vos digo ademais que natildeo eacute vergonhosopronunciardes discursos dizendo palavras verazesEu sou chamada Dosoacute Deu-me o nome a senhora maternaVim logo agora de Creta no dorso comprido do marmesmo que natildeo o quisesse forccedilada em forccedilosa violecircnciaHomens ladinos levaram-me embora Depois em seguidaforam com raacutepida nau para Toacuterico Laacute as mulheresdesembarcaram em grupos seguidas por elese preparavam banquete do lado da proa da nauMas coraccedilatildeo natildeo me aprouve o repasto gentil para menteDesembarcando em segredo atraveacutes da melacircnica terraeu escapei dos meus mestres soberbos que enfim natildeo lucrassemcom minha honra por me carregarem agrave venda no marVim para caacute dessa forma uma errante Tampouco sabiaqual era a terra e quem eram aqueles que aqui satildeo nascidosQue vos concedam contudo os que fazem morada no Olimpotodos varotildees que vos sejam esposos e filhos de prolecomo desejam os pais mas de mim tende pena meninas

Isso me estabelecei claramente que assim eu o saibafilhas queridas zelosas de quem eacute a casa a que chegoDe qual varatildeo ou senhora Que assim eu os sirva zelosanos afazeres cabiacuteveis a velhas mulheres fazeremPara um bebecirc neonato levado em meus braccedilos dobradosbelo cuidado daria e tambeacutem manteria o palaacutecioesticaria os lenccediloacuteis no interior das alcovas bem-feitasdo meu senhor e os trabalhos iria ensinar agraves mulheresrdquoDisse a deidade Depois respondeu a virgiacutenea donzeladita Caliacutedice que era a mais bela entre as filhas CeleidasldquoMatildee os presentes dos deuses por mais que soframos agrave forccedilanoacutes suportamos humanos pois satildeo bem mais fortes que noacutesVou te dizer claramente isso tudo e informar-te por nomequais os varotildees a quem haacute um enorme poder nesta terraeles que tecircm o respeito do povo e a mantilha da poacutelissalvam por meio do alvitre e da sua justiccedila escorreitaambos Triptoacutelemo de resoluta vontade e Dioacuteclese Polixeno tambeacutem junto do irreprovaacutevel Eumolpojunto de Doacutelico bem como de nosso pai varonilHaacute para todos esposas que cuidam do lar nos palaacuteciosDentre elas todas natildeo haacute quem iria agrave primeira das vistasdesestimando-te a forma da casa por isso expulsar-temas sim iratildeo receber-te pois eacutes claramente deiformeSe tu quiseres espera que iremos agrave casa paternapara informar nossa matildee Metaneira de funda cinturadesses assuntos de todos a fim de que sejas chamadaagrave nossa casa natildeo tendo que uma outra morada buscarEla possui um soacute filho tardio no palaacutecio bem-feitotardinascido mas muito bem-vindo apoacutes muacuteltiplas precesSe tu puderes criaacute-lo ateacute que ele se torne um rapazmui facilmente qualquer das femiacuteneas mulheres ao ver-tete invejaria satildeo daacutedivas tais que em criaacute-lo teriasrdquoDisse-lhe assim Assentiu por sua vez com o rosto Luzentesbaldes entatildeo tendo enchido com aacutegua carregam briosasLogo chegaram no enorme palaacutecio paterno e contaramraacutepido agrave matildee o que viram e ouviram Mais raacutepido aindavindo ordenou que a chamassem a fim de ter paga infinitaTal como cervos ou mesmo bezerros que na primaveravatildeo saltitando num prado aplacado o desejo com pastoelas assim segurando nas dobras das vestes amaacuteveisiam correndo por via deserta Ao redor os cabelossobre seus ombros fluiacuteam semelhos agrave flor do accedilafratildeoProacuteximo agrave estrada encontraram a deusa esplendente ondea haviamantes deixado Depois para a casa do pai estimadoforam agrave frente Detraacutes com o seu coraccedilatildeo doloridoela seguia com rosto abaixado Ao redor um vestido

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cor do oceano envolvia-lhe os peacutes delicados de deusaLogo a mansatildeo de Celeu alcanccedilaram aluno de ZeusForam adentro do poacutertico ateacute onde a matildee senhoriljunto agrave coluna do teto de firme feitura sentavacom um bebecirc neonato no colo Acorreram-lhe as filhasMas quando pocircs os seus peacutes na soleira alcanccedilou o batentecom a cabeccedila e um divino esplendor preencheu os umbraisPor reverecircncia respeito e esverdeado temor foi tomadaDe seu assento se ergueu e ordenou que ela ali se sentasseMas natildeo Demeacuteter que guia as sazotildees donataacuteria de luznatildeo desejou se assentar sobre o trono de aspecto brilhantemas se mantinha silente com seus belos olhos baixadosantes de Iambe sabendo cuidados dispocircr para elaoutra cadeira do lado e cobri-la com peles argecircnteasLaacute se sentando mantinha seguro nas matildeos o seu veacuteuPor muito tempo sofrendo silente quedou sobre o bancoNem por palavras saudava as pessoas tampouco por gestosmas sem risada mantendo o jejum sem comer nem beberela minguava agrave saudade da filha de funda cinturaantes de Iambe sabendo cuidados por meio de troccedilasmuitas fazendo piadas mudar a solene senhorapara se rir e sorrir e ter acircnimo mais benfazejo(Ela mais tarde tambeacutem num porvir agradou seus humores)Oferecia-lhe entatildeo Metaneira uma taccedila que encheracom vinho doce qual mel mas natildeo quis Disse improacuteprio tomarvinho vermelho Mandava que dessem cevada com aacuteguamistas a fim de tomar com um toque gentil de poejoFeita a poccedilatildeo ofertou-a conforme pedira agrave deidadeTendo a aceitado por sacro costume Demeacuteter excelsa Principiou Metaneira de bela cintura a falar-lheldquoSalve mulher Eu natildeo temo que vinda de maus genitoressejas mas sim de excelentes pois vecirc-se respeito em teus olhose gratidatildeo como se descendesses de reis julgadoresMas os presentes dos deuses por mais que soframos agrave forccedilanoacutes suportamos humanos pois tem-se o pescoccedilo no jugoMas como aqui tu chegaste teraacutes tudo quanto eu puder cria meu filho nascido tardio para aleacutem da esperanccedilaeste que os deuses mandaram que eacute muito querido por mimSe tu puderes criaacute-lo ateacute que ele se torne um rapazmui facilmente qualquer das femiacuteneas mulheres ao ver-tete invejaria satildeo daacutedivas tais que em criaacute-lo teriasrdquoPor sua vez proferiu-lhe Demeacuteter de bela coroaldquoEu te sauacutedo mulher Que os divinos te deem benessesReceberei de bom grado o teu filho conforme me ordenasHei de criaacute-lo e jamais por descuido da sua babaacutehaacute de um feiticcedilo afligi-lo nem mesmo lsquoo que ceifa por baixorsquopois sei de antiacutedoto muito mais forte que lsquoo ceifa-madeirarsquo

sei de excelente resguardo a feiticcedilo de muacuteltiplas doresrdquoTendo dessarte falado aceitou-o no peito olorosocom suas matildeos imortais Em seu iacutentimo alegra-se a matildeeDessa maneira passou a criar no palaacutecio o brilhantefilho do arguto Celeu Demofonte que de Metaneirabem-cinturada nascera Cresceu como um par dos divinospatildeo natildeo comia nem mesmo sugava do leite da matildeevisto que ao longo do dia Demeacuteter de bela coroacom ambrosia o ungia qual fosse rebento de um deustendo-o bem junto do peito e insuflando-o com sopro adoccediladomas pela noite encobria-o em chamas qual fosse um ticcedilatildeosem que seus pais o soubessem Crescia-lhes como um prodiacutegiotanto precoce cresceu parecia ser um dos divinosE com efeito o teria tornado imortal sem velhicecaso com insensatez Metaneira de bela cinturaespionando de noite a partir de seu quarto olorosonatildeo os notasse Mas ela gritou e espalmou suas coxasapavorada por conta do filho e afligida em seu peitoe lamentando-se entatildeo proferiu as palavras aladasldquoMeu Demofonte a estrangeira com chamas ingentes te encobree me coloca em gemidos e preocupaccedilotildees lutuosasrdquoDisse dessarte em lamento e a divina entre as deusas a ouviuColerizada com ela Demeacuteter de bela coroatendo tirado do fogo com matildeos imortais o meninoque ela gerara na casa jaacute quando natildeo tinha esperanccedilalanccedila-o no chatildeo irritada no seu coraccedilatildeo sobremodoe ao mesmo tempo maldiz Metaneira de bela cinturaldquoNeacutescios humanos Ineptos em reconhecer a medidade quanto bem sobreveacutem para voacutes tanto quanto do malTu pela tua insciecircncia causaste incuraacutevel feridaSaiba-se a jura dos deuses pela aacutegua implacaacutevel do Estigepois imortal e tambeacutem sem velhice por todos os diastua crianccedila eu teria tornado com honra indeleacutevelOra natildeo mais poderaacute se evadir do destino e da morteHonra indeleacutevel lhe iraacute persistir para sempre contudopor ter subido em meu colo e dormido amparado em meusbraccedilosAo lhe chegarem as Horas e os anos findando seu cursovede que os filhos de Elecircusis com guerras e gritos terriacuteveisvatildeo engajar-se uns aos outros constantes por todos os diasEu sou Demeacuteter quem honras deteacutem geratriz dos maioresjuacutebilos para imortais e mortais e tambeacutem benefiacuteciosVamos agora Que um templo bem grande e um altar logo abaixoos cidadatildeos sob a poacutelis e as altas muralhas me faccedilamsobre o Caliacutecoro na cumeeira de um monte elevadoRitos secretos eu mesma vos ensinarei que depoisao perfazecirc-los sem maacutecula ireis alegrar meu sentidordquo

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Tendo assim dito a deidade alterou sua forma e estaturaposta a velhice de lado Ao redor exalava belezadesde os vestidos fragrantes um amabiliacutessimo olorse dissipava de longe luzia da derme imortalbrilho da deusa dourados cabelos cresciam-lhe aos ombroscom o claratildeo preencheu-se a morada robusta qual raioFoi-se em seguida da casa Jaacute dela os joelhos vacilampermaneceu muito tempo sem voz nem sequer do meninotardinascido lembrou de tomaacute-lo de volta do chatildeoSuas irmatildes todavia escutando-lhe a voz lamentaacutevellogo saltaram dos leitos cobertos entatildeo uma delastendo-o tomado nas matildeos o coloca de junto do peitooutra reacende a lareira e a terceira com peacutes delicadoslogo se apressa em trazer sua matildee do aposento fragranteAglomeradas em torno lavavam-no enquanto choravadando-lhe muito carinho mas seu coraccedilatildeo natildeo calmavaeram piores as aias e as amas que agora o guardavamElas entatildeo toda a noite aplacavam a deusa famosatrecircmulas pelo terror No momento em que a Aurora surgiuao poderoso Celeu infaliacuteveis palavras disseramcomo mandara a deidade de bela coroa DemeacuteterEle depois de chamar para a aacutegora o povo abundantemanda que um templo opulento a Demeacuteter de belos cabelosfaccedilam tambeacutem um altar sobre o cume de um monte elevadoEles de pronto escutaram e lhe obedeccedilaram aos ditosComo mandara fizeram e o filho cresceu como um numeQuando por fim terminaram e deram por feito o trabalhoforam-se ao lar cada qual para o seu mas a loura Demeacuteterlaacute se sentando apartada de todos os outros ditososinda minguava agrave saudade da filha de funda cinturaO mais terriacutevel dos anos na terra de farto sustentofez para os homens um ano de catildeo As sementes a terranatildeo germinava ocultava-as a bem-coroada DemeacuteterMuitos arados recurvos os bois arrastavam em vatildeoMuita cevada brilhante no chatildeo se jogou sem sucessoEla teria arrasado a linhagem dos homens mortaispela estiagem terriacutevel privando das honras famosase sacrifiacutecios aqueles que fazem morada no OlimpoZeus natildeo houvesse notado e no espiacuterito entatildeo compreendidoIacuteris primeiro aurialada enviou para que ela chamassea de adoraacutevel figura Demeacuteter de belos cabelosDisse Ela ao mando de Zeus do Cronida de nuvens escurasobedeceu e cruzou o entremeio com raacutepidos peacutesLogo chegou agrave cidade eleusina fragrante de incensoonde no templo encontrou com vestido soturno Demeacutetere lhe falou proferindo as seguintes palavras aladasldquoZeus pai te chama Demeacuteter o saacutebio em saberes perenes

para que vaacutes agrave famiacutelia dos deuses eternossurgentesVai E que natildeo se descumpra a palavra de Zeus que lhe digordquoDisse-lhe assim suplicante mas seu coraccedilatildeo natildeo consenteMais uma vez o pai manda-lhe os deuses ditosos e eternostodos um deus atraacutes de outro Partindo ordenados assimeles chamavam-na e davam presentes venustos e vaacuteriose honras tambeacutem tantas quantas pudesse querer entre eternosMas ningueacutem pocircde suadir as entranhas nem o pensamentodela iracunda no seu coraccedilatildeo rechaccedilava os discursospois prometera jamais ascender para o Olimpo fragrantenem enviar para cima de dentro da terra a colheitaantes de ver com seus olhos a filha de belo semblanteZeus que ressoa profundo o de vasta visatildeo quando o ouviufez com que o auricetrado argicida para o Eacuterebo fosseque ele falando de perto palavras suaves com Hadesexconduzisse Perseacutefone augusta do breu nevoentorumo da luz junto aos deuses a fim de que entatildeo sua matildeeao contemplaacute-la com seus proacuteprios olhos cessasse o rancorHermes natildeo desacatou mas de suacutebito ao fundo da terraele partiu apressado baixando do assento do OlimpoLogo encontrou o senhor da morada no seu interiorem um sofaacute reclinado com a pudorosa consortemuito contraacuterio agrave vontade saudosa da matildee que agrave distacircnciaplanos terriacuteveis pensava por atos dos deuses ditososPondo-se proacuteximo dele falou-lhe o potente ArgicidaldquoHades de negros cabelos reinante entre os jaacute perecidosZeus pai mandou-me guiar para fora Perseacutefone augustado Eacuterebo para com eles a fim de que a matildee vendo a moccedilacom olhos proacuteprios refreie o rancor e sua coacutelera horriacutevelcontra os eternos pois ela intenciona um ingente trabalhoarruinar a impotente famiacutelia dos homens terrestresao ocultar as sementes na terra privando das honrasos imortais Ela tem um terriacutevel rancor nem aos deusesjunta-se mas no interior de seu templo fragrante apartadasenta-se enquanto deteacutem a cidade rochosa de ElecircusisrdquoDisse dessarte Sorriu-lhe Edoneu que entre os iacutenferos reinacom os sobrolhos mas natildeo descumpriu o comando de Zeus reipois de imediato ordenou a Perseacutefone percipienteldquoVai-te Perseacutefone para tua matildee de vestido soturnotendo uma forccedila gentil em teu peito e no teu coraccedilatildeonem tenhas oacutedio excessivo demais do que aos outros por mimNatildeo te serei um consorte de nada indevido entre eternosvisto que sou mesmo irmatildeo de Zeus pai Quando aqui teencontrarestu seraacutes mestre de todos de quantos viverem e andareme honras ainda teraacutes entre eternos maiores que todasDentre os injustos teraacute pagamento por todos os dias

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quem natildeo fizer sacrifiacutecios a fim de agradar teu poderfeitos sem maacutecula todos cumpridos com dons adequadosrdquoDisse dessarte Sorriu-lhe Perseacutefone muito prudenterapidamente se ergueu de alegria mas ele contudodoces sementes lhe deu de romatilde que comesse em segredosendo cuidoso que natildeo demorasse por todos os diasjunto de novo a Demeacuteter augusta de peplo soturnoOs seus cavalos agrave frente do carro dourado no jugopocircs imortais Edoneu que exercita o comando de muitosEla subiu para o carro e a seu lado o potente Argicidatendo tomado nas matildeos tanto as reacutedeas quanto o chicotefoi-se atraveacutes do palaacutecio e partiu seus cavalos voaramAtravessaram velozes estradas compridas Nem marnem mesmo as aacuteguas dos rios nem os vales gramados dosmontesnem as montanhas puderam deter seus cavalos eternosque sobre todos singraram os ares profundos correndoFecirc-los parar onde estava Demeacuteter de bela coroalogo de frente do templo fragrante Quando ela a notoufoi-se correndo qual mecircnade ao longo de um monte silvosoJaacute por seu turno Perseacutefone ao ver os beliacutessimos olhosde sua matildee afastou-se de carro e cavalos num saltopara alcanccedilaacute-la e lanccedilou-se-lhe em torno ao pescoccediloabraccedilando-aMas ao reter sua filha querida no entorno das matildeosseu coraccedilatildeo desconfia de um dolo e recua em terrorLogo cessando o carinho em discurso lhe fez a perguntaldquoFilha encontrado-se ao fundo da terra tu natildeo me comestede um alimento Relata e natildeo guardes que as duas saibamospara que vinda da tua estadia com Hades horriacutevelpossas viver junto a mim e ao Cronida de nuvens escurastendo honrarias tambeacutem entre todos os outros eternosMas se comeste de novo voltando ao profundo da terratu moraraacutes por um terccedilo das Horas a cada um dos anose as outras duas ao lado de mim e dos outros eternosMas quando a terra com flores fragrantes e primaverisde toda sorte florir novamente do breu nevoentotu voltaraacutes grande espanto aos divinos e aos homens mortaisMas dize como levou para baixo do breu nevoentoe com que dolo raptou-te o potente que tudo reteacutemrdquoDisse-lhe entatildeo em resposta Perseacutefone muito venustaldquoEu para ti minha matildee vou dizer por completo a verdadeQuando a mim Hermes chegou mensageiro veloz que traz sortepara agrave presenccedila do Crocircnida pai e dos outros celestesdo Eacuterebo me retirar que me vendo com teus proacuteprios olhosapaziguasses rancor aos eternos e coacutelera horriacuteveleu de imediato saltei de alegria Mas ele em segredo

doces sementes me deu de romatilde com que me alimentassee a contragosto por meio de forccedila forccedilou-me a comecirc-lasComo levou-me por soacutelida astuacutecia do filho de Cronomeu proacuteprio pai carregando-me para o profundo da terraeu contarei e direi sobre tudo conforme me pedesTodas de fato brincaacutevamos sobre um gramado amoraacutevelFano e Leucipo assim como Electra e tambeacutem Ianteacutejunto a Melite e Iaqueacute com Rodeia e Calirroeacutecom Meloboacutesis e Tique e com Ociroeacute rosto-em-flore com Criseida Ianeira Acaste e tambeacutem Admetee Rodopeacute e Plutoacute e tambeacutem a amoraacutevel Calipsoe com Estige e Uracircnia e com Galaxaure adoraacuteveljunto de Palas guerreira e com Aacutertemis atiradoratodas brincaacutevamos de colher flores amaacuteveis nas matildeosentre o accedilafratildeo delicado e entre a iacuteris jacinto tambeacutembem como brotos de rosas e liacuterios espanto de vere de narciso que a terra gerava semelho a accedilafratildeoTudo eu colhia feliz mas a terra por baixo se abriudela saltou o senhor poderoso que tudo reteacutemque me levou para baixo da terra em seu carro douradomuito contraacuterio agrave vontade Na voz eu gritei estridoresEssa por mais que me doa te digo ser toda a verdaderdquoElas concordes em acircnimo entatildeo pelo resto do diamuito no seu coraccedilatildeo e em seu acircnimo se acalentaramcom calorosos abraccedilos cessando-se a dor em seu acircnimoMuita alegria uma a outra ofertava e tambeacutem recebiaAproximou-se-lhes Heacutecate do diadema esplendenteMuito abraccedilou a menina sagrada nascida a DemeacuteterDesde esse tempo a senhora lhe foi atendente e ministraZeus de amplo olhar que ressoa profundo enviou-lhes de nuacutencioReia de belos cabelos a fim de que agrave grei dos divinosela levasse Demeacuteter de escuro vestido Honrariaslhe prometeu quais pudesse querer entre os deuses eternose concordou que sua filha demore por cada um dos anosuma das triacuteplices partes abaixo do breu nevoentoe as outras duas ao lado da matildee e dos outros eternosDisse e a deidade natildeo desacatou as mensagens de ZeusRapidamente lanccedilou-se voando dos picos do OlimpoLogo chegou ateacute Raacuterio nutriz a mais rica das terrasantes poreacutem nesse tempo natildeo era nutriz mas inertetoda sem folhas A branca cevada encontrava-se ocultaplano que foi de Demeacuteter de esguios tornozelos Contudologo se iria cobrir com espigas compridas de trigoao florescer da estaccedilatildeo e os opiacuteparos sulcos da terralogo estariam repletos de gratildeos e de feixes de espigasLaacute sobreveio primeiro partindo do eacuteter infeacutertilMutuamente se viram contentes com acircnimo alegre

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Reia com seu diadema esplendente lhe disse o seguinteldquoVamos filhinha que Zeus de amplo olhar que ressoa profundochama-te junto da grei dos divinos Tambeacutem honrariaslhe prometeu quais puderes querer entre os deuses eternose concordou que tua filha demore por cada um dos anosuma das triacuteplices partes abaixo do breu nevoentoe as outras duas ao lado da matildee e dos outros eternosDisse cumprir-se dessarte e assentiu com a sua cabeccedilaVem minha filha Obedece o que digo De modo excessivonatildeo te enfureccedilas mais com o Cronida de nuvens escurasFaz com que cresccedilam os frutos nutrizes de pronto aos humanosrdquoDisse e Demeacuteter de bela coroa natildeo desobedeceLogo ela fez despontarem os frutos nos feacuterteis terrenosToda com folhas e flores tambeacutem a vastiacutessima terrase carregou Em seguida indo aos reis que ministram as leisela mostrou a Triptoacutelemo e para Dioacutecles ginetee para a forccedila de Eumolpo e a Celeu comandante de povosa liturgia dos ritos e a todos tambeacutem os misteacuteriosMas para forccedila de Eumolpo e a Celeu e tambeacutem a Dioacuteclesdeu ritos sacros que natildeo se transgridem nem mesmo se aprendemnem se proferem pois grande respeito aos divinos os calaProacutespero eacute aquele que os viu entre os homens que vivem na terramas incompleto quem natildeo participa dos ritos nem nuncatem bom destino morrendo debaixo do breu nevoentoLogo depois quando tudo perfez a divina entre os deusasfoi-se a caminho do Olimpo ao encontro dos outros divinosonde demoram do lado de Zeus que se apraz com trovotildeese junto agrave augusta e sagrada Muitiacutessimo proacutespero eacute quemeles soliacutecitos amam dos homens que vivem na terraLogo lhe enviam ao fogo do lar no seu grande palaacutecioPluto que aos homens mortais oferece abundacircncia e riquezaMas vamos laacute portadora da terra fragrante eleusinaParos marinha e a rochosa cidade de Antrona tambeacutemdona que cedes a luz que conduz as sazotildees Deo rainhatu e tambeacutem tua filha Perseacutefone muito venustapela canccedilatildeo meu sustento agradaacutevel soliacutecitas mandaOra de ti eu irei me lembrar e de uma outra canccedilatildeo122

122Δήμητρ᾽ ἠύκομον σεμνὴν θεόν ἄρχομ᾽ ἀείδειν αὐτὴν ἠδὲ θύγατρα τανύσφυρον ἣν Ἀιδωνεὺς ἥρπαξεν δῶκεν δὲ βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεύς νόσφιν Δήμητρος χρυσαόρου ἀγλαοκάρπου παίζουσαν κούρῃσι σὺν Ὠκεανοῦ βαθυκόλποις ἄνθεά τ᾽ αἰνυμένην ῥόδα καὶ κρόκον ἠδ᾽ ἴα καλὰ λειμῶν᾽ ἂμ μαλακὸν καὶ ἀγαλλίδας ἠδ᾽ ὑάκινθον νάρκισσόν θ᾽ ὃν φῦσε δόλον καλυκώπιδι κούρῃ Γαῖα Διὸς βουλῇσι χαριζομένη Πολυδέκτῃ θαυμαστὸν γανόωντα σέβας τό γε πᾶσιν ἰδέσθαι

ἀθανάτοις τε θεοῖς ἠδὲ θνητοῖς ἀνθρώποις τοῦ καὶ ἀπὸ ῥίζης ἑκατὸν κάρα ἐξεπεφύκει κὦζ᾽ ἥδιστ᾽ ὀδμή πᾶς τ᾽ οὐρανὸς εὐρὺς ὕπερθεν γαῖά τε πᾶσ᾽ ἐγελάσσε καὶ ἁλμυρὸν οἶδμα θαλάσσης ἣ δ᾽ ἄρα θαμβήσασ᾽ ὠρέξατο χερσὶν ἅμ᾽ ἄμφω καλὸν ἄθυρμα λαβεῖν χάνε δὲ χθὼν εὐρυάγυια Νύσιον ἂμ πεδίον τῇ ὄρουσεν ἄναξ Πολυδέγμων ἵπποις ἀθανάτοισι Κρόνου πολυώνυμος υἱός ἁρπάξας δ᾽ ἀέκουσαν ἐπὶ χρυσέοισιν ὄχοισιν ἦγ᾽ ὀλοφυρομένην ἰάχησε δ᾽ ἄρ᾽ ὄρθια φωνῇ

κεκλομένη πατέρα Κρονίδην ὕπατον καὶ ἄριστον οὐδέ τις ἀθανάτων οὐδὲ θνητῶν ἀνθρώπων ἤκουσεν φωνῆς οὐδ᾽ ἀγλαόκαρποι ἐλαῖαιdagger εἰ μὴ Περσαίου θυγάτηρ ἀταλὰ φρονέουσα ἄιεν ἐξ ἄντρου Ἑκάτη λιπαροκρήδεμνος Ἠέλιός τε ἄναξ Ὑπερίονος ἀγλαὸς υἱός κούρης κεκλομένης πατέρα Κρονίδην ὃ δὲ νόσφιν ἧστο θεῶν ἀπάνευθε πολυλλίστῳ ἐνὶ νηῷ δέγμενος ἱερὰ καλὰ παρὰ θνητῶν ἀνθρώπων τὴν δ᾽ ἀεκαζομένην ἦγεν Διὸς ἐννεσίῃσι πατροκασίγνητος Πολυσημάντωρ Πολυδέγμων ἵπποις ἀθανάτοισι Κρόνου πολυώνυμος υἱός ὄφρα μὲν οὖν γαῖάν τε καὶ οὐρανὸν ἀστερόεντα λεῦσσε θεὰ καὶ πόντον ἀγάρροον ἰχθυόεντα αὐγάς τ᾽ ἠελίου ἔτι δ᾽ ἤλπετο μητέρα κεδνὴν ὄψεσθαι καὶ φῦλα θεῶν αἰειγενετάων τόφρα οἱ ἐλπὶς ἔθελγε μέγαν νόον ἀχνυμένης περ ἤχησαν δ᾽ ὀρέων κορυφαὶ καὶ βένθεα πόντου φωνῇ ὑπ᾽ ἀθανάτῃ τῆς δ᾽ ἔκλυε πότνια μήτηρ ὀξὺ δέ μιν κραδίην ἄχος ἔλλαβεν ἀμφὶ δὲ χαίταις ἀμβροσίαις κρήδεμνα δαΐζετο χερσὶ φίλῃσι κυάνεον δὲ κάλυμμα κατ᾽ ἀμφοτέρων βάλετ᾽ ὤμων σεύατο δ᾽ ὥστ᾽ οἰωνός ἐπὶ τραφερήν τε καὶ ὑγρὴν μαιομένη τῇ δ᾽ οὔτις ἐτήτυμα μυθήσασθαι ἤθελεν οὔτε θεῶν οὔτε θνητῶν ἀνθρώπων οὔτ᾽ οἰωνῶν τις τῇ ἐτήτυμος ἄγγελος ἦλθεν ἐννῆμαρ μὲν ἔπειτα κατὰ χθόνα πότνια Δηὼ στρωφᾶτ᾽ αἰθομένας δαΐδας μετὰ χερσὶν ἔχουσα οὐδέ ποτ᾽ ἀμβροσίης καὶ νέκταρος ἡδυπότοιο πάσσατ᾽ ἀκηχεμένη οὐδὲ χρόα βάλλετο λουτροῖς ἀλλ᾽ ὅτε δὴ δεκάτη οἱ ἐπήλυθε φαινολὶς ἠώς ἤντετό οἱ Ἑκάτη σέλας ἐν χείρεσσιν ἔχουσα καί ῥά οἱ ἀγγελέουσα ἔπος φάτο φώνησέν τεπότνια Δημήτηρ ὡρηφόρε ἀγλαόδωρε τίς θεῶν οὐρανίων ἠὲ θνητῶν ἀνθρώπων ἥρπασε Περσεφόνην καὶ σὸν φίλον ἤκαχε θυμόν φωνῆς γὰρ ἤκουσ᾽ ἀτὰρ οὐκ ἴδον ὀφθαλμοῖσιν ὅστις ἔην σοὶ δ᾽ ὦκα λέγω νημερτέα πάνταὣς ἄρ᾽ ἔφη Ἑκάτη τὴν δ᾽ οὐκ ἠμείβετο μύθῳ Ῥείης ἠυκόμου θυγάτηρ ἀλλ᾽ ὦκα σὺν αὐτῇ ἤιξ᾽ αἰθομένας δαΐδας μετὰ χερσὶν ἔχουσα Ἠέλιον δ᾽ ἵκοντο θεῶν σκοπὸν ἠδὲ καὶ ἀνδρῶν στὰν δ᾽ ἵππων προπάροιθε καὶ εἴρετο δῖα θεάωνἠέλι᾽ αἴδεσσαί με θεὰν σύ περ εἴ ποτε δή σευ ἢ ἔπει ἢ ἔργῳ κραδίην καὶ θυμὸν ἴηνα κούρην τὴν ἔτεκον γλυκερὸν θάλος εἴδεϊ κυδρήν τῆς ἀδινὴν ὄπ᾽ ἄκουσα δι᾽ αἰθέρος ἀτρυγέτοιο ὥστε βιαζομένης ἀτὰρ οὐκ ἴδον ὀφθαλμοῖσιν ἀλλά σὺ γὰρ δὴ πᾶσαν ἐπὶ χθόνα καὶ κατὰ πόντον αἰθέρος ἐκ δίης καταδέρκεαι ἀκτίνεσσι νημερτέως μοι ἔνισπε φίλον τέκος εἴ που ὄπωπας ὅστις νόσφιν ἐμεῖο λαβὼν ἀέκουσαν ἀνάγκῃ οἴχεται ἠὲ θεῶν ἢ καὶ θνητῶν ἀνθρώπωνὣς φάτο τὴν δ᾽ Ὑπεριονίδης ἠμείβετο μύθῳῬείης ἠυκόμου θύγατερ Δήμητερ ἄνασσα εἰδήσεις δὴ γὰρ μέγα σ᾽ ἅζομαι ἠδ᾽ ἐλεαίρω ἀχνυμένην περὶ παιδὶ τανυσφύρῳ οὐδέ τις ἄλλος αἴτιος ἀθανάτων εἰ μὴ νεφεληγερέτα Ζεύς

ὅς μιν ἔδωκ᾽ Ἀίδῃ θαλερὴν κεκλῆσθαι ἄκοιτιν αὐτοκασιγνήτῳ ὃ δ᾽ ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα ἁρπάξας ἵπποισιν ἄγεν μεγάλα ἰάχουσαν ἀλλά θεά κατάπαυε μέγαν γόον οὐδέ τί σε χρὴ μὰψ αὔτως ἄπλητον ἔχειν χόλον οὔ τοι ἀεικὴς γαμβρὸς ἐν ἀθανάτοις Πολυσημάντωρ Ἀιδωνεύς αὐτοκασίγνητος καὶ ὁμόσπορος ἀμφὶ δὲ τιμὴν ἔλλαχεν ὡς τὰ πρῶτα διάτριχα δασμὸς ἐτύχθη τοῖς μεταναιετάειν τῶν ἔλλαχε κοίρανος εἶναιὣς εἰπὼν ἵπποισιν ἐκέκλετο τοὶ δ᾽ ὑπ᾽ ὀμοκλῆς ῥίμφα φέρον θοὸν ἅρμα τανύπτεροι ὥστ᾽ οἰωνοί Τὴν δ᾽ ἄχος αἰνότερον καὶ κύντερον ἵκετο θυμόν χωσαμένη δὴ ἔπειτα κελαινεφέι Κρονίωνι νοσφισθεῖσα θεῶν ἀγορὴν καὶ μακρὸν Ὄλυμπον ᾤχετ᾽ ἐπ᾽ ἀνθρώπων πόλιας καὶ πίονα ἔργα εἶδος ἀμαλδύνουσα πολὺν χρόνον οὐδέ τις ἀνδρῶν εἰσορόων γίγνωσκε βαθυζώνων τε γυναικῶν πρίν γ᾽ ὅτε δὴ Κελεοῖο δαΐφρονος ἵκετο δῶμα ὃς τότ᾽ Ἐλευσῖνος θυοέσσης κοίρανος ἦεν ἕζετο δ᾽ ἐγγὺς ὁδοῖο φίλον τετιημένη ἦτορ Παρθενίῳ φρέατι ὅθεν ὑδρεύοντο πολῖται ἐν σκιῇ αὐτὰρ ὕπερθε πεφύκει θάμνος ἐλαίης γρηὶ παλαιγενέι ἐναλίγκιος ἥτε τόκοιο εἴργηται δώρων τε φιλοστεφάνου Ἀφροδίτης οἷαί τε τροφοί εἰσι θεμιστοπόλων βασιλήων παίδων καὶ ταμίαι κατὰ δώματα ἠχήεντα τὴν δὲ ἴδον Κελεοῖο Ἐλευσινίδαο θύγατρες ἐρχόμεναι μεθ᾽ ὕδωρ εὐήρυτον ὄφρα φέροιεν κάλπισι χαλκείῃσι φίλα πρὸς δώματα πατρός τέσσαρες ὥστε θεαί κουρήιον ἄνθος ἔχουσαι Καλλιδίκη καὶ Κλεισιδίκη Δημώ τ᾽ ἐρόεσσα Καλλιθόη θ᾽ ἣ τῶν προγενεστάτη ἦεν ἁπασῶν οὐδ᾽ ἔγνον χαλεποὶ δὲ θεοὶ θνητοῖσιν ὁρᾶσθαι ἀγχοῦ δ᾽ ἱστάμεναι ἔπεα πτερόεντα προσηύδωντίς πόθεν ἐσσί γρῆυ παλαιγενέων ἀνθρώπων τίπτε δὲ νόσφι πόληος ἀπέστιχες οὐδὲ δόμοισι πίλνασαι ἔνθα γυναῖκες ἀνὰ μέγαρα σκιόεντα τηλίκαι ὡς σύ περ ὧδε καὶ ὁπλότεραι γεγάασιν αἵ κέ σε φίλωνται ἠμὲν ἔπει ἠδὲ καὶ ἔργῳὣς ἔφαν ἣ δ᾽ ἐπέεσσιν ἀμείβετο πότνα θεάων

τέκνα φίλ᾽ αἵ τινές ἐστε γυναικῶν θηλυτεράων χαίρετ᾽ ἐγὼ δ᾽ ὑμῖν μυθήσομαι οὔ τοι ἀεικὲς ὑμῖν εἰρομένῃσιν ἀληθέα μυθήσασθαι Δωσὼ ἐμοί γ᾽ ὄνομ᾽ ἐστί τὸ γὰρ θέτο πότνια μήτηρ νῦν αὖτε Κρήτηθεν ἐπ᾽ εὐρέα νῶτα θαλάσσης ἤλυθον οὐκ ἐθέλουσα βίῃ δ᾽ ἀέκουσαν ἀνάγκῃ ἄνδρες ληιστῆρες ἀπήγαγον οἳ μὲν ἔπειτα νηὶ θοῇ Θόρικόνδε κατέσχεθον ἔνθα γυναῖκες ἠπείρου ἐπέβησαν ἀολλέες ἠδὲ καὶ αὐτοί δεῖπνόν τ᾽ ἐπηρτύνοντο παρὰ πρυμνήσια νηός ἀλλ᾽ ἐμοὶ οὐ δόρποιο μελίφρονος ἤρατο θυμός λάθρη δ᾽ ὁρμηθεῖσα δι᾽ ἠπείροιο μελαίνης φεύγου ὑπερφιάλους σημάντορας ὄφρα κε μή με ἀπριάτην περάσαντες ἐμῆς ἀποναίατο τιμῆς οὕτω δεῦρ᾽ ἱκόμην ἀλαλημένη οὐδέ τι οἶδα ἥ τις δὴ γαῖ᾽ ἐστι καὶ οἵ τινες ἐγγεγάασιν ἀλλ᾽ ὑμῖν μὲν πάντες Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχοντες

202 203

δοῖεν κουριδίους ἄνδρας καὶ τέκνα τεκέσθαι ὡς ἐθέλουσι τοκῆες ἐμὲ δ᾽ αὖτ᾽ οἰκτείρατε κοῦραι [τοῦτο δέ μοι σαφέως ὑποθήκατε ὄφρα πύθωμαι] προφρονέως φίλα τέκνα τέων πρὸς δώμαθ᾽ ἵκωμαι ἀνέρος ἠδὲ γυναικός ἵνα σφίσιν ἐργάζωμαι πρόφρων οἷα γυναικὸς ἀφήλικος ἔργα τέτυκται καὶ κεν παῖδα νεογνὸν ἐν ἀγκοίνῃσιν ἔχουσα καλὰ τιθηνοίμην καὶ δώματα τηρήσαιμι καί κε λέχος στορέσαιμι μυχῷ θαλάμων εὐπήκτων δεσπόσυνον καί κ᾽ ἔργα διδασκήσαιμι γυναῖκαςφῆ ῥα θεά τὴν δ᾽ αὐτίκ᾽ ἀμείβετο παρθένος ἀδμής Καλλιδίκη Κελεοῖο θυγατρῶν εἶδος ἀρίστημαῖα θεῶν μὲν δῶρα καὶ ἀχνύμενοί περ ἀνάγκῃ τέτλαμεν ἄνθρωποι δὴ γὰρ πολὺ φέρτεροί εἰσι ταῦτα δέ τοι σαφέως ὑποθήσομαι ἠδ᾽ ὀνομήνω ἀνέρας οἷσιν ἔπεστι μέγα κράτος ἐνθάδε τιμῆς δήμου τε προὔχουσιν ἰδὲ κρήδεμνα πόληος εἰρύαται βουλῇσι καὶ ἰθείῃσι δίκῃσιν ἠμὲν Τριπτολέμου πυκιμήδεος ἠδὲ Διόκλου ἠδὲ Πολυξείνου καὶ ἀμύμονος Εὐμόλποιο καὶ Δολίχου καὶ πατρὸς ἀγήνορος ἡμετέροιο τῶν πάντων ἄλοχοι κατὰ δώματα πορσαίνουσι τάων οὐκ ἄν τίς σε κατὰ πρώτιστον ὀπωπὴν εἶδος ἀτιμήσασα δόμων ἀπονοσφίσσειεν ἀλλά σε δέξονται δὴ γὰρ θεοείκελός ἐσσι εἰ δ᾽ ἐθέλεις ἐπίμεινον ἵνα πρὸς δώματα πατρὸς ἔλθωμεν καὶ μητρὶ βαθυζώνῳ Μετανείρῃ εἴπωμεν τάδε πάντα διαμπερές αἴ κέ σ᾽ ἀνώγῃ ἡμέτερόνδ᾽ ἰέναι μηδ᾽ ἄλλων δώματ᾽ ἐρευνᾶν τηλύγετος δέ οἱ υἱὸς ἐνὶ μεγάρῳ εὐπήκτῳ ὀψίγονος τρέφεται πολυεύχετος ἀσπάσιός τε εἰ τόν γ᾽ ἐκθρέψαιο καὶ ἥβης μέτρον ἵκοιτο ῥεῖά κέ τίς σε ἰδοῦσα γυναικῶν θηλυτεράων ζηλώσαι τόσα κέν τοι ἀπὸ θρεπτήρια δοίηὣς ἔφαθ᾽ ἣ δ᾽ ἐπένευσε καρήατι ταὶ δὲ φαεινὰ πλησάμεναι ὕδατος φέρον ἄγγεα κυδιάουσαι ῥίμφα δὲ πατρὸς ἵκοντο μέγαν δόμον ὦκα δὲ μητρὶ ἔννεπον ὡς εἶδόν τε καὶ ἔκλυον ἣ δὲ μάλ᾽ ὦκα ἐλθούσας ἐκέλευε καλεῖν ἐπ᾽ ἀπείρονι μισθῷ αἳ δ᾽ ὥστ᾽ ἢ ἔλαφοι ἢ πόρτιες εἴαρος ὥρῃ ἅλλοντ᾽ ἂν λειμῶνα κορεσσάμεναι φρένα φορβῇ ὣς αἳ ἐπισχόμεναι ἑανῶν πτύχας ἱμεροέντων ἤιξαν κοίλην κατ᾽ ἀμαξιτόν ἀμφὶ δὲ χαῖται ὤμοις ἀίσσοντο κροκηίῳ ἄνθει ὁμοῖαι τέτμον δ᾽ ἐγγὺς ὁδοῦ κυδρὴν θεόν ἔνθα πάρος περ κάλλιπον αὐτὰρ ἔπειτα φίλου πρὸς δώματα πατρὸς ἡγεῦνθ᾽ ἣ δ᾽ ἄρ᾽ ὄπισθε φίλον τετιημένη ἦτορ στεῖχε κατὰ κρῆθεν κεκαλυμμένη ἀμφὶ δὲ πέπλος κυάνεος ῥαδινοῖσι θεᾶς ἐλελίζετο ποσσίν αἶψα δὲ δώμαθ᾽ ἵκοντο διοτρεφέος Κελεοῖο βὰν δὲ δι᾽ αἰθούσης ἔνθα σφίσι πότνια μήτηρ ἧστο παρὰ σταθμὸν τέγεος πύκα ποιητοῖο παῖδ᾽ ὑπὸ κόλπῳ ἔχουσα νέον θάλος αἳ δὲ πὰρ αὐτὴν ἔδραμον ἣ δ᾽ ἄρ᾽ ἐπ᾽ οὐδὸν ἔβη ποσὶ καὶ ῥα μελάθρου κῦρε κάρη πλῆσεν δὲ θύρας σέλαος θείοιο τὴν δ᾽ αἰδώς τε σέβας τε ἰδὲ χλωρὸν δέος εἷλεν εἶξε δέ οἱ κλισμοῖο καὶ ἑδριάασθαι ἄνωγεν ἀλλ᾽ οὐ Δημήτηρ ὡρηφόρος ἀγλαόδωρος

ἤθελεν ἑδριάασθαι ἐπὶ κλισμοῖο φαεινοῦ ἀλλ᾽ ἀκέουσ᾽ ἀνέμιμνε κατ᾽ ὄμματα καλὰ βαλοῦσα πρίν γ᾽ ὅτε δή οἱ ἔθηκεν Ἰάμβη κέδν᾽ εἰδυῖα πηκτὸν ἕδος καθύπερθε δ᾽ ἐπ᾽ ἀργύφεον βάλε κῶας ἔνθα καθεζομένη προκατέσχετο χερσὶ καλύπτρην δηρὸν δ᾽ ἄφθογγος τετιημένη ἧστ᾽ ἐπὶ δίφρου οὐδέ τιν᾽ οὔτ᾽ ἔπεϊ προσπτύσσετο οὔτε τι ἔργῳ ἀλλ᾽ ἀγέλαστος ἄπαστος ἐδητύος ἠδὲ ποτῆτος ἧστο πόθῳ μινύθουσα βαθυζώνοιο θυγατρός πρίν γ᾽ ὅτε δὴ χλεύῃς μιν Ἰάμβη κέδν᾽ εἰδυῖα πολλὰ παρασκώπτουσ᾽ ἐτρέψατο πότνιαν ἁγνήν μειδῆσαι γελάσαι τε καὶ ἵλαον σχεῖν θυμόν ἣ δή οἱ καὶ ἔπειτα μεθύστερον εὔαδεν ὀργαῖς τῇ δὲ δέπας Μετάνειρα δίδου μελιηδέος οἴνου πλήσασ᾽ ἣ δ᾽ ἀνένευσ᾽ οὐ γὰρ θεμιτόν οἱ ἔφασκε πίνειν οἶνον ἐρυθρόν ἄνωγε δ᾽ ἄρ᾽ ἄλφι καὶ ὕδωρ δοῦναι μίξασαν πιέμεν γλήχωνι τερείνῃ ἣ δὲ κυκεῶ τεύξασα θεᾷ πόρεν ὡς ἐκέλευε δεξαμένη δ᾽ ὁσίης ἕνεκεν πολυπότνια Δηώ τῇσι δὲ μύθων ἦρχεν ἐύζωνος Μετάνειραχαῖρε γύναι ἐπεὶ οὔ σε κακῶν ἄπ᾽ ἔολπα τοκήων ἔμμεναι ἀλλ᾽ ἀγαθῶν ἐπί τοι πρέπει ὄμμασιν αἰδὼς καὶ χάρις ὡς εἴ πέρ τε θεμιστοπόλων βασιλήων ἀλλὰ θεῶν μὲν δῶρα καὶ ἀχνύμενοί περ ἀνάγκῃ τέτλαμεν ἄνθρωποι ἐπὶ γὰρ ζυγὸς αὐχένι κεῖται νῦν δ᾽ ἐπεὶ ἵκεο δεῦρο παρέσσεται ὅσσα τ᾽ ἐμοί περ παῖδα δέ μοι τρέφε τόνδε τὸν ὀψίγονον καὶ ἄελπτον ὤπασαν ἀθάνατοι πολυάρητος δέ μοί ἐστιν εἰ τόν γε θρέψαιο καὶ ἥβης μέτρον ἵκοιτο ῥεῖά κέ τίς σε ἰδοῦσα γυναικῶν θηλυτεράων ζηλώσαι τόσα κέν τοι ἀπὸ θρεπτήρια δοίηντὴν δ᾽ αὖτε προσέειπεν ἐυστέφανος Δημήτηρκαὶ σύ γύναι μάλα χαῖρε θεοὶ δέ τοι ἐσθλὰ πόροιεν παῖδα δέ τοι πρόφρων ὑποδέξομαι ὥς με κελεύεις θρέψω κοὔ μιν ἔολπα κακοφραδίῃσι τιθήνης οὔτ᾽ ἄρ᾽ ἐπηλυσίη δηλήσεται οὔθ᾽ ὑποτάμνον οἶδα γὰρ ἀντίτομον μέγα φέρτερον ὑλοτόμοιο οἶδα δ᾽ ἐπηλυσίης πολυπήμονος ἐσθλὸν ἐρυσμόν

ὣς ἄρα φωνήσασα θυώδεϊ δέξατο κόλπῳ χείρεσσ᾽ ἀθανάτῃσι γεγήθει δὲ φρένα μήτηρ ὣς ἣ μὲν Κελεοῖο δαΐφρονος ἀγλαὸν υἱὸν Δημοφόωνθ᾽ ὃν ἔτικτεν ἐύζωνος Μετάνειρα ἔτρεφεν ἐν μεγάροις ὃ δ᾽ ἀέξετο δαίμονι ἶσος οὔτ᾽ οὖν σῖτον ἔδων οὐ θησάμενος [γάλα μητρὸς ἠματίη μὲν γὰρ καλλιστέφανος] Δημήτηρ χρίεσκ᾽ ἀμβροσίῃ ὡσεὶ θεοῦ ἐκγεγαῶτα ἡδὺ καταπνείουσα καὶ ἐν κόλποισιν ἔχουσα νύκτας δὲ κρύπτεσκε πυρὸς μένει ἠύτε δαλὸν λάθρα φίλων γονέων τοῖς δὲ μέγα θαῦμ᾽ ἐτέτυκτο ὡς προθαλὴς τελέθεσκε θεοῖσι γὰρ ἄντα ἐῴκει καί κέν μιν ποίησεν ἀγήρων τ᾽ ἀθάνατόν τε εἰ μὴ ἄρ᾽ ἀφραδίῃσιν ἐύζωνος Μετάνειρα νύκτ᾽ ἐπιτηρήσασα θυώδεος ἐκ θαλάμοιο σκέψατο κώκυσεν δὲ καὶ ἄμφω πλήξατο μηρὼ δείσασ᾽ ᾧ περὶ παιδὶ καὶ ἀάσθη μέγα θυμῷ καί ῥ᾽ ὀλοφυρομένη ἔπεα πτερόεντα προσηύδατέκνον Δημοφόων ξείνη σε πυρὶ ἔνι πολλῷ

κρύπτει ἐμοὶ δὲ γόον καὶ κήδεα λυγρὰ τίθησινὣς φάτ᾽ ὀδυρομένη τῆς δ᾽ ἄιε δῖα θεάων τῇ δὲ χολωσαμένη καλλιστέφανος Δημήτηρ παῖδα φίλον τὸν ἄελπτον ἐνὶ μεγάροισιν ἔτικτε χείρεσσ᾽ ἀθανάτῃσιν ἀπὸ ἕθεν ἧκε πέδονδε ἐξανελοῦσα πυρός θυμῷ κοτέσασα μάλ᾽ αἰνῶς καί ῥ᾽ ἄμυδις προσέειπεν ἐύζωνον Μετάνειραννήιδες ἄνθρωποι καὶ ἀφράδμονες οὔτ᾽ ἀγαθοῖο αἶσαν ἐπερχομένου προγνώμεναι οὔτε κακοῖο καὶ σὺ γὰρ ἀφραδίῃσι τεῇς νήκεστον ἀάσθης ἴστω γὰρ θεῶν ὅρκος ἀμείλικτον Στυγὸς ὕδωρ ἀθάνατόν κέν τοι καὶ ἀγήραον ἤματα πάντα παῖδα φίλον ποίησα καὶ ἄφθιτον ὤπασα τιμήν νῦν δ᾽ οὐκ ἔσθ᾽ ὥς κεν θάνατον καὶ κῆρας ἀλύξαι τιμὴ δ᾽ ἄφθιτος αἰὲν ἐπέσσεται οὕνεκα γούνων ἡμετέρων ἐπέβη καὶ ἐν ἀγκοίνῃσιν ἴαυσεν ὥρῃσιν δ᾽ ἄρα τῷ γε περιπλομένων ἐνιαυτῶν παῖδες Ἐλευσινίων πόλεμον καὶ φύλοπιν αἰνὴν αἰὲν ἐν ἀλλήλοισιν συνάξουσ᾽ ἤματα πάντα εἰμὶ δὲ Δημήτηρ τιμάοχος ἥτε μέγιστον ἀθανάτοις θνητοῖς τ᾽ ὄνεαρ καὶ χάρμα τέτυκται ἀλλ᾽ ἄγε μοι νηόν τε μέγαν καὶ βωμὸν ὑπ᾽ αὐτῷ τευχόντων πᾶς δῆμος ὑπαὶ πόλιν αἰπύ τε τεῖχος Καλλιχόρου καθύπερθεν ἐπὶ προὔχοντι κολωνῷ ὄργια δ᾽ αὐτὴ ἐγὼν ὑποθήσομαι ὡς ἂν ἔπειτα εὐαγέως ἔρδοντες ἐμὸν νόον ἱλάσκοισθεὣς εἰποῦσα θεὰ μέγεθος καὶ εἶδος ἄμειψε γῆρας ἀπωσαμένη περί τ᾽ ἀμφί τε κάλλος ἄητο ὀδμὴ δ᾽ ἱμερόεσσα θυηέντων ἀπὸ πέπλων σκίδνατο τῆλε δὲ φέγγος ἀπὸ χροὸς ἀθανάτοιο λάμπε θεᾶς ξανθαὶ δὲ κόμαι κατενήνοθεν ὤμους αὐγῆς δ᾽ ἐπλήσθη πυκινὸς δόμος ἀστεροπῆς ὥς βῆ δὲ διὲκ μεγάρων τῆς δ᾽ αὐτίκα γούνατ᾽ ἔλυντο δηρὸν δ᾽ ἄφθογγος γένετο χρόνον οὐδέ τι παιδὸς μνήσατο τηλυγέτοιο ἀπὸ δαπέδου ἀνελέσθαι τοῦ δὲ κασίγνηται φωνὴν ἐσάκουσαν ἐλεινήν κὰδ δ᾽ ἄρ᾽ ἀπ᾽ εὐστρώτων λεχέων θόρον ἣ μὲν ἔπειτα παῖδ᾽ ἀνὰ χερσὶν ἑλοῦσα ἑῷ ἐγκάτθετο κόλπῳ ἣ δ᾽ ἄρα πῦρ ἀνέκαι᾽ ἣ δ᾽ ἔσσυτο πόσσ᾽ ἁπαλοῖσι μητέρ᾽ ἀναστήσουσα θυώδεος ἐκ θαλάμοιο ἀγρόμεναι δέ μιν ἀμφὶς ἐλούεον ἀσπαίροντα ἀμφαγαπαζόμεναι τοῦ δ᾽ οὐ μειλίσσετο θυμός χειρότεραι γὰρ δή μιν ἔχον τροφοὶ ἠδὲ τιθῆναι αἳ μὲν παννύχιαι κυδρὴν θεὸν ἱλάσκοντο δείματι παλλόμεναι ἅμα δ᾽ ἠοῖ φαινομένηφιν εὐρυβίῃ Κελεῷ νημερτέα μυθήσαντο ὡς ἐπέτελλε θεά καλλιστέφανος Δημήτηρ αὐτὰρ ὅ γ᾽ εἰς ἀγορὴν καλέσας πολυπείρονα λαὸν ἤνωγ᾽ ἠυκόμῳ Δημήτερι πίονα νηὸν ποιῆσαι καὶ βωμὸν ἐπὶ προὔχοντι κολωνῷ οἳ δὲ μάλ᾽ αἶψ᾽ ἐπίθοντο καὶ ἔκλυον αὐδήσαντος τεῦχον δ᾽ ὡς ἐπέτελλ᾽ ὃ δ᾽ ἀέξετο δαίμονι ἶσος αὐτὰρ ἐπεὶ τέλεσαν καὶ ἐρώησαν καμάτοιο βάν ῥ᾽ ἴμεν οἴκαδ᾽ ἕκαστος ἀτὰρ ξανθὴ Δημήτηρ ἔνθα καθεζομένη μακάρων ἀπὸ νόσφιν ἁπάντων μίμνε πόθῳ μινύθουσα βαθυζώνοιο θυγατρός αἰνότατον δ᾽ ἐνιαυτὸν ἐπὶ χθόνα πουλυβότειραν ποίησ᾽ ἀνθρώποις καὶ κύντατον οὐδέ τι γαῖα

σπέρμ᾽ ἀνίει κρύπτεν γὰρ ἐυστέφανος Δημήτηρ πολλὰ δὲ καμπύλ᾽ ἄροτρα μάτην βόες εἷλκον ἀρούραις πολλὸν δὲ κρῖ λευκὸν ἐτώσιον ἔμπεσε γαίῃ καί νύ κε πάμπαν ὄλεσσε γένος μερόπων ἀνθρώπων λιμοῦ ὑπ᾽ ἀργαλέης γεράων τ᾽ ἐρικυδέα τιμὴν καὶ θυσιῶν ἤμερσεν Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχοντας εἰ μὴ Ζεὺς ἐνόησεν ἑῷ τ᾽ ἐφράσσατο θυμῷ Ἶριν δὲ πρῶτον χρυσόπτερον ὦρσε καλέσσαι Δήμητρ᾽ ἠύκομον πολυήρατον εἶδος ἔχουσαν ὣς ἔφαθ᾽ ἣ δὲ Ζηνὶ κελαινεφέι Κρονίωνι πείθετο καὶ τὸ μεσηγὺ διέδραμεν ὦκα πόδεσσιν ἵκετο δὲ πτολίεθρον Ἐλευσῖνος θυοέσσης εὗρεν δ᾽ ἐν νηῷ Δημήτερα κυανόπεπλον καί μιν φωνήσασ᾽ ἔπεα πτερόεντα προσηύδαΔήμητερ καλέει σε πατὴρ Ζεὺς ἄφθιτα εἰδὼς ἐλθέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν αἰειγενετάων ἄλλ᾽ ἴθι μηδ᾽ ἀτέλεστον ἐμὸν ἔπος ἐκ Διὸς ἔστωὣς φάτο λισσομένη τῇ δ᾽ οὐκ ἐπεπείθετο θυμός αὖτις ἔπειτα πατὴρ μάκαρας θεοὺς αἰὲν ἐόντας πάντας ἐπιπροΐαλλεν ἀμοιβηδὶς δὲ κιόντες κίκλησκον καὶ πολλὰ δίδον περικαλλέα δῶρα τιμάς θ᾽ daggerἅς κ᾽ ἐθέλοιτοdagger μετ᾽ ἀθανάτοισιν ἑλέσθαι ἀλλ᾽ οὔτις πεῖσαι δύνατο φρένας οὐδὲ νόημα θυμῷ χωομένης στερεῶς δ᾽ ἠναίνετο μύθους οὐ μὲν γάρ ποτ᾽ ἔφασκε θυώδεος Οὐλύμποιο πρίν γ᾽ ἐπιβήσεσθαι οὐ πρὶν γῆς καρπὸν ἀνήσειν πρὶν ἴδοι ὀφθαλμοῖσιν ἑὴν εὐώπιδα κούρην αὐτὰρ ἐπεὶ τό γ᾽ ἄκουσε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεύς εἰς Ἔρεβος πέμψε χρυσόρραπιν Ἀργειφόντην ὄφρ᾽ Ἀίδην μαλακοῖσι παραιφάμενος ἐπέεσσιν ἁγνὴν Περσεφόνειαν ὑπὸ ζόφου ἠερόεντος ἐς φάος ἐξαγάγοι μετὰ δαίμονας ὄφρα ἑ μήτηρ ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα μεταλήξειε χόλοιο Ἑρμῆς δ᾽ οὐκ ἀπίθησεν ἄφαρ δ᾽ ὑπὸ κεύθεα γαίης ἐσσυμένως κατόρουσε λιπὼν ἕδος Οὐλύμποιο τέτμε δὲ τόν γε ἄνακτα δόμων ἔντοσθεν ἐόντα ἥμενον ἐν λεχέεσσι σὺν αἰδοίῃ παρακοίτι πόλλ᾽ ἀεκαζομένῃ μητρὸς πόθῳ ἣ δ᾽ ἀποτηλοῦ ἔργοις θεῶν μακάρων [δεινὴν] μητίσετο βουλήν ἀγχοῦ δ᾽ ἱστάμενος προσέφη κρατὺς ἈργειφόντηςἍιδη κυανοχαῖτα καταφθιμένοισιν ἀνάσσων Ζεύς με πατὴρ ἤνωγεν ἀγαυὴν Περσεφόνειαν ἐξαγαγεῖν Ἐρέβευσφι μετὰ σφέας ὄφρα ἑ μήτηρ ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα χόλου καὶ μήνιος αἰνῆς ἀθανάτοις λήξειεν ἐπεὶ μέγα μήδεται ἔργον φθῖσαι φῦλ᾽ ἀμενηνὰ χαμαιγενέων ἀνθρώπων σπέρμ᾽ ὑπὸ γῆς κρύπτουσα καταφθινύθουσα δὲ τιμὰς ἀθανάτων ἣ δ᾽ αἰνὸν ἔχει χόλον οὐδὲ θεοῖσι μίσγεται ἀλλ᾽ ἀπάνευθε θυώδεος ἔνδοθι νηοῦ ἧσται Ἐλευσῖνος κραναὸν πτολίεθρον ἔχουσαὣς φάτο μείδησεν δὲ ἄναξ ἐνέρων Ἀιδωνεὺς ὀφρύσιν οὐδ᾽ ἀπίθησε Διὸς βασιλῆος ἐφετμῇς ἐσσυμένως δ᾽ ἐκέλευσε δαΐφρονι Περσεφονείῃἔρχεο Περσεφόνη παρὰ μητέρα κυανόπεπλον ἤπιον ἐν στήθεσσι μένος καὶ θυμὸν ἔχουσα μηδέ τι δυσθύμαινε λίην περιώσιον ἄλλων οὔ τοι ἐν ἀθανάτοισιν ἀεικὴς ἔσσομ᾽ ἀκοίτης αὐτοκασίγνητος πατρὸς Διός ἔνθα δ᾽ ἐοῦσα

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δεσπόσσεις πάντων ὁπόσα ζώει τε καὶ ἕρπει τιμὰς δὲ σχήσησθα μετ᾽ ἀθανάτοισι μεγίστας τῶν δ᾽ ἀδικησάντων τίσις ἔσσεται ἤματα πάντα οἵ κεν μὴ θυσίῃσι τεὸν μένος ἱλάσκωνται εὐαγέως ἔρδοντες ἐναίσιμα δῶρα τελοῦντεςὣς φάτο γήθησεν δὲ περίφρων Περσεφόνεια καρπαλίμως δ᾽ ἀνόρουσ᾽ ὑπὸ χάρματος αὐτὰρ ὅ γ᾽ αὐτὸς ῥοιῆς κόκκον ἔδωκε φαγεῖν μελιηδέα λάθρῃ ἀμφὶ ἓ νωμήσας ἵνα μὴ μένοι ἤματα πάντα αὖθι παρ᾽ αἰδοίῃ Δημήτερι κυανοπέπλῳ ἵππους δὲ προπάροιθεν ὑπὸ χρυσέοισιν ὄχεσφιν ἔντυεν ἀθανάτους Πολυσημάντωρ Ἀιδωνευς ἣ δ᾽ ὀχέων ἐπέβη πάρα δὲ κρατὺς Ἀργειφόντης ἡνία καὶ μάστιγα λαβὼν μετὰ χερσὶ φίλῃσι σεῦε διὲκ μεγάρων τὼ δ᾽ οὐκ ἀέκοντε πετέσθην ῥίμφα δὲ μακρὰ κέλευθα διήνυσαν οὐδὲ θάλασσα οὔθ᾽ ὕδωρ ποταμῶν οὔτ᾽ ἄγκεα ποιήεντα ἵππων ἀθανάτων οὔτ᾽ ἄκριες ἔσχεθον ὁρμήν ἀλλ᾽ ὑπὲρ αὐτάων βαθὺν ἠέρα τέμνον ἰόντες στῆσε δ᾽ ἄγων ὅθι μίμνεν ἐυστέφανος Δημήτηρ νηοῖο προπάροιθε θυώδεος ἣ δὲ ἰδοῦσα ἤιξ᾽ ἠύτε μαινὰς ὄρος κάτα δάσκιον ὕλῃ Περσεφόνη δ᾽ ἑτέρ[ωθεν ἐπεὶ ἴδεν ὄμματα καλὰ] μητρὸς ἑῆς κατ᾽ [ἄρ᾽ ἥ γ᾽ ὄχεα προλιποῦσα καὶ ἵππους] ἆλτο θέει[ν δειρῇ δέ οἱ ἔμπεσε ἀμφιχυθεῖσα] τῇ δὲ [φίλην ἔτι παῖδα ἑῇς μετὰ χερσὶν ἐχούσῃ] α[ἶψα δόλον θυμός τιν᾽ ὀίσατο τρέσσε δ᾽ ἄρ᾽ αἰνῶς] παυομ[ένη φιλότητος ἄφαρ δ᾽ ἐρεείνετο μύθῳ]τέκνον μή ῥά τι μοι σ[ύ γε πάσσαο νέρθεν ἐοῦσα] βρώμης ἐξαύδα μ[ὴ κεῦθ᾽ ἵνα εἴδομεν ἄμφω] ὣς μὲν γάρ κεν ἐοῦσα π[αρὰ στυγεροῦ Ἀίδαο] καὶ παρ᾽ ἐμοὶ καὶ πατρὶ κελ[αινεφέϊ Κρονίωνι] ναιετάοις πάντεσσι τετιμ[ένη ἀθανάτοι]σιν εἰ δ᾽ ἐπάσω πάλιν αὖτις ἰοῦσ᾽ ὑπ[ὸ κεύθεσι γαίης] οἰκήσεις ὡρέων τρίτατον μέρ[ος εἰς ἐνιαυτόν] τὰς δὲ δύω παρ᾽ ἐμοί τε καὶ [ἄλλοις ἀθανά]τοισιν ὁππότε δ᾽ ἄνθεσι γαῖ᾽ εὐώδε[σιν] εἰαρινο[ῖσι] παντοδαποῖς θάλλῃ τόθ᾽ ὑπὸ ζόφου ἠερόεντος αὖτις ἄνει μέγα θαῦμα θεοῖς θνητοῖς τ᾽ ἀνθρώποις [εἶπε δὲ πῶς σ᾽ ἥρπαξεν ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα] καὶ τίνι σ᾽ ἐξαπάτησε δόλῳ κρατερὸς Πολυδέγμωντὴν δ᾽ αὖ Περσεφόνη περικαλλὴς ἀντίον ηὔδατοιγὰρ ἐγώ τοι μῆτερ ἐρέω νημερτέα πάντα εὖτέ μοι Ἑρμῆς ἦλθ᾽ ἐριούνιος ἄγγελος ὠκὺς πὰρ πατέρος Κρονιδαο καὶ ἄλλων Οὐρανιώνων ἐλθεῖν ἐξ Ἐρέβευς ἵνα ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα λήξαις ἀθανάτοισι χόλου καὶ μήνιος αἰνῆς αὐτίκ᾽ ἐγὼν ἀνόρουσ᾽ ὑπὸ χάρματος αὐτὰρ ὃ λάθρῃ ἔμβαλέ μοι ῥοιῆς κόκκον μελιηδέ᾽ ἐδωδήν ἄκουσαν δὲ βίῃ με προσηνάγκασσε πάσασθαι ὡς δέ μ᾽ ἀναρπάξας Κρονίδεω πυκινὴν διὰ μῆτιν ᾤχετο πατρὸς ἐμοῖο φέρων ὑπὸ κεύθεα γαίης ἐξερέω καὶ πάντα διίξομαι ὡς ἐρεείνεις ἡμεῖς μὲν μάλα πᾶσαι ἀν᾽ ἱμερτὸν λειμῶνα Λευκίππη Φαινώ τε καὶ Ἠλέκτρη καὶ Ἰάνθη καὶ Μελίτη Ἰάχη τε Ῥόδειά τε Καλλιρόη τε Μηλόβοσίς τε Τύχη τε καὶ Ὠκυρόη καλυκῶπις

Χρυσηίς τ᾽ Ἰάνειρά τ᾽ Ἀκάστη τ᾽ Ἀδμήτη τε καὶ Ῥοδόπη Πλουτώ τε καὶ ἱμερόεσσα Καλυψὼ καὶ Στὺξ Οὐρανίη τε Γαλαξαύρη τ᾽ ἐρατεινὴ Παλλάς τ᾽ ἐγρεμάχη καὶ Ἄρτεμις ἰοχέαιρα παίζομεν ἠδ᾽ ἄνθεα δρέπομεν χείρεσσ᾽ ἐρόεντα μίγδα κρόκον τ᾽ ἀγανὸν καὶ ἀγαλλίδας ἠδ᾽ ὑάκινθον καὶ ῥοδέας κάλυκας καὶ λείρια θαῦμα ἰδέσθαι νάρκισσόν θ᾽ ὃν ἔφυσ᾽ ὥς περ κρόκον εὐρεῖα χθών αὐτὰρ ἐγὼ δρεπόμην περὶ χάρματι γαῖα δ᾽ ἔνερθε χώρησεν τῇ δ᾽ ἔκθορ᾽ ἄναξ κρατερὸς Πολυδέγμων βῆ δὲ φέρων ὑπὸ γαῖαν ἐν ἅρμασι χρυσείοισι πόλλ᾽ ἀεκαζομένην ἐβόησα δ᾽ ἄρ᾽ ὄρθια φωνῇ ταῦτά τοι ἀχνυμένη περ ἀληθέα πάντ᾽ ἀγορεύωὣς τότε μὲν πρόπαν ἦμαρ ὁμόφρονα θυμὸν ἔχουσαι πολλὰ μάλ᾽ ἀλλήλων κραδίην καὶ θυμὸν ἴαινον ἀμφαγαπαζόμεναι ἀχέων δ᾽ ἀπεπαύετο θυμός γηθοσύνας δ᾽ ἐδέχοντο παρ᾽ ἀλλήλων ἔδιδόν τε τῇσιν δ᾽ ἐγγύθεν ἦλθ᾽ Ἑκάτη λιπαροκρήδεμνος πολλὰ δ᾽ ἄρ᾽ ἀμφαγάπησε κόρην Δημήτερος ἁγνήν ἐκ τοῦ οἱ πρόπολος καὶ ὀπάων ἔπλετ᾽ ἄνασσα ταῖς δὲ μέτ᾽ ἄγγελον ἧκε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεὺς Ῥείην ἠύκομον Δημήτερα κυανόπεπλον ἀξέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν ὑπέδεκτο δὲ τιμὰς δωσέμεν ἅς κεν ἕλοιτο μετ᾽ ἀθανάτοισι θεοῖσι νεῦσε δέ οἱ κούρην ἔτεος περιτελλομένοιο τὴν τριτάτην μὲν μοῖραν ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα τὰς δὲ δύω παρὰ μητρὶ καὶ ἄλλοις ἀθανάτοισιν ὣς ἔφατ᾽ οὐδ᾽ ἀπίθησε θεὰ Διὸς ἀγγελιάων ἐσσυμένως δ᾽ ἤιξε κατ᾽ Οὐλύμποιο καρήνων ἐς δ᾽ ἄρα Ῥάριον ἷξε φερέσβιον οὖθαρ ἀρούρης τὸ πρίν ἀτὰρ τότε γ᾽ οὔτι φερέσβιον ἀλλὰ ἕκηλον ἑστήκει πανάφυλλον ἔκευθε δ᾽ ἄρα κρῖ λευκὸν μήδεσι Δήμητρος καλλισφύρου αὐτὰρ ἔπειτα μέλλεν ἄφαρ ταναοῖσι κομήσειν ἀσταχύεσσιν ἦρος ἀεξομένοιο πέδῳ δ᾽ ἄρα πίονες ὄγμοι βρισέμεν ἀσταχύων τὰ δ᾽ ἐν ἐλλεδανοῖσι δεδέσθαι ἔνθ᾽ ἐπέβη πρώτιστον ἀπ᾽ αἰθέρος ἀτρυγέτοιο ἀσπασίως δ᾽ ἴδον ἀλλήλας κεχάρηντο δὲ θυμῷ τὴν δ᾽ ὧδε προσέειπε Ῥέη λιπαροκρήδεμνοςδεῦρο τέκος καλέει σε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεὺς ἐλθέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν ὑπέδεκτο δὲ τιμὰς [δωσέμεν ἅς κ᾽ ἐθέλῃσθα] μετ᾽ ἀθανάτοισι θεοῖσι [νεῦσε δέ σοι κούρην ἔτεος π]εριτελλομένοιο [τὴν τριτάτην μὲν μοῖραν ὑπὸ ζόφον ἠ]ερόεντα [τὰς δὲ δύω παρὰ σοί τε καὶ ἄλλοις] ἀθανάτοισιν [ὣς ἄρ᾽ ἔφη τελέ]εσθαι ἑῷ δ᾽ ἐπένευσε κάρητι [ἀλλ᾽ ἴθι τέκνον] ἐμόν καὶ πείθεο μηδέ τι λίην ἀ[ζηχὲς μεν]έαινε κελαινεφέι Κρονίωνι α[ἶψα δὲ κα]ρπὸν ἄεξε φερέσβιον ἀνθρώποισινὣς ἔφατ᾽ οὐδ᾽ ἀπίθησεν ἐυστέφανος Δημήτηρ αἶψα δὲ καρπὸν ἀνῆκεν ἀρουράων ἐριβώλων πᾶσα δὲ φύλλοισίν τε καὶ ἄνθεσιν εὐρεῖα χθὼν ἔβρισ᾽ ἣ δὲ κιοῦσα θεμιστοπόλοις βασιλεῦσι δεῖξεν Τριπτολέμῳ τε Διοκλεῖ τε πληξίππῳ Εὐμόλπου τε βίῃ Κελεῷ θ᾽ ἡγήτορι λαῶν δρησμοσύνην θ᾽ ἱερῶν καὶ ἐπέφραδεν ὄργια πᾶσι Τριπτολέμῳ τε Πολυξείνῳ ἐπὶ τοῖς δὲ Διοκλεῖ σεμνά τά τ᾽ οὔπως ἔστι παρεξίμεν οὔτε πυθέσθαι

οὔτ᾽ ἀχέειν μέγα γάρ τι θεῶν σέβας ἰσχάνει αὐδήν ὄλβιος ὃς τάδ᾽ ὄπωπεν ἐπιχθονίων ἀνθρώπων ὃς δ᾽ ἀτελὴς ἱερῶν ὅς τ᾽ ἄμμορος οὔποθ᾽ ὁμοίων αἶσαν ἔχει φθίμενός περ ὑπὸ ζόφῳ ἠερόεντιαὐτὰρ ἐπειδὴ πάνθ᾽ ὑπεθήκατο δῖα θεάων βάν ῥ᾽ ἴμεν Οὔλυμπόνδε θεῶν μεθ᾽ ὁμήγυριν ἄλλων ἔνθα δὲ ναιετάουσι παραὶ Διὶ τερπικεραύνῳ σεμναί τ᾽ αἰδοῖαι τε μέγ᾽ ὄλβιος ὅν τιν᾽ ἐκεῖναι προφρονέως φίλωνται ἐπιχθονίων ἀνθρώπων αἶψα δέ οἱ πέμπουσιν ἐφέστιον ἐς μέγα δῶμα Πλοῦτον ὃς ἀνθρώποις ἄφενος θνητοῖσι δίδωσιν ἀλλ᾽ ἄγ᾽ Ἐλευσῖνος θυοέσσης δῆμον ἔχουσα καὶ Πάρον ἀμφιρύτην Ἀντρῶνά τε πετρήεντα πότνια ἀγλαόδωρ᾽ ὡρηφόρε Δηοῖ ἄνασσα αὐτὴ καὶ κούρη περικαλλὴς Περσεφόνεια πρόφρονες ἀντ᾽ ᾠδῆς βίοτον θυμήρε᾽ ὄπαζε αὐτὰρ ἐγὼ καὶ σεῖο καὶ ἄλλης μνήσομ᾽ ἀοιδῆς

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Referecircncias

CASTILHO Antoacutenio Feliciano de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa Lisboa Casa dos Editores 1858

FLORES Guilherme Gontijo Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horaacutecio Tese de Doutorado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2014

GRAMACHO Jair Hinos Homeacutericos Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2001

________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Vol I Satildeo Paulo Mandarim 2001b

________ IliacuteadaTraduccedilatildeo de Haroldo de Campos Vol II Satildeo Paulo Arx 2002

________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo PauloCampinas Ateliecirc EditorialUNICAMP 2008

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Edusp 2000

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2001c

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Satildeo Paulo Editora 34 2011

MALTA Andreacute A Selvagem Perdiccedilatildeo Erro e Ruiacutena na Iliacuteada Satildeo Paulo Odysseus 2006

________ O resgate do cadaacutever o uacuteltimo canto drsquoA Iliacuteada Satildeo Paulo Humanitas 2000

NOGUEIRA Eacuterico Verdade contenda e poesia nos Idiacutelios de Teoacutecrito Tese de dou-torado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2012

OLIVA NETO Joatildeo Angelo amp NOGUEIRA Eacuterico ldquoO Hexacircmetro Dactiacutelico Vernaacuteculo antes de Carlos Alberto Nunesrdquo Scientia Traductionis n 13 2013

PALAVRO Bruno A Theogonia de Hesiacuteodo traduzida amp anotada pela matildeo de Bruno Palavro Trabalho de Conclusatildeo de Curso Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2019

TAacutePIA Marcelo Diferentes percursos de traduccedilatildeo poeacutetica como paradigmas me-todoloacutegicos de recriaccedilatildeo poeacutetica Um estudo propositivo sobre linguagem poesia e traduccedilatildeo Tese de doutorado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2012

VIRGIacuteLIO Geoacutergicas ndash Eneida Volume III Traduccedilotildees de Antoacutenio Feliciano de Castilho

e Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo W M Jackson Inc Editores 1956

________ Eneida Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Editora 34 2014

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Pressupostos da comeacutedia grega entre os romanos

Quintiliano Ciacutecero Horaacutecioe Dioniacutesio

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Luciene Lages Silva

Logo direi no lugar apropriado que fim para a formaccedilatildeo dos jovens reservo agrave comeacutedia que muito pode conferir agrave eloquecircncia dado que envolve todos os caracteres e pai-xotildees Com efeito estando os bons costumes salvaguarda-dos deveraacute a comeacutedia ser lida entre as coisas principais Falo acerca de Menandro natildeo excluiria a outros pois os autores latinos tambeacutem produziram algo de utilidade Quintiliano

Propomos apresentar parte de uma pesquisa que investiga a recepccedilatildeo criacutetica da comeacutedia grega por alguns criacuteticos literaacuterios historiadores e poetas romanos duran-te o fim da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Os textos selecionados foram produzidos no decurso de pouco mais de 150 anos periacuteodo que contempla o domiacutenio de Juacutelio Ceacutesar (45 aC) ateacute o fim do reinado de Trajano (98-117 dC) Nossa pesquisa elenca seis fontes desse recorte temporal em que a preferecircncia por Menandro se consolida na tradiccedilatildeo latina nos textos de Horaacutecio Ciacutecero Dioniacutesio de Halicarnasso Quintiliano Pliacutenio (o jovem) e Plutarco

Os autores selecionados distam em torno de 100 a 150 anos do tempo aacuteureo da proacutepria comeacutedia latina do tempo de Plauto e Terecircncio mas conhecem a comeacutedia grega e a romana percebem os desdobramentos do gecircnero cocircmico de modo mais con-temporacircneo do que noacutes poderiacuteamos De tratados de esteacutetica literaacuteria como a Poeacutetica de Horaacutecio agraves cartas de Pliacutenio o jovem trocadas com o imperador Trajano nos depa-ramos com teorizaccedilotildees e revisotildees de determinadas premissas acerca da comeacutedia grega e do gecircnero cocircmico de modo geral Naturalmente Aristoacutefanes figura como o iacutecone da comeacutedia antiga enquanto Menandro da comeacutedia nova e natildeo eacute novidade certa predi-leccedilatildeo dos romanos pela comeacutedia de costumes ao inveacutes da comeacutedia poliacutetica daquele 124

A epiacutegrafe de Quintiliano que abre esse texto por exemplo e que foi extraiacuteda da obra Institutio Oratoria (Livro I VIII 6-8 na traduccedilatildeo de Marcos Aureacutelio Pereira) apresenta a preocupaccedilatildeo do retor na instruccedilatildeo dos jovens com o fim de orientaacute-los a alcanccedilar eloquecircncia primorosa em seus discursos A comeacutedia deve estar entre as prin-cipais leituras mas tal prerrogativa vem acompanhada de trecircs aspectos Um diz res-peito ao fato de que por ser rico em caracteres e paixotildees o gecircnero cocircmico favorece o desenvolvimento da eloquecircncia outro aspecto eacute o de que natildeo eacute qualquer comeacutedia que deve ser lida mas apenas as que respeitam os lsquobons costumesrsquo Por fim o fato de que da leitura da comeacutedia grega e latina pode-se extrair algo de uacutetil Quintiliano aponta natildeo

124 Veja-se a Introduccedilatildeo de Maria de Faacutetima Souza e Silva in MENANDRO 2007 p 7-41

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soacute porque a comeacutedia deve ser lida mas quem deve ser lido sendo Menandro o uacutenico comedioacutegrafo citado nominalmente ao lado da recomendaccedilatildeo de leitura de alguns au-tores latinos que natildeo satildeo nomeados

Sobre a literatura produzida em Roma Pompeu Silva e Silva (2017) afirmam que a trageacutedia e a comeacutedia perderam um pouco do espaccedilo para outros tipos de prosa e poesia na eacutepoca de Augusto como o gecircnero mimo e eacute somente com o imperador Nero que os gecircneros traacutegico e cocircmico voltaram a brilhar nos ambientes puacuteblicos atraveacutes dos festivais Ainda conforme as autoras as comeacutedias desenvolvidas e encenadas no periacute-odo imperial datavam dos seacuteculos III e II aC e na sua maior parte eram escritas por Plauto e Terecircncio comedioacutegrafos romanos com fortes influecircncias da comeacutedia nova

A indicaccedilatildeo de Menandro como leitura apraziacutevel e necessaacuteria tambeacutem eacute refe-rendada por Plutarco em seu pequeno tratado Compecircndio da Comparaccedilatildeo entre Aris-toacutefanes e Menandro ao lado de certa execraccedilatildeo agrave poesia de Aristoacutefanes125

As comeacutedias de Menandro contecircm sais abundantes e sa-grados como se viessem daquele mar do qual nasceu Afro-dite Em compensaccedilatildeo os sais de Aristoacutefanes satildeo amargos e aacutesperos possuem um sabor acre mordaz e ulceroso E eu natildeo sei onde reside a habilidade da qual ele se vanglo-ria nos discursos ou nos caracteres com certeza o que ele imita imita pior126

A criacutetica de Plutarco agrave imitaccedilatildeo dos caracteres produzida pela obra do poeta da comeacutedia antiga eacute um reflexo da criacutetica aristoteacutelica presente na Eacutetica a Nicomacos em que o filoacutesofo compara a comeacutedia antiga com a nova e conclui ldquoos autores das primeiras divertiam com a obscenidade mas os das uacuteltimas preferem as insinuaccedilotildees e as duas coisas diferem e natildeo pouco quanto agrave conveniecircnciardquo Aristoacuteteles discorre sobre a importacircncia do repouso e o lugar do entretenimento como parte da vida cotidiana mas eacute severo com a lsquoacircnsia de gracejarrsquo daqueles a que chama lsquobufotildees vulgaresrsquo que natildeo poupam a ningueacutem nem a si mesmos se isso puder provocar uma gargalhada sendo esses gracejos uma espeacutecie de abuso Levando em conta a predileccedilatildeo por Menandro e pela comeacutedia nova dos gregos observamos e selecionamos as impressotildees de Ciacutecero Horaacutecio e Dioniacutesio de Halicarnasso acerca do lugar da comeacutedia grega e do cocircmico de modo geral128

Em Do melhor gecircnero dos oradores De optimo genere oratorum Ciacutecero afir-ma que o texto de base oratoacuteria deve ser correto ter linguagem pura e adequada sem

125 Suetocircnio no entanto em A vida dos doze ceacutesares descreve a apreciaccedilatildeo de Augusto pela liacutengua e cultura grega e apesar de natildeo falar ou escrever em grego solicitava um tradutor se a circunstacircncia o exigisse De modo que ldquoA poesia grega natildeo lhe era tambeacutem inteiramente desconhecida Costumava deleitar-se com a comeacutedia antiga fazendo repre-sentaacute-la nos espetaacuteculos puacuteblicosrdquo SUETOcircNIO 1955 p 121 na traduccedilatildeo de Sady-Garibaldi126 (Moralia 854a-c) traduccedilatildeo nossa anteriormente publicada em artigo intitulado rsquoLiccedilotildees de Plutarco sobre a comeacutediarsquo 2013 p114 In Identidade e Alteridade no Mundo Antigo POMPEU et all Fortaleza Expressatildeo graacutefica editora 2013 127 Traduccedilatildeo Maacuterio da Gama Kury In ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Brasiacutelia editora UnB 1985

128 Os primeiros apontamentos dessa pesquisa foram publicados em A Palo Seco Escritos de Filosofia e Literatura Grupo de Estudos em Filosofia e Literatura Universidade Federal de Sergipe Aracaju Vol 1 n 5 2013 p 32-41129 (SEABRA FILHO 2013 p 17) Utilizamo-nos da traduccedilatildeo de Seabra nos extratos da obra citados adiante

viacutecios e estrangeirismos distinto no uso da palavra em seu sentido proacuteprio e tambeacutem em seu sentido figurado Natildeo aconselha o uso da linguagem popular na composiccedilatildeo do discurso devido ao descuido agraves regras gramaticais e aos decoros do estilo necessaacuterios agrave produccedilatildeo oratoacuteria De acordo com Seabra Filho tradutor da obra serve menos ainda para ldquoa transmissatildeo de todas as sutilezas de pensamentos e intenccedilotildees do oradorrdquo129

Ciacutecero alerta para o caraacuteter muacuteltiplo do gecircnero literaacuterio e que a partir dos gre-gos a praacutetica latina na composiccedilatildeo do poema quer seja traacutegico cocircmico eacutepico meacutelico e ditiracircmbico deve observar aquilo que eacute proacuteprio a tal gecircnero Atento para as especifici-dades de cada gecircnero elenca os principais autores da poesia latina Ecircnio para a poesia eacutepica assim ldquocomo Pacuacutevio o maior traacutegico e Ceciacutelio talvez o maior cocircmicordquo (CICERO De optimo genere oratorvm II 2) No entanto ldquoorador eu natildeo o divido em gecircnero procuro efetivamente o perfeitordquo (II3) Para o filoacutesofo o perfeito orador tanto ensina quanto deleita quanto comove os acircnimos porque ldquoensinar eacute devido deleitar honroso comover necessaacuteriordquo (II3)

Afirma mais adiante a autenticidade do pai da comeacutedia de costumes visto que natildeo se assemelha a Homero e escreve outro tipo de gecircnero conforme diz ldquoMas Menandro natildeo quis ser semelhante a Homero eacute que o gecircnero era outrordquo (CICERO De optimo genere oratorum II 6) Os limites do gecircnero devem ser observados pelos poetas ldquoE assim tanto na trageacutedia eacute errado o cocircmico como torpe na comeacutedia o traacutegi-co e nos demais gecircneros haacute como certo para cada um seu tom determinado e para os conhecedores um conhecido acento (CICERO De optimo genere oratorum I 1)

Aleacutem disso Ciacutecero nos fornece um testemunho da permanecircncia da poesia dra-maacutetica grega em traduccedilotildees latinas e apresenta uma resposta agrave certa resistecircncia de seus contemporacircneos agrave leitura de discursos da retoacuterica grega em traduccedilatildeo latina Ciacutece-ro pontua sistematicamente duas criacuteticas

A este nosso labor duas espeacutecies de criacuteticas se opotildeem Uma esta ldquoMas de maneira melhor os gregosrdquo A esse que fala assim perguntar-se-ia se porventura poderiam os gregos discursar de maneira melhor em latim Outra ldquoPor que eu leria de preferecircncia esses ao inveacutes dos discur-sos gregosrdquo Os mesmos que dizem isso aceitam Acircn-dria e Sinefebos e natildeo leem Terecircncio e Ceciacutelio menos que Menandro E natildeo admitiriam Androcircmaca ou Antiacuteopeou os Epiacutegonos em latim Mas todavia leem Ecircnio e Pacuacutevio e Aacutecio de preferecircncia a Euriacutepides e Soacutefocles Que eacute entatildeo o fastio deles quanto aos discursos traduzidos do grego quando nenhum haja quanto aos versos (CICERO De op-timo genere oratorum VI 18)

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Ressalta-se que os versos traduzidos natildeo causam fastio aos seus contemporacirc-neos jaacute que a leitura de Acircndria peccedila de Terecircncio ou Sinefebos peccedila perdida de Ceciacutelio eacute menos frequente do que a leitura de Menandro Do mesmo modo testemunha que os romanos liam Euriacutepides e Soacutefocles traduzidos para o latim sendo Antiacuteope e Epiacutegonos peccedilas que natildeo chegaram ateacute noacutes Ciacutecero faz questatildeo de marcar que os poetas traacutegicos gregos natildeo tecircm a preferecircncia sobre a leitura dos textos de autores traacutegicos latinos Ecircnio130 Aacutecio e Pacuacutevio No entanto a questatildeo central natildeo diz respeito agrave escolha da lei-tura dos gregos ou dos autores latinos natildeo eacute a questatildeo da primazia que estaacute em jogo e nem a negaccedilatildeo do discurso de alguns de que eacute melhor ler os gregos em grego Na verdade Ciacutecero criacutetica a postura de seus contemporacircneos que leem poesia grega em traduccedilatildeo mas resistem agrave leitura de oradores gregos pela mesma via

A seguir em sua busca Do melhor gecircnero dos oradores Ciacutecero faz defesa do la-bor do tradutor de discursos oratoacuterios gregos ele mesmo se dedicou a traduzir discur-sos de Eacutesquines e Demoacutestenes ldquoe natildeo traduzi como inteacuterprete mas como orador com as mesmas apresentaccedilotildees de ideias e de figuras natildeo tive necessidade de reproduzir palavra por palavra mas conservei o aspecto todo e o significado das expressotildeesrdquo (CI-CERO De optimo genere oratorum V 14) Ao explicar o tipo de traduccedilatildeo que pratica Ciacutecero deixa claro que como tradutor sua escolha natildeo eacute a de uma traduccedilatildeo ad verbum mas de uma traduccedilatildeo recriadora que tem como foco o gecircnero oratoacuterio de modo que o tradutor se vecirc mais como um agente tradutor-orador e natildeo tradutor-inteacuterprete131

Seabra Filho em seus comentaacuterios acerca da obra de Ciacutecero observa que os textos de Ciacutecero satildeo repletos de reflexotildees filosoacuteficas de ensinamentos de histoacuteria de teacutecnicas da redaccedilatildeo e da arte retoacuterica transpondo o objetivo praacutetico para o qual foram escritos (SEABRA FILHO 2013 p 13) Para o tradutor no que concerne agrave arte retoacuterica Ciacutecero apresenta ldquoQuase nada que seja substancial que seja da teacutecnica de composiccedilatildeo Em verdade ele passa para os romanos para a literatura latina toda a teacutecnica grega sistematizada na Retoacuterica de Aristoacutetelesrdquo (SEABRA FILHO 2013 p 16) Com exceccedilatildeo de apresentar preceitos sobre a figura do orador sobre sua cultura e dicccedilatildeo E ainda quando fala aos oradores natildeo podemos excluir a aplicabilidade de tal entendimento tambeacutem para o texto literaacuterio pois eacute necessaacuterio ensinar e persuadir o puacuteblico em am-bos os casos Ou como alertou Alberte (1989 p3) a presenccedila de aspectos retoacutericos no gecircnero poeacutetico eacute um fato que natildeo se limita ao gecircnero cocircmico mas remonta agraves origens da literatura

Ciacutecero postula o lugar do orador seu ofiacutecio e seus objetivos quando afirma ldquoOacutetimo eacute com efeito o orador que pelo discurso tanto ensina como deleita e comove os acircnimos dos ouvintes Ensinar eacute devido deleitar honroso comover necessaacuteriordquo (CICE-RO De optimo genere oratorum III 1) De modo paralelo Horaacutecio condena a criaccedilatildeo

130 Mesmo que Ecircnio obtenha destaque entre os romanos como poeta eacutepico a alusatildeo ao poeta nesse trecho parece se referir agraves suas trageacutedias jaacute que se contrapotildeem agraves peccedilas de Soacutefocles e Euriacutepides131 No original encontramos ldquonon verbum pro verbo necesse habui reddere sed genus omne verborum vinque servavirdquo literalmente lsquonatildeo achei necessaacuterio verter palavra por palavra mas conservei o gecircnero das palavras e sua forccedila expressi-varsquo O trecho deixa claro a predileccedilatildeo dos latinos pela trilha da emulaccedilatildeo e natildeo traduccedilatildeo literal essa premissa de Ciacutecero ecoaraacute na obra de outros autores e na Idade Meacutedia em que a potencializaccedilatildeo dessas duas formas de traduccedilatildeo se veem em disputa ad verbum (palavra por palavra) X ad sensum (pelo sentido) Sobre esse tema veja-se os apontamentos de FURLAN (2003) no artigo Breviacutessima histoacuteria da teoria da traduccedilatildeo no Ocidente - II A Idade Meacutedia

demasiada sem utilidade agrave vida Conforme se pode verificar em Epiacutestola aos Pisotildees obra posteriormente conhecida pela alcunha dada por Quintiliano de Arte Poeacutetica

Os poetas ou pretendem ser uteis ou deleitar ou ao mes-mo tempo dizer coisas belas e aproveitaacuteveis agrave vida O que quer que haacutes de ensinar secirc breve para que os espiacuteritos doacuteceis e fieis depressa apreendam e retenham os teus pre-ceitos Tudo que eacute supeacuterfluo se escapa da memoacuteria mui-to cheia As coisas inventadas em vista do prazer estejam proacuteximas da verdade que a faacutebula natildeo exija que se creia em tudo que ela queira nem retire vivo do ventre de Lacirc-mia o menino que ela almoccedilou (HORAacuteCIO Poeacutetica I 333-340 traduccedilatildeo de Dante Tringali)

Horaacutecio valoriza o empenho do poeta na sua produccedilatildeo aliada agrave arte e agrave utili-dade dessa produccedilatildeo Admite o prazer advindo das invenccedilotildees proacuteprias da ficccedilatildeo mas prefere que elas natildeo sejam demasiadas ou incoerentes Os limites devem por fim aos exageros e garantir a verossimilhanccedila (assim como Aristoacuteteles alertou na Poeacutetica XV 1454a) pois a liberdade ilimitada de inventar impede a utilidade da arte que para o poeta deve ser uacutetil verdadeira agradaacutevel e educativa

Horaacutecio prossegue tematizando um problema tradicional no debate das esco-las de retoacuterica a poeacutetica da arte X a poeacutetica do engenho Afinal um bom poema eacute con-sequecircncia da arte ou do engenho do poeta ldquoTecircm-se perguntado se um poema se torna digno de louvor pela natureza ou pela arte Eu natildeo vejo de que serve o trabalho sem uma veia feacutertil nem de que serve o engenho rude assim uma coisa reclama o auxiacutelio da outra e conspiram amigavelmenterdquo (vv 408-411) Nos versos 408 a 418 alerta que de nada serve o trabalho sem lsquorica intuiccedilatildeorsquo ou o lsquoengenho rudersquo com pouco trabalho Concluiraacute que ao bom poeta cabe o equiliacutebrio dessas duas qualidades que se comple-mentam a arte e o engenho (vv407-410) O talento precisa ser aperfeiccediloado o poeta eacute um artiacutefice do poema e como tal deve tambeacutem se atentar para o lugar da teacutecnica em sua criaccedilatildeo poeacutetica A soluccedilatildeo proposta aconselha o equiliacutebrio da arte e do talento de modo que as habilidades naturais sejam aprimoradas pelo trabalho contiacutenuo De nada adianta para Horaacutecio apenas o engenho sem praacutetica como do mesmo modo natildeo eacute possiacutevel o domiacutenio da teacutecnica sem a inspiraccedilatildeo sem a intuiccedilatildeo artiacutestica da qual depen-de o poeta ao exercer seu ofiacutecio

As premissas de Ciacutecero e Horaacutecio se convergem pois Ciacutecero fala para ensinar e ensinando se promove o deleite Horaacutecio fala sobre deleitar e deleitando se ensina Aleacutem disso outras aproximaccedilotildees entre os dois se destacam o conceito de orador ideal apresentado por Ciacutecero em De Oratore eacute similar ao conceito de poeta ideal na Arte Poeacutetica a utilidade social que o orador e o poeta devem render agrave paacutetria e tambeacutem ambos apresentam princiacutepios esteacuteticos similares em relaccedilatildeo ao conceito de unidade e harmonia da obra

Inicialmente pode causar estranhamento que na obra de Horaacutecio natildeo consta nenhuma referecircncia a Ciacutecero Segundo Alberte (1989 p88) Ciacutecero segue proscrito

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durante a eacutepoca de Augusto o proacuteprio Plutarco (Ciacutecero 49) relata que um sobrinho do Imperador se viu atemorizado enquanto lia uma obra de Ciacutecero e eacute interrompido pela chegada inesperada de Augusto Natildeo soacute Horaacutecio mas outros poetas do tempo de Au-gusto natildeo falavam em Ciacutecero pelo menos natildeo nos ciacuterculos de amizade do Imperador

Em outra obra na Republica livro IV 11-2 Ciacutecero trata da comeacutedia e expotildee seu julgamento acerca do que considera um excesso do teatro grego a liberdade sem limites nos gracejos

Jamais a comeacutedia se natildeo a tivessem autorizado os costu-mes puacuteblicos teria podido apresentar no teatro tatildeo vergo-nhosas infacircmias Os gregos mais antigos nos seus viacutecios permitiam que se dissesse no teatro tudo quanto se qui-sesse como se quisesse sem respeitar os nomes proacuteprios A quem natildeo aludiu a comeacutedia Ou antes a quem natildeo dei-xou A quem perdoou Pode permitir-se que fustigasse homens populares na Repuacuteblica como iacutemprobos e sedi-ciosos Cleatildeo Cleofonte Hipeacuterbolo Pode tolerar-se que para essa gente mais eficaz do que a alusatildeo do poeta fosse a censura dos seus cidadatildeos Mas ultrajar em verso e na cena Peacutericles que durante tantos anos na paz como na guerra com um creacutedito tatildeo legiacutetimo regeu os destinos de sua paacutetria eacute menos toleraacutevel do que se entre noacutes ultra-jasse Plauto e Neacutevio ou Cipiatildeo Catatildeo Ceciacutelio (traduccedilatildeo Neacutelson Jahr Garcia)

A criacutetica diz respeito agrave comedia antiga agrave comeacutedia praticada por Aristoacutefanes (tambeacutem por outros como Cratino e Eupocirclis por exemplo) mesmo sem nomeaacute-lo diretamente os homens citados como objeto de troccedila satildeo personagens das peccedilas do comedioacutegrafo Em certo sentido tal trecho dialoga com a passagem da ldquoEacutetica a Nico-macosrdquo anteriormente citada ali Aristoacuteteles critica aquele que estaacute agrave caccedila do riso faacutecil a qualquer preccedilo aqui Ciacutecero condena o excesso de liberdade dos comedioacutegrafos antigos em ultrajar figuras puacuteblicas mesmo a quem natildeo o mereccedila como eacute o caso de Peacutericles Liberdade essa que para o filoacutesofo natildeo deveria ser tolerada

Uma criacutetica parecida eacute aludida por Horaacutecio na Arte Poeacutetica quando se refere

a Teacutespis como inventor do gecircnero dramaacutetico a Eacutesquilo como inventor da maacutescara e da declamaccedilatildeo grandiloquente e ldquoa esses sucedeu a comeacutedia antiga e foi recebida natildeo sem vivo aplauso mas a liberdade degenerou em viacutecio e em abuso que teve de ser re-primido pela lei Depois de aceite a lei calou-se o coro para sua vergonha porque se lhe tirara o direito de injuriarrdquo (vv 275-284)132 Horaacutecio natildeo nega o sucesso alcanccedilado pela comeacutedia antiga mas marca como Ciacutecero o excesso de liberdade daqueles poetas cocircmicos que retratavam personagens puacuteblicas com injuacuterias abusivas Na sequecircncia natildeo se refere a outras fases da comeacutedia grega como a comeacutedia nova da antiga passa a abordar a comeacutedia latina

132 Na traduccedilatildeo de RM Rosado Fernandes

O poeta traz uma proposta de reforma para o teatro romano em moldes gre-gos busca a harmonia entre o seacuterio e o jocoso e condena excessos no espetaacuteculo dra-maacutetico seja traacutegico ou cocircmico O primeiro ponto de sua reforma eacute a moderaccedilatildeo que a trageacutedia modere o grau do pateacutetico e a comeacutedia modere o uso da vulgaridade Horaacutecio vecirc no drama satiacuterico uma resposta para abrandar o grau solene do traacutegico e para uma elevaccedilatildeo do cocircmico

Natildeo faccedilas no entanto representar na cena o que deva passar-se nos bastidores retira muitas coisas da vista es-sas que melhor descreve a facuacutendia de uma testemunha Que Medeia natildeo trucide os filhos diante do puacuteblico nem o nefando Atreu cozinhe publicamente entranhas huma-nas tatildeo-pouco em ave Procne se transforme ou Cadmo em serpente Detestarei tudo o que assim me mostrares porque ficarei increacutedulo Que a peccedila nunca tenha mais do que cinco actos nem me-nos do que esse nuacutemero se acaso desejar que voltem a pedi-la e tornar agrave cena depois de estreadaQue na peccedila natildeo intervenha um deus a natildeo ser que o de-senlace seja digno de um vingador nem tatildeo pouco se lan-ce um quarto actor a falar na mesma cena (vv 183-194)133

As premissas estabelecidas por Horaacutecio para a arte dramaacutetica se iniciam pelos caracteres pela representaccedilatildeo da accedilatildeo pela verossimilhanccedila pelo nuacutemero de atos pelo uso ponderado do deus ex-machina Primeiramente o poeta chama a aten-ccedilatildeo para a construccedilatildeo dos caracteres em versos anteriores no 113 a 127 estabelece que se siga a tradiccedilatildeo ou que se atente para a construccedilatildeo de caracteres apropriados tal como um Aquiles inexoraacutevel uma Medeia indomaacutevel ou uma Ino chorosa Dos carac-teres agrave representaccedilatildeo da accedilatildeo Horaacutecio condena a representaccedilatildeo de cenas sangrentas ou demasiadas espetaculosas como uma metamorfose em palco por exemplo Sobre o uso do deus ex-machina Horaacutecio parece admitir se o desenlace da peccedila necessitar de tal interventor ao contraacuterio de Aristoacuteteles que na Poeacutetica recomenda ldquoeacute pois evidente que tambeacutem os desenlaces devem resultar da proacutepria estrutura do mito e natildeo do deus ex machina como acontece na Medeacuteia ou naquela parte da Iliacuteada em que se trata do regresso das navesrdquo Nos versos seguintes o estagirita abre uma exceccedilatildeo ao uso do recurso de um deus ex-machina se a representaccedilatildeo de fatos sucedidos dizem respeito a fatos que aconteceram antes do drama comeccedilar ou em acontecimentos que ao homem eacute vedado conhecer como em prediccedilotildees mas natildeo deve ser usado para o desfecho do drama

As regras ou instruccedilotildees para o gecircnero dramaacutetico apresentadas por Ho-

133 Aristoacuteteles afirma que querer produzir emoccedilotildees no espectador ldquounicamente pelo espetaacuteculo eacute processo alheio agrave arterdquo Cf Poeacutetica 1453b 1-8134 Maacutequina no sentido de maravilhoso ou sobrenatural que no teatro grego contava com um aparato mecacircnico em que a personagem era elevada acima do cenaacuterio ressaltando seu aspecto sobrenatural ou divino Veja-se a nota 219 da traduccedilatildeo triliacutengue da Poeacutetica de Yebra (1974)135 Poeacutetica 1454b1-2 traduccedilatildeo de Eudoro de Souza No Craacutetilo(425d) Platatildeo tambeacutem condena o uso do ex-machina dizendo que os tragedioacutegrafos recorrem a maacutequinas elevando deuses porque natildeo sabem como terminar o desenlace

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raacutecio partem da valorizaccedilatildeo da capacidade do poeta de respeitar as regras especiacuteficas que compete a cada gecircnero Na instruccedilatildeo agrave famiacutelia dos Pisotildees afirma

ldquoSe natildeo posso nem sei observar as funccedilotildees prescritas e os tons caracteriacutesticos dos diversos geacuteneros por que hei-de ser saudado como poeta Qual a razatildeo por que prefiro com falso pudor desconhececirc-los a aprendecirc-los Mesmo a comeacutedia natildeo quer seus assuntos expostos em versos traacute-gicos e igualmente a ceia de Tiestes natildeo se enquadra na narraccedilatildeo em metro vulgar mais proacuteprio dos socos136 da comeacutediardquo (vv 85-92)

Horaacutecio alerta aos seus interlocutores que a um poeta cabe o conhecimento daquilo que eacute proacuteprio a cada gecircnero se o poeta natildeo o sabe e natildeo busca aprendecirc-lo natildeo deveria ser chamado de poeta Natildeo se compotildee uma comeacutedia em estilo proacuteprio da trageacutedia nem se usa na composiccedilatildeo de uma trageacutedia aquilo que eacute proacuteprio do estilo cocirc-mico Cada gecircnero tem seus limites e suas peculiaridades e os assuntos devem ser de-senvolvidos observando esses aspectos conforme se queira suscitar laacutegrimas ou risos A reformulaccedilatildeo necessaacuteria ao teatro deve considerar os limites da emoccedilatildeo para Ho-raacutecio agraves vezes a comeacutedia eleva sua voz e ldquoCremes indignado ralha em tom pateacuteticordquo (v94) Cremes eacute personagem de uma comeacutedia de Terecircncio um tipo de anciatildeo avarento e irasciacutevel Na representaccedilatildeo da comeacutedia a personagem cocircmica natildeo deve assumir um tom mais elevado improacuteprio ao gecircnero como no exemplo dado Em relaccedilatildeo a esses versos Tringali (1993 p79) afirma que ldquoHoraacutecio jaacute comeccedila a insinuar seu programa de reformas do teatro Deseja que a comeacutedia fique acima da vulgaridade e que a trageacute-dia modere a solenidade e o emocionalismordquo Para o tradutor aos poucos a digressatildeo caminha em direccedilatildeo ao drama satiacuterico que na visatildeo de Horaacutecio parece representar uma redenccedilatildeo dos desvios da trageacutedia e comeacutedia

O poeta marca o meacuterito dos antigos escritores que introduziram o teatro la-tino ldquoOs nossos poetas nada deixaram que natildeo experimentassem nem foi pequeno o louvor que mereceram os que ousando abandonar o grego trilho celebraram os paacutetrios feitos ora criando as faacutebulas pretextas ora as togadasrdquo (vv285-288) Horaacutecio natildeo nega a influecircncia do teatro grego na formaccedilatildeo do teatro latino mas enfatiza a ousadia daqueles que natildeo se renderam agrave forma de um modelo importado e transcen-deram o modelo considerando suas proacuteprias questotildees nacionais A criaccedilatildeo de peccedilas de argumento romano fizeram surgir as peccedilas pretextas que eram uma modalidade de trageacutedia aos moldes romanos em que os personagens vestiam togas como a dos altos magistrados nas cerimocircnias puacuteblicas e as togadas comeacutedias em que os atores se ves-tiam com a toga comum do cidadatildeo romano (TRINGALI 1993p 92)137

Horaacutecio continua suas admoestaccedilotildees aos Pisotildees afirmando no verso 309 que

136 O soco era o calccedilado tiacutepico da comeacutedia sem salto enquanto o coturno era o calccedilado tiacutepico da trageacutedia e tinha um solado mais alto 137 Sobre a origem das pretextas e a repercussatildeo dos temas romanos na trageacutedia italiana veja-se CARDOSO Zelia de Almeida O drama histoacuterico latino e suas projeccedilotildees no mundo Renascentista e Barroco Letras Claacutessicas n 6 p 161 ndash 195 2002

ldquosaber eacute o princiacutepio e a fonte do bem escreverrdquo e portanto apresenta suas premissas para a composiccedilatildeo teatral

Ao douto imitador aconselharei que atente no modelo da vida e dos costumes e daiacute retire viacutevido discurso Comeacutedias haacute por vezes que embora parcas de elegacircncia medida e arte por apresentarem temas atraentes e caracteres bem delineados agradam mais ao puacuteblico e o prendem muito mais do que versos sem realidade ou harmoniosas baga-telas poeacuteticas (vv317-322) 138

O poeta recomenda atenccedilatildeo agrave construccedilatildeo dos caracteres e temas adequados apoacutes a observaccedilatildeo pessoal da vida cotidiana A vida cotidiana como modelo eacute uma re-gra comumente associada agrave comeacutedia nova e agrave comeacutedia de Menandro Horaacutecio critica o uso dos versos muito ornamentados eacute preferiacutevel um estilo simples desde que os caracteres sejam consistentes A imitaccedilatildeo da vida e dos costumes eacute uma premissa que faz eco a um dito atribuiacutedo a Ciacutecero e que foi transmitido por Donato a conhecida formulaccedilatildeo segundo a qual lsquoa comeacutedia eacute a imitaccedilatildeo da vida o espelho de costumes e a imagem da verdadersquo imitatio uitae speculum cansuetudinis imago veritatis139 De acordo com Cordeiro

Esta definiccedilatildeo da comeacutedia gozou de uma extraordinaacuteria repercussatildeo na literatura e na poeacutetica dos seacuteculos XVI e XVII Eacute presenccedila obrigatoacuteria nas introduccedilotildees agraves comeacutedias dos autores claacutessicos figura em muitos tratados compre-ensivos de poeacutetica sendo tambeacutem frequente nos proacutelogos das comeacutedias em latim e em vulgar do periacuteodo humaniacutes-tico Haacute ecos desta regra em Saacute de Miranda Antoacutenio Fer-reira e Jorge Ferreira de Vasconcelos e tambeacutem em outros autores coevos bem no Quixote de Cervantes ou de uma forma mais distante no Hamlet de Shakespeare (DONA-TO 2011 p8)

A observaccedilatildeo da vida como modelo jaacute eacute uma regra bastante conhecida por Horaacutecio e Ciacutecero visto que tal premissa se consolida na transformaccedilatildeo do gecircnero cocircmico entre os gregos a partir do seacuteculo IV a C se consolida a comeacutedia nova ou co-meacutedia de costumes Tal modalidade foi ganhando ou ocupando um terreno habitado antes pelos temas poliacuteticos e os temas do cotidiano aos poucos passaram a prevalecer no gosto popular provocando assim uma mudanccedila no gecircnero teatral Para Souza e Silva pesquisadora e tradutora da obra de Menandro

A substituiccedilatildeo do plano domeacutestico ao ciacutevico na acccedilatildeo da

138 No texto latino consta ldquofabulardquo e natildeo ldquocomoediardquo a escolha da tradutora RM Rosado Fernandes pode estar pautada no fato de que Horaacutecio estrutura uma peccedila que deve observar os costumes cotidianos caracteriacutestica proacutepria da comeacutedia e natildeo da trageacutedia 139 Cf DONATO Eacutelio De Comoedia Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Adriano Milho Cordeiro Coimbra Artciencia 2011 p8 e 27

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comeacutedia consumou-se na Greacutecia na segunda metade do seacuteculo IV a C depois de sinais evidentes de mudanccedila que marcavam jaacute as uacuteltimas comeacutedias de Aristoacutefanes (Mulhe-res na Assembleia e Pluto) Os temas da comeacutedia caem agora em definitivo no terreno do quotidiano privado onde situaccedilotildees banais como viver em abastanccedila ou carecircn-cia o trabalho a alimentaccedilatildeo a agitaccedilatildeo do mercado as relaccedilotildees familiares dominam E dentro do mesmo espiacuteri-to os ldquoheroacuteisrdquo que lhes datildeo vida satildeo gente comum como a que habita uma qualquer rua da cidade (MENANDRO 2007 p12)

A ecircnfase na construccedilatildeo dos caracteres consolidada pela comeacutedia havia sido apontada anteriormente pelo historiador e criacutetico literaacuterio Dioniacutesio de Halicarnasso (60 aC ndash 7 dC) que no tratado Sobre a imitaccedilatildeo (II 9-14) afirma que dos comedioacutegra-fos se deve imitar o vocabulaacuterio puro e claro por serem bons construtores de caracte-res O tratado Sobre a Imitaccedilatildeo nos chegou apenas em fragmentos sendo recuperado parte dos dois primeiros livros e uma epiacutetome do segundo livro do terceiro nada ainda foi recuperado140 No tratado o historiador trata sobre o conceito de imitaccedilatildeo e aponta os poetas e prosadores que considera mais ilustres com o intuito de indicar os melho-res modelos aos que almejam aprender a escrever e falar bem Para Dionisio a imi-taccedilatildeo eacute uma atividade que parte da contemplaccedilatildeo do modelo a fim de reproduzi-lo O criacutetico atribui uma consequecircncia positiva decorrente de tal contemplaccedilatildeo a emulaccedilatildeo ou seja o desejo de exceder aos considerados ceacutelebres que seria um impulso da alma provocado pela admiraccedilatildeo do que eacute belo (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten I 2) No que concerne ao talento e ao gosto literaacuterio o criacutetico afirma que a parte mais importante do talento reside na natureza e natildeo em noacutes mesmos o gosto literaacuterio no entanto depende unicamente de noacutes (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten I 3)

Desse modo se o talento natildeo depende necessariamente do artista mas o gosto literaacuterio sim o historiador passa a elencar o que haacute de melhor nos autores instruindo para que se beba nas fontes consideradas as mais proveitosas Ele assinala a impor-tacircncia de se ler os antigos natildeo soacute para buscar temas mas tambeacutem para se esforccedilar na superaccedilatildeo das formas e das expressotildees Sobre os autores dramaacuteticos Dioniacutesio consi-dera Eacutesquilo sublime pois sabe utilizar adequadamente os caracteres e os sentimentos e eacute superior na capacidade de adornar tanto a linguagem figurada quanto a habitual aleacutem de ser criador de palavras e temas proacuteprios Soacutefocles se distingue tambeacutem nos caracteres e sentimentos e por colocar em cena personagens sempre dignos aleacutem de adornar seu discurso somente com o necessaacuterio Quanto a Euriacutepides Dioniacutesio afirma que ao poeta agrada mais a busca da verdade mais proacutexima da vida real lhe escapando agraves vezes o devido decoro e acerto na representaccedilatildeo de caracteres elevados apesar de descrever com maior detalhe os sentimentos indignos covardes e baixos das persona-gens (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten II 2 12)

140 Juan Segura(2005) tradutor da ediccedilatildeo espanhola da Gredos afirma que a obra nos chegou por quatro fontes distin-tas e incompletas mas natildeo haacute muitas duacutevidas quanto agrave autenticidade do tratado visto que o proacuteprio Dioniso eacute uma das fontes pois parte do livro II foi transmitida na Carta a Pompeu 32-611 Cf Tratados de Critica Literaacuteria p 478

No que diz respeito aos comedioacutegrafos Dioniacutesio natildeo se refere a Aristoacutefanes ou qualquer outro poeta da comeacutedia antiga Dos traacutegicos passa a um pequeno comentaacuterio sobre a importacircncia de se imitar todas as virtudes de expressatildeo dos comedioacutegrafos tais como a utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio puro e claro breve grandioso veemente proacute-prio do gecircnero comeacutedia Como jaacute foi mencionado Dioniacutesio considera os comedioacutegrafos bons construtores de caracteres e aleacutem de citar nominalmente a Menandro alerta que se deve observar como se daacute o tratamento dos fatos em suas peccedilas (DIONISIO DE HA-LICARNASSO Imitacioacuten II 2 14)

Dioniacutesio tende a evitar polecircmicas apresenta uma linguagem natural nem elo-quente por demais nem simploacuteria tem apurado olhar analiacutetico e apresenta um estu-do cronoloacutegico em que se dispotildee a escrever um tratado sobre a imitaccedilatildeo e portanto discorre especificamente sobre o que se deve imitar Consoante agrave imitaccedilatildeo conclamada pelo historiador Juan Segura (2005) nota em suas observaccedilotildees acerca da obra de Dioniacutesio aspectos negativos causados por essa concepccedilatildeo como a limitaccedilatildeo imposta a criaccedilatildeo dos artistas que deveriam estar sempre embasados nos modelos considerados perfeitos e o fato das produccedilotildees dos autores considerados em segunda categoria natildeo terem sido copiadas jaacute que se buscava copiar apenas as dos considerados perfeitos

Nossa pesquisa centra-se no estudo da criacutetica dos romanos sobre a produccedilatildeo literaacuteria grega com isso as postulaccedilotildees de Horaacutecio Ciacutecero e Dioniacutesio de Halicarnas-so enveredam para a elevaccedilatildeo dos modelos considerados egreacutegios Aleacutem disso outra perspectiva que poderia ser considerada eacute a investigaccedilatildeo da valorizaccedilatildeo da cultura gre-ga observando se constitui em valoraccedilatildeo ou preponderacircncia sobre a cultura romana como um modo de hierarquizaccedilatildeo Quanto a isso Luiz Fernando Dias Pita em Visotildees da identidade romana em Ciacutecero e Secircneca observa

Diversos autores pensarem ser a literatura grega ldquohierar-quicamenterdquo superior agrave latina esta seria enfim um con-junto de simples repeticcedilotildees dos processos desenvolvidos por aquela com os autores latinos servindo-se reitera-damente dos modelos gregos para criar obras que quase nunca poderiam igualar-se ao original Contudo devemos noacutes tambeacutem prevenir nosso olhar e nossa capacidade de julgamento quanto agrave ultravalorizaccedilatildeo ndash propugnada pelos romacircnticos e repetida por seus sucessores ndash da originali-dade como quesito avaliativo da primeira ordem (PITA 2010 p 21)

Por fim salientamos que nossa pesquisa natildeo tem como objetivo hierarquizar e sim apontar o que os criacuteticos conjecturaram como relevante para ser imitado e tal imitaccedilatildeo eacute percebida como positiva e como uma amaacutelgama e que contribui para a formaccedilatildeo do que poderiacuteamos denominar de cultura greco-latina mas ressaltamos que tal investigaccedilatildeo eacute um caminho possiacutevel para confirmar ou corrigir nossa concepccedilatildeo Inicialmente em atenccedilatildeo ao mote emprestado de Quintiliano o da lsquoobservaccedilatildeo dos

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bons costumesrsquo e o do lsquocaraacuteter uacutetil da comeacutediarsquo procuramos observar essas mesmas premissas em extratos da obra de Ciacutecero e Horaacutecio Horaacutecio natildeo soacute toma a arte como verossiacutemil e imitativa da vida a arte como imitaccedilatildeo da vida eacute um conceito imbricado ao prazer que vem da imitaccedilatildeo e da funccedilatildeo educativa que se exerce ao imitar E como na Poeacutetica (1458b 59) nos lembra o proacuteprio Aristoacuteteles ldquoo imitar eacute congecircnito ao homem () e os homens se comprazem no imitadordquo

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TRINGALI Dante Arte Poeacutetica de Horaacutecio Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de D Trin-gali Satildeo Paulo Musa Editora 1993

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Qual eacute o seu OrfeuBreve apreciaccedilatildeo do mitode helecircnico reinventado

pelas muacuteltiplas linguagens artiacutesticas

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Fernanda Lemos de Lima

Ah quero ser teu Orfeu cantar nos teus braccedilos meu poema ateu E fazer do teu sexo o meu verso controverso

Com os versos de Thiago Petit como epiacutegrafe inicio o presente texto so-bre uma das figuras miacuteticas e miacutesticas de maior impacto da antiguidade helecircnica Orfeu Todavia mesmo buscando compreender alguns pontos de sua escatologia no ambiente claacutessico o estudo aqui empreendido visa perceber a permanecircncia e reinven-ccedilatildeo do mito atraveacutes de diferentes teacutecnicas artiacutesticas as quais natildeo apenas revisitam o mito mas o reescrevem no processo incessante da estrada da Arte

Orfeu eacute o heroacutei miacutetico encantador de feras capaz de fazer adormecer o catildeo

triceacutefalo dos infernos eacute tambeacutem a personagem a sofrer um diasparagmoacutes (desmem-brado) por obra das bacantes as seguidoras do deus Dioniso curiosamente deidade cujo culto tem correlaccedilatildeo com os misteacuterios oacuterficos O que leva a outro ponto fortiacutessimo da histoacuteria sobre o cantor miacutetico o Orfismo como um culto de misteacuterios

Orfeu eacute filho de um rei com uma das Musas que no seacuteculo XX seraacute torna-

do tambeacutem em sambista de Vinicius de Moraes em personagem apropriada por Neil Gaiman no Sandman em tema de muacutesica Por essas breves menccedilotildees eacute possiacutevel com-preender a intensidade do mito que eacute atualizado de vaacuterias formas e ultimamente tambeacutem o seraacute pela arte pop

Para empreendermos a jornada em busca desse heroacutei eacute preciso compreender o

processo de construccedilatildeo do mito para em seguida percorrer os rastros das adaptaccedilotildees

1 Quem eacute Orfeu

De acordo com Junito de Sousa Brandatildeo (BRANDAtildeO 1997 p196) Orfeu eacute fi-lho do rei-rio Eagro e da Musa Caliacuteope nada mais nada menos que a musa da poesia eacutepica Outras versotildees filiam o cantor mortal ao deus Apolo o condutor das Musas Sua vinculaccedilatildeo a Apolo eacute compreensiacutevel em funccedilatildeo de sua habilidade musical Haacute vaacuterias passagens do mito em que o heroacutei se destaca por conta de seu canto e de sua capacida-de de encantar todos os seres atraveacutes da muacutesica

Aleacutem da ligaccedilatildeo com o culto Apoliacuteneo haacute as correlaccedilotildees entre o heroacutei de ori-gem traacutecia e a figura de Dioniso outra divindade que embora considerada grega uma vez que fora concebida em Tebas tem todo o processo de entrada e aceitaccedilatildeo do culto marcado em sua escatologia fazendo com que esse seja percebido como algo vindo de fora da Greacutecia Tais dados levam agrave compreensatildeo do mito e culto em torno da figura de Orfeu como de origem natildeo-helecircnica ou seja como um processo religioso incorporado agrave cultura da Heacutelade

Eacute interessante pensar no entanto como Orfeu eacute representado iconografica-

mente como grego mesmo ao ser representado ao lado de personagens reconhecidas

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como de origem Traacutecia como eacute destacado por Ordep Serra e visiacutevel na imagem de um vaso publicada na beliacutessima e importantiacutessima traduccedilatildeo dos Hinos Oacuterficos (SERRA p 754) Na referida imagem eacute preciso destacar que Orfeu traja uma tuacutenica e tange sua Lira de nove cordas sua proacutepria invenccedilatildeo uma vez que a lira tradicional apresentava sete cordas O contraste com os guerreiros traacutecios salienta a imagem selvagem e rude daqueles homens que se vestem com peles de leotildees todavia se encontram calmos a escutar o canto de Orfeu Esse retrato reforccedila a ideia de que o cantor filho da Musa eacute capaz de acalmar a selvageria de homens e animais

Haacute outras iconografias que ligam Orfeu agrave capacidade de acalmar as feras O

Museu Bizantino e Cristatildeo de Atenas guarda uma escultura do seacuteculo IV que justa-mente representa Orfeu a cantar e tocar para os animais que calmos escutam-no

O nome Orfeu tem uma etimologia obscura e nesse ponto eacute necessaacuterio res-

saltar novamente a hipoacutetese de se tratar originalmente de um heroacutei traacutecio que foi incluiacutedo no universo miacutetico helecircnico o que explicaria a obscuridade da etimologia de seu nome Novamente recorrendo a Brandatildeo observa-se que o estudioso levanta uma possibilidade para a compreensatildeo do nome Orfeu

A hipoacutetese de uma derivaccedilatildeo de orbho- ὀρφο- (orpho-) ldquoprivado derdquo( e Orfeu o foi de Euriacutedice) eacute apenas uma hi-poacutetese bastante influenciada pela existecircncia de ὀρφανός (orphanoacutes)

Em outra obra Brandatildeo (BRANDAtildeO 1995 p141) aventa a hipoacutetese de o nome estar ligada agrave palavra que em grego significaria a ldquoobscurordquo

A despeito da dificuldade etimoloacutegica de seu nome provavelmente de origem

preacute-helecircnica seu mito tem uma importacircncia bastante evidente na antiguidade como jaacute foi mencionado aqui Sua escatologia envolve accedilotildees que satildeo sobre-humanas e justa-mente por isso colocam o heroacutei na posiccedilatildeo de um mortal que ultrapassa sua medida seja pela capacidade ilimitada de encantar com a muacutesica seja por ter decidido ir ao mundo dos mortos mesmo estando ainda vivo Ordep Serra ao comentar os feitos de Orfeu no processo de encantar as feras com a muacutesica como apresentado nos versos de Simocircnides ldquoSatildeo imagens de beleza oniacuterica mas eacute evidente que essas faccedilanhas desa-fiam a ordem do mundo que a subvertemrdquo (SERRA p 41)

Para compreender essas desmedidas de Orfeu eacute preciso falar dos passos do

mito mesmo que de modo conciso Orfeu o muacutesico para aleacutem da sua filiaccedilatildeo agrave musa Caliacuteope e ao rei-rio da Traacutecia Eagro mais tarde associado a Apolo foi um dos heroacuteis a participar da expediccedilatildeo da nau Argo ao lado de Jasatildeo Heacuteracles e outros heroacuteis todos retratados na Argonautica de Apolocircnio de Rodes Nesse ponto eacute interessante pensar no papel de um cantor e poeta na expediccedilatildeo em busca do velocino de Ouro uma vez que Orfeu natildeo eacute reconhecido exatamente por suas virtudes guerreiras

Como entatildeo um cantor e poeta poderia ser imprescindiacutevel para aventura de

busca e captura de um objeto precioso em meio a uma regiatildeo baacuterbara Sobretudo em

uma terra cujo rei Aetes era conhecido por sua selvageria e violecircncia contra os estran-geiros Ele seraacute o indiviacuteduo que marcaraacute o ritmo das remadas e seraacute responsaacutevel por tudo que esteja ligado agrave canccedilatildeo e agrave calmaria Ele seraacute fundamental na viagem da nau Argo por ser o uacutenico capaz de encantar as sereias Sua forccedila natildeo eacute fiacutesica mas divina atraveacutes da muacutesica Serra ressalta em seu estudo introdutoacuterio agrave traduccedilatildeo dos Hinos Oacuter-ficos o que caracteriza Orfeu Ele era ldquosiacutembolo do fazer criativo que os gregos chama-vam de poicircesis uma atividade que daacute frutos em todas as esferas da imaginaccedilatildeordquo(SER-RA p21) Sua capacidade de accedilatildeo estaacute ligada portanto agrave arte criativa e em termos miacutesticos agrave capacidade encantatoacuteria Nesse sentido embora ele seja ligado ao deus da medida Apolo ele eacute o indiviacuteduo que supera seus limites humanos encantando seres sobre-humanos bem como os deuses Haacute algo de desmedido tambeacutem no mitologema de Orfeu

Aleacutem da aventura ao lado dos Argonautas o tema que mais marca o mito de Orfeu eacute seu infortuacutenio amoroso Aliaacutes na maioria das referecircncias contemporacircneas ao mito de Orfeu haacute a ideia de se falar da histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice Justamente a per-da de Euriacutedice marcaraacute a trajetoacuteria do heroacutei filho de Caliacuteope Essa passagem para aleacutem dos contornos amorosos da imagem de amor que se perde para morte natildeo uma vez mas duas traz traccedilos importantiacutessimos para a compreensatildeo dos passos dos misteacuterios

Antes de adentrar o tema do Orfismo opto por falar do enlace amoroso fun-damental para os passos do mito Orfeu casou-se com Euriacutedice depois de sua aventura junto aos Argonautas Vale ressaltar que o nome de Euriacutedice tem um significado de extrema relevacircncia Orfeu em uma hipoacutetese etimoloacutegica o obscuro ndash algo que remete agrave obscuridade dos misteacuterios ndash eacute casado com a ldquojusticcedila amplardquo pois o nome de Euriacutedice eacute composto pela raiz euri- que significa amplo e pelo vocaacutebulo diacuteke ordem justiccedila direito correccedilatildeo Karl Kereacuteny em sua obra Os heroacuteis gregos acrescenta a informaccedilatildeo de que o nome Euriacutedice significaria tambeacutem ldquoa que governa extensamenterdquo epiacuteteto atribuiacutedo agrave Perseacutefone esposa de Hades O mesmo autor elenca ainda outros nomes atribuiacutedos agrave amada de Orfeu como Agriacuteope e Argiacuteope respectivamente ldquoa de rosto selvagemrdquo e ldquoa de rosto argecircnteordquo (KEREacuteNYI p 232) Levando em consideraccedilatildeo a proposta de reflexatildeo da presente investigaccedilatildeo a respeito da permanecircncia do mito de Orfeu opto por me ater ao nome Euriacutedice Isso se daacute por ser esse o nome pelo qual se conhece a amada de Orfeu nas obras a serem trabalhadas aqui

Assim atendo-me ao nome Euriacutedice eacute interessante pensar esse desposar da ldquojusticcedila amplardquo que seraacute perdida por Orfeu No mito cantado por Virgiacutelio Euriacutedice eacute perseguida por Aristeu um apicultor que deseja a estuprar Em sua fuga Euriacutedice eacute picada por uma serpente e vem a falecer Orfeu natildeo aceita a morte da esposa e decide ir ao Hades para a resgatar

A decisatildeo de ir ao Hades eacute fundamental para a associaccedilatildeo de Orfeu aos mis-teacuterios namedida em que a ideia de ir ao mundo dos mortos e de laacute retornar implica numa espeacutecie de renascimento miacutestico renascimento do iniciado que precisa morrer e deixar sua vida anterior para traz renascendo ao voltar dos mortos

A passagem da morte da jovem Euriacutedice e da dor e busca de reparo por parte

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de Orfeu eacute contada em versos por Virgiacutelio como jaacute foi dito Mais precisamente nas Geoacutergicas IV versos 453-527 em que se vecirc Aristeu o apicultor procurando compreen-der que maldiccedilatildeo se abate sobre ele causando o perecimento de todas as suas abelhas

A resposta vem do velho Proteu o qual eacute uma figura tomada dentro da tradi-

ccedilatildeo literaacuteria claacutessica agrave Odisseia como bem lembra Veiga no comentaacuterio que antecede a apresentaccedilatildeo do texto original de Virgiacutelio e de sua proposta de traduccedilatildeo Assim o apicultor apoacutes aprisionar Proteu e esperar suas metamorfoses cessarem obteacutem final-mente a resposta

Eacute a ira a ira de uma divindade que te persegue pagas os grandes atentados o pobre Orfeu de nenhum modo se os destinos natildeo se opotildeem alivia a ti estas penas por causa do teu comportamento e se enfurece severamente por causa da esposa raptada De fato aquela menina prestes a mor-rer enquanto fugia de ti precipitada atraveacutes dos rios natildeo viu diante dos peacutes na relva densa a feroz cobra que vigiava as margens142 (Veiga p 175)

Eacute necessaacuterio perceber como o eu-liacuterico se refere a Orfeu como divindade a qual natildeo alivia as penas do apicultor na responsabilidade pela morte de Euriacutedice natildeo nomeada nessa passagem Os versos de Virgiacutelio destacam como morre a jovem esposa de Orfeu picada por uma viacutebora escondida na relva todavia isso ocorre apenas por-que a moccedila foge aos ataques do Apicultor Assim a responsabilidade pela morte de Euriacutedice cai sobre Aristeu

11 A simbologia do desapego agrave mateacuteria Continuando a observar o mitologema de Orfeu passamos a passagem que soacute

pode ocorrer devido agrave morte de Euriacutedice Com isso quero chamar a atenccedilatildeo para o fato de que o processo de iniciaccedilatildeo simboacutelica de Orfeu soacute pode se dar devida a perda daque-la que o completaria Nesse sentido eacute interessante pensar em outro par miacutetico e miacutesti-co Eacuteros e Psiquecirc Todavia no caso da busca empreendida por Psiquecirc na recuperaccedilatildeo de seu amor perdido por sua desconfianccedila haacute o reencontro e uniatildeo definitiva do casal Algo que natildeo se daraacute na versatildeo claacutessica do mito de Orfeu e Euriacutedice como seraacute visto a partir dos versos de Virgiacutelio por meio da traduccedilatildeo de Veiga Observe-se a passagem em que Orfeu comeccedila a empreender sua cataacutebase ou descida ao mundo dos mortos

Penetrou nas gargantas do Tecircnaro entrada profunda de Dite e no bosque obscuro sob o negro temor e dirigiu-se aos manes ao rei temiacutevel e aos coraccedilotildees que natildeo sabem se abrandar com as suacuteplicas dos homens Mas comovi-das pelo canto as sombras tecircnues e os espectros dos ca-

142 Non te nullius exercent numinis irae magna lui scommissa tibi has miserabilis Orpheus haudquaquam ob meritum poenas ni fata resistant 455 suscitat et rapta grauiter pro coniuge saeuit Illaquidem dum te fugeret per flumina prae-ceps immanem ante pedes hydrum moritura puella seruantem ripas alta non uidit in herba

rentes de luz acorriam das moradas profundas do Eacuterebo () Aleacutem disso os proacuteprios recintos e tambeacutem os abismos mais profundos da morte pararam e as Eumecircnides en-trelaccediladas de serpentes azuis nos cabelos detiveram-se e Ceacuterbero desejando abrir segurou as trecircs bocas tambeacutem o giro da roda de Ixiatildeo com o vento cessou143 (VEIGA p173)

As gargantas do Tecircnaro conduzem agrave entrada do Dite outro nome para Plutatildeo o senhor dos mortos O mundo daqueles que natildeo mais vecircm o sol leva o nome de seu senhor do mesmo modo que o Hades na cultura helecircnica eacute o nome dado ao reino do Zeus dos mortos Assim Orfeu adentra a morte como em um processo de iniciaccedilatildeo no qual o neoacutefito morre para a vida antiga e renasce O cantor filho da Musa adentra o Dite para encantar os senhores de laacute e convencecirc-los a devolver sua amada perdida para a morte Nesse sentido Orfeu segue buscando o amor que se foi e portanto voltando--se para um passado

No poema virgiliano observa-se perfeitamente o dom musical sobre humano de Orfeu ao encantar a todos inclusive agraves Eumecircnides as tatildeo terriacuteveis justiceiras do sangue congecircnito derramado Por conta desse dom Proseacuterpina permite o retorno de Euriacutedice mas com a condiccedilatildeo que ele natildeo se voltasse para traacutes buscando a ver antes de ter saiacutedo do Dite Todavia ele natildeo resiste e se volta para sua amada receacutem retornada dos mortos

E jaacute prosseguindo de todo acidente se evadira e Euriacutedi-ce restituiacuteda vinha para a superfiacutecie seguindo atraacutes (pois Proseacuterpina tinha imposto esta lei) quando uma loucura suacutebita que decerto deveria ser perdoada se os manes sou-bessem perdoar tomou o incauto amante parou e para a sua Euriacutedice jaacute sob a luz olhou esquecido ai e vencido pela paixatildeo Nesse momento todo o esforccedilo se perdeu e a lei do cruel tirano foi infringida e trecircs vezes se ouviu um estrondo nos lagos do Averno Ela disse ldquoQual oacute Orfeu arruinou a mim miacutesera e a ti Qual tamanha loucura Eis que os destinos crueacuteis pela segunda vez me chamam de volta e o sono encerra meus olhos em laacutegrimas E agora adeus sou levada envolta por uma noite sem fim e esten-dendo a ti as invaacutelidas matildeos ai jaacute natildeo sou mais tua144

(VEIGA p 176) O natildeo pertencimento de Euriacutedice em relaccedilatildeo agrave Orfeu eacute marcado no uacuteltimo

verso citado Esse natildeo pertencimento estaacute relacionado agravequilo que simbolicamente precisa ser deixado para traacutes pelo iniciado Olhar para traacutes eacute estar apegado ao passado

143 Taenarias etiam fauces alta ostia Ditis et caligantem nigra formidine lucum ingressus Manisque adiit regemque tre-mendum nesciaque humanis precibus mansuescere corda470 At cantu commotae Erebi de sedibus imis umbrae ibant tecircnues simulacraque luce carentum () Quin ipsae stupuere domus at que intima Leti Tartara caeruleosque implexa ecrinibus angues Eumenides tenuitque inhians tria Cerberus ora atque Ixionii uento rota constitit orbis

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agravequilo que simboliza a existecircncia antes da iniciaccedilatildeo reveladora e do renascimento do neoacutefito De acordo com Brandatildeo as direccedilotildees carregam dimensotildees simboacutelicas impor-tantes

Eacute assim que olhar para frente eacute desvendar o futuro e pos-sibilitar a revelaccedilatildeo() para traacutes eacute o regresso ao passado agraves harmatiacuteai agraves faltas aos erros eacute a renuacutencia ao espiacuterito e agrave verdade (BRANDAtildeO 1997 199)

A partir dessa reflexatildeo podemos compreender o ato de olhar para traacutes pelo menos na cultura que molda o Ocidente como um sinal de apego ao passado ou agrave vida que precisa ser deixada Brandatildeo em outra obra que trata do mito de Orfeu e do Orfismo corrobora a ideia de que o gesto de voltar para traacutes simbolizaria um apego agrave mateacuteria e ao passado representado por Euriacutedice Isso seria um reflexo do momento de desenvolvimento em que se encontra o heroacutei um a pessoa ainda natildeo preparada para ldquojunccedilatildeo harmocircnica e definitiva com sua animardquo (BRANDAtildeO 1995 p144)

12 O dilaceramento de Orfeu Apoacutes ter perdido definitivamente sua Euriacutedice Virgiacutelio canta como Orfeu cho-

rou por sete meses seguidos e chamou o nome de Euriacutedice Ele natildeo consegue mais cantar apenas chama por Euriacutedice

O passo seguinte seria o seu dilaceramento por Bacantes talvez por ter esque-cido o culto a Dioniso talvez por ter rejeitado o convite das Bacas para participar em seus folguedos dionisiacuteacos talvez ainda por ter fundado um culto vedado agraves mulheres todas essas hipoacuteteses satildeo aventadas por autores como Brandatildeo e Serra Kereacutenyi traz uma versatildeo baseada em Oviacutedio em sua obra Metamorfoses na qual

Segundo as histoacuteria mais antiga as mulheres da Traacutecia do-eram-se de que Orfeu se mantivesse afastado do amor das mulheres por trecircs anos inteiros Acostumado a procurar apenas a companhia dos moccedilos dele se dizia que intro-duziu a paixatildeo homoeroacutetica na Traacutecia (KEREacuteNYI p234)

Serra menciona a hipoacutetese de Pausacircnias segundo a qual Orfeu ter sido fulmi-nado por um raio de Zeus por ter revelado aos humanos os misteacuterios divinos De certo modo o Orfismo do qual se falaraacute mais a diante traz a promessa de uma vida apoacutes a morte a partir das praacuteticas miacutesticas e dos cultos de misteacuterios Os Hinos Oacuterficos embo-ra se saiba que satildeo textos bem posteriores a esse passado miacutetico da personagem Orfeu satildeo considerados escritos recitados a Museu disciacutepulo do canto traacutecio ou em algumas

144Iamque pedem referens casus euaserat omnis 485redditaque Eurydice superas ueniebat ad auras pone sequens (manque hanc dederat Proserpina legem) cum suacutebita incautum dementia cepit amantem ignoscenda quidems ci-rent si ignoscere Manes restitit Eurydicenque suam iam luce sub ipsa 490 immemor heu Uictusque animi respexit Ibi omnis effusus labor atque immitis rupta tyranni foedera terque fragor stagnis auditus Auerni Illa ldquoquisetmerdquo inquit ldquomiseram et te perdidit Orpheu quistan tus furor Em iterum crudelia retro 495 fata uocant conditque na-tantia lumina somnus Iamque uale feror ingenti circumdata nocte inualidasque tibi tendens heu Non tua palmasrdquo

tradiccedilotildees seu filho

Voltando ao episoacutedio do desmembramento mesmo com tantas variantes tem--se a ideia de que Orfeu tem o corpo destroccedilado por mulheres um tema recorrente em imagens de vasos aacuteticos como seraacute comentado mais agrave frente Desse processo de spa-ragmoacutes ou diaspagamoacutes o qual tambeacutem poderia ser considerado como um passo de uma ritualiacutestica simboacutelico-miacutetica encontrada em mitologemas de Dioniso e de Osiacuteris o deus Egiacutepcio resulta a viagem da cabeccedila de Orfeu lanccedilada ao rio Hebro Sua cabeccedila encontrada por um pescador na embocadura do rio Meles na Jocircnia eacute conservada em um templo erguido para esse fim donde a cabeccedila passaraacute a vaticinar

13 O Orfismo e os misteacuterios

Muitas vezes ouve-se falar dos misteacuterios no acircmbito da cultura religiosa he-lecircnica Sabe-se da existecircncia dos misteacuterios de Elecircusis dos misteacuterios ligados ao culto de Dioniso e dos misteacuterios Oacuterficos e no acircmbito do Impeacuterio Romano dos misteacuterios de Mitra De fato exatamente como eram os cultos de misteacuterios natildeo se pode falar jus-tamente por seu caraacuteter interdito aos natildeo-iniciados Entretanto eacute possiacutevel investigar alguns dados sobre os misteacuterios e compreender suas configuraccedilotildees em linhas gerais Serra (SERRA p22) referindo-se ao Orfismo afirma

O culto de Misteacuterios envolvia iniciaccedilatildeo alentada pela es-peranccedila de comunhatildeo com a divindade () Essa forma de culto distinguia-se de todas as outras na Greacutecia Antiga pelo imperativo do segredo O nome substantivo mysteria ndash que sempre se registra assim no plural nos documentos mais antigos ndash tal como seu cognato myeicircn (ldquoiniciarrdquo) e myeicircsthai (ldquoser iniciadordquo) deriva de uma raiz um [pre-sente no latim mutus donde o portuguecircs ldquomudordquo] que tem o significado baacutesico de fechar O mystes iniciado eacute algueacutem que mantem os laacutebios cerrados guardando segre-do religioso

Ou seja pela observaccedilatildeo do autor citado compreende-se o caraacuteter secreto das praacuteticas religiosas que envolvem os Misteacuterios

O Orfismo seria uma das formas de cultos de misteacuterios no ambiente helecircnico que ultrapassou os limites do periacuteodo arcaico e claacutessico e chegou ateacute a chamada an-tiguidade tardia Os Hinos Oacuterficos satildeo exemplo disso embora haja uma controveacutersia histoacuterica a respeito da existecircncia ou natildeo do Orfismo como comentam Brandatildeo (1995 p 150) e Serra (p 77) De qualquer modo a soteriologia ou seja um processo religioso que pretende a salvaccedilatildeo de seu adepto era algo evidente na praacutetica religiosa conhecida como Orfismo sendo a figura de Orfeu a do cantor iniciado a transmitir os ensinamen-tos para a salvaccedilatildeo O processo de culto oacuterfico a despeito da filiaccedilatildeo do muacutesico traacutecio a Apolo estaacute mais ligado agrave figura de Dioniso Vale ressaltar que tanto Dioniso quanto Orfeu apresentam em seus mitos a cataacutebase e o despedaccedilamento De acordo com Eliade (1978 p215)

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Diodoro da Siciacutelia refere-se ao que parece aos mis-teacuterios dionisiacuteacos quando escreve que ldquoOrfeu trans-mitiu nas cerimocircnias dos misteacuterios o despedaccedilamen-to de Dionisordquo (V 75 4) E em outro trecho Orfeu eacute apresentado como um reformador dos misteacuterios dio-nisiacuteacos ldquoeacute por esse motivo que as iniciaccedilotildees devidas a Dioniso satildeo denominadas Oacuterficasrdquo (III 65 6) () Com efeito Orfeu era proclamado ldquoprofeta de Dioni-sordquo e ldquofundador de todas as iniciaccedilotildeesrdquo

Os Hinos Oacuterficos oferecem ao leitor a ideia de que se trata de uma coleccedilatildeo de cantos celebrando os deuses ou os invocando com um ar ritualiacutestico como eacute possiacutevel perceber pelos dois uacuteltimos versos do ldquoProecircmiordquo de Orfeu a Museu ldquoPropiacutecios vinde oacute deuses de coraccedilatildeo alegreAo miacutestico sacrifiacutecio e agrave libaccedilatildeo perfeitardquo145

Essa breve abordagem do mitologema de Orfeu e de seus desdobramentos simboacutelicos aleacutem da menccedilatildeo ao Orfismo oferece ao leitor uma ideia da potecircncia do re-ferido mito Tal apreciaccedilatildeo auxilia a compreender a constante retomada do mito oacuterfico e em especial da passagem em que haacute a perda de Euriacutedice e a cataacutebase ao mundo dos mortos Assim passo a abordar a permanecircncia e as modificaccedilotildees do mito de Orfeu em diversas expressotildees de arte para aleacutem da palavra escrita

2 Tantos Orfeus Em vaacuterias expressotildees artiacutesticas o mito de Orfeu e seu amor por Euriacutedice satildeo

retomados e adaptados ao longo dos seacuteculos Desde o Renascimento ateacute a contempora-neidade No presente estudo selecionei apenas algumas obras de expressotildees bastante distintas para que fosse possiacutevel ter uma ideia da variedade de formas com as quais essa passagem da mitologia claacutessica eacute percebida e reconstruiacuteda como narrativa

21 A oacutepera canta Orfeu e Euriacutedice Assim comeccedilo a apreciaccedilatildeo por uma oacutepera que natildeo seraacute a primeira a retomar

a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice A primeira foi a oacutepera Orfeo de Monteverdi em 1607 (GARDNER 2015) A estoacuteria de amor interrompida pela morte que enreda Orfeu e Euriacutedice foi tomada como tema por Christoph Willinband Gluck na oacutepera Orpheacutee et Eurydice em 1762 Todavia se nas passagens miacuteticas claacutessicas Orfeu perde definitiva-mente sua Euriacutedice Gluck reescreve o mito e em sua oacutepera oferece ao casal um final feliz sob os auspiacutecios do deus Amor o Eacuteros da mitologia grega

Eacute interessante pensar como o desfecho da oacutepera oferece agrave audiecircncia o canto do deus Amor que celebra altivo as dores e alegrias do amor que traz dores e laacutegrimas mas eacute ldquopreferiacutevel agrave liberdaderdquo Definitivamente celebra-se o amor romacircntico com final feliz ecoando os romances gregos que satildeo amplamente lidos no mesmo periacuteodo histoacute-rico de Gluck e que sempre contam com o finais felizes

145 εὐμενἐας ἐλθεῖν κεχαρημένον ἦτορ ἔχονταςτήνδε θυηπολίην ἱερὴν σπονδήν τ´ἐπὶ σεμνήν

Eacute relevante refletir como a versatildeo de Gluck ao modificar o desenlace do episoacute-dio de ida ao mundo dos mortos elimina os outros passos da narrativa miacutetica Isso se daacute na medida em que tendo recuperado sua amada Orfeu natildeo cairaacute em tristeza e natildeo teraacute seu fim agraves matildeos das bacantes natildeo passando por um diaspargmoacutes e natildeo tendo sua cabeccedila lanccedilada ao rio

22 O pathosformel do dilaceramento Se para Gluck o final feliz eacute possiacutevel para alguns pintores gravuristas e escul-

tores o diasparagmoacutes baacutequico seraacute o tema eleito para dar plasticidade ao mito claacutessico como ocorre na imagem de Albrecht Duumlrer na gravura intitulada Morte de Orfeu de 1494

Albrecht Duumlrer A Morte de Orfeu 1494 (Hambourg Kunsthalle) (CARERI 2003 p 46)

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Vale ressaltar que em relaccedilatildeo a essa obra de Duumlrer pode-se tomar a ideia de Aby Warburg de pathosformel uma vez que haacute a repeticcedilatildeo de um tema formal a ser emulado a partir de um modelo Giovanni Careri aponta isso em seu artigo Rituel Pa-thosformel et forme intermeacutediaire referindo-se justamente ao tema de Orfeu Nesse caso a repeticcedilatildeo temaacutetica formal partiria de um vaso aacutetico que retrata a morte do He-roacutei pelas matildeos das bacantes repetido por Duumlrer e igualmente por Andrea Mantegna em um afresco como se vecirc nas imagens que se seguem Eacute possiacutevel perceber a seme-

La mort drsquoOrpheacutee vase grec de Nola (Louvre) (CARERI 2003 p48)

Andrea Mantegna A morte de Orfeu (palaacutecio de Mantoue) (CARERI 2003 p 51)

Morte de Orfeu (Wikimidia Commons 2020)

lhanccedila no conjunto de bacantes a agredir Orfeu caiacutedo ao chatildeo As obras se diferenciam pela teacutecnica suporte e estilo todavia apresentam o mesmo pathosformel

Acrescento agrave reflexatildeo de Careri que natildeo se limita ao mito de Orfeu outras obras que repetem o tema do dilaceramento pelas matildeos das bacantes caso da obra de Jean Baptiste Bin de 1874

23 O mito oacuterfico no cinema

Deixando a plasticidade busco agora as artes populares do seacuteculo XX como o cinema Jean Cocteau e Marcel Camus levaram Orfeu agraves telas mas de maneiras intei-ramente diferentes

Natildeo obstante antes de abordar as produccedilotildees ambientadas no Brasil vale men-cionar mesmo que natildeo venha a ser trabalhado no presente estudo o filme de produccedilatildeo grega de Nikos Nikolaiacutedis Euriacutedice BA 2037 em que a protagonista eacute Euriacutedice vivendo em um ambiente de clausura dentro de casa e lidando com a burocracia e a espera por Orfeu

Lidando com os filmes que trazem Orfeu como personagem busco observar as

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diferenccedilas entre a proposta de Cocteau e Camus Se o cinema de Cocteau traz uma ver-satildeo que lida com uma espeacutecie de fantasmagoria em que o poeta adentra o mundo dos mortos pelo espelho a obra de Camus seraacute baseada na livre adaptaccedilatildeo do mito para o contexto carioca das favelas do Rio de Janeiro realizada por Vinicius de Moraes em sua peccedila musical Orfeu da conceiccedilatildeo Na presente investigaccedilatildeo opto por me debruccedilar mais atentamente sobre o filme baseado no teatro brasileiro

Orfeu da Conceiccedilatildeo foi composto pelo poeta Vinicius de Moraes e musicado por Tom Jobim O espetaacuteculo teatral foi levado agrave cena em 1956 pelo grupo do TEM Tea-tro Experimental do Negro dirigido por Abdias do Nascimento A despeito da maneira folcloacuterica e romantizada como o ambiente da favela eacute retratado a adaptaccedilatildeo do mito eacute extremamente interessante e isso fica evidente na adaptaccedilatildeo para o cinema a qual daacute acesso ao puacuteblico de hoje agravequela rescrita do mito

Orfeu aleacutem de um condutor de bonde eacute um sambista que vai tirar o violatildeo do prego para poder voltar a tocar O filme se passa no periacuteodo do Carnaval e eacute esse o mo-mento em que Euriacutedice uma moccedila do interior que foge de uma figura fantasmagoacuterica ndash a morte destino do qual natildeo pode se livrar ndash chega agrave Favela e conhece o sambista

Haacute tomadas que procuram marcar a imagem do tempo de Carnaval como um momento de festa desregrada que atordoa Euriacutedice A imagem da barca atracando na Praccedila XV e de onde desembarca uma multidatildeo de foliotildees traz algo do frenesi exacerba-do como eacute percebido o Carnaval pela lente de Camus o universo caoacutetico do Carnaval

Orfeu aleacutem de condutor de bonde canta para o sol nascer remetendo a ima-gem do sambista agrave ideia apoliacutenea da conduccedilatildeo do carro do Sol ou seja de responsabi-lidade pelo amanhecer de cada dia Outras personagens que colaboram na economia do mito seratildeo encontradas em Orfeu Negro Hermes seraacute o chefe dos condutores de bonde Caronte seraacute retratado como um faxineiro da reparticcedilatildeo puacuteblica em que Orfeu vai buscar notiacutecias sobre sua amada desaparecida como se observa na imagem

Orfeu negro (CAMUS 1959)

Orfeu negro (CAMUS 1959)

Caronte o condutor da barca que leva os mortos para a travessia do rio Estige ateacute seu destino final no Hades seraacute tambeacutem no filme aquele que conduz o sambista na busca sobrenatural por Euriacutedice Caronte conduz Orfeu para ter contato com os mortos em uma toma de plasticidade iacutempar

Aqui a cataacutebase oacuterfica eacute representada pela imensa escada em espiral A ima-gem daacute uma sensaccedilatildeo de descida infinita como a penetrar o interior desse mundo subterracircneo que eacute a morada miacutetica dos mortos

O lugar do misteacuterios seraacute um centro religioso de matriz africana Na porta o catildeo Ceacuterbero guarda a entrada Euriacutedice se comunicaraacute com Orfeu estando incorporada em uma meacutedium O problema eacute Orfeu natildeo aceitar a morte de Euriacutedice e olhar para direccedilatildeo de onde vem a voz da amada

Orfeu eacute encontrado por Hermes (chefe dos condutores) na mitologia grega o psicopompo ndash condutor de almas ndash e o leva para buscar o cadaacutever de Euriacutedice I n -teressante perceber como pela leitura de Vinicius de Moraes levada agrave tela por Camus Orfeu apoacutes recuperar o cadaacutever de Euriacutedice encontra a morte pelas matildeos de sua ex-namorada Mira Mira na pronuacutencia do grego moderno eacute moira ou seja ldquodestinordquo em grego Pode-se perceber como eacute essa a personagem que sela o destino a moira de Orfeu Ele carregando o cadaacutever no colo cai colina abaixo e morre ao receber uma pedrada de Mira Em uma leitura de iniciaccedilatildeo miacutestica seria possiacutevel compreender como esse Orfeu natildeo consegue transcender a mateacuteria ele estaacute preso agrave finitude da vida encarnada

Em 1999 Cacaacute Diegues lanccedila sua versatildeo par o mito O tiacutetulo do filme eacute Orfeu o que jaacute constitui uma mudanccedila destacaacutevel para o tiacutetulo de Camus Do mesmo modo a ambientaccedilatildeo eacute outra a favela de Diegues natildeo eacute a romantizada pelo olhar de Camus e

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de Moraes mas a que traz a violecircncia cotidiana em que a poliacutecia sobe o morro ldquoescula-chandordquo e haacute o domiacutenio do narcotraacutefico Uma frase traduz a abordagem mais realista na fala de um policial que pergunta a Orfeu ldquoo que vocecirc ainda taacute fazendo aqui no meio desse monte de lixordquo referindo-se agrave populaccedilatildeo residente na favela com desrespeito Na abordagem de Diegues Orfeu jaacute eacute um sambista conhecido mas que natildeo deixa suas origens E mesmo com toda a truculecircncia eacute o mesmo policial que chora e faz o sinal da cruz com o cano de seu revolver ao constatar o assassinato de Orfeu Mesmo em meio a tanta violecircncia e brutalidade haacute espaccedilo para a expressatildeo do sentimento

Destaco a imagem de Orfeu ainda sambista e responsaacutevel pelo amanhecer e me detenho na letra na muacutesica tema do filme de autoria de Caetano Veloso em que se destaca a imagem da mulher que completa o homem

Mar sob o ceacuteuCidade na luzMundo meuCanccedilatildeo que eu compusMudo tudoAgora eacute vocecircA minha vozQue era da amplidatildeoDo universo da imensidatildeoHoje canta soacute por vocecircMinha mulher meu amor meu lugarAntes de vocecirc chegarEra tudo saudadeMeu canto mudo no arFaz do seu nome hoje o ceacuteu da cidadeLua no mar estrelas no chatildeoAos seus pegraves entre as suas matildeosTudo quer alcanccedilar vocecircLevanta o sol do meu coraccedilatildeoJagrave natildeo vivo nem morro em vatildeoSou mais euPorque sou vocecirc

A Letra de Caetano Veloso traz a ideia de completude no outro sou vocecirc e soacute posso ser ldquomais eu porque sou vocecircrdquo Importante notar a mudanccedila do eu-liacuterico cuja voz era do universo da amplidatildeo e agora canta soacute pela mulher amada ldquominha mulher meu amor meu lugarrdquo O viver passa a ter sentido pelo completar-se no outro

24 Orfeu nos quadrinhos Passando para cultura pop e mais especificamente para os quadrinhos o

mito de Orfeu eacute reinventado por Neil Gaiman e Brian Talbot na histoacuteria A canccedilatildeo de Orpheus publicada na saga de Sadman entre 1989 e 1996

Na versatildeo de Gaiman e Talbot Orfeu filho eacute de Oacuteneiros a personagem prin-cipal da saga Sandman Ele eacute portanto filho do senhor dos sonhos e tem uma famiacutelia emblemaacutetica que eacute apresentada ao leitor logo na primeira parte de A canccedilatildeo de Or-pheus

Seus tios e tias satildeo alegorias de sentimentos e potecircncias divinas satildeo eles Te-leute Aponia Ptomos Epithymia Eacute interessante pensar n significado dos nomes des-ses parentes de Orfeu Comeccedilo por Teleute que eacute a personagem Morte da saga de Sadman Em grego Teleute significa aquilo que se completa que chega ao fim o fim da vida ou simplesmente morte

Aponia em grego significa preguiccedila para epicuro seria o estado de liberta-ccedilatildeo da dor mas tambeacutem poderia significar em termos meacutedicos a ausecircncia da razatildeo correspondendo ao termo mania E eacute justamente a acepccedilatildeo de demecircncia que eacute eviden-ciada na abordagem dos quadrinhos Haacute ainda a tia Epithimia que significa desejo e o tio Ptomos o destino

Aristeu ao inveacutes de ser um apicultor seraacute um saacutetiro amigo de Orfeu O que torna o morte de Euriacutedice mais dramaacutetica ainda pois eacute causada por um amigo de seu noivo A saga se inicia no dia do casamento de Euriacutedice e Orfeu Aqui eacute interessante pensar em como a figura do saacutetiro eacute colocada no lugar do apicultor do mito original Isso pode ter se dado pela ideia que a imagem miacutetica do saacutetiro traz em si a ideia de desregramento de descomedimento

Vale ressaltar que a morte de Euriacutedice segue o padratildeo da tradiccedilatildeo claacutessica Natildeo obstante a trajetoacuteria de busca empreendida por Orfeu apresenta detalhes surprenden-tes como o momento em que o cantor vai ter com sua tia Morte e tem um choque com o ambiente em que ela vive que remete agrave segunda metade do seacuteculo XX

(GAIMAN TALBOT 1993 p 22)

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A canccedilatildeo de Orpheus seraacute uma releitura bastante proacutexima da tradiccedilatildeo claacutessica a exceccedilatildeo dos detalhes mencionados anteriormente A concepccedilatildeo da ida ao Hades o perda de Euriacutedice no momento em que ele se volta para olhar a amada e ter certeza de que ela o segue para fora do mundo dos mortos satildeo totalmente baseadas na tradiccedilatildeo miacutetica claacutessica Seu desmembramento pelas bacantes tambeacutem segue a tradiccedilatildeo Ape-nas o desfecho da obra apresenta o desvio em que Oneiros o pai de Orfeu no contexto de Sandman vai se despedir da cabeccedila que ainda fala

24 Orfeu no mangaacute no anime e no game

Entre 1985 e 1990 Masami Kuramada comeccedila a publicar seu mangaacute intitulado Saint Seiya no Japatildeo A seacuterie de anime conhecida como Cavaleiros do Zodiacuteaco foi ao ar em 1994 na extinta Manchete a rede de Televisatildeo A saga desse anime teraacute uma seacuterie de diaacutelogos com a antiguidade helecircnica e seus desdobramentos Eacute interessante pensar nos nomes de alguns cavaleiros rivais dos cavaleiros de Atena como o cavaleiro de Ceacuterbero Dante cujo nome remete ao catildeo triceacutefalo do Hades e ao poeta que retrata o ciacuterculos infernais em sua Divina Comeacutedia

Orfeu seraacute abordado duas vezes nesse anime Haveraacute o Orfeu de Lira e o Orfeu de Harpa dois cavaleiros diferentes

O cavaleiro que interessa especialmente agrave presente pesquisa eacute o Orfeu de Lira pois seraacute ele o cavaleiro que viveraacute os passos do mito tradicional com algumas adap-taccedilotildees evidentemente

Em Saint Seiya O Santo Guerreiro um filme autocircnomo da saga dos Cavaleiros do Zodiacuteaco Orfeu eacute um dos cavaleiros fantasmas revividos pela deus Eacuteris a discoacuterdia Nesse filme eacute apresentada a relaccedilatildeo amorosa de Orfeu e Euriacutedice na qual o casal tam-beacutem eacute separado pela morte Todavia ao trazer sua amada de volta do Hades o cavalei-ro cantor natildeo duvida de que sua Euriacutedice o segue um ponto interessante Na verdade ele eacute enganado pela personagem Pandora Ela o induz a erro ao fazer com que Orfeu acreditasse estar jaacute sob luz solar Assim o heroacutei se volta para Euriacutedice antes da hora adequada e ela eacute transmutada em estaacutetua de pedra Curioso perceber como o tema da materialidade que aprisiona eacute abordado tambeacutem nessa obra uma vez que natildeo eacute o espectro de Euriacutedice que desaparece mas eacute uma personagem com corpo transmutado em rocha que se torna prisioneira desse meio de caminho entre vida e morte

Entretanto Orfeu durante muito tempo preso diante da imagem de Euriacutedice- rocha decide libertar a amada para que ela tambeacutem possa ter paz A partir daiacute vem um passo importante na saga de Orfeu na animaccedilatildeo o momento em que reconhece o erro cometido ao tentar vencer a morte e promete agrave Euriacutedice que destruiraacute Hades realizando a chamada ldquoserenata mortalrdquo Um contraste forte entre o Orfeu da tradiccedilatildeo claacutessica e aquele da obra de Kuramada eacute o fato de que o Orfeu do anime tem um poder agressivo a serenata eacute mortal Jaacute o Orfeu da tradiccedilatildeo emociona e acalma atraveacutes de sua muacutesica

Por fim eacute interessante notar como Orfeu se torna personagem do jogo Cava-leiros do Zodiacuteaco sendo caracterizado pelo poder de cura O que eacute relevante pois vem

a ser uma caracteriacutestica nada belicista a que ele teraacute o que eacute curioso para uma perso-nagem de uma jogo de accedilatildeo e de luta Todavia sua canccedilatildeo natildeo mais acalma

3 Tantos Orfeus

Nesse breve passeio de apreciaccedilatildeo da permanecircncia e releitura do mito de Or-feu percebe-se natildeo apenas quatildeo profiacutecua eacute essa narrativa miacutetica mas como ela se desdobra em diferentes teacutecnicas sendo retratada inclusive pela arte pop e adentrando a induacutestria de games

Para terminar essa reflexatildeo volto agrave muacutesica escolhida como epiacutegrafe em que o eu-liacuterico quer ser o Orfeu que almeja natildeo a sua Euriacutedice mas deseja ser

o amante Que vocecirc devora de traacutes para frente Feito Bacante lambendo seus dentes Pra mastigar meu coraccedilatildeopelos bares da Consolaccedilatildeo

Nessa experiecircncia fagia eroacutetica ambientada em Satildeo Paulo fabrica-se o poeta de uma busca corporal por prazer

E assim derretendo na tua saliva Ser a substacircncia enlouquecida com que se escrevem cartas de amor

Desse modo encerro o pequeno passeio em torno da imagem do poeta-cantor miacutetico revisitado de inuacutemeras formas Creio eu que Orfeu continuaraacute sendo mateacuteria de poiesis para muitas e vaacuterias experimentaccedilotildees artiacutesticas

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Referecircncias

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BRANDAtildeO Junito de Souza Mitologia Grega 6 ed Petroacutepolis Vozes 1997 v 2

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ELIADE Mircea Histoacuteria das crenccedilas e das ideacuteias religiosas Rio de Janeiro Zahar 1978

GAIMAN Neil TALBOT Brian A canccedilatildeo de Orpheus Sandman Satildeo Paulo n1 1993 Ediccedilatildeo especial

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KEREacuteNYI Karl Os heroacuteis gregos Satildeo Paulo Cultrix 1993

ORFEU Direccedilatildeo Carlos Diegues Rio de Janeiro Globo Filmes 1999 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecom watchv=4fIbjaHFX-k Acesso em 27092020

ORFEU negro Direccedilatildeo Marcel Camus Satildeo Paulo Vera Cruz Paris Dispat Film 1959 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=fWIwTOtvbSkampt=5003s Acesso em 27092020

SAINT Seiya O Santo Guerreiro Direccedilatildeo Kocirczocirc Morishita Toacutequio Toei Animation 1987

SEU ORFEU Compositor e inteacuterprete Thiago Petit Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatch v=tvYLywWgtjc Acesso em 27092020

VEIGA Paulo Eduardo de Barros O mito de Orfeu e Euriacutedice no Livro IV das Geoacutergicas de Virgiacutelio Roacutenai Juiz de Fora n 1 v 6 p 172-178 2018

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Proecircmio de Metamorfoses aula de Poesia

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Milton Marques Juacutenior

ldquoIl fatto egrave che il traduttore non deve solo conoscere la lin-gua ma anche la storia e la topografia di ogni singola cit-tagraverdquo (Umberto Eco ndash Dire quasi la stessa cosa p 193)

ldquoQue ele o conselheiro depois de os citar em prosa nossa repetiu-os no proacuteprio texto grego e os dois gecircmeos senti-ram-se ainda mais eacutepicos tatildeo certo eacute que traduccedilotildees natildeo valem originaisrdquo (Machado de Assis Esauacute e Jacoacute Capiacutetulo XLV ldquoMusa cantardquo)

O proecircmio de Metamorfoses de Oviacutedio eacute miacutenimo quando levamos em conta o tamanho do poema Satildeo meros 4 versos num livro de exatos 11994 versos Pensemos por exemplo no proecircmio da Teogonia de Hesiacuteodo com 115 versos num total de 1022 Se no seu tamanho o proecircmio eacute iacutenfimo no seu sentido eacute de uma densidade iacutempar so-bretudo pelo fato de que nesses 4 versos Oviacutedio nos daacute uma aula de poesia no sentido aristoteacutelico do termo de ποίησις como a accedilatildeo de criar

O que se pode compreender do proecircmio em uma primeira leitura eacute a inten-ccedilatildeo do poeta de cantar as mudanccedilas ou metamorfoses de alguns dos personagens da narrativa desde a origem do mundo ateacute a sua contemporaneidade ndash esta eacute a proposi-ccedilatildeo ndash e o pedido aos deuses divindades aqui natildeo especificadas para o favorecimento e conduccedilatildeo de seu canto ndash esta eacute a invocaccedilatildeo

A partir do momento em que nos entregamos a um exerciacutecio de traduccedilatildeo desse proecircmio vemos que o poeta natildeo soacute diz qual o objeto de seu canto e natildeo soacute invoca os deuses para a sua proteccedilatildeo O poeta vai aleacutem e nos revela a proacutepria arte de construccedilatildeo poeacutetica dentro dos moldes da poesia claacutessica a eacutepica sobretudo que natildeo desprezava a invocaccedilatildeo Abramos um parecircntesis para dizer que embora composta em hexacircmetros ndash uacutenico poema de Oviacutedio a usar soacute este tipo de verso ndash Metamorfoses natildeo pode ser vista como exclusivamente eacutepica Obedecendo agrave proacutepria loacutegica interna do poema vemos no decorrer do enredo como ali se encontram o liacuterico e o traacutegico lado a lado com o eacutepi-co Se o amor frustrado de Apolo por Dafne no Livro I eacute um momento liacuterico objeto inclusive de um soneto camoniano ndash ldquoO filho de Latona esclarecidordquo ndash o mito de Me-leagro no Livro VIII eacute traacutegico embora ambos derivem de um nuacutecleo eacutepico no poema Do mesmo modo do Livro XII ao Livro XV vemos as suiacutetes troianas e romanas que confirmam o tom eacutepico mesmo que aiacute se encontrem os amores frustrados de Glauco e Cila e de Polifemo e Galateia Desse modo se haacute metamorfoses de personagens haacute metamorfose de gecircnero ao longo do poema diversidade que faz a sua beleza por que-brar a monotonia do eacutepicoccxxviii

Faccedilamos uma anaacutelise do proecircmio a partir de uma traduccedilatildeo por noacutes proposta

O acircnimo me conduz a cantar as formas mudadas para no-vos corpos deuses as minhas empresas (pois voacutes tambeacutem as mudastes)favorecei e desde a origem primeira do mundo

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ateacute os meus tempos conduzi meu canto contiacutenuo147

De modo a iniciar com alguns esclarecimentos sobre a nossa proposta de tra-duccedilatildeo gostariacuteamos de comentar o capiacutetulo XLV de Esauacute e Jacoacute ndash ldquoMusa cantardquo ndash de Machado de Assis que nos apresenta o conselheiro Aires definindo o caraacuteter dos gecircme-os antagonistas Pedro e Paulo a partir do proecircmio da Iliacuteada e da Odisseia de Homero Para Paulo o conselheiro escolheu a Iliacuteada que trata da fuacuteria funesta de Aquiles para Pedro a Odisseia que trata das mil voltas do astuto Odisseu Depois de ler o poema em prosa portuguesa o conselheiro cita as passagens diretamente do grego certo de que as traduccedilotildees natildeo valem o original Ainda assim natildeo faltou nada para que os dois ir-matildeos se acusassem mutuamente Pedro acusou Paulo de furioso como Aquiles Paulo acusou Pedro de velhaco como Odisseu distorcendo o caraacuteter de cada um dos heroacuteis Eacute aiacute que entra uma observaccedilatildeo final do conselheiro no sentido de que eles deveriam dizer isto em grego que eacute melhor do que a nossa prosa Tem razatildeo o conselheiro ao dizer que a traduccedilatildeo natildeo vale o original Na realidade traduccedilatildeo alguma vale o original Haacute sempre por melhor que seja a traduccedilatildeo a possibilidade de o tradutor voluntaacuteria ou involuntariamente distorcecirc-la quando natildeo manipulaacute-la

Digamos portanto que a nossa traduccedilatildeo se orienta pelos moldes do que pra-ticamos e ensinamos aos nossos estudantes em nossas aulas no curso de Letras Claacutes-sicas na Universidade Federal da Paraiacuteba Trata-se de uma traduccedilatildeo operacional cujo intuito eacute procurar extrair do texto original a concepccedilatildeo que ali se encontra Nesse processo orientamos os nossos alunos no sentido de perceber que a traduccedilatildeo da mor-fossintaxe latina natildeo eacute suficiente Haacute que se levar em consideraccedilatildeo ao menos dois requisitos O primeiro eacute o contexto cultural em que o texto foi criado o segundo eacute a estrutura do texto a ser traduzido Como se trata de um texto literaacuterio obviamente que temos de buscar saber como aquele texto se estrutura literariamente de modo que consigamos uma traduccedilatildeo que dele se aproxime Veja-se pois que natildeo estamos falan-do de traduccedilatildeo literal mas de uma maior aproximaccedilatildeo possiacutevel com o texto original de acordo com o que nos impotildee a sua estrutura Se por um lado estamos de acordo com todos os teoacutericos que apregoam a traduccedilatildeo ser escolha por outro lado vemos como necessaacuterio limitar essas escolhas para ficar com aquelas que traduzem melhor a estrutura do texto

Em seu livro A traduccedilatildeo como manipulaccedilatildeo Cyril Aslanov discute vaacuterios as-pectos da traduccedilatildeo procurando sempre estabelecer o contexto e a vivecircncia da liacutengua quando possiacutevel como elementos importantes no processo de traduzir Referindo-se agraves traduccedilotildees mecacircnicas do Google que para ele se assemelham agraves tentativas de tradu-ccedilotildees literais de alunos ruins sem levar em conta o contexto da liacutengua a ser traduzida Aslanov nos diz o seguinte

ldquoO modo demasiadamente mecacircnico pelo qual o Google

147In noua fert animus mutatas dicere formascorpora di coeptis (nam uos mutastis et illas)adspirate meis primaque ab origine mundiad mea perpetuum deducite tempora carmen

Tradutor traduz os idiomatismos de uma liacutengua para ou-tra relembra os alunos ruins que transpotildeem literalmente o texto a ser traduzido Ou seja em outro contexto faz pensar no modo de falar dos serviccedilos de propaganda ou de espionagem em tempo de guerra quando o conhecimento teoacuterico da liacutengua do inimigo natildeo eacute suficiente porque lhe falta a paacutetina da experiecircncia viva da liacutengua Conta-se que quando a Raacutedio Cairo difundia emissotildees em hebraico para desmoralizar o exeacutercito israelense durante a Guerra do Atrito (1969-1970) os jornalistas egiacutepcios que pensavam conhecer o hebraico cometeram gafes memoraacuteveis Refe-rindo-se ao Lado dos Cisnes que a raacutedio escolheu para servir de intermezzo musical o locutor usou a expressatildeo brekhat ha-barvazim (literalmente ldquopiscina dos patosrdquo) e vez do tiacutetulo canocircnico agam ha-barburim Nesse caso o efeito produzido foi diametralmente oposto agrave exaltaccedilatildeo que acompanha a escolha de tiacutetulos mais eloquentes que o original para as obras literaacuterias ou cinematograacuteficasrdquo (2015 p 38)

De igual modo nos parece que o entendimento de Umberto Eco em Dire qua-se la stessa cosa sobre traduccedilatildeo como negociaccedilatildeo eacute o mais indicado tendo em vista que se natildeo podemos dizer a mesma coisa numa traduccedilatildeo devemos procurar dizer pelo menos quase a mesma coisa num processo contiacutenuo de negociaccedilatildeo de termos considerando sobretudo que uma traduccedilatildeo eacute sempre um trabalho em processo Eacute exatamente o quase que se encontra no tiacutetulo que induz agrave negociaccedilatildeo dos termos para que o tradutor natildeo troque as matildeos pelos peacutes e passe a traduzir ldquopiscina dos pa-tosrdquo por ldquoLago dos cisnesrdquo por haver aacutegua e aves aquaacuteticas envolvidas no processo ou ainda ldquogarccedilardquo por ldquoalicaterdquo afinal de contas ambos tecircm bico e pernas compridas como mostra a capa da ediccedilatildeo italiana da obra de Eco Acreditamos que nada traduz melhor o conceito de infectum latino do que o processo de traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra

Eco chama a atenccedilatildeo para um fato oacutebvio mas como todo oacutebvio geralmente esquecido ldquoLe parole assumono significati diversi secondo il contestordquo (2016 p 28) para mais adiante ser bem claro no que diz respeito agrave contextualizaccedilatildeo

ldquoQuesto ci fa sospettare che una traduzione non dipenda solo dal contesto linguistico ma anche da qualcosa che sta al di fuori del testo e chi chiamaremo informazione circa il mondo o informazione enciclopedicardquo (2016 p 31)

Partindo do princiacutepio de que Metamorfoses eacute um texto literaacuterio e segue as regras da poeacutetica claacutessica comecemos a discutir a nossa traduccedilatildeo a partir do verbo dicō que aparece no texto em sua forma de infinitivo infectum dicĕre Como verbo im-portante em qualquer liacutengua dicō tem o sentido primeiro de mostrar fazer conhecer pela palavra dizer segundo Ernout (2011) agindo tanto na esfera juriacutedica quanto na religiosa Eacute na passagem para a esfera comum da linguagem que dicō perde seu caraacuteter

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solene passando a significar dizer Recordemos que esse verbo pode ainda significar cantar e celebrar termos que se adequam agrave criaccedilatildeo poeacutetica quando lembramos que o tipo de poesia que encontramos em Metamorfoses natildeo pode ser dissociado da religiosi-dade greco-latina ainda que sob a forma de representaccedilatildeo A nossa escolha portanto por cantar estaacute associada ao canto como celebraccedilatildeo noccedilatildeo naturalmente arraigada ao eacutepico e ao hino tendo em vista que seguimos a nossa compreensatildeo a respeito de traduccedilatildeo devidamente corroborada pela afirmaccedilatildeo de Umberto Eco de que ldquoil testo tradotto deve trasportare il lettore nel mondo e nella cultura in cui lrsquooriginale egrave stato scrittordquo (2016 p 64)

A escolha de anĭmus como acircnimo explica-se pelo fato de este termo correspon-der ao grego θυμός aplicando-se agraves coisas do espiacuterito ao coraccedilatildeo como sede da cora-gem do desejo das inclinaccedilotildees conforme ensina Ernout (2011) termo que assume um duplo valor racional e afetivo Assim o poeta eacute movido pela forccedila do acircnimo como um sopro que o leva a cantar a celebrar aquilo que ele propotildee Nesse momento nunca eacute demais lembrar duas coisas a primeira eacute a de que anĭmus tem um corresponde exato afirma Ernout em grego que eacute νέμος sopro A outra eacute a presenccedila do verbo ferō em sua terceira pessoa do singular do presente infectum do indicativo fert com o sentido de levar ou conduzir Vecirc-se que o poeta natildeo diz que eacute ele quem vai cantar mas eacute o acircnimo que o conduz a cantar Este acircnimo que se encontra dentro dele e o move eacute o acircnimo das Musas ou no caso de Metamorfoses dos deuses natildeo especificados o que engloba todos Natildeo se trata de um querer individual de um poeta mas de uma decisatildeo divina que o move agrave celebraccedilatildeo Se o Gaffiot (2000) abona a construccedilatildeo fert animus acompa-nhada de infinitivo com o sentido de ter a intenccedilatildeo de usando para isto Suetocircnio e o primeiro verso de Metamorfoses natildeo significa que esta construccedilatildeo tenha sempre que ser traduzida desse modo A abonaccedilatildeo tambeacutem aparece no Oxford com o sentido de to prompt suggest quando diz respeito agrave construccedilatildeo de ferō com infinitivo e quando se trata do vocaacutebulo anĭmus aparece com o sentido de ldquomente como sede do desejo e da voliccedilatildeordquo Para Suetocircnio que estaacute fazendo um relato histoacuterico da vida do imperador Otatildeo vemos como adequada essa traduccedilatildeo por se tratar de uma narrativa que se quer verdadeira e objetiva No caso de Oviacutedio e de outros poetas o que se quer eacute o contraacute-rio deseja-se a subjetividade inerente agrave criaccedilatildeo literaacuteria e uma verdade poeacutetica sob a orientaccedilatildeo dos deuses Voltamos aqui ao sopro criativo das Musas que transforma o pastor o homem apenas ventre em poeta em vate ao mesmo tempo em que subs-tituem o seu cajado por um cetro a partir de um ramo florescente de loureiro como bem o diz Hesiacuteodo na Teogonia (versos 26-34) de modo que o poeta glorie o passado e o futuro com o seu canto divino devidamente protegido por Apolo deus da inspiraccedilatildeo da muacutesica da poesia e da profecia Natildeo seria este o desejo de Oviacutedio no proecircmio de Metamorfoses Veremos a resposta a esta pergunta mais adiante

A proposiccedilatildeo traz o que eacute importante e essencial no poema Assim como a Iliacute-ada inicia-se com a palavra μῆνιν e o segundo verso inicia com οὐλομένην para dizer que a essecircncia desse canto homeacuterico eacute a fuacuteria funesta de Aquiles a Odisseia inicia-se com ἄνδρα completada por πολύτροπον de modo a expressar que o mais importante naquela narrativa eacute cantar o heroacutei de mil voltas ndash mil voltas fiacutesicas em suas viagens errantes e mil voltas no pensamento pela sua astuacutecia ndash no caso Odisseu Jaacute na Enei-da as palavras iniciais satildeo arma uirumque as armas e o heroacutei essecircncia desse poema

eacutepico que se centra na figura de Eneias e nas guerras travadas para a posse da nova terra no Laacutecio Oviacutedio comeccedila o seu poema com o adjetivo noua regido da preposiccedilatildeo in com sentido acusativo e com o substantivo correspondente ndash corpora ndash iniciando o verso seguinte A utilizaccedilatildeo de in com regecircncia de acusativo eacute decisiva para se entender que o poema se estrutura em movimentos para transformaccedilotildees A proposiccedilatildeo se defi-ne com o acircnimo levando a se cantar as formas mudadas para novos corpos O sentido direcional nos parece claro vez que o Oxford apresenta uma das formas de in regendo acusativo quando acompanhado de ldquopalavras que exprimam movimento ou mudanccedila de posiccedilatildeordquo Haacute uma diferenccedila fundamental entre cantar as formas mudadas para no-vos corpos e cantar as formas mudadas em novos corpos O poema natildeo vai cantar as formas mudadas nos novos corpos a proposiccedilatildeo eacute cantar como eacute que se deu esse mo-vimento essa metamorfose de um corpo para um novo corpo Quando isto acontece o mito se fecha e passa-se a outro mito e assim por diante A liccedilatildeo de Oviacutedio iniciando o seu poema com a preposiccedilatildeo in que nesse caso indica movimentaccedilatildeo nos daacute a medida exata do porquecirc seu poema se chama Metamorfoses Embasando a nossa escolha cito a explicaccedilatildeo de Eco agrave recorrecircncia do termo negociaccedilatildeo em seu livro

ldquoSe farograve ricorso tante volte allrsquoidea di negoziazione per spiegare i processi di traduzione egrave percheacute egrave sotto lrsquoinsegna di questo concetto che porrei anche la nozione sino a ora abbastanza imprendibile di significato Si negozia il signi-ficato che la traduzione deve sprimere percheacute si negozia sempre nella vita quotidiana il significato che dobbiamo attribuire alle spressioni che usiamordquo (2016 p 87-88)

Qual teria sido a mudanccedila provocada nas empresas de Oviacutedio O poeta queria fazer um poema essencialmente eacutepico e viu-se levado pela inspiraccedilatildeo divina a fazer um poema que se transforma ao longo de sua narrativa e mescla vaacuterios gecircneros literaacute-rios Ou estaria falando o poeta de que suas intenccedilotildees foram mudadas com o decreto de seu banimento para Tomi no Mar Negro por Augusto Georges Lafaye que estabe-lece e traduz umas das ediccedilotildees de Metamorfoses diz que seu poema estava terminado embora natildeo tivesse recebido a forma definitiva quando de seu banimento no fim do ano 8 de nossa era O poeta o havia comeccedilado informa Lafaye talvez no ano 1 a C e quando soube da sentenccedila que o atingia ele queimou os manuscritos ou por despeito com relaccedilatildeo agraves Musas causas de sua desgraccedila ou pela imperfeiccedilatildeo do poema (Ovide Introduction 1928 p I-II) Impedido de corrigir seu texto Oviacutedio ainda sofre o golpe de ser mantido distante das bibliotecas puacuteblicas expurgado que fora Mesmo quando Metamorfoses chega agraves matildeos de Secircneca pai um dos primeiros a citaacute-lo o seu texto eacute jaacute incerto em vaacuterios lugares diz Lafaye (id Ibid p III)

Qualquer que tenha sido a ordem da mudanccedila operada pelos deuses nos proje-tos de Oviacutedio ela vem a calhar num poema que tem por tiacutetulo mudanccedilas Nessa invo-caccedilatildeo Oviacutedio apela para os deuses ndash di ndash natildeo para uma divindade especiacutefica como as Musas o que se coaduna com outra invocaccedilatildeo que existe no Livro XVccxxix encerrando a narraccedilatildeo para que se abra o epiacutelogo do poema Aos deuses Oviacutedio pede o favoreci-mento e a conduccedilatildeo de seus versos O favorecimento vem com o verbo adspirō em sua forma de imperativo presente adspirāte Voltamos ainda uma vez agraves Musas de Hesiacuteo-

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do Se as Musas inspiraram o poeta soprando o divino para dentro dele agora na hora da criaccedilatildeo na hora da ποίεσις eacute preciso que elas soprem em direccedilatildeo de alguma coisa soprem para fora natildeo mais para dentro O primeiro sentido de adspīrō eacute exatamente soprar em direccedilatildeo de que nos eacute dado pela preposiccedilatildeo inicial regente de acusativo de movimento ad O sopro divino por sua vez mostra-se bem estruturado com o anĭmus do primeiro verso O poeta cria usa de sua racionalidade mas natildeo descarta a ajuda dos deuses que o motivam a criar Uma vez criado o poema eacute preciso que as divindades o soprem para fora favorecendo os seus versos de modo que eles se movimentem visto que a essecircncia da metamorfose eacute o movimento a mudanccedila Mas natildeo basta o sopro favoraacutevel eacute preciso que eles os deuses conduzam os versos do poeta de um lugar para outro retirando-o de dentro dele e fazendo-os mover-se num canto contiacutenuo Eacute nesse momento que entra o verbo dedūcō tambeacutem no imperativo presente deducĭte cujo sentido primordial eacute de deslocamento assegurado pela proposiccedilatildeo de ablativo de A nossa escolha por conduzi e natildeo por outro significado do verbo vem obviamente do verbo ducō cujo significado eacute conduzir estando agrave frente tornando niacutetido o sentido que o poeta quer para seus versos que eles sejam natildeo soacute favorecidos pelos deuses mas que eles proacuteprios os conduzam postando-se agrave frente puxando-os num contiacutenuo para que seus versos natildeo morram consigo Percebendo como o carmen perpetuum eacute parte estrutural de dicĕre e de di os deuses parece-nos ter respondido nesse momento agrave pergunta retoacuterica que fizemos antes Cantar as formas mudadas para novos corpos eacute uma celebraccedilatildeo em que o cantoprofecia (carmen) tem que ser perpeacutetuo contiacutenuo perene O sentido de perpetuum adjetivo importantiacutessimo no proecircmio eacute ambivalente pois significa que o que se canta das origens primeiras aos dias atuais do poeta natildeo tem quebra natildeo sofre soluccedilatildeo de continuidade por maiores e mais complicados que sejam a trama e os desvatildeos em Metamorfoses Por outro lado diz tambeacutem da perpe-tuidade do ato de criar ato que imortaliza o poeta Entendendo como Eco que ldquouna buona traduzione egrave sempre un contributo critico alla comprensione dellrsquoopera tradot-tardquo (2016 p 247) temos a consciecircncia de que um tradutor natildeo pode querer facilitar a sua traduccedilatildeo numa atitude do que chamamos de siacutendrome de Theacutetis No Canto XVIII da Iliacuteada Homero constroacutei o hexacircmetro do verso 54 com o epiacuteteto δυσαριστοτόκεια para Theacutetis a matildee de Aquiles que compreende quase todo o segundo hemistiacutequioccxxx

Ai de mim eu mesma infeliz ai de mim a infortunada que pariu o melhor 148

Muitos preferem a tiacutetulo de facilitaccedilatildeo a traduccedilatildeo interpretativa esquecendo que a interpretaccedilatildeo deve ser do leitor outros simplificam o verso desfazendo todo o esforccedilo do poeta que o construiu de modo a caber no hexacircmetro e para que ao mesmo tempo fosse uma siacutentese da condiccedilatildeo dessa divindade de matildee desafortunada por ter parido o melhor dos Aqueus ποίησις no caso o epiacuteteto de Aquiles conforme o heroacutei eacute apresentado desde o proecircmio da Iliacuteada O epiacuteteto diz de Theacutetis mas diz tambeacutem do oraacuteculo e da escolha de Aquiles de morrer jovem em combate Aquiles natildeo eacute apenas o uacutenico dos Aqueus que vai a Troia sabendo que morreraacute Ele eacute sobretudo o uacutenico que ali se encontra em busca da bela morte a uacutenica via para alcanccedilar a gloacuteria impereciacutevel κλέος ἄφθιτον Simplificar o epiacuteteto eacute destruir um contexto importante dentro da Iliacute-148 Ὤ μοι ἐγὼ δειλή ὤ μοι δυσαριστοτόκεια

ada

Enfim esperamos ter demonstrado a densidade do proecircmio de Metamorfoses bem como ter explicado as nossas escolhas tradutoacuterias fruto de negociaccedilotildees com o contexto e a com a estrutura do poema No nosso entendimento natildeo poderia haver maior exemplo na poeacutetica claacutessica do que esta liccedilatildeo que Oviacutedio nos daacute nesse proecircmio A poesia eacute criaccedilatildeo da racionalidade do poeta que natildeo exclui o sopro divino que o anima agrave criaccedilatildeo favorece os seus versos e os guia agrave perpetuidade mostrando como a invocaccedilatildeo pode se transformar em evocaccedilatildeo no sentido de que os deuses satildeo chamados a contri-buir com a inspiraccedilatildeo e com a expiraccedilatildeo retirando o canto e o perpetuando

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Referecircncias

ASLANOV Cyril A traduccedilatildeo como manipulaccedilatildeo 1ordf Ed Satildeo Paulo Perspectiva Casa Guilherme de Almeida 2015

ASSIS Machado de Esauacute e Jacoacute introduccedilatildeo e notas Heacutelio Guimaratildees 1 Ed Penguin Classics Companhia das Letras 2012

ECO Umberto Dire quasi la stessa cosa esperienze di traduzione VI edizione Mila-no Bompiani 2016

ERNOUT Alfred et MEILLET Alfred Dictionnaire eacutetymologique de la langue latine histoire des mots Paris Klincksieck 2001

GAFFIOT Feacutelix Le grand Gaffiot dictionnaire latin-franccedilais 3e eacuted revue et aug-menteacutee sous la Direction de Pierre Flobert Paris Hachette 2000

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano 4 ed Iluminuras Satildeo Paulo 2001

HOMEgraveRE Iliade texte eacutetabli et traduit par Paul Mazon notes drsquoHeacutelegravene Monsacreacute Paris Les Belles Lettres 2002 (3 tomes)

HOMEgraveRE Lrsquoiliade texte bilingue preacutesenteacute par Claude Michel Cluny Paris Eacuteditions de la Diffeacuterence 1989

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2002

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Odorico Mendes prefaacutecio e notas verso a verso de Saacutel-vio Nienkoumltter Campinas Ateliecirc Editorial Editora a Unicamp 2008

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo e prefaacutecio de Frederico Lourenccedilo introduccedilatildeo e appendices de Peter Jones introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 1950 E V Rieu 1ordf ed Satildeo Paulo Penguin Clas-sics Companhia das Letras 2013

OVIDE Les meacutetamorphoses texte eacutetabli et traduit par Georges Lafaye Paris Les Belles Lettres 1928 (III Tomes)

OVIDIO Metamorfosi vol I Libri I-II a cura di Alessandro Barchiesi con um saggio introdutivo di Charles Segal texto critico basato sullrsquoedizione oxoniense di Richard Tarrant traduzione di Ludovica Koch III edizione Fondazione Lorenzo Valla Arnaldo Mondadori Editore 2011

OXFORD LATIN DICTIONNAIRE Oxford Clarendon Press 1968

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Semacircntica Aristoteacutelica

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Joseacute R Seabra F

A obra completa de Aristoacuteteles publicada nos dias de hoje inicia-se pelo Oacuterga-non seacuterie de seis tratados de loacutegica escritos em estilo direto seco breve Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Primeiros Analiacuteticos Segundos Toacutepicos Dos Elencos So-fiacutesticos Nesses seis livros o leitor vai encontrar em resumo respectivamente anaacutelise dos elementos das proposiccedilotildees estudo da proposiccedilatildeo teoria do silogismo silogismo cientiacutefico pontos da dialeacutetica os sofismas e os meios de refutaacute-los Mas que relaccedilatildeo com a gramaacutetica tecircm essas obras do filoacutesofo Eacute o que se confere a seguir Os livros de loacutegica englobados pelo tiacutetulo Oacuterganon apresentam em geral significado da palavra significado da linguagem semacircntica analisada e desenvolvida para entendimento de proposiccedilotildees isto eacute de frases de afirmaccedilotildees em uacuteltima anaacutelise tambeacutem assunto gra-matical loacutegica filosoacutefico-gramatical

Categorias (Κατηγορίαι) eacute o tratado que abre a seacuterie o nome vem de κατεγορείν

(acusar) e o significado seria entatildeo ldquoacusaccedilotildeesrdquo mas em Aristoacuteteles o sentido eacute de ldquoatributosrdquo Por exemplo na frase ldquoo homem eacute brancordquo homem seria a categoria da substacircncia e branco a da qualidade A classificaccedilatildeo aiacute de tipos de categorias (atributos predicados) serve para dar maior capacidade de anaacutelise e interpretaccedilatildeo a elementos e argumentos do discurso Conforme anaacutelise de estudiosos as categorias (os atributos) seriam uma espeacutecie de reflexatildeo sobre a gramaacutetica grega assim por exemplo seguindo a ordem do livro as quatro primeiras categorias ndash substacircncia qualidade quantidade relaccedilatildeo ndash correspondiam aos substantivos e adjetivos as quatro uacuteltimas ndash posiccedilatildeo possessatildeo accedilatildeo paixatildeo ndash aos verbos as duas do meio ndash lugar e tempo ndash aos adveacuterbios Exemplo de categoria quantidade Aristoacuteteles observa que as coisas em si mesmas e isoladamente natildeo satildeo ou grandes ou pequenas e soacute o satildeo por comparaccedilatildeo assim di-zemos que uma colina eacute grande que um gratildeo de milho eacute pequeno mas na realidade queremos dizer ldquomaiorrdquo ou ldquomenorrdquo do que coisas semelhantes do gecircnero pois nos referimos a algum padratildeo externo se tais termos fossem usados ldquoabsolutamenterdquo ja-mais deveriacuteamos chamar uma colina de grande como jamais deveriacuteamos chamar um gratildeo de milho de pequeno

O segundo da seacuterie Da Interpretaccedilatildeo (Περὶ ἑρμενείας) apresenta estudo das proposiccedilotildees e anaacutelise semacircntica dos elementos do enunciado A palavra ἑρμενεία sig-nifica para Aristoacuteteles ldquocomunicaccedilatildeo ou manifestaccedilatildeo do pensamentordquo Natildeo eacute livro propriamente de gramaacutetica mas acaba por tratar de noccedilotildees baacutesicas da linguagem no-ccedilotildees de que se serviraacute toda uma tradiccedilatildeo gramatical posterior Segundo nossa anaacutelise trecircs noccedilotildees sobressaem a distinccedilatildeo entre fonema e letra a definiccedilatildeo de nome (o nome como convencional) o futuro como tempo eventual Noccedilotildees repercutidas nas gramaacute-ticas modernas Exemplos a seguir de trechos com as principais definiccedilotildees Assim a respeito de fonema e letra

Das afecccedilotildees na alma existem certamente os siacutembolos na voz e das [afecccedilotildees] na voz existem as coisas grafadas150 (16a3-16a4)

150 ἔστι μὲν οὖν τὰ ἐν τῇ φωνῇ τῶν ἐν τῇ ψυχῇ παθηματων σύβολα καὶ τὰ γραφόμενα τῶν ἐν τῇ φωνῇ

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ldquoAfecccedilatildeordquoccxxxv traduz πάθημα (tudo o que afeta o corpo ou a alma ou a mente) no trecho consta παθημάτων (das afecccedilotildees) traduccedilatildeo pois bem literal o significado aiacute seria os sons da voz humana siacutembolos dos estados da alma as palavras escritas siacutembolos dos sons da voz Hoje muito comum nas gramaacuteticas a distinccedilatildeo entre fonema (som da voz humana vogal consoante) e letra (siacutembolo que representa o fonema) Adiante acerca do nome

Nome certamente entatildeo eacute voz significativa por convenccedilatildeo sem [referecircncia a] tempo da qual nenhuma parte eacute signi-ficativa isoladamente 151 (16a19-16a21)

Notem-se aiacute as expressotildees φωνὴ σημαντικὴ voz significativa som significati-vo e συνθήκη o ato o resultado de ldquocolocar juntordquo arranjo convenccedilatildeo Parece que a linguiacutestica moderna estabelece hoje como convenccedilatildeo o substantivo o nome das coisas mas desde a antiguidade houve discussatildeo sobre o assunto Sobre o verbo afirma-se

Verbo poreacutem eacute o que indica tempo do qual [verbo] uma parte nada significa separadamente e eacute o sinal das coisas ditas de outra coisa152 (16b6-16b7)

Aristoacuteteles diz que o verbo apresenta aleacutem da significaccedilatildeo proacutepria a de tem-po ὑγίεια (sauacutede) eacute nome ὑγιαίνει (estar satildeo) verbo pois este junta agrave sua proacutepria significaccedilatildeo a existecircncia atual desse estado Sobre o discurso afirma-se

E eacute o discurso todo certamente significativo natildeo como instrumento [natural] poreacutem mas como precisamente se disse por convenccedilatildeo153 (16b33-17a2)

Mais adiante capiacutetulo IX nas ediccedilotildees europeias modernas Aristoacuteteles anali-sa a oposiccedilatildeo dos futuros contingentes cada coisa necessariamente eacute ou natildeo eacute seraacute ou natildeo seraacute e entretanto se se consideram separadamente essas alternativas natildeo se pode dizer qual das duas eacute necessaacuterio λέγω δὲ οἷον (e digo como exemplo)ἀνάγκη με ἔσεσθαι ναυμαχίαν αὔριον ἢ μὴ ἒσεσθαι (eacute necessidade decerto haver de ser batalha naval amanhatilde ou natildeo haver de ser) οὐ μέντοι γενέσθαι αὔριον ναυμαχίαν ἀναγκαῖον (seguramente natildeo eacute necessaacuterio vir a ocorrer amanhatilde batalha naval) οὐδὲ μὴ γενέσθαι (nem natildeo vir a ocorrer) γενέσθαι μέντοι ἢ μὴ γενέσθαι ἀναγκαῖον (seguramente eacute necessaacuterio vir a ocorrer ou natildeo vir a ocorrer) Em traduccedilatildeo mais fluente ldquoNecessa-riamente haveraacute amanhatilde batalha naval ou natildeo haveraacute mas natildeo eacute necessaacuterio que haja amanhatilde batalha naval e natildeo eacute necessaacuterio que natildeo haja mas que haja ou que natildeo haja amanhatilde batalha naval eis o que eacute necessaacuteriordquo Entende-se proposiccedilatildeo natildeo-necessaacuteria

151 ὄνομα μὲν οὖν ἐστὶ φωνὴ σημαντικὴ κατὰ συνθήκην ἄνευ χρόνου ἧς μηδὲν μέρος ἐστὶ σημαντικὸν κεχωρισμένον152 ῥῆμα δέ ἐστι τὸ προσσημαῖνον χρόνον οὗ μέρος οὐδὲν σημαίνει χωρίςmiddot ἔστι δὲ τῶν καθʼ ἑτέρου λεγομένων σημεῖον153 ἔστι δὲ λόγος ἅπας μὲν σημαντικός οὐχ ὡς ὄργανον δέ ἀλλʼὥσπερ εἴρηται κατὰ συνθήκην154 ἀνάγκη δὲ πάντα λόγον ἀποφαντικὸν ἐκ ῥήματος εἶναι ἢ πτώσεωςmiddot καὶ γὰρ ὁ τοῦ ἀνθρώπου λόγος ἐὰν μὴ τὸ ἔστιν ἤ ἔστασι ἢ ἦν ἤ τι τοιοῦτο προστεθῇ οὔ πω λόγος ἀποφαντικός

ldquoamanhatilde haveraacute batalha navalrdquo proposiccedilatildeo natildeo-necessaacuteria ldquoamanhatilde natildeo haveraacute ba-talha navalrdquo proposiccedilatildeo necessaacuteria ldquoamanhatilde ou haveraacute ou natildeo haveraacute batalha navalrdquo ndash eis aiacute a oposiccedilatildeo dos futuros contingentes (incertos) ndash o futuro necessaacuterio sempre de oposiccedilatildeo de alternativas

Os tratados seguintes satildeo os dois Analiacuteticos o terceiro da seacuterie Analiacuteticos Ana-liacuteticos Primeiros de raciociacutenio em geral o quarto Analiacuteticos Segundos da metodolo-gia do conhecimento cientiacutefico Eacute costume dizer ldquotratados de loacutegicardquo mas em vez da palavra ldquoloacutegicordquo (λογικός) Aristoacuteteles usa ldquoanaliacuteticordquo (ἀναλυτικός) Que quer dizer esse termo ldquoanaliacuteticordquo trata-se do meacutetodo analiacutetico decompor em partes as questotildees e problemas

Os Analiacuteticos Primeiros (Αναλυτικὰ πρότερα) terceira parte do Oacuterganon constituem o maacuteximo da loacutegica aristoteacutelica Tarefa difiacutecil estudar esta obra sutilezas de linguagem requerem aiacute concentraccedilatildeo e esforccedilo por parte do leitor Texto sobre ciecircn-cia demonstrativa os Analiacuteticos Primeiros constam de dois livros teoria do silogismo no livro I propriedades do silogismo no livro II em resumo estudo da natureza e funcionamento do silogismo em geral Esta nossa anaacutelise contempla apenas o livro I que apresenta teoria do raciociacutenio em geral as leis do silogismo a anaacutelise dos ldquoargu-mentosrdquo (isto eacute das ldquoafirmaccedilotildees com justificativasrdquo) Tem-se aiacute o estudo exaustivo do silogismo que eacute para o filoacutesofo estagirita o raciociacutenio loacutegico por excelecircncia Enfim o objetivo eacute expor a natureza e funcionamento do silogismo em geral Consideram-se di-ficuldades de compreensatildeo imediata do texto toto os raciociacutenios esboccedilados e indicados por letras do alfabeto grego como a concisatildeo e brevidade e ainda verbo de ligaccedilatildeo su-bentendido e expressotildees que parecem impliacutecitas no texto Mostra-se a seguir que essas aparentes ldquodificuldadesrdquo podem ser consideradas ldquofacilidadesrdquo visto ser seca e objetiva e de palavras somente necessaacuterias a redaccedilatildeo de Aristoacuteteles Objetiva-se entatildeo mostrar tambeacutem o valor semacircntico que tinham quando foram aiacute usados os termos e expres-sotildees A loacutegica aristoteacutelica tem por base a ideia da deduccedilatildeo quer dizer a existecircncia de argumento particular a partir de argumento universal Aristoacuteteles considera premissa (πρότασις) o discurso (λόγος) que ou afirma ou nega alguma coisa esse discurso pode ser ou universal (καθόλου) ou particular (ἐν μέρει) ou indefinido (ἀδιόριστος) uni-versal a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo a algo tomado universalmente particular a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo a algo tomado particularmente ou natildeo-universalmente indefinido a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo feita sem indicaccedilatildeo de universalidade ou de particularidadeccxxxviii Vecirc-se entatildeo em Analiacuteticos Primeiros I a definiccedilatildeo de ldquoproacuteta-serdquo como oraccedilatildeo que afirma ou nega alguma coisa de algum sujeito

Proacutetase decerto eacute pois um enunciado afirmativo ou nega-tivo de algo acerca de algo155 (24a17-19)

Entre noacutes hoje em loacutegica esta palavra ldquoproacutetaserdquo indica a primeira proposiccedilatildeo duma demonstraccedilatildeo Forma-se de θέσις (a posiccedilatildeo o ato de pocircr de colocar) e πρό (an-tes diante) Em vez de ldquopremissardquo ou ldquoproposiccedilatildeordquo pode-se usar ao traduzir o texto aristoteacutelico a mesma palavra ldquoproacutetaserdquo A seguir algumas definiccedilotildees baacutesicas ainda do

155 Προτάσις μὲν οὖν ἐστι λόγος καταφατικὸς ἢ ἀποφατικὸς τινὸς κατὰ τινος

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livro I Definiccedilatildeo do silogismo

E silogismo eacute enunciado (discurso) em que colocadas certas coisas outra diferente das estabelecidas necessa-riamente decorrer pelo [fato de] existirem essas coisas E digo pelo [fato de] existirem essas coisas o em virtude dessas coisas decorrer e [digo] o em virtude dessas coisas decorrer o [fato de] natildeo ser necessaacuterio nenhum termo de fora para ter-se produzido necessariamente [a consequecircn-cia]156 (24b19-22)

Fala-se em silogismo aristoteacutelico mas discutem os estudiosos o que Aristoacutete-les entendia exatamente por silogismo Em geral muitos estudiosos consideram que silogismo tal como apresentado nos Analiacuteticos Primeiros possa ser resumido como laquo argumento vaacutelido com estrutura peculiar raquo Alguns tradutores preferem traduzir συλλογισμός por laquo raciociacutenio raquo ou por laquo deduccedilatildeo raquo Considera-se enfim o silogis-mo como um raciociacutenio ou deduccedilatildeo ou conclusatildeo a partir de premissas A palavra συλλογισμίς eacute constituiacuteda por συν (com) mais λογισμός (caacutelculo) indica ldquoconexatildeo de ideiasrdquo e ldquoraciociacuteniordquo Com essa palavra Aristoacuteteles designa a argumentaccedilatildeo loacutegica per-feita Pode-se dizer em resumo que o silogismo se constitui de trecircs proposiccedilotildees decla-rativas primeira premissa segunda premissa conclusatildeo

A seguir em pouco mais de quarenta capiacutetulos apresentam-se formas de ar-gumentos vaacutelidos como tais formas se relacionam entre si para construir sistema loacute-gico as propriedades de tal sistema loacutegico Em traduccedilotildees francesas e espanholas ndash natildeo no original ndash aparecem tiacutetulos dos capiacutetulos por exemplo laquo silogismos modais com uma proacutetase necessaacuteria e outra assertoacuteria (categoacuterica) raquo laquo silogismos modais sobre o admissiacutevel raquo etc Entende-se aiacute como silogismo modal aquele que pressupotildee pelo me-nos uma proacutetase modalizada ndash a modalidade em filosofia aristoteacutelica eacute uma particu-laridade da proacutetase uma proacutetase pode afirmar que algo precisa ser ou que realmente eacute (assertoacuteria) ou que pode ser Como exemplos de proacutetases assertoacuterias (proposiccedilotildees categoacutericas) podem-se considerar as relaccedilotildees seguintes

duas proposiccedilotildees satildeo contraditoacuterias se ndash e somente se ndash natildeo podem ambas ser verda-deiras e natildeo podem ambas ser falsas

duas proposiccedilotildees satildeo contraacuterias se ndash e somente se ndash ambas podem ser falsas mas natildeo podem ambas ser verdadeiras

Com estudo das sutilezas do texto original veem-se a seguir trecircs exemplos de alguns capiacutetulos em que Aristoacuteteles analisa silogismos[conversatildeo das proacutetases]

156 Συλλογισμὸς δὲ ἐστι λόγος ἐν ᾧ τεθέντων τινῶν ἕτερόν τι τῶν κειμέμων ἐξ ἀνάγκης συμβαίνει τῷ ταῦτα εἶναι Λέγω δὲ τῷ ταῦτα εἶναι τὸ διὰ ταυτᾶ συμβαίνειν τὸ δὲ διὰ ταῦτα συμβαίνειν τὸ μηδενὸς ἔξωθεν ὅρου προσδεῖν πρὸς τὸ γενέσθαι τὸ ἀναγκαῖον

Pois natildeo [se segue] se ldquohomemrdquo acaso natildeo esteja (natildeo es-teja como base) (natildeo exista) em algum vivente (animal) tambeacutem ldquoviventerdquo (animal) natildeo estaacute (natildeo estaacute como base) (natildeo existe) em algum homem157 (I 25a12-13)

Embora no subjuntivo na traduccedilatildeo eacute de se notar que no original o verbo apa-rece duas vezes sempre no indicativo ὑπάρχει mas na primeira vez antecedido de μή (que eacute um ldquonatildeordquo eventual) e na segunda antecedido de οὐχ (que eacute um ldquonatildeordquo real)

[silogismo assertoacuterio (categoacuterico)]

Se pois o M em certamente nenhum N estaacute (estaacute como base) (existe) poreacutem em algum Ξ necessidade o Ν em al-gum Ξ natildeo estar (natildeo estar como base) (natildeo existir)158 (I 27a32-33)

Em traduccedilotildees europeias duas negativas ldquose Μ natildeo estaacute em nenhum Νrdquo ndash o que natildeo parece bem em texto de loacutegica

[silogismo com duas proacutetases contingentes (com duas premissas admissiacuteveis)]

Quando entatildeo o Α aplicar-se a todo Β e o Β a todo o Γ silo-gismo haveraacute perfeito por [pelo fato de] ser fundamento o Α aplica-se a todo o Γ159 (I 32b38-40)

Na obra seguinte Analiacuteticos Segundos consta a ideia de que toda disciplina vem a partir de algum conhecimento preacute-existente Conforme Analiacuteticos Segundos 71a e toda disciplina dianoeacutetica se adquirem de um saber que precede o conhecimentordquo Em suma o objetivo neste quarto tratado eacute a demonstraccedilatildeo Conforme Aristoacuteteles ldquoOs meios pelos quais os argumentos retoacutericos convencem satildeo precisamente os mesmos uma vez que utilizam paradigmas que satildeo um tipo de raciociacutenio indutivo ou entime-mas que satildeo um tipo de raciociacutenio silogiacutesticordquo

Depois dos Analiacuteticos vem o tratado Toacutepicos (Τοπικά) que analisa o τόπος que se entende por ldquolugarrdquo donde se descobrem ou se inventam argumentos e por ldquoargu-mentordquo ou ldquomateacuteria de um discurso Esta obra se refere tambeacutem agrave arte oratoacuteria tra-ta-se dum tratado filosoacutefico-retoacuterico O objetivo dos Τοπικά penuacuteltima parte da seacuterie Oacuterganon jaacute eacute indicado de iniacutecio

ἡ μὲν πρόθεσις τῆς πραγματείας (o propoacutesito do tra-balho) μέθοδον (achar meacutetodo) ἀφʼ ἧς δυνησόμεθα συλλογίζεσθαι περὶ παντὸς τοῦ προτεθέντος προβλήματος ἐξ ἐνδόξων (pelo qual seremos capazes de raciocinar desde opiniotildees renomadas sobre todo problema colocado) καὶ αὐτοὶ λόγον ὑπέχοντες μηθὲν ἐροῦμεν ὑπεναντίον (e noacutes mesmos ao sustentar um

157 Οὐ γὰρ εἰ ἄνθρωπος μὴ ὑπάρχει τινὶ ζῴῳ καὶ ζῷον οὐχ ὑπάρχει τινὶ ἀνθρώπῳ158 Εἰ γὰρ τὸ Μ τῷ μὲν Ν μηδενὶ τῷ δὲ Ξ τινὶ ὐπάρχει ἀνάγκη τὸ Ν τινὶ τῷ Ξ μὴ ὐπὰρχειν

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argumento evitar dizer algo contraditoacuterio) O que se quer entatildeo eacute descobrir meacutetodo que capacite o raciociacutenio a partir de

opiniotildees de aceitaccedilatildeo geral acerca de qualquer problema que se apresente Aristoacuteteles repete em seguida tendo em vista agora a dialeacutetica a definiccedilatildeo de silogismo ldquoum dis-curso argumentativo no qual uma vez formuladas certas coisas alguma coisa distinta dessas coisas resulta necessariamente atraveacutes delasrdquo

Dos Elencos Sofiacutesticos (Περὶ σοφιστικῶν ἔλεγχῶν) o sexto e uacuteltimo da seacuterie trata do sofisma da falaacutecia A palavra ldquoelencordquo (ἔλεγχος) entre noacutes hoje eacute mais usa-da no sentido de cataacutelogo ou lista mas em Aristoacuteteles tem o sentido de ldquoargumento para refutarrdquo Iniacutecio do texto περὶ δὲ τῶν σοφιστικῶν ἔλεγχῶν [a respeito dos elencos sofiacutesticos (das refutaccedilotildees sofiacutesticas)] καὶ τῶν φαινομένων μὲν ἐλέγχων ὄντων [e que aparecem como sendo (parecem ser) certamente elencos (argumentos refutaccedilotildees contestaccedilotildees)] δὲ παραλογισμῶν ἀλλʼ ἐκ ἐλέγχῶ [poreacutem que satildeo paralogismos (enga-nos caacutelculos falsos falaacutecias) mas natildeo elencos (e natildeo refutaccedilotildees)] λέγωμεν [falemos] Para exemplificar pode-se ver um trecho do capiacutetulo IV ldquorefutaccedilotildees verbais e refu-taccedilotildees relativas agraves coisasrdquo consta aiacute o paraacutegrafo 4 de anaacutelise de refutaccedilotildees verbais Apresentam-se entatildeo exemplos de anfibologia agraves vezes difiacuteceis de passar numa tradu-ccedilatildeo Eacute o caso de ambiguidade ou duplo sentido neste periacuteodo composto com oraccedilatildeo reduzida τὸ βούλεσθαι λαβεῖν με τοὺς πολεμίους de dois significados literalmente ldquoo querer-se eu ter pego os inimigosrdquo e ldquoo querer-se os inimigos me terem pegordquo isto eacute ldquoquerem que eu tenha pego os inimigosrdquo e ldquoquerem que os inimigos me tenham pegordquo Frase correta mas ambiacutegua A oraccedilatildeo em negrito reduzida de infinitivo apresenta dois sentidos o sujeito do infinitivo λαβεῖν tanto pode ser o acusativo με como o acusativo τοὺς πολεμίους

159 Οταν οὖν τὸ Α παντὶ τῷ Β ἐνδέχηται καὶ τὸ Β παντὶ τῷ Γ συλλογισμὸς ἔσται τέλειος ὅτι τὸ Α παντὶ τῷ Γ ἐνδέχεται ὑπάρχειν

Referecircncias

Aristotelis opera ndash Academia regia Borussica Berlin 1960 vol I

Aristote ndash Organon (eacutedition J Tricot) Paris 1946 v 1

Cateacutegories v 2 De lrsquoInterpreacutetation v 3 Premiers

Analytiques v 4 Seconds Analytiques v 5 Topiques v 6 Les Reacutefutations SophistiquesAristotelis liber de interpretatione London Oxford University Press 1956

Aristotle ndash The Orgnon ndash Prior Analytics Hugh Tredennick Harvard University Press London 1955

Aristoacuteteles ndash Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Analiacuteticos Primeros Miguel Candel Sanmartiacuten Editorial Gredos Madrid 1995

Aulo Geacutelio ndash Noites Aacuteticas Londrina EDUEL 2010

Introduccedilatildeo de Bruno Fregni Bassetto traduccedilatildeo e notas de Joseacute Rodrigues Seabra Filho Nova tiragem revisada 2014

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Notas Finais

i LIDDELL Henry George and SCOTT Robert A Greek-English Lexicon Oxford University Press New York 1996 ii GENNEP Arnold Van The rites of passage Translated by Monika B rVizedon Routledge Library Editions London 2004 iii wwwperseustuftsedu (Apollodorus Library and Epitomes 2512) iv HOMERO Odyssey Translated by A T Murray Harvard University Press London 2002 (Loeb Classical Library) Book XI v VIRGIL Ecogles Georgics Aeneid 2V Translated by H R Fairclough Harvard University Press London 2001 (Loeb Classical Library) Georgics Book IV 453 ss vi wwwperseustuftsedu (Apollodorus Library and Epitomes 2512) vii Para a referecircncia da astuacutecia de Hera com relaccedilatildeo a Zeus fazendo de Euristeu o rei quando Zeus pensava em Heacutercules v Iliacuteada XIX 90-133 viii MIRCEA Eliade Rites and symbols of initiation the mysteries of birth and rebirth Translated by Willard R Trask Putnam Spring Publications 2005 p 112 ix HOMERO Odisseia XIX v 399-409 x HOMERO Odisseia XIX v 124-129 xi V Canto VIII da Odisseia na recepccedilatildeo a Odisseu entre os Feaacutecios em que Demoacutedoco canta o episoacutedio do cavalo de Troacuteia xii VIRGIacuteLIO Livro I v 257-296 xiii VIRGIacuteLIO Livro III v 441-444 xiv VIRGIacuteLIO Livro V v 724-739 xv VIRGIacuteLIO Livro VIII v 608-731 xvi HOMER Iliad Translated by A T Murray Harvard University Press London 2003 (Loeb Classical Library) Σ 478-608 xvii VIRGIacuteLIO Livro VIII v 626-728 xviii VOLPIS Leone Virgilio Eneide Libro sesto Milano Carlos Signorelli 1953 xix GLARE 2003 p 1238 xx Daiacute o significado do nome proposto pelo proacuteprio Virgiacutelio Averno seria proveniente do grego ἄορνος significando sem paacutessaro (VI 236-242) xxi VERNANT Jean-Pierre Mito e religiatildeo na Greacutecia antiga Trad Joana Angeacutelica DrsquoAvila Melo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 xxii Ver Iliacuteada Canto I v 37-42 na prece de Crises a Apolo e v 62-67 na fala de Aquiles sugerindo a consulta a um adivinho para saber o motivo de Apolo ter enviado ao acampamento a peste que dizimava o exeacutercito grego xxiii HOMERO Odisseia XI v 23-50 xxiv HESIacuteODO Teogonia v 383-403

xxv O escudo (ancile) segundo Tito Liacutevio teria caiacutedo do ceacuteu caelestiaque arma quae ancilia appellantur (Ab Vrbe Condita I 20) armas celestes que satildeo chamadas de escudos xxvi Espeacutecie de toga de cor puacuterpura usada pelos reis xxvii Primeiro ato de arar a terra xxviii O pronome hi estes faz referecircncia a Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e Marco Fuacuterio Camilo xxix Interregnum eacute o espaccedilo decorrente entre dois reinados xxx O termo nonae era empregado pois das nonae para os idus havia um espaccedilo de nove dias Sendo assim nos meses em que as nonae determinavam o 7ordm dia de cada mecircs os idus marcavam o 15ordm dia Nos meses de abril junho setembro e novembro as nonae determinavam o 5ordm dia e os idus o 13ordm dia xxxi A relaccedilatildeo de tais deuses se encontra em Le Culte Chez les Romains p11 xxxii Teogonia v 542 e v643 xxxiii Eneida I v 65 xxxiv Idem I v 254 xxxv Ibidem I v665 xxxvi Ibidem I v60 III v251 xxxvii Ibidem II v689 xxxviii Fulgurator eacute o que lanccedila relacircmpagos Tonitrualis e Fulminator os que lanccedilam raios Imbricitor o que faz chover Serenator o que acalma Frugiferum o que gera frutos o feacutertil o fecundo Tropaeophorus o que traz o trofeacuteu o vencedor xxxix Respectivamente Vencedor Invenciacutevel Auxiliador Instigador Mantenedor De cem peacutes Destruidor Sustentador Alimentador Nutridor xl Salii eram os antigos sacerdotes de Marte xli Flamen era o sacerdote que se consagrava a uma divindade particular Flamen Dialis Flamen Martialis Flamen Quirinalis respectivamente sacerdote de Juacutepiter sacerdote de Marte sacerdote de Quirino xlii vir refere-se a Varratildeo xliii O triacutemetro jacircmbico era composto por trecircs diacutepodas de jambo justapostas Jaacute Aristoacuteteles em sua Poeacutetica argumenta sobre seu uso na trageacutedia e na comeacutedia associando-o agrave fala cotidiana (1449a) ldquoquando se desenvolveu o diaacutelogo o engenho natural logo encontrou o metro adequado pois o jambo eacute o metro que mais se conforma ao ritmo natural da linguagem corrente demonstra-o o fato de muitas vezes proferirmos jambos na conversaccedilatildeo e soacute raramente hexacircmetros quando nos elevamos acima do tom comumrdquo (Trad Eudoro de Souza 1973) xliv Todas as traduccedilotildees exceto se especificado o contraacuterio satildeo de minha responsabilidade Adoto a ediccedilatildeo de Stevens (1971) para o texto grego xlv O diacutestico elegiacuteaco alterna hexacircmetros datiacutelicos o metro proacuteprio da poesia eacutepica ndash composto por seis peacutes datiacutelicos ou espondeus ndash com pentacircmetros (ou mais propriamente dois hemistiacutequios de hexacircmetro justapostos) Na traduccedilatildeo do passo elegiacuteaco da Androcircmaca embora natildeo busque em nenhum sentido reproduzir tal metro em liacutengua portuguesa busquei manter ao menos graficamente a estruturaccedilatildeo em diacutesticos xlvi Adoto a ediccedilatildeo de Garvie (2009) xlvii Adoto aqui em suas linhas gerais o argumento de Arthur (1981) Schein (1984 p168-191) e Redfield (1994 pp109-110) xlviii Um exemplo eacute o episoacutedio da morte de Paacutetroclo que incorpora cenas motivos e linguagem atinentes agrave morte de Aquiles que natildeo eacute contada no poema (ver Schein 1984 p 155-156) xlix Adoto a ediccedilatildeo de van Thiel (2010) para a traduccedilatildeo dos excertos da Iliacuteada l A traduccedilatildeo adota a ediccedilatildeo de Bury (1926)

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li Traduccedilatildeo de Iacutecaro Francesconi Gatti (2012) A ediccedilatildeo do texto grego eacute de Severyns (1977) lii Para a traduccedilatildeo deste excerto da Odisseia usei a ediccedilatildeo de Allen (1975) liii Traduccedilatildeo de Giuliana Ragusa (2011) segundo a ediccedilatildeo de Eva-Maria Voigt (1971) liv Um indiacutecio de canto lamentoso em Safo eacute o fragmento 140 Voigt um canto responsoacuterio agrave morte de Adocircnis embora natildeo definido tecnicamente como um treno lv Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira (2017) a partir da ediccedilatildeo de Burnet (1949) lvi Ver Swift (2010) lvii Adoto para a traduccedilatildeo a ediccedilatildeo de Dodds (1960) lviii Usado tambeacutem no Hino Deacutelfico a Dioniso de Filodamo e no hino de Iacuteaco nas Ratildes de Aristoacutefanes (vv324ss) Ver Dodds 1960 pp 72-74 lix Satildeo fundadores os textos de West (1974) e Bowie (1986) Para um desenvolvimento da discussatildeo aqui apresentada ver Brunhara (2014) lx Ediccedilatildeo do texto Diggle (1982) lxi Ver Fowler (1987) lxii Sobre o Poliacircndrio de Ambraacutecia ver DrsquoAlessio (1995) Uma traduccedilatildeo destes versos pode ser lida em Brunhara (2014 p27) lxiii Utilizo a ediccedilatildeo de Martin West (1972) para a traduccedilatildeo das elegias arcaicas de Arquiacuteloco e Tirteu lxiv Aristoacutefanes Aves v214 lxv Troianas v199 Ifigecircnia em Taacuteuris v146 Helena v185 Orestes v968 Euriacutepides Hipsiacutespile 8-10 Cocke) lxvi COSTA 2014 p 11 61 cf o prefaacutecio de Anatol Rosenfeld em LESKY 2003 p 14 lxvii LESKY 2003 p 21-23 lxviii Para atender agrave leitura do texto grego faz-se necessaacuterio transliterar pelo menos palavras e expressotildees isoladas na primeira ocorrecircncia A transliteraccedilatildeo eacute escrita entre colchetes quando segue a proacutepria palavra grafada em caracteres gregos (ROSSETTI 2006 p 327-337) lxix palavra ἁμαρτία [hamartia] eacute uma palavra composta e deverbal derivada do verbo ἁμαρτάνω [hamartanō] que literalmente significa errar o alvo errar a marca Assim ἁμαρτάνω tem amiuacutede a acepccedilatildeo de falhar no propoacutesito fazer errado negligenciar O ἀ de ἁμαρτάνω eacute privativo Por fim a palavra ἁμαρτία [hamartia] significa falha falta ou erro Essa culpa natildeo eacute senatildeo o estado de esquecimento diante dos verdadeiros objetivos reais (MORWOOD TAYLOR 2002 p 17 PEREIRA 1998 p 29 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 77 Confronte com a acepccedilatildeo judaico-cristatilde em LUST EYNIKEL HAUSPIE 1992 pt 1 p 22-23 RUSCONI 2003 p 36) lxx LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1150-1151 lxxi ARISTOTELES 1965 p 10-11 MARTINS 2009 p 128 lxxii ARISTOTELES 1965 p 11 lxxiii ARISTOTELES 1965 p 12 lxxiv ARISTOTELES 1965 p 12 MARTINS 2009 p 128-129 lxxv ARISTOTELES 1965 p 17 MARTINS 2009 p 128-129 lxxvi ARISTOTELES 1965 p 17 MARTINS 2009 p 128-129 lxxvii ARISTOTELES 1965 p 14 lxxviii HOMERO 2008 v 1 p 168 JEBB 2010 v 1 p xiv lxxix JEBB 2010 v 1 p xiv lxxx JEBB 2010 v 1 p xv lxxxi JEBB 2010 v 1 p xiv lxxxii MORWOOD TAYLOR 2002 p 8 PEREIRA 1998 p 16 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 36

lxxxiii FREIRE 1991 p 205-206 lxxxiv NIETZSCHE 2014 p 7-8 lxxxv LESKY 2003 p 34-35 lxxxvi JEBB 2010 v 1 p xvii xxi lxxxvii Ocorre o verbo ἁμαρτάνω [hamartanō] mas esse natildeo se aplica a Eacutedipo Faz parte da pergunta retoacuterica do servo e pastor de Laio quando inquirido (Oedipus Tyrannus 1149) lxxxviii Cf Ethica Nicomachea 1114a7-8 ARISTOTELES 2010 p 50 VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 40 lxxxix ARISTOTELES 1965 p 20 xc LESKY 2003 p 29-31 41-43 xci LESKY 2003 p 29-30 xcii A doutrina do estoicismo defendia a perfeiccedilatildeo do saacutebio Para Secircneca o proacuteprio saacutebio natildeo pode natildeo pecar Ainda segundo ele o verdadeiro saacutebio natildeo existe se natildeo peca natildeo existe Apenas existe um saacutebio que natildeo erradicando o pecado afasta-se dele aos poucos REALE 2008 v 7 p 79-80 xciii LESKY 2003 p 42 REALE 2008 v 7 p 79-80 Natildeo obstante as acepccedilotildees de ἁμαρτία e ἁμαρτάνω [hamartanō] como erro pecado falha errar pecar falhar podem ser encontradas na Septuaginta mas geralmente ligadas agraves observacircncias religiosas (LUST EYNIKEL HAUSPIE 1992 pt 1 p 22-23 RUSCONI 2003 p 36 GLARE 2015 p 1448) xciv ARISTOTELES 1965 p 20 LESKY 2003 p 43 xcv ARISTOTELES 1965 p 20 JEBB 2010 v 1 p xxvii LESKY 2003 p 43 xcvi LESKY 2003 p 28-29 xcvii NIETZSCHE 2014 p 5 xcviii ARISTOTELES 1965 p 20 xcix LESKY 2003 p 28-29 c JEBB 2010 v 1 p xxvii COULANGES 2004 p 95-102 ci LESKY 2003 p 28-29 cii ARISTOTELES 1965 p 19-20 MARTINS 2009 p 127-128 ciii ARISTOTELES 1965 p 28-29 MORWOOD TAYLOR 2002 p 22 PEREIRA 1998 p 36 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 101 civ MORWOOD TAYLOR 2002 p 70 PEREIRA 1998 p 114 115 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 350 355 cv MORWOOD TAYLOR 2002 p 3 PEREIRA 1998 p 6 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 12 cvi MORWOOD TAYLOR 2002 p 222 PEREIRA 1998 p 391 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1180-1181 FERRATER MORA 1964 t 2 p 303-304 FOBES 1959 p 284 cvii A palavra παράνοια [paranoia] eacute um substantivo composto e deverbal derivado do verbo παρανοέω [paranoeō] que pensamento desviado loucura ou deliacuterio uma anormalidade do νοῦς [nous] MORWOOD TAYLOR 2002 p 245 PEREIRA 1998 p 433 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1319 FREIRE 2001 p 268 cviii Platatildeo Leges 9860d (PLATO 1926 v 2 p 222-223) Platatildeo Leges 5731c 5734b (PLATO 1926 v 1 p 336-337 346-347) Platatildeo Timaeus 86e (PLATO 1929 v 9 p 234-235) cix VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 36-37 cx VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 35 cxi VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxii VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxiii VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 35-36 cxiv MORWOOD TAYLOR 2002 p 245 PEREIRA 1998 p 433 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1319 FREIRE 2001 p 268

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cxv VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxvi VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37-38 cxvii ARISTOTELES 1965 p 20 cxviii NIETZSCHE 2014 p 5 cxix ARISTOTELES 1965 p 22 cxx Cf a nota sobre a linha 1360 em SOPHOCLES 2010 v 1 p 246-247 A palavra ὅσιος significa santificado pela divina lei ou pela lei da natureza sagrado aprovado pelos deuses santo pio casto puro MORWOOD TAYLOR 2002 p 225 A palavra ἀνόσιος eacute a negaccedilatildeo do ὅσιος cxxi Este capiacutetulo eacute parte de meu poacutes-doutorado supervisionado pelo Prof Dr Joseacute Antocircnio Alves Torrano na Universidade de Satildeo Paulo (USP) com financiamento da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo (FAPESP) cxxii Sobre a importacircncia da vida praacutetica em Diaacutelogo do Amor consultar FRAZIER 2008 p XXXIII-XXXVIII cxxiii Do caraacuteter conselheiro da filosofia agrave eacutepoca de Plutarco ver FOUCAULT 2010 cxxiv A intenccedilatildeo de Plutarco de unir a filosofia agrave praacutetica demonstra a influecircncia vinda da poesia grega anterior como Platatildeo e Aristoacuteteles sobre isso verificar PRICE 2011 cxxv Da misoginia de Euriacutepides averiguar MARCH 1990 cxxvi Segundo o Cataacutelogo de Lacircmprias Plutarco escreveu o tratado n 205 dedicado ao pensamento de Heraacuteclito intitulado Sobre o que pensou Heraacuteclito que natildeo chegou ao nosso tempo Aleacutem disso Plutarco eacute uma fonte importante dos fragmentos de Heraacuteclito (HERSHBELL 1977) cxxvii De acordo com o Cataacutelogo de Lacircmprias Plutarco escreveu o tratado de n 43 intitulado No Deacutecimo Livro de Empeacutedocles ainda que natildeo tenha sido preservado Nosso autor cita muitos pensamentos do filoacutesofo e poeta siciliano em sua obra o que o torna uma importante fonte de fragmentos pertencentes a Empeacutedocles (HERSHBELL 1971) cxxviii Para uma anaacutelise mais detalhada do uso plutarquiano do fragmento de Parmecircnides e dos versos de Hesiacuteodo consultar MARTIN JR 1969 cxxix Como notou Peacuterez Jimeacutenez (2004) Plutarco segue o pensamento cosmogocircnico hesioacutedico porque o poeta de Ascra sistematizou o corpus miacutetico tradicional conhecido por todos os gregos cxxx O pensamento de Crisipo representa a contribuiccedilatildeo do ceticismo na reflexatildeo plutarquiana quanto ao amor Para a leitura que Plutarco faz dos ceacuteticos verificar DeLACY 1953 cxxxi Homero eacute um autor importante para a finalidade pedagoacutegica desse tratado plutarquiano por conta de seus siacutemiles e de sua fama entre os gregos de ldquomestre da sabedoriardquo Para uma leitura mais aprofundada sobre a questatildeo ver DrsquoIPPOLITO 2004 cxxxii Em Hipoacutelito Euriacutepides exalta a amizade e a honestidade entre os homens (PAGLIALUNGA 20022003) cxxxiii O amor entre os guerreiros estaacute presente na tradiccedilatildeo literaacuteria grega em particular entre os espartanos Haacute dois importantes artigos sobre o poder de Eros em um campo de batalha HINDLEY 1994 e 1999 cxxxiv Acerca do amor entre Aquiles e Paacutetroclo averiguar CLARKE 1978 cxxxv Para uma melhor compreensatildeo do poema consultar SUTTON 1983 e HORDERN 1999 cxxxvi Haacute uma anaacutelise hermenecircutica na obra de Piacutendaro da autoria de Fera (1992) a respeito do significado da frase ldquoescaparam de Aqueronterdquo cxxxvii Existe a versatildeo platocircnica de Eros filho de Poros e Penia em que a matildee daquele Meacutetis tem participaccedilatildeo nos atributos de Eros como Diotima que herdou dela e Poros a habilidade na criaccedilatildeo e execuccedilatildeo de expedientes para alcanccedilar seus fins (PLATAtildeO O Banquete 203b-d) Conforme notaram Deacutetienne e Vernant (2008 p 135) a associaccedilatildeo entre Meacutetis e Eros jaacute fora

registrada por Parmecircnides (frag 13) o que evidencia a recepccedilatildeo em Platatildeo de um pensamento jaacute existente natildeo se tratando de uma criaccedilatildeo sua Para uma anaacutelise mais detalhada do episoacutedio ver NEUMANN 1965 cxxxviii Para ver uma lista de obras sobre a Histoacuteria da Linguiacutestica desde 1882-1976 ver Koerner (1978) De acordo com Koerner (2014 p 11) ldquoEacute verdade que podiacuteamos talvez falar de uma tradiccedilatildeo de 200 anos de escrita da histoacuteria da Linguiacutestica talvez a comeccedilar com o Tableau des progregraves de la science grammaticale (1796 cf Andresen 1978) de Franccedilois Thurot (1768- 1832) embora vaacuterias obras anteriores jaacute tenham sido citadas por exemplo o Versuch einer Historie der deutschen Sprachkunst (1747) de Elias Caspar Reichard (1714-1791) (cf Koerner 1978c para referecircncias a outras obras do seacuteculo XVIII) Poreacutem como sugerem as fontes (Koerner 1978c 1-4) eacute apenas a partir de finais da deacutecada de 1860 que surge um tipo de tratamento mais profundo da histoacuteria da Linguiacutestica do qual a Geschichte der Sprachwissenschaft (1869) de Theodor Benfey (1809-1881) pode ser considerada como o exemplo mais paradigmaacutetico Este trabalho tinha sido precedido pela obra de Heymann Steinthal (1823-1899) de 1863 que procurou substituir os trecircs volumes de Die Sprachphilosophie der Alten (1838-1841) de Laurenz Lersch (1811-1849) mas que soacute trata das contribuiccedilotildees da Greacutecia e Roma para o pensamento linguiacutesticordquo Essa mesmas informaccedilotildees satildeo encontradas tambeacutem em Koerner 1995 p 03 2004 p 28) cxxxix Robins (1979 [1967] p xvi) chega mesmo a afirmar que ldquoO interesse atual que os linguistas demonstram pelo desenvolvimento passado e recente da sua ciecircncia eacute em si mesmo sinal da maturidade que a linguiacutestica independentemente das suas possiacuteveis aplicaccedilotildees praacuteticas alcanccedilou como disciplina acadecircmicardquo cxl Podemos citar que um dos resultados desse empreendimento foi precisamente a compilaccedilatildeo de antologias multiautorais sobre a histoacuteria da Linguiacutestica entre as quais podemos destacar por exemplo Auroux (ed 1989ndash2000) Auroux Koerner Niederehe Versteegh (eds 2000ndash2006) Lepschy (ed 1994ndash98) Schmitter (ed 1987ndash2007) entre outros cxli Como observa Vivien Law (1993 p 2) os tratados gramaticais entre os textos antigos ateacute mesmo entre os filoacutelogos e os classicistas pareciam prescindir de um ldquovalor intriacutensecordquo que justificasse o interesse em sua pesquisa Diferente dos aacuteridos e por vezes sem graccedila tratados em torno da linguagem escrito por gramaacuteticos gregos e romanos os textos poeacuteticos retoacutericos e filosoacuteficos por outro lado em virtude seus meacuteritos esteacuteticos ou conceituais sempre tiveram a predileccedilatildeo dos estudiosos da Antiguidade cxlii Robins (1967 p 9) chega a afirmar que Its simply that the Greek thinkers on language and on the problems raised by linguistic investigations initiated in Europe the studies that we can call linguistic Science in its widest sense and that this Science was a continuing focus of interest from ancient Greece until the present day cxliii Como por exemplo Fortes (2012) Dezotti (2011 2013) e Beccari (2013) No Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica da UFJF na linha de Pesquisa Linguagem e Humanidades orientamos os seguintes trabalhos nessa perspectiva Rocha (2015) Freitas (2016) Silva (2018) Rodrigues (2020) cxliv Com a neutralidade epistemoloacutegica o classicista colabora para a concepccedilatildeo de que ldquonatildeo faz parte do nosso papel dizer se isto eacute mais ciecircncia do que aquilo mesmo se nos acontecer de sustentar que isto ou aquilo eacute concebido como ciecircncia por este ou aquele criteacuteriordquo E com o historicismo moderado traz com o seu vastiacutessimo corpus de textos gregos e latinos informaccedilotildees decisivas para que a comunidade cientiacutefica se possa convencer de que ldquoo valor de um saber eacute dado de acordo com o grau de adequaccedilatildeo desse saber a um fim dado (o que entretanto natildeo conduz ao ldquomito da incomparabilidaderdquo segundo o qual seria impossiacutevel ler textos do passado)rdquo

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cxlv Disponiacutevel em httpwwwmlatuzhchMLSxanfangphpcorpus=13amplang=0 cxlvi Por exemplo as dissertaccedilotildees de Dezotti (2007) Freitas (2016) e Rodrigues (2020) cxlvii Cf ldquothe history of linguistics may well serve as a guard against exaggerated claims in terms of novelty originality breakthrough and revolution in our (re)discoveries and thus lead to a less polemic kind of scientific discourse or as the late Paul Garvin suggested many years ago (Garvin 1970) a lsquomoderation in linguistic theoryrdquo (traduccedilatildeo nossa) cxlviii O presente trabalho faz parte do projeto de poacutes-doutoramento que atualmente desenvolvo no Departamento de Estudos Claacutessicos financiado pela Faculdade de Artes e Ciecircncias da Universidade de Toronto cxlix Trecho inicial do diaacutelogo 2 (22) ldquoCaronte e Menipordquo da obra ldquoDiaacutelogo dos Mortosrdquo de Luciano de Samoacutesata (ativo no seacutec II dC) na traduccedilatildeo de Henrique G Murachco (1996 p 53) Agradeccedilo ao caro professor e colega Breno Battistin Sebastiani que gentilmente me enviou as fotos do diaacutelogo pois meu exemplar do livro estaacute no Brasil infelizmente cl Pequena moeda grega que equivaleria a um centavo cli Diferentemente do que o filme ldquoTroiardquo(2004) infelizmente disseminou a moeda era colocada entre os laacutebios ou mesmo na boca do morto A relaccedilatildeo entre as moedas e as praacuteticas mortuaacuterias eacute discutida por exemplo por Stevens (1991) clii Utilizo aqui o mesmo termo que estabeleci na anaacutelise dos epigramas fuacutenebres da minha tese de doutorado (AMARAL 2018) O termo aglutina as duas funccedilotildees assumidas pelo leitor do epigrama pois a construccedilatildeo do epigrama com base epigraacutefica pressupotildee como interlocutor algueacutem que passa diante da laacutepide e lecirc o que estaacute escrito nela Como o termo passante natildeo abarca a funccedilatildeo do leitor do epigrama jaacute em contexto literaacuterio foi adotado o composto transeunte-leitor para apreender as duas funccedilotildees que o leitor do epigrama literaacuterio deve assumir ao estar diante de um exemplar do gecircnero cliii O epigrama 89 de Caliacutemaco foi incluiacutedo por conta do recorte temporal do corpus Entretanto ele natildeo eacute um epigrama fuacutenebre embora esteja arrolado no livro 7 da Antologia Grega Jaacute o epigrama 165 eacute atribuiacutedo por Gow and Page (1965) a Aacuterquias mas algumas outras ediccedilotildees mantecircm a dupla atribuiccedilatildeo de Antiacutepatro ou Aacuterquias Como foi adotada a ediccedilatildeo que considera a atribuiccedilatildeo a Aacuterquias eacute importante registrar que a dataccedilatildeo desse epigrama pode ser posterior ao periacuteodo heleniacutestico cliv Todos os epigramas do corpus foram traduzidos para o portuguecircs por Jesus (2019) Todos os epigramas de Caliacutemaco haviam sido traduzidos primeiramente por Silva (2014) sendo que o 524 havia sido traduzido pelo mesmo autor em artigo no ano anterior O mesmo epigrama (524) havia sido traduzido por Paes (1995) Em 2019 Flores publicou a traduccedilatildeo integral de Caliacutemaco e em 2018 Amaral havia traduzido o epigrama 725 do mesmo epigramatista Por fim os epigramas de Meleagro do corpus haviam sido traduzidos por Amaral (2009) clv Vale lembrar entretanto que apesar do desenvolvimento do epigrama novo gecircnero as inscriccedilotildees seguem sendo produzidas ao longo do tempo passando tambeacutem por mudanccedilas graacuteficas e ganhando novas localidades e liacutenguas Dessa maneira haveraacute uma muacutetua influecircncia da praacutetica de ambas as modalidades ao longo do tempo fenocircmeno que os pesquisadores da aacuterea tecircm estudado nos uacuteltimos anos clvi Haacute poreacutem discussatildeo sobre como a forma dialogada ocorre considerando tambeacutem as inscriccedilotildees e natildeo apenas os epigramas literaacuterios como aponta Kauppinen (2015) citando Rasche (1910) e Tueller (2008) clvii Encontra-se um ciclo de epigramas de Gregoacuterio de Nazianzo (AG 8104-117) que eacute justamente sobre tuacutemulos violados Floridi (2013) faz uma anaacutelise que compara inscriccedilotildees de mesma temaacutetica com os epigramas literaacuterios de Gregoacuterio clviii Pode-se fazer essa afirmaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos epigramas dialogados da Antologia Grega

Entretanto ainda natildeo foram analisadas as inscriccedilotildees dialogadas e portanto natildeo se pode afirmar sobre como o fenocircmeno se daacute nesse contexto clix Para maiores detalhes sobre o poeta cf Gutzwiller (1998) e Amaral (2009) clx Para recentes discussotildees sobre Meleagro e sua obra cf ldquoA Guirlanda de Meleagro de Gadara e o Epigrama Gregordquo na seacuterie ldquoEstudos Claacutessicos em Diardquo (YouTube) promovida pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo e ldquoMeleagro um poeta na era das bibliotecasrdquo na seacuterie ldquoCafeacute Gregordquo promovida pelo NUPEL (Nuacutecleo Permanente de Extensatildeo em Letras) da Universidade Federal da Bahia (YouTube) clxi Ainda natildeo haacute previsatildeo de publicaccedilatildeo do estudo clxii Entretanto foram recolhidos cento e trinta e cinco epigramas dialogados da AG no total durante a minha pesquisa atualmente em andamento clxiii Eacute curioso notar que todos os epigramatistas do corpus foram nomeados no proecircmio de Meleagro (AG 41) clxiv Agradeccedilo ao caro colega Rafael Brunhara por ter me enviado uma foto do poema pois infelizmente o meu exemplar do livro se encontra no Brasil clxv O texto desta pequena Introduccedilatildeo bem como o texto da seccedilatildeo 1 (As Mythologiae) satildeo de Joseacute Amarante e refletem ideias e textos de sua autoria presentes em O livro de mitologias de Fulgecircncio (2019) Para traduccedilotildees das Mythologiae de Fulgecircncio para outras liacutenguas vd Whitbread (1971) Wolff Dain (2013) e restrita ao Proacutelogo do Livro I Venuti (2018) clxvi A questatildeo eacute jaacute bem discutida de forma que hoje a confusatildeo natildeo mais se sustenta (AMARANTE 2019 vd tb VENUTI 2018 pp 11-21) Satildeo leituras obrigatoacuterias para esse tema os trabalhos de Gregory Hays constantes no site sob sua organizaccedilatildeo lthttppeoplevirginiaedu~bgh2nfulgbibhtmlgt onde se encontra uma bibliografia anotada do nosso autor clxvii Vd Moltzer (1535) Petrus (1536) Commelinus (1599) Muncker (1681) Staveren (1742) clxviii A traduccedilatildeo de Martina Venuti (2018) do Proacutelogo do Livro I das Mythologiae eacute acompanhada de uma nova ediccedilatildeo criacutetica referente a essa parte do texto com a inclusatildeo de novos manuscritos considerados Para o texto de Helm vd Fulgentii (1898) clxix A ediccedilatildeo de Helm (1898) nos daacute a obra como da autoria do bispo homocircnimo ldquoS Fulgentii Episcopi Super Thebaidenrdquo clxx ldquoEgli calpesta ogni regola di buon senso in modo cosigrave aperto grossolano e quasi brutale che mal srsquointende come un cervello sano abbia potuto concepire sul serio un cosigrave pazzo lavorordquo (COMPARETTI 1872 v I p 149) ldquoBoth Divine Comedy and Botticellirsquos Primavera would be very different works if Fulgentius had not writtenrdquo (HAYS 1996) As traduccedilotildees citadas neste trabalho satildeo nossas exceto quando informamos outro tradutor clxxi Uma parte significativa do que hoje afirmamos em relaccedilatildeo a Fulgecircncio e sua obra se deve principalmente aos estudos desenvolvidos por Gregory Hays em sua tese de doutorado Fulgentius the Mythographer (Cornell 1996) e a estudos desenvolvidos em sequecircncia (vd HAYS 1999-2019) Outros estudos sobre o autor costumam nos uacuteltimos anos girar em torno dos trabalhos de Martina Venuti Eacutetienne Wolff Massimo Manca e Silvia Mattiacci Vd Hays (1999-2019) clxxii Para outros estudos no Brasil vd pe Santos (2016) clxxiii O caso mais evidente eacute o da sequecircncia de interpretaccedilotildees evemeristas para explicar o ocorrido a Dacircnae e a Ganimedes em que se citam os mesmos ndash e outras ndash personagens numa mesma sequecircncia e com visiacuteveis decalques leacutexico-sintaacuteticos (vd AMARANTE 2019 p 84) Sobre as fontes fulgencianas veja-se tambeacutem Hays (1996 partic cap IV) clxxiv Segundo Brisson seraacute com a redescoberta dos textos gregos no Renascimento que haveraacute uma predominacircncia da influecircncia do neoplatonismo (2014 p 227) clxxv Para alguma bibliografia sobre essas tradiccedilotildees vd Amarante (2019 p 41-51)

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clxxvi ldquoPropone unrsquoanalisi complessiva dellrsquoldquoarchitetturardquo delle Mythologiae fornendone una lettura unitaria avanzando ipotesi sullrsquoorganizzazione ldquoorizzontalerdquo della materia e interessanti proposte critiche riguardo ai tituli delle fabulaerdquo clxxvii ldquoRather than relying on wide-ranging semantic matrixes Amarante concentrates on the micro-level of the transitions from one fabula to another He aims to demonstrate that the Mythologiae not only constitute a network but also that this network is linearly organized its rationale emerges through the succession of myths which far from being disjointed are proved to be readable ldquocover-to-coverrdquo As a result Amarantersquos analysis substitutes Wolffrsquos structural cohesion by resorting to a kind of flow cohesion ndash but cohesion is still the goalrdquo clxxviii Cf Venuti (2009 2018) que apresenta uma bem cuidada revisatildeo da ediccedilatildeo de Helm no tocante ao Proacutelogo do Livro I e faz uma uacutetil discussatildeo sobre seu conteuacutedo e sobre sua estrutura (essa mesma estrutura eacute retomada por Wolff e Dain 2013 pp 12-15) Cf tambeacutem Hays (1996 [2001] e 2003) e Mattiacci (2002) clxxix Dados os limites deste trabalho natildeo se faz aqui um detalhamento do conteuacutedo e da estrutura do proacutelogo Vd a leitura de Venuti (2018 pp 21-30) e de Mattiacci (2002) Em portuguecircs veja-se um resumo do Proacutelogo em Amarante (2019 p 25-26) clxxx Obviamente fazemos referecircncia aqui a esta narrativa no iniacutecio do Livro I como uma faacutebula em separado a partir do que a tradiccedilatildeo tem considerado Segundo Amarante (2018a e 2019) contudo trata-se apenas de uma narrativa introdutoacuteria numa sequecircncia discursiva una em todo o Livro I em que as faacutebulas natildeo se encontram divididas como narrativas independentes separadas por tiacutetulos clxxxi Cf Livro da Sabedoria 14 15 A ediccedilatildeo utilizada da Biacuteblia Sagrada eacute a ediccedilatildeo pastoral da Editora Paulus clxxxii O texto e as notas desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Raul Oliveira Para traduccedilotildees da Virgilianae a outras liacutenguas vd Whitbread (1971) Rosa (1997) Valero Moreno (2005) e Wolff (2009) clxxxiii Cf Comparetti (1943[1872] p 61) clxxxiv O texto desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Shirlei Almeida Para traduccedilotildees da Sermonum a outras liacutenguas vd Pizzani (1968) Whitbread (1971) clxxxv ldquo[hellip] entries 1-11 deal with terms involved with burial customs divination sacrifice and minor deities while 12-62 (except for 14 and 48 which may be misplaced and belong in the first category) cover odd words mdashcolloquial and technical termsmdashfor foods boats utensils women of the streets and so forth particularly as found in plays poems and romancesrdquo clxxxvi ldquoDei vari testimonia riportati da Fulgenzio nella esemplificazione dei sermones soltanto tre trovano rispondenza presso altri studiosi o eruditi o lessicografi quali Festo o Nonio o Servio o Isidoro a parte le voci addirittura ignote a codesti eruditirdquo clxxxvii O texto desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior Dadas as particularidades lipogramaacuteticas da De aetatibus em especial comentam-se questotildees tradutoacuterias especialmente nesta seccedilatildeo deste capiacutetulo clxxxviii O epiacuteteto de Mitoacutegrafo eacute muito utilizado para distinguir o Fulgecircncio das Mitologias de seu homocircnimo o Bispo de Ruspe em razatildeo de uma problemaacutetica de ordem filoloacutegica que foi explorada em liacutengua portuguesa por Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019b) clxxxix Em seu proacutelogo Fulgecircncio afirma que seu alfabeto teria 23 elementos a diferenccedila do claacutessico que possui 22 caracteres Tendo isso em conta Leslie Whitbread (1971) e Massimo Manca (2003) consideram que a letra adicional seria o lsquoyrsquo Para o excerto do proacutelogo em que satildeo abordados os elementos grafecircmicos vd traduccedilatildeo de Santos Juacutenior (2020ae) cxc Esta problemaacutetica filoloacutegica jaacute foi explorada em nossas duas traduccedilotildees lipogramaacutetica e alipogramaacutetica do proacutelogo da De aetatibus (SANTOS JUacuteNIOR 2020ae)

cxci Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019a) aponta natildeo apenas autores antigos e tardios como integrantes dessa tradiccedilatildeo mas tambeacutem aqueles do Classicismo Barroco Arcadismo Romantismo Simbolismo e Concretismo cxcii Para mais dados relativos agrave tradiccedilatildeo de escrita constrangida vd Santos Juacutenior (2019a 2020d) e Santos Juacutenior Amarante (2019) cxciii Jaacute foram publicadas as traduccedilotildees do proacutelogo lipogramaacutetica e alipogramaacutetica e as traduccedilotildees lipogramaacuteticas do Livro I (Ausente A) do Livro II (Ausente B) do Livro III (Ausente C) do Livro IV (Ausente D) do Livro VII (Ausente G) e do Livro XII (Ausente M) efetuadas por Santos Juacutenior (2019cd e 2020abcef) e por Santos Juacutenior em coautoria com Amarante (2020) cxciv Cf eg KROLL 1953 P 70 ROBINS 1979 p 42 DELLA CASA 1973 p 76 CAcircMARA JR 1975 p 21 LAW 2003 p 65ndash80 cxcv Essa busca aparece explicitamente manifesta em algumas passagens da Ars (propter compendium HOLTZ 1981 p 656 ne nimis longum sit p 660) Para o gramaacutetico e comentador Pompeio Donato escreveu sua arte ldquomais para oferecer a mateacuteria a se tratar do que tratar dela ele proacutepriordquo (re uera ars ista scripta est ut materiam potius dederit tractandi quam ipse tractauerit in Grammatici Latini vol 5 p 281 linhas 26-27) cxcvi et uide quem ad modum tractat tractat primo de illis communibus et postea redit ad istos speciales casus (Grammatici Latini vol 5 p 103 linhas 4ndash5) cxcvii Mencione-se que a recente ediccedilatildeo de Holtz (1981) traz uma nova divisatildeo em dois ldquovolumesrdquo (editiones) o primeiro com as noccedilotildees elementares (Arte menor Arte maior 1) o segundo com o ldquocurso superiorrdquo (Arte maior 2 e 3) cxcviii Grammaticae initia ab elementis surgunt elementa figurantur in litteras litterae in syllabas coguntur syllabis conprehenditur dictio dictiones coguntur in partes orationis partibus orationis consummatur oratio oratione uirtus ornatur uirtus ad euitanda uitia exercetur cxcix Marc Baratin (1989a p 198 1994 p 145) atribui essa ldquovisatildeo tradicionalrdquo aos estudos de K Barwick (1922 1957) cc Plerique artem scribentes a litterarum tractatu inchoauerunt plerique a uoce plerique a definitione artis grammaticae sed omnes uidentur errasse non enim propriam rem officii sui tractauerunt sed communem et cum oratoribus et cum philosophis nam de litteris tractare et orator potest de uoce nemo magis quam philosophi tractant definitio etiam Aristotelicorum est unde proprie Donatus et doctius qui ab octo partibus inchoauit quae specialiter ad grammaticos pertinent cci Um amplo estudo sobre o surgimento e estabelecimento da doutrina das partes da oraccedilatildeo da filosofia agrave gramaacutetica encontra-se em DEZOTTI (2011) e DEZOTTI (2015) ccii Aristotelici duas dicunt esse partes orationis nomen et uerbum Stoici quinque grammatici octo plerique nouem plerique decem plerique undecim (Grammatici Latini vol 4 p 428 linhas 12ndash13) cciii Nomina declinare et uerba in primis pueri sciant neque enim aliter peruenire ad intellectum sequentium possunt cciv hellipbene fecit Donatus partem illam priorem scribere infantibus posteriorem omnibus (Grammatici Latini vol 5 p 98 linhas 6ndash7 traduccedilatildeo nossa) ccv quare inchoauit Donatus a nomine et non a littera cum alii a littera inchoassent sciens Donatus quia et ipsa littera nomen erat ideo inchoauit a nomine et non a littera (YENES ed 1973 p 9 linhas 15-18) ccvi adtendendum quod Donatus strenuissime peritissimeque suam edidit artem primum enim componens minorem ad instruendos pueros eam in exordio sui uoluminis imposuit secundam uero editionem a littera ceterisque particulis ad superficiem pertinentibus

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inchoauit et postea octo partes his autem positis ad complendam secundam editionem barbarismum et cetera uitia posuit et sicut primitus partes id est uocem litteram syllabam ceterasque quae ad superficiem pertinent posuerat ita de uitiis disputans barbarismum in capite ponere studuit qui corrumpit superficiem in secundo loco soloecismum quod uitium corrumpit sensum contextumque partium ccvii scripsit enim artem duplicem id est octo partes quas minores uocant artes a quibus secunda haec est editio sed notandum est quibus personis primam quibusque scripsit secundam et interrogandum quot et quibus causis artes minores scripsit hoc est personis puerorum et causis tribus prima ut scirent quibus modis esset ars secunda ut discerent interrogare ut est partes orationis quot sunt tertia causa uti nossent soluere interrogata ut est octo et rel(iqua) in prima ad docendos pueros interrogationi satisfacit et solutioni in secunda autem editione personas perfectas docet scientiam Latinitatis sed nos nunc dicere conuenit quibus modis sit interrogatio id est tribus quasi discere uolens uel docere an quaestionis promendae gratia sed in artibus minoribus quasi docere uolens interrogat Donatus ccviii CICERO FILIUS Studeo mi pater Latine ex te audire ea quae mihi tu de ratione dicendi Graece tradidisti ndash si modo tibi est otium et si vis CICERO PATER An est mi Cicero quod ego malim quam te quam doctissimum esse Otium autem primum est summum quoniam aliquando Roma exeundi potestas data est deinde ista tua studia vel maximis occupationibus meis anteferrem libenter CF Visne igitur ut tu me Graece soles ordine interrogare sic ego te vicissim eisdem de rebus Latine interrogem CP Sane si placet Sic enim et ego te meminisse intellegam quae accepisti et tu ordine audies quae requires CF Quot in partes distribuenda est omnis doctrina dicendi CP In tres CF Cedo quas CP Primum in ipsam vim oratoris deinde in orationem tum in quaestionem CF In quo est ipsa vis CP In rebus et verbis (CICERO 1942) ccix partes orationis quot sunt octo quae nomen pronomen uerbum aduerbium participium coniunctio praepositio interiectio nomen quid est pars orationis cum casu corpus aut rem proprie communiterue significans nomini quot accidunt sex quae qualitas conparatio genus numerus figura casus qualitas nominum in quo est bipertita est aut enim unius nomen est et proprium dicitur aut multorum et appellatiuum ccx hellipin responsionibus callidi debemus esse plerumque aut male respondentes faciunt nos facere soloecismum aut male interrogantes ut puta siqui dicat Africanus sic debeo interrogare sic respondere Africanus quae pars orationis et puer dicat nomen ego interrogo quale nomen debet ille respondere proprium debeo interrogare quae pars proprii et debet ille dicere agnomen ipse est ordo uerus secundum interrogationem prius est enim ut dicas quod est generale et postea ut dicas quod est speciale ceterum si te interroget Africanus quae pars orationis et tu dicas agnomen ab imis coepisti non mihi dixisti quia nomen est deinde non mihi dixisti utrum proprium sit an appellatiuum sed dixisti quod erat imum ergo sic debes dicere nomen est est autem proprium pars autem proprii nominis est agnomen sic similiter et reliqua ccxi solent aliqui homines plerumque esse callidi et interrogat te aliquis et dicit tibi Lucius quale nomen est proprium quae pars est proprii nominis dicis illi praenomen dicit tibi falsum est nam ecce seruus meus ita appellatur et non habet praenomen ccxii Para um comentaacuterio contextualizado sobre as disputas de Geacutelio com gramaacuteticos de seu tempo cf KASTER 1988 pp 50-62 ccxiii laquoarma uirumque cano Troiae qui primus ab orisraquo hellip quot partes orationis habet iste uersus nouem quot nomina sex arma uirum Troiae qui primus oris quot uerba unum cano quot praepositiones unam ab quot coniunctiones unam que arma quae pars

orationis nomen quale appellatiuum cuius est speciei generalis cuius generis neutri quare quia omnia quae in plurali numero in a desinunt sine dubio neutri generis sunt hellip cuius est figurae simplicis fac ab eo compositum armiger armipotens inermis cuius est casus in hoc loco accusatiui unde hoc certum est a structura id est ordinatione et coniunctione sequentium cano enim uerbum accusatiuo iungitur ccxiv No que diz respeito agrave forma textual em perguntas e respostas o artigo de Papadoyannakis (2006) foi fundamental para delinear as hipoacuteteses aqui levantadas a despeito de tratar especificamente do uso das erotapokriacuteseis no ambiente filosoacutefico bizantino ccxv Tais como RITTER (2010) uma abordagem mais teoacuterica ETTENHUBER (2007) STANIVUKOVIC (2007) e JOHNSON (2010) que exploram aspectos teoacutericos a serviccedilo da anaacutelise de seus respectivos corpora especiacuteficos no acircmbito dos estudos claacutessicos LAW (1926) sobre a hipeacuterbole como recurso para narrativas mitoloacutegicas e PHILBRICK (2016) estudo mais aprofundado sobre a hipeacuterbole em Oviacutedio ccxvi Consideramos aqui a hipeacuterbole como figura em sentido vago agrave maneira que aparece na exposiccedilatildeo de Quintiliano sem implicar uma oposiccedilatildeo entre figura e tropo oposiccedilatildeo essa comum nos manuais e dicionaacuterios especializados cf MOISEacuteS (1974) ccxvii Cf siacutentese da bibliografia atualizada em POPA-WYATT (2010) ccxviii As passagens relativas agrave hipeacuterbole em autores anteriores a Quintiliano satildeo Aristoacuteteles Retoacuterica 311 Retoacuterica a Herecircnio 444 Ciacutecero Toacutepicos 1045 Apoacutes Quintiliano mas ainda na Antiguidade tardia eacute possiacutevel encontrar tratamentos da hipeacuterbole em Demeacutetrio Do Estilo 123ss Longino Do Sublime 38 Macroacutebio Saturnaacutelia 42 e 46 e Isidoro de Sevilha Etimologias 13621 ccxix VON ALBRECHT (1997 1254-5) ccxx VON ALBRECHT (1997 1262) ccxxi Na passagem original os navios satildeo tambeacutem comparados a montanhas se chocando umas contra as outras Quintiliano omite a segunda hipeacuterbole em sua citaccedilatildeo repetindo esse procedimento nas demais passagens virgilianas que apresentam um par consecutivo de hipeacuterboles ccxxii Na passagem original Niso eacute comparado tambeacutem aos ventos (vide nota 11) ccxxiii Na passagem original haacute tambeacutem a hipeacuterbole de Camila correndo sobre os mares sem sequer tocar a aacutegua (vide nota 11) ccxxiv A passagem explorada por Quintiliano natildeo eacute como pode parecer de Nemeias 4 e sim de um texto perdido cf BUTLER (1922 340) ccxxv SCHMIDT (2019 14) ldquo[O] diferencial das hipeacuterboles nos Tristia eacute anexaccedilatildeo de um discurso de que a hipeacuterbole eacute insuficiente para relatar a verdade Quintiliano diz que a hipeacuterbole eacute a figura adequada para exprimir aquilo que natildeo se pode exprimir Oviacutedio diz que mesmo a hipeacuterbole eacute incapaz de exprimir aquilo que ele quer exprimir Assim Oviacutedio faz da hipeacuterbole uma meta-hipeacuterbole no sentido de hiperbolizar a incapacidade da hipeacuterbole que em princiacutepio seria total Em pelos menos seis passagens o poeta faz questatildeo de expor a incapacidade da figura dizendo que mesmo esta estaacute aqueacutem da verdade Trata-se de um jogo com a estrutura da figura e com o efeito de verossimilhanccedila pois a hipeacuterbole estaacute aleacutem da verdade (supra fidem) mas Oviacutedio a trata como aqueacutem da verdade (1550 non habitura fidem 5642 minor quam verum) de tatildeo exagerada que eacute sua proacutepria verdaderdquo ccxxvi A ldquocacozeliardquo eacute definida em Inst 8356-8 ldquoA cacozelia isto eacute a afetaccedilatildeo perversa peca em qualquer gecircnero de oratoacuteria pois sob esse nome se encontra tudo o que eacute excessivo trivial luxurioso redundante rebuscado e extravagante Aleacutem disso chamamos cacozelia tudo o que vai aleacutem da virtude quando o engenho perde seu senso criacutetico e se engana com a aparente beleza o que eacute o pior de todos os viacutecios no discurso Pois os demais erros satildeo

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causados sem intenccedilatildeo mas este eacute causado de maneira intencional No entanto isso soacute ocorre na elocuccedilatildeo Pois os erros da mateacuteria (invenccedilatildeo) satildeo a tolice o mais do mesmo a incoerecircncia e a superficialidade jaacute o deslize na elocuccedilatildeo consiste principalmente no emprego de palavras inapropriadas ou redundantes ou de um estilo confuso ou de um ritmo dissonante ou ainda de uma busca infantil por expressotildees semelhantes ou ambiacuteguas A cacozelia eacute tambeacutem sempre insincera embora nem toda insinceridade seja uma cacozelia pois esta consiste em dizer algo de uma maneira artificial ou inconveniente ou supeacuterfluardquo (κακόζηλον id est mala adfectatio per omne dicendi genus peccat nam et tumida et pusilla et praedulcia et abundantia et arcessita et exultantia sub idem nomen cadunt Denique κακόζηλον vocatur quidquid est ultra virtutem quotiens ingenium iudicio caret et specie boni fallitur omnium in eloquentia vitiorum pessimum Nam cetera parum vitantur hoc petitur Est autem totum in elocutione Nam rerum vitia sunt stultum commune contrarium supervacuum corrupta oratio in verbis maxime inpropriis redundantibus compressione obscura compositione fracta vocum similium aut ambiguarum puerili captatione consistit Est autem omne κακόζηλον utique falsum etiamsi non omne falsum κακόζηλον est enim quod dicitur aliter quam se natura habet et quam oportet et quam sat est) ccxxvii Ciacutecero De Oratore 3155 ldquoO terceiro modo de figuraccedilatildeo das palavras eacute bem amplo pois foi criado pela necessidade gerada pela falta e pela carecircncia mas depois incrementado pelo prazer e deleite Pois assim como primeiro se utilizou as roupas para combater o frio e depois se comeccedilou a vesti-las por elegacircncia e dignidade do corpo tambeacutem a metaacutefora foi utilizada por causa da falta de palavras e em seguida recorrida por causa do deleite que proporciona Pois expressotildees como lsquobrotar em vinhasrsquo lsquoser luxuoso na gramarsquo lsquocampos felizesrsquo satildeo utilizadas ateacute pelos incultos Eacute porque se algo eacute difiacutecil de dizer com uma palavra em sentido literal quando eacute dito por uma metaacutefora a comparaccedilatildeo ilustra bem o que queremos dizer expressando por meio de uma palavra diferente de seu sentido literalrdquo (Tertius ille modus transferendi verbi late patet quem necessitas genuit inopia coacta et angustiis post autem iucunditas delectatioque celebravit Nam ut vestis frigoris depellendi causa reperta primo post adhiberi coepta est ad ornatum etiam corporis et dignitatem sic verbi translatio instituta est inopiae causa frequentata delectationis Nam gemmare vitis luxuriem esse in herbis laetas segetes etiam rustici dicunt Quod enim declarari vix verbo proprio potest id translato cum est dictum inlustrat id quod intellegi volumus eius rei quam alieno verbo posuimus similitudo) Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de WILKINS (1902) ccxxviii Para o texto utilizamos a ediccedilatildeo criacutetica de R J Tarrant reproduzida em OVIDIO (2011) ccxxix Seria interessante comparar esta Invocaccedilatildeo inicial com a Invocaccedilatildeo final de Metamorfoses em que vaacuterias divindades satildeo citadas Quirino Marte Vesta Febo Juacutepiter (Livro XV versos 861-870) ccxxx Eacute de pensar em um ensaio enfocando a traduccedilatildeo deste trecho da Iliacuteada Em seis traduccedilotildees diferentes temos as seguintes soluccedilotildees para dusaristotokeia Odorico Mendes ldquoMiseranda O maior dos heroacuteis pari mesquinhardquo (HOMERO 2008) Paul Mazon ldquoMegravere infortuneacutee drsquoun preuxrdquo (HOMEgraveRE 2002) Claude Michel Cluny ldquoAh miseacuterable et malheureuse megravere que je suisrdquo (HOMEgraveRE 1989) Haroldo de Campos ldquoAi de mim dolorosa geratriz do bravoentre os bravosrdquo (HOMERO 2002) Carlos Alberto Nunes ldquoQue sinater dado agrave luz ao maior dos heroacuteis para um Fado tatildeo tristerdquo (HOMERO 2002) Frederico Lourenccedilo ldquoAi de mim desgraccedilada Infeliz parturiente de um priacutenciperdquo (HOMERO 2013) ccxxxi Aristoacuteteles usa as palavras ουσία (substacircncia) ποιόν (qualidade) ποσόν (quantidade) πρός τι (relaccedilatildeo)

ccxxxii Κεῖσθαι estar em tal situaccedilatildeo (estado posiccedilatildeo) ἔχειν ter (possessatildeo) ποιεῖν fazer (accedilatildeo) πάσχειν padecer (paixatildeo) ccxxxiii Ποῦ onde (lugar) ποτέ quando (tempo) ccxxxiv Hoje entre noacutes a laquohermenecircuticaraquo interpretaccedilatildeo dos signos etc ccxxxv Hoje usa-me mais essa palavra no sentido de doenccedila de oacutergatildeo afetado ccxxxvi Veja-se por exemplo o capiacutetulo X 4 de Aulo Geacutelio intitulado laquo foi costume ser procurado entre os filoacutesofos se os nomes existiriam por natureza (φύσει) ou por convenccedilatildeo (θέσει)raquo ccxxxvii laquo Loacutegica raquo (τέχνη λογική) foi usada por comentadores posteriores ccxxxviii Anal Pr I 24a16-21 ccxxxix Que diz respeito ao pensamento agrave inteligecircncia (de διάνοιαfaculdade intelectiva inteligecircncia) ccxl Haacute um tratado filosoacutefico-retoacuterico de Ciacutecero denominado Topica que compreende os lugares-comuns (os topica) dos discursos e apresenta conselhos aos juristas para que achem argumentos e os ordenem eacute mais ou menos uma traduccedilatildeo uma adaptaccedilatildeo de Aristoacuteteles

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Sobre os autores e as autoras

Alcione Lucena AlbertimProfessora do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Universidade Federal da Paraiacuteba e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPB Coordenadora do MYTHOS - Nuacutecleo de Estudos da Mitologia Greco-Latina Doutorado em Letras pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPB Bacharela em Psicologia pelo Centro Universitaacuterio de Joatildeo Pessoa PB - UNIPEcirc e Especialista em Psicanaacutelise pelo Espaccedilo Psicanaliacutetico ndash EPSI

Willy Paredes SoaresPoacutes-Doutorado pela Universidade de Satildeo Paulo Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraiacuteba Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Universidade Federal da Paraiacuteba Liacuteder no grupo de pesquisa Grutta - Grupo de Tradu-ccedilatildeo de Textos da Antiguidade Membro do grupo de pesquisa Grec - Grupo de Estudos Claacutessicos

Rafael BrunharaProfessor de liacutengua e literatura grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul Possui Bacharelado em Letras Portuguecircs e Grego pela Universidade de Satildeo Paulo ins-tituiccedilatildeo pela qual tambeacutem obteve o tiacutetulo de Mestre e Doutor em Letras Claacutessicas Eacute do-cente permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFRGS e coordenador do Nuacutecleo de Estudos de Traduccedilatildeo Olga Fedossejeva (NET) Atua principalmente nos seguintes temas elegia poesia grega arcaica traduccedilatildeo gecircneros poeacuteticos na Antiguida-de Desenvolveu com a Profa Dra Giuliana Ragusa (USP) uma Antologia de traduccedilatildeo e comentaacuterio da poesia elegiacuteaca grega arcaica prevista para 2020 (Editora Ateliecirc)

David Pessoa de LiraProfessor Doutor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco na aacuterea Liacutengua e Literatura Latinas Docente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPE na Aacuterea de Teoria Literaacuteria Professor Permanente do Programa de Poacutes-Gra-duaccedilatildeo em Ciecircncias das Religiotildees da Universidade Federal da Paraiacuteba

Maria Aparecida de Oliveira SilvaPoacutes-Doutora em Estudos Literaacuterios pela Universidade Estadual Paulista Poacutes-Doutora em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo Pesquisadora do Grupo HeroacutedotoUnifesp Pesquisadora do Taphos Grupo de Pesquisa em Praacuteticas Mortuaacuterias no Medi-

terracircneo AntigoUSP Professora Orientadora Ad-hoc do PPGHUnB Liacuteder do Grupo CNPq LABHANUFPI Pesquisadora do Grupo CNPq LinceuUnesp-Araraquara Pes-quisadora do Grupo Retoacuterica Texto y Comunicacioacuten da Universidad de Caacutediz Membro do Conselho Acadecircmico do Seminaacuterio de Histoacuteria e Filosofia das Religiotildees da Universi-dad Autoacutenoma de Ciudad Juaacuterez - Meacutexico

Fabio FortesO presente trabalho decorre de pesquisa de Poacutes-Doutorado realizada no Deacutepartement de Sciences de lrsquoAntiquiteacute da Universidade de Liegravege na Beacutelgica (2019-2020) e foi re-alizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001 Bolsa Professor Visitante Juacutenior

Flaacutevia Vasconcellos AmaralPoacutes-doutoranda do Departamento de Estudos Claacutessicos da Universidade de Toronto com o projeto ampquotNarrative strategies in Greek dialogue epigramsampquot Doutora em Letras Claacutessicas pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Univer-sidade de Satildeo Paulo Faz parte do grupo de pesquisa Hellenistica da USP e do Taphos do MAEUSP

Joseacute Amarante Santos SobrinhoMestre em Letras e Linguiacutestica doutor em Liacutengua e Cultura Professor e pesquisador de Liacutengua e Literatura Latinas da Universidade Federal da Bahia atuando na Poacutes-gra-duaccedilatildeo em Liacutengua e Cultura na aacuterea de traduccedilatildeo dedicando-se principalmente a au-tores da Antiguidade tardia Membro do grupo de pesquisa NALPE (Nuacutecleo de Anti-guidade Literatura Perfomance e Ensino) do Instituto de Letras da UFBA Em 2016 poacutes-doutorado no Centro Antropologia e Mondo Antico da Universitagrave di Siena de que resultou O livro de Mitologias de Fulgecircncio

Raul Oliveira MoreiraPesquisador e tradutor na aacuterea de liacutengua e literatura latinas mestre em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatura e Cultura da Universidade Fe-deral da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Professor substituto da UFBA

Shirlei Patriacutecia Silva Neves AlmeidaEspecializaccedilatildeo em Gramaacutetica e Texto pela Universidade Salvador ndash UNIFACS mestra-do em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Doutorando pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Liacutengua e Cultura da Universidade Federal da Bahia Cristoacutevatildeo

Joseacute dos Santos JuacuteniorDoutor e mestre em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatu-ra e Cultura da Universidade Federal da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Mestrando em Estudo de Linguagens pela Universida-de do Estado da Bahia (UNEB)

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Lucas Consolin DezottiMestre em Letras Claacutessicas e Licenciado em Letras pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Univer-sidade Federal da Paraiacuteba

Pedro SchmidtProfessor de Liacutengua e Literatura Latina na Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutor em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo

Leonardo AntunesProfessor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Doutor em Letras Claacutessicas pela USP Docente Permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFRGS

Luciene Lages SilvaDoutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais Pro-fessora do curso de Letras da UFS Desenvolve pesquisas com ecircnfase no teatro claacutessico recepccedilatildeo dos claacutessicos (teatro e cinema) Mitografia grega e ediccedilatildeo de textos Participa de dois grupos de pesquisa Vice-liacuteder do NALPE Nuacutecleo de Antiguidade Literatura Performance e Ensino CNPQUFBA (2008) e membro do grupo de pesquisa GEFELIT- Grupo de Estudos de Filosofia e LiteraturaCNPQUFS(2008) Membro colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da UFS

Fernanda Lemos de LimaDoutora em Ciecircncia da LiteraturaLiteratura Comparada Fernanda Lima eacute professora de Grego Claacutessico Literatura Grega e Literatura Claacutessica Koineacute Neotestamentaacuteria e Grego Moderno na Universidade do Estado do Rio de Janeiro Professora do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UERJ e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas da UFRJ Coordenadora da Especializaccedilatildeo em Koneacute Neotestamentaacuteria em processo de instalaccedilatildeo

Milton Marques JuacuteniorProfessor Titular da Universidade Federal da Paraiacuteba Coordena o GREC - Grupo de Estudos Claacutessicos e Literaacuterios - com produccedilatildeo na aacuterea das Literaturas Grega e Latina e Literatura Comparada

Joseacute R Seabra FLivre-docecircncia e Doutorado pela Universidade de Satildeo Paulo Professor Associado da Universidade de Satildeo Paulo Sua aacuterea de especializaccedilatildeo eacute Gramaacutetica Latina e traduccedilatildeo de textos do latim claacutessico

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Conselho Editorial

Alessandra Soares Brandatildeo (UFSC)Ana Graccedila Canan (UFRN)

Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)Anco Maacutercio Tenoacuterio Vieira (UFPE)

Anita Martins Rodrigues de Moraes (UFF)Arnaldo Saraiva (Universidade do Porto)

Brenda Carlos de Andrade (UFRPE)Gastoacuten A Alzate (California State University)

Inocecircncia Mata (Universidade de Lisboa)Joatildeo Batista Pereira (UFRPE)

Joseacute Rodrigues Seabra Filho (USP)Juliana Luna Freire (UFPB)

Juliana Pasquarelli Perez (USP)Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB)

Maria Nazareth de Lima Arrais (UFCG)Maurizio Gnerre (Universitagrave di Napoli Lrsquoorientale)

Maximiliano Torres (UERJ)Ramayana Lira (UFSC)

Regina Dalcastagnegrave (UnB)Saulo Neiva (Universiteacute Blaise Pascal - Clermont-Ferrand)

Simone Schmidt (UFSC)Suzi Frankl Sperber (UNICAMP)

Yuri Jivago Amorim Caribeacute (UFPE)

Projeto GraacuteficoCDM Design e Consultoria Empresarial Ltda

Camille Barbosa de AquinoRoberta Lima Designer

DiagramaccedilatildeoRoberta Lima Designer

Escritos claacutessicosgreco-latinos

Alcione Lucena de AlbertimWilly Paredes Soares

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Sumaacuterio

A gramaacutetica como livro didaacutetico testemunhos sobre meacuteto-do e praacutetica escolar na Antiguidade Lucas Consolin Dezotti

Exagerando a verdade a hipeacuterbole em Quintiliano Pedro Schmidt

Hino Homeacuterico 2 a DemeacuteterLeonardo Antunes

Pressupostos da comeacutedia grega entre os romanos Quinti-liano Ciacutecero Horaacutecio e DioniacutesioLuciene Lages Silva

Qual eacute o seu Orfeu Breve apreciaccedilatildeo do mito helecircnico reinventado pelas muacuteltiplas linguagens artiacutesticasFernanda Lemos de Lima

Proecircmio de Metamorfoses aula de PoesiaMilton Marques Jr

Semacircntica Aristoteacutelica Joseacute R Seabra F

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A Religiatildeo Romana Arcaica Willy Paredes Soares

A Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia grega antiga Rafael Brunhara

A ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou ParanoiaDavid Pessoa de Lira

Amor e poesia em Plutarco Maria Aparecida de Oliveira Silva

Contribuiccedilotildees dos Estudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da linguageFaacutebio Fortes

Falando com os mortos alguns epigramas heleniacutesticos dialogados em traduccedilatildeoFlaacutevia Vasconcellos Amaral

Fulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade como programaJoseacute Amarante Santos Sobrinho Raul Oliveira Moreira Shirley Patriacutecia S N Almeida e Cristoacutevatildeo Joseacute dos S Juacutenior

Notas Finais

Sobre os autores e as autoras

Apresentaccedilatildeo

Catabasis um rito de passagem e a busca da imortalidadeAlcione Lucena de Albertim

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Apresentaccedilatildeo

Escritos claacutessicos greco-latinos tiacutetulo escolhido a partir da diversidade e ri-queza dos textos que compotildeem a presente obra faz parte da Coleccedilatildeo Poacutes-Letras do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da Universidade Federal da Paraiacuteba Trata-se de um livro composto por capiacutetulos que discorrem sobre assuntos especiacuteficos mas que estatildeo vinculados por provirem da mesma fonte as liacutenguas e literaturas grega e latina Nesse sentido os autores apresentam atraveacutes da sua escrita singular temas que pos-sibilitam o conhecimento de um universo tatildeo profiacutecuo como o da antiguidade claacutessica greco-latina Diante disso apresentamos a seguir ao leitor o tema de cada capiacutetulo

Em ldquoCatabasis um rito de passagem e a busca da imortalidaderdquo Alcione Lu-cena de Albertim traccedila um panorama acerca da cataacutebase a partir dos mitos de He-racleacutes Odisseu Orfeu Teseu e Piriacutetoo a fim de averiguaacute-la no modelo latino que tem Eneias como protagonista Para isso a autora descreve cada uma delas e dis-corre sobre os pontos de convergecircncia existentes como tambeacutem sobre as suas es-pecificidades mostrando que todas concorrem para a imortalizaccedilatildeo do heroacutei

Em ldquoA Religiatildeo Romana Arcaicardquo Willy Paredes Soares investiga as transfor-maccedilotildees sofridas pela religiatildeo romana em seus primoacuterdios considerando a ordem cro-noloacutegica de acontecimentos no periacuteodo monaacuterquico observam-se seus principais deu-ses cultos sacerdotes para tanto vale-se dos escritos remanescentes de comentadores latinos e gregos inseridos em periacuteodos posteriores Obras relevantes que ressaltam os elementos religiosos satildeo revisitadas para a explicitaccedilatildeo de tais fenocircmenos como Eneida Fasti Ab Vrbe Condita Antiquitates Romanae De Lingua Latina De Ciuitate Dei De Re Publica Ad Aeneidem De Mundo Saturnalia possibilitando certa apro-ximaccedilatildeo entre o periacuteodo comentado e os textos utilizados na investigaccedilatildeo sugerida

Em ldquoA Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia grega anti-gardquo Rafael Brunhara traz tomando como base o estudo da autora Margaret Alexiou a discussatildeo acerca do lamento como recurso poeacutetico tratando-se de um canto res-ponsoacuterio em que pessoas enlutadas alternavam vozes agrave perda de algueacutem querido Esse canto dividia-se em duas categorias o threnos canccedilatildeo elaborada e profissional

que honrava e exaltava o morto realizado por homens e o goos canto improvisado entoado por parentes e pessoas proacuteximas agravequele que morreu geralmente mulheres Em Androcircmaca de Euriacutepedes aleacutem deles estaacute presente a elegia forma poeacutetica tam-beacutem associada ao lamento Nesse sentido o autor discorre sobre as trecircs formas poeacute-ticas para mostrar a confluecircncia do threnos do goos e da elegia na peccedila euripidiana

Em ldquoA ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou Paranoiardquo David Pessoa de Lira propotildee analisar os aspectos conceptuais da ἁμαρτία traacutegica em Eacutedipo Tirano de Soacutefocles a partir da Arte Poeacutetica de Aristoacuteteles e do pensamento grego sobre a culpabilidade Nes-se sentido o autor procedendo a uma abordagem da culpa traacutegica situa a ἁμαρτία como uma ἁγνοία e consequentemente como παράνοια Ele demonstra que a ἀγνοία eacute a natureza da ἁμαρτία (culpa) de Eacutedipo na trageacutedia Eacutedipo Tirano e explica que o conceito aristoteacutelico da ἀναγνώρισις possibilita encontrar a natureza da ἁμαρτία a saber a ἀγνοία Aleacutem disso fundamenta atraveacutes da teoria da culpabilidade pes-soal e da responsabilidade a partir do direito e da filosofia dos antigos gregos que a ἀγνοία de Eacutedipo evidencia uma ἁμαρτία escusaacutevel um estado de deliacuterio e paranoia

Em ldquoAmor e poesia em Plutarcordquo Maria Aparecida de Oliveira Silva discorre sobre a teoria plutarquiana do amor a partir da leitura da obra Diaacutelogo do Amor tratando em especial do uso da poesia na escrita deste tratado e na construccedilatildeo de seu argumento favoraacutevel agrave adoccedilatildeo de Eros como o deus do amor Assim agrave per-gunta ldquoOra se haacute a necessidade de um deus para que accedilotildees humanas sejam bem--sucedidas e se o amor eacute um sentimento importante e fundamental para a conti-nuidade da espeacutecie humana por meio do casamento por que esse sentimento natildeo possuiria um deus regenterdquo Plutarco procura mostrar a imprescindibilidade da accedilatildeo do deus Eros como protetor e encorajador das relaccedilotildees amorosas sobretudo o casamento Nesse sentido em razatildeo da diversidade de autores selecionados para compor sua argumentaccedilatildeo sobre a necessidade de um deus regente do amor Plu-tarco entra em contato com autores de variadas eacutepocas e estilos Assim ele verifi-ca que haacute visotildees diferentes sobre Eros entre os poetas os filoacutesofos e os legisladores

Em ldquoContribuiccedilotildees dos Estudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da Linguagemrdquo Faacutebio Fortes discorre inicialmente a respeito da histoacuteria da ciecircn-cia e da linguagem a partir do estudo publicado em 1962 por Thomas Kuhn em seguida comenta os estudos claacutessicos e a teoria gramatical antiga e como os anti-gos percebiam conceitos teorias linguiacutesticas motivados pela sua maneira de ver o mundo percebe o autor que dentre os estudos que tentam recuperar elemen-tos da tradiccedilatildeo sobre a linguagem o que demonstra acentuada produtividade eacute o da Historiografia da Linguiacutestica Por fim o autor explicita que haacute maior facilidade de acesso agrave documentaccedilatildeo claacutessica atualmente devido agrave possibilidade do uso de meios eletrocircnicos fato que haacute alguns anos seria possiacutevel apenas presencialmente

Em ldquoFalando com os mortos alguns epigramas heleniacutesticos dialogados em tra-duccedilatildeordquo Flaacutevia Vasconcellos Amaral apresenta epigramas do livro 7 da Antologia Grega (AG) O recorte temporal diz respeito ao periacuteodo heleniacutestico momento de maior inova-ccedilatildeo no gecircnero epigramaacutetico situado entre a morte de Alexandre o Grande em 323 aC

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e a batalha de Aacutecio em 31 aC A princiacutepio as inscriccedilotildees eram encontradas em objetos votivos laacutepides funeraacuterias monumentos e ceracircmica e tinham funccedilatildeo pragmaacutetica de registro A partir do seacuteculo IV aC passam a ser dissociadas de seus objetos e ganham o papiro como suporte Assim as inscriccedilotildees comeccedilam a abarcar outras temaacuteticas como a eroacutetica e a simposial Os epigramas fuacutenebres dialogados do periacuteodo heleniacutestico aqui apresentados em traduccedilatildeo se ancoram no espaccedilo fuacutenebre e seus objetos (Dioscoacuteri-des 37 Antiacutepatro161 424 e 426) e especulam sobre a vida do morto (Leocircnidas 163 e 503 Antiacutepatro 164 Aacuterquias 165 Caliacutemaco 277 e 725 Damageto 355 e Meleagro 470)

Em ldquoFulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade como programardquo Joseacute Amarante Santos Sobrinho Raul Oliveira Moreira Shirley Patriacutecia S N Almeida e Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior apresentam o fruto de um projeto inaugural reali-zado na Universidade Federal da Bahia cujo foco principal foi a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa e o estudo da obra completa de Fulgecircncio (Fabius Planciades Fulgentius) autor do seacuteculo II dC O primeiro resultado do projeto diz respeito agrave publicaccedilatildeo de O li-vro das Mitologias de Fulgecircncio por Joseacute Amarante estudo e traduccedilatildeo das Mythologiae (As Mitologias) Advieram tambeacutem trabalhos de mestrado e doutorado defendidos na mesma universidade a saber a traduccedilatildeo da Expositio Virgilianae continentiae (ldquoA ex-plicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacuteliordquo) por Raul Oliveira Moreira a traduccedilatildeo da Expositio sermonum antiquorum (ldquoA elucidaccedilatildeo de termos antigosrdquo) por Shirlei Patriacutecia Silva Neves Almeida e a traduccedilatildeo dupla de De aetatibus mundi et hominis (ldquoSobre as idades do mundo e da humanidaderdquo) uma alipogramaacutetica e outra lipogramaacutetica por Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior Os dois primeiros trabalhos satildeo frutos da dissertaccedilatildeo de mestra-do dos autores e o terceiro da tese de doutorado O presente capiacutetulo eacute composto por quatro seccedilotildees respeitantes respectivamente ao estudo de cada uma das obras referidas

Em ldquoA gramaacutetica como livro didaacutetico testemunhos sobre meacutetodo e praacute-tica escolar na Antiguidaderdquo Lucas Consolin Dezotti apresenta alguns modos de estudos de textos gramaticais latinos testemunhos de reflexotildees sobre a gramaacute-tica grega reflexotildees da eacutepoca claacutessica evidentes na gramaacutetica latina ensino for-mal da gramaacutetica baseado em riacutegido formato da eacutepoca heleniacutestica O autor utili-za-se de diversas obras teoacutericas para explanaccedilatildeo da teoria gramatical de Donato como Ars Donati grammatici urbis Romae de Louis Holtz aleacutem de muacuteltiplas refe-recircncias a obras greco-latinas visando a uma metodologia de descriccedilatildeo sistemaacutetica

Em ldquoExagerando a verdade a hipeacuterbole em Quintilianordquo Pedro Schmidt pro-potildee apoacutes apresentaccedilatildeo de breve contextualizaccedilatildeo uma traduccedilatildeo para a liacutengua por-tuguesa da passagem 8667-76 da obra Institutio Oratoria de Quintiliano um tratado sobre retoacuterica e sobre a instruccedilatildeo oratoacuteria composto em doze livros pro-cedendo a seguir agrave sua anaacutelise a fim de estabelecer uma definiccedilatildeo e uma tipolo-gia da hipeacuterbole de acordo com os termos de Quintiliano Nesse sentido o autor conclui que a hipeacuterbole cujo efeito pode ser tambeacutem o riso indo aleacutem do embele-zamento e do poder de persuasatildeo do discurso possui natureza orgacircnica haja vista nascer de maneira espontacircnea na fala corriqueira de qualquer indiviacuteduo disso re-sultando sua funccedilatildeo que reside em expressar aquilo que natildeo pode ser expresso

Em ldquoHino Homeacuterico 2 a Demeacuteterrdquo Leonardo Antunes propotildee uma traduccedilatildeo poeacutetica para o Portuguecircs do hino agrave deusa Demeacuteter que trata sobretudo do rapto de Perseacutefone sua filha pelo deus Hades com a aquiescecircncia de Zeus Na traduccedilatildeo a preocupaccedilatildeo principal foi a construccedilatildeo de um texto eufocircnico buscando natildeo soacute uma cadecircncia agradaacutevel de sons mas tambeacutem vocaacutebulos que se encadeassem de modo na-tural dentro do ritmo escolhido Assim ele emprega uma espeacutecie de hexacircmetro dac-tiacutelico vernaacuteculo o mesmo utilizado por Carlos Alberto Nunes na traduccedilatildeo da Iliacuteada e na Odisseia de Homero e da Eneida de Virgiacutelio Trata-se de um verso de 16 siacutelabas com acento na primeira quarta seacutetima deacutecima deacutecima terceira e deacutecima sexta siacutelaba

Em ldquoPressupostos da comeacutedia grega entre os romanos Quintiliano Ciacutecero Ho-raacutecio e Dioniacutesiordquo a autora Luciene Lages Silva propotildee a apresentaccedilatildeo de uma pesquisa e investiga a recepccedilatildeo da criacutetica da comeacutedia grega por alguns criacuteticos literaacuterios poetas e his-toriadores romanos nos anos finais da Repuacuteblica e iniciais do Impeacuterio romano A seleccedilatildeo dos textos produzidos se estende por pouco mais de 150 anos do domiacutenio de Juacutelio Ceacutesar ateacute o fim do reinado de Trajano Ao longo do texto satildeo demonstradas as impressotildees de Ciacutecero Horaacutecio Dioniacutesio de Halicarnasso sobre o lugar da comeacutedia grega e do cocircmico em geral

Em ldquoQual eacute o seu Orfeu Breve apreciaccedilatildeo do mito helecircnico reinventado pelas muacutel-tiplas linguagens artiacutesticasrdquo Fernanda Lemos de Lima apoacutes delinear uma breve aborda-gem do mitologema de Orfeu e de seus desdobramentos simboacutelicos aleacutem da menccedilatildeo ao Orfismo oferecendo ao leitor uma ideia da potecircncia do referido mito mostra em algumas expressotildees artiacutesticas a sua retomada de modo a dar uma ideia da variedade de formas com as quais essa passagem da mitologia claacutessica eacute percebida e reconstruiacuteda como narrativa

Em ldquoProecircmio de Metamorfoses Aula de Poesiardquo Milton Marques Jr realiza uma anaacutelise do proecircmio de Metamorfoses de Oviacutedio composto de apenas 4 versos Haacute comparaccedilotildees com proecircmios de outros textos da literatura ocidental como Teogonia de Hesiacuteodo Iliacuteada e Odisseia de Homero Eneida de Virgiacutelio de modo a mostrar como Oviacutedio concentra uma ideia de uma transformaccedilatildeo das formas dos personagens para novos corpos numa metamorfose que se exaure nesse movimento Haacute tambeacutem desta-que para a importacircncia da traduccedilatildeo na compreensatildeo dos textos claacutessicos cujo objeto eacute segundo o autor ldquoprocurar extrair do texto original a concepccedilatildeo que ali se encontrardquo

Em ldquoSemacircntica Aristoteacutelicardquo Joseacute R Seabra F comenta o Oacuterganon de Aristoacutete-les seacuterie de seis tratados em estilo direto e breve Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacute-ticos Primeiros Analiacuteticos Segundos Toacutepicos Dos Elencos Sofiacutesticos Nesses tratados o leitor vai encontrar em resumo respectivamente anaacutelise dos elementos das proposi-ccedilotildees estudo da proposiccedilatildeo teoria do silogismo silogismo cientiacutefico pontos da dialeacutetica os sofismas e os meios de refutaacute-los Verifica-se tambeacutem a relaccedilatildeo entre essas obras e a gramaacutetica grega Em geral os livros de loacutegica englobados pelo tiacutetulo Oacuterganon apresen-tam em geral significados de palavras significados da linguagem semacircntica analisada e desenvolvida para entendimento de proposiccedilotildees de frases de afirmaccedilotildees Joseacute Sea-bra constata que haacute relaccedilotildees entre o assunto gramatical e a loacutegica filosoacutefico-gramatical

Esperamos que o puacuteblico a quem o livro se destina possa se beneficiar com os

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conteuacutedos aqui expostos e que eles possam suscitar um profiacutecuo diaacutelogo no futuro

Alcione Lucena de Albertim (UFPB)Willy Paredes Soares (UFPB)

Organizadores

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Catabasis um rito de passagem e a busca da

imortalidade

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Alcione Lucena de Albertim

O vocaacutebulo κατάβασις composto pela preposiccedilatildeo κατά que exprime um mo-vimento para baixo e pelo substantivo βάσις que significa lsquopasso sequecircnciarsquo prove-niente do verbo βαίνω que quer dizer lsquoafastar as pernas atraveacutes do andarrsquo etimologi-camente significa lsquocaminhar no sentido para baixorsquo denotando portanto uma descida Em contraponto haacute a ἀνάβασις formado pela preposiccedilatildeo ἀνά que exprime um mo-vimento para cima e pelo verbo mesmo verbo βαίνω significando desse modo uma subida lsquocaminhar para cimarsquo A κατάβασις ao Hades com a conseguinte ἀνάβασις estaacute presente na tradiccedilatildeo miacutetica grega cujo motivo serviu de modelo para a elabora-ccedilatildeo do mesmo episoacutedio na tradiccedilatildeo latina representando um ritual de passagem que eacute caracterizado pela transformaccedilatildeo do heroacutei submetido a esse ritual passando ele por uma separaccedilatildeo de um status anterior depois por uma fase intermediaacuteria que o levaraacute a uma nova condiccedilatildeo Por esse processo passam Heracleacutes Odisseus Orfeu Teseu e Piriacutetoo como tambeacutem o heroacutei troiano Eneias todos eles protagonistas de uma desci-da ao submundo cuja consequecircncia foi a transformaccedilatildeo desses heroacuteis para uma nova condiccedilatildeo A partir dessas consideraccedilotildees visa-se neste trabalho delinear a trajetoacuteria de cada um desses heroacuteis mostrando a particularidade de cada um rumo agrave conquista da imortalidade mormente a de Eneias demonstrando a permanecircncia da tradiccedilatildeo miacutetica grega na cultura romana

A comeccedilar por Heracleacutes em torno da figura desse heroacutei pertencente a uma ge-raccedilatildeo anterior agrave guerra de Troacuteia coadunam-se inuacutemeros mitemas entre eles os doze trabalhos Estes estatildeo ligados agrave figura da deusa Hera cuja perseguiccedilatildeo ao heroacutei ocorre por causa da infidelidade de Zeus seu esposo e pai de Heracleacutes

Conta o mito que Zeus aproveitando a ausecircncia de Anfitriatildeo rei de Tirinte que saiacutera em uma expediccedilatildeo toma a sua forma e aspecto a fim de enganar Alcmena Une-se entatildeo agrave rainha e engendra Heracleacutes Anfitriatildeo retorna pela manhatilde e faz-se re-conhecer pela esposa concebendo um filho com ela Iacuteficles irmatildeo gecircmeo de Heracleacutes apenas uma noite mais novo que ele Antes mesmo de o heroacutei nascer Hera enciumada comeccedila a persegui-lo Zeus inadvertidamente afirma que a crianccedila a nascer da raccedila de Perseu reinaria sobre Argos No momento de Alcmena dar agrave luz Hera impede sua filha Iliacutetia deusa dos partos de ajudaacute-la e favorece Nicipe que estaacute com sete meses de gravidez esperando Euristeu tambeacutem descendente de Perseu Ele entatildeo herda o po-der sobre a Argoacutelida Hera continua sua perseguiccedilatildeo a Heracleacutes Jaacute adulto ela o enlou-quece fazendo-o matar os filhos que tem com Meacutegara O heroacutei consulta o oraacuteculo de Delfos a fim de saber como expiar o seu crime e eacute aconselhado a submeter-se agrave deusa

Ela o potildee a serviccedilo de Euristeu que o sujeita a doze trabalhos irrealizaacuteveis para um heroacutei de menor valor que Heracleacutes O deacutecimo segundo trabalho diz respeito agrave sua descida ao Hades Euristeu exige que ele desccedila ao reino de Dite e traga o catildeo guardiatildeo da entrada do mundo subterracircneo impedindo os vivos de laacute entrarem e os mortos de laacute saiacuterem Ceacuterbero era um monstro de trecircs cabeccedilas de catildeo cauda formada por uma serpente e no dorso inuacutemeras cabeccedilas de serpente levantadas Heracleacutes acompanhado por Hermes deus condutor das almas ψυχοπομπός desce ao Hades mas natildeo antes de ser iniciado nos Misteacuterios de Elecircusis Laacute o deus permite que o heroacutei conduza o catildeo mas sob a condiccedilatildeo de natildeo o machucar com suas armas Heracleacutes luta

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com Ceacuterbero soacute com a forccedila dos seus braccedilos Quase sufocando-o domina-o Ao levar para Euristeu este tem medo e ordena que o heroacutei o leve de volta A descriccedilatildeo acima de caraacuteter meramente parafraacutestico visa comprovar a estrutura ritualiacutestica do mito Heracleacutes antes de descer ao Hades eacute purificado por Eumolpo rei da Traacutecia pois havia matado os Centauros Em seguida eacute iniciado nos Misteacuterios de Elecircusis desse modo fi-cando em condiccedilotildees apropriadas para adentrar o Hades jaacute que os Misteacuterios ensinavam precisamente aos fieacuteis os meios de chegar ao outro mundo com toda a seguranccedila apoacutes a morte Natildeo eacute sabido o que eram os Misteacuterios mas eacute notoacuterio que aqueles iniciados participavam de experiecircncias ritualiacutesticas de modo a transcender a condiccedilatildeo humana e obter uma forma sobrenatural de ser ainda em vida Mas aleacutem disso Heracleacutes tem a companhia de dois deuses Atena e Hermes a fim de enfrentar com menor risco as sombras e os monstros laacute existentes a qual permite inclusive a sua passagem pelo rio Aqueronte na barca de Caronte Heracleacutes eacute denotado sobretudo por sua forccedila fiacutesica descomunal e por sua coragem sem limites uacutenicas armas que utiliza para encarar Ha-des e sua esposa Perseacutefone e para dominar Ceacuterbero Tal fato mostra a singularidade da κατάβασις de Heracleacutes Do mesmo modo ocorre com os demais heroacuteis quando descem ao mundo subterracircneo cada um tem em sua trajetoacuteria peculiaridades con-cernentes agrave singularidade de cada um caracteriacutesticas respeitantes a sua pessoalidade

Retornar pela segunda vez agrave terra depois que devolve Ceacuterbero ao Hades en-frentando por duas vezes o caminho que leva ao mundo do esquecimento dos silen-ciosos confere a Heracleacutes a conquista da imortalidade haja vista ter encarado a morte duas vezes Tal imortalidade seraacute confirmada com a sua divinizaccedilatildeo por Zeus ao mor-rer envenenado involuntariamente por Djanira sua esposa

Quanto a Odisseu rei de Iacutetaca ele se destaca no cenaacuterio da guerra de Troacuteia sobretudo por sua inteligecircncia e astuacutecia Seu principal epiacuteteto πολύμητις muito ar-diloso expressa bem o atributo que faz do heroacutei uma figura proeminente no combate mais do que pela sua forccedila fiacutesica Essa caracteriacutestica jaacute estaacute presente no perfil dos seus antepassados Seu avocirc por parte de matildee Autoacutelico herdou do pai o deus Hermes o dom de roubar sem nunca ser surpreendido por isso causou muito oacutedio naqueles que foram suas viacutetimas Desse fato surge o nome Odisseu Quando o heroacutei nasce Autoacutelico que na ocasiatildeo encontrava-se em Iacutetaca escolhe o nome da crianccedila proveniente do fato de haver durante a sua vida provocado muitas malquerenccedilas O nome Ὀδυσσεύς proveacutem do verbo ὀδύσσασθαι que significa ldquodetestar estar irado contrardquo

Na Odisseia Canto XI versos 23-50 Odisseu faz uma νέκυια invocaccedilatildeo agraves almas dos mortos para saber sobre o futuro em relaccedilatildeo agrave sua volta para casa e para o seu reino Ele apenas bordeja a entrada do Hades natildeo chegando propriamente a entrar nele O mundo subterracircneo segundo Homero fica nas paragens da cidade dos homens Cimeacuterios povo fabuloso cujo territoacuterio situa-se nos limites do mundo Chegando ao local a partir das indicaccedilotildees da feiticeira Circe o heroacutei oferece libaccedilotildees agraves almas dos mortos e um sacrifiacutecio de duas reses de pelo negro aos deuses subterracircneos

Laacute Perimedes e Euriacuteloco seguraram as viacutetimasEu a pontiaguda espada saco de junto da coxa

Um fosso cavei de um cuacutebito aqui e acolaacuteAo redor nele libaccedilatildeo verti a todos os mortosPrimeiramente de leite e mel misturados depois de doce vinhoe por terceiro aacutegua sobre ele branca cevada espalheiMuito supliquei agraves cabeccedilas exangues dos mortos tendo ido para Iacutetaca uma vaca esteacuteril a melhor irei sacrificar no meu palaacutecio e uma pira cobrir com as melhores coisas Agrave parte irei consagrar soacute a Tireacutesias toda negra uma ovelha que se distingue entre as nossas crias E quando com votos e preces supliquei ao coro dos mortos e tendo tomado o gado degolei rumo ao fosso e negro sangue escorreu As almas daqueles que estatildeo mortos afluiacuteram do Eacuterebo moccedilas e moccedilos solteiros sofridos anciatildeos jovens donzelas que tecircm o coraccedilatildeo incipiente no sofrer e muitos heroacuteis abatidos por Ares que foram perfurados com lanccedila de bronze segurando as armas manchadas de sangueMuitos ao redor do fosso chegavam de uma parte e de outra com grito ensurdecedor O medo deixava-me verdeDepois os companheiros exortei tendo ordenado queimar as reses esfoladas que jaziam no chatildeo pelo bronze cruel abatidas e orar aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone e eu mesmo tendo puxado a pontiaguda espada de junto da coxa sento natildeo permitia que as exangues cabeccedilas dos mortos viessem mais perto antes de ouvir Tireacutesias sup2

sup2 ἔνθ᾽ ἱερήια μὲν Περιμήδης Εὐρύλοχός τεἔσχον ἐγὼ δ᾽ ἄορ ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦβόθρον ὄρυξ᾽ ὅσσον τε πυγούσιον ἔνθα καὶ ἔνθα ἀμφ᾽ αὐτῷ δὲ χοὴν χεόμην πᾶσιν νεκύεσσιπρῶτα μελικρήτῳ μετέπειτα δὲ ἡδέι οἴνῳτὸ τρίτον αὖθ᾽ ὕδατι ἐπὶ δ᾽ ἄλφιτα λευκὰ πάλυνονπολλὰ δὲ γουνούμην νεκύων ἀμενηνὰ κάρηναἐλθὼν εἰς Ἰθάκην στεῖραν βοῦν ἥ τις ἀρίστη ῥέξειν ἐν μεγάροισι πυρήν τ᾽ ἐμπλησέμεν ἐσθλῶνΤειρεσίῃ δ᾽ ἀπάνευθεν ὄιν ἱερευσέμεν οἴῳπαμμέλαν᾽ ὃς μήλοισι μεταπρέπει ἡμετέροισιτοὺς δ᾽ ἐπεὶ εὐχωλῇσι λιτῇσί τε ἔθνεα νεκρῶνἐλλισάμην τὰ δὲ μῆλα λαβὼν ἀπεδειροτόμησα ἐς βόθρον ῥέε δ᾽ αἷμα κελαινεφές αἱ δ᾽ ἀγέροντοψυχαὶ ὑπὲξ Ἐρέβευς νεκύων κατατεθνηώτων

νύμφαι τ᾽ ἠίθεοί τε πολύτλητοί τε γέροντεςπαρθενικαί τ᾽ ἀταλαὶ νεοπενθέα θυμὸν ἔχουσαιπολλοὶ δ᾽ οὐτάμενοι χαλκήρεσιν ἐγχείῃσιν ἄνδρες ἀρηίφατοι βεβροτωμένα τεύχε᾽ ἔχοντεςοἳ πολλοὶ περὶ βόθρον ἐφοίτων ἄλλοθεν ἄλλοςθεσπεσίῃ ἰαχῇ ἐμὲ δὲ χλωρὸν δέος ᾕρειδὴ τότ᾽ ἔπειθ᾽ ἑτάροισιν ἐποτρύνας ἐκέλευσαμῆλα τὰ δὴ κατέκειτ᾽ ἐσφαγμένα νηλέι χαλκῷ δείραντας κατακῆαι ἐπεύξασθαι δὲ θεοῖσινἰφθίμῳ τ᾽ Ἀΐδῃ καὶ ἐπαινῇ Περσεφονείῃαὐτὸς δὲ ξίφος ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦἥμην οὐδ᾽ εἴων νεκύων ἀμενηνὰ κάρηνααἵματος ἆσσον ἴμεν πρὶν Τειρεσίαο πυθέσθαι (Odisseia XI v 23-50)

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Odisseu saiacutedo de Troacuteia apoacutes sua destruiccedilatildeo defronta-se com inuacutemeras vicis-situdes a fim de chegar a Iacutetaca entre elas estaacute a descida ao Hades Eacute possiacutevel perceber o perfil ardiloso do heroacutei quando depois que oferece o sangue sacrificial das reses depositado no fosso primeiramente a Tireacutesias adivinho tebano com o intuito de ques-tionaacute-lo sobre a sua volta usa-o como isca para atrair as almas daqueles pelos quais se interessa Depois que Tireacutesias discorre sobre os perigos com os quais Odisseu ainda se depararaacute outras almas se aproximam e apoacutes sorverem do sangue relatam suas his-toacuterias Entre elas encontra-se a alma de Agamecircmnon que o adverte sobre o perigo de se confiar nas mulheres remetendo agrave traiccedilatildeo da sua proacutepria esposa Clitemnestra que o mata em um banquete oferecido em comemoraccedilatildeo agrave sua volta da guerra Essa adver-tecircncia condiz com o encontro entre Peneacutelope e o proacuteprio Odisseu ainda disfarccedilado de mendigo Alter ego do esposo concernente agrave astuacutecia Peneacutelope cujo epiacuteteto περίφρων (περί = ao redor de + φρωνέω = ser sensato prudente ter conhecimento) faz jus a tal caracteriacutestica desconstroacutei sensatamente o discurso do heroacutei quando ele tenta desviar a atenccedilatildeo de Peneacutelope sobre ele para si proacutepria insuflando-lhe a vaidade de maneira sutil e inteligente Entretanto a rainha o contesta dizendo que sua grandeza tanto da forma de ser quanto da beleza foi destruiacuteda no dia em que o esposo seguiu com os argivos e que muito maior seraacute com o seu regresso para o lar

A νέκυια de Odisseu reitera a sua imortalidade Imortalizado pelo canto dos aedos visto serem suas faccedilanhas de heroacutei guerreiro jaacute conhecidas de todos ao despre-zar a luz do sol e visitar os mortos nas sombras ele conquista uma espeacutecie de imor-talidade fiacutesica pois jaacute natildeo teme mais a proacutepria morte Essa conquista tem seu reflexo quando enfrenta os pretendentes que pilham a sua riqueza e desrespeitam o seu lar Disfarccedilado de mendigo derrota os inimigos com forccedila proveniente da sua destreza e da sua coragem Dado como morto por todos Odisseu sai do anonimato da sua apa-rente morte e atraveacutes da sua habilidade particular com o arco e a flecha mata deste-midamente todos os inimigos

Jaacute Orfeu filho do deus-rio Eagro e da musa da poesia liacuterica Caliacuteope Καλλιόπη cujo nome significa lsquoa que tem uma bela vozrsquo apaixona-se por Euriacutedice e se casa com ela Mas Euriacutedice eacute tatildeo bonita que pouco tempo depois do casamento atrai um api-cultor chamado Aristeu Quando ela recusa suas atenccedilotildees ele a persegue Tentando escapar ela tropeccedila em uma serpente que a pica e a mata Orfeu fica transtornado de tristeza Levando a sua lira vai ateacute o mundo dos mortos para tentar trazecirc-la de volta A canccedilatildeo pungente e emocionada de sua lira convence o barqueiro Caronte a levaacute-lo vivo pelo Rio Estige A canccedilatildeo da lira adormece Ceacuterbero o catildeo de trecircs cabeccedilas que vigia os portotildees seu tom carinhoso alivia os tormentos dos condenados Finalmente Orfeu chega ao trono de Hades O rei dos mortos fica irritado ao ver que um vivo ti-nha entrado em seu domiacutenio mas a agonia na muacutesica de Orfeu o comove e ele chora laacutegrimas de ferro Sua esposa a deusa Perseacutefone implora-lhe que atenda ao pedido de Orfeu Assim Hades acolhe seu desejo Euriacutedice poderia voltar com Orfeu ao mundo dos vivos Mas com uma uacutenica condiccedilatildeo que ele natildeo olhasse para ela ateacute que estivesse outra vez agrave luz do sol

Orfeu parte pela trilha iacutengreme que leva para fora do escuro reino da morte

tocando muacutesicas de alegria e celebraccedilatildeo enquanto caminha para guiar a sombra de Euriacutedice de volta agrave vida Ele natildeo olha nenhuma vez para traacutes ateacute atingir o limiar da entrada do submundo no entanto nesse momento vira-se para se certificar de que Euriacutedice estaacute seguindo-o Por um momento ele a vecirc perto da saiacuteda do tuacutenel escuro perto da vida outra vez Mas enquanto ele olha ela se torna de novo um fino fantas-ma seu grito final de amor e pena natildeo eacute mais do que um suspiro na brisa que saiacutea do mundo dos mortos Orfeu a havia perdido para sempre Em total desespero Orfeu se torna amargo Recusa-se a olhar para qualquer outra mulher natildeo querendo se lembrar da perda de sua amada Furiosas por terem sido desprezadas um grupo de mulheres Traacutecias selvagens chamadas Mecircnades cai sobre ele freneacuteticas atirando dardos Os dardos de nada valem contra a muacutesica do lirista mas elas abafando sua muacutesica com gritos conseguem atingi-lo e o matam Depois despedaccedilam seu corpo e jogam sua cabeccedila cortada no Rio Hebrus e ela flutua ainda cantando ldquoEuriacutedice Euriacutedicerdquo

Chorando as nove musas reuacutenem seus pedaccedilos e os enterram no Monte Olim-po Dizem que desde entatildeo os rouxinoacuteis das proximidades cantam mais docemente do que os outros pois Orfeu na morte se uniu a sua amada Euriacutedice

Orfeu muacutesico por excelecircncia e poeta tem como salvo-conduto para a entrada no Hades o som da sua lira que eacute capaz de acalmar as feras e comover ateacute mesmo o deus terriacutevel dos mortos O amor por uma mulher eacute a causa da sua κατάβασις Expe-rimentando a morte na figura da pessoa amada ele mesmo quer conhececirc-la indo ateacute o Hades Para resgatar a esposa e salvar a si mesmo do esquecimento da morte utiliza o atributo que lhe confere notoriedade no mundo dos vivos a muacutesica Entretanto natildeo confia no proacuteprio talento e inadvertidamente quer conferir se a sua amada o segue de volta agrave luz Momentaneamente a perde e tambeacutem a si mesmo para em seguida conquistar a imortalidade juntamente com Euriacutedice

Quanto a Teseu ele eacute o heroacutei por excelecircncia da Aacutetica Conta o mito que Egeu seu pai natildeo podendo ter filhos de mulheres sucessivas interroga o oraacuteculo de Delfos O deus responde-lhe que abrisse o odre de vinho antes de chegar agrave cidade de Atenas Natildeo compreendendo Egeu se afasta do seu caminho para consultar o rei de Trezeacutenia Piteu um dos filhos de Peacutelops o qual compreende logo o sentido do oraacuteculo Consegue embriagar Egeu e durante a noite deita ao seu lado a filha Etra Dessa uniatildeo nasce Teseu Outra tradiccedilatildeo diz que o pai seria Posiacutedon que teria se unido a Etra na mesma noite que Egeu um dia em que ela teria ido oferecer um sacrifiacutecio numa ilha e o deus a possuiacutera agrave forccedila

Piriacutetoo amigo de Teseu eacute um heroacutei da Tessaacutelia filho de Zeus e Dia A sua ami-zade com Teseu ocorre de maneira singular Ao ouvir falar dos feitos do heroacutei decide pocirc-lo agrave prova e rouba gados dos rebanhos de Teseu Os dois se veem um dia frente a frente e cada um deles eacute seduzido pela beleza do outro Selam entatildeo com um jura-mento a amizade que nascia e a partir desse instante os dois vivem juntos todas as aventuras entre elas o combate dos Laacutepitas contra os centauros e a descida ao Hades

A κατάβασις de Teseu e Piriacutetoo ocorre quando cada um deles jura dar ao ou-tro uma filha de Zeus como esposa Piriacutetoo entatildeo ajuda Teseu a raptar Helena filha

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de Zeus e Leda e em troca recebe sua ajuda para ir ao Hades raptar Perseacutefone filha de Zeus e Demeacuteter Conta o mito que os dois conseguiram entrar no mundo dos mortos mas natildeo conseguiram sair ficando prisioneiros Heracleacutes ao descer ao submundo en-contra os dois e consegue libertar Teseu mas ao tentar resgatar Piriacutetoo a terra treme O heroacutei percebe que natildeo eacute vontade dos deuses libertar Piriacutetoo e desiste de salvaacute-lo

A entrada de Teseu e Piriacutetoo no mundo dos mortos eacute aquiescida por Hades pela intenccedilatildeo do deus de prendecirc-los no mundo subterracircneo Aparentemente bem aco-lhidos foram recebidos com um banquete Ao se sentar ficaram presos nos assentos Teseu foi libertado mas Piriacutetoo permaneceu eternamente sentado na Cadeira do Es-quecimento Sua passagem pelo Hades lhe trouxe uma imortalidade anocircnima Para Teseu a ἀνάβασις lhe trouxe a derrocada Regressando a Atenas encontrou o poder partilhado entre facccedilotildees e passou a ser rei apenas no nome Foi morto pelo rei Licurgo

O Livro VI da Eneida trata da descida de Eneacuteias aos Infernos que vem sendo anun-ciada no decurso da narrativa Primeiramente em Butroto depois de saiacutedos de Troacuteia ha-verem os troianos parado na Traacutecia em Delos em Creta nas ilhas Estroacutefades Depois em Aacutecio Heleno filho de Priacuteamo e sacerdote de Apolo em transe vaticina os destinos de Eneacuteias e remete agrave sua visita aos lagos dos Infernos

Quanto agrave tradiccedilatildeo latina respaldando-se na tradiccedilatildeo grega Virgiacutelio busca o mito da cataacutebase para compor o Livro mais importante da sua epopeia que confirma as prediccedilotildees de Juacutepiter desde o iniacutecio da narrativa e depois pelos oraacuteculos de Apolo a edificaccedilatildeo da futura gloacuteria romana O Livro VI da Eneida trata da descida de Eneacuteias aos Infernos que vem sendo anunciada no decurso da narrativa Primeiramente em Butroto depois de saiacutedos de Troacuteia haverem os troianos parado na Traacutecia em Delos em Creta nas ilhas Estroacutefades Depois em Aacutecio Heleno filho de Priacuteamo e sacerdote de Apolo em transe vaticina os destinos de Eneacuteias e remete agrave sua visita aos lagos dos Infernos Pela segunda vez haacute a referecircncia agrave ida de Eneacuteias ao mundo dos mortos agora atraveacutes da alma de Anquises que aparece ao filho quando este se encontra na Siciacutelia Eacute o momento em que estatildeo sendo realizados os jogos fuacutenebres em sua honra pois mor-rera havia um ano

Na modalidade do arco e flecha ocorre um prodiacutegio que soacute mais tarde eacute anunciado pelos adivinhos Quando Aceste atira o dardo a fim de atingir a pomba este incendeia no percurso e esvanece antes de atingir o alvo Algum tempo depois os na-vios troianos que estatildeo ancorados na praia satildeo incendiados por Iacutesis a mando de Juno Considerando que o arco e flecha representam Apolo na sua funccedilatildeo de arqueiro e do mesmo modo o fogo simboliza a sua funccedilatildeo de deus da luz e que a pomba a ave de Vecircnus representa metonimicamente o povo troiano eacute clara a participaccedilatildeo do deus no prodiacutegio na tentativa de alertar os guerreiros quanto ao incecircndio contra as naus Tal episoacutedio leva Eneacuteias a seguir o conselho do velho Nauta de deixar na ilha o contingente excedente pela perda dos navios fundando uma cidade para que laacute permanecessem Entretanto antes de anuir agrave proposta do anciatildeo Eneacuteias vecirc a sombra de Anquises que o aconselha a fazecirc-lo tambeacutem remetendo agrave necessidade da sua ida agrave morada das som-bras guiado pela Sibila a fim de conhecer a posteridade da sua descendecircncia

sup3 From one point of view we may say that these myths and sagas have an initiatory structure to descend into Hell alive confront its monsters and demons is to undergo an initiatory ordeal I may add that similar flesh-andblood descend into Hell are characteristic of heroic initiations whose goal is the conquest of bodily immortality Of course these instances belong to initiatory mythology and not to ritual properly speaking but myths are often more valuable than rites for our understanding of religious behavior For it is the myth which most completely reveals the deep and often unconscious desire of the religious man (ELIADE 2005 p 112)

A κατάβασις de Eneacuteias simboliza a sua morte como homem mortal pereciacute-vel para que na sua ἀνάβασις seja imortalizado na memoacuteria de todos como heroacutei semideus alegoricamente simbolizando a imortalidade do impeacuterio romano e por me-toniacutemia a do proacuteprio Augusto Eacute nesse episoacutedio que ocorre a lsquobela mortersquo de Eneacuteias Depois da entrevista com Anquises que lhe garante o ecircxito do seu empreendimento a edificaccedilatildeo do novo reino com a aquiescecircncia dos proacuteprios deuses jaacute percebida no momento em que o heroacutei consegue o salvo-conduto para a entrada no reino dos mor-tos a sua consagraccedilatildeo e perenidade na μνήμη memoacuteria das geraccedilotildees vindouras estaacute perpetuada Do mesmo modo ao adentrar o seio da terra siacutembolo de vida e de morte ao mesmo tempo Eneacuteias tem o seu σῆμα estabelecido seu tuacutemulo monumento divi-no representativo da existecircncia do heroacutei O enfrentamento dos monstros e dos perigos que perpassam a travessia pelo reino de Plutatildeo confirma-lhe a bravura e o desbrava-mento heroico terceiro requisito para se obter uma lsquobela mortersquo

Mircea Eliade em suas reflexotildees tece um pensamento profundo acerca da simbologia da cataacutebase ao reino dos mortos

A partir de um ponto de vista noacutes podemos dizer que es-tes mitos e sagas tecircm uma estrutura iniciatoacuteria descer vivo ao Inferno confrontar monstros e democircnios eacute sub-meter-se a uma provaccedilatildeo iniciatoacuteria Podemos acrescentar que similares descidas em ldquocarne e ossordquo ao Inferno satildeo caracteriacutesticas de iniciaccedilotildees heroicas cujo objetivo eacute a con-quista da imortalidade fiacutesica Naturalmente esses exem-plos pertencem agrave mitologia de iniciaccedilatildeo e natildeo ao ritual propriamente falando mas mitos satildeo frequentemente mais significativo do que os ritos para nosso entendimen-to do comportamento religioso Por isso eacute o mito aquilo que mais completamente revela o profundo e frequente-mente inconsciente desejo do homem religioso3

O teoacuterico refere-se a uma lsquomitologia de iniciaccedilatildeorsquo que remete ao que eacute narrado mais do que o experienciado na vivecircncia ritualiacutestica do mito Envolto por uma aura religiosa o ritual narrado da cataacutebase estaacute circunscrito na categoria dos heroacuteis apon-tando uma ordem em que ocorre uma provaccedilatildeo iniciaacutetica e uma conseguinte trans-formaccedilatildeo Eacute preciso passar por uma morte para alcanccedilar a imortalidade finalidade propulsora do homem religioso

Eneacuteias atinge o aacutepice da sua Pietas ndash valor sagrado de reverecircncia aos deuses e aos antepassados ndash ao descer aos Infernos pois atende ao chamado de Anquises Apoacutes

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4 Quale solet silvis brumali frigore viscum Fronde virere nova quod non sua seminat arbos Et croceo fetu teretis circumdare truncos Talis erat species auri frondentis opaca Ilice sic leni crepitabat brattea vento (VIRGIacuteLIO Eneida VI v 205-209)

a sua ἀνάβασις e a sua chegada ao Laacutecio Eneacuteias tem seu status de heroacutei reconhecido e ratificado no momento em que recebe da deusa Vecircnus sua matildee as armas produzidas por Vulcano episoacutedio este respaldado no exemplo grego de Aquiles considerado o melhor dos guerreiros gregos que tambeacutem teve suas armas forjadas pelo deus ferreiro

A armadura eacute iacutecone da excelecircncia guerreira do heroacutei que diz respeito a ἀρετή grega e a virtus romana Dentro do conjunto em que figuram o elmo as cnecircmides a couraccedila a lanccedila e a espada o escudo tem proeminecircncia pois carrega em si a repre-sentaccedilatildeo do universo em que o heroacutei estaacute inserido O escudo eacute instrumento ao mesmo tempo de proteccedilatildeo e ataque no campo de batalha O heroacutei ao colocaacute-lo contra o ini-migo potildee diante de si seu proacuteprio mundo servindo-lhe este de anteparo e de ofensiva

A descriccedilatildeo das imagens representadas no escudo de Eneacuteias diz respeito agrave his-toacuteria de Roma desde Rocircmulo e Remo alimentados por uma loba ateacute Ceacutesar Augusto portanto todo um futuro desconhecido para o heroacutei Carregar tal representaccedilatildeo mol-dada exclusivamente para ele significa ser o empreendedor da gloacuteria futura dos seus descendentes A entrada de Eneacuteias nos Infernos eacute aquiescida pelos deuses O heroacutei tem a proteccedilatildeo de Apolo atraveacutes da Sibila de Cumas sacerdotisa de Apolo que atua como guia no seu itineraacuterio Ela estipula os requisitos necessaacuterios para que o heroacutei possa realizar tal empreendimento com seguranccedila a saber o ramo de ouro a purificaccedilatildeo da frota pela morte de um dos seus companheiros e um sacrifiacutecio aos deuses subterracirc-neos Esses elementos seratildeo determinantes para a empreitada do heroacutei e consequente conquista da imortalidade

Cataacutebase de Eneias

A κατάβασις de Eneacuteias requer trecircs condiccedilotildees para que se realize I) a anuecircncia das divindades II) a purificaccedilatildeo necessaacuteria para o contato com o sagrado (sacer) III) a oferenda aos deuses atraveacutes do sacrifiacutecio animal A primeira diz respeito ao salvo-con-duto que lhe garantiraacute a passagem livre pelas regiotildees inferiores que consiste em um ramo cujo aspecto se assemelha a um visco planta parasitaacuteria que cresce em torno do tronco de aacutervores destacando-se sobretudo por sua resistecircncia agraves intempeacuteries climaacute-ticas e por sua coloraccedilatildeo ativa Ele representa a perenidade da imortalidade que seraacute conferida a Eneias com a sua descida aos Infernos

Qual eacute comum nos bosques com o frio sosticialVerdejar com nova folhagem o visco que a aacutervore semeia natildeo sua e com croacuteceo ramo circundar os troncos Tal era o aspecto do frondoso ouro na sombria azinheira Assim a lacircmina crepitava com a leve brisa4

A explicaccedilatildeo da escolha de Virgiacutelio segundo a criacutetica teria raiz em uma crenccedila popular que atribuiacutea ao visco o poder de neutralizar os perigos advindos da aacutegua e do fogo e mais tarde teria tambeacutem o poder de desmanchar magias e de expulsar democirc-nios

Outra razatildeo coadunada a esta seria o fato de que o visco brota mesmo sem tocar a terra crescendo durante o inverno quando o restante da natureza estaacute imerso no sono da morte Tal caracteriacutestica faria dessa planta siacutembolo de vida para os homens Suas folhas sempre verdes davam ao homem a segura esperanccedila de que a natureza sempre voltaria a florescer e frutificar

No pensamento miacutetico morte e vida formam uma uacutenica unidade Proseacuterpina deusa da vegetaccedilatildeo e do mundo subterracircneo reuacutene em si a forccedila da vida e da morte Metaforicamente ela seria o proacuteprio visco pois apesar da condiccedilatildeo de deusa dos mor-tos ela tambeacutem conteacutem o atributo da germinaccedilatildeo O ramo que serve de salvaguarda a Eneacuteias eacute caracterizado como sendo de ouro fazendo menccedilatildeo agrave coloraccedilatildeo accedilafroada das suas bagas as quais possuem propriedades medicinais A cor concerne tambeacutem agrave construccedilatildeo poeacutetica tendo em vista a localizaccedilatildeo da planta no meio do bosque som-brio Eacute importante perceber que mesmo reluzente o ramo de ouro soacute pode ser visto e sobretudo colhido com a aquiescecircncia dos deuses Natildeo eacute agrave toa que Eneacuteias o encontra com o concurso de Vecircnus sua matildee Esta lhe envia duas pombas suas aves para guiar o filho Aleacutem disso a facilidade com que o ramo se desprende no momento em que o heroacutei o colhe denota tal anuecircncia divina pois caso contraacuterio nem mesmo o ferro seria capaz de removecirc-lo

Eneacuteias com tais palavras orava e ocupava o altar quando assim comeccedilou a falar a sacerdotisa ldquoTroiano gerado de sangue divino filho de Anquises faacutecil eacute a descida ao Aver-no noite e dia a porta do aacutetrio de Dite estaacute aberta mas retornar a marcha e subir rumo agraves brisas do alto este eacute o trabalho esta a dificuldade Poucos descendentes dos deuses aos quais Juacutepiter amou ou a ardorosa coragem transportou ao eacuteter puderam Florestas ocupam todo o centro e o Cocito corrente circunda-o com negra sinuo-sidadePorque tua mente tem tanta acircnsia e tanto desejo de por duas vezes navegar o lago do Estige e ver o negro Taacuterta-ro e agrada-te abandonar-se a um insano labor escuta o que primeiro deve ser realizado De folhas e haste flexiacutevel em aacutervore opaca um ramo de ouro permanece escondido consagrado a Juno infernal Todo um bosque o oculta e as sombras o encerram em vale sombrio Mas natildeo eacute dado a algueacutem penetrar o recesso da terra antes que tenha co-lhido o ramo de ouro da aacutervore Esta daacutediva para si a bela Proseacuterpina ordena trazerTendo arrancado o primeiro outro de ouro natildeo falta e de siacutemil metal um ramo floresce Portanto procura-o su-tilmente com os olhos e colhe a descoberta segundo os ritos com a matildeoDe fato ele mesmo propiacutecio cede facilmente se os fados te chamam De outra maneira com forccedila alguma poderaacutes

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vencer nem arrancar com duro ferro Aleacutem disso o corpo de um amigo teu jaz exacircnime (Ai tu que desconheces) e mancha todo o exeacutercito com o cadaacutever enquanto pedes oraacuteculos e pendes em nosso limiar Antes entrega-o agrave sua morada e encerra-o no sepulcroConduze negras reses sejam estas as primeiras expiaccedilotildeesApenas assim avistaraacutes os bosques sagrados do Estige e o reino inacessiacutevel aos vivosrdquo Disse e premendo a boca calou-se 5

O trecho acima descreve a entrevista entre Eneacuteias e a Sibila especificamente a resposta dada ao heroacutei quando este lhe pede para ver Anquises visto ser ali a entrada para o mundo dos mortos Ela entatildeo discorre sobre o que eacute necessaacuterio para a reali-zaccedilatildeo do seu pedido Mesmo tendo a ajuda divina na busca do ramo de ouro Eneacuteias precisa agir com acuidade ao procuraacute-lo No verso 145 a sacerdotisa adverte-o quanto a isso Entretanto faz-se necessaacuterio ir um pouco aleacutem em relaccedilatildeo ao sentido dessa ad-vertecircncia a fim de se ter uma compreensatildeo mais profunda na interpretaccedilatildeo do texto

A vocaacutebulo oculis (= olho visatildeo) em outra acepccedilatildeo possiacutevel denota a visatildeo com os olhos da mente o que remete ao verbo meacutedio grego ὄσσομαι (= ver em espiacute-rito ou com o olho da mente) Portanto eacute preciso que Eneacuteias busque o ramo de ouro compenetrado em si mesmo em seu espiacuterito piedoso Isso lhe facultaraacute o encontro com seu pai haja vista ser este sentimento de devoccedilatildeo e de respeito aos antepassados aquilo que impulsiona o heroacutei a enfrentar tamanho perigo Depois que sabe da morte de um dos companheiros Eneacuteias segue rumo ao acampamento Laacute chegando fica cien-te de que se trata de Miseno

Companheiro de Heitor junta-se a Eneacuteias depois que ο Priamida morre pelas matildeos de Aquiles Era exiacutemio trombeteiro mas comete um desatino ao desafiar Tri-tatildeo divindade marinha tocador de buacutezio dizendo-se mais habilidoso do que qualquer imortal Para castigaacute-lo o deus surpreende-o com uma vaga e o afoga Eacute a ele que a Sibila se refere como a causa de contaminaccedilatildeo da frota Por pertencer ao culto sagrado dos Penates troianos o descomedimento (ὕὕβρις) que comete contra Tritatildeo atinge a todos A hyacutebris diz respeito a um excesso cometido por um mortal a qual sempre acar-reta uma puniccedilatildeo A ultrapassagem do μέτρον da medida do limite a que os homens

6 Nec minus interea Misenum in litore Teucri flebant et cineri ingrato suprema ferebantprincipio pinguem taedis et robore secto ingentem stru-xere pyram cui frondibus atris intexunt latera et feralis ante cupressos constituunt decorantque super fulgenti-bus armispars calidos latices et aeumlna undantia flammis expediunt corpusque lavant frigentis et unguuntfit gemitus tum membra toro defleta reponunt purpure-asque super vestis velamina nota coniciunt pars ingenti subiere feretro triste ministerium et subiectam more pa-rentum aversi tenuere facem congesta cremantur turea

dona dapes fuso crateres olivopostquam conlapsi cineres et flamma quievit reliquias vino et bibulam lavere favillam ossaque lecta cado texit Corynaeus aeumlnoidem ter socios pura circumtulit unda spargens rore levi et ramo felicis olivae lustravitque viros dixitque novissi-ma verbaat pius Aeneas ingenti mole sepulcrum imponit suaque arma viro remumque tubamque monte sub aeumlrio qui nunc Misenus ab illo dicitur aeternumque tenet per saecula nomen(VIRGIacuteLIO Eneida VI 212-235)

devem se submeter conscientes da sua inferioridade em relaccedilatildeo aos deuses provoca o μίασμα a mancha que atinge aqueles vinculados por um mesmo laccedilo religioso por deuses em comum Eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo dessa contaminaccedilatildeo atraveacutes de rituais que expiem tal procedimento

A morte de um heroacutei demanda que seja sepultado pelos companheiros Caso natildeo ocorram os ritos fuacutenebres e o devido sepultamento significa incorrer em ato de impiedade acarretando malefiacutecios que contaminaratildeo todos aqueles que estiverem li-gados pelos mesmos laccedilos religiosos Desse modo Miseno eacute sepultado logo que Eneacuteias retornando da entrevista com a Siblila percebe o companheiro morto

No meio tempo os Teucros na praia choravam Miseno e prestavam as uacuteltimas honras agrave cinza ingrataA princiacutepio erigiram uma enorme pira abundante em car-valho seco e madeira resinosa cujas laterais cobrem com folhagem escura Erguem na frente ciprestes fuacutenebres e as adornam no cume com as armas fulgentes Parte pre-para a aacutegua quente e os vasos de bronze que borbulham sobre as chamas Lavam e untam o corpo frioO pranto se faz Entatildeo potildeem o corpo sobre o leito fuacutenebre e lanccedilam em cima as vestes puacuterpuras traje familiarParte levantou o pesado feacuteretro triste mister e segundo o costume dos antepassados voltando as costas pegaram o facho submetendo-o agrave pira Todo o amontoado queima as oferendas de incenso a carne dos sacrifiacutecios as crateras com o oacuteleo derramando Depois que as cinzas caiacuteram e a chama cessou lavaram com vinho os restos e a cinza se-denta Corineu recolhendo os ossos encerra-os em uma urna de bronze Trecircs vezes passou aacutegua lustral em torno dos soacutecios aspergindo-os em leve orvalho com um ramo de fecunda oliveira Purificou-os e disse as uacuteltimas pala-vras E o piedoso Eneacuteias constroacutei um enorme tuacutemulo para o companheiro e potildee as suas armas o remo e a trombeta ao peacute de um alto monte que agora por ele eacute chamado Mi-seno e que manteraacute atraveacutes dos seacuteculos o eterno nome6

5 Talibus orabat dictis arasque tenebat cum sic orsa lo-qui vates laquosate sanguine divum Tros Anchisiade facilis descensus Averno noctes atque dies patet atri ianua Ditissed revocare gradum superasque evadere ad auras hoc opus hic labor est pauci quos aequus amavit Iuppiter aut ardens evexit ad aethera virtus dis geniti potuere tenent media omnia silvae Cocytusque sinu labens circumvenit atro quod si tantus amor menti si tanta cupido estbis Stygios innare lacus bis nigra videre Tartara et insano iuvat indulgere labori accipe quae peragenda prius latet arbore opaca aureus et foliis et lento vimine ramusIunoni infernae dictus sacer hunc tegit omnis lucus et obscuris claudunt convallibus umbrae sed non ante datur telluris operta subire auricomos quam quis decerpserit ar-

bore fetus hoc sibi pulchra suum ferri Proserpina muacutenusinstituit primo avulso non deficit alter aureus et simili frondescit virga metalloergo alte vestiga oculis et rite repertum carpe manu nam-que ipse volens facilisque sequetur si te fata vocant aliter non viribus ullis vincere nec duro poteris convellere ferropraeterea iacet exanimum tibi corpus amici (heu nescis) totamque incestat funere classem dum consulta petis nostroque in limine pendes sedibus hunc refer ante suis et conde sepulcro duc nigras pecudes ea prima piacula suntosic demum lucos Stygis et regna invia vivis aspiciesraquo dixit pressoque obmutuit ore (VIRGIacuteLIO Eneida VI v 124-170)

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O funeral consiste em um ritual composto por etapas diversas No Canto XXIII da Iliacuteada versos 117-897 acontece o funeral de Paacutetrocles morto por Heitor quando enfrentava as hostes troianas vestindo as armas de Aquiles Seu funeral tem a seguinte sequecircncia construccedilatildeo da pira com carvalho deposiccedilatildeo do corpo sobre a pira sacrifiacute-cio de ovelhas e de bois espalhando-se a gordura sobre o cadaacutever e dispondo a carne ao seu redor posicionamento de duas acircnforas ao lado do leito uma com oacuteleo outra com mel sacrifiacutecio de catildees e de cavalos atirados agrave chama da pira sacrifiacutecio de doze mancebos troianos mortos com o bronze e em seguida lanccedilados agrave chama lavagem dos ossos depois de queimado o corpo para serem depositados em uma urna de ouro construccedilatildeo do tuacutemulo para guardar os ossos e realizaccedilatildeo dos jogos em homenagem ao morto Comparando o funeral de Paacutetrocles com o de Miseno eacute possiacutevel perceber poucas diferenccedilas entre o rito funeraacuterio grego e o latino Com relaccedilatildeo ao ritual latino a diferenccedila consiste apenas no ato de virar o rosto no momento de atear fogo ao corpo apontado no verso 123 Este costume dos antepassados repousava na crenccedila de que no instante em que o corpo era submetido agraves chamas a alma do morto se retirava e para natildeo presenciar esse acontecimento virava-se o rosto

Apoacutes a realizaccedilatildeo do funeral e jaacute tendo encontrado o ramo de ouro Eneacuteias e a Sibila seguem rumo ao Averno lago que fica na entrada da caverna que leva ao mundo subterracircneo cujo odor puacutetrido impedia os paacutessaros de voarem sobre ele Em laacute che-gando oferecem o sacrifiacutecio aos deuses infernais a fim de abrandar-lhes a ira

Aqui primeiro quatro novilhos de pecirclo negro a sacerdo-tisa escolheu e verteu-lhes vinho na fronte e tirando os sumos pecirclos entre os cornos deposita-os no sagrado fogo primeiras oferendasinvocando em alta voz Heacutecate poderosa no ceacuteu e no EacutereboOutros cravam as facas por baixo e recolhem o teacutepido san-gue em paacuteteras O proacuteprio Eneacuteias fere com a espada uma ovelha de latilde negra para a matildee das Eumecircnides a Noite e para a sua grande irmatilde a Terra e para ti Proseacuterpina uma vaca esteacuteril Depois ergue altares noturnos ao rei do Es-tige Plutatildeo e potildee sobre o fogo o corpo inteiro dos bois vertendo oacuteleo pingue sobre as viacutesceras ardentes 7

O sacrifiacutecio feito agraves divindades pertencentes aos Infernos difere daquele ofe-recido aos deuses superiores os quais recebem a oferenda de animais de pelo branco ocorrendo o sacrifiacutecio θυσία sobre um altar βωμός durante a luz do dia Consiste em uma oferenda aos deuses e ao mesmo tempo um repasto de festa para os homens Quanto ao sacrifiacutecio da viacutetima a cabeccedila do animal eacute levantada e seu pescoccedilo cortado

7 quattuor hic primum nigrantis terga iuvencos constituit frontique invergit vina sacerdos et summas carpens media inter cornua saetas ignibus imponit sacris libamina primavoce vocans Hecaten caeloque Ereboque potentemsupponunt alii cultros tepidumque cruorem succipiunt pateris ipse atri velleris agnam Aeneas matri Eumenidum mag-naeque sorori ense ferit sterilemque tibi Proserpina vaccam tum Stygio regi nocturnas incohat aras et solida imponit taurorum viscera flammis pingue super oleum fundens ardentibus extis(VERGILIUS op cit 243-254)

de modo que o sangue a princiacutepio esguiche para o alto e depois seja recolhido em um recipiente O animal eacute aberto e suas viacutesceras extraiacutedas para que sejam consultadas Caso os deuses sejam propiacutecios a carne eacute logo devorada depois de retalhada e assada Os ossos cobertos com a gordura satildeo queimados para que a fumaccedila suba em direccedilatildeo aos deuses seu alimento

Jaacute o sacrifiacutecio feito agraves divindades subterracircneas demanda que a viacutetima tenha pelo negro e seja completamente carbonizada ndash holocausto sendo vedado ao homem consumir sua carne Deve ser realizado durante a noite e em lugar do altar cava-se um fosso para que o sangue apoacutes o corte no pescoccedilo do animal que tem a cabeccedila voltada para baixo escorra para dentro da terra Tanto o sacrifiacutecio feito por Odisseu quanto o realizado por Eneacuteias seguem os requisitos exigidos para o cumprimento do ritual de sacrifiacutecio aos deuses infernais a saber libaccedilatildeo de vinho imolaccedilatildeo de viacutetimas com pelo negro degola do animal direcionado para baixo de modo que o sangue escorra rumo ao fosso combustatildeo total do animal e suacuteplica agraves divindades infernais

Eneacuteais oferece o sacrifiacutecio a Heacutecate deusa das encruzilhadas agraves Eumecircnides comumente conhecidas por Fuacuterias entidades vingadoras do crime parental a Pro-seacuterpina identificada como Juno infernal pois eacute a deusa soberana dessa regiatildeo assim como Juno eacute soberana nas regiotildees superiores e a Plutatildeo deus soberano dos Infernos Em seguida queima o animal esfolado em uma fogueira [Eneida VI v52 aras noctur-nas (ἐσχάρα)] erigida a Estige rio dos Infernos

Estige eacute a filha mais velho de Oceano e Teacutetis Durante a Titanomaquia ela socorre Zeus contribuindo para a sua vitoacuteria O deus a recompensa Ela como perso-nificaccedilatildeo do rio eacute abonadora dos juramentos solenes pronunciados pelos deuses Caso algum deles perjurasse seria condenado a passar um ano inteiro em estado cataleacutepti-co sem beber do neacutectar nem comer da ambrosia Depois por mais nove anos ficaria sem participar dos banquetes e festas do Olimpo tal era o seu poder A invocaccedilatildeo agraves divindades infernais caracteriza o tipo de sacrifiacutecio realizado como tambeacutem demarca o acircmbito que conferiraacute a Eneias a imortalidade

Assim a sequecircncia percorrida na abordagem dos mitos cujo fio condutor da narrativa foi a cataacutebase buscou mostrar os pontos convergentes existentes entre eles mas tambeacutem a sua singularidade denotando a especificidade de cada um proacutepria da essecircncia do mito Nesse sentido foi possiacutevel corroborar a permanecircncia da tradiccedilatildeo miacute-tica grega na romana especificamente em relaccedilatildeo ao mito de Eneias

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Referecircncias

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VOLPIS Leone Virgilio Eneide Libro sesto Milano Carlos Signorelli 1953

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A Religiatildeo Romana Arcaica

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Willy Paredes Soares

Sabe-se que a religiatildeo sofrera vaacuterias transformaccedilotildees ateacute que chegasse a se constituir como eacute mais comumente conhecida atraveacutes dos escritos histoacuterico-literaacuterios sobretudo dos autores que estatildeo inseridos no periacuteodo aacuteureo da literatura latina seacutec I aC Nossa investigaccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees religiosas leva em consideraccedilatildeo a sua ordem cronoloacutegica de acontecimentos pois isso garante uma melhor compre-ensatildeo dos fenocircmenos religiosos vigentes no seacutec I aC possibilitando explicitaccedilotildees de tais fenocircmenos religiosos vigentes tambeacutem na posteridade Assim seraacute demonstra-da a religiatildeo que era praticada no Periacuteodo Monaacuterquico romano 753 aC - 509 aC seus principais deuses cultos sacerdotes seu envolvimento com as questotildees poliacuteticas atraveacutes dos escritos remanescentes de comentadores que estatildeo inseridos em periacuteodos posteriores A tentativa de reconstituiccedilatildeo cronoloacutegica da trajetoacuteria religiosa romana eacute certamente aacuterdua principalmente no que se refere agraves praacuteticas religiosas concernen-tes a periacuteodos anteriores ao seacuteculo I aC considerado como eacutepoca aacuteurea da literatura latina que deixou grande legado literaacuterio devido agrave conservaccedilatildeo de grande nuacutemero de obras de diversos autores No entanto deve ser considerada a afirmaccedilatildeo de Jean-Pierre Vernant (2010 p 90) sobre a religiatildeo grega que neste aspecto coaduna-se agrave religiatildeo arcaica romana Haacute entre as origens romanas e os primoacuterdios de sua organizaccedilatildeo so-

Da mesma maneira um grego do seacuteculo V talvez conheccedila menos coisas sobre as origens de Hermes que um especialista contem-poracircneo isso natildeo o impede de crer no deus Hermes de sentir a presenccedila do deus em determinadas circunstacircncias

cial que data de meados do seacutec VIII aC e o seu relato escrito considerado pela criacutetica como o mais antigo ou seja a traduccedilatildeo da Odisseia por Liuius Andronicus aproxima-damente em 240 aC cerca de cinco seacuteculos que podem ser chamados de obscuros no que se refere a documentos escritos que poderiam garantir o esclarecimento de muitos aspectos referentes aos ritos aos cultos religiosos e principalmente ao momento em que a religiatildeo grega atraveacutes de sua forte tradiccedilatildeo mitoloacutegica passou a influenciar o pensamento da arcaica civilizaccedilatildeo romana

Historicamente podem-se fazer comparaccedilotildees entre essas duas civilizaccedilotildees no acircmbito da ausecircncia de material de manuscritos capazes de elucidar principalmente a transiccedilatildeo de comportamentos religiosos e a influecircncia recebida de outros povos pri-mitivos Na Greacutecia esse periacuteodo se verifica entre o seacutec XII aC em que havia o uso da escrita denominada Linear B e o seacutec VIII aC com a reutilizaccedilatildeo da escrita nos poemas homeacutericos ou seja satildeo aproximadamente quatro seacuteculos sem registro escrito Em Roma o periacuteodo - em que haacute poucos ou quase uma total ausecircncia de manuscritos - estende-se de 753 aC data que marca a sua fundaccedilatildeo miacutetica e aproximadamente 240 aC marco inicial da literatura latina com a Odissia de Liuius Andronicus

A proacutepria origem de Roma eacute abordada com certa ausecircncia de especificidades e combina elementos miacuteticos histoacutericos e principalmente religiosos Rocircmulo e Remo teriam recebido autorizaccedilatildeo de seu avocirc Numitor para fundar uma cidade agraves margens do Laacutecio onde eles teriam sido criados por uma loba ou Fauna e por Acca Larentia Os reis de Alba Longa eram soberanos que tinham o privileacutegio de interrogar os auspiacutecios

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para conhecer as vontades dos deuses Conforme indicam os versos de Virgiacutelio desde suas primeiras referecircncias histoacutericas atributos divinos e religiosos ca-

elestiaque arma ldquoarmas celestesrdquo natildeo soacute por terem caracteriacutesticas divinas mas tam-beacutem por terem segundo Tito Liacutevio caiacutedo do ceacuteu e que garantiriam aos romanos arcai-cos uma proteccedilatildeo divina

O proacuteprio Pico mostrava-se com o escudo na matildeo esquerda e vestido com a curta trabea estava sentado com o lituus de Qui-rino 9 (Eneida VII v187-9)

ldquoNatildeo eacute necessaacuteriardquo ndash disse Rocircmulo ndash ldquoalguma disputa Grande eacute a fides das aves Recorramos agraves avesrdquo Eacute agradaacutevel o fato um vai ao rochedo do nemoroso Palatino outro vai pela manhatilde ao cume do Aventino Remo vecirc seis paacutessaros Rocircmulo vecirc duas vezes seis que voam em fila Manteacutem-se o fato pelo pacto e Rocircmulo tem a sentenccedila da cidade 10 (Fasti IV v 813-818)

9 Ipse Quirinali lituo paruaque sedebat succinctus trabea laeuaque ancile gerebat Picus10 ldquoNil opus estrdquo dixit ldquocertaminerdquo Romulus ldquoullo magna fides auium est experiamur auesrdquo Res placet alter init ne-morosi saxa Palati alter Auentinum mane cacumen init Sex Remus hic uolucres bis sex uidet ordine pacto statur et arbitrium Romulus urbis habet

Lendariamente Rocircmulo e Remo autorizados por Numitor observaram os voos dos paacutessaros para saber onde a cidade poderia ser fundada de acordo com o desejo di-vino Rocircmulo teria subido o monte Palatino Remo o Monte Aventino de onde teriam observado os auspiacutecios divinos para a fundaccedilatildeo da urbs ldquocidaderdquo Conforme afirma Oviacutedio

Tentando evitar desavenccedilas certamine ullo com seu irmatildeo Rocircmulo decide consultar a vontade divina sobre a fundaccedilatildeo da cidade atraveacutes dos auspiacutecios magna fides auium est demonstrando natildeo soacute a pietas para com os deuses mas tambeacutem o espiacuterito religioso em que estava envolvido o primitivo povo da Roma arcaica Como os

auspiacutecios divinos foram favoraacuteveis a Rocircmulo jaacute que os paacutessaros que voaram sobre o seu monte apresentaram um nuacutemero duas vezes maior uolucres bis sex do que os que voaram sobre o monte de seu irmatildeo sex Remus uidet Rocircmulo deveria fundar a cidade arbitrium Romulus urbis habet segundo a vontade dos deuses

Divergindo da tradiccedilatildeo literaacuteria latina poreacutem embasado nas palavras de Je-an-Pierre Vernant de que um especialista contemporacircneo possa conhecer mais sobre a Antiguidade do que uma pessoa em que na eacutepoca tenha vivido Andrea Carandi-ni afirma que Rocircmulo teria subido primeiramente ao monte Aventino somente em um segundo momento teria subido ao Palatino Remo poreacutem apenas teria subido ao Monte Murco de onde teriam observado os auspiacutecios divinos para a fundaccedilatildeo da urbs Os ritos preliminares ocorreram em localidades rurais proacuteximas ao monte Palatino

Neste momento teria sido criado o que poderiacuteamos chamar de primeiro tem-

Para interrogar a vontade dos deuses e receber as becircnccedilatildeos que implicavam mudanccedilas irreversiacuteveis de status precisava criar um recinto de cerca de dez metros de cada lado marcados por nove colunas inscritas (templum) das quais aquela a nordeste ndash em que se lia a inscriccedilatildeo bene iuuante aue ndash indicava o voo dos paacutessaros mais favoraacuteveis 11

Depois de ter sacrificado o rei vai provavelmente ao centro do lado ocidental do Palatino e ali cria um novo templum para ob-servar os paacutessaros 12

11 Per interrogare la volontagrave degli dei e ottenerne benedizioni che comportavano mutamenti irreversibili de statusbisognava creare un recinto di una decina di metri per lato segnato da nove cippi iscritti (templum) di cui quello anord-est ndash su cui si leggeva la scritta bene iuuante aue ndash indicava il volo degli uccelli piugrave favorevole13 Dopo aver sacrificato Il re si reca verosimilmente al centro del lato occidentale del Palatino e qui crea un secondo tem-plum per osservare gli uccelli

plo romano delimitado por nove pedras que demarcavam seus limites conforme afir-ma Andrea Carandini (2007 p39)

Apesar de divergir de Oviacutedio quanto ao monte subido por Remo para verifi-caccedilatildeo dos auspiacutecios favoraacuteveis pode-se observar nas palavras de Andrea Carandini a importacircncia da religiatildeo para o homem primitivo romano principalmente no que se refere agrave construccedilatildeo do templo que demonstra as primeiras manifestaccedilotildees e consolida-ccedilatildeo da religiatildeo romana

No primeiro templo primitivo o aacuteugure sacerdote que interpretava o voo dos paacutessaros situava-se no sentido oeste-leste no meio desse templo onde estava o monte Albano O aacuteugure movimentava no ar o seu lituus no espaccedilo delimitado pelas colunas e caso os paacutessaros voassem no sentido noroeste acreditava-se que os deuses haviam concedido que determinado fato fosse realizado

Os estudos arqueoloacutegicos de Andrea Carandini demonstram que a Roma pri-mitiva entre os anos de 900 aC e 650 aC situa-se basicamente em uma regiatildeo quadrada que tem por limite a Curiae Veteres a Porta Romanula o Sacelum Martis et Opis e a Ara Consi regiatildeo denominada pelo arqueoacutelogo de ldquoRoma Quadratardquo Entre os anos de 750 aC e 650 aC ao lado da ruacutestica habitaccedilatildeo de Rocircmulo estava situado o sacellum ldquopequeno santuaacuteriordquo de Marte e de Ops As duas construccedilotildees foram instala-das onde anteriormente entre os anos de 900 aC e 750 aC havia uma uacutenica e mais ampla construccedilatildeo que seria o correspondente arqueoloacutegico do tugurium ldquohabitaccedilatildeo choupanardquo de Acca Larentia e de Faustulus pastor que encontrou e criou Rocircmulo e Remo O segundo templo romano construiacutedo ficava no lado ocidental do monte Palati-no segundo Carandini (2007 p44)

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Primeiramente Rocircmulo definiu os limites entre os montes propiacutecios para a observaccedilatildeo dos auguacuterios os quais foram observados em primeiro momento na sua su-bida ao monte Aventino para ser escolhido rei ou fundador da cidade Somente em um segundo momento em que a ldquoRoma Quadratardquo comeccedilava a ser habitada e consagrada aos deuses com a construccedilatildeo de templos o Palatino teve o seu templo igualando-se aos demais montes da urbs que estava em processo de fundaccedilatildeo

Para cumprir o ritual de fundaccedilatildeo da urbs Rocircmulo se dirige ao noroeste do monte Palatino onde estava localizado o santuaacuterio de Acca Larentia em posiccedilatildeo inversa na ldquoRoma Quadratardquo de Alba Longa situada no acircngulo oposto Andrea Carandini (2007 p49) afirma que no rito de fundaccedilatildeo da cidade Rocircmulo se vestia agrave maneira dos habitantes do Gaacutebio cinctus Gabinus

Aqui o rei trajando uma toga agrave maneira dos Gaacutebios que lhe cobria a cabeccedila (cinctus Gabinus) daacute iniacutecio ao rito etrusco de sulcus primigenius apenas aprendido com os sacerdotes etrus-cos convocados 13

Como estes tivessem comeccedilado a magistratura logo depois do interregno natildeo consultaram o Senado sobre nada antes que consultassem sobre as coisas religiosas Primeiramente foram procurados cuidadosamente tratados de paz e leis ndash poreacutem ha-via aquelas Doze Taacutebuas e algumas leis reacutegias ndash que ordenaram ser recolhidas e que estabeleceram outras ordens daquelas em direccedilatildeo ao povo as que poreacutem referiam-se agraves coisas sagradas foram suprimidas sobretudo pelos pontiacutefices a fim de que os acircnimos das pessoas estivessem fortemente presos agrave religiatildeo (Ab Vrbe Condita VI 9-10) 14

No rito aprendido com os etruscos Rocircmulo realiza o sulcus primigenius ao redor dos limites da urbs que estava sendo fundada usava um julgum ldquoaradordquo de bronze puxado por uma vaca e por um touro

Os estudos arqueoloacutegicos vecircm auxiliar na tentativa de resgate dos costumes religiosos dos romanos primitivos poreacutem a insuficiecircncia de documentos escritos a obscuridade de informaccedilotildees a distacircncia temporal entre os cultos mais antigos e o autor que primeiramente os tenha comentado e o sigilo de algumas praacuteticas religiosas dificultam uma descriccedilatildeo objetiva da religiatildeo arcaica romana

Tito Liacutevio (50 aC - 17 dC) comentara a dificuldade em explicitar muitos fatos histoacutericos e tambeacutem religiosos jaacute que vaacuterios documentos e comentaacuterios de pontiacutefices que poderiam conduzir a muitos esclarecimentos haviam sido destruiacutedos antes mesmo que autor tivesse podido consultaacute-los quando escrevia entre 27 e 25 aC sua obra Ab Vrbe Condita sobre a histoacuteria romana como se observa em

13 Qui Il re indossata una toga alla maniera di Gabii che gli copriva Il capo (cinctus Gabinus) dagrave inizio al rito etrusco de sulcus primigenius appena appreso dai sacerdoti etruschi convocati

14 Hi ex interregno cum extemplo magistratum inissent nulla de re prius quam de religionibus senatum consuluere in primis foedera ac leges - erant autem eae duodecim tabulae et quaedam regiae leges - conquiri quae comparerent ius-serunt alia ex eis edita etiam in uolgus quae autem ad sacra pertinebant a pontificibus maxime ut religione obstrictos haberent multitudinis animos suppressa

A perda de manuscritos ocasionou inuacutemeras lacunas para o estudo da religiatildeo arcaica romana poreacutem como assinala Tito Liacutevio muitas informaccedilotildees foram propositalmente ocultadas com o objetivo de manipular a populaccedilatildeo impelindo no povo certo receio em relaccedilatildeo aos cultos religiosos

Pode-se afirmar certamente que a palavra religiatildeo religio para os romanos possui caraacuteter bastante especiacutefico pois determina obrigaccedilotildees que devem ser cumpridas em relaccedilatildeo aos deuses Impelir esse sentimento na populaccedilatildeo garante aos governantes um meio poderoso de conseguir manipulaacute-la jaacute que os ritos religiosos natildeo tinham sido estabelecidos por um profeta ou por um poeta como havia acontecido com os gregos mas pelos chefes do estado romano

As palavras de Tito Liacutevio satildeo de suma importacircncia para o entendimento da manipulaccedilatildeo informativa elas tornam-se mais claras em nulla de re prius quam de religionibus senatum consuluere ldquonatildeo consultaram o Senado sobre nada antes que consultassem sobre as coisas religiosasrdquo que mostram dois momentos distintos acerca do saber religioso pois indica que aqueles que natildeo faziam parte da magistratura ou que natildeo ocupavam altos cargos religiosos natildeo tinham acesso a que realmente se referem os cultos

Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e Marco Fuacuterio Camilo parecem segundo o texto que natildeo tinham acesso a informaccedilotildees importantes sobre o funcionamento da religiatildeo por isso buscam no iniacutecio de sua magistratura magistratum inissent verificar primeiramente as coisas religiosas consuluere de religionibus e apenas posteriormente consultar o estado senatum consuluere sobre as decisotildees que deveriam ser tomadas por eles

A busca de ambos os magistrados conduz agrave descoberta de leis reacutegias e das Doze Taacutebuas que no texto natildeo fica claro se jaacute tinham sido organizadas erant autem eae duodecim tabulae et quaedam regiae leges ldquoporeacutem havia aquelas Doze Taacutebuas e algumas leis reacutegiasrdquo Essas leis foram ordenadas poreacutem o verbo usado por Tito Liacutevio pode conduzir a outras possibilidades de entedimento conquiro pode significar ldquoprocurar com empenho ou cuidadosamente ajuntar reunirrdquo tanto conduz agrave ideia de que as leis jaacute tinham sido ordenadas em um uacutenico documento quanto agrave ideia de que foram retiradas de vaacuterios documentos e ordenadas pelos magistrados

A maior relevacircncia para os estudos sobre a religiatildeo se apresenta em quae autem ad sacra pertinebant a pontificibus maxime ut religione obstrictos haberent multitudinis animos suppressa ldquoas que poreacutem referiam-se agraves coisas sagradas foram suprimidas sobretudo pelos pontiacutefices a fim de que os acircnimos das pessoas estivessem fortemente presos agrave religiatildeordquo pois as verdadeiras referecircncias natildeo eram permitidas ao povo de um modo geral para que esse povo sempre fosse conduzido por uma religiatildeo que era de interesse basicamente das classes dominantes e que provavelmente detinham o verdadeiro significado dos cultos e ritos religiosos

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A construccedilatildeo usada por Tito Liacutevio apresenta caraacuteter bem particular e representativo que garante ao seu texto um valor criacutetico das praacuteticas dominantes O uso do particiacutepio do verbo supprimo em suppressa poderia ter um valor bem mais intriacutenseco jaacute que pode tambeacutem significar ldquoafundar enterrar fazendo pressatildeo fazer desaparecerrdquo o que demonstra a possibilidade de que muitos documentos ligados agraves origens da religiatildeo romana foram propositalmente apagados suprimidos ou mesmo enterrados sob forte pressatildeo principalmente daquelas classes que detinham o poder e queria preservaacute-lo com uso de conhecimentos religiosos que fossem de seu interesse direto

Mesmo com a manipulaccedilatildeo de informaccedilotildees relevantes sobre a religiatildeo seus cultos permaneceram e muitas vezes se confundiam com a vida cotidiana e com a proacutepria histoacuteria da civilizaccedilatildeo romana como Georges Dumeacutezil (2000 p31) observa

A religiatildeo eacute sempre em qualquer lugar coisa atual e ativa seus ritos satildeo diaacuteria ou anualmente celebrados seus conceitos e seus deuses intervecircm na rotina dos tempos calmos como no ardor dos tempos de crise 15

A religiatildeo modera os acircnimos durante todo tempo nas guerras nas atividades diaacuterias nos dias escolhidos para a colheita havia sempre a consulta a um especialista em religiatildeo um sacerdote que definia qual seria a melhor escolha em caso de uma decisatildeo difiacutecil em qualquer esfera da sociedade As informaccedilotildees que natildeo eram divulgadas ao povo em geral conduziram a religiatildeo a manter sua proacutepria loacutegica interna e de certo modo tambeacutem sua autonomia Apesar de fazer parte da vida cotidiana de todas as camadas da populaccedilatildeo tal preservaccedilatildeo natildeo expocircs a religiatildeo a muitos eventos profanos Por um lado a manutenccedilatildeo de informaccedilotildees sigilosas pelos sacerdotes e poucos membros do estado preservaram em sua essecircncia o verdadeiro sentido dos cultos religiosos por outro tal manutenccedilatildeo natildeo forneceu possibilidades ao povo de ter conhecimento sobre os ritos que tanto influenciavam o seu cotidiano jaacute que segundo os romanos os deuses intervinham tanto nos tempos de paz quanto nos tempos de guerra ou de crise de qualquer natureza

Os elementos religiosos eram tatildeo inerentes agrave vida romana que a medida de tempo que era utilizada e chegava a todos sem distinccedilatildeo de classes ou funccedilatildeo ocupada foi inicialmente baseada em aspectos religiosos pois os pontiacutefices confeccionaram o calendaacuterio tendo em vista a observaccedilatildeo da natureza Essa concepccedilatildeo temporal atingia a todos pois muita supersticcedilatildeo se vinculava tambeacutem agrave medida de tempo conforme aponta Dioniacutesio de Halicarnassus

15 La religion est toujours en tout lieu chose actuelle et active ses rites sont journellement ou annuellement ceacuteleacutebreacutes ses concepts et ses dieux interviennent dans la routine des temps calmes comme dans la fiegravevre des temps de crise 16 Τῇ νέᾳ σελήνῃ ἡ Ὲλληνες μέν νουμηνίαν Ρωμαῖοι δὲ καλάνδρας καλοῦσιν

Em relaccedilatildeo agrave lua nova que os Helenos chamam de primeiro dia do mecircs os Romanos chamam de Kalendas 16

(Antiquitates Romanae VIII 55)

A religiatildeo eacute sempre em qualquer lugar coisa atual e ativa seus ritos satildeo diaacuteria ou anualmente celebrados seus conceitos e seus deuses intervecircm na rotina dos tempos calmos como no ardor dos tempos de crise 15

O mesmo criou os dias nefastos e fastos porque algumas vezes era uacutetil nada vir a ser tratado com o povo 18 (Ab Vrbe Condita I 19 7)

18 Idem nefastos dies fastosque fecit quia aliquando nihil cum populo agi utile futurum erat

A relaccedilatildeo de observaccedilatildeo das fases da lua para a definiccedilatildeo e estabelecimento das partes que compotildeem o mecircs ou mais propriamente o mecircs lunar tem direta ligaccedilatildeo com o conhecimento da natureza e do movimento dos corpos celestes consequentemente da religiatildeo e dos cultos religiosos A lua era observada pelo pontiacutefice menor que determinava a sua primeira fase que os helenos chamavam de νουμηνίαν os romanos de καλίνδρας em latim Kalendae em seguida o rei determinava os resultados da observaccedilatildeo do pontiacutefice o povo era convocado e se estabelecia em quais dias se dariam as nonae e os idus Conforme afirma T Mommsen (sd p339)

Novamente se verifica a determinaccedilatildeo de todas as camadas sociais pela religiatildeo o pontiacutefice como observador e inteacuterprete dos fenocircmenos naturais e divinos o rei como representante maior do estado e que devia determinar o que havia sido verificado pelo representante religioso Por sua vez as determinaccedilotildees religiosas eram seguidas por todos os membros da sociedade sacerdotes reis camponeses soldados artesatildeos Diante de tais observaccedilotildees natildeo se poderia esquecer o culto aos deuses que possibilitavam o entendimento da natureza ou mesmo enviavam suas mensagens atraveacutes do membro responsaacutevel por estabelecer o elo entre o mundo terreno e o divino o pontiacutefice Sobre isso Tito Liacutevio afirma

Essas praacuteticas fazem parte da cultura romana desde os mais remotos tempos em que a religiatildeo o estado a histoacuteria e os mitos das lendas romanas estavam tatildeo intimamente ligados que dificilmente se conseguia delimitar quais eram suas aacutereas de atuaccedilatildeo especificamente Desde a Roma arcaica segundo Tito Liacutevio fatos histoacutericos se confundiram com os mitos e as faacutebulas criadas pelos poetas transmitidas ao longo dos tempos conforme se observa na lenda de Numa Pompiacutelio sucessor de Rocircmulo como rei de Roma Numa Pompiacutelio que primeiro estabelecera os dias denominados de fas ou seja ldquoaqueles em que haacute a expressatildeo da ordem divina ou aqueles em que algo eacute permitido pelos deusesrdquo dias em que segundo o direito o pretor tomava suas decisotildees judiciais usando de expressotildees como do dico addico ldquoconcedordquo ldquodigordquo ldquoconsintordquo por sua vez os dias denominados de nefas eram ldquoaqueles em que algo era contraacuterio agraves leis divinas agraves leis da religiatildeordquo dias em que havia o culto dos deuses infernais e que eram improacuteprios para os afazeres terrestres

Pode-se verificar a influecircncia desses dias criados por Numa Pompiacutelio nos quais natildeo se devia tratar de qualquer que fosse o assunto passar ao longo da histoacuteria Conforme atestam textos de escritores latinos mais recentes Oviacutedio (43 - 18 aC) e

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Varratildeo (116 - 27 aC) fazem referecircncia a eles em seus escritos

Dias fastos durante os quais eacute permitido aos pretores profeti-zar todas as palavras sem impiedade[] o contraacuterio destes satildeo chamados os dias nefastos durante os quais (natildeo eacute permitido) o pretor profetizar ldquoconcedordquo ldquodigordquo ldquoconsintordquo assim natildeo pode se dizer 19

(De Lingua Latina VI 4)

Aquele seraacute nefasto durante o qual as trecircs palavras se silenciam Seraacute fasto durante o qual eacute permitido ser dito 20

(Fasti I 46-7)

Em nenhum momento da histoacuteria noacutes lemos que um destes sacerdotes tenha sido encarregado de fazer a partir de tal data outra coisa senatildeo o que fazia desde o iniacutecio[] Hoje noacutes sabe-mos quanto eacute recente nossa tradiccedilatildeo sobre Roma Sim mas que importa se no uacuteltimo seacuteculo da Repuacuteblica os homens da arte repetiam ainda fielmente as palavras e os gestos dos tempos re-ais 21

19 Dies fasti per quos praetoribus omnia uerba sine piaculo licet fari[] Contrarii horum uocantur dies nefasti per quos dies nefas fari praetorem ldquodordquo ldquodicordquo ldquoaddicordquo itaque non potest agi 20 Ille nefastus erit per quem tria uerba silentur Fastus erit per quem licebit agi 21 A aucun moment de lrsquohistoire nous lisons qursquoun de ces precirctres ait eacuteteacute charge de faire agrave partir de telle date autre chose que ce qursquoil faisait depuis le deacutebut[] Aujourdrsquohui nous savons combien est reacutecent notre tradition sur Rome Oui mais qursquoimporte si au dernier siegravecle de la Reacutepublique les hommes de lrsquoart reacutepeacutetaient encore fidegravelement les mots et les gestes des temps royaux

Vale salientar que mesmo com o distanciamento das eacutepocas em que viveram o personagem histoacuterico referenciado por Tito Liacutevio neste caso Numa Pompiacutelio que seria o criador dos dias nefas e fas e os autores Varratildeo e Oviacutedio os conceitos atribuiacutedos a esses dias permaneceram devido a suas atribuiccedilotildees religiosas Tito Liacutevio se refere agrave invenccedilatildeo desses dias afirmando que eles foram criados ainda na Roma arcaica Uma explicaccedilatildeo plausiacutevel para isso eacute apresentada O autor afirma que apoacutes o reinado de Numa ele tratou de estabelecer tratados de paz com os povos vizinhos e para que eles natildeo fossem violados idem nefastos dies fastosque fecit objetivando impelir o temor dos deuses naqueles povos baacuterbaros e rudes

Apesar do distanciamento temporal de mais de cinco seacuteculos que separa os autores Tito Liacutevio e Oviacutedio dos atos religiosos da Roma arcaica Georges Dumeacutezil afirma que a perda de manuscrito do iniacutecio da civilizaccedilatildeo romana e a ausecircncia de fontes informativas seguras que datem dos primoacuterdios da civilizaccedilatildeo romana natildeo satildeo fatores determinantes que conduzam a natildeo compreensatildeo da religiatildeo durante a Monarquia romana Para Dumeacutezil (2000 p 98-103)

Se os sacerdotes desde os primoacuterdios estiveram encarregados das mesmas funccedilotildees que sempre exerceram desde o iniacutecio da religiatildeo romana natildeo se mostra problemaacutetico o uso de textos de autores do seacutec I aC ou mesmo de eacutepocas mais

Varratildeo diz tambeacutem que os antigos romanos tecircm cultuado os deuses sem simulacros mais de cento e setenta ano 22 (De Ciui-tate Dei IV 31)

22 (Varro) dicit etiam antiquos Romanos plus annos centum e septuaginta deos sine simulacro coluisse

recentes como os escritos de Santo Agostinho acerca das caracteriacutesticas dos ritos religiosos romanos Mesmo que seja recente nossa tradiccedilatildeo sobre a religiatildeo romana se as palavras e gestos usados durante os cultos se conservaram esses autores da nossa recente tradiccedilatildeo devem ser considerados autoridades pois satildeo as uacutenicas fontes conservadas das eacutepocas mais remotas

Na Roma arcaica e em outras sociedades estabelecer as relaccedilotildees sociais e de bom conviacutevio entre os cidadatildeos de uma mesma cidade ou mesmo de povos vizinhos pode ser considerada uma funccedilatildeo baacutesica atribuiacuteda agrave religiatildeo mesmo que certos contratos sociais de civilidade sejam estabelecidos atraveacutes da supersticcedilatildeo religiosa e do medo associado a essas praacuteticas

Nos primeiros seacuteculos da histoacuteria romana o culto aos deuses era proveniente de uma evoluccedilatildeo consciente que fixava as leis e os caracteres recebidos dos primeiros reis nessa eacutepoca o culto romano diferia do praticado pelos gregos jaacute que os romanos natildeo representavam os deuses por meio de estaacutetuas ou simulacros Satildeo quase dois seacuteculos para que os romanos comeccedilassem a representar os seus deuses agrave semelhanccedila dos gregos isto eacute por meio de suas imagens conforme as palavras de Varratildeo apud Santo Agostinho

Partindo do princiacutepio de que os deuses na Roma arcaica natildeo satildeo representados por simulacros coluisse sine simulacro ldquotecircm cultuado os deuses sem simulacrosrdquo podem ser estabelecidas as devidas comparaccedilotildees com a religiatildeo grega pois partem de princiacutepios evolutivos semelhantes Como se pode observar na Teogonia de Hesiacuteodo (v 116-122) os gregos natildeo costumavam apresentar os deuses primordiais Caos Terra Taacutertaro e Eros personificados diferentemente do que acontecia com os demais deuses principalmente com aqueles que se destacaram apoacutes a organizaccedilatildeo do cosmos por Zeus

Desse modo pode-se observar um princiacutepio de semelhanccedila entre as duas culturas Somente apoacutes a estruturaccedilatildeo do cosmos mesmo considerando as referecircncias poeacuteticas os deuses passam a ser representados semelhantemente aos seres humanos uma vez que a forma humana era entendida como mais desenvolvida e completa em se estabelecendo as devidas comparaccedilotildees com os animais desprovidos de razatildeo

Partindo de tal princiacutepio e de tal semelhanccedila a religiatildeo romana parece seguir os mesmos passos da grega pois os deuses inicialmente natildeo eram personificados eram entendidos como forccedilas naturais Somente com a evoluccedilatildeo religiosa e o contato com a cultura grega houve a necessidade de representaacute-los em formas mais concretas personificados

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Apesar de o momento a que se refere Santo Agostinho cronologicamente estar bastante distante do mito explicativo da origem e organizaccedilatildeo coacutesmica sugerido por Hesiacuteodo o seu caraacuteter evolutivo eacute bastante semelhante Os romanos aproximadamente entre os primeiros anos de monarquia 753 aC e 583 aC natildeo representaram seus deuses personificados e os gregos segundo a explicaccedilatildeo miacutetica de Hesiacuteodo tambeacutem natildeo personificavam os seus deuses primordiais Essa comparaccedilatildeo conduz a uma forma mais ruacutestica do princiacutepio religioso em que haacute apenas a associaccedilatildeo dos deuses com as forccedilas primitivas da natureza ou seja as divindades eram apenas abstraccedilotildees sem uma representaccedilatildeo fiacutesica nem mesmo havia a associaccedilatildeo divina com a forma humana que seria considerada a mais bela e perfeita das formas e que conduziria a grandes desavenccedilas filosoacuteficas durante o seacuteculo I aC em Roma A representaccedilatildeo primitiva de certa forma em seu mais alto grau de abstraccedilatildeo garantia aos cultos dos deuses mais pureza representativa

A respeito de tal ausecircncia de representaccedilatildeo divina Georges Dumeacutezil (2000 p 44-45) faz indagaccedilotildees

Por que os primeiros romanos natildeo representavam Marte nem mesmo outros deuses Seguindo Varratildeo percebemos eacute apenas falta de maturidade artiacutestica () por reverecircncia pelo sentimen-to de que toda representaccedilatildeo e tambeacutem todo ldquoencerramento em um templordquo seria um aprisionamento Pode ser enfim por eles natildeo sentirem necessidade natildeo eacute necessaacuterio colocar como equi-valecircncias necessaacuterias e reciacuteprocas ldquopersonalidade = contornordquo ldquoantropomorfismo = figuraccedilatildeordquo 23

23 ldquoPourquoi les premiers Romains ne figuraient-ils pas Mars ni drsquoailleurs drsquoautres dieux Suivant Varron on lrsquoa vu crsquoest seulement faute de maturiteacute artistique () par reacuteveacuterence par le sentiment que tout repreacutesentation et aussi toute ldquomise en templerdquo serait un emprisonnement Ce peut ecirctre enfin parce qursquoils nrsquoen eacuteprouvaient pas le besoin il ne faut pas poser comme des eacutequivalences neacutecessaires et reacuteciproques ldquopersonnaliteacute = contourrdquo ldquoantropomorphisme = figurationrdquo

Seria pouco plausiacutevel considerar apenas a afirmaccedilatildeo de que a ausecircncia de representaccedilatildeo artiacutestica das coisas divinas era falta de maturidade no acircmbito da arte evidentemente que natildeo permaneceram muitos artefatos que a pudessem comprovar apenas alguns bastante ruacutesticos poreacutem eacute mais aceitaacutevel a segunda afirmaccedilatildeo de que toda representaccedilatildeo artiacutestica seria um aprisionamento fato que corrobora as palavras de Varratildeo a religiatildeo romana arcaica estava mais preocupada com a natureza e com o entendimento de seus elementos do que com a mera representaccedilatildeo em simulacros de suas forccedilas naturais de seus deuses Isso demonstra que a observaccedilatildeo da natureza pelos antigos era acentuada e revela modificaccedilotildees religiosas no decorrer da histoacuteria romana a partir do momento em que os deuses passam a ser representados por iacutecones que se assemelham agrave figura humana ou mesmo agrave figura de animais

Com as representaccedilotildees que aconteceriam apoacutes os dois primeiros seacuteculos da histoacuteria romana os deuses deixam de ter caraacuteter meramente abstrato e o distanciamento entre deuses e seres humanos diminui garantindo aqueles por meio de seus simulacros teor mais concreto Por um lado tornavam-se menos abstratos os cultos religiosos jaacute que as forccedilas naturais e seus representantes passaram a ser vistos

24 Sacrorum autem ipsorum diligentiam difficilem apparatum perfacilem esse uoluit nam quae perdiscenda quaeque obseruanda essent multa constituit sed ea sine impensa

em forma de simulacros por outro lado os deuses passaram a fazer parte do cotidiano dos romanos estavam mais proacuteximos e por isso segundo as crenccedilas populares tambeacutem passaram a agir como os seres humanos sentiam oacutedio amor rancor medo e todos os demais sentimentos tiacutepicos da humanidade Nesse momento os deuses passaram a se relacionar com os humanos em atos de tamanha intimidade que geraram vaacuterios semideuses filhos de deuses com humanos

Apesar dos primitivismos religiosos da eacutepoca arcaica romana e de suas concepccedilotildees que se distanciavam daquelas presentes em Roma no seacutec I aC os ritos religiosos primitivos eram bastante complexos apenas os instrumentos usados neles eram simples fato que reforccedila a afirmaccedilatildeo de Georges Dumeacutezil a respeito da falta de maturidade artiacutestica dos romanos Ciacutecero afirma a respeito dos ritos religiosos na Roma arcaica

Poreacutem das proacuteprias coisas sagradas decidiu que a aplicaccedilatildeo fos-se difiacutecil o instrumento fosse muito simples pois aquelas coisas devem ser aprendidas por inteiro cada uma deve ser observada instituiu muitas coisas mas aquelas sem instrumentos 24 (De Re Publica II 14 27)

A afirmaccedilatildeo de Ciacutecero reforccedila o pensamento de Georges Dumeacutezil de que a arte na Roma arcaica era precaacuteria sem grandes representaccedilotildees de instrumentos muito simples apparatum perfacilem poreacutem os cultos eram muito complexos de difiacutecil aplicaccedilatildeo diligentiam difficilem fatores que garantiam aos sacerdotes a completa manipulaccedilatildeo dos ritos religiosos e tambeacutem a preservaccedilatildeo dos ideais dos reis jaacute que nesse momento religiatildeo e estado estavam intimamente ligados na conservaccedilatildeo tanto dos ritos religiosos quanto na manipulaccedilatildeo do povo que natildeo tinha acesso ao manuseio dos cultos

Eacute importante observar que os cultos na Roma arcaica natildeo reverenciavam ou invocavam apenas um uacutenico deus em cada ritual era comum a reverecircncia e a invocaccedilatildeo coletiva dos deuses por parte dos sacerdotes quer fosse um ritual de prece quer fosse de sacrifiacutecio aos deuses Ato semelhante eacute realizado por Virgiacutelio (70 ndash 19 aC) apesar de ser um poeta do seacutec I aC no proecircmio de seu poema Geoacutergicas apoacutes fazer a dedicatoacuteria a Mecenas e anunciar os temas que seratildeo abordados pelo poema O poeta realiza entre os versos 1 e 42 a invocaccedilatildeo dos deuses do ceacuteu da terra e do mar que protegem os pastores e os camponeses respectivamente Liber e Ceres (v7) Acheloias (v9) Neptunus (v14) Minerua (v18) Siluanus (v20) e Tethys (v31)

O ato de invocaccedilatildeo coletiva de Virgiacutelio muito tem de semelhante com as praacuteticas religiosas do periacuteodo arcaico romano o problema maior eacute aquele a que se refere Ciacutecero diligentiam difficilem pois pouco se sabe sobre os rituais profanos da Antiguidade haja vista que a maior parte dos manuscritos natildeo se conservou e muitas das inferecircncias satildeo

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feitas por analogia com os rituais realizados no periacuteodo claacutessico romano

T Mommsen menciona uma lista com doze deuses que estatildeo associados agrave simples personificaccedilatildeo dos atos realizados pelos homens e que raramente satildeo citados pelos escritores do periacuteodo claacutessico Esses deuses revelam certo grau de primitivismo da religiatildeo romana arcaica em que se tentava compreender a natureza e suas forccedilas sem preocupaccedilatildeo com sua representaccedilatildeo por meio de simulacros Segundo T Mommsen (sd p11)

Estes satildeo Veruactor para o primeiro trabalho dado ao terreno Redarator para o segundo trabalho Imporcitor para percorrer o traccedilo do arado Insitor para fazer a semeadura Arator para o novo trabalho Occator para o cultivo Sarritor para cavar com a enxada Subruncinator para livrar o cultivo de maacutes ervas Mes-sor para a colheita Conuector para juntar a colheita Conditor para reintroduzi-la Promitor para retiraacute-la do celeiro 25

Esses deuses reafirma T Mommsen seriam a simples personificaccedilatildeo dos atos que eles representavam e estavam tatildeo presentes na mente romana arcaica que posteriormente passaram a nomear os profissionais responsaacuteveis por seu desempenho e natildeo as divindades Redarator passou a ser o camponecircs que arava novamente o campo arator o lavrador occator o gradador sarritor o sachador messor o que colhe os frutos conditor o que faz algo promitor o que faz brotar Era a accedilatildeo praticada pelos camponeses que os nomeava accedilatildeo em primeiro lugar atribuiacuteda aos deuses apenas realizadas com sua concessatildeo mas que posteriormente passou a nomear o proacuteprio ato realizado ganhando conotaccedilatildeo mais humana e se distanciando da divina

O distanciamento e as novas atribuiccedilotildees das palavras podem estar associados agraves novas concepccedilotildees religiosas desenvolvidas pelos romanos a partir da instituiccedilatildeo da Repuacuteblica entre 507 e 27 aC periacuteodo em que os deuses jaacute seriam representados por simulacros e em que a cultura romana sofreu bastante influecircncia da grega Se houve a desvinculaccedilatildeo dessas palavras da forccedila divina haveria a necessidade de que existisse a invenccedilatildeo ou substituiccedilatildeo dessas forccedilas entatildeo os deuses ganharam novas e mais concretas representaccedilotildees muitos deles por exemplo que estavam ligados ao cultivo da terra foram substituiacutedos ou associados a Ceres

Na Roma arcaica aleacutem dos deuses que se associavam agraves atividades com a terra havia muitos outros deuses que os romanos acreditavam estarem ligados agraves mais diversas atividades ou fases da vida humana Servindo-se dos poucos textos conservados T Mommsen classifica esses deuses ligando-os agraves diversas fases da vida em sete grupos A partir dos comentaacuterios de autores do periacuteodo claacutessico podem-se

25 ldquoCe sont Veruactor pour le premier labour donneacute agrave la friche Redarator pour le deuxiegraveme labor Imporcitor pour traverser les sillons Insitor pour faire les semailles Abarator pour le nouveau labour Occator pour le hersage Sarritor pour houer Subruncinator pour le sarclage Messor pour la moisson Conuector pour rassembler la reacutecolte Conditor pour la rentrer Promitor pour la retirer des greniersrdquo

estabelecer comparaccedilotildees a fim de se ter uma ideia de qual seria o pensamento dos romanos arcaicos sobre as forccedilas da natureza e as atribuiccedilotildees dos deuses na Antiguidade

O primeiro grupo eacute o dos deuses que se relacionam com o desenvolvimento do homem desde a sua concepccedilatildeo ateacute o seu nascimento Janus Consiuius Saturnus Liber et Libera Fluonia Alimonia Nona Decima Partula Vitumnus Sentinus O segundo grupo eacute o dos deuses que concedem o nascimento Juno Lucina et Diespiter que permitem o nascimento da crianccedila Candelifera que conduz a vela ateacute o parto Carmentes Prorsa et Postuerta Egeria Numeria O terceiro satildeo as divindades invocadas apoacutes o nascimento Intercidona Deuerra Pilumnus Picumnus Opis Deus Vagitanus Cunina Rumina Nundina Geneta Mana que protege contra a morte aqueles que nascem em casa Fata Scribunda que fixam o destino do nascido O quarto grupo eacute o dos deuses da primeira infacircncia Potina et Educa que ensinam a crianccedila a comer e a beber Cuba que protege a crianccedila transportada da cama Ossipago Carna que fortalece a pele Leuana que apoia sobre a terra Statanus Statilinus Statina que ensina a crianccedila a ficar em peacute Abeona et Adeona que ensinam seus primeiros passos Farinus et Fabulinus que ensinam a falar O quinto grupo eacute composto pelos deuses da adolescecircncia Iterduca et Domiduca que acompanham os adolescentes quando eles saem Mens Deus Catius pater Consus et Sentia que lhes datildeo inteligecircncia Diuus Volumna Diua Volumna aut Voleta Stimula Diua Peta que lhes datildeo a vontade Praestana aut Praestitia Pollentia Agonius Peragenor Agenoria Strenia que lhes datildeo forccedila Numeria et Camena que lhes ensinam a contar e a cantar Minerua que fortalece sua memoacuteria Pauentia aut Pauentina que afasta o medo Venilia que lhes daacute esperanccedila Volupia Lubentina aut Lubia et Liburnus que procuram as alegrias da juventude Juuentas et Fortuna barbata que protegem os adultos O sexto grupo eacute dos deuses do casamento Juno iuga Deus Jugatinus Domiducus Domitius Manturna Unxia Cinxia Virginiensis dea Mutunus Tutunus O seacutetimo grupo eacute composto pelas divindades protetoras das diversas fases da vida Tutanus et Tutilina que satildeo invocados em momentos de afliccedilatildeo Viriplaca que reconcilia os esposos Orbona a quem os oacuterfatildeos fazem suas preces Caeculus o deus dos cegos Viduus que separa a alma do corpo e a quem se implora quando se estaacute em situaccedilatildeo que pode levar agrave morte Libitina et Nenia que satildeo as deusas da morte

T Mommsen organiza os deuses seguindo o ciclo da vida humana desde a sua concepccedilatildeo ateacute a morte aleacutem disso muitas palavras que eram usadas pelos romanos para nomeaacute-los tinham significado intriacutenseco com a accedilatildeo desempenhada pelo deus Diespiter eacute composto de dies ldquodiardquo acrescido de piter gt pater ldquopairdquo o que concede a luz do dia ou seja o nascimento Candelifera composto de candela ldquovelardquo acrescido de fero ldquoconduzir levarrdquo isto eacute a que ilumina para o nascimento Fata Scribunda composto de fata lt fatum ldquodestinordquo acrescido de scribunda lt scribo ldquomarcar assinalarrdquo ou seja a que assinala o destino Abeona composto de ab preposiccedilatildeo que indica afastamento acrescido de eo ldquoir andarrdquo ou seja o oposto de Adeona pois uma ensina o caminho de ida e a outra o de volta Iterduca composto de iter ldquocaminhordquo acrescido de duco ldquolevar conduzirrdquo juntamente com Domiduca composto de domus ldquocasardquo acrescido de duco ensinam o caminho de volta para a casa

Essa ligaccedilatildeo da accedilatildeo com a palavra atribuiacuteda ao deus pode ser considerada

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um dos fatores que fazia com que os romanos arcaicos natildeo representassem as suas divindades por meios fiacutesicos pois consideravam a accedilatildeo divina bem mais ampla do que sua mera representaccedilatildeo garantindo ao deus um campo de atuaccedilatildeo que natildeo se restringia apenas ao templo ou agrave cidade em que estivesse inserido como se acreditava no Periacuteodo Claacutessico

Havia vaacuterios deuses associados agraves mais diversas atividades da vida humana divindades arcaicas que satildeo pouco mencionadas no seacutec I aC ou que caiacuteram no completo esquecimento dos romanos T Mommsen se refere a alguns Tutanus e Tutilina que satildeo invocados em momentos de afliccedilatildeo Viriplaca que reconcilia os casais Caeculus que eacute o deus dos cegos Viduus que separa a alma do corpo a quem se implora quando haacute proximidade da morte Libitina e Nenia que satildeo as deusas da morte

Com a economia basicamente baseada na atividade agriacutecola natildeo seria de se admirar que houvesse um grande nuacutemero de deuses protetores da terra e de seu cultivo geralmente comeccedilado por Janus Os deuses vinculados agrave agricultura desempenhavam funccedilotildees bem especiacuteficas Sator era o deus da plantaccedilatildeo Seia deusa da terra semeada Segeia deusa das plantaccedilotildees Proserpina deusa das plantas germinadas Nodutus estabelecia a germinaccedilatildeo Volutina estabelecia a precipitaccedilatildeo das vagens Patelana fazia aparecer as vagens e brotar as espigas Hostilina fazia crescer os novos frutos Flora deusa das pradarias que fazia florescer os gratildeos Lactans que vertia os frutos e os fazia se esconder Lacturnus que protegia os trigos receacutem-gerados Matuta que os tornava maduros Rucina que os sachava e os tirava da terra Messia deusa da colheita Terensis que protegia os frutos debulhados Picumnus Pilumnus Stercutius Sterquilinius Spiniensis que erradicavam as dificuldades

Assim como o campo e as atividades desenvolvidas nele as partes das casas romanas e os ambientes puacuteblicos tambeacutem tinham suas divindades especiacuteficas que garantiam a proteccedilatildeo dos lugares S Agostinho afirma

Esses estabeleceram trecircs deuses Forculus para as portas da casa Cardea para o eixo Limentius para a soleira da porta Assim natildeo poderia ao mesmo tempo Forculus guardar o eixo da porta e a soleira da porta 26

(De Ciuitate Dei IV 8)

26 Tres deos isti posuerunt Forculum foribus Cardeam cardini Limentium limini Ita non poterat Forculus simul et cardinem limenque seruare

As palavras de Santo Agostinho exemplificam bem o sentimento religioso do romano arcaico que atribuiacutea funccedilotildees especiacuteficas a cada divindade apesar de Forculus Cardea e Limentius terem a mesma funccedilatildeo ou seja garantir a proteccedilatildeo da casa essa proteccedilatildeo estava vinculada apenas a partes bastante especiacuteficas o que garantia a preservaccedilatildeo na memoacuteria da populaccedilatildeo a respeito da existecircncia de muitos deuses fato que com a evoluccedilatildeo da civilizaccedilatildeo e da religiatildeo romanas gradativamente vai se perdendo fazendo com que muitos desses deuses fossem esquecidos Assim natildeo seria inexplicaacutevel a diminuiccedilatildeo no nuacutemero de deuses entre os romanos pois muitas vezes

houve a associaccedilatildeo dessa multiplicidade de deuses e de suas funccedilotildees a uma uacutenica divindade que por sua vez prevaleceu sobre as demais e manteve a preservaccedilatildeo de sua memoacuteria entre os romanos

Os espaccedilos que rodeavam as casas e muitos objetos tambeacutem estavam sob a proteccedilatildeo dos deuses Rusina protegia o campo rus Jugatinus protegia o jugo que atrelava os cavalos juga Collatina protegia as colinas colles Vallonia guardava os vales ualles Alguns garantiam a preservaccedilatildeo de localidades especiacuteficas como o monte Vaticano Vaticanus mons que era guardado por Vaticanus e o monte Aventino Auentinus mons que era protegido por Auentinus

Haacute de se observar que os primitivos romanos por vezes confundiam os dons divinos com os proacuteprios deuses o que conduz ao pensamento de que quando eles natildeo descobriam os nomes dos deuses que atuavam em determinada situaccedilatildeo atribuiacuteam-lhes o proacuteprio nome das coisas tal atribuiccedilatildeo geralmente se dava atraveacutes do processo de derivaccedilatildeo das palavras conforme se verifica em Bellona lt bellum (guerra) Cunina lt cuna (berccedilo) Segetia lt seges (seara) Bubona lt bos (boi) Pomona lt poma (fruto)

As palavras que nomeiam todos esses deuses assim como muitos daqueles que garantiam o desenvolvimento da crianccedila e a conduziam ateacute a fase adulta possuem o mesmo radical dos lugares ou dos objetos nomeados Entende-se entatildeo que a religiosidade romana arcaica natildeo estava delimitada apenas a alguns locais especiacuteficos em que se realizavam os cultos tambeacutem natildeo se restringia a alguns instrumentos usados nos ritos religiosos fato que pode explicar a utilizaccedilatildeo da mesma raiz da palavra atribuiacuteda agrave divindade ao lugar e ao objeto protegido pelo deus Rusina e rus Jugatinus e juga Collatina e colles Vallonia e ualles os respectivos homocircnimos Vaticanus mons e Vaticanus Auentinus mons e Auentinus

Tambeacutem atribuiacuteam sem qualquer alteraccedilatildeo da palavra o nome da coisa agraves seguintes divindades Pecunia deusa que concedia os bens (pecunia) Virtus deusa que concedia a virtude (uirtus) Honor deusa que dava a honra (honor) Concordia deusa que permitia a concoacuterdia (concordia) Victoria deusa que concedia a vitoacuteria (uictoria) Verifica-se assim tamanha confusatildeo em se fazer a distinccedilatildeo entre a divindade e o dom por ela concedido como afirma S Agostinho

Assim dizem quando se diz que a Felicidade eacute uma deusa natildeo eacute a proacutepria felicidade que eacute concedida mas aquela divindade por quem a felicidade eacute concedida 27 (De Ciuitate Dei IV 24)

27 Ita inquiunt cum Felicitas dea dicitur non ipsa quae datur sed numen illud adtenditur a quo felicitas datur

Assim divindade e atribuiccedilatildeo divina eram constantemente confundidas sem que houvesse clareza distintiva entre o ser e a accedilatildeo produzida Isto promovia na Roma arcaica certamente dois aspectos distintos em primeiro lugar a preservaccedilatildeo da pureza do culto devido agrave ausecircncia da representaccedilatildeo das divindades por meio de simulacros

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em segundo lugar uma possiacutevel confusatildeo generalizada entre os deuses e os dons por eles concedidos

Apesar da existecircncia de muitos deuses com funccedilotildees particulares as suacuteplicas lhes eram atribuiacutedas com especificidade e indicaccedilatildeo de seus poderes o que segundo as crenccedilas romanas garantia a atenccedilatildeo por parte da divindade invocada Se natildeo houvesse certeza sobre qual deus se deveria invocar para a realizaccedilatildeo de determinada accedilatildeo fazia-se uso de uma foacutermula geral conforme atesta Seacutervio

Juacutepiter todo poderoso ou por qual outro nome desejares ser chamado 28 (Ad Aeneidem VI 166)

Essa invocaccedilatildeo generalizada pode ser considerada uma das causas do desaparecimento na tradiccedilatildeo romana sobretudo no periacuteodo claacutessico da literatura romana de muitas divindades que faziam parte da cultura arcaica poreacutem soacute com o advento da Repuacuteblica entre 507 a C e 27 aC a figura de Juacutepiter passa a se destacar atraveacutes do uso da expressatildeo invocatoacuteria Iupiter omnipotens atribuindo a este deus uma espeacutecie de incorporaccedilatildeo de muitos outros que foram paulatinamente esquecidos

Tal fato fez com que a figura de Juacutepiter se sobressaiacutesse em relaccedilatildeo agrave figura de Jano sobretudo posteriormente quando a literatura latina passou a sofrer influecircncia da grega em que a figura de Ζεύς Πατήρ (piter) era constantemente exaltada venerada nomeada por Hesiacuteodo como ldquopai dos deuses e dos homensrdquo devido a seus feitos em relaccedilatildeo agrave organizaccedilatildeo do Cosmos e seus atributos guerreiros aleacutem de ser o deus disseminador o que espalha o secircmen Por isso Vergiacutelio faz uso de expressotildees como diuum pater atque hominum rex ldquopai dos deuses e rei dos homensrdquo hominum sator atque deorum ldquosemeador dos homens e dos deusesrdquo pater summus ldquosumo pairdquo pater omnipotens ldquopai onipotenterdquo e Iupiter omnipotens ldquoJuacutepiter onipotenterdquo que seriam meras traduccedilotildees das expressotildees usadas por Hesiacuteodo

Por outro lado a unificaccedilatildeo de vaacuterias divindades na figura de Juacutepiter fazia com que ele fosse invocado por uma multiplicidade de epiacutetetos em diferentes lugares da Roma arcaica Conforme verifica T Mommsen (sd p27) havia um Iupiter Libertas um Iupiter Iuuentus um Iupiter Fulgur um Iupiter Pecunia um Iupiter Lapis um Iupiter Liber Certamente esses qualificativos atribuiacutedos a Juacutepiter estavam associados agrave sua capacidade no desempenho de vaacuterias funccedilotildees Primeiramente era uma forma de especificar o seu poder de realizaccedilatildeo verificado no adjetivo omnipotens observado por Seacutervio em segundo lugar determinava as funccedilotildees que anteriormente eram realizadas por outras divindades arcaicas

Apuleio menciona alguns dos qualificativos de Juacutepiter garantindo ao deus uma infinidade de funccedilotildees naturais e guerreiras

28 Jupiter omnipotens uel quo alio nomine appellari uolueris

29 Fulgurator et Tonitrualis et Fulminator etiam Imbricitor et item Serenator et plures eum Frugiferum uocant multi urbis Custodem alii Hospitalem Amicalem et omnium officiorum nominibus appellant Est Militaris et Triumphator et Propagator Tropaeophorus 30 Dixerunt eum Victorem Inuictum Opitulum Inpulsorem Statorem Centumpedam Supinalem Tigillum Almum Ruminum et alia quae persequi longum est 31 Saliorum quoque antiquissimis carminibus deorum deus canitur[] patrem inuocamus quasi deorum deum

Fulgurator tanto Tonitrualis quanto Fulminator tambeacutem Im-bricitor e aleacutem disso Serenator muitos tambeacutem o chamam de Frugiferum muitos o chamam de Protetor da cidade outros de Hospitaleiro de Amigaacutevel e por muitos nomes de todos os ofiacute-cios Eacute Guerreiro tanto Triunfador quanto Conquistador Vence-dor 29 (De Mundo XXXVII)

Chamaram-no Victor Inuictus Opitulus Inpulsor Stator Cen-tumpedam Supinalis Tigillus Almus Ruminus e outros nomes que eacute longo de se prosseguir 30 (De Ciuitate Dei VII 11)

O deus dos deuses eacute cantado tambeacutem nos antiquiacutessimos cantos dos Saacutelios [] Invocamos o deus como se fosse o pai dosdeuses 31 (Saturnais I 9 14 I 9 16)

A respeito dos nomes recebidos por Juacutepiter S Agostinho comenta que o deus era em si mesmo um conjunto de vaacuterios deuses devido aos muacuteltiplos poderes a ele associados

Essa infinidade de qualificativos fazia com que o deus certamente fosse lembrado constantemente por seus feitos grandiosos e por seus atributos que poderiam beneficiar aquele que os invocasse A atribuiccedilatildeo do epiacuteteto dependeria da situaccedilatildeo em que se encontrava a pessoa que o invocava Se se encontrasse em situaccedilatildeo adversa causada por forccedilas naturais invocaria certamente o Iupiter Fulgurator ou o Tonitrualis ou o Fulminator ou o Imbricitor ou o Serenator ou o Frugiferum se se encontrasse em situaccedilatildeo de guerra certamente invocaria o Iupiter Militaris Triumphator Propagator Tropaeophorus Victor Inuictus Opitulus Inpulsor e Stator

S Agostinho especifica os vaacuterios atributos de Juacutepiter gerados pelas vaacuterias accedilotildees capazes de serem realizadas pelo deus as quais estatildeo presentes em seus qualificativos criados pelos processos de derivaccedilatildeo e de composiccedilatildeo Fulgurator lt fulgor ldquorelacircmpagordquo Tonitrualis lt tonitrus ldquotrovatildeordquo Fulminator lt fulmen ldquoraiordquo Imbricitor lt imbricus ldquode chuva chuvosordquo Serenator lt serenatus ldquoque torna tranquilordquo Frugiferum lt frux mais fero ldquogerador de frutosrdquo

No entanto o destaque recebido por Juacutepiter em ser o primeiro entre os deuses imortais natildeo se daria no Periacuteodo Arcaico romano entre 753 aC e 509 aC mas durante o regime republicano porque Roma sofreria grande influecircncia da cultura grega No iniacutecio da Repuacuteblica romana o primeiro entre os deuses ainda era Jano conforme observa Macroacutebio

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Eacute importante observar que apesar de Macroacutebio ser um comentador tardio nascido no seacutec IV dC seus comentaacuterios sobre os costumes dos primeiros romanos satildeo bastante relevantes incluindo em seu texto uma construccedilatildeo tipicamente grega retirada de Hesiacuteodo πατήρ θεῶν correspondendo em latim a pater deorum Tal comparaccedilatildeo conduz a uma equiparaccedilatildeo de tratamento entre o pai dos deuses pater deorum dos latinos que durante todo o Periacuteodo Monaacuterquico e iniacutecio do Republicano foi Jano e o pai dos deuses πατήρ θεῶν dos gregos que sempre fora Zeus

Um pouco antes do iniacutecio da Repuacuteblica romana aleacutem de existir uma hierarquia entre os deuses no que tange ao grau de importacircncia existia tambeacutem uma hierarquia entre os sacerdotes responsaacuteveis pela realizaccedilatildeo dos rituais religiosos A relevacircncia sacerdotal apresentava-se respectivamente da seguinte maneira em primeiro lugar estava o Rex seguido do Flamen Dialis Flamen Martialis Flamen Quirinalis e por uacuteltimo o Pontifex Maximus Entre os deuses o lugar de maior relevacircncia era ocupado por Jano seguido por Juacutepiter em terceiro lugar estava Marte que era seguido por Quirino

A hierarquia divina foi alterada ainda na Roma arcaica no Periacuteodo Monaacuterquico eacutepoca em que houve a fusatildeo entre os Ramnes que ocupavam o monte Palatino e os Sabinos que ocupavam o monte Quirinal A uniatildeo entre esses dois povos conduziu agrave mistura dos ritos dos sacerdotes dos deuses poreacutem a superioridade dos Ramnes se sobressaiu impondo sua hierarquia sacerdotal conforme afirma T Mommsen (sd p35)

Jaacute esta primeira mistura das duas raccedilas parece ter tido uma in-fluecircncia capital sobre as transformaccedilotildees da religiatildeo dos Ramnes Marte e Quirino nos aparecem desde entatildeo como os represen-tantes poliacuteticos das duas raccedilas Juacutepiter como o protetor de toda a naccedilatildeo enfim Jano que era outrora o primeiro dos deuses para os Ramnes cai pouco a pouco no esquecimento 32

A mistura entre as duas raccedilas ocasionou mudanccedilas significativas sobretudo em relaccedilatildeo agrave religiatildeo dos Ramnes e em relaccedilatildeo agrave modificaccedilatildeo da hierarquia religiosa romana primitiva A partir desse momento Juacutepiter passaria a desempenhar um papel singular e a se sobressair sobre a figura de Jano Quais seriam as causas de tal mudanccedila hieraacuterquica divina Por que deste momento em diante Juacutepiter passaria a Pater deorum fato que lhe atribuiria tantos epiacutetetos

A causa de alteraccedilatildeo hieraacuterquica dos deuses nos dizeres de Santo Agostinho foi explicada por Varratildeo

Por ter nas matildeos as coisas uacuteltimas penes Iouem summa Juacutepiter passou a ser mais reverenciado do que Jano que tinha em matildeos as coisas primeiras penes Ianum

32 Deacutejagrave ce premier meacutelange des deux races parait avoir eu une influence capitale sur les transformations de la religion de Ramnes Mars et Quirinus nous apparaissent depuis lors comme les repreacutesentants politiques des deux races Jupiter comme le protecteur suprecircme de toute la nation enfin Janus qui eacutetait autrefois le premier des dieux pour les Ramnes tombe peu agrave peu dans lrsquooubli

33 Hoc nobis uir ille acutissimus doctissimusque respondeat ldquoQuoniam penes Ianum inquit sunt prima penes Iouem summardquo

Entatildeo aquele homem tatildeo douto e tatildeo astuto responda-nos ldquoporque nas matildeos de Jano diz ele estatildeo as primeiras coisas nas matildeos de Juacutepiter estatildeo as uacuteltimas 33

(De Ciuitate Dei VII 9)

sunt prima Natildeo se trata unicamente de uma relaccedilatildeo sequencial de fatos e referecircncias mas de uma representaccedilatildeo valorativa dos romanos primitivos que satildeo explicitados por Varratildeo A Juacutepiter associavam as soluccedilotildees as superaccedilotildees as vitoacuterias em vaacuterios aspectos da vida desse modo Juacutepiter passou a ser o primeiro entre os deuses romanos superando em todos os aspectos os atributos dos demais deuses Jano era entendido como a causa o que propiciava o iniacutecio da accedilatildeo poreacutem o desenlace das causas a superaccedilatildeo dos desafios iniciais era garantida por Juacutepiter fatos que lhe propiciaram os mais variados epiacutetetos

A observaccedilatildeo dos fatos relacionados a Religio romana e o acompanhamento de sua progressatildeo cronoloacutegica nos primeiros seacuteculos da formaccedilatildeo de Roma 753 aC - 509 aC satildeo bastante relevantes para que se possa compreender com mais coerecircncia as transformaccedilotildees por que passaram as praacuteticas religiosas desde a fundaccedilatildeo da cidade de Roma ateacute o iniacutecio do Periacuteodo Republicano

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Referecircncias

CARANDINI Andrea Roma Il Primo Giorno 2007

DUMEacuteZIL George La Religon Romaine Archaiumlque Paris Payot 2000

Mommsen Theodor Les Cultes Chez les Romains sd

VERNANT Jean-Pierre Mito e Sociedade na Greacutecia Antiga Traduccedilatildeo Myriam Cam-pello 4ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2010

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A Elegia de Androcircmaca e as formas do lamento na poesia

grega antiga

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Rafael Brunhara (UFRGS)

No proacutelogo da Androcircmaca de Euriacutepides a rainha lamenta o seu destino Escra-va de Neoptoacutelemo ela servia a contragosto o leito do filho de Aquiles e gerara dele um filho varatildeo uacuteltimo acalanto de seus males Mas a nova esposa de Neoptoacutelemo Hermiacute-one filha de Helena planeja mataacute-la Acusa-a de drogaacute-la secretamente para que natildeo tenha filhos e de persuadir Neoptoacutelemo a rejeitar seu leito A heroiacutena escravizada reve-la o seu plano agrave antiga serva agora colega na escravidatildeo esconder o filho e abrigar-se no santuaacuterio da Deusa Teacutetis Quando a serva parte Androcircmaca estende aos ceacuteus suas lamuacuterias e elenca os motivos para seu pranto a terra natal perdida o marido morto a proacutepria escravidatildeo

A trageacutedia grega em suas partes natildeo-corais usa como praxe um metro espe-ciacutefico apropriado ao diaacutelogo o triacutemetro jacircmbico Sozinha em cena abandonada pela serva eacute nele que Androcircmaca enuncia seus males (vv91-102)

35 χώρει νυν ἡμεῖς δrsquo οἷσπερ ἐγκείμεσθrsquo ἀεὶθρήνοισι καὶ γόοισι καὶ δακρύμασι πρὸς αἰθέρrsquo ἐκτενοῦμεν ἐμπέφυκε γὰργυναιξὶ τέρψις τῶν παρεστώτων κακῶν ἀνὰ στόμrsquo αἰεὶ καὶ διὰ γλώσσης ἔχεινπάρεστι δrsquo οὐχ ἓν ἀλλὰ πολλά μοι στένειν πόλιν πατρώιαν τὸν θανόντα θrsquo Ἕκτορα στερρόν τε τὸν ἐμὸν δαίμονrsquo ὧι συνεζύγηνδούλειον ἦμαρ ἐσπεσοῦσrsquo ἀναξίως χρὴ δrsquo οὔποτrsquo εἰπεῖν οὐδένrsquo ὄλβιον βροτῶνπρὶν ἂν θανόντος τὴν τελευταίαν ἴδηιςὅπως περάσας ἡμέραν ἥξει κάτω

Pois vaacute Mas eu estenderei ao firmamentoos trenos os lamentos [gooi] e as laacutegrimas que para sempre me cercam Estaacute na naturezadas mulheres o prazer de os males presentester na boca sempre e na liacutengua E natildeo me haacute soacute um mas muitos a gemer a poacutelis paterna Heitor morto e o riacutegido destino ao qual me atrelo caiacuteda sem merecer no dia da escravidatildeo Dos mortais nenhum deves dizer que eacute felizantes de veres depois de morto como passou pelo dia final e desceu aos iacutenferos 35

Pois vaacute Mas eu estenderei ao firmamentoos trenos os lamentos [gooi] e as laacutegrimas que para sempre me cercam Estaacute na naturezadas mulheres o prazer de os males presentes

O que vem depois destes versos eacute notaacutevel e torna a Androcircmaca uacutenica entre as trageacutedias que nos restaram um exemplo do virtuosismo de Euriacutepides Abruptamente os versos ditos por Androcircmaca deixam de ser os triacutemetros jacircmbicos proacuteprios dos diaacutelo-gos traacutegicos e mudam para um metro que os atenienses do seacuteculo V aC normalmente atribuiacuteam ao lamento o diacutestico elegiacuteaco (vv103-116) Eacute certo que a transiccedilatildeo entre os

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ter na boca sempre e na liacutengua E natildeo me haacute soacute um mas muitos a gemer a poacutelis paterna Heitor morto e o riacutegido destino ao qual me atrelo caiacuteda sem merecer no dia da escravidatildeo Dos mortais nenhum deves dizer que eacute felizantes de veres depois de morto como passou pelo dia final e desceu aos iacutenferos 36

36 Ἰλίωι αἰπεινᾶι Πάρις οὐ γάμον ἀλλά τινrsquo ἄτανἀγάγετrsquo εὐναίαν ἐς θαλάμους Ἑλένανἇς ἕνεκrsquo ὦ Τροία δορὶ καὶ πυρὶ δηϊάλωτονεἷλέ σrsquo ὁ χιλιόναυς Ἑλλάδος ὠκὺς Ἄρηςκαὶ τὸν ἐμὸν μελέας πόσιν Ἕκτορα τὸν περὶ τείχηεἵλκυσε διφρεύων παῖς ἁλίας Θέτιδοςαὐτὰ δrsquo ἐκ θαλάμων ἀγόμαν ἐπὶ θῖνα θαλάσσαςδουλοσύναν στυγερὰν ἀμφιβαλοῦσα κάραι πολλὰ δὲ δάκρυά μοι κατέβα χροός ἁνίκrsquo ἔλειπονἄστυ τε καὶ θαλάμους καὶ πόσιν ἐν κονίαιςὤμοι ἐγὼ μελέα τί μrsquo ἐχρῆν ἔτι φέγγος ὁρᾶσθαιἙρμιόνας δούλαν ἆς ὕπο τειρομέναπρὸς τόδrsquo ἄγαλμα θεᾶς ἱκέτις περὶ χεῖρε βαλοῦσατάκομαι ὡς πετρίνα πιδακόεσσα λιβάς

versos tinha mais impacto em sua performance original pois talvez viessem acompa-nhados pelo som do aulo antiga flauta dupla com uma melodia repetida e invariaacutevel que juntamente com o metro ajudava a desencadear uma percepccedilatildeo outra para a cena e para a fala da personagem

As regras de decoro poeacutetico tambeacutem tinham um papel importante a cada me-tro forma ou gecircnero literaacuterio correspondia uma forma literaacuteria especiacutefica Alterar os versos abruptamente poderia ser um sinal que Euriacutepides dava ao puacuteblico de que es-taria se vinculando a uma nova circunstacircncia que demandava seus proacuteprios procedi-mentos formais para que fosse reconhecida colocando em operaccedilatildeo um coacutedigo sutil compartilhado por autor e audiecircncia

A traduccedilatildeo antes preocupada com o rigor semacircntico e a precisatildeo conceitual e longe de qualquer possibilidade de performance empalidece estas caracteriacutesticas mas nos ajuda a pensar as representaccedilotildees do feminino e o seu estreito viacutenculo com a tradi-ccedilatildeo do lamento na Greacutecia Antiga Logo no iniacutecio de sua primeira fala Androcircmaca rela-ciona trecircs palavras importantes ndash ldquolamentosrdquo (a palavra grega γόοισι gooisi) ldquotrenosrdquo (do grego θρήνοισι threnoisi) e laacutegrimas (δακρύμασι dakrumasi) Cito novamente o trecho

ldquoPois vaacute Mas eu estenderei ao firmamento os trenos os la-mentos e as laacutegrimas que para sempre me cercam ()rdquo

Na trageacutedia grega gooi e threnoi eram muitas vezes pensados como sinocircni-mos natildeo sendo possiacutevel verificar um sentido particular que os distinguisse Um exem-plo eacute a seguinte passagem de Persas de Eacutesquilo trageacutedia mais antiga que nos chegou mas que jaacute retrata o pendor deste gecircnero em usar os termos de modo intercambiaacutevel atenuando seus contrastes (vv684-688) Satildeo as palavras do fantasma do rei Dario ao seu povo

37 λεύσσων δrsquo ἄκοιτιν τὴν ἐμὴν τάφου πέλαςταρβῶ χοὰς δὲ πρευμενὴς ἐδεξάμηνὑμεῖς δὲ θρηνεῖτrsquo ἐγγὺς ἑστῶτες τάφουκαὶ ψυχαγωγοῖς ὀρθιάζοντες γόοιςοἰκτρῶς καλεῖσθέ μrsquo ()

Vendo minha consorte junto agrave sepultura eu temo mas propiacutecio libaccedilotildees aceito E voacutes carpis um treno [threneitrsquo] junto agrave sepultura E elevando lamentos [goois] que conjuram mortos em pranto me chamais () 37

Apesar de seu uso difuso na trageacutedia goos e threnos conservaram certa es-pecificidade teacutecnica sendo utilizados para designar e classificar dois tipos de canccedilatildeo praticados na Greacutecia Arcaica nos quais o proacuteprio gestual do pranto (dakruon) e a ma-terialidade do lamento eram incorporados Analisemos agora cada um deles

O Goos Margaret Alexiou (2002 p13) em estudo seminal sustenta que o lamento eacute

um canto responsoacuterio isto eacute um canto em que se alternavam vozes agrave perda de algueacutem querido Neste canto segundo a estudiosa ldquodois grupos de pessoas enlutadas estra-nhos e mulheres proacuteximas cantavam cada qual um verso e eram seguidos por um re-fratildeo em uniacutessonordquo Este lamento era assim dividido em duas categorias o do primeiro grupo era chamada threnos canccedilatildeo elaborada e profissional que honrava e exaltava o morto e a do segundo grupo era o goos canto improvisado entoado por natildeo-profis-sionais ndash parentes e pessoas proacuteximas (philoi) ao morto geralmente mulheres

Em Homero a palavra goos aparece de acordo com as definiccedilotildees aqui apresen-tadas Sua primeira ocorrecircncia relevante eacute no Canto 6 o episoacutedio conhecido como ldquoA Homilia de Heitor e Androcircmacardquo Este eacute um episoacutedio muito curioso da Iliacuteada repleto de paradoxos Nele Homero parece explorar os lugares e fronteiras do masculino e o feminino fazendo por exemplo com que Heitor adentre o espaccedilo domeacutestico ndash o mun-do dentro das muralhas de Troia esfera proacutepria de Androcircmaca e de outras mulheres ndash enquanto faz Androcircmaca transitar brevemente pelo mundo de Heitor ndash o espaccedilo da guerra das tomadas de decisatildeo da vista do campo de batalha para aleacutem das muralhas Em certo momento do poema (6433-439) Androcircmaca daraacute ateacute mesmo conselho mi-litar a Heitor um movimento tatildeo inusitado para mulheres que levou o editor alexan-drino Aristarco da Samotraacutecia (seacutec I aC) a suspeitar da autenticidade da passagem O helenista Christos Tsagalis (2008) levanta a interessante poreacutem indemonstraacutevel hipoacutetese de que ao caracterizar a esposa de Heitor o poema se serviria de mitos mais antigos sobre ela que a representavam como Mecircnade ou mulher guerreira talvez uma amazona seguindo um expediente comum no poema eacutepico de aludir e incorporar ver-sotildees variantes

Tambeacutem eacute o momento em que Homero explora pela primeira vez as contradi-ccedilotildees e a inevitabilidade do destino de Heitor Com seu filho nos braccedilos Heitor deseja que Astiacuteanax seja tatildeo importante quanto ele no futuro Mas natildeo haacute futuro para Troia pois a morte de Heitor e portanto a queda da cidade eacute certa fadado que estaacute a con-frontar o mais implacaacutevel guerreiro grego Desse modo quando se despede de Androcirc-

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maca sabemos que ele natildeo voltaraacute mais E Homero representa isso fazendo Androcircma-ca entoar um canto que atende todas as circunstacircncias de um lamento fuacutenebre goos Outro paradoxo deste episoacutedio entatildeo ocorre Androcircmaca e as servas da casa choram a morte de Heitor ainda vivo (vv497-502)

E logo depois chegou ao palaacutecio bem habitaacutevelDe Heitor matador de guerreiros e encontrou laacute muitas escra-vas em todas elas incitou os lamentos Elas lamentavam Heitor ainda vivo em sua casa pois sabiam que ele natildeo voltaria mais da guerra natildeo escaparia da fuacuteria e das matildeos dos Aqueus 38

A dor dos Troianos natildeo me preocuparaacute tanto ndash nem a da proacutepria Heacutecuba ou do soberano Priacuteamo nem a dos meus irmatildeos numerosos e nobres que na poeira sucumbiratildeo por matildeos inimigas ndash quanto a tua quando Aqueus em roupas de bronze te levarem chorando roubando-te o dia da liberdade 39

38 αἶψα δrsquo ἔπειθrsquo ἵκανε δόμους εὖ ναιετάονταςἝκτορος ἀνδροφόνοιο κιχήσατο δrsquo ἔνδοθι πολλὰςἀμφιπόλους τῆισιν δὲ γόον πάσηισιν ἐνῶρσεναἳ μὲν ἔτι ζωὸν γόον Ἕκτορα ὧι ἐνὶ οἴκωιοὐ γάρ μιν ἔτrsquo ἔφαντο ὑπότροπον ἐκ πολέμοιοἵξεσθαι προφυγόντα μένος καὶ χεῖρας Ἀχαιῶν 39 ἀλλrsquo οὔ μοι Τρώων τόσσον μέλει ἄλγος ὀπίσσωοὔτrsquo αὐτῆς Ἑκάβης οὔτε Πριάμοιο ἄνακτοςοὔτε κασιγνήτων οἵ κεν πολέες τε καὶ ἐσθλοὶἐν κονίῃσι πέσοιεν ὑπrsquo ἀνδράσι δυσμενέεσσινὅσσον σεῦ ὅτε κέν τις Ἀχαιῶν χαλκοχιτώνωνδακρυόεσσαν ἄγηται ἐλεύθερον ἦμαρ ἀπούρας

Nestes versos breves o poeta da Iliacuteada descreve algumas das principais caracte-riacutesticas do canto lamentoso goos quem ldquopuxardquo o canto (em grego eacute enorse ldquoimpeliurdquo) e passa a regecirc-lo eacute a pessoa mais afetada pela perda geralmente (mas nem sempre) uma mulher Homero prepara a audiecircncia para que veja desde o iniacutecio do canto que esta pessoa para Heitor eacute Androcircmaca atraveacutes de uma convenccedilatildeo da poesia oral cunhada pela primeira vez pelo estudioso JT Kakridis chamada ldquotoacutepica da escala ascendente de afeiccedilotildeesrdquo (Arthur 1981 p29) Nessa toacutepica o heroacutei eacute mostrado se encontrando ou se referindo a companheiros parentes ou pessoas proacuteximas em uma sequecircncia crescente que indica a elevaccedilatildeo do amor que sente e recebe dessas pessoas e culmina no amor conjugal como superior agravequele dos amigos e parentes Condizente agrave essa toacutepica Heitor diraacute a Androcircmaca (vv 450-455)

Assim a ordem dos encontros de Heitor ao longo deste canto ndash primeiro as esposas e filhos dos troianos (6237-250) depois Heacutecuba (6251-285) Helena e Paacuteris (6313-368) e por fim Androcircmaca (6394-496) ndash cumpre a funccedilatildeo de realccedilar a honra e a afeiccedilatildeo que ele devota agrave esposa mais do que aos outros troianos e o quanto a sua morte seraacute mais significativa para ela do que para qualquer outro

Homero natildeo faz isso apenas atraveacutes desta convenccedilatildeo poeacutetica mas tambeacutem tomando emprestado caracteriacutesticas tradicionais do lamento fuacutenebre feminino Ao re-presentar neste canto um predomiacutenio de discursos femininos (das esposas de Troia a

Vamos Depois nos acertamos caso Zeus afinal conceda que aos celestiais Deuses sempre vivos fixemos a taccedila da libertaccedilatildeo em nossos salotildees quando de Troia expulsarmos Aqueus de belas grevas 40

Quando retomou o ar e no imo refez-se o coraccedilatildeo com renovados lamentos (goosa) em meio agraves troianas disse ldquoHeitor sou infeliz Nascemos para um soacute destinonoacutes dois tu em Troia na casa de Priacuteamo e eu em Tebas ao peacute do Placo frondoso na casa de Eeacutecion que me criou desde pequenao desfortunado agrave mal-afortunada Ah se natildeo tivesse me gerado Agora ao palaacutecio de Hades nos recessos profundos da terratu vais e em odiosa dor me abandonas

40 ἀλλrsquo ἴομεν τὰ δrsquo ὄπισθεν ἀρεσσόμεθrsquo αἴ κέ ποθι Ζεὺςδώῃ ἐπουρανίοισι θεοῖς αἰειγενέτῃσικρητῆρα στήσασθαι ἐλεύθερον ἐν μεγάροισινἐκ Τροίης ἐλάσαντας ἐϋκνήμιδας Ἀχαιούς

Heacutecuba e Helena) que culminaratildeo com Androcircmaca puxando o lamento entre as servas evidencia-se que o goos ainda que seu conteuacutedo central sejam os sentimentos de dor daquele que inicia o canto eacute sobretudo uma experiecircncia comunitaacuteria na qual a dor de quem canta se transfere para a comunidade representada (quase sempre mas natildeo necessariamente) pelas mulheres que a compotildeem

Essa sucessatildeo de encontros do Canto VI entatildeo tambeacutem nos prepara para en-tendermos as palavras de Androcircmaca como um goos (= lamento fuacutenebre feminino) para seu marido em vida o que intensifica seu efeito Alexiou (2002 p4-5) observan-do que o lamento natildeo eacute mera exposiccedilatildeo da dor mas eacute cuidadosamente regrado por ritual diz que Androcircmaca eacute desatenta ao entoar um lamento fuacutenebre com o marido ainda vivo No entanto aiacute que se faz importante notar que natildeo se trata de um teste-munho real de uma praacutetica mas de um artifiacutecio poeacutetico que se vale da estrutura dos ritos de lamento para potencializar a cena seguinte que fecha o Canto 6 e encarece o paacutethos traacutegico de Heitor A cena mostra o heroacutei troiano dirigindo-se com o irmatildeo Paacuteris agrave guerra e rogando aos Deuses por vitoacuteria sobre os gregos mas sabemos por causa de toda a elaboraccedilatildeo do canto como um lamento fuacutenebre o quanto esse pedido eacute vatildeo uma das muitas ironias traacutegicas que a Iliacuteada opera (6 527-530)

A experiecircncia comunitaacuteria do lamento se expressa no goos como um canto responsoacuterio ao lamento da cantora principal responde um coro de mulheres lamentando junto Vamos recorrer de novo agraves falas de Androcircmaca na Iliacuteada para ver outras pistas disso Aleacutem do Canto 6 Androcircmaca conduz mais dois cantos lamentosos um no Canto 22 e outro no Canto 24

No Canto 22 Androcircmaca primeiro lamenta sozinha ao ver o cadaacutever de seu marido ser arrastado pelo carro de Aquiles em palavras que o poeta denomina expli-citamente goos (vv477-515)

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viuacuteva no palaacutecio O filho que geramos eu e tu desafortunados eacute soacute um bebecirc E para elenatildeo seraacutes um bem Heitor pois morreste nem ele a ti Mesmo se escapar da luta multilaacutecrime com aqueusele sempre teraacute trabalho e anguacutestias no futuropois outros homens tomaratildeo suas lavourasO dia da orfandade tira da crianccedila os amigos sempre acabrunhado com laacutegrimas no rostoem necessidade aborda os amigos do paide um puxa o manto de outro a tuacutenica Com pena um lhe daacute seu copo brevemente ela molha os laacutebios o palato natildeo molha mas outro com pai e matildee vivos do festim o expulsacom as matildeos golpeando e com censuras maltratandolsquoVai-te daqui teu pai natildeo partilha conosco do festimrsquo Em laacutegrimas volta agrave matildee viuacuteva o menino Astiacuteanax que antes nos joelhos de seu pai comia soacute o tutano e a gordura pingue de ovelhase quando o sono o pegasse e parasse as criancices dormia no leito nos braccedilos da ama na cama macia o peito repleto de juacutebilo Agora muito sofreraacute pois perdeu o pai amado Astiacuteanax Senhor da Cidade como apelidam troianos pois soacute tu defendias seus portotildees e altas muralhasAgora junto agraves naus recurvas longe dos paisvermes retorcidos roeratildeo depois que os catildees se saciaremteu corpo nu Tuas vestes jazem no palaacutecio finas e elegantes feitas por matildeos de mulheres Eu antes queimarei todas no fogo ardente em nada te serviratildeo pois com elas natildeo jazeraacutesMas seratildeo tua gloacuteria junto a troianos e troianasrdquo Assim falou em pranto em seguida as mulheres punham-se a lamentar 41

41 Ἕκτορ ἐγὼ δύστηνος ἰῇ ἄρα γεινόμεθrsquo αἴσῃἀμφότεροι σὺ μὲν ἐν Τροίῃ Πριάμου κατὰ δῶμααὐτὰρ ἐγὼ Θήβῃσιν ὑπὸ Πλάκῳ ὑληέσσῃἐν δόμῳ Ἠετίωνος ὅ μrsquo ἔτρεφε τυτθὸν ἐοῦσανδύσμορος αἰνόμορον ὡς μὴ ὤφελλε τεκέσθαινῦν δὲ σὺ μὲν Ἀΐδαο δόμους ὑπὸ κεύθεσι γαίηςἔρχεαι αὐτὰρ ἐμὲ στυγερῷ ἐνὶ πένθεϊ λείπειςχήρην ἐν μεγάροισι πάϊς δrsquo ἔτι νήπιος αὔτωςὃν τέκομεν σύ τrsquo ἐγώ τε δυσάμμοροι οὔτε σὺ τούτῳἔσσεαι Ἕκτορ ὄνειαρ ἐπεὶ θάνες οὔτε σοὶ οὗτοςἤν περ γὰρ πόλεμόν γε φύγῃ πολύδακρυν Ἀχαιῶναἰεί τοι τούτῳ γε πόνος καὶ κήδεrsquo ὀπίσσωἔσσοντrsquo ἄλλοι γάρ οἱ ἀπουρίσσουσιν ἀρούραςἦμαρ δrsquo ὀρφανικὸν παναφήλικα παῖδα τίθησι πάντα δrsquo ὑπεμνήμυκε δεδάκρυνται δὲ παρειαίδευόμενος δέ τrsquo ἄνεισι πάϊς ἐς πατρὸς ἑταίρουςἄλλον μὲν χλαίνης ἐρύων ἄλλον δὲ χιτῶνοςτῶν δrsquo ἐλεησάντων κοτύλην τις τυτθὸν ἐπέσχεχείλεα μέν τrsquo ἐδίηνrsquo ὑπερῴην δrsquo οὐκ ἐδίηνετὸν δὲ καὶ ἀμφιθαλὴς ἐκ δαιτύος ἐστυφέλιξε χερσὶν πεπλήγων καὶ ὀνειδείοισιν ἐνίσσωνἔρρrsquo οὕτως οὐ σός γε πατὴρ μεταδαίνυται ἡμῖνδακρυόεις δέ τrsquo ἄνεισι πάϊς ἐς μητέρα χήρην Ἀστυάναξ ὃς πρὶν μὲν ἑοῦ ἐπὶ γούνασι πατρὸςμυελὸν οἶον ἔδεσκε καὶ οἰῶν πίονα δημόν αὐτὰρ ὅθrsquo ὕπνος ἕλοι παύσαιτό τε νηπιαχεύων εὕδεσκrsquo ἐν λέκτροισιν ἐν ἀγκαλίδεσσι τιθήνηςεὐνῇ ἔνι μαλακῇ θαλέων ἐμπλησάμενος κῆρνῦν δrsquo ἂν πολλὰ πάθῃσι φίλου ἀπὸ πατρὸς ἁμαρτὼν Ἀστυάναξ ὃν Τρῶες ἐπίκλησιν καλέουσινοἶος γάρ σφιν ἔρυσο πύλας καὶ τείχεα μακράνῦν δὲ σὲ μὲν παρὰ νηυσὶ κορωνίσι νόσφι τοκήωναἰόλαι εὐλαὶ ἔδονται ἐπεί κε κύνες κορέσωνταιγυμνόν ἀτάρ τοι εἵματrsquo ἐνὶ μεγάροισι κέονταιλεπτά τε καὶ χαρίεντα τετυγμένα χερσὶ γυναικῶν ἀλλrsquo ἤτοι τάδε πάντα καταφλέξω πυρὶ κηλέῳοὐδὲν σοί γrsquo ὄφελος ἐπεὶ οὐκ ἐγκείσεαι αὐτοῖςἀλλὰ πρὸς Τρώων καὶ Τρωϊάδων κλέος εἶναιὫς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες

ldquoMarido da existecircncia partiste jovem e viuacuteva meabandonas no palaacutecio O filho que geramos eu e tu desafortunados eacute soacute um bebecirc Penso que ele natildeo chegaraacute agrave juventude Antes a poacutelis de cima a baixoarrasaratildeo porque tu seu vigilante morreste tu que aprotegias e mantinhas devotadas esposas e filhos pequenosseguros Logo elas seratildeo levadas em naus cocircncavas tambeacutem eu com elas E tu meu filho a mim mesmaseguiraacutes laacute onde aviltantes trabalhos faraacutes labutando ante um duro senhor ou um aqueute jogaraacute ao pegaacute-lo pelo braccedilo da torre ndash triste fim ndash um com raiva de quem Heitor matou o irmatildeo o pai ou o filho jaacute que muito muitos aqueus pelas matildeos de Heitor morderam o solo imensoDoce natildeo era teu pai no triste preacutelioPor isso o povo chora pela cidade e inefaacutevel lamento (goon) e anguacutestia infligiste aos pais Heitor mas em mim restaratildeo as mais tristes doresPois quando morrias tu natildeo me deste as tuas matildeosnatildeo me disseste uma palavra firme que para sempre eu guardaria dia e noite vertendo laacutegrimasrdquo Assim falou em pranto em seguida as mulheres punham-se a lamentar 42

42 ἆνερ ἀπrsquo αἰῶνος νέος ὤλεο κὰδ δέ με χήρηνλείπεις ἐν μεγάροισι πάϊς δrsquo ἔτι νήπιος αὔτωςὃν τέκομεν σύ τrsquo ἐγώ τε δυσάμμοροι οὐδέ μιν οἴωἥβην ἵξεσθαι πρὶν γὰρ πόλις ἧδε κατrsquo ἄκρηςπέρσεται ἦ γὰρ ὄλωλας ἐπίσκοπος ὅς τέ μιν αὐτὴνῥύσκευ ἔχες δrsquo ἀλόχους κεδνὰς καὶ νήπια τέκνααἳ δή τοι τάχα νηυσὶν ὀχήσονται γλαφυρῇσικαὶ μὲν ἐγὼ μετὰ τῇσι σὺ δrsquo αὖ τέκος ἢ ἐμοὶ αὐτῇἕψεαι ἔνθά κεν ἔργα ἀεικέα ἐργάζοιοἀθλεύων πρὸ ἄνακτος ἀμειλίχου ἤ τις Ἀχαιῶνῥίψει χειρὸς ἑλὼν ἀπὸ πύργου λυγρὸν ὄλεθρον χωόμενος ᾧ δή που ἀδελφεὸν ἔκτανεν Ἕκτωρἢ πατέρrsquo ἠὲ καὶ υἱόν ἐπεὶ μάλα πολλοὶ ἈχαιῶνἝκτορος ἐν παλάμῃσιν ὀδὰξ ἕλον ἄσπετον οὖδαςοὐ γὰρ μείλιχος ἔσκε πατὴρ τεὸς ἐν δαῒ λυγρῇτὼ καί μιν λαοὶ μὲν ὀδύρονται κατὰ ἄστυ ἀρητὸν δὲ τοκεῦσι γόον καὶ πένθος ἔθηκαςἝκτορ ἐμοὶ δὲ μάλιστα λελείψεται ἄλγεα λυγράοὐ γάρ μοι θνῄσκων λεχέων ἐκ χεῖρας ὄρεξαςοὐδέ τί μοι εἶπες πυκινὸν ἔπος οὗ τέ κεν αἰεὶμεμνῄμην νύκτάς τε καὶ ἤματα δάκρυ χέουσα Ὣς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες43 ὥς ἔφατο κλαίουσrsquo ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες

No Canto 24 por sua vez assistimos ao funeral de Heitor e aos discursos de trecircs mulheres Androcircmaca Heacutecuba e Helena Sendo Androcircmaca a primeira a falar Homero a apresenta ldquocomeccedilando o lamentordquo (erkhe gooio ἦρχε vv725-746)

Nessas duas ocasiotildees Homero usa um verso cristalizado uma foacutermula que mostra como o lamento de Androcircmaca eacute formalmente respondido pelas mulheres da cidade A foacutermula aparece em ambas as passagens citadas os versos 515 do Canto 22 e no verso 746 do Canto 24 ldquoassim [Androcircmaca] falou em pranto em seguida as mu-lheres punham-se a lamentarrdquo

Na Androcircmaca de Euriacutepides o aspecto responsoacuterio do goos parece aludir-se nos versos 93-95 entendidos como uma caracteriacutestica de todo o gecircnero feminino

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ldquoEstaacute na natureza das mulheres o prazer de os males presentes ter na boca sempre e na liacutenguardquo De fato o coro composto por mulheres da Ftia entra na peccedila logo depois dos diacutesticos elegiacuteacos de Androcircmaca e acudiraacute a rainha em resposta

Se na Iliacuteada natildeo podemos ver realmente como as mulheres respondem aos prantos de Androcircmaca na peccedila o proacuteprio coro a partir do verso 117 cumpriraacute este papel respondendo ao lamento da rainha troiana

O Threnos

Agora falemos do termo threnos (θρῆνος) Sabemos que este termo seraacute con-sagrado como um gecircnero poeacutetico especiacutefico do lamento praticado por Simocircnides e Piacutendaro e reconhecido por Platatildeo em suas Leis como uma das formas (eideacute) da poesia meacutelica (700 a-b3)

Naquela eacutepoca a arte das Musas estava dividida entre noacutes se-gundo gecircneros (eide είδή) e estilos (skhemata σχήματα) um gecircnero de canto as preces aos deuses era chamada ldquohinordquo Ha-via um outro gecircnero de canto oposto a este ndash pode-se melhor chamaacute-los ldquotrenosrdquo Outro era o Peatilde e outro ndash creio que nascido de Dioniso ndash o ldquoditirambordquo 44

O treno difere do epiceacutedio [epikeacutedion] porque o epiceacutedio se diz a partir do proacuteprio kecircdos [luto funeralκίδος] com o corpo ain-da jazendo exposto enquanto o treno natildeo se circunscreve a um periacuteodo de tempo45

44 Τοῖς περὶ τὴν μουσικὴν πρῶτον τὴν τότε ἵνα ἐξ ἀρχῆς διέλθωμεν τὴν τοῦ ἐλευθέρου λίαν ἐπίδοσιν βίου διῃρημένη γὰρ δὴ τότε ἦν ἡμῖν ἡ μουσικὴ κατὰ εἴδη τε ἑαυτῆς ἄττα καὶ σχήματα καί τι ἦν εἶδος ᾠδῆς εὐχαὶ πρὸς θεούς ὄνομα δὲ ὕμνοι ἐπεκαλοῦντο καὶ τούτῳ δὴ τὸ ἐναντίον ἦν ᾠδῆς ἕτερον εἶδος ndash θρήνους δέ τις ἂν αὐτοὺς μάλιστα ἐκάλεσεν ndash καὶ παίωνες ἕτερον καὶ ἄλλο Διονύσου γένεσις οἶμαι διθύραμβος λεγόμενος45 Διαφέρει δὲ τοῦ ἐπικηδείου ὁ θρῆνος ὅτι τὸ μὲν ἐπικήδειον παρrsquo αὐτὸ τὸ κῆδος ἔτι τοῦ σώματος προκειμένου λέγεται ὁ δὲ θρῆνος οὐ περιγράφεται χρόνῳ

O termo tambeacutem eacute conservado na literatura da Antiguidade Tardia Proclo por exemplo quando conceituou os diversos gecircneros literaacuterios em sua Crestomatia possivelmente no seacutec V dC usa a denominaccedilatildeo threnos para um tipo de meacutelica des-tinada aos homens (32-35) que se distinguia de outros gecircneros de lamento por sua performance natildeo limitada a uma ocasiatildeo especiacutefica (67)Li

Mas as suas ocorrecircncias arcaicas satildeo mais escassas ocorre apenas uma vez na Iliacuteada e na Odisseia Em ambas as passagens reforccedila a ideia de que se tratava de um canto coral profissionalizado e eminentemente masculino distinto do goos entoado pelas pessoas queridas ao morto A primeira passagem estaacute no Canto 24 uacuteltimo da Iliacuteada que retrata o funeral de Heitor A cerimocircnia comeccedila com o corpo sendo colocado em um leito e com um canto que imediatamente se segue (vv720-723)

em leitos perfurados o puseram e ao lado assentaram os aedosregentes dos trenos Uma gemente canccedilatildeo o treno (threnon) eles entoavam em seguida as mulheres punham-se a lamentarE entre elas Androcircmaca de niacuteveos braccedilos comeccedilava o lamento (gooio) 46

Agrave volta estavam as meninas do Velho do Marcom pena gemendo e vestiram-te roupas imortais Entatildeo as nove Musas todas alternando-se com bela voz entoavam o treno (threneon) Natildeo verias ali nenhum argivosem chorar tatildeo forte comovia a clara Musa 47

ldquopois natildeo eacute correto na casa dos servos das Musashaver o tre-noisso natildeo nos seria adequadordquo 48

46 τρητοῖς ἐν λεχέεσσι θέσαν παρὰ δrsquo εἷσαν ἀοιδοὺςθρήνων ἐξάρχους οἵ τε στονόεσσαν ἀοιδὴνοἳ μὲν ἄρrsquo ἐθρήνεον ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκεςτῇσιν δrsquo Ἀνδρομάχη λευκώλενος ἦρχε γόοιοἐκάλεσεν ndash καὶ παίωνες ἕτερον καὶ ἄλλο Διονύσου γένεσις οἶμαι διθύραμβος λεγόμενος47 ἀμφὶ δέ σrsquo ἔστησαν κοῦραι ἁλίοιο γέροντοςοἴκτρrsquo ὀλοφυρόμεναι περὶ δrsquo ἄμβροτα εἵματα ἕσσανΜοῦσαι δrsquo ἐννέα πᾶσαι ἀμειβόμεναι ὀπὶ καλῇθρήνεον ἔνθα κεν οὔ τινrsquo ἀδάκρυτόν γrsquo ἐνόησαςἈργείων τοῖον γὰρ ὑπώρορε Μοῦσα λίγεια48 οὐ γὰρ θέμις ἐν μοισοπόλων daggerοἰκίαι θρῆνον ἔμμενrsquo οὔ κrsquo ἄμμι τάδε πρέποι

A ocorrecircncia do termo na Odisseia estaacute no Canto 24 na narraccedilatildeo dos ritos fuacutenebres de Aquiles (vv58-62)Lii

Algumas palavras empregadas nesses trechos parecem indicar o threnos como um canto profissional Na Iliacuteada os liacutederes do canto satildeo homens aedos (ἀοιδοὺς aoi-dous 24720) que regem (ἐξάρχους eksarkhous 24721) os cantos A Odisseia por sua vez nos mostra uma cerimocircnia sobre-humana como tudo que diz respeito a Aquiles em vez de mulheres da cidade quem chora o goos satildeo as ninfas do oceano e os ldquocan-tores profissionaisrdquo que entoam o threnos satildeo aqui as proacuteprias Musas

Deve-se notar mesmo assim que a distinccedilatildeo entre masculino e feminino tatildeo marcada na Iliacuteada (mas natildeo na Odisseia) pode ser enganosa fruto de nossa parca evidecircncia pois jaacute na literatura arcaica verifica-se certa sobreposiccedilatildeo Em um de seus fragmentos por exemplo Safo utiliza a palavra treno proibindo seu uso na ldquoCasa das Musasrdquo (fr150) Liii

A proibiccedilatildeo no poema de Safo sugere presumivelmente que o treno era pra-ticado e no caso entoado por coros femininos Contudo embora pairem incertezas o termo indicava para aleacutem de seu uso corriqueiro um gecircnero poeacutetico complexo vin-culado a um tom mais reflexivo e abrangente que se opotildee ao lamento do goos e que sobretudo Euriacutepides parecia atento agraves suas distinccedilotildees na peccedila

Feitas estas proposiccedilotildees ateacute agora natildeo entramos nas questotildees formais do la-

mento de Androcircmaca na peccedila homocircnima Sabemos que o lamento eacute um canto respon-

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soacuterio e que haacute dois tipos o threnos lamento profissional masculino e o goos lamen-to amador predominantemente feminino Androcircmaca menciona ambos dizendo que iraacute entoaacute-los aparentemente natildeo colocando uma diferenccedila entre um e outro Mas o novo canto que comeccedila abruptamente (porque em outro metro) ldquoAgrave iacutengreme Iacutelion Paacuteris trouxe natildeo nuacutepcias mas ruiacutenardquo (v103) introduz na peccedila o diacutestico elegiacuteaco e coloca o discurso de Androcircmaca ainda em uma terceira tradiccedilatildeo poeacutetica a da elegia

Assim trecircs formas tradicionalmente associadas ao lamento confluem nesta fala threnos goos e elegia O motivo desta confluecircncia sugere Gregory Nagy em seu texto ldquoAncient Greek Elegyrdquo (2010) se deve agrave circunstacircncia de performance Se o thre-nos eacute masculino e profissional e o goos eacute feminino e amador isso pouco importa no contexto do teatro de Dioniso uma vez que 1-) todos os atores eram do sexo mascu-lino Se eacute notoacuterio que os melhores atores representavam as melhores falas dos prin-cipais personagens pode-se supor tambeacutem que o ator representando Androcircmaca era um virtuoso profissional haacutebil em sua arte capaz de operar uma transiccedilatildeo sutil entre os diferentes registros e tradiccedilotildees poeacuteticas de lamento e 2-) o coro masculino com-posto por cidadatildeos nem sempre profissionais representa aqui mulheres da Ftia que respondem ao lamento da senhora troiana Nesses termos a fala de Androcircmaca eacute a dramatizaccedilatildeo de um goos que se aproxima no entanto de um threnos uma vez que entoado por um cantor profissional que eacute seguido por toda a comunidade

Eacute a trageacutedia em pleno funcionamento da mimese imitando e incorporando em sua performance outros gecircneros A trageacutedia se apropria do tiacutepico lamento feminino e o representa por um coro masculino interpretando mulheres Platatildeo via com certo desconforto esta possibilidade pois poderia fazer com que homens passassem tambeacutem a agir falar e pensar como mulheres Ele trata deste tipo de representaccedilatildeo do lamento como um exemplo do potencial ameaccedilador da mimese (Repuacuteblica Livro 3 395d-e)LV

Logo natildeo ordenaremos a um daqueles de quem queremos ocupar-nos que eacute preciso que se tornem homens superio-res que sendo homens imitem uma mulher nova ou ve-lha ou a injuriar o marido ou a criticar os deuses ou a gabar-se por se supor feliz ou dominada pela desgraccedila pelo desgosto e pelos gemidos [threnois] muito menos quando estaacute doente ou apaixonada ou com as dores da maternidade 49

49 Οὐ δὴ ἐπιτρέψομεν ἦν δrsquo ἐγώ ὧν φαμὲν κήδεσθαι καὶ δεῖν αὐτοὺς ἄνδρας ἀγαθοὺς γενέσθαι γυναῖκα μιμεῖσθαι ἄνδρας ὄντας ἢ νέαν ἢ πρεσβυτέραν ἢ ἀνδρὶ λοιδορουμένην ἢ πρὸς θεοὺς ἐρίζουσάν τε καὶ μεγαλαυχουμένην οἰομένην εὐδαίμονα εἶναι ἢ ἐν συμφοραῖς τε καὶ πένθεσιν καὶ θρήνοις ἐχομένην κάμνουσαν δὲ ἢ ἐρῶσαν ἢ ὠδίνουσαν πολλοῦ καὶ δεήσομεν

No entanto a estrateacutegia de incorporar outros cantos natildeo parecia estranha a Euriacutepides que a utiliza em outras ocasiotildees tampouco ao gecircnero traacutegico que acomoda gecircneros liacutericos como o Peatilde e outros Lii

Um exemplo ocorre em uma das uacuteltimas trageacutedias de Euriacutepides Bacantes

De laacute da terra da Aacutesiacruzei o sacro Tmolo e corroa Brocircmio doce afatildefadiga infatigaacutevel em evoeacute eu chamo Baco Quem vai pela rua quem vai Quemestaacute em casa Cada um abra espaccediloe se faccedila todo sacro em reverecircncia pois hinos costumeiros semprea Dioniso cantarei

ldquoOacute venturoso quem feliz conhece ritos de Deusesconsagra a vidae no tiacuteaso potildee a almaeacute bacante nas montanhasem sacras purificaccedilotildeesMisteacuterios da grande matildeeCiacutebele satildeo a leio tirso agita no altoem hera coroadocultua Baco

Abruptamente ao teacutermino da chegada de Dioniso a Tebas no proacutelogo da peccedila o coro composto por Mecircnades entra em cena recitando palavras que descrevem a sua origem e os bens concedidos pelo Deus aos seus iniciados (vv 64-88) Lvii

No trecho acima o proacuteprio coro imita um verdadeiro hino cultual A expressatildeo do verso 69 ldquoQuem vai pela rua quem vai rdquo eacute uma foacutermula caracteriacutestica da procis-satildeo um ldquopreluacutedio tiacutepico de um ato ritualrdquo (Dodds 1960 pp75) ao qual se segue a lin-guagem beatiacutefica dos macarismos (ldquoOacute venturoso quem felizrdquo v74) e a dramatizaccedilatildeo de gritos rituais ldquoavante Bacas avanterdquo (v85) O coro mesmo indica a sua proximi-dade com os hinos ao anunciar que cantaraacute literalmente ldquoas coisas costumeirasrdquo de Dioniso (tagrave nomisthenta τὰ νομίσθεντα v 72) Aleacutem disso assim como o emprego de diacutesticos elegiacuteacos em Androcircmaca o poeta indica a mudanccedila de tom pela alteraccedilatildeo no metro servindo-se em Bacantes de um metro tradicional do culto a DionisoLviii

Natildeo eacute estranho supor portanto levando em conta que o lamento de Androcirc-

maca ocupa a posiccedilatildeo similar a deste hino e a que Euriacutepides demonstra predileccedilatildeo por incorporar outras tradiccedilotildees poeacuteticas em suas peccedilas que tambeacutem na Androcircmaca ele estivesse subsumindo agrave arte traacutegica e adequando a ela elementos tradicionais de lamentos rituais tipicamente femininos O que natildeo conseguimos responder por ora eacute porque ele tambeacutem incorpora o diacutestico elegiacuteaco ao tratar destes lamentos e isso se deve sobretudo aos vazios da historiografia deste gecircnero poeacutetico tatildeo longevo

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A Elegia

Mesmo modernamente atribuiacutemos ao termo elegia a ideia de lamento em honra aos mortos Os gregos do periacuteodo claacutessico vatildeo ver na palavra elegos (ἔλεγος) ldquocanto de lamentordquo a etimologia deste gecircnero O que a maioria dos estudiosos observa eacute que quanto mais recuamos a elegia agraves suas origens ateacute o seacuteculo VII aC percebemos que este gecircnero tinha como tema o canto solo de quase todos os assuntos no horizonte da vida grega a guerra o amor a poliacutetica Menos um o lamento

A discussatildeo sobre a elegia geralmente se concentra em trecircs palavras gregas usadas para descrevecirc-la elegos (ἔλεγος) elegeia (ἐλεγεία) e elegeion (ἐλεγεῖον) Con-tudo nenhuma destas palavras estaacute nas ocorrecircncias mais antigas do gecircnero Depen-demos de autores que vieram depois e tentaram categorizaacute-la Elegeia e elegeion natildeo trazem problemas Elegeion aparece primeiro e traz uma referecircncia meacutetrica Data do tempo de Euriacutepides (seacutec V aC) O singular indica o diacutestico elegiacuteaco o plural uma se-quecircncia de diacutesticos ou poemas compostos neste metro Elegeia aparece mais tarde no seacutec IV aC e seu sentido eacute o mesmo da palavra elegia em portuguecircs Podia ser usada como referecircncia tanto ao metro como a um poema composto neste metro

Elegos poreacutem eacute o termo mais problemaacutetico e mais antigo dos trecircs Aparece numa inscriccedilatildeo dos Jogos Piacuteticos de 586 dC que anuncia que o vencedor do concurso de aulo cantara aos gregos melea kai elegous ldquoCanccedilotildees e elegousrdquo Esses elegous satildeo entendidos como elegias lamentosas e por serem de extremo mau-agouro teriam sido proibidos a partir ediccedilatildeo seguinte destes jogos

Equecircmbroto da Arcaacutedia dedicou a Heacuteraclesesta daacutediva ao vencer nos jogos dos Anfictiotildeescantando aos gregos canccedilotildees e elegias (elegous) 50

Oh escravas em que trenos de tristes trenosenvolvo-me Canto e danccedila de natildeo boa Musa elegias [elegois] sem lira ndash aiai - em fuacutenebres lamuacuterias 51

50 Ἐχέμβροτος Ἀρκὰςθῆκε τῷ Ἡρακλεῖνικήσας τόδrsquo ἄγαλμrsquoἈμφικτυόνων ἐν ἀέθλοιςἝλλησι δrsquo ἀείδωνμέλεα καὶ ἐλέγους51 ἰὼ δμωαίδυσθρηνήτοις ὡς θρήνοις ἔγκειμαιτᾶς οὐκ εὐμούσουμολπᾶς ἀλύροις ἐλέγοις αἰαῖἐν ηδείοις οἴκτοισιν τὸ γὰρ θρῆνος ἔλεγον ἐκάλουν οἱ παλαιοὶκαὶ τοὺς τετελευτηκότας διrsquo αὐτοῦ εὐλόγουν

Embora a interpretaccedilatildeo desta inscriccedilatildeo natildeo seja conclusiva por volta do seacuteculo V aC elegos jaacute eacute atestado em Euriacutepides com o sentido de canto lamentoso Por exem-plo na trageacutedia Ifigecircnia em Taacuteuris o ator interpretando Ifigecircnia canta (vv143-147) Lx

Tardiamente passa a ser comum a associaccedilatildeo entre elegos e threnos como nos mostra excerto da Biblioteca de Foacutecio (319b8-9 ldquopois os antigos chamavam de elegos o treno e elogiavam com ele os falecidosrdquo) 52

Os lutos satildeo gementes Peacutericles e cidadatildeo nenhumhaacute de censuraacute-los e se regozijar em festas ndash nem a cidadePois tais os homens que as ondas do poliacutessono marsubmergiram e inchados de dor temos os pulmotildees Mas os deuses para invictos malesoacute amigo aplicam a forte resistecircncia como faacutermaco Ora um ora outro sofre este mal para noacutes voltou-se agora e chaga sangrenta cho-ramos que logo passaraacute a outros Mas vamos ndash o mais raacutepido resisti a feminina dor afastando 53

53 κήδεα μὲν στονόεντα Περίκλεες οὔτέ τις ἀστῶνμεμφόμενος θαλίηις τέρψεται οὐδὲ πόλιςτοίους γὰρ κατὰ κῦμα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης ἔκλυσεν οἰδαλέους δrsquo ἀμφrsquo ὀδύνηις ἔχομενπνεύμονας ἀλλὰ θεοὶ γὰρ ἀνηκέστοισι κακοῖσινὦ φίλrsquo ἐπὶ κρατερὴν τλημοσύνην ἔθεσανφάρμακον ἄλλοτε ἄλλος ἔχει τόδε νῦν μὲν ἐς ἡμέαςἐτράπεθrsquo αἱματόεν δrsquo ἕλκος ἀναστένομενἐξαῦτις δrsquo ἑτέρους ἐπαμείψεται ἀλλὰ τάχιστατλῆτε γυναικεῖον πένθος ἀπωσάμενοι

Muitas teorias jaacute foram aventadas para relacionar o ritmo da elegia isto eacute o diacutestico elegiacuteaco agrave ideia de lamento e assim explicar a elegia de Androcircmaca Uma delas que ganhou forccedila nos uacuteltimos anos foi proposta por Denys Page em 1936 no artigo ldquoThe Elegiacs in Euripidesrsquo Andromacherdquo

O autor observando formas propriamente doacutericas nos versos de Androcircmaca sugere a existecircncia de uma escola de poetas na regiatildeo do Peloponeso no seacuteculo VI aC que se notabilizou por compor diacutesticos elegiacuteacos de teor lamentoso

O problema desta hipoacutetese eacute a sua falta de evidecircncia soacute teriacuteamos versos dos supostos herdeiros desta tradiccedilatildeo e o principal deles seria a proacutepria elegia de Androcircmaca Aleacutem disso parece estranho que um gecircnero poeacutetico de lamento arcaico tenha desparecido sem deixar rastros mas que tenha sido tatildeo importante a ponto de dar nome agrave elegia como um todo Lxi

Duas evidecircncias recentes parecem colaborar no entanto para fortalecer o ar-

gumento de que a elegia tinha propoacutesitos fuacutenebres a descoberta de um longo epitaacutefio em diacutesticos elegiacuteacos inscrito em um monumento funeraacuterio coletivo do seacuteculo VI aC o ldquoPoliacircndriordquo de Ambraacutecia e uma elegia de Simocircnides descoberta haacute poucos anos sobre a batalha entre Gregos e Persas em Plateia (fr11 W) Essas descobertas lanccedilaram a possibilidade de interpretar outros pequenos fragmentos de elegia que jaacute conheciacute-amos como possiacuteveis canccedilotildees de lamento Eacute o caso por exemplo do fragmento 13 de Arquiacuteloco Lxiii

De certo modo parece que a elegia era um gecircnero envolvido com a celebraccedilatildeo da morte de heroacuteis em um gesto muitas vezes comedido que expressa a voz do poeta refletindo e articulando o luto da cidade Satildeo poemas que mesmo com uma temaacutetica natildeo lamentosa celebram os heroacuteis (andres agathoi ldquohomens de valorrdquo) mortos em combate encenando e dramatizando o luto coletivo Eacute o caso de poemas como de Tir-teu um dos mais antigos poetas elegiacuteacos que nos restou cuja poesia exorta a lutar e morrer bravamente em combate para que seu nome e seu tuacutemulo sejam para sempre

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exaltados (fragmento 12 vv 27-34)

A outra evidecircncia (na verdade mais uma constataccedilatildeo) eacute que o mesmo metro da elegia jaacute era utilizado desde o periacuteodo arcaico (pelo menos a partir do seacutec VI aC) em outro gecircnero poeacutetico o epigrama a inscriccedilatildeo dedicatoacuteria em tuacutemulos ou oferendas

A ele [= ao homem de valor] pranteiam por igual jovens eanciatildeos e com dolorosa saudade a cidade toda se enluta Seu tuacutemulo e filhos satildeo insignes entre os homens e os filhos dos filhos e a geraccedilatildeo no porvir e jamais nobre gloacuteria ou o nome dele perecem mas mesmo sob a terra se torna imortalaquele que primando por manter-se em combatepela terra e pelos filhos o impetuoso Ares mata 54

54 τὸν δrsquo ὀλοφύρονται μὲν ὁμῶς νέοι ἠδὲ γέροντεςἀργαλέωι δὲ πόθωι πᾶσα κέκηδε πόλιςκαὶ τύμβος καὶ παῖδες ἐν ἀνθρώποις ἀρίσημοικαὶ παίδων παῖδες καὶ γένος ἐξοπίσωοὐδέ ποτε κλέος ἐσθλὸν ἀπόλλυται οὐδrsquo ὄνομrsquo αὐτοῦ ἀλλrsquo ὑπὸ γῆς περ ἐὼν γίνεται ἀθάνατοςὅντινrsquo ἀριστεύοντα μένοντά τε μαρνάμενόν τεγῆς πέρι καὶ παίδων θοῦρος Ἄρης ὀλέσηι

Assim podemos propor que a elegia poderia ter passado por um estreitamento de sentido em parte devido sua relaccedilatildeo com o epigrama e a sua predisposiccedilatildeo e alusotildees a contextos de lamento O lamento natildeo seria a uacutenica caracteriacutestica mas aquela que po-deria destacar a elegia de outras formas de poesia arcaica Este processo teria se dado ou alcanccedilado sua concretude no seacutec V aC com a palavra elegoi significando tanto ldquolamentordquo desprovido de qualquer implicaccedilatildeo meacutetrica como passando a circunscrever a elegia gecircnero poeacutetico definido pela sucessatildeo de diacutesticos elegiacuteacos

Quem teria comeccedilado esse processo Ora considerando que todas as ocorrecircn-cias de elegoi no seacutec V aC com esse sentido exceto uma estatildeo no proacuteprio Euriacutepides e a proacutepria elegia de Androcircmaca eacute um claro exemplar deste fenocircmeno ele proacuteprio eacute nosso melhor candidato ou ao menos teve um papel fundamental no estabelecimento da relaccedilatildeo entre elegia e lamento Se pensarmos desse modo a elegia ndash em distinccedilatildeo ao threnos e ao goos ndash se coloca como o uacutenico gecircnero poeacutetico envolvendo o lamento que natildeo eacute um canto coral e sim uma monodia que prescindia da resposta de um coro Tambeacutem era um canto masculino natildeo necessariamente profissionalizado mas um canto solo que circulava nos banquetes e simpoacutesios gregos o que acrescentaria mais uma camada metapoeacutetica agrave fala em diacutesticos de Androcircmaca ela mesma uma monodia entoada por um ator do sexo masculino

Por todos esses motivos a elegia de Androcircmaca eacute singular na trageacutedia e na histoacuteria da literatura mostrando-se um ponto fulcral para o entendimento de tradi-ccedilotildees literaacuterias e histoacutericas que convergem e podem nos dizer algo sobre a praacutetica do lamento e os gecircneros poeacuteticos na Antiguidade

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A ἁμαρτία Culpa Ignoracircncia ou

paranoia

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David Pessoa de Lira

Introduccedilatildeo

O traacutegico sendo uma categoria esteacutetica e um princiacutepio filosoacutefico pode ser es-tudado e analisado a partir das diferentes expressotildees literaacuterias e artiacutesticas como o romance as artes plaacutesticas a muacutesica a comeacutedia a trageacutedia etc Destarte o fenocircmeno traacutegico natildeo estaacute circunscrito apenas agrave trageacutedia Ademais esse conceito compreende vaacuterios outros conceitos como a culpa traacutegica a situaccedilatildeo traacutegica o conflito traacutegico e o sujeito traacutegico O que natildeo se pode negar eacute que a trageacutedia grega se torna o ponto re-ferencial de onde se deve partir e aonde se deve retornar para tratar da concepccedilatildeo do traacutegico ou especificamente da culpa traacutegica

O que vem depois destes versos eacute notaacutevel e torna a Androcircmaca uacutenica entre as trageacutedias que nos restaram um exemplo do virtuosismo de Euriacutepides Abruptamente os versos ditos por Androcircmaca deixam de ser os triacutemetros jacircmbicos proacuteprios dos diaacutelo-gos traacutegicos e mudam para um metro que os atenienses do seacuteculo V aC normalmente atribuiacuteam ao lamento o diacutestico elegiacuteaco (vv103-116) Eacute certo que a transiccedilatildeo entre os Estritamente este texto se propotildee a analisar os aspectos conceptuais da ἁμαρτία [ha-martiā] traacutegica em Oedipus Tyrannus de Soacutefocles a partir da Arte Poeacutetica de Aristoacutete-les e do pensamento grego sobre a culpabilidade

Procedendo a uma abordagem conceptual da culpa traacutegica leva-se em consi-deraccedilatildeo que a trageacutedia sofocleana de Oedipus Tyrannus se enquadra nos pressupos-tos do conceito aristoteacutelico de ἁμαρτία como uma ἀγνοία [agnoiā] e consequente-mente como παράνοια [paranoia] Assim objetiva-se a) Demonstrar que a ἀγνοία eacute a natureza da ἁμαρτία (culpa) de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus b) Explicar que o conceito aristoteacutelico da ἀναγνώρισις [anagnōrisis] possibilita encontrar a natureza da ἁμαρτία a saber a ἀγνοία c) Fundamentar atraveacutes da teoria da culpabilidade pessoal e da responsabilidade a partir do direito e da filosofia dos antigos gregos que a ἀγνοία de Eacutedipo evidencia uma ἁμαρτία escusaacutevel um estado de deliacuterio e paranoia

Para tal em um primeiro momento faz-se necessaacuterio explicar que o motivo de uma ignoracircncia mental (ἀιδρείη νόοιο) no mito de Eacutedipo incide na Odisseia 11271-275 Embora essa ignoracircncia mental (ἀιδρείη νόοιο) se refira a Jocasta de qualquer maneira se trata do tema da ignoracircncia em relaccedilatildeo aos atos supostamente delituosos praticados Em um segundo momento busca-se destacar que a ἁμαρτία a partir de Aristoacuteteles em sua De Arte Poetica eacute diferente da ideia de culpa ou peccatum de Secircne-ca Demonstra-se assim em uma parte ulterior que a ignoracircncia constitui a natureza da ἁμαρτία em Oedipus Tyrannus Finalmente a partir dos dados anteriores pode-se se obter a comprovaccedilatildeo de que a ἀγνοία em uma anaacutelise da culpabilidade escusa Eacutedi-po de qualquer crime cometido justamente por se enquadrar como um homo demens

O motivo da ἀιδρείη νόοιο (ignoracircncia da mente) no mito homeacuterico de Eacutedipo

A priori conveacutem explanar algumas caracteriacutesticas do μῦϑος [mythos] na tra-geacutedia A palavra μῦϑος na De Arte Poetica de Aristoacuteteles tem acepccedilatildeo de argumento enredo roteiro e narrativa De acordo com esse filoacutesofo o enredo ou o μῦϑος eacute uma das seis partes qualitativas de uma trageacutedia sendo uma imitaccedilatildeo das accedilotildees ou a or-

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ganizaccedilatildeo sinteacutetica das accedilotildees (De Arte Poetica 1450a3-5 7-15) Assim as accedilotildees e o μῦϑος constituem a finalidade da trageacutedia sendo o mais importante de tudo (De Arte Poetica 1450a22-23) Em uacuteltima anaacutelise diz-se que o enredo eacute o princiacutepio e a alma da trageacutedia (De Arte Poetica 1450a38-39) As partes do μῦϑος utilizadas como meios para a trageacutedia exercer a psicagogia satildeo os reconhecimentos (ἀναγνώρισεις) e as peripeacutecias (περιπέτειαι [peripeteiai]) (De Arte Poetica 1450a33-35) Em um enredo complexo haacute uma mudanccedila de fortuna com o reconhecimento ou com a peripeacutecia ou com ambos (De Arte Poetica 1452a16-18) A peripeacutecia eacute a mudanccedila das accedilotildees para o contraacuterio enquanto que o reconhecimento eacute a mudanccedila da ignoracircncia para o conheci-mento (De Arte Poetica 1452a22-31)

Ainda no que concerne ao μῦϑος muitos eventos satildeo produzidos em uma quantidade incomensuraacutevel e nem todos formam uma unidade propriamente dita As-sim uma personagem pode exercer muitas accedilotildees que natildeo implicam em uma accedilatildeo de forma unitaacuteria (De Arte Poetica 1451a16-19) O mito pode apresentar uma pluralidade de accedilotildees que natildeo constam em uma uacutenica obra literaacuteria Ademais oμῦϑος eacute assaz im-portante para se vislumbrar as accedilotildees praticadas no decorrer da histoacuteria

Na Iliacuteada 4378 haacute uma referecircncia agrave guerra de Polinice e seus aliados contra Tebas Ainda na Iliacuteada 23677-679 relata-se que ldquoEuriacutealo filho de Micisteus rei Talai-ocircneo foi um dia a Tebas ao tuacutemulo de Eacutedipo caiacutedo em guerra (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo A palavra δεδουπότος [dedoupotos] indica que Eacutedipo sofreu morte violenta em comba-te ou pelas matildeos de um assassino Aleacutem disso natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma incidecircncia sobre Eacutedipo e seus antecedentes Assim sendo nessa obra homeacuterica eacute pressuposto que Eacutedipo sofreu uma morte violenta e recebeu um tuacutemulo em Tebas antes mesmo do acontecimento da guerra de Troia Esse fato natildeo eacute mencionado por Soacutefocles em Oe-dipus Tyrannus Nota-se que seu mito apresenta uma pluralidade de informaccedilotildees que vatildeo aleacutem de um uacutenico texto literaacuterio

Em todo caso na Odisseia 11271-275 o esquema principal da histoacuteria de Eacutedipo eacute explicitado

Vi a matildee de Eacutedipo bela Epicasta a qual realizou um grande feito por ignoracircncia de mente casando com seu filho e ele tendo matado seu pai casou e rapidamen-te os deuses estabeleceram coisas notoacuterias aos homens Todavia ele reinava sobre os cadmeus em Tebas mui ama-da sofrendo dores por causa da dolorosa vontade dos deuses (traduccedilatildeo proacutepria) 57

Com relaccedilatildeo a esse outline sobre o mito de Eacutedipo conveacutem explicar que Epicas-ta eacute um outro nome para Jocasta Ademais no texto supramencionado a) natildeo se men-ciona nada sobre a libertaccedilatildeo de Tebas da Esfinge b) a cegueira de Eacutedipo natildeo incide c) nada se comenta sobre o exiacutelio (expulsatildeo) de Eacutedipo ndash o que levaria a concordar com a Iliacuteada Tudo indica que o autor desse texto tenha excluiacutedo a ideia de que Epicasta tenha gerado filhos de Eacutedipo Lxxx

Na Odisseia 11271-275 reza-se Lxxxi ldquoVi a matildee de Eacutedipo bela Epicasta a qual

realizou um grande feito por ignoracircncia de mente casando com seu filho (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo 58 A expressatildeo ἀιδρείη νόοιο (ignoracircncia de mente) equivale agraves palavras ἀγνοία e ἁμαρτία indicando a falta de conhecimento e a ignoracircncia Epicasta realizou um grande feito por ignoracircncia descuido e negligecircncia a saber casando com o proacuteprio filho Eacute evidente que incide o motivo da ignoracircncia Lxxxii mas essa ἀιδρείη νόοιο (igno-racircncia de mente) adveacutem da personagem Epicasta e natildeo de Eacutedipo

Em todo caso aleacutem de outros pormenores essa passagem potildee em evidecircn-cia o fato do casamento entre Eacutedipo e Epicasta ter se dado por ignoracircncia O fato de ter destacado a maneira como a accedilatildeo foi realizada pode levar justamente agrave natureza da ἁμαρτία em Oedipus Tyrannus Entretanto deve-se verificar se a accedilatildeo de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus foi um ato por engano ou por ignoracircncia Em De Arte Poetica 1453a8-9 15-16 pode-se confirmar que a ἁμαρτία natildeo tem um caraacuteter moral Em todo caso soacute a atestaccedilatildeo da sua natureza na contraposiccedilatildeo entre ἀγνοία e γνῶσις [gnōsis] pode confirmar isso

A ἁμαρτία e o aspecto moral

Soacutefocles em suas trageacutedias assim como Eacutesquilo focalizava a accedilatildeo em uma soacute personagem destacando o seu caraacuteter e os traccedilos de sua personalidade Ele introduz personagens mais humanas Seus heroacuteis satildeo mais humanos e acessiacuteveis do que os de Eacutesquilo mais equilibrados e menos retoacutericos do que os de Euriacutepides O fatalismo foi banido das suas trageacutedias Assim o ser humano com seu complexo de virtudes e de-feitos de paixotildees violentas e de sentimentos ternos ocupa um lugar central e prepon-derante na dramaacutetica sofocleana Lxxxiii

Segundo Nietzsche na Antiguidade natildeo havia o conceito de indiviacuteduo O con-ceito de indiviacuteduo era pouco desenvolvido mas o de estirpe famiacutelia e estado era pra-ticamente geral No entanto como diz Nietzsche haacute um caraacuteter imeacuterito do destino no indiviacuteduo incidente em Oedipus Tyrannus de Soacutefocles Pode-se perceber isso atraveacutes do enigma do destino do homem da culpa sem consciecircncia do sofrimento imerecido Sendo assim de acordo com Nietzsche a trageacutedia aponta para algo mais transcenden-tal para aleacutem desse mundo aleacutem da vida que natildeo merece mais ser vivida A trageacutedia eacute pessimista e Soacutefocles deixou de lado a maldiccedilatildeo da estirpe para falar de um Eacutedipo mortal e mergulhado no infortuacutenio graccedilas aos deuses Entretanto essa calamidade natildeo eacute necessariamente uma puniccedilatildeo mas uma forma de redenccedilatildeo por meio da qual o homem emerge e eacute consagrado como um homem piedoso Em uacuteltima anaacutelise o sujei-to do ato traacutegico (em um conflito insoluacutevel) tem de alcanccedilar a consciecircncia para sofrer conscientemente Por isso natildeo haacute accedilatildeo imoral mas erro de percurso Lxxxv

57 Εὐρύαλος [] Μηϰιστῆος υἱὸς Ταλαϊονίδαο ἄναϰτος ὅς ποτε Θήβας δ᾽ ἦλϑε δεδουπότος Οἰδιπόδαο ἐς τάφον (HOMERO 2008 v 2 p 426)μητέρα τ᾽ Οἰδιπόδαο ἴδον ϰαλὴν Ἐπιϰάστην ἣ μέγα ἔργον ἔρεξεν ἀιδρείῃσι νόοιο γημαμένη ᾧ υἷι ὁ δ᾽ ὃν πατέρ᾽ ἐξεναρίξας γῆμεν ἄφαρ δ᾽ ἀνάπυστα ϑεοὶ ϑέσαν ἀνϑρώποισιν ἀλλ᾽ ὁ μὲν ἐν Θήβῃ πολυηράτῳ ἄλγεα πάσχων Καδμείων ἤνασσε ϑεῶν ὀλοὰς διὰ βουλάς (HOMERO 2011 p 332-335 JEBB 2010 v 1 p xiv)58 μητέρα τ᾽ Οἰδιπόδαο ἴδον ϰαλὴν Ἐπιϰάστην ἣ μέγα ἔργον ἔρεξεν ἀιδρείῃσι νόοιοHOMERO 2011 p 332-335

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Embora Oedipus Tyrannus de Soacutefocles natildeo tenha sido composto para uma tri-logia sendo uma obra completa essa trageacutedia natildeo apresenta nenhum antecedente da peccedila como um proacutelogo de toda a maldiccedilatildeo dos labdaacutecidas e do proacuteprio Eacutedipo Sabe-se que Eacutedipo eacute um parricida e casou incestuosamente com sua matildee por puro desconhe-cimento Sabe-se que isso foi uma maldiccedilatildeo dos deuses proferida por meio de uma pitonisa de Apolo em Delfos Natildeo haacute em Oedipus Tyrannus um proacutelogo formal que explique a origem da maldiccedilatildeo Lxxxvi

Natildeo haacute duacutevida de que Eacutedipo tenha realizado falhas ou faltas Sobre o assas-sinato de Laio ele mesmo pergunta a Creonte ldquoποῦ τόδ᾽ εὑρεϑήσεται ἴχνος παλαιᾶς δυστέϰμαρτον αἰτίας (onde se encontraraacute pista de um crime antigo) (traduccedilatildeo proacute-pria)rdquo59 Em Oedipus Tyrannus natildeo incide a palavra ἁμαρτία Lxxxiii Para uma falta um crime uma responsabilidade ou causa Eacutedipo usa αἰτία [aitiā] Esta palavra ocorre uma uacutenica vez em Oedipus Tyrannus Em termos eacuteticos aristoteacutelicos para Eacutediposer respon-saacutevel (αἴτιος) precisaria ser viciado mau ou algueacutem de uma vida desregrada Lxxxviii

Aristoacuteteles em De Arte Poetica 1453a15-16 sugere

Eacute necessaacuterio que o mito seja mais simples do que duplo como alguns dizem e que mude natildeo do infortuacutenio para a boa sorte mas do contraacuterio da boa sorte para o infor-tuacutenio natildeo por causa da maldade mas por causa de um grande desvio (traduccedilatildeo proacutepria) 60

Ele menciona que se houver um infortuacutenio deve-se consideraacute-lo como ἁμαρτίαν τινά natildeo como um defeito moral ou como um viacutecio (ϰαϰὶα ϰαὶ μοχϑηρία) (De Arte Poetica 1453a8-9) Assim aqui ίμαρτία natildeo tem qualquer conotaccedilatildeo moral A culpa (ἁμαρτία) natildeo eacute necessariamente um viacutecio ou um mal mas uma culpa em es-tado de falha que leva agrave queda ao infortuacutenio e agrave perda de prestiacutegio O homem culpado natildeo eacute moralmente culpado natildeo eacute perfeito (proeminentemente virtuoso ou justo) mas tambeacutem natildeo eacute reprovaacutevel (inferior sem gloacuteria)xc

Segundo Lesky a partir da definiccedilatildeo de Aristoacuteteles eacute possiacutevel que haja uma indicaccedilatildeo daquilo que se julga como situaccedilatildeo basicamente traacutegica do ser humano Por isso Eacutedipo eacute mencionado como um exemplo dessa concepccedilatildeo do traacutegico xci

A culpa traacutegica com caraacuteter moral vem de Secircneca Secircneca aplicou seu caraacuteter estoico-moralizante apropriando-se do conceito de ἁμαρτία (peccatum) como culpa de caraacuteter moral Ele se distancia do antigo estoicismo e da maioria dos filoacutesofos gregos ao acentuar o sentido do peccatum e da culpa como marca de todo homem Para Secircne-ca natildeo existe homem sem pecado e consequentemente se afasta do ideal de saacutebio do antigo estoicismo xcii

59 Oedipus Tyrannus 108-109 SOPHOCLES 2010 v 1 p 3460 Ἀνάγϰη ἄρα τὸν ϰαλῶς ἔχοντα μῦϑον ἁπλοῦν εἶναι μᾶλλον ἢ διπλοῦν ὥσπερ τινές φασι ϰαὶ μεταβάλλειν οὐϰ εἰς εὐτυχίαν ἐϰ δυστυχίας ἀλλὰ τοὐναντίον ἐξ εὐτυχίας εἰς δυστυχίαν μὴ διὰ μοχϑηρίαν ἀλλὰ δι᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην (ARISTOTELES 1965 p 20)

Segundo Secircneca estruturalmente o homem eacute peccator incorrendo sempre em peccatum e natildeo ocasionalmente Nota-se que o conceito de peccatum estaacute relacionado com a ideia de voluntas Segundo o filoacutesofo latino a voluntas eacute o querer em consonacircn-cia com a accedilatildeo fazer querendo e natildeo se trata do fazer sabendo Como o peccatum natildeo estaacute relacionado agrave ignoracircncia assim a voluntas ultrapassando o niacutevel do saber res-ponde a solicitaccedilotildees que natildeo satildeo apenas de ordem do conhecimento Assim em uacuteltima anaacutelise a vontade torna os seres humanos bons ou maus xciii

Aristoacuteteles preveniu cuidadosamente para que a ἁμαρτία natildeo fosse interpreta-da moralmente Deve-se observar a importacircncia disso pelo fato de ao mencionar sobre a reviravolta salienta que esssa natildeo deve se basear em consequecircncia de uma grave falha (De Arte Poetica 1453a15-16) Sendo viacutetima de uma queda o sujeito traacutegico natildeo pode ser de acordo com Aristoacuteteles distinto por virtude e justiccedila nem por viacutecio e mal-dade mas por alguma falha (ἁμαρτίαν τινά) Assim Aristoacuteteles destaca que o sujeito traacutegico tem um caraacuteter meacutedio (μεταξύ [metaxy]) cuja reviravolta natildeo seja devido ao crime mas ao erro inconsciente (De Arte Poetica 1453a7-12) xcv

A ignoracircncia como natureza da ἁμαρτία em oedipus tyrannus

Segundo Albin Lesky para Aristoacuteteles a finalidade da poesia traacutegica eacute justa-mente a catarse De Arte Poetica de Aristoacuteteles trata da criaccedilatildeo literaacuteria e tem domi-nado as opiniotildees quando o assunto eacute trageacutedia Partindo para a finalidade da poesia traacutegica chega-se agrave catarsexcvi Seria possiacutevel encontrar aqui a natureza da ἁμαρτία

Segundo Nietzsche se considerar o conceito do traacutegico atraveacutes de uma esteacutetica moderna esse equiliacutebrio entre caraacuteter e destino culpa e puniccedilatildeo natildeo deve ser levado absolutamente do ponto de vista esteacutetico mas moral Isso soacute pode ser considerado em termos juriacutedicos delimitados O espectador faz parte de um juacuteri e compete ao mesmo dar sua aprovaccedilatildeo ao castigo de Eacutedipo ou natildeo Se assim for a ϰάϑαρσις [katharsis] traacute-gica seria aceita como uma espeacutecie de julgamento cataacutertico esteacutetico-moral empregan-do o seguinte criteacuterio o triunfo do homem justo comedido e apatoloacutegico No entanto de acordo com Nietzsche isso natildeo eacute a fonte do gecircnero traacutegico O conceito de traacutegico natildeo explica a origem da trageacutedia xcvii

Seja qual for a origem e fonte da trageacutedia em todo caso Eacutedipo natildeo pode ser julgado moralmente Natildeo se trata de um desvio por viacutecio ou maldade (ϰαϰὶα ϰαὶ μοχϑηρία) (De Arte Poetica 1453a8-9) xcviii Veja-se em De Arte Poetica 1449b27-28 Aristoacuteteles menciona o seguinte ldquorealizando por meio da compaixatildeo e do medo a catarse desses sentimentos (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo61 Sendo assim a catarse eacute um ele-mento purificador Ela eacute empregada em termos meacutedicos com o sentido de causar aliacutevio e dar prazer Entatildeo aqui a compaixatildeo e o medo satildeo os elementos causadores de uma purificaccedilatildeo agradaacutevel dos afetos e sentimentos xcix

Natildeo obstante a ϰάϑαρσις excita a piedade e o temor pelo ouvir sem ver (o abandono do filho o assassinato de Laio e a morte de Jocasta) A desintegraccedilatildeo dos

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laccedilos familiares a desestruturaccedilatildeo da piedade familiar a desestrutura do pietas erga parentes e do pietas erga liberos tudo isso gera o sentimento de falta de virtude As-sim o puacuteblico estaacute diante da impiedade c

Em todo caso esse efeito traacutegico soacute deve ser entendido contextualmente le-vando em consideraccedilatildeo os aspectos culturais do medo do horror e da moral Para Aris-toacuteteles por um lado o conceito de ϰάϑαρσις natildeo tinha efeito moral e por outro ela natildeo causava danosci Deve-se salientar que o sentimento compugente se daacute diante da mudanccedila de sorte principalmente com relaccedilatildeo aos que natildeo merecem o infortuacutenio O medo eacute decorrente do sentimento que coloca algueacutem em situaccedilatildeo semelhante agrave do de-safortunado (De Arte Poetica 1453a1-7) cii Obviamente isso trata especificamente dos efeitos do sentido para o espectador exercendo um jogo de emoccedilotildees paixotildees e terror

A catarse diante da situaccedilatildeo traacutegica de Eacutedipo aponta para uma soluccedilatildeo de na-tureza dupla a) ele merece ou natildeo chegar ao infortuacutenio b) deve se colocar em sua situaccedilatildeo Assim a ἁμαρτία de Eacutedipo eacute a a culpa traacutegica que a humanidade deve assumir em situaccedilatildeo de infortuacutenio a qual natildeo depende necessariamente dos seus planos Em uacuteltima anaacutelise ele fez o que fez por total ignoracircncia Aqui reside o ponto chave a saber a ἀγνοία (ignoracircncia e desconhecimento) Um conceito aristoteacutelico que trata especifi-camente do desconhecimento eacute justamente a ἀναγνώρισις

De acordo com Aristoacuteteles De Arte Poetica 1452a29 ldquoo reconhecimento [eacute] como tambeacutem o nome significa a mudanccedila da ignoracircncia para o conhecimento (tra-duccedilatildeo proacutepria)rdquo62 A palavra ἀναγνώρισις eacute reconhecimento ou accedilatildeo de reconhecer Na trageacutedia trata-se do reconhecimento que conduz ao desenlace (λῦσις [lysis]) (De Arte Poetica 1455b24-34) ciii

Etimologicamente o substantivo grego γνῶσις [gnōsis] e o verbo γιγνώσϰω [gignōskō] tecircm o sentido primaacuterio de conhecimento ou percepccedilatildeo Natildeo eacute muito difiacutecil tambeacutem perceber a relaccedilatildeo sinoniacutemica de gnose com νοῦς [nous] A palavra ἀγνοία [agoniā] indica justamente falta de conhecimento falta de percepccedilatildeo e ignoracircncia (com ou sem conduta moral) Consequentemente essa palavra tem a acepccedilatildeo de conduta equivocada de conduta errada ou de erro falta cometida por ignoracircncia e descuido cv

Em Oedipus Tyrannus 1347-1348 o coro em diaacutelogo com Eacutedipo diz ldquoInfeliz de consciecircncia e de sorte igualmente gostaria que tu natildeo tivesses conhecido nada (traduccedilatildeo proacutepria)rdquo63 O texto descreve o estado de Eacutedipo pobre de mente (δείλαιε τοῦ νοῦ) o qual chegou ao conhecimento (γνῶναι ndash infinitivo de γιγνώσϰω) Embora o νοῦς [nous] seja o oacutergatildeo da gnose ele eacute descrito como uma metoniacutemia de gnose Em geral νοῦς [nous] denota mente mas pode conotar significado sensibilidade recorda-ccedilatildeo alma coraccedilatildeo intenccedilatildeo razatildeo intelecto entendimento pensamento intelecccedilatildeo sabedoria percepccedilatildeo intuiccedilatildeo cvi

61 δι᾽ ἐλέου ϰαὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παϑημάτων ϰάϑαρσιν (ARISTOTELES 1965 p 10)62 ἀναγνώρισις δέ ὥσπερ ϰαὶ τοὔνομα σημαίνει ἐξ ἀγνοίας εἰς γνῶσιν μεταβολή (ARISTOTELES 1965 p 17)

Diferente de Medeia de Euriacutepides Eacutedipo de Soacutefocles age sem saber ou conhe-cer por total ignoracircncia Ademais sua accedilatildeo natildeo incide no drama Soacutefocles criou uma peccedila em torno de uma situaccedilatildeo paranoica cvii das accedilotildees anteriores de Eacutedipo bem como seus precedentes

Pois eacute possiacutevel que a accedilatildeo siga como os antigos [poetas] faziam [as personagens] sabedoras e conhecedo-ras como tambeacutem Euriacutepides fez Medeia matar os filhos mas eacute possiacutevel agir desconhecendo para entatildeo depois reconhecer a relaccedilatildeo familiar como Eacutedipo de Soacutefocles as-sim isso estaacute fora do drama (traduccedilatildeo proacutepria)64

Medeia sabia que estava matando os filhos enquanto Eacutedipo tinha desconheci-mento de sua relaccedilatildeo parental com Laio As accedilotildees de Eacutedipo satildeo consequecircncias de uma rede de pensamento que o perseguia sobre sua verdadeira paternidade Mais adiante ele se enreda no drama de Tebas em torno da morte de Laio Entre esses acontecimen-tos a personagem dramaacutetica realiza tragicamente um ato paranoico

Oacute habitantes da Paacutetria Tebas olhai esse Eacutedipo que era um homem famoso conhecia os enigmas e era o mais poderoso de quem algueacutem dentre os cidadatildeos fica-va com inveja observando a sorte Entrou em uma onda de terriacutevel acontecimento Desse modo natildeo se conhece o ser mortal que guarda aquele uacuteltimo dia nem o considera feliz antes que o teacutermino da vida se complete e que sofra o desprazer (traduccedilatildeo proacutepria) 65

63 Δείλαιε τοῦ νοῦ τῆς τε συμφορᾶς ἴσον ὡς σ᾽ ἠϑέλησα μηδέ γ᾽ ἂν γνῶναί ποτεhellip (SOPHOCLES 2010 v 1 p 242-243)64 De Arte Poetica 1453b26-32 ἔστι μὲν γὰρ οὕτω γίνεσϑαι τὴν πρᾶξιν ὥσπερ οἱ παλαιοὶ ἐποίουν εἰδότας ϰαὶ γιγνώσϰοντας ϰαϑάπερ ϰαὶ Εὐριπίδης ἐποίησεν ἀποϰτείνουσαν τοὺς παῖδας τὴν Μήδειαν ἔστιν δὲ πρᾶξαι μέν ἀγνοοῦντας δὲ πρᾶξαι τὸ δεινόν εἶϑ᾽ ὕστερον ἀναγνωρίσαι τὴν φιλίαν ὥσπερ ὁ Σοφοϰλέους Οἰδίπους τοῦτο μὲν οὖν ἔξω τοῦ δράματος (ARISTOTELES 1965 p 22)65 Soacutefocles Oedipus Tyrannus 1524-1530 ὦ πάτρας Θήβης ἔνοιϰοι λεύσσετ᾽ Οἰδίπους ὅδε ὃς τὰ ϰλείν᾽ αἰνίγματ᾽ ᾔδει ϰαὶ ϰράτιστος ἦν ἀνήρ οὗ τίς οὐ ζήλῳ πολιτῶν ἦν τύχαις ἐπιβλέπων εἰς ὅσον ϰλύδωνα δεινῆς συμφορᾶς ἐλήλυϑεν ὥστε ϑνητὸν ὄντrsquo ἐϰείνην τὴν τελευταίαν ἰδεῖν ἡμέραν ἐπισϰοποῦντα μηδέν᾽ ὀλβίζειν πρὶν ἂν τέρμα τοῦ βίου περάσῃ μηδὲν ἀλγεινὸν παϑών (SOPHOCLES 2010 v 1 p 274-276)

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A ἀγνοία e a culpabilidade de Eacutedipo

Incide nos diaacutelogos platocircnicos uma tendecircncia a defender a teoria de que nin-gueacutem faz o mal voluntariamente mas por ignoracircnciacvii A partir dessa assertiva de-ve-se observar a teoria da culpabilidade pessoal do mal e a responsabilidade de Eacutedipo em Oedipus Tyrannus Para isso faz-se necessaacuterio considerar segundo as condiccedilotildees internas e a psicologia do agente as vaacuterias modalidades de accedilatildeo um ato realizado de bom grado com pleno conhecimento de causa depois de uma decisatildeo e deliberaccedilatildeo e um ato de mau grado realizado inconscientemente por ignoracircncia ou coerccedilatildeo exter-na Ademais conveacutem observar se a accedilatildeo eacute premeditada e intencional de maneira que se estabeleccedila a distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo repreensiacutevel ou escusaacutevel Aqui natildeo se trata de uma distinccedilatildeo entre accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria mas em termo de conhecimento e ignoracircncia

Para ser culpada a pessoa deve ter agido conscientemente ou ldquosabendordquo As-sim a ἀγνοία constitui a proacutepria essecircncia da falta definindo a categoria de crime ou delito de mau grado sem intenccedilatildeo ou premeditaccedilatildeo delituosa Do ponto de vista do antigo direito grego a oposiccedilatildeo entre o ato realizado de bom grado e um ato realizado de mau grado foi definida em termos de conhecimento e ignoracircncia Por isso as faltas cometidas por ἀγνοία satildeo consideradas como de mau grado cix Isso adveacutem do fato de que na mentalidade grega antiga toda accedilatildeo estava relacionada ao conhecimento ou ao saber Na Antiguidade onde se esperava a ideia do querer ou da voluntas os gregos empregavam a ideia do saber do agir consciente premeditado deliberado e inten-cional Soacute a partir dessa concepccedilatildeo pode-se afirmar se uma accedilatildeo eacute imputaacutevel ou natildeo imputaacutevel ao sujeito repreensiacutevel ou escusaacutevel cx

Assim natildeo se pode defender definitivamente que Eacutedipo quis matar o pai e se casar com a matildee deliberadamente ou conscientemente Esses atos natildeo eram vislum-brados por Eacutedipo Seria necessaacuterio que seu crime fosse realizado ldquosabendordquo Platatildeo ad-mite a ἀγνοία como princiacutepio geral do delito mas ao lado desse princiacutepio ele entende que a ἀγνοία eacute a base de uma accedilatildeo natildeo delituosa Sendo assim esse paradoxo entre o princiacutepio essencial da falta e da escusa se exprime por conta da evoluccedilatildeo semacircntica das palavras que constituem a famiacutelia de ἁμαρτία cxi

Algueacutem natildeo mentiria dizendo que a terceira cau-sa dos delitos eacute a ignoracircncia Essa causa poreacutem o advo-gado poderia fazer melhor dividindo em duas partes por um lado leva-se em consideraccedilatildeo que a [forma] simples dela eacute a causa dos delitos leves por outro lado a forma dupla [eacute] quando algueacutem ignorar natildeo soacute sendo oprimido mas tambeacutem por falsa opiniatildeo da sabedoria conhecendo inteiramente sobre as coisas que ele nada conhece (tra-duccedilatildeo proacutepria) 66

66 Platatildeo Leges 9863c τρίτον μὴν ἄγνοιαν λέγων ἄν τις τῶν ἁμαρτημάτων αἰτίαν οὐκ ἂν ψεύδοιτο διχῇ μὴν διελόμενος αὐτὸ ὁ νομοθέτης ἂν βελτίων εἴη τὸ μὲν ἁπλοῦν αὐτοῦ κούφων ἁμαρτημάτων αἴτιον ἡγούμενος τὸ δὲ διπλοῦν ὅταν ἀμαθαίνῃ τις μὴ μόνον ἀγνοίᾳ συνεχόμενος ἀλλὰ καὶ δόξῃ σοφίας ὡς εἰδὼς παντελῶς περὶ ἃ μηδαμῶς οἶδεν (Plato 1926 v 2 p 232-233)

Segundo Jean-Pierre Vernant a evoluccedilatildeo semacircntica das palavras que consti-tuem a famiacutelia de ἁμαρτία eacute dupla Por um lado os termos podem indicar intenccedilatildeo Por exemplo ἁμαρτῶν (culpado intencionalmente cometeu ato criminoso) e οὐχ ἁμαρτῶν (agiu de mau grado sem intenccedilatildeo) Nesse sentido ἁμαρτάνω significa ἀδικέω (come-ter injusticcedila agir de forma injustificaacutevel cometer delito intencional) Em todo caso o verbo ἁμαρτάνω deixa impliacutecita uma ideia primitiva que comeccedila a se disseminar no seacutec V aEC a saber de falta e de cegueira de espiacuterito Assim o verbo ἁμαρτάνω se aplica agrave falta escusaacutevel sem intencionalidade ou sem plena consciecircncia xii Eacutedipo age de mau grado sem intenccedilatildeo por total cegueira da ignoracircncia Natildeo se pode negar que sua atitude vinha acompanhada de inconsequecircncias e sem plena consciecircncia de seus atos

Platatildeo alarga as concepccedilotildees mais antigas acerca da falta A palavra ἁμάρτημα [hamartēma] incide na Antiguidade como erro do espiacuterito (mental) como poluccedilatildeo religiosa ou fraqueza moral Como se percebeu anteriormente o verbo ἁμαρτάνω tem a acepccedilatildeo de enganar-se com sentido de desvario de inteligecircncia de cegueira danosa de uma cegueira que precipita ou leva agrave ruiacutena Em uacuteltima anaacutelise a ἁμαρτία eacute uma doenccedila mental e o criminoso eacute um doente viacutetima da proacutepria ἁμαρτία do deliacuterio O ἁμαρτίνοος eacute um homo demens que perdeu o senso A loucura da ἁμαρτία assedia a pessoa como uma ἄτη [atē] interiormente penetrando como uma forccedila religiosa do mal A forccedila da loucura da ἁμαρτία age tanto internamente como exteriormente atin-gindo desde o sujeito da accedilatildeo passando pelos familiares ateacute uma poacutelis inteira cxiii

Foi mencionado anteriormente que Soacutefocles criou uma peccedila em torno de uma situaccedilatildeo paranoica das accedilotildees anteriores de Eacutedipo bem como seus precedentes Deve--se entender essa paranoia como um ato de pensar equivocadamente pensar errado entender mal conceber errado estar sem sentido ou delirar pensamento desviado loucura ou deliacuterio Trata-se de uma anormalidade do νοῦς [nous] A situaccedilatildeo de Eacutedipo eacute um estado paranoico de cegueira danosa e de doenccedila mental Trata-se de uma locura causada pela ἁμαρτία enquanto deliacuterio cxiv

Desde o final do seacutec IV aEC a palavra ἁμάρτημα estava associada agrave noccedilatildeo de delito natildeo intencional Isso eacute tatildeo notoacuterio que o proacuteprio Aristoacuteteles diferencia ἁμάρτημα de ἀδίκημα (delito intencional e premeditado) ἀτύχημα (um delito acidental estranho ao saber do agente) cxv Se assim for a coexistecircncia paradoxal e de sentidos contradi-toacuterios na mesma famiacutelia de ἁμαρτία se prolongou por muitos seacuteculos No entanto isso soacute ocorre porque a noccedilatildeo de ἀγνοία incide em dois niacuteveis distintos de pensamento Por um lado pode-se concebecirc-la como forccedila sinistra que assedia o espiacuterito humano impelindo-o para uma cegueira maleacutefica Por outro lado trata-se de uma falta de co-nhecimento por parte do ser humano em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees proacuteprias dos atos cxvi

A palavra ἁμαρτία De Arte Poetica 1453a8-9 15-16 ainda carrega em seu bojo o sentido paradoxal e ambiacuteguo entre a falta imputaacutevel e natildeo imputaacutevel ao sujeito entre a falta repreensiacutevel e escusaacutevel Destarte Aristoacuteteles alerta constamente sobre a especificidade da ἁμαρτία cxvii Assim Eacutedipo esse homem culpado sofrido dolorido e esmagado eacute um homem envolvido em uma desgraccedila imerecida por ocasiatildeo de sua ignoracircncia e jogado ao caminho Esse homem uma vez era um heroacutei (homo divinus

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homo heros) decaiacutedo na sua proacutepria humanidade indo nesta existecircncia ateacute o mais baixo status da humanidade

Conclusatildeo

Em Oedipus Tyrannus como supramencionado a concepccedilatildeo da ἀγνοία pode ser compreendida e interpretada a partir de dois niacuteveis de pensamento No entanto como natildeo fica expliacutecito a atuaccedilatildeo dos astros deuses e a maldiccedilatildeo de sua estirpe pro-cura-se encontrar um erro em Eacutedipo gerando muitas vezes mal-entendido na semiose da trageacutedia A arrogacircncia de Eacutedipo sua falta de medida (ὕβρις [hybris]) compele a culpaacute-lo por sua escolha Em todo caso Soacutefocles natildeo apresentou nenhuma πρώταρχος ἄτη [prōtarkhos atē] ou seja uma culpa maleacutefica ou perversa cxviii Poreacutem nem em Oedipus Tyrannus nem em De Arte Poetica incidem as expressotildees ὕβρις e πρώταρχος ἄτη em consonacircncia com ἁμαρτία De qualquer maneira essas palavras configuram um aspecto esteacutetico-moral

Eacute plausiacutevel que Eacutedipo se apresente com uma ἀγνοία de segundo niacutevel a saber uma falta de conhecimento por parte do ser humano em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees proacuteprias das suas accedilotildees De Arte Poetica 1453b26-32 Aristoacuteteles menciona refererindo-se a Eacutedipo que eacute possiacutevel as pessoas agirem desconhecendo (ἀγνοοῦντας πρᾶξαι) cxix Ora em termos de uma concepccedilatildeo grega antiga para ser culpado o indiviacuteduo deveria agir sabendo Logo Eacutedipo natildeo poderia ser culpado

Eacute possiacutevel aventar levando os antecedentes de Eacutedipo que ele foi simplesmente usado pelas forccedilas divinas principalmente no que diz respeito agrave maldiccedilatildeo de sua estir-pe Quanto a isso Eacutedipo seria inocente e natildeo poderia pagar pelos seus atos uma vez que foi compelido ou estava sob um estado de coerccedilatildeo da fatalidade agindo como agiu No entanto ateacute o fato de ter nascido de iacutempios era totalmente desconhecido dele Aleacutem do incesto e do parriciacutedio uma maldiccedilatildeo veio a ser explicitada e ele percebeu que era um ldquoateurdquo ldquofilho de iacutempios

Entatildeo daqueles que fui gerado eu natildeo viria como assassino do pai nem noivo [da matildee] seria chamado entre os mortais E ago-ra eu sou um sem deus e filho de iacutempios E consaguiacuteneo infeliz dos quais fui gerado (traduccedilatildeo proacutepria)67

Em Oedipus Tyrannus a maldiccedilatildeo da estirpe eacute substituiacuteda por uma falta de conscientizaccedilatildeo de reconhecimento A posteriori Eacutedipo reconhece que eacute filho de uma famiacutelia maldita mas suas accedilotildees estatildeo em relevo A maldiccedilatildeo da estirpe ficaraacute subjacen-te agraves atitudes equivocadas de Eacutedipo e aquela soacute viraacute agrave baila com o reconhecimento Natildeo obstante na passagem anterior natildeo fica claro se Soacutefocles usou esse lamento de Eacutedipo para expressar que ele Eacutedipo ldquosujourdquo ou ldquomaculourdquo sua estirpe sua famiacutelia e o culto

67 Soacutefocles Oedipus Tyrannus 1357-1361 οὔκουν πατρός γ᾽ ἂν φονεὺς ἦλθον οὐδὲ νυμφίος βροτοῖς ἐκλήθην ὧν ἔφυν ἄπο νῦν δ᾽ ἄθεος μέν εἰμ᾽ ἀνοσίων δὲ παῖς ὁμογενὴς δ᾽ ἀφ᾽ ὧν αὐτὸς ἔφυν τάλας Sophocles 2010 v 1 p 246-247

aos antepassados ou se havia uma maldiccedilatildeo anterior a ele Ao que tudo indica Eacutedipo maculou seus antepassados e descendecircncia profanando sua famiacutelia A passagem que poderia apontar para uma maldiccedilatildeo da estirpe na verdade aponta o resultado da ἁμαρτία enquanto ἀγνοία Jocasta eacute profanada por causa de Eacutedipo e isso explica por que Eacutedipo eacute um ἀνοσίων παῖςcxx Portanto Eacutedipo em Oedipus Tyrannus natildeo eacute viacutetima do destino uma vez que a maldiccedilatildeo resulta de suas accedilotildees tendo implicaccedilotildees no futuro e para os antepassados Eacutedipo eacute a arma de vinganccedila da maldiccedilatildeo de Laio ao agir de forma equivocada alterando a rota de posteridade da sua estirpe e aniquilando o culto aos antepassados

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Amor e poesiaem Plutarco

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Maria Aparecida de Oliveira Silva

Plutarco utiliza tanto a poesia quanto a filosofia aproximando-as para elabo-rar seus conceitos sobre o amor em Diaacutelogo do Amor Notamos que o autor se volta para a praacutetica da teoria cxxii por isso o caraacuteter prescritivo de seu textocxxii A teoriaplutarquiana do amor em sua gecircnese prioriza a accedilatildeo uma vez que sua base foi cons-truiacuteda a partir de um episoacutedio amoroso Portanto eacute uma teoria praacutetica que tenciona ensinar como o homem e a mulher devem atuar para viver tal sentimento no seu ca-samento cxxiv Neste capiacutetulo trataremos em especial do uso da poesia na escrita deste tratado e na construccedilatildeo de seu argumento favoraacutevel a adoccedilatildeo de Eros como o deus do amor O tema principal de Diaacutelogo do Amor eacute a relaccedilatildeo de Ismenodora e Baacutecon con-siderada incomum pois se trata do casamento de uma mulher viuacuteva abastada e de famiacutelia ilustre com um jovem belo de origem bastante modesta De acordo com Rist (2001 p 577) Ismenodora teria por volta de trinta anos de idade e Baacutecon em torno de dezoito O diaacutelogo acontece logo apoacutes o casamento de Plutarco com Timocircxena quando ele levou sua esposa para realizar sacrifiacutecios em honra do deus Eros devido agrave desaven-ccedila ocorrida entre seus pais Assim a ida do casal agrave cidade de Teacutespias teve por finalidade estreitar seus laccedilos afetivos evitando que a contenda de seus pais interferisse em seu casamento (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B)

Diaacutelogo do Amor se inicia com Flaviano pedindo ao filho de Plutarco Autobulo que relate o debate sobre o amor ocorrido durante as Erotiacutedias festividades dedicadas a Eros realizadas na cidade de Teacutespias (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 748E-F) As personagens do diaacutelogo satildeo Flaviano Autobulo Plutarco Dafneu Soclaro Protoacutegenes Zeuxipo Antecircmion e Piacutesias Tambeacutem assistem ao debate os amigos beoacutecios que acom-panharam Plutarco na viagem e alguns cidadatildeos teacutespios presentes no momento do diaacutelogo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B-C)

Como jaacute dissemos a discussatildeo ocorreu durante as Erotiacutedias festividades dedi-cadas a Eros realizadas na cidade de Teacutespias (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 748E-F) e que por estarem ao peacute do Monte Heacutelicon igualmente se estendiam agraves Musas Mas o casal natildeo estava sozinho na ocasiatildeo Plutarco viajava tambeacutem com um grupo de ami-gos que resolveram caminhar pela cidade e encontraram outros companheiros logo sendo interpelados por Baacutecon O jovem promove entatildeo um debate sobre se deveria ou natildeo desposar Ismenodora No entanto o narrador do diaacutelogo natildeo eacute Plutarco mas o seu filho Autobulo que eacute indagado por seu amigo Flaviano Nosso autor repete a estrutura dialoacutegica de Platatildeo em O Banquete no qual vemos um diaacutelogo dentro de outro com um narrador que natildeo presenciou a discussatildeo original

Em seu uso da poesia euripidiana na conversa nosso autor revela o pensa-mento misoacutegino corrente natildeo apenas na Greacutecia Claacutessica como ainda em seu tempo Quando os debatedores satildeo avisados de que Ismenodora raptou Baacutecon o primeiro a demonstrar insatisfaccedilatildeo com o noticiado foi Zeuxipo Ele havia sido apresentado por Plutarco ldquocomo amigo de Euriacutepidesrdquo (φιλευριπίδην ὄντα) e ironizado pela fama de mi-soacutegino do tragedioacutegrafo porque o lacedemocircnio comenta a notiacutecia do rapto com este verso de Euriacutepides de uma peccedila desconhecida (frag 986 Nauck-Snell) ldquoenvaidecida pela riqueza como mortal mulher pensasrdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 755B) As criacuteticas de Zeuxipo estatildeo direcionadas ao modo inconsequente como atuou Ismenodo-

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ra ao conceber o rapto de Baacutecon e por valer-se de sua riqueza para realizar sua vonta-de Depois dessa afirmaccedilatildeo apoacutes vaacuterias manifestaccedilotildees dos presentes sobre o ocorrido Plutarco cita Heraacuteclito cxxvi para justificar o ato desmedido de Ismenodora e explica que contra Eros ldquoeacute difiacutecil combaterrdquo (frag 85 Diels) (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 755D) No momento em que Pemptides coloca em duacutevida o poder de Eros nosso autor escla-rece que a soberania desse deus suplanta a razatildeo humana e cita o verso 203 das Bacas de Euriacutepides ldquoNem se o saber fosse descoberto por um espiacuterito mais elevadordquo (PLU-TARCO Diaacutelogo do Amor 756B) Com essa citaccedilatildeo nosso autor mostra a Pemptides que o divino natildeo eacute conhecido em sua totalidade e que precisa da crenccedila para existir uma vez que nem tudo eacute comprovado pela razatildeo humana no campo do divino Aleacutem disso Plutarco explica o sentido dessa confianccedila humana no culto aos deuses

Mas ela eacute um apoio e uma base comum para sustentar a piedade se por um for estremecida se a seguranccedila dela for abalada e considerada ela se torna em tudo instaacutevel e suspeita(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756B)

Acerca do trecho citado Babut (2003 p 543) afirma que Plutarco revela nele o seu propoacutesito de fortalecer os valores transmitidos pela religiatildeo tradicional grega por entender que a religiosidade dos antigos gregos tem sua visatildeo de mundo embasada na filosofia Consequentemente ele demonstra seu conservadorismo em mateacuteria de culto e sua preocupaccedilatildeo de natildeo tocar o intocaacutevel Sua intenccedilatildeo eacute valorizar o espiacuterito em detrimento da razatildeo comprovadora Plutarco ainda afirma que Pemptides estaacute sob a influecircncia de Euriacutepides por meio de seu proecircmio de Melanipo Saacutebia uma peccedila natildeo preservada (frags 480 e 481 Nauck)

Estaacutes ouvindo sem duacutevida Melanipo aquele contestado proacutelogo composto por Euriacutepides

Zeus quem quer que seja Zeus natildeo o conheccedilo exceto por discurso

apoacutes trocar um coro por outro (como parece estava con-fiante com seu drama porque o havia escrito com pompa e distinccedilatildeo) mudou o verso para como agora estaacute escrito

Zeus como dito pela verdadePortanto o que difere pocircr em duacutevida pela razatildeo a repu-taccedilatildeo de Zeus ou de Atena ou de Eros e o desconhecido (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756B-C)

Ao trazer agrave memoacuteria o episoacutedio do proecircmio euripidiano Plutarco adverte os presentes sobre as implicaccedilotildees da impiedade contra os deuses Sobre Melanipo filha de Posiacutedon que responde pela origem do povo beoacutecio Euriacutepides escreveu duas peccedilas a saber Melanipo Saacutebia e Melanipo Acorrentada Em nosso entendimento as alteraccedilotildees

euripidianas apontadas indicam que seu puacuteblico natildeo aceitou sua duacutevida sobre a exis-tecircncia de Zeus O resultado disso configura-se no fato de o proacuteprio autor reconhecer de bom grado ou natildeo que a divindade eacute inquestionaacutevel que a arrogacircncia diante dos assuntos divinos implica em atos insensatos como os do proacuteprio tragedioacutegrafo Plu-tarco faz uso dos versos de Euriacutepides para sustentar este questionamento ldquoPortanto o que difere pocircr em duacutevida pela razatildeo a reputaccedilatildeo de Zeus ou de Atena ou de Eros e o desconhecidordquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756C) direcionado agrave defesa de Eros como o deus do amor e rebatendo as criacuteticas a essa divindade Plutarco reforccedila sua opiniatildeo sobre o poder de Eros como o deus do amor citando estes versos do filoacutesofo e poeta siciliano Empeacutedocles cxxvii (frags 20-21 Diels-Kranz)

Mas quando ouves o dito por Empeacutedocles companheiro

e a afeiccedilatildeo entre eles eacute equivalente em largura e compri-mento tu examina-a com o pensamento natildeo fiques com o olhar parado por estares atocircnito o mesmo pensas que deve ser dito sobre Eros Pois ele natildeo eacute visiacutevel mas esse deus eacute honrado por noacutes entre os mais antigos(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D)

Neste debate entre o culto de Eros como o deus do amor defendido por Plutar-co e as criacuteticas de Pemptides ao deus nosso autor segue seu discurso afirmando que

se exigires uma prova sobre cada coisa investigando cada santuaacuterio e aplicando sua experiecircncia sofiacutestica em cada al-tar admitirias que nenhum eacute irrepreensiacutevel e nem funda-mentado (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D)

Novamente Plutarco estabelece que o campo do sagrado natildeo eacute alcanccedilaacutevel pela razatildeo humana em sua totalidade Na construccedilatildeo de seu discurso argumentativo o autor une versos de trageacutedias distintas para acrescer ao seu argumento o caso de Afro-dite O primeiro verso citado pertence a uma trageacutedia desconhecida de Euriacutepides (frag 898 1 Nauck-Snell) os dois subsequentes satildeo os versos 449 e 450 de Hipoacutelito tambeacutem de Euriacutepides Em seguida cita a frase ldquodoadora de vidardquo de Empeacutedocles (frag 31 B 151 Diels-Kranz) e ldquofeacutertilrdquo de Soacutefocles (frag 8551-4 Nauck)

Natildeo vou longe

com relaccedilatildeo agrave Afrodite natildeo vecircs o quatildeo eacute deusa -Ela eacute semeadora e concessora de amorpor ele todos somos seus descendentes na terra

ldquoDoadora de vidardquo Empeacutedocles e ldquoFeacutertilrdquo Soacutefocles assim a nomeiam com muita propriedade e conveniecircncia

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(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D-E)

Apoacutes comparar o fragmento supracitado por Plutarco com os versos pindaacuteri-cos Rinaldi (2010 p 213) afirma que o tema central de sua ode eacute o poder de Afrodite visto que ela nutre todos os mortais e concorre para sua disseminaccedilatildeo Dando conti-nuidade agrave construccedilatildeo de seu discurso em uma manobra retoacuterica para associar Afrodite a Eros nosso autor faz referecircncias ao verso 295 retirado da peccedila Coeacuteforas de Eacutesquilo e a um pensamento de Parmecircnides (frag 28 B 13 Diels-Kranz) Plutarco continua

Mas igualmente eacute de Eros essa magniacutefica e espantosa obra de Afrodite porque ele estaacute subordinado agrave Afrodite dan-do-lhe assistecircncia se natildeo lhe assiste com cuidado seu fei-to seria abandonado ao descasosem honra nem amizade

Eacute uma uniatildeo sem amor tal com a fome e a sede que tem sua satisfaccedilatildeo mas natildeo atinge o belo Mas a deusa com o auxiacutelio de Eros refuta o fastio do prazer e realiza a ami-zade e a alianccedila Por isso Parmecircnides declara que Eros eacute o mais antigo feito de Afrodite na Cosmogonia escreve

Concebeu Eros primeiro do que todos os deuses(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756E-F)

Entatildeo percebemos que embora registre o dito por Empeacutedocles na sequecircncia de sua exposiccedilatildeo Plutarco afirma concordar com a anterioridade do deus em relaccedilatildeo agrave Afrodite e fundamenta seu pensamento referindo-se a Hesiacuteodo cxxvii

Parece-me que Hesiacuteodo eacute o mais natural ao compor que Eros nasceu primeiro do que todos para que todos por meio dele participassem da geraccedilatildeo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756F)

Ainda que nosso autor declare sua concordacircncia com a cosmogonia de Hesiacuteodo ndash felizmente preservada apresentada por ele em sua obra intitulada Teogonia ndash nota-mos que Plutarco ignora a anterioridade do Caos da Terra e do Taacutertaro para conferir a primogenitura a Eros dado que pode ser constatado com a leitura dos seguintes versos hesioacutedicos

Sim bem primeiro nasceu o Caos depois tambeacutemTerra de amplo seio de todos sedeirresvalaacutevel sempredos imortais que tecircm a cabeccedila do Olimpo nevadoe Taacutertaro nevoento no fundo do chatildeo deamplas viase Eros o mais belo entre os Deuses imortaissolta-membros dos Deuses todos e doshomens todos

ele doma no peito o espiacuterito e a prudente vontade(HESIacuteODO Teogonia vv 116-122)

Em seu intento sofiacutestico puramente retoacuterico Plutarco seleciona e redirecio-na as informaccedilotildees de Hesiacuteodo para construir seu discurso sobre a anterioridade do deus Eros Embora os versos seguintes natildeo tenham sido registrados em seu diaacutelogo eacute possiacutevel perceber os ecos destes ldquodos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espiacuterito e a prudente vontaderdquo (HESIacuteODO Teogonia vv 121-122) na concepccedilatildeo plutarquiana da onipotecircncia de Eros como o deus do amor pensamento igualmente reproduzido por Platatildeo (O Banquete 178b)

No entanto por ignoracircncia da meritoacuteria participaccedilatildeo de Eros na relaccedilatildeo amo-rosa Plutarco demonstra que ainda assim ele eacute uma divindade desrespeitada com estes versos da peccedila perdida Dacircnae de Euriacutepides (frag 3221 Nauck-Snell)

Natildeo haacute nada a dizer sobre por que alguns insultam Eros e voltam suas preces agravequelamas de uma cena ouvimos

Eros eacute ocioso e nasceu para tais(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757A)

Assim Plutarco continua seu argumento sobre Eros natildeo ser o uacutenico deus inju-riado pelos mortais e registra os seguintes comentaacuterios sobre Afrodite e Hades agora apoiado em versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 855 1-4 Nauck)

e outra vez

Meninos a Ciacutepria natildeo eacute somente Ciacutepriamas haacute epocircnimo de muitos nomes para elaHaacute Hades haacute vida imortal e haacute uma loucura delirante

tal como quase nenhum dos outros deuses escapou ao in-sulto da injuriante ignoracircncia(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757A)

Nosso autor prossegue argumentando que a impiedade humana se estende aos demais deuses que igualmente satildeo alvo de suas maledicecircncias e assim relativiza a forccedila de qualquer argumento contraacuterio ao deus Eros E novamente com versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 754 Nauck) ademais dos de Homero (Iliacuteada V 31 e 831) e de uma frase do filoacutesofo Crisipo cxxx (frag 2 von Arnim) Plutarco revela que embora seja uma divindade reconhecida por seus atributos Ares tambeacutem recebe insultos dos autores gregos

quantas honras suntuosas Ares obteve dos homens e ain-da o quanto se ouve falar mal dele

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cego oacute mulheres sem ver Arescom cara de porco revolve todos os males

e como o proacuteprio Homero o chama ldquosujo de sanguerdquo e ldquovoluacutevelrdquo E Crisipo ao interpretar o nome do deus faz--lhe uma acusaccedilatildeo e uma caluacutenia pois afirma que Ares eacute relativo a ldquodestruirrdquo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757B)

Em busca da consolidaccedilatildeo de seus argumentos nosso autor destaca o parado-xo existente na relaccedilatildeo humana com os deuses porque os homens os injuriam e ao mesmo tempo pedem seu auxiacutelio nos momentos em que necessitam resolver um pro-blema ou esperam por uma atuaccedilatildeo infaliacutevel numa disputa Por isso citando primeiro Caliacutemaco (frag 379 Schneider) e depois um verso de Eacutesquilo (frag 200 Nauck) da sua peccedila perdida Prometeu Libertado nosso autor declara

ldquoMas caccedilam antiacutelopes lebres e cervos por Agrotera uma deusa que os estimula com seus gritos e os incita ao com-bate e oram a Aristeu os que se apoderam com fossos e redes dos lobos e ursos

Quem primeiro construiu armadilhas para as feras

E Heacuteracles invoca outro deus quando quer atirar o arco em um paacutessaro como Eacutesquilo diz

Apolo Agreus conduziria reto esta flecha(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757D)

Ora se haacute a necessidade de um deus para que accedilotildees humanas sejam bem-su-cedidas e se o amor eacute um sentimento importante e fundamental para a continuidade da espeacutecie humana por meio do casamento por que esse sentimento natildeo possuiria um deus regente Debruccedilado sobre essa questatildeo nosso autor volta a postular pela neces-sidade de um deus do amor ao referenciar Homero (Odisseia V 69)

E ao homem que potildee as matildeos na mais bela presa por es-colher a amizade natildeo haacute um deus nem um nume que in-tervenha e participe de sua empresaEu pelo menos nem o carvalho nem a oliveira sagrada ou a que Homero em celebraccedilatildeo declarou ldquocultivadardquo acre-dito que natildeo seja um ramo mais belo e superior que o da planta humana amigo Dafneu por ter um instinto de ger-minaccedilatildeo que nos revela juventude e beleza simultacircneas no corpo e na almardquo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757E)

Com esse paralelo estabelecido entre o homem e as aacutervores o discurso plutar-

quiano enfatiza o papel da naturalidade da reproduccedilatildeo humana sobretudo o quanto a amizade eacute fundamental na relaccedilatildeo amorosacxxxi Plutarco segue com seu siacutemile pelos versos de Piacutendaro (frags 165 e 153 Snell-Maehler) para destacar que ateacute as aacutervores tecircm divindades que as protegem para a reproduccedilatildeo

Ou para eles algumas natildeo satildeo Ninfas Driacuteades

que da mesma aacutervore o termo da vida obtecircme Dioniso jubiloso aumenta o alimento das aacutervoresesplendor puro no fim do veratildeo

segundo Piacutendaro(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 757E-F)

Logo a questatildeo que Plutarco coloca aos presentes eacute se ateacute mesmo as aacutervores dispotildeem de divindades protetoras para sua reproduccedilatildeo por que os homens natildeo teriam um deus que protegesse o amor responsaacutevel pela uniatildeo de um homem com uma mu-lher e pela sua consequente reproduccedilatildeo da espeacutecie Em seguida nosso autor induz os presentes a pensar em outra contradiccedilatildeo se por um lado natildeo haacute um deus protetor da relaccedilatildeo amorosa que culmina no casamento e na continuaccedilatildeo da raccedila humana por outro o homem dispotildee de divindades protetoras quando morto Como explicar isso Para fundamentar tal raciociacutenio Plutarco usa os seguintes versos de uma trageacutedia de nome e autoria desconhecidos (frag 405 Kannicht-Snell)

eacute servo e condutor de almas para Plutatildeo

Noite natildeo me gerou senhor da liranem adivinho nem meacutedico mas um condutor de almas(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758B)

Por conseguinte Plutarco declara Hermes Psicopompo o condutor de almas e Plutatildeo como os regentes dos homens quando mortos Como resultante disso em uma sequecircncia de citaccedilotildees que comeccedila com Euriacutepides (Bacas 66) passa por Homero (Odis-seia II 372 e XV 531) e se encerra com Melaniacutepides (frag 7(763) Page) nosso autor torna mais soacutelido o seu argumento em favor de Eros como o deus regente da relaccedilatildeo amorosa

Pois nada haacute nisso de vergonhoso nem forccediloso mas haacute persuasatildeo e graccedila que concede uma ldquopena prazerosardquo na verdade ldquotambeacutem um esforccedilo faacutecilrdquo que conduz agrave virtude e agrave ami-zade visto que as tomam para o conveniente fim e natildeo ldquosem um deusrdquo mas natildeo tecircm outro comandante e sobera-no deus que Eros companheiro das Musas das Caacuterites e de Afrodite

No doce veratildeo do homem semeando o desejo no coraccedilatildeo

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segundo Melaniacutepides mescla as mais prazerosas com as mais belas(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758B-C)

Plutarco relata que a manifestaccedilatildeo de Eros no amoroso ou seja naquele que eacute capaz de amar eacute tal qual a de outros deuses como Apolo e Dioniso por meio ldquode ins-piraccedilatildeo e possessatildeordquo (ἐπιπνοίας καὶ κατοχῆς) (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758E) Para embasar seu discurso o autor cita primeiramente um verso de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 778 Nauck) depois um pensamento de Platatildeo (Fedro 245a) e os ver-sos de Eacutesquilo (Suplicantes 681-682) conforme lemos no trecho a seguir

ldquoA adivinhaccedilatildeo entusiaacutestica proveacutem de Apolo de sua ins-piraccedilatildeo e possessatildeo e a baacutequica de Dioniso Conforme os Coribantes danccedilai

diz Soacutefocles os assuntos de Demeacuteter e Pan satildeo comuns agraves orgias baacutequicas ldquoA terceira origem vinda das Musas toma uma alma delicada e imaculadardquo provoca e estimula o entusiasmo poeacutetico e musical Haacute essa tambeacutem chamada loucura de Ares que preside a guerra e em tudo estaacute claro qual deus concede e anima o deliacuterio miacutestico

Ao armar Ares sem danccedila nem ciacutetara lacrimoso e um grito nativo

ldquoE parte dessa confusatildeo e ilusatildeo que subsiste no homem natildeo eacute impliacutecita nem tranquila(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 758E-F e 759A)

Na sequecircncia desse discurso por meio de um verso de uma trageacutedia de nome e autoria desconhecidos (frag 406 Nauck) e de Homero (Iliacuteada VII 121-122) notamos que nosso autor desenvolve sua argumentaccedilatildeo sobre a necessidade de afastar essa lou-cura da relaccedilatildeo amorosa para atrair a tranquilidade

Qual deus sacode o tirso de belo frutoesta empolgaccedilatildeo amorosa por meninos nobres e mulheres prudentes que eacute muito mais lancinante e ardenteldquoOu natildeo vecircs que o soldado ao depor suas armas encerra a loucura da guerra

entatildeo logojubilosos guardiotildees retiraram-lhe as armas dos ombros

e senta ao lado de suas armas como um paciacutefico expecta-

dor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759A)

Plutarco segue descrevendo essa ldquoloucura amorosardquo (τὴν δrsquo ἐρωτικὴν) como algo que perturba o pensamento humano Citando Euriacutepides (Hipoacutelito 478) afirma que natildeo haacute ldquocanto maacutegico sedutorrdquo que lhe mantenha calmo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759B)cxxxii No entanto lembrando uma maacutexima dos filoacutesofos ciacutenicos Plutarco diz que se houver um deus que o guie o amante permanece em uma caminhada ldquocon-tiacutenua e curta descobre uma passagem para a virtuderdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759D)

Pelos versos sofoclianos nosso autor inicia sua defesa sobre a natureza da par-ticipaccedilatildeo de Afrodite na relaccedilatildeo amorosa ao mencionar Traquiacutenias verso 497

Grande eacute a forccedila da vitoacuteria que Ciacutepris obteacutem(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759E)

Pela atuaccedilatildeo conjunta de Eros e Afrodite na relaccedilatildeo amorosa Plutarco ale-ga com um verso de uma trageacutedia desconhecida (frag 407 Kannicht-Snell) e um de Homero (Iliacuteada XVIII 57) o destempero daquele que se deixa levar puramente pelo desejo fiacutesico bem como demonstra que o amoroso quando regido pelos deuses natildeo se comporta desta maneira

durante o poente ela acendia a chama da lamparinaesperando e chamando para si muitas vezes passa pertoe o vento vindo suacutebitocom muito amor e desejo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 759F)

O benefiacutecio maior de um relacionamento amoroso regido por Eros e Afrodite natildeo estaacute somente no equiliacutebrio do desejo sexual dos amantes mas tambeacutem no de suas accedilotildees A coragem eacute outro elemento constituinte de um relacionamento amoroso regido por Eros Segundo Plutarco em uma paraacutefrase da peccedila de Soacutecrates (Antiacutegona 783-784) e de versos contidos em uma trageacutedia desconhecida (frag 408 Kannicht-Snell) o deus supera Ares nessa virtude

quanto agraves obras de Ares Eros excele porque natildeo eacute inativo como Euriacutepides dizia nem inexperiente na guerra nemdorme nas macias bochechas das adolescentes

Pois um homem pleno de Eros em nada carece de Ares ao lutar contra os inimigos mas acompanhado de seu proacute-prio deus

fogo mar e ventos do eacuteterestaacute disposto a atravessar

pelo amigo aonde o chamar

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(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 760D-E)

Entatildeo os envolvidos em uma relaccedilatildeo amorosa satildeo igualmente contemplados por Eros com o destemor que os transforma em guerreiros inseparaacuteveis cxxxii sempre dispostos agrave luta e contando um com o outro nos embates Plutarco demonstra esta afirmaccedilatildeo ao empregar um verso de Niacuteobe uma trageacutedia perdida de Soacutefocles (frag 410 Nauck)

Os Nioacutebidas de Soacutefocles depois de atingidos mesmo mor-rendo nenhum deles invocou outro auxiliar nem aliado que natildeo o seu amante

Oacute envolve-me pelos flancos(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 760E-F)

Nosso autor confere ecircnfase ao seu pensamento a respeito da decisiva influecircn-cia de Eros na coragem dos amantes com os seguintes versos populares pronunciados entre os calciacutedios (Carmina Popularia 27 frag 873 Page)

Oacute filhos que receberam graccedila e nobreza paternanatildeo recuseis aos bons a convivecircncia da juventudePois com valentia tambeacutem o debilitante Erosaflora na cidade dos calciacutedios(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761A-B)

E em uma construccedilatildeo argumentativa bem convincente ele relata que o ge-neral tebano Pacircmenes criticou Homero por dividir as tropas aqueias ldquopelas tribos e fratriasrdquo (Iliacuteada II 362) e por natildeo ter considerado os amantes nessa divisatildeo Retorica-mente Plutarco une dois versos de Homero (Iliacuteada XIII 131-215 e XVI) em apenas um soacute para expor a criacutetica ao proacuteprio poeta

Pacircmenes mudou e renovou a ordem dos hoplitas um ho-mem amoroso que reprovou Homero por natildeo ter sido amaacutevel porque alinhou as tropas dos aqueus ldquopelas tribos e fratriasrdquo e natildeo pocircs o amante ao lado do amado para que assim fosse escudo um escudo suportasse e elmo um elmo

Eros eacute o uacutenico invenciacutevel por todas suas estrateacutegias(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761B)

Ao lermos esses versos homeacutericos percebemos que o contexto natildeo nos remete a uma relaccedilatildeo sexual entre Aquiles e Paacutetroclo poreacutem haacute a sugestatildeo de uma amiza-de muito grande entre eles Esse eacute um exemplo importante para suscitar reflexotildees a respeito de Plutarco aceitar a manifestaccedilatildeo de Eros em episoacutedios militares que nos remetem a relaccedilotildees supostamente homoeroacuteticas Por isso notamos que nosso autor

considera a manifestaccedilatildeo de Eros na amizade que nasce entre os guerreiros durante o exerciacutecio de sua funccedilatildeo militar sem a necessidade de relaccedilotildees sexuais apenas como fraternais Conveacutem lembrar que Eros concorre para a amizade entre o casal o que natildeo impede que esse modelo se transfira para a amizade dos guerreiros nos campos de treinamento e de batalha Contudo essa relaccedilatildeo natildeo eacute duradoura Ela tem o tempo de uma carreira militar e natildeo contribui para a continuidade da espeacutecie Isso posto natildeo tem a duradoura proteccedilatildeo de Eros

Jaacute a amizade cultivada nos campos de treinamento e batalha entre os guer-reiros regida por Eros responde pela excelecircncia militar de alguns povos e por suas demonstraccedilotildees de bravura e coragem Tal questatildeo eacute demonstrada por Plutarco nos vaacuterios exemplos a seguir

ldquoPortanto natildeo somente os povos mais combatentes satildeo os de iacutendoles mais amorosas beoacutecios lacedemocircnios e cre-tenses mas tambeacutem os mais antigos Meleacuteagro Aquiles Aristocircmenes Ciacutemon e Epaminondas Este teve como amados Asoacutepico e Cefisodoro o qual morreu junto com ele em Mantineia e foi enterrado com honras funeraacuterias ao seu lado E Asoacutepico tornou-se o mais temido e terriacutevel aos inimigos o primeiro a enfrentaacute-lo e a golpeaacute-lo foi Eucna-mo de Anfissa que obteve honras heroicas do foceus ldquoPela quantidade eacute uma difiacutecil tarefa falar sobre os outros amantes de Heacuteracles consideram que Iolau foi amado por ele e os amantes ateacute hoje o veneram e os honram fazendo juramentos e dando provas de fidelidade sobre seu tuacutemu-lo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761D-E)

A coragem que Eros confere ao amante poreacutem natildeo ocorre somente na esfera militar ou no campo de batalha Entre os vaacuterios episoacutedios relatados por Plutarco em que os amantes deram provas singulares de amor um pelo outro o mais conhecido eacute aquele contado na peccedila Alceste de Euriacutepides Embora sua plateia no momento do dis-curso seja composta por gregos sabemos que Plutarco proferia palestras filosoacuteficas em Roma e que seus tratados morais satildeo o registro de grande parte delas Dessarte o seu puacuteblico tambeacutem era composto por romanos filogregos ou simpaacuteticos agrave cultura grega A intenccedilatildeo plutarquiana de divulgar a produccedilatildeo literaacuteria grega em Roma eacute evidente em toda a sua obra entretanto algumas delas jaacute eram bem conhecidas dos romanos como eacute o caso da peccedila Alceste de Euriacutepides segundo sugere o estudo de Wood (1978) Po-reacutem na construccedilatildeo de seu discurso Plutarco interpreta por outra perspectiva o episoacute-dio da mulher que se oferece para morrer no lugar do marido fato visto como grande prova de amor e de valor moral de Alceste Ele nos mostra que grande tambeacutem era o amor de Heacuteracles e de Apolo por Admeto como nosso autor exemplifica neste excerto utilizando um verso atribuiacutedo a Caliacutemaco (frag 380 Schneider)

Diz-se que (Heacuteracles) atuou como meacutedico para Alceste

98 99

pois a salvou depois que ela havia perdido a esperanccedila para agradar a Admeto tomado de amor pela proacutepria mulher porque ele tambeacutem era seu amante Contam que tambeacutem Apolo era seu amante

Serviu Admeto com grandeza por um ano

ldquoComo nos veio bem Alceste agrave lembranccedila Uma mulher natildeo partilha muito de Ares eacute a possessatildeo de Eros que a faz avanccedilar com coragem sobre-humana e morrer(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761E)

Ao recontar esse episoacutedio da trageacutedia euripidiana nosso autor revela que o amor homoeroacutetico somente conhece sua grandeza quando envolve um deus ou um semideus Tal exceccedilatildeo ocorre porque o amor divino eacute superior ao de um ser humano Aliaacutes como Plutarco afirmou alhures os assuntos divinos natildeo devem ser questionados pela razatildeo humana Sobre a indulgecircncia divina de Eros e o destemor de que imbui o amante vejamos mais este esclarecimento dado por Plutarco no qual ele cita versos de uma trageacutedia desconhecida de Soacutefocles (frag 703 Nauck)

Protesilau e Euriacutedice de Orfeu que dos deuses somente a Eros Hades faz o prescrito Todavia diante de todos os outros como afirma Soacutefocles

Nem comedimento nem graccedilaconhece apenas apreciou a simples justiccedila

Eacute indulgente com os amantes e somente com eles natildeo eacute indocircmito nem amargo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 761F)

Os poderes de Eros sobre os amantes satildeo tatildeo intensos que se mostram capa-zes de aprimorar seus caraacuteteres dado que sempre os conduzem agrave virtude Podemos observar tal ponto neste excerto em que Plutarco cita Estenebeia uma peccedila perdida de Euriacutepides (frag 663 Nauck-Snell)

embora Euriacutepides fosse amoroso ele se maravilhou com o mais insignificante quando afirmou

Ora Eros ensina um poeta mesmo se antes sem Musa

Pois torna inteligente quem antes era indolente e corajo-so como se diz o covarde tal como os que incandescem as vigas fazem das fracas firmes(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762B)

As transformaccedilotildees sofridas pelo amante regido por Eros satildeo perceptiacuteveis aos

demais Para corroborar tal assertiva nosso autor utiliza um verso da pseudo-biografia de Homero conhecida como Certame de Homero e Hesiacuteodo (274)

Eros natildeo faz dos desagradaacuteveis e carrancudos os mais hu-manos e encantadores Pois

ao acender o fogo a casa mostra-se digna de honra

tambeacutem um homem como parece eacute mais radiante sob o calor do amor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762D)

Citando Homero (Odisseia XIX 40) Plutarco continua sua demonstraccedilatildeo so-bre os efeitos das visiacuteveis transformaccedilotildees que Eros provoca no amante

quando veem uma alma vulgar parca e ignoacutebil de repente preencher-se de inteligecircncia liberdade desejo de honra graccedila e generosidade natildeo se veem obrigados a dizer como Telecircmaco Sem duacutevida haacute um deus dentro dessa casa(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762E)

A coragem dos amantes soacute eacute abalada quando o amante encontra o seu amado ocasiatildeo em que se mostra fraco e covarde diante deste Lembrando Piacutendaro (Piacutetica I 5) Plutarco compara o momento do encontro do amante com o amado ao de algueacutem que eacute atingido por um ldquopungente raiordquo e fica abatido tal como o descrito por este verso de Friacutenico (frag 17 Snell)

ao ver seu belo eacute

tal o galo se encolhe como um escravo recolhendo a asa

sua ousadia eacute abatida e despedaccedilado o orgulho de sua alma(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762E-F)

Conforme nosso autor a forccedila do sentimento amoroso regido por Eros mani-festa-se ainda nos seres mais inusitados o que estaacute em concordacircncia com o que lemos no seguinte trecho

Os romanos narram que o filho de Hefesto Caco expelia fogo pela boca de fluentes chamas a proacutepria lanccedilava em verdade um som mesclado ao fogo e emitia o calor de seu coraccedilatildeo pelas palavras

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Com as Musas de belas vozes curando o amor

segundo Filoacutexeno(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 762F-763A)

Apesar de Plutarco fazer referecircncia a um episoacutedio relatado pelos romanos a citaccedilatildeo que norteia seu raciociacutenio eacute a do poeta peloponeacutesio Filoacutexeno (seacutec V aC) de um poema intitulado Ciclope e Galateia (frag 9 [822] Page) Nosso autor continua demonstrando a forccedila do sentimento amoroso regido por Eros colocando em prosa estes versos de uma ceacutelebre ode de Safo (frag 31 Loebe-Page)

Mas se por causa de Lisandra oacute Dafneu natildeo esqueceste dos antigos rapazes lembra-nos que a bela Safo diz em seus versos que ao surgir da amada sua voz refreia seu corpo inflama e apoderam-se dela a palidez o devaneio e a vertigem(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763A)

Em seu diaacutelogo com a tradiccedilatildeo poeacutetica grega Plutarco discorda da avaliaccedilatildeo de Menandro sobre o caraacuteter doentio assumido pelo amoroso registrado em fragmentos de uma comeacutedia desconhecida (frag 791 7-8 Nauck-Snell) e reforccedila seu argumento contraacuterio ao comedioacutegrafo com um verso de uma trageacutedia tambeacutem desconhecida de Eacutesquilo (frag 351 Nauck)

Natildeo apreendemos nem compreendemos o dito porMenandro perigosa doenccedilada alma o ferido de bom grado eacute golpeado

Mas o deus eacute a causa que ataca um e aprova outroEntatildeo o que mais tinha de ser dito no princiacutepio e neste instante ldquoporque agora veio agrave bocardquo conforme Eacutesquiloparece-me que nada se pode ocultar por ser em tudograndioso(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763B)

Em razatildeo da diversidade de autores selecionados para compor sua argumen-taccedilatildeo sobre a necessidade de um deus regente do amor Plutarco entra em contato com autores de variadas eacutepocas e estilos Assim ele verifica que haacute visotildees diferentes sobre Eros entre os poetas os filoacutesofos e os legisladores Para demonstrar suas concepccedilotildees diferenciadas nosso autor nos apresenta primeiro a noccedilatildeo que os filoacutesofos tecircm dos deuses apresentando os seguintes versos de Piacutendaro (frag 143 Snell-Maehler)cxxxvi

De fato os deuses dos filoacutesofos satildeo os sem doenccedila nem velhicee inexperientes em penas que porruidosa

via escaparam de Aqueronte(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763C)

Entretanto apesar de os poetas e os legisladores divergirem em muitos aspec-tos (PLUTRACO Diaacutelogo do Amor 763D) Plutarco nos mostra que eles satildeo concordes quanto a Eros ser o deus regente dos relacionamentos amorosos Outrossim registra os versos de Alceu e de Euriacutepides respectivamente fragmento 348 Lobel-Page e frag-mento 595 Nauck-Snell para concluir que

Seguramente os melhores poetas legisladores e filoacutesofos concordam sobre um e juntos inscrevem Eros entre os deuses que ldquoem uniacutessona voz tanto louvaramrdquo como dizia Alceu sobre Piacutetaco quando eleito tirano pelos mitilecircnios Para noacutes Eros eacute rei arconte e harmosta nas matildeos de He-siacuteodo Platatildeo e Soacutelon ele eacute conduzido coroado do Heacuteli-con para a Academia e adornado entra triunfante entre muitas parelhas de amizade e uniatildeo natildeo como Euriacutepides afirma

subjugado por grilhotildees natildeo de bronze

envolta pelo frio e pelo peso na carne sob vergonhosa ne-cessidade mas alada condutora para as mais belas e di-vinas coisas do ser sobre as quais outros falaram melhor(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 763E-F)

Plutarco prossegue seu discurso refutando a comparaccedilatildeo que se costuma esta-belecer entre Eros e o sol O autor afirma que o poder do deus eacute superior ao do astro porque nos guia agraves praacuteticas virtuosas e nos conduz agrave busca pela verdade Para funda-mentar seu discurso nosso autor exemplifica seu pensamento com uma passagem de Euriacutepides (Hipoacutelito 193-195) conforme lemos a seguir

o convence a demandar em si mesmo e ao seu redor pela verdade e pelo resto dos assuntos e nada de outro lugar

Parecemos ensandecidos de amorpor tudo que brilha sobre a terra

como Euriacutepides diz

por inexperiecircncia de outra vida(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 764E)

A escolha de versos dessa peccedila euripidiana indica a habilidade retoacuterica de Plu-tarco Ele tenta transmitir o comedimento sexual dos cocircnjuges ao lembrar Hipoacutelito o personagem casto e adorador da virgem Aacutertemis que evita as investidas de sua ma-drasta Fedra A clareza do jovem diante da impostura de sua madrasta eacute relaciona-

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da por Plutarco ao amor que ele dedica agrave deusa caccediladora um sentimento ao qual se manteacutem fiel pela lucidez que Eros lhe traz por meio de seu amor Entatildeo a clareza estaacute em Eros e a claridade excessiva estaacute no sol pois este ldquoparece que atordoa a memoacuteria e envenena o raciociacuteniordquo (ἐκπλήττειν ἔοικε τὴν μνήμην καὶ φαρμάττειν τὴν διάνοιαν ὁ ἥλιος) (764E-F) A verdadeira realidade contudo natildeo estaacute no raciociacutenio mas na alma que Eros possui e conforme lemos neste hexacircmetro do poeta Caliacutemaco (frag 381 Sch-neider)

Em torno dela dolosos e afaacuteveis sonhos verte(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 764F)

Haacute neste tratado a acentuada referecircncia a versos de poetas gregos de diversos estilos e periacuteodos para fundamentar o discurso de Plutarco sobre a importacircncia de Eros no relacionamento amoroso Dado que leva nosso autor a reconhecer que natildeo haacute unidade no pensamento dos poetas sobre a natureza divina do deus e a endereccedilar suas criacuteticas a grande parte deles afirmando que

A maioria dos poetas parece zombar e ridicularizar o deus quando escreve sobre ele e o celebra em cantos e pouco foi dito com seriedade por eles quer pela inteligecircncia e ra-ciociacutenio quer pela vontade divina que tocasse a verdade nestes versos haacute um dado sobre sua origem

O mais terriacutevel dos deusesque Iacuteris de belas sandaacutelias gerouapoacutes unir-se a Zeacutefiro de aacuteurea cabeleira

A natildeo ser que os gramaacuteticos tenham vos persuadido por dizerem que sua representaccedilatildeo nasce para brilho e colori-do da paixatildeo(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 765E)

Embora Plutarco construa parte significativa de sua argumentaccedilatildeo apoiado na produccedilatildeo poeacutetica grega percebemos nos versos supracitados a sua manobra re-toacuterica para desautorizar a versatildeo dada pelo poeta Alceu (frag 327 Lobel-Page) para a origem de Eros Isso porque ele jaacute havia dado razatildeo a Hesiacuteodo que o nomeou um deus primordial do qual todos vieram depois (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 756D-F) No trecho acima nosso autor ironiza ainda o entendimento que os gramaacuteticos tecircm da participaccedilatildeo de Eros cxxvii no relacionamento amoroso como se o deus fosse apenas um expediente para conferir imaginaccedilatildeo aos poetas e para o deleite de seus leitores ou ouvintes

Recorrendo a dois versos (frag 360 Kock e frag 355 Kannicht-Snell) de auto-ria e tiacutetulos desconhecidos Plutarco constroacutei o seguinte discurso

O voluptuoso natildeo ao ser interrogado se

ao feminino tende mais do que ao masculino

e ele responder

agrada-me onde houver beleza sou ambidestro

parece que respondeu pelo desejo sexual O nobre e afeito ao belo natildeo pela beleza nem pelo fiacutesico mas pelas diferenccedilas dos genitais escolhe seus amores(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 766F-767A)

Nosso autor mostra claramente que a relaccedilatildeo regida por Eros eacute a estabelecida entre um homem e uma mulher Salvo em conduta militar ou amor por alguma divin-dade o relacionamento homoeroacutetico natildeo pertence ao domiacutenio do verdadeiro deus No-tamos que a defesa do amor e do casamento demanda ainda a participaccedilatildeo da mulher como um ser confiaacutevel e virtuoso Portanto empregando uma expressatildeo de Crisipo (frag 718 von Arnim) um filoacutesofo estoico e dois versos de uma peccedila desconhecida de Eacutesquilo (frag 2431-2 Nauck) nosso autor segue sua explicaccedilatildeo esclarecendo que as mulheres tambeacutem satildeo influenciadas pelo poder de Eros

Todavia afirmam que a juventude eacute ldquoa flor da virtuderdquo e que o gecircnero feminino natildeo mostraria tal florescecircncia nem teria a aparecircncia natural para a virtude isso eacute um absur-do Pois tambeacutem Eacutesquilo com correccedilatildeo compocircs da jovem mulher natildeo me escapa o inflamadoolhar a que por um homem foi provada

Entatildeo de um caraacuteter impudente licencioso e corrupto di-funde-se sinais na aparecircncia das mulheres(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767B)

A participaccedilatildeo feminina no amor nasce da necessidade dos amantes regidos por Eros de formar uma unidade por se tratar de uma fusatildeo de almas natildeo de uma ldquocomunhatildeo de amigosrdquo (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767E) conforme a expressatildeo contida em Dioacutegenes de Laeacutercio (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres VIII 10) atri-buiacuteda aos filoacutesofos estoicos Citando um verso de uma peccedila desconhecida de Eacutesquilo (frag 785 Nauck) Plutarco reafirma que Eros atua sobre a mulher envolvida em um relacionamento amoroso no casamento pois o matrimocircnio eacute

Obra de muitas reacutedeas e lemes

estaacute sempre nas matildeos dos cocircnjuges Compartilha com Eros tamanho autodomiacutenio dececircncia e confianccedila de modo que quando um dia toca uma alma licenciosa ela retira-se dos outros amantes extirpa a audaacutecia e abate a

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soberba e a imoralidade levando ao pudor quietude e de-coro e veste-a de forma decente e torna-a a ouvinte de um uacutenico(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767E-F)

Como exemplos de suas afirmaccedilotildees sobre o poder de Eros atuar por igual em homens e mulheres Plutarco relata vaacuterios exemplos de mulheres que mudaram seus haacutebitos ou que mantiveram sua honra quando tomadas de amor por um homem Se-lecionamos o exemplo de Laiacutes notaacutevel cortesatilde da cidade de Corinto no seacuteculo V aC onde nosso autor usa um verso de uma peccedila perdida de Euriacutepides (frag 1084 Nauck--Snell) para afirmar que

Depois que o amor a tocou pelo tessaacutelio Hipoacutelico

ela deixou para traacutes a Acrocorinto banhada por verdesaacuteguas

e fugiu escondida da grande tropa de outros amantes e de um grande exeacutercito de cortesatildes partiu com dececircncia(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 767F-768A)

Nosso autor costura seu argumento sobre a virtude feminina no casamento para edificar o matrimocircnio entre um homem e uma mulher Como contraponto Plu-tarco lanccedila seu olhar sobre a relaccedilatildeo de indiviacuteduos do sexo masculino tratada como desprovida de amor conforme exemplifica com um verso de uma peccedila de tiacutetulo e autoria desconhecidos (frag 409 Nauck) e dois versos de uma peccedila desconhecida de Soacutefocles (frag 770 Nauck)

A comunhatildeo de um do gecircnero masculino com outro que eacute mais pela intemperanccedila e coacutepula algueacutem com reflexatildeo diria que

Este feito eacute de Hiacutebris natildeo de Ciacutepris

Por isso pondo os que se comprazem em ser passivos consideramos o pior gecircnero de viacutecio sem participaccedilatildeo de confianccedila nem pudor e nem de amizade mas na verdade conforme Soacutefocles

Os de tais amigos destituiacutedosalegram-se os que tecircm desejam fugir(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 768E)

A relaccedilatildeo amorosa entre homens se mostra incompleta e fugaz pela ausecircncia de amizade e de respeito entre os amantes O amor entre homens e mulheres diferen-cia-se pela profundidade de sua amizade e pela constituiccedilatildeo de seu caraacuteter virtuoso

Por isso Plutarco continua seu discurso com versos de um desconhecido poeta cocircmico (frags 222-224 Kock) para demonstrar como a relaccedilatildeo pederasta carece de virtude

ao ver teu semblante familiar perdi o chatildeoImberbe tenro e belo jovemunido a ele eu morra e que isso valha um epigrama(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 769B)

A desmedida do amor entre homens contrapotildee-se ao equiliacutebrio de um homem unido a uma mulher virtuosa como nos mostra nosso autor com este verso de uma comeacutedia de autoria e tiacutetulo desconhecidos (frag 221 Kock)

A uma mulher honesta e prudente exortaria a sacrificar a Eros para que ele benevolente conviva em seu casamen-to e adornea-a com todos os temperos femininos que seu marido natildeo se perca por outra e seja obrigado a proferir falas de uma comeacutedia

Tal mulher injuriei eu sou um infeliz

Amar no casamento eacute um bem maior do que ser amado(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 769D)

Provavelmente Plutarco tece seus comentaacuterios tendo como referecircncia sua es-posa Timocircxena ldquouma mulher honesta e prudenterdquo visto que ele a trouxe para Teacutespias a fim de realizar sacrifiacutecios em honra a Eros (PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 749B) Com isso ele exalta as qualidades de sua esposa e revela a sua felicidade no casamento Talvez isso explique porque nosso autor lembra em seguida de Homero (Odisseia VI 183-184) para registrar seu argumento de que o casamento eacute a maior fonte de prazer

quando concordes em pensamentos um lar tenhamum homem e uma mulher(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 770A)

De acordo com Plutarco trata-se de uma uniatildeo que eacute sustentada natildeo somente pelas leis humanas mas tambeacutem pelas leis da natureza Ambas necessitam da procria-ccedilatildeo a cidade para a sua manutenccedilatildeo do quadro de cidadatildeos e a espeacutecie humana para a sua continuidade Identificamos entatildeo a contribuiccedilatildeo da filosofia platocircnica (PLATAtildeO O Banquete 207a) quanto a definiccedilatildeo de Eros como a divindade que inspira o desejo de imortalidade no homem por isso a procriaccedilatildeo (SANTAS 1979 p 71) Da doutrina estoica nosso autor traz a visatildeo do filoacutesofo Zenatildeo de que Eros contribui para a salvaccedilatildeo da cidade conforme assinalado por Ateneu (Deipnosofistas 561c-d) (BOYS-STONES 1998 p 168) Por conseguinte Plutarco expotildee seu raciociacutenio usando um verso de uma trageacutedia desconhecida de Euriacutepides

De fato a lei os ampara e a natureza mostra que os deuses

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necessitam de Eros para a procriaccedilatildeo regular Assim os poetas dizem

a terra ama a chuva

e o ceacuteu a terra e os fiacutesicos dizem que o sol ama a lua para copular e fecundar(PLUTARCO Diaacutelogo do Amor 770A)

Com essa uacuteltima citaccedilatildeo de Plutarco em seu diaacutelogo encerramos nossa expo-siccedilatildeo do uso plutarquiano dos autores gregos Nela demonstramos que nosso autor referencia obras de vaacuterias escolas filosoacuteficas diversos estilos poeacuteticos e diferentes tipos de prosa para compor o seu discurso argumentativo o que revela seu vasto conheci-mento da produccedilatildeo literaacuteria grega Poucas satildeo as referecircncias a autores latinos como a citaccedilatildeo de Platatildeo (Diaacutelogo do Amor 749A) aludindo Petrocircnio (Satiacutericon 131) sobre o Ilisso e o mito de Caco (Diaacutelogo do Amor 762F) tambeacutem relatado por Virgiacutelio (Eneida VIII 184-275) Ao longo desta anaacutelise verificamos quatildeo importante eacute a contribuiccedilatildeo de Diaacutelogo do Amor para o conhecimento da visatildeo dos poetas gregos acerca desse sen-timento tal como a influecircncia da filosofia e da religiatildeo para a construccedilatildeo da teoria do amor de Plutarco

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Contribuiccedilotildees dosEstudos Claacutessicos para a Histoacuteria das Ciecircncias da

Linguagem 69

6

Fabio Fortes

A histoacuteria da ciecircncia e da linguagem

Em fevereiro de 1962 Thomas Kuhn publicava na Califoacuternia A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas O seu ldquoensaiordquo como despretensiosamente o autor o qualifica representou a incursatildeo de um fiacutesico teoacuterico no campo da histoacuteria e da filosofia da ciecircn-cia oferecendo agrave comunidade da eacutepoca uma concepccedilatildeo que teria grande impacto para pensar os processos de amadurecimento e transformaccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico

Na obra em questatildeo Thomas Kuhn conferia papel central agraves noccedilotildees de ldquopa-radigmardquo e ldquorevoluccedilatildeordquo sendo que em sua perspectiva tais conceitos natildeo derivavam exclusivamente de propriedades intriacutensecas agraves proacuteprias teorias mas tambeacutem de ten-sotildees culturais sociais e poliacuteticas existentes no interior da comunidade cientiacutefica Com efeito o que tornaria um paradigma dominante seria natildeo somente o resultado da ca-pacidade inerente de determinada teoria para resolver problemas colocados pelos cien-tistas mas tambeacutem decorreria da natureza dos proacuteprios problemas que se elegem e se mantecircm como agenda investigativa em dada eacutepoca

Aleacutem disso um paradigma dominante definidor da ldquociecircncia normalrdquo mobili-zaria grupos de cientistas em seu apoio os quais buscariam aperfeiccediloaacute-lo com inova-ccedilotildees e novas propostas mas natildeo no sentido de alteraacute-lo substancialmente ao contraacute-rio em diaacutelogo com a tradiccedilatildeo que o sustenta os pesquisadores da ldquociecircncia normalrdquo estariam antes preocupados em manter a estabilidade do que em reformular ou mudar o paradigma Qualquer mudanccedila radical soacute poderia portanto ocorrer via revoluccedilatildeo o que deslocaria natildeo somente as teorias do seu lugar mas tambeacutem as suas praacuteticas os seus meacutetodos as comunidades e sujeitos dessa ciecircncia

Na mesma eacutepoca Noam Chomsky publicava em 1966 o ensaio Linguiacutestica cartesiana no qual recuando aos seacuteculos XVIII e XIX o chamado ldquoPapardquo da Linguiacutestica Gerativa certamente ainda um dos maiores nomes da Linguiacutestica contemporacircnea re-conhecia alguns dos princiacutepios fundamentais de sua ciecircncia no chamado pensamento ldquocartesianordquo Segundo Chomsky os estruturalistas da primeira metade do seacuteculo XX haviam descartado um fecundo pensamento sobre a linguagem no acircmbito da obra dos pensadores racionalistas dos seacuteculos XVIII e XIX Em trabalhos de estudiosos como Descartes Schlegel Humboldt e outros jaacute estaria patente segundo o linguista ameri-cano a noccedilatildeo de que a linguagem humana conquanto fosse uma faculdade bioloacutegica e natural permitiria ao ser humano tambeacutem se diferenciar dos outros animais ao servir natildeo propriamente como forma de comunicaccedilatildeo mas como expressatildeo do pensamento

Tratava-se portanto de iluminar a concepccedilatildeo de linguagem como forma (e

natildeo substacircncia) da qual decorreria seus princiacutepios racionais intriacutensecos e universais responsaacuteveis pelas regras sintaacuteticas e morfoloacutegicas e natildeo necessariamente da manei-ra como ela seria efetivamente usada A oposiccedilatildeo humboldtiana por exemplo entre forma e caraacuteter reconhecer-se-ia como o geacutermen da dicotomia a ser fortemente de-fendida pelo proacuteprio Chomsky e os gerativistas logo na primeira fase de sua teoria a

69 O presente trabalho decorre de pesquisa de Poacutes-Doutorado realizada no Deacutepartement de Sciences de lrsquoAntiquiteacute da Universidade de Liegravege na Beacutelgica (2019-2020) e foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001 Bolsa Professor Visitante Juacutenior

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dicotomia entre competecircncia e performance (cf Chomsky 1975 p 90) Embora situadas dentro da mesma deacutecada e igualmente resultantes de refle-

xotildees epistemoloacutegicas talvez natildeo seja possiacutevel avanccedilarmos no paralelo entre as obras de Thomas Kuhn e Noam Chomsky por se erigirem sobre arcabouccedilos teoacutericos distintos e olharem para objetos e arcos temporais de dimensotildees natildeo necessariamente compatiacute-veis Em todo caso embora partissem da histoacuteria de duas disciplinas distintas ndash a Fiacutesica e a Linguiacutestica ndash o que Thomas Kuhn e Chomsky lograram realizar eacute uma espeacutecie de retorno ao passado uma historicizaccedilatildeo dos modos e das praacuteticas cientiacuteficas afastan-do-se nos dois casos ndash ainda que por pouco tempo ndash dos modelos imanentes formais e centrados no presente que reinavam absolutos ateacute entatildeo no domiacutenio das duas disci-plinas Em vez disso Thomas Kuhn e Noam Chomsky reivindicavam da histoacuteria e do passado de seus campos noccedilotildees que permitissem a compreensatildeo da ciecircncia praticada em sua eacutepoca Ambos traziam portanto para o seio da proacutepria ciecircncia uma inquieta-ccedilatildeo intelectual que se tornaria constante na segunda metade do seacuteculo XX a revisatildeo criacutetica de sua histoacuteria Satildeo provas de que revisar o passado tem se tornado crescente-mente um imperativo das ciecircncias apoacutes o seacuteculo XX essa atitude define talvez para nossa eacutepoca aquilo a que Hegel veio a chamar de Zeitgeist ldquoo espiacuterito do tempordquo em sua Filosofia da Histoacuteria

Com efeito data da segunda metade do seacuteculo XX o iniacutecio de um empreendi-

mento que teve por meta produzir uma histoacuteria das ciecircncias em geral e da linguagem em particular Os trabalhos do inglecircs Robins (1967) do francecircs Mounin (1967) doro-meno Coseriu (1969) e ateacute mesmo do brasileiro Mattoso Camara Jr (original de 1962)cxxxviii satildeo bons exemplos de manuais que tentaram escrever uma vigorosa histoacuteria do pensamento linguiacutestico (registrando como natildeo poderia deixar de ser uma raacutepida visi-ta aos mais remotos ancestrais gregos e latinos)cxxxix Todavia uma investigaccedilatildeo menos enviesada pelo olhar da proacutepria Linguiacutestica de suas preocupaccedilotildees e objetos teoacutericos soacute viria agrave tona com a emergecircncia de perioacutedicos internacionais dedicados ao tema tais como Historiographia Linguistica (1974-) a Histoire Eacutepistemologie Langage (1979-) e mais recentemente a Beitraumlge zur Geschichte der Sprachwissenschaft (1991-) que tor-naram possiacutevel o reconhecimento e a institucionalizaccedilatildeo desse amplo campo de estu-dos que tem como preocupaccedilatildeo um retorno agraves fontes histoacutericas do pensamento sobre a linguagem fora dos limites dos objetivos que outrora eram buscados o de legitimar praacuteticas presentes ou o de avaliar o niacutevel de cientificidadeverdade de determinado movimento teoacuterico do passado em uma atitude bastante anacrocircnica (Fortes 2011)

Os Estudos Claacutessicos e a teoria gramatical antiga

Para a assim considerada relevante incursatildeo dos historiadores da Linguiacutestica em domiacutenios da Antiguidade grega e latina em cujo bojo ter-se-iam fundado as ciecircn-cias e as instituiccedilotildees ocidentais ndash e ipso facto um capiacutetulo dessa histoacuteria ndash natildeo seria de pouca monta o empreendimento de esforccedilos para examinar e assimilar fontes muito afastadas no tempo fontes redigidas nas liacutenguas claacutessicas e rarissimamente visitadas ateacute entatildeo ateacute mesmo pelos classicistas cxli Em que pese isso vale ainda perguntar para aleacutem do aspecto propriamente tradicional dessa espeacutecie de ldquoretorno aos antigosrdquo cxlii restariam ainda contribuiccedilotildees objetivas dos textos em grego e latim para pensar a

histoacuteria do pensamento linguiacutestico

Em favor dessa pesquisa poder-se-ia aqui salientar em primeiro lugar que o aproveitamento de temas metalinguiacutesticos do remoto passado grego e romano refor-ccedilaria a ideia da proacutepria Linguiacutestica enquanto um empreendimento histoacuterico Embora natildeo fizessem uma Linguiacutestica ndash o que seria um flagrante anacronismo ndash os antigos gramaacuteticos filoacutesofos e retoacutericos do mundo grego e romano pensaram e desenvolve-ram conceitos teorias princiacutepios e aplicaccedilotildees tecnoloacutegicas da linguagem aplicados agrave resoluccedilatildeo de problemas de linguagem de sua eacutepoca ou motivados por inquietaccedilotildees in-telectuais proacuteprias agrave sua maneira de ver o mundo Com efeito se com Sylvain Auroux (1992 p 12) nos rendemos ao fato de que a Linguiacutestica natildeo resiste agrave estabilidade do seu proacuteprio nome visto que nascido de um neologismo alematildeo do seacuteculo XVIII ela a Linguiacutestica

se trata ldquode uma forma de estruturaccedilatildeo do saber eminen-temente transitoacuteria que estaacute provavelmente em vias de desaparecer sob nossos olhos (eacute por isto que recorremos cada vez mais agrave expressatildeo plural ldquociecircncias da linguagemrdquo)

Como sustentar o mito de que tal ciecircncia representaria um empreendimento estaacutevel monoliacutetico coerente e verdadeiro se ampliamos o arco de anaacutelise e encon-tramos nos seus ldquopredecessoresrdquo notaacuteveis contradiccedilotildees e desconcertantes paralelos Certamente com o avanccedilo das pesquisas em torno de antigos manuais compecircndios gramaacuteticas tratados filosoacuteficos ou retoacutericos que tematizavam a linguagem mais se revela a permanecircncia e a transformaccedilatildeo de conceitos que ora estavam na base do que os modernos chamaram de Linguiacutestica ndash ainda que os sujeitos do mundo antigo certa-mente estivessem movidos por propoacutesitos e problemas muito diferentes que os leva-vam a olhar para suas liacutenguas No entanto desse labirinto de reflexotildees antigas sobre a linguagem se podem destacar por vezes soluccedilotildees inesperadas para os problemas que ainda nos colocamos bem como o desenvolvimento de princiacutepios que embora possam estar esquecidos na noite do tempo satildeo suscetiacuteveis de uma reabilitaccedilatildeo para um necessaacuterio arejamento de nossas agendas de pesquisa talvez um tanto gastas pela manutenccedilatildeo longeva de um mesmo paradigma

Um breve exemplo a permanecircncia nos estudos linguiacutesticos modernos da ter-minologia gramatical claacutessica (como por exemplo o nome das partes do discurso ndash nome verbo pronome adveacuterbio etc) ou mesmo de conceitos (como o de caso con-cordacircncia oraccedilatildeo sintaxe entre outros) desafia o estudioso moderno a reconhecer a instabilidade e a relatividade dos princiacutepios teoacutericos da sua ciecircncia A permanecircncia de um mesmo quadro terminoloacutegico natildeo eacute banal tampouco irrelevante instiga uma bus-ca pela compreensatildeo das diferenccedilas e dos pontos de contato exerciacutecio de anaacutelise que tem o meacuterito de tornar histoacuteria da Linguiacutestica menos teleoloacutegica ndash os antigos como preparaccedilatildeo para um futuro mais avanccedilado ndash e tampouco subtrair agraves praacuteticas presentes as suas especificidades em nome de uma espeacutecie de elogio dos antigos uma versatildeo da jaacute encardida auctoritas veterum que em algum momento do passado alccedilou os gregos e os latinos agrave condiccedilatildeo de sujeitos de uma civilizaccedilatildeo superior Ambas as atitudes com efeito soam anacrocircnicas buscar nos antigos respostas a nossos questionamentos seria

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lanccedilar agrave sombra as suas idiossincrasias enquanto refutaacute-los por natildeo responderem aos nossos anseios seria exigir deles um conhecimento do futuro

O fato eacute que por soacutelida e contiacutenua que pareccedila a tradiccedilatildeo terminoloacutegica que co-

loca na mesma linha por exemplo Aristoacuteteles e os mais recentes gramaacuteticos e linguis-tas que parecem falar a mesma liacutengua quando se evocam nomes verbos conectivos cliacuteticos adveacuterbios caso etc quando vistos no detalhe poreacutem natildeo poucas comple-xidades reviravoltas especializaccedilotildees conceituais transposiccedilotildees para contextos dife-renciados etc tais termos parecem ter sofrido Um exame dos diferentes sentidos que tais termos engendraram no passado a maneira como foram lidos e aproveitados pelos coetacircneos e a maneira como foram recebidos e readaptados a outras reflexotildees no campo dos estudos da linguagem levam o estudioso a relativizar ou mesmo a abdicar de concepccedilotildees preestabelecidas a partir de seu tempo entre os quais aquele que consi-derava ateacute haacute pouco as liacutenguas e a linguagem como objetos exclusivos da Linguiacutestica um objeto delimitado e essencialmente imanente como diria Saussure ldquoas liacutenguas nelas e por elas mesmasrdquo (Saussure 1973 [1916] p 28) um objeto que desde o final do seacuteculo XIX buscou a sua autonomia a sua maioridade e independecircncia em relaccedilatildeo aos seus ancestrais Em suma por mais que na histoacuteria seja impossiacutevel voltar a ser grego ou romano e a pensar como os antigos pensavam eacute preciso reconhecer que ldquoesta longa duraccedilatildeo do passado natildeo deve no entanto impedir o historiador de se distanciar do passado uma distacircncia reverente necessaacuteria para que o respeite e evite o anacro-nismo (Le Goff 2003 p 26)

Sendo assim classicistas de renome internacional como Viacutevien Law (1984 1986 1993 2003 2005[1995]) Ildefonse (1997) Baratin (1981 1989) Desbordes (2007) Swiggers (1992 2010 2013) entre outros assim como classicistas brasileiros que a partir das duas uacuteltimas deacutecadas parecem encontrar nos textos metalinguiacutesticos antigos relevante fonte para variados estudos entre os quais a tiacutetulo de ilustraccedilatildeo poderiacuteamos destacar Moura Neves (1987) Borges Neto (1991 2004) Pereira (2002 2006) e Martinho (2002 2009) ndash e a obra de muitos de seus orientandos e ex-orien-tandos muitos dos quais aliaacutes jaacute ocupam posiccedilotildees nas universidades cxliii Tais estu-diosos para aleacutem de produzirem trabalhos que repercutem diretamente na maneira como a histoacuteria das ciecircncias da linguagem eacute contada acabam tambeacutem para sermos otimistas por influenciar a maneira como a Linguiacutestica ndash lato sensu ndash eacute pensada no Brasil

Diferentemente das primeiras posiccedilotildees adotadas como a de um Robins (1951

1967) que liam os latinos para detectar-lhes as omissotildees teoacutericas que cometeram se comparados com os estruturalistas de um tempo muito posterior ou mesmo um Mat-toso Camara Juacutenior (1979) que relegava a gramaacutetica antiga agrave desconfortaacutevel posiccedilatildeo de ldquopreacute-Linguiacutesticardquo um estaacutegio ainda carente da cientificidade e do acabamento da ciecircncia de sua eacutepoca esses novos estudos reforccedilam a neutralidade epistemoloacutegica e o historicismo moderado que conforme tambeacutem nos ensina Auroux (1992 p 14-15) satildeo princiacutepios fundamentais da nova histoacuteria do pensamento linguiacutestico cxliv o que nos remete agrave questatildeo metodoloacutegica envolvida no tratamento contemporacircneo desse corpus de autores do passado

A questatildeo metodoloacutegica No campo dos Estudos Claacutessicos as pesquisas sobre os diferentes textos gre-

gos e latinos podem ter como aporte diferentes teorias modernas de leitura tais como a anaacutelise do discurso a intertextualidade a filologia etc aleacutem de colher na proacutepria retoacuterica antiga elementos para subsidiar as interpretaccedilotildees modernas No campo dos estudos que tenham por objetivo recuperar os elementos de uma tradiccedilatildeo de estudos sobre a linguagem uma das perspectivas que se tem mostrado mais produtiva eacute a da Historiografia da Linguiacutestica (HL)

Nessa perspectiva teoacuterica um dos pontos centrais consiste em compreender o

corpus a partir daquilo que Swiggers (2013) chama de ldquonoccedilatildeo problemaacutetica de textordquo que envolve entre outros fatores 1) a sua inserccedilatildeo em circuitos mais amplos de circu-laccedilatildeo 2) a sua posiccedilatildeo nos sistemas culturais 3) a sua estrutura global 4) a natureza de seu papel dinacircmico

Por isso a pesquisa em torno desse tipo de corpus natildeo pode prescindir de um

atento e rigoroso estudo dos contextos de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo da obra in-vestigada amparado em bibliografia secundaacuteria e primaacuteria pertinentes Nesse sentido requer-se tambeacutem uma incursatildeo nos modos de transmissatildeo e difusatildeo manuscrita do texto bem como sua recepccedilatildeo agrave sua eacutepoca e seu modo de aplicaccedilatildeo nas praacuteticas de uso desse texto na eacutepoca em que foi produzido tendo em vista as questotildees que o motiva-ram os problemas que buscavam solucionar eou as suas aplicaccedilotildees

Em geral para esse tipo de anaacutelise levam-se em conta trecircs grandes princiacutepios formulados por Koerner (2014 p 58) que representam tambeacutem trecircs etapas da pes-quisa

1) o princiacutepio da contextualizaccedilatildeo que consiste em estabelecer o ldquoclima de opiniatildeordquo em que um determinado texto foi produzido o que representa levar em conta natildeo so-mente questotildees ligadas ao desenvolvimento teoacuterico em questatildeo nesse texto mas aos fatores sociais histoacutericos culturais que justificaram a sua proposiccedilatildeo enquanto um monumento da cultura de sua eacutepoca

Como afirma Koerner acerca desse princiacutepio

As ideias linguiacutesticas nunca se desenvolveram indepen-dentemente de outras correntes intelectuais do periacuteodo em que surgiram Na verdade o que Goethe chamou de Geist der Zeiten sempre deixou as suas marcas no pensa-mento linguiacutestico Por vezes a influecircncia da situaccedilatildeo so-cioeconoacutemica e mesmo poliacutetica deve igualmente ser tida em conta (considere-se a discussatildeo sobre a lsquoordem natu-ralrsquo da organizaccedilatildeo sintaacutetica na Franccedila do seacuteculo XVIII na qual o francecircs foi apresentado como uma liacutengua superior agraves outras e as aspiraccedilotildees de supremacia poliacutetica da Franccedila no mesmo periacuteodo)

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(Koerner 2014 p 58)

2) o princiacutepio da imanecircncia consiste na leitura imanente do texto do ponto de vista de seu estabelecimento criacutetico (filoloacutegico) de sua construccedilatildeo enquanto um objeto dis-cursivo (o seu gecircnero) e em relaccedilatildeo aos elementos teoacutericos analiacuteticos e empiacutericos que apresenta Trata-se portanto de uma espeacutecie de close reading para o que eacute crucial o esforccedilo que o analista empreende para se desvencilhar do seu arcabouccedilo teoacuterico do presente tendo em vista um esforccedilo de escutar os sentidos que os conceitos possuiacuteam no contexto em que foram formulados tendo em vista as finalidade do gecircnero em questatildeo (se eacute uma gramaacutetica escolar se eacute um tratado de loacutegica um manual de retoacuterica etc)

3) o princiacutepio da adequaccedilatildeo tendo realizado as duas primeiras etapas o estudioso poderaacute entatildeo buscar traccedilar aproximaccedilotildees comparaccedilotildees diferenciaccedilotildees entre o qua-dro conceptual da obra em questatildeo e eventualmente suas ressonacircncias em outros pe-riacuteodos inclusive na contemporaneidade Particularmente para a traduccedilatildeo de textos gregos e latinos eacute crucial que na anotaccedilatildeo o analista busque oferecer ao leitor iacutendices dessa adequaccedilatildeo para assegurar que o texto antigo seja compreensiacutevel aos leitores contemporacircneos

Como exemplifica Koerner (1995 p 59)

Claro que eacute necessaacuterio que o investigador explique porquecirc e ateacute que ponto o conceito tardo-medieval de lsquosignificatio vocisrsquo por exemplo pode ser traduzido como lsquosignificadorsquo ou ateacute que ponto a distinccedilatildeo saussuriana entre lsquosincroniarsquo e lsquodiacroniarsquo pode ser aplicada a propostas teoacutericas ante-riores que tecircm a ver com a relaccedilatildeo entre a linguiacutestica lsquodes-critivarsquo e lsquohistoacutericarsquo Como regra o historioacutegrafo da linguiacutes-tica deve alertar o leitor para o facto de as aproximaccedilotildees terminoloacutegicas terem sido introduzidas por ele por outras palavras deve ser expliacutecito e preciso no que respeita agravequi-lo que na realidade estaacute a fazer Koerner (2014 p 59)

A aplicaccedilatildeo desses trecircs princiacutepios pressupotildee uma ldquoneutralidade epistemoloacutegi-cardquo e um ldquohistoricismo moderadordquo (Auroux 1992 p 12) A neutralidade epistemoloacutegi-ca diz respeito agrave noccedilatildeo de ldquociecircnciardquo com que se opera ldquociecircnciardquo deve ser tomada como palavra descritiva natildeo normativa Segundo Auroux (1992) ldquonatildeo faz parte do nosso papel dizer se isto eacute mais ciecircncia do que aquilo mesmo se nos acontecer de sustentar que isto ou aquilo eacute concebido como ciecircncia por este ou aquele criteacuteriordquo Quanto ao his-toricismo moderado ele consiste na concepccedilatildeo que prevecirc em certa medida indepen-decircncia entre o saber historicamente construiacutedo e os fenocircmenos inerentes agrave linguagem enquanto expressatildeo humana em seus domiacutenios cognitivos e socio-culturais O valor de um saber linguiacutestico eacute dado de acordo com o grau de adequaccedilatildeo desse saber a um fim dado contudo isso natildeo deve conduzir ao ldquomito da incomparabilidaderdquo haja vista

que a linguagem instancia fenocircmenos que ao longo do tempo podem ter a mesma natureza como a sua relaccedilatildeo com identidade cultural norma variaccedilatildeo e mudanccedila organizaccedilatildeo loacutegica interna das palavras etc

Assim a consequecircncia da aplicaccedilatildeo dos trecircs hermenecircuticos da Historiografia da Linguiacutestica (o princiacutepio da contextualizaccedilatildeo o princiacutepio da imanecircncia e o princiacutepio da adequaccedilatildeo) articulados agrave noccedilatildeo problemaacutetica de texto agrave neutralidade epistemoloacute-gica e agrave abordagem historicista moderada eacute mitigar a noccedilatildeo de ciecircncia e de Linguiacutestica assentada sobre o mito do cientificismo progressista homogecircneo e estaacutevel e produzir em contrapartida a noccedilatildeo de que os saberes da Linguiacutestica como de resto de todo conhecimento satildeo em ampla medida uma realidade histoacuterica ainda que tenham como objeto de observaccedilatildeo fenocircmenos linguiacutesticos que podem ser em certa medida coteja-dos diacronicamente

Textos gramaticais antigos comentaacuterio e traduccedilatildeo

Se do ponto de vista teoacuterico a colaboraccedilatildeo do estudo de corpora de textos metalinguiacutesticos antigos para a histoacuteria das ciecircncias da linguagem parece-nos suficien-temente caracterizada tanto mais evidente mostra-se-nos a oportunidade de que se reveste a empreitada de traduzir tais textos Com as facilidades do mundo digital que franqueou aos estudiosos o acesso a parte consideraacutevel dos textos gramaticais antigos hoje classicistas podem se debruccedilar sobre farta documentaccedilatildeo que haacute apenas alguns anos se podia acessar somente presencialmente em determinadas bibliotecas sobre-tudo localizadas no Velho Mundo

Para termos a ideia da dimensatildeo do corpus atualmente disponiacutevel on-line acessarmos brevemente o portal do Corpus Corporumcxlv que reuacutene as obras conven-cionalmente atribuiacutedas aos gramaacuteticos latinos datadas de entre os seacuteculos III e VIII compiladas e editadas sobretudo pelo filoacutelogo alematildeo Heinrich Keil (Leipzig 1855-1880) somos confrontados com um cifra de mais de cem textos atribuiacutedos a cerca de 41 autores diferentes aleacutem de mais de duas dezenas de fragmentos e obras anocircnimas

Cobrindo desde manuais de ensino de gramaacutetica ndash as artes de extensatildeo varia-

da ndash ateacute longos tratados monograacuteficos sobre meacutetrica sintaxe figuras de linguagem entre outros que podem chegar ao montante de mais de um milhar de paacuteginas por obra a compilaccedilatildeo disponiacutevel assombra tanto pela sua complexidade ndash perfazem de fato diferentes gecircneros de textos gramaticais com assuntos variados e com propoacutesitos igualmente distintos natildeo permitindo por isso mesmo um tratamento global aleacutem de em vaacuterios casos serem exemplos de superposiccedilatildeo de textos recortes colagens paraacutefrases e ainda outros fenocircmenos textuais ligados agrave transmissatildeo ndash quanto tambeacutem impressionam pela sua dimensatildeo jaacute que com raras exceccedilotildees quase natildeo haacute traduccedilotildees em liacutenguas modernas

Sendo assim aleacutem de tratar dos aspectos propriamente teoacutericos desse corpus colaborando com subsiacutedios para a ldquohistoacuteria do pensamento gramaticalrdquo o classicista eacute tambeacutem convocado a dar a sua contribuiccedilatildeo com um amplo projeto de traduccedilatildeo co-

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mentaacuterio e anotaccedilatildeo desses textos que embora jaacute se consagre em iniciativas isoladas no Brasil (sobretudo fruto de dissertaccedilotildees e teses da aacuterea ) ainda natildeo se constitui como um grande projeto coletivo e unificado de caraacuteter multidisciplinar tal como ocorre em outros paiacuteses em particular na Franccedila Vejamos por exemplo o caso francecircs em relaccedilatildeo agrave traduccedilatildeo da obra de Prisciano

Ateacute precisamente 2008 a empreitada de traduccedilatildeo da obra de Prisciano (seacutec VI dC) gramaacutetico da Antiguidade Tardia natildeo havia sequer se iniciado em qualquer liacutengua moderna conquanto o lugar de proeminecircncia das suas Institutiones gramma-ticae para a compreensatildeo da transiccedilatildeo do pensamento antigo ao moderno fosse jaacute desde muito amplamente reconhecido o que sempre justificou o fato de ser aquela a obra mais citada pelos gramaacuteticos e dicionaristas medievais e modernos Com efeito dividida em 18 livros que cobrem dos domiacutenios miacutenimos da linguagem (os sons as siacutelabas os processos de formaccedilatildeo de palavras ndash Livro I) passando por uma exaustiva anaacutelise das partes da oraccedilatildeo (Livros II-XV) ateacute chegar no exame do domiacutenio da sin-taxe (Livros XVI e XVII) a obra de Prisciano perfaz seguramente mais de mil paacuteginas de texto latino em sua ediccedilatildeo moderna cobrindo temas de complexidade certamente ainda natildeo bem avaliada em seu conjunto

Na Franccedila o Grupo Ars grammatica formado por latinistas historiadores da ciecircncia e da gramaacutetica liderado por Marc Baratin e composto por Freacutedeacuterique Bivil-le Guillaume Bonnet Bernard Colombat Alessandro Garcea Louis Holtz Madeleine Keller Diane Marchand entre outros iniciaram a empreitada de traduzir Prisciano trabalho que jaacute rendeu a publicaccedilatildeo em 2010 do Livro XVII (Syntaxe I) e em 2012 dos Livros XIV XV e XVI (Les invariables) e em 2017 do Livro XVIII (Syntaxe II) O diferen-cial do trabalho de Baratin et alii eacute a apresentaccedilatildeo de uma traduccedilatildeo legiacutevel e fluente em francecircs moderno (em alguns casos adotando-se terminologia moderna da Linguiacutestica quando possiacutevel) mas tambeacutem o estudo criacutetico e as notas que auxiliam na compreen-satildeo do texto tornando-se portanto instrumental uacutetil tanto a classicistas que se voltam a textos outrora considerado ldquoperifeacutericosrdquo no amplo corpus de produccedilotildees escritas em latim quanto a historiadores da Linguiacutestica e a linguistas que perspectivam retomam e se revelam contemporaneamente interessados nos fundamentos histoacutericos e epis-temoloacutegicos de suas praacuteticas

No acircmbito brasileiro questotildees praacuteticas que envolvem o ainda pequeno contin-gente de profissionais dedicados agrave aacuterea (ainda que esteja em franco desenvolvimento com a multiplicaccedilatildeo de pesquisas fora dos maiores centros tradicionalmente dedicados aos Estudos Claacutessicos no Brasil) bem como restriccedilotildees proacuteprias do mercado editorial com espaccedilo reduzido a publicaccedilotildees de obras teacutecnicas da Antiguidade ndash principalmente biliacutengues ndash satildeo atualmente desafios que se apresentam no horizonte esperando solu-ccedilotildees que talvez passem pela crescente adesatildeo aos meacutetodos de trabalho coletivo media-dos pelo computador e pelas formas de publicaccedilatildeo alternativas em meio digital

Fora isso poder-se-ia tambeacutem elencar um certo estranhamento que tais pes-quisas geram ainda nos ciacuterculos linguiacutesticos ainda pouco afeitos ao caraacuteter essencial-mente inter- e transdisciplinar inerentes das pesquisas dos Estudos Claacutessicos ndash que oficialmente natildeo satildeo aacuterea reconhecida no Brasil a se considerar a tabela de aacuterea da

CAPES o que obriga classicistas se dividirem entre os estudiosos da subaacuterea de Letras (que envolve principalmente os Estudos Literaacuterios) e Linguiacutestica

Um terceiro aspecto importante mas certamente natildeo menor diz respeito ain-da agrave carecircncia de estudos em torno da proacutepria traduccedilatildeo Reconheccedilo muitas vezes uma lacuna teoacuterica e metodoloacutegica importante quando lidamos nessa aacuterea de forma que as traduccedilotildees realizadas pelos classicistas por bem cuidadas que o sejam ainda se ressen-tem de serem essencialmente artesanais e contarem minimamente com os recursos atualmente disponiacuteveis aos tradutores profissionais aleacutem de suscitarem pouca refle-xatildeo metatradutoacuteria (o que entretanto jaacute se inicia a fazer quanto agraves traduccedilotildees literaacute-rias de textos antigos no Brasil sobre as quais se jaacute se podem elencar significativos e valiosos exemplos)

Agrave guisa de conclusatildeo

Com esses apontamentos que natildeo se pretendem conclusivos parecem-nos ca-racterizados de algum modo os desafios mas tambeacutem a contribuiccedilatildeo que os Estudos Claacutessicos especialmente as investigaccedilotildees em torno da gramaacutetica antiga e os esforccedilos em torno da traduccedilatildeo e anotaccedilatildeo desse corpus tecircm a oferecer para pensar as refle-xotildees gramaticais erigidas pela tradiccedilatildeo ocidental contribuiccedilatildeo potencialmente capaz de produzir senatildeo impacto ao menos incocircmodo ou ruiacutedo entre os linguistas de nosso tempo Se essa tradiccedilatildeo representa tambeacutem uma teoria a investigaccedilatildeo de sua histoacuteria como tambeacutem nos informa Koerner

pode muito bem servir como um alerta contra as alega-ccedilotildees exageradas em termos de novidade originalidade inovaccedilatildeo e revoluccedilatildeo em nossas (re)descobertas e assim levar a um tipo menos polecircmico de discurso cientiacutefico () uma lsquomoderaccedilatildeo na teoria linguiacutesticarsquo (Koerner 2003 p 381)

Eacute claro que com essa histoacuteria tampouco podemos ter a presunccedilatildeo ingecircnua de chegarmos ao discurso dogmaacutetico do que seria ldquoa verdaderdquo ou de termos a posse de um recurso metodoloacutegico que nos permita medir como se tiveacutessemos uma reacutegua os trabalhos de colegas linguistas e gramaacuteticos de nosso tempo Paul Veyne afirmou certa vez que

A histoacuteria tem a faculdade de nos confundir ela nos con-fronta incessantemente com singularidades diante das quais nossa reaccedilatildeo mais natural eacute a de natildeo enxergar lon-ge de constatar que natildeo temos a chave adequada nem se-quer percebemos que natildeo haacute uma fechadura que deve ser aberta (VEYNE 1998 [1971] p 174)

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Falando com os mortosalguns epigramas

heleniacutesticos dialogadosem traduccedilatildeo cxvliii

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Flaacutevia Vasconcellos Amaral

CARONTE Vamos velhaco paga a passagemMENIPO Vai gritando se isso te daacute prazer CaronteCARONTE Paga jaacute disse pela travessiaMENIPO Natildeo poderias tomar de quem natildeo temCARONTE E haacute algueacutem que natildeo tem um oacuteboloMENIPO Se haacute um outro eu natildeo sei Eu natildeo tenhoCARONTE Por Plutatildeo seu safado vou te torcer o pescoccedilo se natildeo pagaresMENIPO E eu com este porrete vou te dar uma porreta-da e rachar a cabeccedilaCARONTE Entatildeo foi por nada que eu te fiz atravessarMENIPO O Hermes aqui presente que pague a passagem Foi ele que me entregou a ti HERMES Por Zeus Belo negoacutecio eacute o meu se ainda eu tenho que pagar pelos mortos () cxlix

A morte eacute um dos temas mais fascinantes e abundantes da literatura grega seja ela o fio condutor da obra como em ldquoDiaacutelogos dos Mortosrdquo de Luciano de Samoacute-sata texto que hospeda o trecho citado acima seja ela tema latente realccedilado em partes de uma composiccedilatildeo como no canto XI da Odisseia de Homero

Presente praticamente em quase todos os gecircneros poeacuteticos da literatura grega muitas vezes a morte ndash e todo o imaginaacuterio em torno dela ndash eacute discutida em formato de diaacutelogo entre vivos e mortos e divindades e mortos Tomemos como exemplo o trecho do diaacutelogo entre Caronte Menipo e Hermes acima citado de Luciano herdeiro dessa tradiccedilatildeo poeacutetica

O argumento central do diaacutelogo eacute o calote do morto que diz natildeo ter o dinheiro necessaacuterio para pagar Caronte o barqueiro encarregado de transportar os mortos pelo Aqueronte rio que leva ao Hades Caronte em troca do transporte recebe um oacutebolo que os mortos carregam nos laacutebios Hermes eacute o psykhopompos ou seja o que conduz as almas ateacute Caronte para que a travessia seja feita A terceira e mais intrigante perso-nagem eacute o finado Menipo famoso filoacutesofo ciacutenico do seacuteculo III aC cuja caracterizaccedilatildeo nesse diaacutelogo serve de exemplo sobre os ciacutenicos pobres e frugais e cujas vestimentas incluiacuteam um cajado (no trecho traduzido como porrete) e um saco (que aparece no trecho subsequente do diaacutelogo que natildeo foi reproduzido aqui)

Recheado do humor satiacuterico caracteriacutestico da obra de Luciano o trecho trans-porta o leitor para dentro de um diaacutelogo hipoteacutetico ambientado no tradicional espaccedilo limiar entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e desafia a noccedilatildeo comum da

Gostaria antes de mais nada de deixar registrado o meu profundo lamento por todas as mortes que a Covid-19 causou e que infelizmente ainda iraacute causar ateacute o momento que este livro for publicado ou ainda em momento posterior Escrevo este texto em setembro de 2020 e jaacute ultrapassamos mais de cento e trinta mil vidas perdidas somente no Brasil Eacute para mim praticamente impossiacutevel natildeo reconhecer o lamento fuacutenebre de tantas famiacutelias que perderam seus entes queridos ao escrever meu trabalho sobre a temaacutetica da morte Que a terra seja leve para todos os que perderam suas vidas para esse inimigo invisiacutevel

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praacutetica funeraacuteria do pagamento ao barqueiro Caronte Uma estrateacutegia narrativa se-melhante acontece nos epigramas 317 e 524 de Caliacutemaco a seguir Nesses epigramas ambientados no espaccedilo funeraacuterio onde estaacute a tumba o transeunte-leitor questiona o morto em relaccedilatildeo a elementos do senso comum como por exemplo se o morto prefe-re a escuridatildeo da morte ou a luz da vida (317) ou como eacute ldquoembaixordquo ou ainda se existe a volta ao mundo dos vivos (524)

Aleacutem do questionamento do morto sobre como satildeo as coisas ldquodo lado de laacuterdquo os epigramas fuacutenebres dialogados do periacuteodo heleniacutestico que seratildeo apresentados em traduccedilatildeo a seguir se ancoram no espaccedilo fuacutenebre e seus objetos (Dioscoacuterides 37 Antiacute-patro161 424 e 426) e especulam sobre a vida do morto (Leocircnidas 163 e 503 Antiacutepatro 164 Aacuterquias 165 Caliacutemaco 277 e 725 Damageto 355 e Meleagro 470)cliii

Antes de apresentar as propostas de novas traduccedilotildees dos epigramas dialoga-dos do periacuteodo heleniacutestico em portuguecircs clix satildeo necessaacuterias algumas palavras iniciais sobre o gecircnero epigramaacutetico a sua vertente fuacutenebre os poetas que fazem parte do corpus e as escolhas da traduccedilatildeo

O periacuteodo heleniacutestico (entre a morte de Alexandre o Grande em 323 aC e a batalha de Aacutecio em 31 aC) foi um momento de intensa produccedilatildeo literaacuteria e difusatildeo da cultura grega entre os reinos do impeacuterio de Alexandre O epigrama cuja origem eti-moloacutegica (epi + gramma = o que eacute escrito sobre) remonta agrave produccedilatildeo inscrita em ma-teriais duros foi um dos gecircneros com maior expansatildeo durante o periacuteodo natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave profusatildeo mas tambeacutem por conta da variedade de temas que passaram a ser tratados no gecircnero

A partir do seacuteculo IV aC as inscriccedilotildees que antes eram encontradas em obje-tos votivos laacutepides funeraacuterias monumentos e ceracircmica e tinham funccedilatildeo pragmaacutetica de registro passam a ser dissociadas de seus objetos e ganham o papiro como suporte Logo entatildeo as inscriccedilotildees comeccedilam a abarcar outras temaacuteticas como a eroacutetica e a sim-posial Nasce entatildeo o epigrama literaacuterio o qual seraacute um gecircnero duradouro desenvol-vido intensamente por Marcial em Roma e chegaraacute ateacute o Renascimento respingando tambeacutem na modernidade

Os epigramatistas heleniacutesticos seratildeo os maiores responsaacuteveis pelas inovaccedilotildees no gecircnero sempre respeitando o equiliacutebrio que Fantuzzi e Hunter (2004) denominam ao movimento de manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo com constante inovaccedilatildeo conceito nortea-dor de toda a poesia heleniacutestica Um exemplo desse movimento eacute justamente o que acontece com alguns dos epigramas fuacutenebres dialogados pois neles satildeo identificados elementos essenciais das inscriccedilotildees fuacutenebres (brevemente elencados a seguir) em di-aacutelogos que satildeo construiacutedos para ir aleacutem das informaccedilotildees sobre o morto e o lamento pela sua morte O proacuteprio subgecircnero epigrama dialogado surge nesse periacuteodo como atesta Vega (1989 p 190) clvi

O epigrama fuacutenebre eacute uma das vertentes mais antigas do gecircnero Em um pri-meiro momento as inscriccedilotildees fuacutenebres tinham a funccedilatildeo de marcar o espaccedilo do morto fornecendo as informaccedilotildees elementares sobre ele o nome a filiaccedilatildeo o local de origem

e a causa mortis A princiacutepio as inscriccedilotildees fuacutenebres poderiam ser em prosa ou em ver-so hexameacutetrico mas o metro que se consagrou como o metro epigramaacutetico foi o diacutestico elegiacuteaco (um hexacircmetro e um pentacircmetro)

Na antiguidade o espaccedilo do morto natildeo era regulado e estruturado como nos dias de hoje Muitas vezes os enterramentos aconteciam fora da cidade ao longo das estradas ou seja um espaccedilo limiar entre a comunidade e o externo Por se tratar por-tanto de um objeto disposto em espaccedilo puacuteblico ocupado por um indiviacuteduo e tambeacutem por potencialmente ser interceptado por transeuntes-leitores que desconheciam esse objeto as laacutepides funeraacuterias e suas inscriccedilotildees eram uma forma de instruir os transeun-tes estabelecendo conexotildees entre o morto e eles A meu ver a criaccedilatildeo dessa conexatildeo natildeo servia apenas para matar a curiosidade do transeunte a respeito do objeto desco-nhecido celebrar e preservar a memoacuteria do morto mas era uma forma subliminar de apelo para que o espaccedilo fosse preservado Talvez a leitura da inscriccedilatildeo por parte do transeunte (independentemente se fosse em voz alta ou em silecircncio) pudesse sensibi-lizar um potencial violador de tumbasclvii dissuadindo-o do delito

Nesse sentido natildeo eacute estranho que os textos das inscriccedilotildees passem a dar voz natildeo apenas ao morto mas tambeacutem agrave proacutepria laacutepide fenocircmeno que os estudiosos identifi-cam com oggetti parlanti objetos que falam (BURZACHECHI 1964 WACHTER 2010) O mesmo aconteceu com as inscriccedilotildees em objetos votivos sob o mesmo princiacutepio pois esses objetos se encontravam em ambiente puacuteblico e precisavam ser identificados com os seus respectivos depositantes ndash sem contar a funccedilatildeo ritualiacutestica que essas inscriccedilotildees tambeacutem possuiacuteam Tendo a crer que a voz em primeira pessoa dada aos objetos nada mais eacute do que uma resposta ao natural questionamento que o homem faz a todo objeto desconhecido que ele encontra em seu caminho Eacute natural algueacutem se perguntar o que algo eacute quando essa pessoa se depara com algo que natildeo pertence ao repertoacuterio de co-nhecimento Quando se visita um cemiteacuterio natildeo existe a curiosidade de se saber quem satildeo aqueles mortos de onde vieram e a qual famiacutelia pertenceram Pois bem acredito que esse fenocircmeno acontece desde a antiguidade Cria-se perguntas na mente de quem lecirc a inscriccedilatildeoo epigrama que os textos em primeira pessoa passaram a responder de maneira simples e que com o tempo eles incorporaram outras informaccedilotildees e ideias que constituem os diaacutelogos entre os vivos e os mortos

Eacute portanto tambeacutem um passo natural que a segunda voz seja acrescida agraves inscriccedilotildees fuacutenebres jaacute que esse diaacutelogo acontecia de certa maneira como exposto acima na mente do transeunte-leitor Aleacutem do diaacutelogo entre a laacutepide e o transeun-te-leitor encontra-se tambeacutem o diaacutelogo entre o morto e o transeunte-leitor e entre objetos dispostos na laacutepide ndash que tambeacutem poderiam estar entalhados ou pintados ndash e o transeunte-leitor Algumas inscriccedilotildees e epigramas fuacutenebres satildeo enunciados por mais de dois participantes mas em menor nuacutemero As primeiras inscriccedilotildees dialogadas satildeo breves e conteacutem apenas dados elementares do morto Com o passar do tempo e o de-senvolvimento do gecircnero os epigramas fuacutenebres dialogados passam a ser mais longos trazendo natildeo apenas as informaccedilotildees mais elementares como tambeacutem informaccedilotildees extras reflexotildees etc

O presente corpus apresentado em traduccedilatildeo tem como recorte temporal o pe-riacuteodo heleniacutestico momento de maior inovaccedilatildeo no gecircnero epigramaacutetico e tem tambeacutem

128 129

como fonte a Antologia Grega (AG) a maior coleccedilatildeo de epigramas que chegou ateacute os dias de hoje A AG eacute resultado de muacuteltiplos processos editoriais que aconteceram por muitos seacuteculos A AG com a sua enorme quantidade de epigramas vindos de um periacuteo-do de mais de dezesseis seacuteculos eacute uma fonte riquiacutessima natildeo apenas do gecircnero e para os estudos de vertente literaacuteria mas tambeacutem fornece material secundaacuterio para diversas outras aacutereas do conhecimento como a historiografia arqueologia e antropologia

A base dessa antologia foi a Guirlanda de Meleagro a primeira antologia de epigramas que se tem notiacutecia datada do seacuteculo I aC Meleagro epigramatista nascido em Gadara compunha seus poemas em grego e eacute um dos poetas mais importantes na vertente grega do gecircnero por conta da sua coleccedilatildeo de epigramas na qual ele inseriu suas proacuteprias composiccedilotildees Embora natildeo se tenha a sua composiccedilatildeo original sabe-se do seu projeto poeacutetico tanto pelo seu proecircmio (AG 41) como tambeacutem por estudos que reconhecem provaacuteveis sequecircncias de epigramas da Guirlanda que permaneceram in-tactas aos processos editoriais que a AG sofreu por seacuteculos (GUTZWLLER 1998) Con-siderando as menccedilotildees do proecircmio provavelmente a Guirlanda de Meleagro abrigava epigramas de pelo menos cinquenta e oito epigramatistas ndash sem contar o proacuteprio poeta ndash arranjados natildeo apenas em livros temaacuteticos mas tambeacutem por semelhanccedila compo-sicional E assim tambeacutem era o meacutetodo de composiccedilatildeo de Meleagro Ele emulava seus predecessores e pode-se entender seus poemas como os laccedilos da amarraccedilatildeo de rama-lhetes de epigramas que colocados juntos formavam a Guirlanda clx

Filipe no seacuteculo I dC compotildee a sua guirlanda agrave moda de Meleagro como registrado no seu proecircmio (AG 42) Haacute evidecircncias tambeacutem de sequecircncias da sua co-leccedilatildeo que teriam sido preservadas Os estudiosos tendem a assumir que o arranjo que Filipe adotou era em ordem alfabeacutetica (CAMERON 1993) poreacutem atualmente Regina Houmlschele realiza uma pesquisa que aponta argumentos a favor de um arranjo mais elaborado da coleccedilatildeo de Filipe clxi

A proacutexima coleccedilatildeo que forma a base da AG eacute o Ciclo de Agatias Escolaacutestico datado do seacuteculo VI dC e que teria como princiacutepio de composiccedilatildeo a divisatildeo em livros temaacuteticos Seu longo proecircmio (AG 43) tambeacutem se vale da imagem floril mas da pers-pectiva da abelha que visita muitas flores O proecircmio termina com a divisatildeo da sua coleccedilatildeo em sete livros temaacuteticos

A ediccedilatildeo final dos epigramas seraacute feita por Cefalas no seacuteculo X dC e ela passa-raacute a integrar mais oito livros No seacuteculo XIV dC Planudes cria a sua proacutepria ediccedilatildeo su-primindo e acrescentando alguns epigramas Os seus acreacutescimos atualmente formam o livro XVI da AG A Antologia Grega portanto se divide em dezesseis livros temaacuteticos Livro I ndash epigramas cristatildeos Livro II ndash descriccedilotildees de estaacutetuas Livro III ndash inscriccedilotildees em um templo em Ciacutezico Livro IV ndash proecircmios da Guirlanda de Meleagro Guirlanda de Filipe e Ciclo de Agatias Livro V ndash epigramas eroacuteticos Livro VI ndash epigramas votivos Livro VII ndash epigramas fuacutenebres Livro VIII ndash epigramas de Gregoacuterio de Nazianzo Livro IX ndash epigramas declamatoacuterios Livro X ndash epigramas de exortaccedilatildeo Livro XI ndash epigramas simposiais e satiacutericos Livro XII ndash epigramas homoeroacuteticos de Estratatildeo Livro XIII ndash epigramas em diversos metros Livro XIV ndash charadas enigmas e oraacuteculos Livro XV

ndash miscelacircnea Livro XVI ndash epigramas sobre obras de arte

Em meio a tantos seacuteculos de ediccedilotildees o livro 7 dos epigramas fuacutenebres sem-pre esteve presente como parte fundamental para as coleccedilotildees devido agrave importacircncia da temaacutetica fuacutenebre no gecircnero Os epigramas aqui traduzidos portanto satildeo provenientes do atual arranjo do livro 7 da AG O corpus eacute composto de dezesseis epigramas fuacutene-bres dialogados do periacuteodo heleniacutestico clxii

Os epigramatistas do corpus satildeo poetas ativos durante o seacuteculo III aC (Ca-liacutemaco Leocircnidas Dioscoacuterides e Damageto) seacuteculo II aC (Antiacutepatro) e seacuteculo I aC (Meleagro)clxiii De todos esses epigramatistas o que se destaca eacute Caliacutemaco de Cirene por conta de seu protagonismo no desenvolvimento de um sistema de catalogaccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria (os Pinakes) e a sua produccedilatildeo poeacutetica vasta e variada in-fluente natildeo apenas no seu periacuteodo e em grego mas tambeacutem na poesia latina posterior Leocircnidas de Tarento eacute conhecido como o ldquopoeta do povordquo (Gow and Page 1965 vol II p 308) por tratar de temaacuteticas mais campesinas e pobreza Seus poemas portanto seguem uma tendecircncia heleniacutestica de trazer tudo o que eacute diminuto e aparentemente sem o kleos claacutessico para o centro do palco Dioscoacuterides tem Caliacutemaco e Asclepiacuteades de Samos como seus modelos de composiccedilatildeo Merecem destaque seus epigramas fuacute-nebres para poetas como Safo e Anacreonte o que pode ser tomado como evidecircncia para o seu interesse na histoacuteria das forma literaacuterias segundo Gow and Page (1965 vol II p 236) Damageto por sua vez tem seus epigramas geralmente associados a even-tos e figuras histoacutericas com destaque para o epigrama AG 6 277 que celebra o voto de Arsiacutenoe filha de Ptolemeu Evergeta agrave deusa Aacutertemis Por fim Antiacutepatro de Siacutedon tinha como um dos seus modelos Leocircnidas e Tarento e foi ele proacuteprio um dos modelos de emulaccedilatildeo mais marcantes na poesia de Meleagro de Gadara Seus epigramas que merecem destaque satildeo os epigramas fuacutenebres enigmaacuteticos que o poeta constroacutei com base na linguagem da ekphrasis

Para facilitar a organizaccedilatildeo dos epigramas a seguir eles foram colocados em ordem numeacuterica sequencial levando em consideraccedilatildeo a sequecircncia deles no livro 7 da AG Poreacutem quando os epigramas satildeo referidos o nuacutemero base seraacute o da AG e natildeo o da disposiccedilatildeo da traduccedilatildeo no intuito de facilitar a busca dos textos em outras ediccedilotildees O texto original grego apresentado nas notas eacute acompanhado do nuacutemero do epigrama na ediccedilatildeo atual da AG e o nuacutemero do epigrama na ediccedilatildeo de Gow and Page de 1965 (GP) a qual eu sigo para estabelecimento do texto grego

A maioria dos epigramas fuacutenebres dialogados satildeo editados com as falas dife-renciadas pelo uso das letras α β e γ Apesar das trocas de turno todos os epigramas satildeo compostos em diacutesticos elegiacuteacos Embora os editores natildeo expliquem a escolha de separar os turnos por letras eacute evidente que isso acontece quando as trocas de turno natildeo satildeo interpoladas por nenhum narrador

Optou-se por manter a disposiccedilatildeo graacutefica do metro do texto original quando as trocas de turnos coincidem com o teacutermino dos diacutesticos Entretanto nos casos de trocas de turnos ocorridas dentro do verso decidiu-se seguir uma soluccedilatildeo graacutefica proposta por Joseacute Paulo Paes (1995 p 39clxiv ) ao poema 524 de Caliacutemaco reproduzido aqui

130 131

A Jaz Caridas sob ti B Sim se for filho de Arima o cireneuA Ei Caridas que tal aiacute embaixo C Trevas soacuteA E quanto agrave volta C Mentira A E Plutatildeo C Um mito A Entatildeo estamos fritos C Crecirc no que te digo Mas se queres algo de apraziacutevel haacute boi barato no Hades

De todas as traduccedilotildees consultadas em diversas liacutenguas (PATON 1917 BECKBY 1957 PONTANI 1979 FERNAacuteNDEZ-GALIANO 1993 PAES 1995 SILVA 2013 e 2014 JESUS 2019 e FLORES 2019) apenas a traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes (1995) considerou uma disposiccedilatildeo graacutefica mais facilitadora ao entendimento do poema por privilegiar uma disposiccedilatildeo de diaacutelogo tradicional separando os turnos Considerei essa soluccedilatildeo mais interessante por conferir ao texto de chegada a dinacircmica riacutetmica das trocas de turnos que o texto de partida possui ao fazer coincidir as trocas de turno com peacutes meacute-tricos e cesuras ndash algo que seria muito complexo de se reproduzir Apenas o epigrama 89 de Caliacutemaco resolveu-se dispor o texto de chegada de maneira fragmentada para separar as partes narrativas das falas das personagens

Os diaacutelogos a seguir satildeo entre o transeunte-leitor e o morto (dez epigramas ndash AG 7 79 163 164 165 277 317 355 424 470 e 725) transeunte-leitor e a laacutepide ou objetos que estatildeo junto agrave laacutepide (cinco epigramas ndash AG 7 37 161 426 503 e 524) e um transeunte que toma conselhos de um anciatildeo com a participaccedilatildeo dos meninos que estatildeo na cena (um ndash AG 7 89 epigrama natildeo fuacutenebre) Toma-se como padratildeo a voz como masculina sobretudo para o transeunte-leitor e quando natildeo facilmente indicada como feminina

A sequecircncia de epigramas 163 164 e 165 eacute uma seacuterie de emulaccedilotildees sobre o mesmo padratildeo de diaacutelogo um epigrama tradicional de especulaccedilatildeo sobre os detalhes sobre o morto Leocircnidas 163 serve de modelo para as duas variantes de Antiacutepatro (164 e 165) Eacute interessante notar natildeo apenas as escolhas que Antiacutepatro faz ao construir a sua imitaccedilatildeo primeira mas tambeacutem o que ele modifica na sua segunda imitaccedilatildeo

Por fim eacute importante chamar a atenccedilatildeo para o epigrama 79 de Meleagro pois o diaacutelogo diferentemente do padratildeo eacute iniciado pelo morto sem que ele responda a nenhuma pergunta sequer do transeunte-leitor Haacute portanto uma certa inversatildeo nos papeacuteis de ambos dentro do diaacutelogo pois o morto fornece informaccedilotildees segundo seus proacuteprios interesses e o transeunte-leitor apenas reage aos seus turnos

O corpus apresentado aqui em traduccedilatildeo eacute um retrato detalhado e rico das pos-sibilidades narrativas do gecircnero epigramaacutetico nas matildeos dos poetas heleniacutesticos Ele faz parte de um estudo maior que se debruccedila sobre as teacutecnicas narrativas dos epigramas dialogados de toda a AG e tambeacutem de coleccedilotildees de inscriccedilotildees (ainda estaacute em andamen-

to) Haacute muitas possibilidades de estudos na epigramaacutetica grega pois a quantidade de material ainda sem publicaccedilatildeo no Brasil abunda Espero que esta contribuiccedilatildeo possa despertar o interesse dos leitores para esse fascinante campo dos estudos de literatura grega no paiacutes

1 Dioscoacuterides 72

A Esta tumba eacute de Soacutefocles homem aquele que as Musas me concederam guardar como tesouro sagra-do jaacute que sagrado sou Foi ele quem me tomou em Fliunte onde eu pisava castanheiro fez da minha ma-deira uma estaacutetua dourada e me vestiu com um fino manto puacuterpura Depois de sua morte aqui plantei o passo preciso de danccedilarino

B Bem-afortunado por ter recebido lugar tatildeo ditoso E de qual peccedila eacute a maacutescara de cabelos cortados que tens nas matildeos

A Se quiseres dizer Antiacutegona ou Electra natildeo errarias pois ambas satildeo o que haacute de sublime

2 Meleagro 73

A Homem eu sou Heraacuteclito Afirmo que descobri a sa-bedoria sozinho mas meus serviccedilos ciacutevicos suplantam a sabedoria Com o peacute estrangeiro escorracei ateacute meus ge-nitores aqueles insensatos

B Bela recompensa aos que te criaram

A Longe de mim

B Natildeo sejas duro

A Em breve mais duras seratildeo as notiacutecias que receberaacutes da paacutetria

72 737 Dioscoacuterides (GP XXII)

α τύμβος ὅδ᾽ ἔστ᾽ ὤνθρωπε Σοφοκλέος ὃν παρὰ Μουσέων ἱρὴν παρθεσίην ἱερὸς ὢν ἔλαχονὅς με τὸν ἐκ Φλιοῦντος ἔτι τρίβολον πατέοντα πρίνινον ἐς χρύσεον σχῆμα μεθηρμόσατοκαὶ λεπτὴν ἐνέδυσεν ἁλουργίδα τοῦ δὲ θανόντος εὔθετον ὀρχηστὴν τῇδ᾽ ἀνέπαυσα πόδα β ὄλβιος ὡς ἁγνὴν ἔλαχες στάσιν ἡ δ᾽ ἐνὶ χερσί κούριμος ἐκ ποίης ἥδε διδασκαλίης

α εἴτε σοὶ Ἀντιγόνην εἰπεῖν φίλον οὐκ ἂν ἁμάρτοις εἴτε καὶ Ἠλέκτραν ἀμφότεραι γάρ ἄκρον

73779 Meleagro (GP CXXI)

α ὤνθρωπ᾽ Ἡράκλειτος ἐγὼ σοφὰ μοῦνος ἀνευρεῖν φαμί τὰ δ᾽ ἐς πάτραν κρέσσονα καὶ σοφίηςλὰξ γὰρ καὶ τοκεῶνας ἰὼ ξένε δύσφρονας ἄνδρας ὑλάκτευν β λαμπρὰ θρεψαμένοισι χάρις α οὐκ ἀπ᾽ ἐμεῦ β μὴ τρηχύς α ἐπεὶ τάχα καὶ σύ τι πεύσῃ τρηχύτερον πάτρας β χαῖρε α σὺ δ᾽ ἐξ Ἐφέσου

132 133

B Adeus

A Fica fora de Eacutefeso

3 Caliacutemaco 74

Certa vez um estrangeiro de Atarneia perguntou a Piacutetaco de Mitilene filho de Hirraacutedio

A Meu velho duas moccedilas me pediram em casamento uma eacute igual a mim no dinheiro e na linhagem e a outra me supera O que eacute melhor Diz para mim qual aconselhas que eu leve ao altar

E Piacutetaco aponta o cajado instrumento senil

B Olha Aqueles ali vatildeo te dizer tudo

(Havia alguns meninos rodando raacutepidos piotildees em uma ampla praccedila)

B Vai atraacutes deles

E entatildeo ele foi mais perto e eles diziam

C Segue pelo teu caminho

Ouvindo isso o estrangeiro deixou de almejar a casa mais rica pois entendeu o oraacuteculo dos meninos Ele entatildeo levou ao altar a noiva de menos posses Assim tambeacutem Diacuteon segue pelo teu caminho

4 Antiacutepatro de Siacutedon 75

A Ave mensageira de Zeus Cronida por que te re-pousassoturna sobre a tumba do ditoso AristocircmenesB Proclamo aos homens que assim como sou a me-lhor entre as aves ele tambeacutem o foi entre os jovens

74 789 Caliacutemaco (GP LIV)

ξεῖνος Ἀταρνείτης τις ἀνείρετο Πιττακὸν οὕτω τὸν Μυτιληναῖον παῖδα τὸν Ὑρράδιον lsquo ἄττα γέρον δοιός με καλεῖ γάμος ἡ μία μὲν δὴ νύμφη καὶ πλούτῳ καὶ γενεῇ κατ᾽ ἐμέ ἡ δ᾽ ἑτέρη προβέβηκε τί λώιον εἰ δ᾽ ἄγε σύν μοὶ βούλευσον ποτέρην εἰς ὑμέναιον ἄγωrsquoεἶπεν ὁ δὲ σκίπωνα γεροντικὸν ὅπλον ἀείρας

lsquo ἡνιδε κεῖνοί σοι πᾶν ἐρέουσιν ἔποςrsquo (οἱ δ᾽ ἄρ᾽ ὑπὸ πληγῇσι θοὰς βέμβικας ἔχοντες ἔστρεφον εὐρείῃ παῖδες ἐνὶ τριόδῳ῾κείνων ἔρχεοrsquo φησί lsquo μετ᾽ ἴχνιαrsquo χὠ μὲν ἐπέστη πλησίον οἱ δ᾽ ἔλεγον lsquo τὴν κατὰ σαυτὸν ἔλαrsquo ταῦτ᾽ ἀίων ὁ ξεῖνος ἐφείσατο μείζονος οἴκου δράξασθαι παίδων κληδόνα συνθέμενοςτὴν δ᾽ ὀλίγην ὡς κεῖνος ἐς οἰκίον ἤγετο νύμφην οὕτω καὶ σὺ Δἰὼν τὴν κατὰ σαυτὸν ἔλα

75 7161 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XX)

α ὄρνι Διὸς Κρονίδαο διάκτορε τεῦ χάριν ἔστας γοργὸς ὑπὲρ μεγάλου τύμβον Ἀριστομένους β ἀγγέλλω μερόπεσσιν ὁθούνεκεν ὅσσον ἄριστος οἰωνῶν γενόμαν τόσσον ὅδ᾽ ἠιθέων δειλαί τοι δειλοῖσιν ἐφεδρήσσουσι πέλειαι ἄμμες δ᾽ ἀτρέστοις ἀνδράσι τερπόμεθα

76 7163 Leocircnidas de Tarento (GP LXX)

α τίς τίνος εὖσα γύναι Παρίην ὑπὸ κίονα κεῖσαι β Πρηξὼ Καλλιτέλευς α καὶ ποδαπή β Σαμίη α τίς δέ σε καὶ κτερέιξε β Θεόκριτος ᾧ με γονῆες ἐξέδοσαν α θνῄσκεις δ᾽ ἐκ τίνος β ἐκ τοκετοῦ α εὖσα πόσων ἐτέων β δύο κεἴκοσιν α ἦ ῥὰ γ᾽ ἄτεκνος β οὔκ ἀλλὰ τριετῆ Καλλιτέλην ἔλιπον α Ζώοι σοι κεῖνός γε καὶ ἐς βαθὺ γῆρας ἵκοιτο β καὶ σοί ξεῖνε πόροι πάντα Τύχη τὰ καλά

Pombas covardes guardam covardesmas noacutes nos comprazemos com os destemidos

5 Leocircnidas de Tarento 76

A Quem eacutes mulher que jazes sob o maacutermore paacuterio e de qual pai

B Praxo filha de Caliacuteteles

A E de que terra

B Samos

A E quem fez as tuas honras fuacutenebres

B Teoacutecrito a quem meus pais me deram para casar

A E como morreste

B No parto

A Quantos anos tinhas

B Vinte e dois

A Entatildeo sem filhos

B Natildeo pois deixei Caliacuteteles de trecircs anos

A Que ele viva e alcance a idade avanccedilada

B E que a ti forasteiro a Fortuna decirc tudo de bom

6 Antiacutepatro de Siacutedon 77

A Diz mulher tua famiacutelia nome e terra natal

134 135

B Caliacuteteles foi meu pai Praxo meu nome e a terra Samos

A Quem erigiu este monumento

B Teoacutecrito o que soltou meu intocado cinturatildeo de virgem

A Como morreste

B Nas dores do parto

A Fala com qual idade

B Duas vezes onze

A E sem filhos

B Natildeo estrangeiro Deixei Caliacuteteles na infacircncia uma crianccedila de apenas trecircs anos

A Que ele atinja a grei velhice feliz

B Que a Fortuna viajante guie toda a tua vida por uma leve brisa

7 Aacuterquias 78

A Fala mulher quem foste

B Praxo

A De qual pai foste gerada

B De Caliacuteteles

A E de que terra foste

77 7164 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XXI) α φράζε γύναι γενεήν ὄνομα χθόνα β Καλλιτέλης μὲν ὁ σπείρας Πρηξὼ δ᾽ οὔνομα γῆ δὲ Σάμος α σῆμα δὲ τίς τόδ᾽ ἔχωσε β Θεόκριτος ὁ πρὶν ἄθικτα ἁμετέρας λύσας ἅμματα παρθενίης α πῶς δὲ θάνες β Λοχίοισιν ἐν ἄλγεσιν α εἰπὲ δὲ ποίην ἦλθες ἐς ἡλικίην β Δισσάκις ἑνδεκέτις α ἦ καὶ ἄπαις β οὐ ξεῖνε λέλοιπα γὰρ ἐν νεότητι Καλλιτέλη τριετῆ παῖδ᾽ ἔτι νηπίαχον α ἔλθοι ἐς ὀλβίστην πολιὴν τρίχα β καὶ σόν ὁδῖτα οὔριον ἰθύνοι πάντα Τύχη βίοτον

78 7165 Aacuterquias (GP XIII)α εἰπὲ γύναι τίς ἔφυς β Πρηξώ α τίνος ἔπλεο πατρός β Καλλιτέλευς α πάτρας δ᾽ ἐκ τίνος ἐσσί β Σάμου α μνᾶμα δέ σου τίς ἔτευξε β θεόκριτος ὅς με σύνευνον ἤγετο α πῶς δ᾽ ἐδάμης β ἄλγεσιν ἐν λοχίοις α εἰν ἔτεσιν τίσιν εὖσα β δὶς ἕνδεκα α παῖδα δὲ λείπεις β νηπίαχον τρισσῶν Καλλιτέλην ἐτέων α ζωῆς τέρμαθ᾽ ἵκοιτο μετ᾽ ἀνδράσι β καὶ σέο δοίη παντὶ Τύχη βιότῳ τερπνόν ὁδῖτα τέλος

79 7277 Caliacutemaco (GP L)α τίς ξένος ὦ ναυηγέ β Λεόντιχος ἐνθάδε νεκρὸν εὗρέ μ᾽ ἐπ᾽ αἰγιαλοῦ χῶσε δὲ τῷδε τάφῳ δακρύσας ἐπίκηρον ἑὸν βίον οὐδὲ γὰρ αὐτὸς ἥσυχος αἰθυίῃ δ᾽ ἶσα θαλασσοπορεῖ

80 7317 Caliacutemaco (GP LI) α Τίμων οὐ γὰρ ἔτ᾽ ἐσσί τί τοι σκότος ἢ φάος ἐχθρόν β τὸ σκότος ὑμέων γὰρ πλείονες εἰν Ἀίδῃ

B Samos

A Quem fez teu memorial

B Teoacutecrito aquele que me tomou como esposa

A Como morreste

B Nas dores do parto

A Com quantos anos

B Duas vezes onze

A Deixas algum filho

B Caliacuteteles uma crianccedila de trecircs anos

A Que ele chegue ao fim da vida entre os homens

B E que a Fortuna viajante decirc um fim prazeroso para toda a tua vida

8 Caliacutemaco 79

A Quem eacutes estrangeiro naacuteufrago

B Leocircntico aqui meu corpo encontrou nesta praia e me enterrou nesta cova chorando a sua proacutepria vida pereciacutevel Sem descanso ele navega no mar como uma gaivota

9 Caliacutemaco 80

A Finado Tiacutemon o que mais odeias a escuridatildeo ou a luz

B A escuridatildeo pois haacute muitos de voacutes no Hades

10 Damageto 81

Fazei saudaccedilatildeo alegre e honrosa transeuntes ao exce-lente Praxiacuteteles homem que serviu de competente instru-mento das Musas aleacutem de agradaacutevel parceiro no vinho

B Saudaccedilotildees Praxiacuteteles de Andros

136 137

11 Antiacutepatro 82

A Quero entender qual eacute o sentido deste entalheque Agis calcou em tua estela de pedra LisiacutediceUma reacutedea uma mordaccedila e uma ave nascidaem Tacircnagra rica em aves impetuosa incitadora de [batalhanatildeo agradam e nem combinam com as mulheres do larcomo os trabalhos na roca e no tear

B A ave noturna diraacute que eu acordada trabalhava a latildea reacutedea que eu era dona da minha casae esta mordaccedila de cavalo cantaraacute que eu natildeo era loquaznem tagarela mas plena de admiraacutevel silecircncio

12 Antiacutepatro de Siacutedon 83 A Diz leatildeo matador de bois de quem eacute a tumba que [guardas Quem foi digno de tua excelecircncia

B Telecircucias filho de Teodoro o mais corajoso de todosassim como eu sou julgado entre as ferasNatildeo eacute em vatildeo que me ergo aqui pois eu carrego o siacutembolo da forccedila do homem De fato ele era um leatildeo para os [ini-migos

13 Meleagro 84

A Diz a quem pergunta quem eacutes E filho de quem

B Filaulo filho de Eucraacutetides

A E de onde te orgulhas ser

B lt gt

81 7355 Damageto (GP VIII)τὴν ἱλαρὰν φωνὴν καὶ τίμιον ὦ παριόντες τῷ χρηστῷ χαίρειν rsquo εἴπατε Πραξιτέλει ἦν δ᾽ ὡνὴρ Μουσέων ἱκανὴ μερίς ἠδὲ παρ᾽ οἴνῳ κρήγυος ὦ χαίροις Ἄνδριε Πραξίτελες82 7424 Antiacutepatro de Siacutedon (GP XXIX)α Μαστεύω τί σευ Ἆγις ἐπὶ σταλίτιδι πέτρῃ Λυσιδίκα γλυπτὸν τόνδ᾽ ἐχάραξε νόον ἁνία γὰρ καὶ κημός ὃ τ᾽ εὐόρνιθι Τανάγρᾳ οἰωνὸς βλαστῶν θοῦρος ἐγερσιμάχας οὐχ ἅδεν οὐδ᾽ ἐπέοικεν ὑπωροφίαισι γυναιξίν ἀλλὰ τὰ τ᾽ ἠλακάτας ἔργα τὰ θ᾽ ἱστοπόδων

β τάν μὲν ἀνεγρομέναν με ποτ᾽ εἴρια νύκτερος ὄρνις ἁνία δ᾽ αὐδάσει δώματος ἡνίοχον ἱππαστὴρ δ᾽ ὅδε κημὸς ἀείσεται οὐ πολύμυθον οὐ λάλον ἀλλὰ καλᾶς ἔμπλεον ἡσυχίης 83 α εἰπέ λέον φθιμένοιο τίνος τάφον ἀμφιβέβηκας βουφάγε τίς τᾶς σᾶς ἄξιος ἦν ἀρετᾶς β υἱὸς Θευδώροιο Τελευτία ὃς μέγα πάντων φέρτατος ἦν θηρῶν ὅσσον ἐγὼ κέκριμαι οὐχὶ μάταν ἕσαακα φέρω δέ τι σύμβολον ἀλκᾶς ἀνέρος ἦν γὰρ δὴ δυσμενέεσσι λέων

84 7 7470 Meleagro (GP CXXX)α εἶπον ἀνειρομένῳ τίς καὶ τίνος ἐσσί β φίλαυλος Εὐκρατίδεω α ποδαπὸς δ᾽ εὔχεαι β lt gtα Ἔζησας δὲ τίνα στέργων βίον β οὐ τὸν ἀρότρου οὐδὲ τὸν ἐκ νηῶν τὸν δὲ σοφοῖς ἕταρον α γήραϊ δ᾽ ἢ νούσῳ βίον ἔλλιπες β ἤλυθον Ἅιδαν αὐτοθελεί Κείων γευσάμενος κυλίκωνα ἠ πρέσβυς β καὶ κάρτα α λάβοι νύ σε βῶλος ἐλαφρὴ σύμφωνον πινυτῷ σχόντα λόγῳ βίοτον85 7503 Leocircnidas de Tarento (GP LXIV)α ἀρχαίης ὦ θινὸς ἐπεστηλωμένον ἄχθος

εἴποις ὅντιν᾽ ἔχεις ἢ τίνος ἢ ποδαπόν β Φίντων᾽ Ἑρμιονῆα Βαθυκλέος ὃν πολὺ κῦμα ὤλεσεν Ἀρκτούρου λαίλαπι χρησάμενον86 7524 Caliacutemaco (GP XXXI)α ἦ ῥ᾽ ὑπὸ σοὶ Χαρίδας ἀναπαύεται β εἰ τὸν Ἀρίμμα τοῦ Κυρηναίου παῖδα λέγεις ὑπ᾽ ἐμοί α ὦ Χαρίδα τί τὰ νέρθε γ πολὺς σκότος α αἱ δ᾽ ἄνοδοι τί γ ψεῦδος α ὁ δὲ Πλούτων γ μῦθος α ἀπωλόμεθα γ οὗτος ἐμὸς λόγος ὔμμιν ἀληθινός εἰ δὲ τὸν ἡδὺν βούλει Πελλαίου βοῦς μέγας εἰν Ἀίδῃ

A Qual vida gostavas de levar

B Natildeo a do arado nem a de naus mas a de acompanhante dos saacutebios

A Deixaste a vida por velhice ou doenccedila

B Vim ao Hades pelas proacuteprias matildeos ao tomar as taccedilas de Ceos

A Eras velho

B Sim muito

A Que seja leve esta terra que te envolve pois viveste em harmonia com o discurso prudente

14 Leocircnidas de Tarento 85

A Oacute pedra erguida nesta velha praia Diz quem abrigas De quem eacute filho ou de onde vem

B Fiacutenton filho de Baacuteticles de Hermiacuteone que onda enorme matou mesmo avisado da tempestade de Asturo

15 Caliacutemaco 86

A Por acaso jaz Caacuteridas sob ti

B Se for o filho de Arima de Cirene que dizes sim ele estaacute sob mim

A Caacuteridas como eacute aiacute embaixo

C Puro breu

A E a volta

138 139

C Mentira

A E Plutatildeo

C Mito

A Jaacute era para noacutes

C O que posso te dizer eacute que eacute verdade mas se queres algo prazeroso um boi grande no Hades custa um Pelaio

16 Caliacutemaco 87

A Tu Meneacutecrates de Eno natildeo muito tempo aqui estiveste O que te venceu melhor dos forasteiros O mesmo que ao Centauro

B O sono que nos cabe chegou mas o implacaacutevel vinho eacute o culpado

87 7725 Caliacutemaco (GP XLII)α Αἴνιε καὶ σὺ γὰρ ὧδε Μενέκρατες οὐκ ἐπὶ πουλύ ἦσθα τί σε ξείνων λῷστε κατειργάσατο ἦ ῥα τὸ καὶ Κένταυρον β ὅ μοι πεπρωμένος ὕπνος ἦλθεν ὁ δὲ τλήμων οἶνος ἔχει πρόφασιν

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Fulgecircncio o mitoacutegrafo a explicaccedilatildeo da antiguidade

como programa

8

Joseacute Amarante Santos SobrinhoRaul Oliveira Moreira

Shirlei Patriacutecia Silva Neves AlmeidaCristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior

Um autor tardo-antigo estreando em portuguecircs

Sobre a persona que assume o nome Fabius Planciades Fulgentius em boa parte dos manuscritos que chegaram ateacute noacutes nada se pode afirmar com muita segu-ranccedila haja vista o fato de que o que sabemos sobre o autor se limite agravequilo que nos eacute informado pelo Proacutelogo do Livro I de suas Mythologiae Evidentemente qualquer ge-neralizaccedilatildeo que se faccedila sobre sua vida ndash se esse for considerado um aspecto fundamen-tal ndash deve repousar no territoacuterio das suposiccedilotildees jaacute que natildeo se deve desprezar o fato de as informaccedilotildees aparentemente relativas agrave vida e ao escritor serem uma espeacutecie de ilusatildeo biograacutefica uma vez que estamos a considerar como informaccedilatildeo histoacuterica certas deduccedilotildees provindas de leituras dos proacuteprios textos Como jaacute propocircs Hays (1996) mui-to do que se declara na primeira parte das Mythologiae tem de retoacuterico e de captatio benevolentiae

Acresce complexidade ao problema de identificaccedilatildeo o fato de que durante muito tempo e em funccedilatildeo de alguma confusatildeo no processo de transmissatildeo de textos Fulgecircncio esteve associado ao seu homocircnimo bispo de Ruspe de forma a se criar o que tradicionalmente se conhece como ldquoquestatildeo fulgencianardquo um tema jaacute debatido e que parece repousar agora na aceitaccedilatildeo do separatist case (HAYS 2003 p 210) Hoje se afirma com algum niacutevel de seguranccedila que nosso autor que viveu entre finais do seacutec V e iniacutecio do seacutec VI natildeo eacute o bastante conhecido Satildeo Fulgecircncio bispo de Ruspe a pe-quena cidade da proviacutencia romana Bizacena (na Aacutefrica onde hoje eacute a Tuniacutesia) embora Fulgecircncio tambeacutem seja norte-africano

O epiacuteteto O Mitoacutegrafo por outro lado oferece-nos uma margem de seguran-

ccedila de compreensatildeo pois se deve agrave circulaccedilatildeo e sucesso das suas Mitologias durante a Idade Meacutedia ateacute serem suplantadas por obras como a Genealogia deorum gentilium de Boccaccio (1360) que cita Fulgecircncio vaacuterias vezes Seja como for transmitidas em vaacuterios manuscritos ao longo de seacuteculos as Mitologias fulgencianas chegam ao periacuteodo das ediccedilotildees impressas com focirclego suficiente para ganhar ediccedilotildees regulares nos seacuteculos XV XVI XVII e XVIII Depois da editio princeps de Pius (1498) e da ediccedilatildeo seguinte por Locher (1521) dedicadas esclusivamente a Fulgecircncio as ediccedilotildees impressas posteriores vatildeo estampar o nosso autor junto a outros mitoacutegrafos da Antiguidade

Apoacutes essas ediccedilotildees sucessivas o autor atinge o periacuteodo das ediccedilotildees criacuteticas Assim o seacuteculo XIX traraacute a lume a ediccedilatildeo de Rudolf Helm um texto ainda considerado de referecircncia e base para grande parte das traduccedilotildees que o seacuteculo XX e XXI viram sur-gir Apesar de os Oitocentos nos brindarem com essa ediccedilatildeo criacutetica do autor em que figura o conjunto das quatro obras atestadas como de sua autoria e se inclui a Super Thebaiden natildeo considerada do corpus fulgenciano a visatildeo sobre o autor e sua obra atravessou quase todo o seacuteculo passado mantendo certos juiacutezos aprioriacutesticos tiacutepico do seacuteculo XIX em relaccedilatildeo ao que era comentaacuterio de obras e o quanto seria impagaacutevel o seu deacutebito com os ditos ldquooriginaisrdquo Poderiacuteamos retomar duas posiccedilotildees criacuteticas como pro-potildee Amarante (2019 p 17) de forma a constatarmos que o modo como se considerou o autor ao longo do tempo natildeo se manteve estaacutevel

144 145

De Domenico Comparetti para quem o proceder de Ful-gecircncio seria a maacutexima expressatildeo da incoerecircncia e do de-liacuterio ldquoele pisoteia todas as regras do bom senso de forma tatildeo aberta crua e quase brutal que eacute difiacutecil entender como um ceacuterebro saudaacutevel poderia realmente ter concebido um trabalho tatildeo malucordquo (1872 v I p 149) a Gregory Hays para quem ele deveria atrair ao menos minimamente a atenccedilatildeo de qualquer um jaacute que teria influenciado gran-des obras ldquotanto a Divina Comeacutedia quanto a Primavera de Botticelli seriam obras muito diferentes se Fulgecircncio natildeo tivesse escrito a suardquo (1996 pref)clxx

Apoacutes as criacuteticas de Comparetti a obra fulgenciana soacute iraacute alcanccedilar algum niacutevel de interesse mais significativo no seacuteculo XX a partir de sua segunda metade quando surge a primeira traduccedilatildeo completa para o inglecircs da obra do Mitoacutegrafo no iniacutecio da deacutecada de setenta a de Whitbread de 1971 Daiacute em diante comeccedilam a surgir espe-cialmente nas uacuteltimas duas deacutecadas novos estudos e traduccedilotildees para outras liacutenguas de forma que o autor jaacute natildeo eacute mais tatildeo desconhecido entre os estudiosos da aacuterea clxxi

No Brasil os estudos da obra do autor satildeo ainda raros como o satildeo os de vaacuterios outros autores da Antiguidade Tardia Resultado de um projeto de estudo de obras desse periacuteodo na Universidade Federal da Bahia neste trabalho entatildeo noticiamos e destacamos a conclusatildeo da traduccedilatildeo completa da obra fulgenciana a partir da publica-ccedilatildeo de O livro das Mitologias de Fulgecircncio por Joseacute Amarante em 2019 (seccedilatildeo 1 deste capiacutetulo) e os trabalhos de mestrado e doutorado defendidos na mesma Universidade

a) A Expositio Virgilianae continentiae (ldquoA explicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Vir-giacuteliordquo) foi traduzida por Raul Oliveira Moreira e sua dissertaccedilatildeo de mestrado foi defen-dida em 2018 (seccedilatildeo 2 deste capiacutetulo)

b) A Expositio sermonum antiquorum (ldquoA elucidaccedilatildeo de termos antigosrdquo) foi traduzida por Shirlei Patriacutecia Silva Neves Almeida e sua dissertaccedilatildeo de mestrado foi defendida em 2018 (seccedilatildeo 3 deste capiacutetulo)

c) A De aetatibus mundi et hominis (ldquoSobre as idades do mundo e da hu-manidaderdquo) recebeu duas traduccedilotildees (uma alipogramaacutetica e outra lipogramaacutetica) por Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior e sua tese de doutorado foi defendida em 2020 (seccedilatildeo 4 deste capiacutetulo)

Ao lado de destacarmos a finalizaccedilatildeo da traduccedilatildeo completa da obra do autor ao portuguecircs nos parece oportuno retomarmos uma questatildeo ligada a um possiacutevel programa fulgenciano destacado por Amarante (2019) Certamente pela lista de obras acima listadas e consideradas de sua autoria eacute difiacutecil natildeo se observar algum programa miacutenimo e despretensioso que seja de explicaccedilatildeo dos conteuacutedos simboacutelicos da Anti-guidade A questatildeo retomada aqui liga-se a um ponto ainda em debate sobre a funccedilatildeo social do nosso autor para Whitbread (1971 p 6) Fulgecircncio eacute um grammaticus ou rhetor um professor de gramaacutetica e letras Hays analisando a terminologia que o au-

tor utiliza contesta essa posiccedilatildeo e coloca Fulgecircncio como um legal advocate um defen-sor legal (1996 p 42 e s) Manca (2003 p 56) apresenta uma proposta conciliadora inclinando-se a pensar que a obra parece nos colocar diante de um grammaticus mas que necessitasse lidar com as salas de aula de Direito em algumas ocasiotildees Analisan-do a presenccedila de Apuleio em Fulgecircncio Mattiacci inclui o autor entre os gramaacuteticos e eruditos de origem africana e o considera como uma figura singular de interesses muacuteltiplos (2003 p 230)

Contudo embora situado nos limiares da Idade Meacutedia o tema de Fulgecircncio eacute a Antiguidade ou seja ele teria apenas aparentemente uma multiplicidade de interes-ses mas provavelmente eles se resumiriam num uacutenico foco o mundo antigo E essa afirmaccedilatildeo leva em consideraccedilatildeo toda a sua obra uma vez que a sua produccedilatildeo se centra sempre em algum elemento referente a esse cenaacuterio cultural nas Mythologiae a relei-tura filosoacutefica de base cristatilde dos mitos claacutessicos na Expositio Virgilianae continentiae a releitura da Eneida de Virgiacutelio tambeacutem numa perspectiva filosoacutefica na Expositio sermonum antiquorum uma leitura explicada do leacutexico ligado a elementos culturais antigos na De aetatibus mundi et hominis a histoacuteria do mundo da Criaccedilatildeo ateacute a ascensatildeo de Valentiniano I no ano 365 No caso das duas primeiras obras eacute visiacutevel a motivaccedilatildeo os mitos antigos presentes tanto nas narraccedilotildees mitograacuteficas quanto na proacutepria Eneida eram um tesouro em vias de desaparecimento na realidade complexa das migraccedilotildees germacircnicas visiacutevel a Fulgecircncio Aleacutem disso a proacutepria obra virgiliana jaacute havia sido alvo de outros comentaacuterios como os de Donato e Seacutervio Em relaccedilatildeo agrave Expo-sitio Sermonum tambeacutem se observa um autor registrando um leacutexico antigo trazendo no tiacutetulo da obra esse termo que marca jaacute uma distacircncia em relaccedilatildeo ao tempo do autor antiquorum Na Aetatibus natildeo seria diferente Fulgecircncio segue uma trilha conhecida um Leitmotiv caro agrave literatura claacutessica que eacute a questatildeo das idades do mundo e da hu-manidade tema presente tanto entre os gregos quanto entre os latinos not

Sendo certamente um homem ligado agraves Letras o Mitoacutegrafo toma para si do mesmo modo como fizeram os principais intelectuais de sua eacutepoca a incumbecircncia de recuperar e reordenar a seu modo algo significativo do saber antigo visto que aquele conhecido patrimocircnio cultural do mundo greco-latino que se manteve apoacutes o fim do impeacuterio romano do Ocidente ldquoencontra-se disperso por uma miriacuteade de obras compli-cadas e de difiacutecil leitura por homens capazes de se referir apenas a conhecimentos e a noccedilotildees do tipo compendioso e simplificadordquo (STOPACCI 2012 p 502) Sendo assim para a conservaccedilatildeo do legado cultural literaacuterio e retoacuterico da Antiguidade naquele mo-mento se fazia necessaacuterio recolher reordenar e sintetizar o maacuteximo do saber prove-niente da Antiguidade e pelo vieacutes da filosofia moral submetecirc-lo agraves exigecircncias da nova cultura cristatilde

1 MYTHOLOGIAE (As Mitologias)

Quando Fulgecircncio escreve sua obra mitograacutefica ele segue uma tradiccedilatildeo de escrita do gecircnero estabelecida jaacute Apolodoro havia escrito a sua Biblioteca Higino as suas Fabulae e os mitos jaacute haviam povoado de modo diverso as Metamorfoses ovi-dianas Fulgecircncio contudo estaacute em outro tempo e registra em sua obra conforme vimos aspectos do periacuteodo de transiccedilatildeo entre a Antiguidade e o Medievo ou apresenta

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conforme nos lembram Wolff e Dain (2013) um testemunho dessa passagem do paga-nismo ao cristianismo nos deixando conhecer a visatildeo cristatilde sobre o mundo antigo no-tadamente no caso das suas Mythologiae uma leitura dos mitos pagatildeos sob a oacutetica da filosofia moral (secundum philosophiam como nos datildeo alguns coacutedices) o que resulta na perspectiva de uma humanidade regenerada no dizer de Wolff e Dain Mesmo nes-se aspecto interpretativo Fulgecircncio segue uma seara antes bem experimentada natildeo somente havia uma tradiccedilatildeo jaacute bem antiga de interpretaccedilatildeo dos mitos antes mesmo do Cristianismo como tambeacutem outros autores anteriores ao Mitoacutegrafo ndash como Lac-tacircncio Macroacutebio e Seacutervio ndash jaacute haviam apresentado suas versotildees afastando-se daqueles modelos claacutessicos (FRANCO DURAacuteN 1997) Lactacircncio por exemplo jaacute havia escrito as suas Institutiones de onde nosso Mitoacutegrafo retira alguns exemplos de interpretaccedilatildeo evemerista clxxiii

Distinguem-se em geral trecircs formas de interpretaccedilatildeo dos mitos todas de ins-piraccedilatildeo estoica praticadas durante toda a Idade Meacutedia a interpretaccedilatildeo dita evemeris-ta a interpretaccedilatildeo fiacutesica e a interpretaccedilatildeo moral Na interpretaccedilatildeo evemerista ndash com base em Evecircmero (seacutec III aC) tambeacutem chamada de histoacuterico-racionalista ndash os deuses teriam sido homens que foram divinizados por seus contemporacircneos em funccedilatildeo de seu poder ou influecircncia local (BRISSON 2014) A interpretaccedilatildeo fiacutesica eacute aquela segundo a qual os seres fiacutesicos poderiam ser ligados aos planetas ldquopor intermeacutedio destas qua-lidades fundamentais quente frio seco e uacutemidordquo (id p 231) A interpretaccedilatildeo moral ndash a predominante ndash consiste em descobrir uma significaccedilatildeo espiritual nas figuras dos deuses e em suas accedilotildees de forma a que se chegue a uma mitologia moralizada que ganharaacute focirclego na Idade Meacutedia como se vecirc na obra Ovide Moraliseacute uma espeacutecie de summa dos conhecimentos medievais no que se refere ao tema das metamorfoses

Os coacutedices nos datildeo o tiacutetulo Mythologiarum libri tres de forma que do ponto de vista de sua macro-estrutura as Mythologiae estatildeo organizadas em trecircs livros apa-rentemente sem sinais de uma disposiccedilatildeo programada e desiguais em sua distribuiccedilatildeo de narrativas o Livro I tem 22 faacutebulas o II 16 e o III 12 Amarante (2018a) apresenta uma proposta de arquitetura horizontal do conteuacutedo da obra segundo a qual as faacute-bulas se encontrariam atravessadas por elementos morais ligados a escolhas que se explicitam nas faacutebulas que abrem o livro central ndash o Livro II ndash funcionando essas faacute-bulas como a declaraccedilatildeo programaacutetica fulgenciana numa espeacutecie de proecircmio ao meio a faacutebula II 1 seguindo a tradiccedilatildeo interpretativa da escolha no julgamento de Paacuteris e as faacutebulas II 2 II 3 e II 4 ligadas agrave tradiccedilatildeo interpretativa da escolha conhecida como Heacutercules na encruzilhada clxxv Segundo Venuti o tradutor brasileiro das Mythologiae

propotildee uma anaacutelise global da ldquoarquitecturardquo das Mytho-logiae proporcionando uma leitura unitaacuteria levantando hipoacuteteses sobre a organizaccedilatildeo ldquohorizontalrdquo do material e interessantes propostas criacuteticas em relaccedilatildeo aos tiacutetulos das fabulas (VENUTI 2018 p 22 n 80) clxxvi

Tambeacutem Sacchi (2020) destaca a leitura da estrutura da obra proposta pelo tradutor Joseacute Amarante confrontando-a com a leitura de Wolff (da ediccedilatildeo de Wolff e Dain 2013)

Amarante se concentra no niacutevel micro das transiccedilotildees de uma faacutebula para outra Pretende demonstrar que as My-thologiae natildeo constituem apenas uma rede mas tambeacutem que esta rede se organiza de forma linear a sua loacutegica surge atraveacutes da sucessatildeo de mitos que longe de serem desarticulados se revelaram legiacuteveis ldquocapa a capardquo [ie do comeccedilo ao fim] Assim a anaacutelise de Amarante substitui a coesatildeo estrutural de Wolff recorrendo a uma espeacutecie de coesatildeo de fluxo ndash mas a coesatildeo continua a ser o objetivo (SACCHI 2020 p 128) clxxvii

O Proacutelogo do Livro I eacute a parte da obra de Fulgecircncio que de tatildeo enigmaacutetica certamente eacute a mais estudada clxxviii Estruturalmente eacute bastante diverso dos demais aleacutem de ser um proacutelogo programaacutetico de funcionar como uma espeacutecie de introduccedilatildeo para toda a obra (VENUTI 2009 2018 WOLFF DAIN 2013) ocupa 13 das 78 paacuteginas de todo o livro na ediccedilatildeo de Helm uma porcentagem razoaacutevel de texto em relaccedilatildeo ao conjunto enquanto os demais proacutelogos basicamente exercendo a tradicional funccedilatildeo de captatio beneuolentiae comum ao gecircnero ocupam apenas poucas linhas de seus livros clxxix

As narrativas e interpretaccedilotildees das Mythologiae se iniciam com a faacutebula Vnde idolum uma espeacutecie de introduccedilatildeo ao tema do surgimento dos deuses que seria ou de base biacuteblica ou alheia ao restante do conteuacutedo de toda a obra uma vez que nos trecircs li-vros se apresentam histoacuterias comuns da mitologia greco-latina ricamente documenta-das na literatura antiga clxxx Nessa faacutebula introdutoacuteria ficamos a conhecer a histoacuteria de um pai que perde prematuramente seu filho e que manda construir em sua casa uma escultura do adorado herdeiro pensando estar criando um remeacutedio para a tristeza da ausecircncia clxxxi Contudo segundo Fulgecircncio o pai acaba por criar ldquouma fonte maior de sofrimento porque somente o esquecimento seria o remeacutedio dos pesares92rdquo Estaria assim entatildeo criado o iacutedolo porque ldquoo conjunto de escravos em agrado ao senhor se acostumou ou a tecer coroas ou a levar flores ou ainda a queimar ervas aromaacuteticas agrave estaacutetuardquo93

Em defesa da estrateacutegia fulgenciana e de uma suposta consciecircncia autoral da importacircncia daquela narrativa naquela posiccedilatildeo poderia ser evocado o didatismo que se observa aqui e acolaacute em sua obra A presenccedila de um relato aparentemente destoante do conjunto da obra natildeo se encontraria entatildeo deslocada do conjunto de faacutebulas mas ndash ao contraacuterio ndash refletiria uma visatildeo programaacutetica do autor a selecionar uma histoacuteria que lhe seria uacutetil para abrir o complexo de narrativas dado que simboliza um amaacutel-gama entre o conteuacutedo pagatildeo e o conteuacutedo cristatildeo Dessa forma a sua inserccedilatildeo nessa posiccedilatildeo de destaque poderia ser compreendida assim se o autor projeta o livro como uma tentativa de valorizando a forccedila do conteuacutedo claacutessico ensinar aos jovens cristatildeos uma forma de poder ler esse conteuacutedo reinterpretado filosoficamente de acordo com os interesses cristatildeos nada mais apropriado que escolhesse uma histoacuteria que sendo

92 ldquoSeminarium potius doloris inuenit nesciens quod sola sit medicina miseriarum obliuiordquo (FVLG myht 1 1 (H 16 14-15)

148 149

tambeacutem biacuteblica representasse uma retomada de um conteuacutedo que eacute amplamente do-cumentado na Antiguidade seja em suas ldquoficccedilotildees fabulosasrdquo94 ndash a mitologia ndash seja no que chegou ateacute noacutes dos eventos narrados pelos proacuteprios historiadores (AMARANTE 2018b)

Para aleacutem do que se declara com escolhas toacutepicas (como a faacutebula Sobre a ori-gem da idolatria abrindo o livro ou as faacutebulas ligadas agraves tradiccedilotildees do julgamento de Paacuteris e de Heacutercules na encruzilhada como dobradiccedila ancorando a obra no livro do meio o Livro II) o programa fulgenciano nos eacute lembrado a todo tempo praticamen-te em todas as faacutebulas Tal programa poderia se resumir nas observaccedilotildees frequentes quanto ao fato de a mendax Graecia (ldquoa enganosa Greacuteciardquo) necessitar ser desvendada e pelo fato de que essas vendas dos olhos da razatildeo fossem retiradas por meio da etimo-logia muitas vezes puramente etimologia dita popular

As explicaccedilotildees etimoloacutegicas quase sempre a partir do grego aparecem inse-

ridas sob a foacutermula x enim Grece y dicitur como na Faacutebula das Harpias ldquoarpage de fato em grego quer dizer rapinardquo numa associaccedilatildeo com o substantivo grego ἁρπάγη (lsquorapinarsquo)95 relacionado ao verbo ἁρπάζω (lsquotomarrsquo lsquoarrebatarrsquo) mas essa eacute uma su-posiccedilatildeo considerada da esfera da etimologia popular Quando o decalque com uma palavra grega eacute difiacutecil a estrateacutegia eacute o uso do adveacuterbio quasi (lsquopraticamentersquo lsquomais ou menos lsquoquasersquo) promovendo uma aproximaccedilatildeo como na explicaccedilatildeo para o nome de Minerva em grego ldquoE depois Minerva em grego eacute dito Atena praticamente athanate parthene isto eacute uma virgem imortal porque a sabedoria natildeo poderaacute morrer nem ser corrompidardquo96 Nesse caso Fulgecircncio retira o nome de Atenas (cuja etimologia natildeo estaacute assentada) numa aproximaccedilatildeo com o adjetivo ἀθάνατος (lsquoimortalrsquo) e o substan-tivo παρθένος (lsquovirgemrsquo) Uma possibilidade final seria a de recorrer ao proacuteprio latim como na explicaccedilatildeo para o nome de Mercuacuterio ldquoQuiseram dizer Mercuacuterio quase como mercium-curum [lsquoo que cuida dos comeacuterciosrsquo]rdquo97 Aqui Fulgecircncio deve se basear num composto das palavras latinas merx (mercium em genitivo lsquodos negoacuteciosrsquo lsquodos co-meacuterciosrsquo) e alguma forma mal flexionada possivelmente para se aproximar do nome Mercuacuterio ligada ao verbo curare (lsquocuidar dersquo lsquoocupar-se dersquo)

Do ponto de vista da composiccedilatildeo as narrativas refletem grosso modo o uso de certas foacutermulas sendo a mais geral a que apresenta uma narrativa do mito seguida de sua interpretaccedilatildeo tendo por vezes a etimologia nos moldes do que se disse supra como o elemento comprovador da interpretaccedilatildeo oferecida ou de parte dela Veja-se pe a narrativa sobre o Ceacuterbero

VI Faacutebula de CeacuterberoJunto aos peacutes dele [de Plutatildeo] colocam o catildeo de trecircs cabe-ccedilas Ceacuterbero porque as invejas das disputas dos mortais satildeo compostas em estado ternaacuterio isto eacute natural causal e por acidente O oacutedio eacute natural como o dos catildees e das le-

93 ldquoUniuersa familia in domini adolatione aut coronas plectere aut flores inferre aut odoramenta simulacro succendere consueratrdquo (FVLG myth 1 1 H 16 19-21)94 ldquoFabulosa commentardquo (FVLG myth 1 18 H 30 22)95 ldquoArpage enim Grece rapina diciturrdquo (FVLG myth 1 9 H 21 16-17)

96 ldquoMinerua denique et Athene Grece dicitur quasi athanate parthene id est inmortalis uirgo quia sapientia nec mori poterit nec corrumpirdquo (FVLG myth 2 1 H 30 10-13)97 ldquoMercurium dici uoluerunt quasi mercium-curumrdquo (FVLG myth 1 18 H 29 8-9)98 ldquoFabula de Tricerbero Tricerberum uero canem eius subiciunt pedibus quod mortalium iurgiorum inuidiae terna-rio conflentur statu id est naturali causali accidenti Naturale est odium ut canum et leporum luporum et pecudum hominum et serpentium causale est ut amoris zelum atque inuidiae accidens est quod aut uerbis casualiter oboritur ut hominibus aut comestionis propter ut iumentis [Cerberus uero dicitur quasi creoboros hoc est carnem uorans et fingi-tur tria habere capita pro tribus aetatibus infantia iuuentute senectute per quas introiuit mors in orbem terrarum]rdquo (FVLG myth 1 6 H 20 8-18)99 ldquoIn secreta conscientiaerdquo (FVLG myth 3 12 H 80 14)

bres dos lobos e dos carneiros dos homens e das serpen-tes eacute causal como as invejas e o ciuacuteme do amor acidente eacute o que ou surge casualmente por exemplo ou atraveacutes de palavras entre os homens ou nas proximidades do consu-mo entre mulas Em verdade Ceacuterbero eacute conhecido como Creoboros isto eacute devorador de carne e eacute representado tendo trecircs cabeccedilas por causa das trecircs idades ndash a infacircncia a juventude e a velhice notndash pelas quais a morte entrou no mundo (FVLG myth 1 6) 98

Destaquem-se na narrativa os usos das conjunccedilotildees explicativas a loacutegica ar-gumentativa ad hoc e o nome do catildeo tomado de uma etimologia tambeacutem ad hoc a partir de κρεοβόρος carniacutevoro (vd κρέας lsquocarnersquo e βορός lsquovorazrsquo) Diriacuteamos pois que essa estrutura eacute modelar em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de composiccedilatildeo fulgenciana nessa obra mitograacutefica

As Mythologiae encerram o seu terceiro e uacuteltimo livro com a Faacutebula de Alfeu

e Aretusa de forma que assim convidam o leitor agrave descida ao submundo ie ldquoaos segredos da consciecircnciardquo99 algo que direciona o leitor agrave obra seguinte com a descida aos Infernos que eacute o tema central do Livro VI da Eneida e elemento fundamental para a interpretaccedilatildeo da obra virgiliana em sua Expositio Virgilianae Continentiae (WOLFF DAIN 2013 p 179)

2 Expostio virgilianae continentiae (Explicaccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacutelio)

ldquoAssim ao alcanccedilar a idade de muita sabedoria cruza o lamaccedilal temporaacuterio do turbilhatildeo de aacuteguas e impurezas dos costumes Eis que ele [Eneacuteias] faz Ceacuterbero adorme-cer com bolinhos de mel Jaacute posta anteriormente discuti a faacutebula de Ceacuterbero como de fato uma forma de disputa e um litiacutegio legalrdquo 100

Vista de modo avulso a passagem em destaque pode reforccedilar a grosseria e os inexplicaacuteveis absurdos atribuiacutedos por deacutecadas agrave ldquopenardquo de Fulgecircncioclxxxiii afinal natildeo soacute inexistem menccedilotildees a Ceacuterbero em toda a Vergilianae como tambeacutem eacute o personagem de Virgiacutelio e natildeo Fulgecircncio que faz essa observaccedilatildeo No entanto ao compreendermos a complexidade da sua produccedilatildeo e considerarmos suas outras obras identificamos aqui uma remissatildeo textual interna a sua obra anterior em especial agrave ldquoFaacutebula sobre

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Ceacuterberordquo do seu livro de mitologias (myth 1 6) Eacute atraveacutes dessa referecircncia que Rudol-ph Helm (1898) em sua ediccedilatildeo de Fulgecircncio estabelece a anterioridade das Mytholo-giae em relaccedilatildeo agrave Vergilianae assim como uma vinculaccedilatildeo desta com aquela

Seu texto eacute o primeiro comentaacuterio alegoacuterico sobre a Eneida de que se tem notiacutecia na Antiguidade tardia Eacute portanto o cruzamento de duas tradiccedilotildees literaacuterias a reinterpretaccedilatildeo da Antiguidade claacutessica sob a perspectiva cristatilde e as leituras e comen-taacuterios agrave obra de uma auctoritas romana o que resulta na uacutenica obra fulgenciana den-tro do seu projeto de releitura dedicada a um autor e obra especiacuteficos Seu comentaacuterio desconsiderando elementos de ordem formal e esteacutetico anteriormente elucidados por outros autores da tradiccedilatildeo virgiliana visa debruccedilar-se sobre os conhecimentos profun-dos ocultados pelos artifiacutecios poeacuteticos as continentiae

A introduccedilatildeo consiste em uma dedicatoacuteria e uma alusatildeo agraves dificuldades de sua eacutepoca a mediocritas temporis que natildeo lhe favorecem o labor intelectual num conjunto de topoi encontrados tambeacutem nas Mythologiae Sua intenccedilatildeo eacute explicar os misteacuterios naturais da obra virgiliana evitando contudo aqueles jaacute dispostos ao longo das Eacuteclogas e das Geoacutergicas ainda que na sequecircncia rememore esses mesmos textos O fechamento desse introacuteito se daacute com mais uma exortaccedilatildeo ao seu destinataacuterio alegan-do ser esse um opuacutesculo um ramalhete colhido dos jardins das Hespeacuterides e natildeo um pomo de ouro de forma que assim ele constitui uma situaccedilatildeo beneacutevola agrave sua exposiccedilatildeo ao promover o status de humilde enunciador

Seu empreendimento apesar disso eacute aacuterduo e eacute agraves musas todas elas a quem Fulgecircncio invoca natildeo apenas a Caliacuteope representante da poesia eacutepica ldquoAproximem--se Heliconiacuteades deem preacutestimos agrave minha mente [] uma de fato natildeo bastardquo101 Em resposta

eis que em direccedilatildeo a mim o proacuteprio Virgiacutelio tambeacutem se aproxima mais saciado do que se tivesse bebido da fonte ascreia assim como costumam ser as figuras dos poetas quando ndash arrogadas as tabuinhas para concluir a obra com a fisionomia extasiada ndash murmuram baixinho algum misteacuterio com a obra ladrando em seu interior102

Quem melhor que o autor da Eneida para validar ao longo da exposiccedilatildeo os misteacuterios escondidos sob a superfiacutecie do seu proacuteprio poema Sua presenccedila marca o iniacutecio do diaacutelogo atraveacutes do qual a interpretaccedilatildeo do eacutepico seraacute conduzida Contudo enquanto uma remissatildeo textual mal compreendida fruto do processo de transmissatildeo inerente a esse texto originou uma seacuterie de criacuteticas ao que parecem injustas ao seu autor a ldquoignoracircncia e inexperiecircnciardquo de Fulgecircncio satildeo reforccediladas por essa incursatildeo do vate de Macircntua uma vez que entabulada a discussatildeo seus turnos de fala por vezes se

100 ldquoErgo dum ad tempus multae scientiae quis peruenerit in temporales gurgitum cenositates morumque feculentias transit Deinde Tricerberum mellitis resopit offulis Tricerberi enim fabulam iam superius exposuimus in modum iurgii forensisque litigii positamrdquo (FVLG Virg cont 98 20 ndash 99 1 grifos nossos)101ldquoVos Eliconiades uocanda est [] date praemia menti [] nec enim mihi sufficit unardquo (FVLG Virg cont 85 5-7)

102 ldquoNam ecce ad me etiam ipse Ascrei fontis bractamento saturior aduenit quales uatum imagines esse solent dum adsumptis ad opus conficiendum tabulis stupida fronte arcanum quiddam latranti intrinsecus tractatu submurmurantrdquo (FVLG Virg cont 85 12-16)103 ldquo[] nobis uero erit maximum si uel extremas tuas praestringere contingerit fimbriasrdquo (FVLG Virg cont 86 12-13)104 ldquoEst enim natura in auro productionis et decoris sed ad perfectionem malleo proficit excudentisrdquo (FVLG Virg cont 90 7-8)

confundem e Fulgecircncio falaraacute por Virgiacutelio quando natildeo deveria e vice-versa (COMPA-RETTI 1943[1872] p 61)

De qualquer forma o aparecimento de Virgiacutelio consiste num expediente pa-dratildeo o de ldquovisita nos sonhosrdquo recurso jaacute empregado por Ciacutecero Boeacutecio e pelo proacuteprio Fulgecircncio nas Mythologiae Sua entrada eacute ainda fundamental agrave tradiccedilatildeo textual haja vista que sua visita situa a obra natildeo apenas dentre os textos que comentaram textos virgilianos assim como junto agravequeles em que ele Virgiacutelio foi tambeacutem representado quer anteriormente como na Saturnalia de Macroacutebio quer posteriormente como na Divina Comeacutedia de Dante (HAYS 1996 p i)

Numa referecircncia ao evangelho de Mateus (9 20-21) em que uma enferma resvala nas roupas de Jesus e com isso se cura Fulgecircncio afirma querer tocar-lhe ldquoas fiacutembrias das vestesrdquo103 reforccedilando seu status miacutestico convidando-lhe em seguida a as-sumir o papel professoral e discorrer sobre os conteuacutedos secretos de seu poema o peacute-riplo de Eneacuteias como alegoria das fases da vida humana do nascimento agrave maturidade

Os saberes intriacutensecos que jazem sob a superfiacutecie do poema no aguardo de serem esclarecidos conforme os anseios dessa nova mentalidade para a qual Fulgecircncio traduz a Eneida encontram jaacute no incipit uma relaccedilatildeo com sua interpretaccedilatildeo Arma ui-rum e primus representam pois trecircs estaacutegios a partir dos quais se compreende a vida conforme o modelo platocircnico tripartido arma tambeacutem natura a substacircncia corporal capacidade inata uirum tambeacutem doctrina substacircncia intelectual que guia a nature-za e primus tambeacutem felicitas substacircncia moral a fecundidade do conhecimento ad-quirido O corpo carece do intelecto para alcanccedilar a completude assim como ldquoo estado natural do ouro eacute de fato sua beleza e maleabilidade mas eacute batendo com o martelo do ferreiro que ele chega agrave perfeiccedilatildeordquo 104

A Exposiccedilatildeo dos conteuacutedos de Virgiacutelio utiliza-se quando natildeo de filosofia neo-platocircnica do emprego de etimologias a fim de justificar sua interpretaccedilatildeo Eacute assim que se explica a tempestade causada por Eacuteolo a mando de Juno naufragando os troianos na costa da Liacutebia ela eacute a deusa que preside os partos donde o naufraacutegio representa os tumultos do nascimento e eonolus em grego eacute a ldquodestruiccedilatildeo do mundordquo105 O encontro de Eneacuteias com Vecircnus que o visitou sob um disfarce encontra similar expli-caccedilatildeo ldquovecirc a matildee mas natildeo a reconhece demonstrando precisamente a infacircncia pois que pelo parto aos receacutem-nascidos eacute dado ver a matildee mas natildeo eacute dada a habilidade de reconhececirc-lardquo106 O enterro de Anquises no porto de Dreacutepanos compreende a chegada agrave juventude e o topocircnimo formado do grego drimos lsquoaacutesperorsquo e pes lsquomeninorsquo simboliza a rebeldia da juventude rechaccedilando a autoridade paterna Mais agrave frente a tempesta-de que isola Eneacuteias e Dido e os faz ceder agrave paixatildeo representa as mesmas turbulecircncias que obscurecem o discernimento adolescente e essa mudanccedila de estado pode-se dar

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apenas com uma interferecircncia externa Mercuacuterio ao alertar Eneacuteias para a sua tarefa de alcanccedilar a Itaacutelia representa o chamado agrave razatildeo e o abandono da voluacutepia fruto dos desejos juvenis ldquodonde o amor desprezado se esvai e consumido pelo fogo transfor-ma-se em cinzasrdquo107

Eacute novamente a visatildeo de Dido mas dessa vez no mundo inferior que constitui o ponto alto do comentaacuterio feito ao livro VI ndash haja vista que sua sequecircncia os livros seguintes satildeo interpretados de modo raacutepido e encontram um encerramento abrupto outro ponto responsaacutevel por suscitar criacuteticas ao estilo de Fulgecircncio A exposiccedilatildeo alcan-ccedila a ldquoespinha dorsalrdquo da jornada de Eneacuteias sua descida aos infernos ndash que remete a uma descida agrave sua proacutepria consciecircncia minus no que eacute a seccedilatildeo mais volumosa em usos ale-goacutericos interpretativos ou etimoloacutegicos A Sibila de Cumas o orienta quanto aos ritos de entrada no submundo e sua trajetoacuteria eacute exibida atraveacutes de cataacutelogos constituindo inclusive um exerciacutecio mnemocircnico personagens virtuosos ou que padecem como Tacircntalo Siacutesifo e Deiacutefobo moleacutestias que assolam a humanidade a fome a guerra a peste dentre outras

Alcanccedilada a perfeiccedilatildeo da memoacuteria representadas por esse itineraacuterio de apren-dizados a capacidade intelectual deve ser consolidada para toda a eternidade assim como o ramo de ouro eacute fixado nos portotildees de entrada dos Campos Eliacuteseos O rumo aos caminhos que levam agrave doctrina no entanto natildeo eacute a uacutenica etapa que representa a perpetuaccedilatildeo da substacircncia intelectual e a chegada agrave uirilis aetas eacute antes o seu encontro com a sombra de Dido pois ldquoa paixatildeo esvaiacuteda pelo desprezo contemplando agrave razatildeo eacute chamada agrave memoacuteria entre laacutegrimas penitentesrdquo108 Eacute assim que sob o manto de uma histoacuteria alegoacuterica foi apresentado o pleno estado do homem e de todas as suas capa-cidades109

3 Expositio sermonum antiquorum (Elucidaccedilatildeo de termos antigos)clxxxiv

A Fulgentii expositio sermonum antiquorum como costuma ser denominada

nos manuscritos consiste em um sucinto glossaacuterio de palavras consideradas antigas ou raras O opuacutesculo abre-se com um curto proacutelogo direcionado a um desconheci-do dominus denominado Calcidium ou Chalcidium grammaticum e em seguida satildeo apresentadas de maneira recursiva e reiterativa as entradas com as explicaccedilotildees ou definiccedilotildees de 62 sermones Cada um dos termos com uma ou duas exceccedilotildees eacute defi-nido e ilustrado com uma breve citaccedilatildeo em que pelo menos um autor e uma obra determinada satildeo citados para endossar uma explicaccedilatildeo dada Essas palavras seriam aquelas encontradas em autores gregos e latinos da Antiguidade como Ecircnio Plauto Virgiacutelio Petrocircnio Propeacutercio ou alguns mais tardios como Apuleio Marciano Capela

105 ldquoSaeculi interitusrdquo (FVLG Virg cont 91 12)106 ldquoVt terram tangit matrem uidet nec agnoscit plenam designantes infantiam quia a partu recentibus matrem lidere datur non tamen statim cognoscere meritum contribuiturrdquo (FVLG Virg cont p 92 7-10)107 ldquoQui quidem amor contemptus emoritur et in cineres exustus emigratrdquo (FVLG Virg cont 94 23-24)108 ldquoContemplando enim sapientiam libido iam contemptu emortua lacrimabiliter penitendo ad memoriam reuocaturrdquo (FVLG Virg cont p 99 19-21) 109 ldquoErgo sub figuralitatem historiae plenum hominis monstrauimus statumrdquo (FVLG Virg cont p 89 25 - 902)

entre outros que vez ou outra fizeram uso de um vocabulaacuterio antigo em suas obras

A Expositio sermonum antiquorum traz em si fragmentos de diversos campos do saber antigo variando desde ritos funeraacuterios antigos a costumes ligados ao povo etrusco ainda elementos da oratoacuteria grega poemas peccedilas e narrativas romanas apre-sentando assim um caraacuteter ecleacutetico proacuteprio da sua especificidade enciclopeacutedica

[] as entradas de 1 a 11 tratam de termos ligados aos costumes de sepultamento adivinhaccedilatildeo sacrifiacutecios reli-giosos e divindades menores enquanto as de 12 a 62 (com exceccedilatildeo das entradas 14 e 48 que podem ser deslocadas e pertencerem agrave primeira categoria) referem-se agraves palavras estranhas (coloquiais e teacutecnicas) termos referentes a ali-mentos barcos utensiacutelios relativos agraves meretrizes e assim por diante especialmente os que satildeo encontrados em pe-ccedilas de teatro poemas e romances (WHITBREAD 1971 p 157) clxxxv

Conforme discutido acima o interesse maior do autor da Sermonum eacute a An-tiguidade ou seja como faz em outras obras Fulgecircncio busca reinterpretar o mundo antigo explicando-o de alguma forma a facilitar-lhe a compreensatildeo ou para impri-mir camadas de sentido adaptadas a sua nova realidade Assim sendo na Sermonum vemos esse interesse interpretativo mas numa outra perspectiva natildeo diretamente a literaacuteria mas a linguiacutestica quer dizer o que se vecirc aqui eacute um Fulgecircncio registrando um leacutexico ligado agrave Antiguidade e ndash ao que se depreende ndash natildeo mais em uso no periacuteodo em que vive portanto a motivaccedilatildeo grosso modo natildeo eacute diversa trata-se da necessidade de se registrar elementos do tesouro da Antiguidade em vias de desaparecimento mas agora elementos linguiacutesticos donde se potildee a liacutengua como tambeacutem um dos patrimocircnios de um povo (AMARANTE ALMEIDA 2015)

A obra visto seu caraacuteter compilatoacuterio e ecleacutetico faz parte de uma tradiccedilatildeo lexicograacute-fica que caracteriza a Antiguidade Tardia periacuteodo em que haacute uma tendecircncia agrave produccedilatildeo de compecircndios i e ao enciclopedismo momento em que houve uma emergecircncia de se prepa-rar as geraccedilotildees vindouras atraveacutes da produccedilatildeo de obras que embora consideradas de pouca profundidade e de escassa originalidade satildeo uacuteteis ao estudo e possibilitam de modo compreensiacutevel e assimilaacutevel o acesso agrave cultura claacutessica (BISOGNO 2012)

Segundo Whitbread (1971) a Sermonum assemelha-se mutatis mutandis a outras compilaccedilotildees e epiacutetomes da Antiguidade romana tardia como a De lingua latina do erudito Marcos Terecircncio Varratildeo e possivelmente tambeacutem do mesmo autor uma obra perdida a Quaestiones Plautinae que trata sobre palavras difiacuteceis das peccedilas de Plauto Haacute ainda a Naturalis Historia de Pliacutenio o Velho uma enciclopeacutedia que eacute um verdadeiro celeiro de material antigo haacute um epiacutetome organizado em vinte tomos do tratado enciclopeacutedico De verborum significatu de Marco Veacuterrio Flaco ceacutelebre gramaacuteti-co que floresceu durante o periacuteodo de Augusto e ainda a obra de Nocircnio Marcelo a De compendiosa doctrina (ou De proprietate sermonum) um compecircndio de vinte livros que tratam das funccedilotildees gramaticais e classes de palavras sobre termos mariacutetimos vestuaacuterio entre outros assuntos (WHITBREAD 1971 p 158)

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As citaccedilotildees apresentadas na Sermonum satildeo comuns agraves de eruditos nas re-laccedilotildees de limites de obras e periacuteodo como Varratildeo e Probo Veacuterrio e Pliacutenio Frontatildeo e Geacutelio os grandes da lexicografia as vozes dos lsquooriginaisrsquo da Antiguidade pois

dos vaacuterios testemunhos relatados por Fulgecircncio na exem-plificaccedilatildeo dos sermones apenas trecircs encontram corres-pondecircncia com outros estudiosos ou eruditos ou lexicoacute-grafos como Festo ou Nocircnio ou Seacutervio ou Isidoro aleacutem de vozes ateacute desconhecidas para esses estudiosos (PENNISI p 135-136)clxxxvi

Ainda a respeito da sua estrutura e conteuacutedo a Sermonum foge da padroni-zaccedilatildeo geral dos glossaacuterios antigos que satildeo geralmente organizados por temas ou por ordem alfabeacutetica Conforme vimos eacute possiacutevel a identificaccedilatildeo de certos agrupamentos temaacuteticos como palavras e frases ligadas a rituais religiosos (4-6 9-10 14) ritos fuacute-nebres (1-3 sandapilam vispillo pollinctor) alimentos (39-42 lentaculum edulium tucceta ferculum) e naacuteutica (29-30 stega lembum)

Como jaacute se mostra claro em seu tiacutetulo a obra eacute uma espeacutecie de expositio (em latim lsquoexposiccedilatildeorsquo lsquoexplicaccedilatildeorsquo) portanto busca lsquoexplicarrsquo lsquodefinirrsquo ou ainda lsquoelucidarrsquo termos considerados antigos ao periacuteodo do autor Daiacute a estrutura baacutesica da explicaccedilatildeo dos sessenta e dois sermones natildeo eacute complexa iniciada sempre com a afirmaccedilatildeo [Quid sitsint ] eacute seguida de um comentaacuterio explicativo que define a palavra a partir do aporte de uma ou duas breves citaccedilotildees de autores claacutessicos

7 [Que seriam suggrundaria] No tempo antepassado os antigos chamavam suggrundaria os tuacutemulos de crianccedilas que ainda natildeo tivessem completado quarenta dias por-que eles natildeo podiam ser chamados busta pois natildeo havia ossos que queimassem inteiramente nem tanta grandeza cadaveacuterica que preenchesse o lugar daiacute Rutiacutelio Gecircmino na trageacutedia Astianacte diz ldquoOacute infeliz melhor do que um sepulcro a pequena cova tu lamentasrdquo 110

Essa metodologia compositiva eacute utilizada por Fulgecircncio buscando-se a trans-missatildeo de trecircs itens principais a palavra ou frase a ser definida a definiccedilatildeo em si e uma citaccedilatildeo ilustrativa como pode ser visto no sermo 7 acima utilizado aqui como exemplo da teacutecnica fulgenciana aplicada nos demais sermones

4 De aetatibus mundi et hominis (Das idades do mundo e da humanidade)clxxxvii

A De aetatibus mundi et hominis eacute a obra fulgenciana nitidamente mais cristatilde Nesse escrito o Mitoacutegrafo descreve ndash poeticamente e a partir de sua oacutetica moral reli-giosa ndash quais seriam as fases cronoloacutegicas do mundo e do ser humano Desse modo a composiccedilatildeo em tela acaba adquirindo relevo natildeo apenas para o campo literaacuterio mas

110 ldquo7 [Quid sint suggrundaria] Priori tempore suggrundaria antiqui dicebant sepulchra infantium qui necdum qua-draginta dies implessent quia nec busta dici poterant quia ossa quae conburerentur non erant nec tanta inmanitas cadaueris quae locum tumisceret unde et Rutilius Geminus in Astianactis tragoedia ait lsquoMelius suggrundarium miser quereris quam sepulchrumrsquordquo (FVLG serm 113 19 ndash 114 5)

tambeacutem para pesquisas desenvolvidas em acircmbito histoacuterico filosoacutefico e teoloacutegico

A dimensatildeo formal da De aetatibus desperta alguma curiosidade visto que diz respeito a um lipograma uma modalidade de escrita constrangida em que seu autor evita deliberadamente o emprego de uma ou mais letras do alfabeto A produccedilatildeo ful-genciana consiste em um lipograma consecutivo na medida em que se omite sequen-cialmente o uso das 14 letras iniciais relativas ao alfabeto liacutebico-latino de Fulgecircncio

Assim o Mitoacutegrafo subdividiu sua obra em 14 seccedilotildees evitando em cada uma delas o uso de um determinado grafema o que foi empreendido de lsquoarsquo a lsquoorsquo Ocorre que nosso lipogramista parece em seu proacutelogo anunciar que utilizaria todas as 23 letras de seu alfabetoclxxxix Aleacutem disso o Livro XIV se encerra de modo abrupto com uma ligeira referecircncia ao imperador Valentiniano I Levando em conta tais elementos al-guns estudiosos como Reifferscheid (1883) e Franz Skutsch (1910 apud Manca 2003) entendem que a obra estaria inacabada enquanto outros como Helm (1898) e Pennisi (1963) advogam pela completude do lipograma considerando o proacuteprio desenvolvi-mento da narrativa

A nosso entender tambeacutem se afigura plausiacutevel sustentar a integralidade da De aetatibus Isso porque naquele que seria o penuacuteltimo Livro disponiacutevel (Ausente N) Fulgecircncio parece sugerir que jaacute encerraraacute sua obra na seccedilatildeo seguinte (Ausente O) Ademais sopesando a precedecircncia poeacutetica da oposiccedilatildeo entre os elementos lsquoarsquo e lsquoorsquo no tange ao contraste teoloacutegico-cristatildeo entre o alfa e o ocircmega entendidos como iniacutecio e fim dos tempos a hipoacutetese de completude se reforccedila Nesse sentido natildeo parece ser mero resultado de uma falha no processo de transmissatildeo textual que ndash em uma obra que visa exatamente a descrever as idades cronoloacutegicas do mundo e do ser humano ndash os marcos inicial e final coincidam com os termos lsquoarsquo e lsquoorsquo

Outra problemaacutetica filoloacutegica relevante versa sobre a natureza (a)lipogramaacute-

tica do proacutelogo Quanto a isso a ediccedilatildeo criacutetica de referecircncia da aacuterea estabelecida pelo filoacutelogo latinista Rudolf Helm (FVLGENTII 1898) estampa o proacutelogo como sendo ali-pogramaacutetico e separado do Livro I que se iniciaria apenas com a narrativa do Peca-do Original O comentador italiano Manca (2003) que foi seguido por Gregory Hays (2019) assevera contudo que o editor criacutetico teria ignorado jaacute no proacutelogo uma ins-criptio indicadora do iniacutecio do lipograma e presente nos manuscritos Vaticanus e Tau-rinensis Ademais ele tambeacutem ressalta que a maioria das unidades lexicais portadoras do grafema lsquoarsquo diriam respeito ao ditongo lsquoaersquo que poderia ter sido facilmente alvo de simplificaccedilatildeo Por fim assinala ainda que o primeiro Livro ostentaria uma extensatildeo desproporcional ante o todo orgacircnico da obra visto que ndash se excluiacutedo o proacutelogo de sua conformaccedilatildeo ndash seria significativamente menor que os demaiscxc

Atendo-nos mais especificamente quanto agrave dimensatildeo estiliacutestica da De aetati-bus eacute preciso ainda tecer algumas consideraccedilotildees a respeito de sua estrutura Seguindo

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as alegaccedilotildees de Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019a 2020d) essa obra se insere em uma tradiccedilatildeo de escrita constrangida que foi explorada desde a Antiguidade ateacute a Contem-poraneidade ainda que ocupando durante um largo periacuteodo um baixo grau de evi-decircncia Assim do ponto de vista estiliacutestico eacute tambeacutem perceptiacutevel uma aproximaccedilatildeo do lipograma com outros escritos a exemplo do centatildeo do acroacutestico do tautograma do anagrama e do paliacutendromocxcii

Em tal panorama o escrito ora analisado adquire uma posiccedilatildeo especial tendo em vista que segundo assevera Georges Perec (OULIPO 1973) ele teria sido o mais antigo lipograma atestado De fato a fortuna criacutetica costuma mencionar lipogramistas anteriores a Fulgecircncio a exemplo de Piacutendaro Partecircnio de Niceia Nestor de Laran-da Trifiodoro e Laso de Hermione Eacute de se ressaltar entretanto que de todos esses escritores teriam chegado ateacute noacutes tatildeo somente alguns fragmentos em grego antigo atribuiacutedos a Hermione Dessa maneira eacute apenas a partir de Fulgecircncio que se pode concretamente atestar a incidecircncias das constriccedilotildees lipogramaacuteticas

No proacutelogo da De aetatibus o Mitoacutegrafo utiliza a expressatildeo opus durissimum (ldquoobra duriacutessimardquo) para definir sua obra Nesse sentido verifica-se de fato curiosa a potecircncia estiliacutestica que o escrito acaba adquirindo na medida em que a cada seccedilatildeo da obra o desafio linguiacutestico se altera jaacute que a proacutepria frequecircncia das letras em latim se demonstra distinta Assim existem partes sensivelmente restritivas a exemplo dos Livros com constriccedilatildeo vocaacutelica enquanto outras seccedilotildees praticamente natildeo limitam seu escritor como ocorre com o Livro X em que a letra a ser evitada seria a lsquokrsquo muito rara em latim e em portuguecircs

A escrita lipogramaacutetica engendra uma seacuterie de dificuldades a seu compositor que se vecirc obrigado a evitar um conjunto de unidades lexicais Buscando contornar tal desafio Fulgecircncio se valeu de antonomaacutesias periacutefrases circunloacutequios metaacuteforas su-pressotildees arcaiacutesmos e grecismos fornecendo pistas tambeacutem para seu tradutor que em liacutengua portuguesa buscou se aventurar no jogo constritor sugerido pela De aetatibus

A estrutura formal adotada pelo autor Fulgecircncio tambeacutem reverberou em nos-so projeto tradutoacuterio jaacute que nos vimos desafiados pelas constriccedilotildees estiliacutesticas arti-culadas Assim considerando a relevacircncia em tal obra dessa marca responsaacutevel ateacute mesmo por inseri-la em uma posiccedilatildeo de destaque na Histoacuteria da Arte e em particular da Histoacuteria da Escrita Constrangida reputamos oportuna a realizaccedilatildeo de uma tra-duccedilatildeo lipogramaacutetica que cultivasse ativamente as restriccedilotildees linguiacutesticas ventiladas voltando-se para um singular processo de fruiccedilatildeo poeacutetica de natureza transcriadora Assim sendo estamos realizando a primeira traduccedilatildeo lipogramaacutetica da De aetatibus visto que essa obra soacute recebeu ateacute entatildeo duas traduccedilotildees alipogramaacuteticas uma para o inglecircs realizada por Leslie Whitbread (1971) e outra para o italiano efetuada por Massimo Manca (2003)

Por outro lado eacute tambeacutem sabido que no campo de Estudos Claacutessicos e Latinos Medievais os estudiosos muitas vezes anseiam por traduccedilotildees que lhes permitam um mergulho mais ceacutelere no conteuacutedo temaacutetico do texto de partida sendo ateacute mesmo relativamente comum a existecircncia de ediccedilotildees biliacutengues Assim o leitor do texto antigo

busca em instantes muito mais um acesso ao texto latino mediado por uma traduccedilatildeo do que efetivamente fruir de elementos relativos agrave sua dimensatildeo poeacutetica textual no texto de chegada Dessa maneira tambeacutem julgamos necessaacuteria a proposiccedilatildeo de um trabalho tradutoacuterio alipogramaacutetico que se revestisse de uma linguagem mais fluida e de maior valorizaccedilatildeo dos casos latinos e de sua sintaxe

Saliente-se por fim que nosso projeto buscou fornecer dois produtos tradu-toacuterios diversos que foram concebidos a partir de criteacuterios tradutoacuterios similarmente diferentes Assim buscou-se expandir o espectro de apreciaccedilatildeo da De aetatibus demo-cratizando ainda mais sua leitura a partir da inclusatildeo de objetivos variados por parte do puacuteblicocxciii

Consideraccedilotildees finais

Com a escrita deste texto registramos pois a conclusatildeo de um projeto que culmina com a traduccedilatildeo completa dos textos fulgencianos ao portuguecircs De suas obras a primeira intitulada O livro das Mitologias de Fulgecircncio (AMARANTE 2019) jaacute se encontra publicada assim como jaacute se publicaram partes da De aetatibus (vd Santos Jr nas referecircncias) A traduccedilatildeo completa da De aetatibus e da Virgilianae e Sermonum estatildeo em processo de encaminhamento para publicaccedilatildeo futura

Esperamos poder em breve apresentar publicados os quatro textos que foram objetos de discussatildeo nesse capiacutetulo Esperamos que o leitor perceba pela sua leitura dos proacuteprios textos alguma unidade de interesse nos propoacutesitos fulgencianos confor-me propusemos aqui

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A gramaacutetica como livrodidaacutetico testemunhos sobremeacutetodo e praacutetica escolar na

antiguidade

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Lucas Consolin Dezotti

1 Introduccedilatildeo Em sua monumental ediccedilatildeo da Ars Donati grammatici urbis Romae Louis

Holtz (1981) se refere a dois modos de se estudar os textos gramaticais latinos [a] como portadores de testemunhos tanto do nascimento da gramaacutetica grega e de sua adaptaccedilatildeo romana quanto das obras de reflexatildeo da eacutepoca claacutessica que tanto influen-ciaram a gramaacutetica latina (eg Varratildeo Palematildeo Pliacutenio) [b] como testemunhos do que era em seu tempo a gramaacutetica ensinada na escola conforme o riacutegido formato herdado da eacutepoca heleniacutestica

O segundo modo de estudo ressalta o fato de que os textos gramaticais satildeo essencialmente escolares e respondem agrave necessidade de se adquirir certas habilidades teacutecnicas e algum conhecimento teoacuterico acerca dos diferentes niacuteveis de anaacutelise da lin-guagem verbal Neste artigo procuramos apresentar alguns testemunhos pertinentes a esse modo de estudo a partir de consideraccedilotildees sobre a educaccedilatildeo praticada na Roma imperial e de uma apreciaccedilatildeo formal da principal obra produzida no periacuteodo a Arte de Donato

2 Breve panorama da educaccedilatildeo romana No seacuteculo IV dC de que datam os mais antigos testemunhos iacutentegros da gra-

maacutetica romana o ensino heleniacutestico jaacute estava consolidado em Roma Baseado numa cultura do livro e do texto que valorizava sobretudo a consciecircncia da palavra e o co-nhecimento erudito esse sistema se estabelecia em um programa de aprendizado orientado gradualmente do mais simples ao mais complexo ndash isto eacute da alfabetizaccedilatildeo ao discurso ndash no qual o curso de gramaacutetica ocupava o campo intermediaacuterio transformar estudantes receacutem-alfabetizados em homens e mulheres cultos e letrados prontos para receber a mais valiosa instruccedilatildeo para a vida social a retoacuterica

Destinado a capacitar os alunos na ediccedilatildeo de textos manuscritos o curso se constituia em atividades de leitura revisatildeo e interpretaccedilatildeo de obras literaacuterias especial-mente poeacuteticas Virgiacutelio sobretudo Para tanto os alunos contavam com dois tipos de material de apoio geralmente elaborados pelo professor [a] um commentarius que continha um estudo completo do texto analisado em todos os niacuteveis e disponiacutevel para consulta e [b] uma ars que fornecia os conceitos e os preceitos necessaacuterios agrave execuccedilatildeo daquelas atividades e que deviam ser memorizados

Nisto consiste a primeira condiccedilatildeo de existecircncia de uma ars apresentar um arcabouccedilo teoacuterico para orientar o trabalho com o texto De um lado noccedilotildees de foneacutetica meacutetrica prosoacutedia e pontuaccedilatildeo datildeo as diretrizes da leitura correta Do outro noccedilotildees de padratildeo e desvio uso e autoridade auxiliam na identificaccedilatildeo de efeitos de estilo ou erros de coacutepia nos exemplares analisados

3 Donato e sua Arte Eacutelio Donato eacute um ilustre desconhecido De sua existecircncia sabe-se apenas que

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participou da vida puacuteblica no decorrer do seacuteculo IV dC ocupando em Roma uma das cadeiras municipais de professor de gramaacutetica e que um de seus alunos mais ceacutelebres foi Jerocircnimo de Striacutedon De fato os testemunhos fornecidos pelo tradutor da Vulgata permitem estabelecer apenas duas datas com alguma seguranccedila o ano de 354 quando Donato recebe honrarias puacuteblicas em reconhecimento a seus meacuteritos profissionais e o ano de 363 quando Jerocircnimo estaacute frequentando o curso de gramaacutetica Daiacute se de-duz que Donato tenha nascido por volta de 310 embora natildeo se possa determinar por quanto tempo se manteve em atividade apoacutes a turma de Jerocircnimo (cf HOLTZ 1981 p 15ndash19) A propoacutesito eacute digno de nota que a importacircncia de Jerocircnimo para a histoacuteria da Igreja se deve em grande medida agrave sua traduccedilatildeo da Biacuteblia para o latim (a Vulgata) e a seus comentaacuterios exegeacuteticos das Escrituras produccedilotildees diretamente derivadas das praacuteticas gramaticais

Mas Donato tambeacutem eacute um dos gramaacuteticos antigos mais citados de todos os

tempos senatildeo o mais Na condiccedilatildeo de ldquogramaacutetico oficial da cidade de Romardquo (gramma-ticus urbis Romae) cargo oficial criado pela poliacutetica escolar implantada por Vespa-siano em busca de um maior controle estatal da educaccedilatildeo (cf MARROU 1966 pp 460ndash469) ele produziu uma Arte que atravessou os seacuteculos fornecendo o modelo fun-damental para a constituiccedilatildeo das gramaacuteticas vernaculares no iniacutecio do Renascimento e seu nome figura em praticamente todos os relatos sobre a histoacuteria do conhecimento linguiacutestico na Antiguidade dos mais resumidos aos mais detalhadoscxciv

De fato a recepccedilatildeo da obra gramatical donatiana eacute caracterizada pelo sucesso Uacutenico de todos os textos profanos a sobreviver sem interrupccedilatildeo da Antiguidade ao Renascimento a influecircncia da Ars Donati sobre o ensino de gramaacutetica pode ter come-ccedilado quase imediatamente apoacutes sua publicaccedilatildeo (c 350 dC) e aparece firmemente estabelecida jaacute no seacuteculo seguinte quando se torna objeto de comentaacuterios e citaccedilotildees de autoridade (por gramaacuteticos como Seacutervio Pompeio e Prisciano) antes de ser adaptada dois seacuteculos depois para o contexto cultural cristatildeo (por autores como Isidoro de Se-vilha e Juliano de Toledo)

Essa supremacia pode ser explicada em parte pelo status oficial de seu autor (HOLTZ 1981 p 95) mas principalmente pelo cuidado de adequaccedilatildeo pedagoacutegica que orienta as escolhas de composiccedilatildeo especialmente no que se refere agrave aplicaccedilatildeo rigorosa de dois esquemas de exposiccedilatildeo do conteuacutedo um meacutetodo sistemaacutetico de descriccedilatildeo e um esquema progressivo de organizaccedilatildeo

31 Meacutetodo de descriccedilatildeo sistemaacutetica

O primeiro deles se baseia numa estrutura conceitual em forma de piracircmide regida pelo princiacutepio da correlaccedilatildeo hiperoniacutemia-hiponiacutemia que pode ser representada esquematicamente como faz Holtz (1981 p 49)

ndash definiccedilatildeo geralndash enumeraccedilatildeo de categorias de anaacutelise (ldquoacidentesrdquo)ndash exposiccedilatildeo da primeira categoria contendo

ndash definiccedilatildeo da categoria (raramente)ndash enumeraccedilatildeo de subcategorias (sempre)ndash exposiccedilatildeo da primeira subcategoriandash definiccedilatildeo da subcategoria (raramente)ndash um ou mais exemplos (quase sempre)ndash exposiccedilatildeo da segunda subcategoriahellipndash exposiccedilatildeo da segunda categoriahellip

Assim prossegue ateacute o final do capiacutetulo ao qual se segue outro construiacutedo do mesmo modo Nesse sentido pode-se dizer que a abordagem canocircnica dos manuais de gramaacutetica consiste basicamente em definir (em termos semacircnticos vagamente funcionais) especificar (por uma seacuterie de caracteriacutesticas formais normalmente mor-foloacutegicas agraves vezes posicionais) e ilustrar (normalmente com exemplos igualmente ca-nocircnicos) (cf LENOBLE SWIGGERS WOUTERS 2001 p 281ndash2)

Esse meacutetodo apresenta vantagens como a de ldquopoder sempre se balisar pelo plano e controlar o saber sem perder-se na confusatildeo dos fatosrdquo e a de ldquopoder construir exposiccedilotildees bastante completas e ao mesmo tempo raacutepidas e esquemaacuteticasrdquo (HOLTZ 1981 p 51) que sem duacutevida explicam sua enorme funcionalidade didaacutetica Mesmo sua regularidade ideal natildeo eacute incompatiacutevel com certa diversidade exigida pelo objeto trata-do quanto mais proacuteximo da base da piracircmide mais se permite a adjunccedilatildeo de enuncia-dos complementares sobre as particularidades que escaparam agrave sistematizaccedilatildeo geral ainda que se oponham a esta afastam de todo modo o caos (HOLTZ 1981 p 53)

Por outro lado o meacutetodo sistemaacutetico natildeo eacute exclusivo da Antiguidade tardia nem se limita aos manuais de gramaacutetica Segundo Louis Holtz (1981 p 55ndash6) esse esquema eacute utilizado desde eacutepocas bem antigas e se impotildee para todas as disciplinas e artes liberais especialmente aquelas duas eminentemente escolares que satildeo a retoacuterica e a gramaacutetica Na verdade pode-se dizer que ldquoeacute esse quadro loacutegico que define uma ars (τέχνη) enquanto conjunto de conhecimentos logicamente ordenados acerca de um domiacutenio bem delimitadordquo

Nesse sentido o que parece distinguir Donato dos demais artiacutegrafos (isto eacute autores de artes) eacute o rigor em sua aplicaccedilatildeo materializado basicamente na busca pela brevidade e pela perfeiccedilatildeo formal condiccedilotildees primordiais para a necessaacuteria memoriza-ccedilatildeo da doutrina pelos estudantes (cf HOLTZ 1981 p 94ndash5)

De fato Donato tende a separar o essencial do acessoacuterio e procura formas de enunciar que sejam facilmente memorizaacuteveis ldquodas quatro etapas pressupostas na exposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo gramatical (termo definiccedilatildeo subdivisatildeo exemplo) ele des-preza conforme o caso aquela que poderia sobrecarregar inutilmente a memoacuteria dos alunosrdquo (HOLTZ 1981 91-92) Aleacutem disso suprime sistematicamente a indicaccedilatildeo de todas as suas fontes e em muitos casos agrupa no final de cada capiacutetulo todos os fatos anocircmalos ou teorias controversas provavelmente para que os alunos tivessem contato com as exceccedilotildees apenas depois de ter assimilado o padratildeo

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A pertinecircncia dessa estrateacutegia eacute apontada jaacute no seacuteculo V pelo gramaacutetico Pom-peio quando comenta o trecho a respeito das particularidades das letras i e u ldquorepare como [Donato] procede primeiro trata daquelas caracteriacutesticas comuns [agraves duas le-tras] e soacute depois se volta a esses casos especiaisrdquo cxcvi

32 Ordem progressiva O segundo esquema diz respeito agrave ordem de apresentaccedilatildeo os capiacutetulos que em

Donato se organizam em quatro partes

Primeiro um tratado inicial sobre as partes da oraccedilatildeo tradicionalmente co-nhecido como Arte menor que se apresenta na forma de perguntas e respostas e com-preende oito capiacutetulos que versam respectivamente sobre o nome o pronome o verbo o adveacuterbio o particiacutepio a conjunccedilatildeo a preposiccedilatildeo a interjeiccedilatildeo

Em seguida um conjunto de trecircs partes conhecido como Arte maior e compos-to por [1] um tratado elementar com seis capiacutetulos acerca da voz da letra da siacutelaba do peacute meacutetrico do acento e da pontuaccedilatildeo [2] um segundo tratado sobre as partes da oraccedilatildeo apresentando precisamente os mesmos capiacutetulos que constituiacuteam o primeiro tratado cuja mateacuteria eacute agora descrita com maior abrangecircncia de detalhes de forma expositiva [3] um tratado de seis capiacutetulos sobre os viacutecios da oraccedilatildeo (barbarismo solecismo outros) e as virtudes (metaplasmo figuras tropos) doutrina que parece de-pender amplamente do conteuacutedo dos dois tratados anteriores na medida em que tanto viacutecios quanto virtudes se dividem basicamente em alteraccedilotildees no niacutevel das letras siacutela-bas e acentos de um lado e em variaccedilotildees no emprego das partes da oraccedilatildeo de outrocxcvii

Tal divisatildeo do conteuacutedo gramatical em trecircs partes corresponde de certa ma-neira ao esquema progressivo de constituiccedilatildeo da proacutepria linguagem que serve de prin-ciacutepio e justificativa para a doutrina gramatical como mostra o testemunho do gramaacute-tico Diomedes

Os princiacutepios da gramaacutetica emergem dos elementos os elementos se configuram em letras as letras se combinam em siacutelabas pelas siacutelabas se forma a palavra (dictio) as palavras se combinam em partes da oraccedilatildeo pelas partes da oraccedilatildeo se perfaz a oraccedilatildeo (oratio) na oraccedilatildeo se distin-gue a virtude pratica-se a virtude para evitar os viacutecios (Grammatici Latini vol 1 pp 426-427)cxcviii

Por muito tempo se considerou que a organizaccedilatildeo dos tratados com base nesse esquema progressivo fosse um claro indiacutecio da influecircncia direta do estoicismo sobre a gramaacutetica romanacxcix De fato a progressatildeo parece estar impliacutecita na distinccedilatildeo estoica entre som vocal (φωνή uox) som articulado (λέξις dictio) e som significante (λόγος oratio) de maneira que o plano da Arte maior se assemelharia bastante ao plano do que se considera o ldquomais antigo arqueacutetipordquo das artes gramaticais a Teacutekhnē perigrave phōnecircs do estoico Dioacutegenes da Babilocircnia um primeiro tratado sobre os elementos constituti-vos da palavra enquanto som articulado (λέξεως στοικεία ie letras siacutelabas etc) um

segundo tratado sobre os elementos constitutivos do som significante (μέρη λόγου) e um terceiro sobre as qualidades e os defeitos a que estaacute sujeito o som significante (ἀρεταὶ λόγου [καὶ κακίαι])

Poreacutem essa visatildeo tem sido relativizada pelos estudos recentes Segundo Lou-is Holtz (1981 p 60) o esquema progressivo jaacute era tradicional quando os estoicos o adotaram sendo usado por Platatildeo ao supor o meacutetodo que o demiurgo teria seguido para criar a linguagem (eg Craacutetilo 424endash425a) e por Aristoacuteteles no estudo da elocuccedilatildeo poeacutetica (eg Poeacutetica capiacutetulos 20ndash22) Na verdade eacute possiacutevel que esse esquema fosse ldquoum tipo de apresentaccedilatildeo corrente e banal proacuteprio da pedagogia dos gramatisteacutesrdquo isto eacute dos alfabetizadores que para descrever o sistema de escrita grego baseado em um signo para cada fonema concebiam a anaacutelise e a siacutentese como teacutecnicas complementa-res relacionadas com os movimentos naturais de leitura e escrita

Essa perspectiva essencialmente pedagoacutegica se evidencia pela observaccedilatildeo dos capiacutetulos que compotildeem a primeira parte da Arte maior A progressatildeo gramatical em princiacutepio simples e estaacutevel ndash a voz quando eacute articulada eacute representada por letras que se combinam em siacutelabas ndash sofre uma espeacutecie de ldquobifurcaccedilatildeordquo a siacutelaba pode-se combi-nar em palavra mas tambeacutem em peacute meacutetrico Essa inserccedilatildeo pode estar relacionada com a utilidade dos esquemas quantitativos para a anaacutelise dos poemas bem como para a teoria das claacuteusulas a ser estudada futuramente pelo estudante no curso de retoacuterica Em outras palavras sua presenccedila se explica natildeo por sua origem na filosofia mas por seu papel na praacutetica escolar o mesmo podendo ser aformado dos capiacutetulos seguintes que trazem natildeo soacute as regras da acentuaccedilatildeo e da pontuaccedilatildeo mas tambeacutem os respectivos sinais graacuteficos usados para marcar os manuscritos que eram parte das habilidades aprendidas com o gramaacutetico (cf HOLTZ 1981 62-63)

Essa dificuldade de estabelecer um paralelismo rigoroso entre o plano progres-sivo da dialeacutetica estoica e a descriccedilatildeo gramatical tambeacutem eacute abordada por Marc Baratin (1989a p 200-201) Segundo esse pesquisador a progressatildeo gramatical eacute totalmente dependente de uma praacutetica de leitura e escrita e de seu ensino elementar (juntar letras em siacutelabas siacutelabas em palavras palavras em oraccedilotildees) ao passo que o esquema estoico consiste em ldquodistinguir em uma sequecircncia focircnica os aspectos coexistentes em toda sua extensatildeordquo nesse sentido pode-se considerar uma sequecircncia como vocal (φωνή) como articulada (λέξις) e como significante (λόγος) ldquomas eacute sempre a mesma realidade que eacute tomada em consideraccedilatildeordquo Portanto o esquema estoico natildeo corresponde a uma perspectiva ascendente (natildeo haacute a unidade ldquosiacutelabardquo por exemplo) e sim a uma anaacutelise da relaccedilatildeo entre som e sentido (BARATIN 1994 p 152)

Aleacutem disso o tratamento gramatical dos viacutecios e virtudes natildeo segue o esquema apresentado pelos estoicos Conforme testemunha Dioacutegenes Laeacutercio (759) os estoicos distinguiam cinco virtudes (helenismo clareza concisatildeo precisatildeo elegacircncia) e dois viacutecios (barbarismo e solecismo) ao passo que a terceira parte da Arte maior apresenta trecircs conjuntos de viacutecios (barbarismo solecismo outros) e trecircs de virtudes (metaplas-mo figuras e tropos) constituindo ldquoum verdadeiro desafio colocar os esquemas em paralelordquo (BARATIN 1989a p 201)

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Em suma a organizaccedilatildeo da Arte maior em trecircs partes que aparentemente motivara Barwick a pesquisar suas fontes estoicas por consideraacute-la representante exemplar da gramaacutetica latina natildeo passa de uma variante entre outras Ao contraacuterio as diferentes (e por vezes confusas) progressotildees adotadas por outros artiacutegrafos contem-poracircneos como Cariacutesio Diomedes Sacerdote leva a crer que a ars grammatica tardia natildeo tem uma estrutura preacute-definida (BARATIN 1989b p 211-212) Desse modo o es-quema de organizaccedilatildeo da Arte maior parece representar o mesmo esforccedilo de codifica-ccedilatildeo que observamos a respeito do meacutetodo sistemaacutetico sempre orientado por escolhas pedagoacutegicas (HOLTZ 1981 91)

Por outro lado eacute notaacutevel que o grande diferencial de Donato quanto agrave organi-zaccedilatildeo do conteuacutedo seja precisamente uma transgressatildeo do esquema tripartite iniciar a obra pelo tratado sobre as partes da oraccedilatildeo Essa intervenccedilatildeo teve recepccedilatildeo imediata e positiva como mostra um seacuteculo depois o testemunho de Seacutervio

Muitos comeccedilaram a escrever suas artes pelo tratado das letras muitos pela voz muitos pela definiccedilatildeo de gramaacuteti-ca Mas parece que todos erraram porque natildeo trataram de uma mateacuteria exclusiva de seu ofiacutecio mas comum tanto aos oradores quanto aos filoacutesofos Pois tambeacutem o orador pode tratar das letras e ningueacutem trata da voz mais que os filoacutesofos a definiccedilatildeo por sua vez eacute cara aos aristoteacuteli-cos Daiacute Donato ter procedido de modo mais inteligente e apropriado pois comeccedilou pelas oito partes da oraccedilatildeo que pertence especificamente ao gramaacutetico (Grammatici Lati-ni vol IV p 405 linhas 4-11 traduccedilatildeo nossa)cc

O texto sugere que o cerne do ensino gramatical eacute a doutrina das partes da oraccedilatildeo no que se distingue das outras disciplinas ainda que o proacuteprio desenvolvimen-to dessa doutrina tenha se dado a partir dos estudos filosoacuteficoscci como reconhece o mesmo comentador

Os aristoteacutelicos dizem que as partes da oraccedilatildeo satildeo duas o nome e o verbo os estoicos dizem que satildeo cinco os gramaacuteticos que satildeo oito muitos nove muitos dez mui-tos onze (Grammatici Latini vol IV p 428 linhas 12-13 traduccedilatildeo nossa)ccii

Em todo caso a inovaccedilatildeo de Donato ndash repita-se iniciar o tratado pelo estudo das partes da oraccedilatildeo ndash parece contemplar uma praacutetica corrente na educaccedilatildeo gramati-cal a julgar pelo testemunho de Quintiliano dois seacuteculos antes

Antes de mais nada que as crianccedilas saibam flexionar os nomes e os verbos pois natildeo podem de outro modo com-preender o que vem depois (QUINTILIANO Institutio oratoria I 4 22 traduccedilatildeo nossa)cciii

Outros comentadores de Donato fazem eco a essa afirmaccedilatildeo atestando sua pertinecircncia didaacutetica como eacute o caso de Pompeio (ldquofez bem Donato em escrever a pri-meira parte agraves crianccedilas e a segunda a todosrdquo)cciv de Juliano de Toledo (ldquoPor que Dona-to comeccedilou pelo nome e natildeo pela letra como fizeram outros Por saber que a proacutepria letra tambeacutem era um nomerdquo) ccv e tambeacutem de um gramaacutetico anocircnimo que escreve acerca do barbarismo (Fragmentum Monacense de barbarismo) referindo-se natildeo ape-nas agrave anteposiccedilatildeo do estudo das partes da oraccedilatildeo mas tambeacutem agrave simetria de ordena-ccedilatildeo das partes da Ars

Repare-se que Donato editou sua arte com extrema dili-gecircncia e habilidade compocircs primeiro a menor para ins-truir os meninos colocando-a no comeccedilo de seu volume jaacute a segunda ediccedilatildeo iniciou pela letra e as demais partiacutecu-las pertinentes agrave superfiacutecie e depois as oito partes Feito isso para completar a segunda ediccedilatildeo colocou o barba-rismo e os demais viacutecios ndash e assim como havia colocado as partes que pertencem agrave superfiacutecie (ie voz letra siacutelaba etc) da primeira vez tambeacutem ao discorrer a respeito dos viacutecios teve o cuidado de colocar no iniacutecio o barbarismo que corrompe a superfiacutecie e em segundo lugar o solecis-mo viacutecio que corrompe o sentido e a coesatildeo das partes (Grammatici Latini vol 5 p 327 linhas 3-12 traduccedilatildeo nossa)ccviv

Outro fragmento anocircnimo (Fragmentum Lauantinum in artes Donati) dis-correndo igualmente sobre a inteligecircncia da dispositio donatiana chama atenccedilatildeo para mais uma caracteriacutestica marcante desse tratado qual seja a forma de apresentaccedilatildeo em perguntas e respostas

[Donato] escreveu uma arte duplicada isto eacute as oito par-tes que se chamam artes menores das quais esta eacute a se-gunda ediccedilatildeo Mas eacute de se observar para quais pessoas es-creveu a primeira quais a segunda e indagar por quantas e quais causas escreveu as artes menores Eacute o seguinte para as pessoas dos meninos e por trecircs causas Primeira para que conhecessem de que modos se dava a arte se-gunda para que aprendessem a perguntar (eg ldquoquantas satildeo as partes da oraccedilatildeordquo) e a terceira causa para que soubessem resolver o que foi perguntado (eg ldquooitordquo etc) Assim na primeira ediccedilatildeo contempla o questionaacuterio e a resoluccedilatildeo para ensinar os meninos jaacute na segunda ediccedilatildeo ensina a ciecircncia da latinidade para pessoas adultas Mas conveacutem agora dizer de que modos se daacute o perguntar isto eacute de trecircs como que querendo aprender ou ensinar ou para produzir uma investigaccedilatildeo E nas artes menores Do-nato pergunta como que querendo ensinar (Grammatici

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Latini vol 5 p 326 linhas 8-19 traduccedilatildeo nossa)ccvii

Esse comentaacuterio enseja algumas consideraccedilotildees Primeiro a indicaccedilatildeo expliacutecita dos diferentes destinataacuterios de uma e outra arte (ldquomeninosrdquo vs ldquoadultosrdquo) sugere inda-gaccedilotildees sobre o efetivo uso de uma ou outra arte na praacutetica escolar do periacuteodo Segundo os diferentes ldquomodosrdquo (ou usos) do questionamento remontam a uma tradiccedilatildeo muito antiga de textos filosoacutefico-cientiacuteficos em relaccedilatildeo agrave qual eacute preciso situar a Arte menor

4 Perguntas e respostas como forma literaacuteria A forma literaacuteria que simula uma interaccedilatildeo verbal entre mestre e disciacutepulo

foi amplamente utilizada durante toda a Antiguidade Os diaacutelogos de Platatildeo parecem inaugurar esse processo de instruccedilatildeo e organizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico em perguntas e respostas simulando um meacutetodo de reflexatildeo mas fazendo acompanhar de um contexto conversacional (eg um banquete) e de personagens conhecidos ou ve-rossiacutemeis (Soacutecrates Aristodemos Agatatildeo Fedro Pausacircnias Aristoacutefanes) Em ambien-te latino o mesmo expediente eacute usado por Ciacutecero ndash um acadecircmico assumido ndash em qua-se todas as suas grandes obras filosoacuteficas (cf MARTIN amp GALLIARD 1990 224ndash34)

Por outro lado o mesmo Ciacutecero emprega essa forma supostamente para en-sinar retoacuterica a seu filho Aqui se coloca uma diferenccedila Enquanto muitos diaacutelogos filosoacuteficos tecircm uma ldquodata cecircnicardquo (em geral afastada no tempo) e personagens ilustres da repuacuteblica romana na obra Particcedilotildees oratoacuterias (De partitione oratoriae) vemos uma espeacutecie de exerciacutecio escolar entre Ciacutecero e seu filho acerca das ldquopartesrdquo que compotildeem a instruccedilatildeo oratoacuteria O iniacutecio do texto eacute bastante elucidativo

CIacuteCERO FILHO Tenho vontade de ouvir de vocecirc meu pai em Latim as instruccedilotildees acerca do meacutetodo de discursar que vocecirc me transmitiu em Grego ndash mas soacute se vocecirc estiver desocupado e quiser agoraCIacuteCERO PAI Ora meu querido Ciacutecero existe algo que eu queira mais do que vocecirc ser o mais instruiacutedo possiacutevel Em primeiro lugar meu oacutecio eacute total jaacute que me foi dado o direito de sair de Roma aleacutem disso eu colocaria esses teus estudos agrave frente das minhas maiores ocupaccedilotildees com o maior prazerCF Vocecirc quer entatildeo que assim como vocecirc costuma me perguntar em Grego segundo a ordem agora eu te per-gunte a respeito dos mesmos assuntos em LatimCP Pode ser se te agrada Assim eu poderei observar que vocecirc se lembra das instruccedilotildees que recebeu e vocecirc po-deraacute ouvir em ordem as coisas que quiser saberCF Em quantas partes deve ser dividida toda a doutrina do discursarCP Em trecircsCF Diga quaisCP Primeiro na proacutepria forccedila do orador segundo no

discurso terceiro na questatildeoCF Em que consiste essa forccedilaCP Nas ideias e nas palavrashellip ccviii

De fato esse texto eacute bem mais simples tanto pela cena quanto pelos persona-gens (pai e filho provavelmente em casa repassando instruccedilotildees teacutecnicas sobre a arte oratoacuteria) Eacute de se notar que os papeacuteis desempenhados satildeo invertidos (uicissim) quem costumava perguntar (Ciacutecero pai) agora passaraacute a responder em todo caso a sequecircn-cia metoacutedica (ordine) deveraacute ser respeitada A semelhanccedila com o meacutetodo utilizado na Arte menor eacute evidente

As partes da oraccedilatildeo satildeo quantas Oito Quais Nome pro-nome verbo adveacuterbio particiacutepio conjunccedilatildeo preposiccedilatildeo e interjeiccedilatildeo Nome eacute o quecirc Eacute a parte da oraccedilatildeo com caso que significa um corpo ou uma ideia de modo proacuteprio ou comum O nome tem quantos acidentes Seis Quais Qualidade comparaccedilatildeo gecircnero nuacutemero figura e caso A qualidade dos nomes em que consiste Em dois tipos pois ou eacute nome de um soacute e se chama proacuteprio ou eacute de muitos e se chama apelativo (DONATO 1981 p 585)ccix

Todavia falta-lhe a contextualizaccedilatildeo cecircnica que ainda que simples determina os papeacuteis quem pergunta quem responde na Ars minor Mais que isso que niacutevel de verossimilhanccedila com praacutetica escolar o texto donatiano poderia representar

Um testemunho de Pompeio traz alguma luz a essas questotildees Ao tratar dos

nomes proacuteprios em especial daqueles que proveacutem de um nome comum (os agnomi-na) este gramaacutetico afirma

hellipnas respostas devemos ser espertos Frequentemen-te nos fazem cometer solecismo tanto os que pergun-tam mal quanto os que respondem mal Pensa por exemplo se algueacutem diz ldquoAfricanordquo devo perguntar assim e assim responder ldquolsquoAfricanorsquo eacute que parte da oraccedilatildeordquo E o menino diz ldquoNomerdquo Eu pergunto ldquoQue tipo de nomerdquo Ele deve responder ldquoProacutepriordquo Devo perguntar ldquoQue parte do nome proacutepriordquo E ele deve dizer ldquoAgnomerdquo Essa eacute a ordem verdadeira segundo o questionaacuterio pois eacute primordial que vocecirc diga primeiro o que eacute geneacuterico e depois diga o que eacute especiacutefico Ora se ele te pergunta ldquolsquoAfricanorsquo eacute que parte da oraccedilatildeordquo e vocecirc diz ldquoagnomerdquo vocecirc comeccedilou pelo uacuteltimo vocecirc natildeo me disse que eacute um nome depois natildeo me disse se eacute proacuteprio ou apelativo mas soacute disse o que viria por uacuteltimo Por isso vocecirc deve dizer assim ldquoeacute um nome eacute proacuteprio essa parte do nome proacuteprio eacute agnomerdquo O mesmo vale para o restante (Grammatici Latini vol

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5 p 142-143 traduccedilatildeo nossa)

Vemos o interlocutor de Pompeio sendo convidado a se imaginar em duas posiccedilotildees tanto a de perguntar ao menino quanto a de ser questionado por ele Inde-pendente de quem assume qual posiccedilatildeo parece que o mais importante eacute respeitar a ordem isto eacute o meacutetodo do questionaacuterio (interrogatio) progredindo sempre do geneacute-rico para o especiacutefico demonstrando que o objeto do aprendizado natildeo tanto as formas linguiacutesticas mas o modo correto de classificaacute-las bem como o de apresentar essas classificaccedilotildees

Por fim um uacuteltimo testemunho parece sugerir uma certa relevacircncia social para o treinamento no meacutetodo de perguntas e respostas no mundo romano O trecho eacute do mesmo Pompeio ainda sobre a ambiguidade dos nomes proacuteprios e traz um convite agrave precauccedilatildeo para o interlocutor

Alguns homens costumam ser espertos com frequecircncia entatildeo algueacutem te pergunta dizendo ldquoLuacutecio eacute que tipo de nomerdquo ldquoProacutepriordquo ldquoQue parte do nome proacutepriordquo E vocecirc diz a ele ldquoPrenomerdquo E ele te diz ldquoErrado Pois um escravo meu se chama assim e natildeo tem prenomerdquo (Grammatici Latini vol 5 p 142 linhas 8-11 traduccedilatildeo nossa)

Agrave parte a ambiguidade do nome Luacutecio ndash usado ora como prenome ora como nome uacutenico no caso de escravizados ndash o cuidado proposto por Pompeio eacute em relaccedilatildeo a ldquoalguns homensrdquo possivelmente uma referecircncia ao tradicional ambiente extra-escolar de provaccedilotildees para os letrados como se observa nas Noites Aacuteticas de Aulo Geacutelio que traz relatos de interaccedilatildeo provocativa entre uma pessoa culta (em geral o proacuteprio autor) e um gramaacutetico pedante (e geralmente inepto) Em um desses relatos (livro 16 cap 6) um ldquoalfabetizador da liacutengua latina se oferecia ao povo para ser testadordquo Geacutelio conta que o homem estava lendo ldquode modo baacuterbaro e ineptordquo (barbare insciteque) o livro 7 da Eneida e dizia que ldquose algueacutem quisesse aprender alguma coisa que perguntasse a elerdquo Surpreso com a ldquoconfianccedila do indoutordquo (indocti hominis confidentiam) Geacutelio resolve ir ateacute ele ldquopor divertimentordquo (oblectamenti gratia) Ao final apoacutes revelar a ignoracircncia do sujeito com perguntas capciosas Geacutelio vai embora rindo das proezas do impostor (facetias nebulonis hominis)

5 Consideraccedilotildees finais Diante do que foi apresentado sobre as inovaccedilotildees metodoloacutegicas de Donato

particularmente pertinentes como vimos agrave organizaccedilatildeo e forma de apresentaccedilatildeo do conteuacutedo eacute possiacutevel perceber que o que se aprendia na aula de gramaacutetica natildeo era uma nova liacutengua mas um conjunto sistematizado de conceitos e formas (fornecido pela ars) e um meacutetodo de anaacutelise (as partitiones isto eacute a identificaccedilatildeo das lsquopartesrsquo) que permitia racionalizar o uso da liacutengua pelo falante e compreender as composiccedilotildees literaacuterias

Exemplo desse processo satildeo as Partitiones duodecim uersuum Aeneidos prin-

cipalium obra do gramaacutetico Prisciano cujo tiacutetulo bem poderia ser traduzido por Anaacute-lise dos doze versos principais da Eneida (quais sejam o primeiro verso de cada livro) em forma de questionaacuterio ordenado como vemos no excerto abaixo

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris [hellip] Quantas partes da oraccedilatildeo tem esse verso Nove Quan-tos nomes Seis arma uirum Troiae qui primus oris Quantos verbos Um cano Quantas preposiccedilotildees Uma ab Quantas conjunccedilotildees Uma que Arma eacute que parte da oraccedilatildeo Nome Qual Apelativo De que espeacutecie Geneacuterico De que gecircnero Neutro Por quecirc Porque todos os que no plural terminam em -a sem duacutevida satildeo do gecircnero neutro [hellip] De que figura Simples Faccedila dele alguns compostos armiger armipotens inermishellip De que caso eacute nessa passa-gem Acusativo Como ter certeza Pela estrutura isto eacute pela organizaccedilatildeo e conexatildeo com o que vem depois o ver-bo cano se constroacutei com acusativo (PASSALACQUA ed 1999 p 48-50)c

A intenccedilatildeo deste capiacutetulo foi apresentar alguns testemunhos da reflexatildeo sobre meacutetodo de ensino na Antiguidade A julgar pela produccedilatildeo bibliograacutefica parece que o foco de atenccedilatildeo dos estudos de textos gramaticais antigos satildeo os aspectos linguiacutesticos e filoloacutegicos desses textos de modo que a bibliografia disponiacutevel sobre os aspectos di-daacuteticos natildeo eacute farta Em todo caso se o exame da estrutura dos manuais de gramaacutetica ldquonatildeo pode se limitar a uma simples anaacutelise de sua organizaccedilatildeo [hellip] devendo levar em conta todas as dimensotildees desses textos na qualidade de documentos cientiacuteficos e pe-dagoacutegicos bem como de enunciados linguiacutesticosrdquo (LENOBLE SWIGGERS WOUTERS 2001 p 277) sem duvida os tratados e comentaacuterios gramaticais satildeo uma rica fonte de informaccedilotildees para explicar muitos aspectos relevantes sobre a escola antiga

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Exagerando a verdadea hipeacuterbole em

Quintiliano

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Pedro Schmidt

O estudo da hipeacuterbole sua histoacuteria suas definiccedilotildees seus empregos e suas interpretaccedilotildees eacute ainda um campo praticamente inexplorado junto aos estudos literaacute-rios Nisso acompanha a tendecircncia das figuras como um todo que agrave exceccedilatildeo talvez da metaacutefora tecircm recebido pouco ou quase nenhum tratamento seja de historiadores da literatura ou de teoacutericos da literatura desproporcional ao menos agrave importacircncia que se assume em geral em propostas metodoloacutegicas de anaacutelise literaacuteria No caso especiacutefico da hipeacuterbole para aleacutem das definiccedilotildees de dicionaacuterios e manuais pode-se encontrar algumas poucas monografiasccxv nos uacuteltimos anos houve um relativo aumento de produccedilotildees acadecircmicas sobre o tema muito embora oriundas das aacutereas da pragmaacutetica da filosofia da linguagem e da comunicaccedilatildeo apresentando escassa relaccedilatildeo com a apli-caccedilatildeo da figura ccxvi a textos literaacuterios ccxvii

Uma possiacutevel aproximaccedilatildeo ao estudo da hipeacuterbole e de sua histoacuteria eacute o enten-dimento de como essa figura foi tratada pelos teoacutericos de poeacutetica e retoacuterica da Antigui-dade greco-latina Pois esses tratamentos podem oferecer por um lado a descriccedilatildeo de como os autores literaacuterios entendiam e utilizavam a figura e por outro uma espeacutecie de prescriccedilatildeo sob a qual os autores viriam a modelar-se Aleacutem disso queda evidente que os tratamentos dados agraves figuras pelos teoacutericos antigos satildeo ainda a base na qual se fundamentam as definiccedilotildees modernas dos dicionaacuterios e manuais e da qual partem os estudos criacuteticos

Nesse sentido pode-se observar a histoacuteria da definiccedilatildeo da hipeacuterbole desde Aristoacuteteles de quem recebe uma breve menccedilatildeo perpassando ainda em condiccedilotildees bre-ves ou embrionaacuterias outro autores ccxviii ateacute chegar a uma exposiccedilatildeo relativamente elaborada e desenvolvida em Quintiliano que funciona como pedra fundamental para todos os tratamentos subsequentes desde a Antiguidade tardia ateacute nossos dias Nesse sentido faz-se crucial para todo estudo historicamente orientado da hipeacuterbole conhe-cer o tratamento dado agrave figura por Quintiliano Para tanto seraacute apresentada aqui apoacutes breve contextualizaccedilatildeo a traduccedilatildeo para liacutengua portuguesa da passagem para entatildeo se proceder agrave anaacutelise da mesma e para ao final propor uma definiccedilatildeo e tipologia da hipeacuterbole de acordo com os termos de Quintiliano

Marco Faacutebio Quintiliano nasceu por volta do ano 35 da era cristatilde na proviacutencia

romana da Hispacircnia em Calaguacuterris (hoje Calahorra) Ainda jovem mudou-se para Roma onde estudou gramaacutetica e oratoacuteria com professores renomados como Recircmio Palecircmon e Domiacutecio Afer Apoacutes seus estudos regressou agrave Hispacircnia mas logo voltaria a Roma na companhia de Galba em 68 Na capital tornou-se o primeiro professor de retoacuterica contratado oficialmente pelo governo imperial sob a dinastia flaviana cargo que ocuparia nos proacuteximos vinte anos tendo entre seus alunos personalidades ilustres da poliacutetica e da literatura Ao se aposentar recebeu a incumbecircncia de educar os sobri-nhos-netos do imperador Domiciano Faleceu em Roma por volta do ano de 96 ccxix

Embora se atribua a ele uma coleccedilatildeo de declamaccedilotildees sua uacutenica obra de autoria indisputada eacute a Institutio Oratoria um tratado sobre retoacuterica e sobre a instruccedilatildeo ora-

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toacuteria composto em doze livros A Institutio tornou-se desde logo uma referecircncia natildeo apenas de retoacuterica mas tambeacutem de ensino de retoacuterica e do processo educacional do jovem orador Seu impacto na Idade Meacutedia foi a julgar pela presenccedila de manuscritos apenas razoaacutevel mas sua influecircncia aumenta exponencialmente a partir do Renas-cimento Com o decliacutenio do estudo da retoacuterica nos ambientes escolares a Institutio passou a ser conhecida somente nos meios especializados sendo a base fundamental dos manuais e dicionaacuterios teacutecnicos e uma das principais fontes sobre a arte retoacuterica do mundo greco-romano

A Institutio tem uma estrutura bem delineada e objetiva O livro 1 trata dos

processos iniciais da educaccedilatildeo e da importacircncia da gramaacutetica da muacutesica e das artes li-berais na formaccedilatildeo do orador o livro 2 funciona como uma espeacutecie de introduccedilatildeo geral agrave arte retoacuterica os livros 3 a 6 compotildeem um bloco sobre a invenccedilatildeo em que o 3 explora as origens da retoacuterica os tipos de causa e os trecircs gecircneros de discurso (demonstrativo deliberativo e judiciaacuterio) o 4 as partes do discurso o 5 os tipos de prova e o 6 os apelos retoacutericos (ethos pathos logos) e o riso o livro 7 trata da disposiccedilatildeo os livros 8 a 11 completam os elementos canocircnicos da retoacuterica com a elocuccedilatildeo memoacuteria e accedilatildeo com destaque para o livro 10 onde haacute uma histoacuteria criacutetica da literatura e o livro 12 discorre sobre a carreira e a vida do orador formado e a relaccedilatildeo destas com a praacutetica oratoacuteria

Eacute no oitavo livro da Institutio que Quintiliano aborda dentro da discussatildeo

sobre o estilo as figuras de linguagem os ornamentos e os tropos No prefaacutecio ele adverte que o estilo ou a elocuccedilatildeo eacute a mais difiacutecil entre as cinco partes canocircnicas da retoacuterica (Inst 8Praef13) e eacute justamente essa parte que diferencia os oradores verda-deiramente excelentes em relaccedilatildeo aos oradores comuns (Inst 8Praef14-17) O livro divide-se em seis capiacutetulos No primeiro Quintiliano define e desenvolve o conceito de elocuccedilatildeo No segundo trata da propriedade das palavras No terceiro introduz o con-ceito do ornamento sua importacircncia e eficaacutecia em seguida lista os efeitos que devem ser evitados como cacofonia tautologia pleonasmo por fim discorre sobre o siacutemile e a ecircnfase No quarto ele passa a explorar ainda sob a definiccedilatildeo de ornamento a ampli-ficaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo No quinto trata daquele que considera o melhor dos ornamentos a sententia Por fim no sexto e uacuteltimo capiacutetulo adentra-se agrave exposiccedilatildeo dos tropos metaacutefora sineacutedoque metoniacutemia antonomaacutesia onomatopeia catacrese metalepse epiacuteteto alegoria periacutefrase hipeacuterbato e hipeacuterbole Satildeo estes na visatildeo de Quintiliano os tropos mais usuais e importantes

Eacute portanto o trecho final do sexto capiacutetulo do livro 8 que nos interessa aqui

Antes de passarmos a ele contudo faz-se necessaacuterio procurar entender a distinccedilatildeo que Quintiliano esboccedila entre tropo e ornamento e porque ele classifica a hipeacuterbole dentro da categoria dos tropos

Dentro do tratamento da elocuccedilatildeo Quintiliano apresenta dois tipos de recur-

sos estiliacutesticos que se pode fazer com as palavras tanto na poesia como nos discur-sos de oratoacuteria os ornamentos (ornati) e os tropos (tropi) Os ornamentos satildeo os tipos de figuraccedilatildeo em que natildeo haacute mudanccedila no sentido proacuteprio (literal ou denotativo) da palavra enquanto os tropos satildeo aquela em que necessariamente haacute mudanccedila no

sentido proacuteprio Essa divisatildeo de certa forma equivale agrave corrente discriminaccedilatildeo entre figura de linguagem e tropo no entanto o termo ldquofigurardquo (figura) em Quintiliano natildeo corresponde exatamente ao ornamento sendo antes um termo mais amplo Como veremos adiante a hipeacuterbole transita entre esses dois polos pois ela pode funcionar tanto com palavras denotativas como com palavras conotativas ou metaforizadas Ao longo do texto o tratadista iraacute se referir agrave hipeacuterbole como tropo como ornamento e como figura sendo que este uacuteltimo termo sugere um escopo que abarca as duas outras definiccedilotildees Antes mesmo da passagem em que discute a hipeacuterbole haacute no quarto capiacute-tulo uma breve discussatildeo sobre o lugar da mesma se deve ser estudada junto com os ornamentos ou com os tropos

Sei que a hipeacuterbole tambeacutem pode ser considerada por al-guns como uma espeacutecie de amplificaccedilatildeo jaacute que a hipeacuter-bole pode criar esse efeito de aumentar ou diminuir mas como esse termo se enquadra na categoria dos tropos vou adiar essa discussatildeo Eu ateacute trataria dos tropos agora mas essa parte da teoria [acerca das palavras metaforizadas e natildeo das palavras em sentido proacuteprio] costuma ser separa-da pelos demais autores113

Nessa passagem temos natildeo apenas uma clara distinccedilatildeo entre ornamento e tropo como tambeacutem a alocaccedilatildeo da hipeacuterbole como tropo No entanto essa aparente classificaccedilatildeo diz mais sobre a ordenaccedilatildeo do estudo de cada assunto do que da tipologia da hipeacuterbole Pois como se vecirc no capiacutetulo 6 a hipeacuterbole seraacute nomeada e explicada como ornamento e como tropo a depender da espeacutecie ou subtipo que se emprega Aqui Quintiliano retira a hipeacuterbole do escopo dos ornamentos ao qual pertence o efeito da amplificaccedilatildeo pois de acordo com a tradiccedilatildeo retoacuterica a figura se enquadra no grupo dos tropos

A exposiccedilatildeo sobre a hipeacuterbole ocorre de fato na lista dos tropos que preenche

todo capiacutetulo 6 do livro 8 contendo doze tropos os considerados mais importantes e usuais nos discursos Os uacuteltimos dez paraacutegrafos do capiacutetulo satildeo reservados agrave hipeacuterbole relegada ao final da lista por ser uma figura de difiacutecil trato como se fosse um assunto mais ldquoavanccediladordquo no curso de retoacuterica Citamos aqui o trecho completo para que pos-samos em seguida discuti-lo

Deixei a hipeacuterbole para o final por seu aspecto mais ou-sado Eacute um exagero decoroso da verdade pode ser usada para aumentar ou para diminuir de diversas maneiras Podemos dizer mais do que o fato como quando Ciacutecero diz ldquovomitando emporcalhou seu colo e todo o tribunal com restos de comidardquo ou ldquoe os dois rochedos que ameaccedilam o ceacuteurdquo Tambeacutem podemos usar a figura por semelhanccedila

113 Inst 8429 ldquoScio posse videri quibusdam speciem amplificationis hyperbolen quoque nam et haec in utramque partem valet sed quia excedit hoc nomen in tropos differenda est Quos continuo subiungerem nisi esset a ceteris separata ratio dicendi [quae constat non propriis sed translatis]rdquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de BUTLER (1922) Todas as traduccedilotildees aqui apresentadas satildeo de minha autoria

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como em ldquoacreditarias que as Ciacuteclades nadam soltas no marrdquo Tambeacutem por comparaccedilatildeo como em ldquomais raacutepido que as asas do relacircmpagordquo Tambeacutem por insinuaccedilatildeo como em ldquomesmo que ela voasse sobre os cimos dos campos de espigas maduras ela natildeo esbarraria nas tenras espigasrdquo Tambeacutem por metaacutefora como em ldquovoasserdquo no exemplo acima A hipeacuterbole pode tambeacutem ser aumentada dentro de outra hipeacuterbole como quando Ciacutecero profere contra Antocircnio ldquoQual Cariacutebde foi tatildeo voraz Digo Cariacutebde Ca-riacutebde se existiu foi apenas uma fera marinha O Oceano me parece dificilmente poderia abocanhar tantas coisas tatildeo longiacutenquas tatildeo distantes tatildeo rapidamenterdquo Penso ter encontrado um admiraacutevel exemplo desta figura no livro de Hinos de Piacutendaro o maior entre os poetas liacutericos Pois quando ele discorre sobre o ataque de Heacutercules contra os meacuteropes os lendaacuterios habitantes da ilha de Coacutes diz que foi natildeo como o fogo o vento ou o mar e sim como o re-lacircmpago sendo aqueles insuficientes e este decoroso Isso Ciacutecero imitou nas Verrinas ldquoDepois de um longo interva-lo aparecia na Siciacutelia natildeo outro Dioniacutesio ou outro Faacutelaris ndash pois essa ilha jaacute teve outrora muitos crueacuteis tiranos ndash mas um novo monstro oriundo daquela antiga barbaacuterie que se diz ser usual naquela regiatildeo Pois penso que nem Cariacuteb-de nem Cila foram tatildeo nefastas aos navios quanto Verres nesse mesmo estreito mariacutetimordquo Tambeacutem natildeo poucos satildeo os tipos de hipeacuterbole com efeito de diminuiccedilatildeo ldquomal se sustinham nos ossosrdquo e em Ciacutecero naquele livro engraccedila-do ldquoVetatildeo chama de latifuacutendio o terreno que se mede com uma funda se bem que o terreno caberia ateacute na baladeira da fundardquo Mas desse tipo tambeacutem deve ser mantida certa medida Pois embora toda hipeacuterbole vaacute aleacutem do criacutevel natildeo se deve ir aleacutem do uso e nem por outra via que caia na ca-cozelia Desnecessaacuterio enumerar os vaacuterios viacutecios que nas-cem disso principalmente porque natildeo satildeo desconhecidos ou raros Basta advertir que a hipeacuterbole mente mas sem querer enganar Por isso deve-se considerar ainda mais ateacute onde eacute possiacutevel exagerar naquilo que natildeo seraacute acredi-tado Muito frequentemente essa figura conduz ao riso se esse efeito foi intencional considera-se urbanidade mas se natildeo considera-se estultiacutecia Mas tambeacutem estaacute presen-te no uso comum tanto pelos natildeo estudados como pelos ruacutesticos visto que eacute da natureza de todos o desejo de au-mentar ou diminuir as coisas e ningueacutem se contenta com a simples verdade mas como dissemos isso eacute perdoaacutevel A hipeacuterbole eacute uma virtude quando o assunto de que se fala extrapola o que eacute natural pois eacute permitido dizer de manei-ra exagerada aquilo que natildeo pode ser dito e eacute melhor que

o discurso diga mais do que diga menos

O tratamento da hipeacuterbole fica para o final na lista dos tropos justamente por-que pertence ao rol das figuras ldquomais ousadasrdquo (audacior ornatus) ao longo da exposi-ccedilatildeo fica patente que essa ldquoousadiardquo estaacute relacionada ao fato de a hipeacuterbole ser de difiacutecil uso sendo mais comum emprega-la do modo errado do que do modo certo (piget referre plurima hinc orta vitia cum praesertim minime sint ignota et obscura)

Haacute no entanto um problema conceitual logo na primeira frase da exposiccedilatildeo

Pois Quintiliano descreve aqui a hipeacuterbole como um ornamento (ornatus) e nisso de certa forma contradiz a passagem em 8429 em que afirma preferir tratar a hipeacuterbole como tropo Contudo ao longo do desenvolvimento da exposiccedilatildeo nota-se que a hipeacuter-bole pode tanto funcionar como ornamento no sentido de uma construccedilatildeo em que a palavra ou grupo de palavras natildeo perde seu sentido denotativo como tambeacutem como tropo que ocorre quando a palavra sofre mudanccedila em seu significado

Em seguida podemos encontrar uma definiccedilatildeo sinteacutetica a hipeacuterbole ldquoeacute um

exagero decoroso da verdaderdquo (decens veri superiectio) Esse exagero pode ser usado para criar o efeito de aumentar ou diminuir e nisso se coaduna com os ornamentos de amplificaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo tratados no quarto capiacutetulo Natildeo deixa de ser interessante o fato de que essa propriedade da hipeacuterbole eacute igualmente mencionada por outros trata-distas como o autor anocircnimo da Retoacuterica a Herecircnio e Ciacutecero em Toacutepicos Na Retoacuterica a Herecircnio 444 haacute menccedilatildeo da figura de elocuccedilatildeo superlatio definida como ldquoum dis-curso que vai aleacutem da verdade para aumentar ou diminuir alguma coisardquo115 Jaacute Ciacutecero em Toacutepicos 1045 diz que

Eacute tambeacutem permitido aos oradores e filoacutesofos que deem voz agraves coisas mudas que faccedilam os mortos retornar do in-ferno de forma que algo impossiacutevel possa ser dito ou para

114 Inst 8667-76 ldquoHyperbolen audacioris ornatus summo loco posui Est haec decens veri superiectio virtus eius ex diverso par augendi atque minuendi fit pluribus modis Aut enim plus facto dicimus ut Vomens frustis esculentis gre-mium suum et totum tribunal implevit et geminique minantur in caelum scopuli aut res per similitudinem attollimus Credas innare revulsas Cycladas aut per comparationem ut Fulminis ocior alis aut signis quasi quibusdam Illa vel intactae segetis per summa volaret gramina nec teneras cursu laesisset aristas vel translatione ut ipsum illud volaret Crescit interim hyperbole alia insuper addita ut Cicero in Antonium dicit Quae Charybdis tam vorax Charybdin dico Quae si fuit fuit animal unum Oceanus medius fidius vix videtur tot res tam dissipatas tam distantibus in locis positas tam cito absorbere potuisse Exquisitam vero figuram huius rei deprendisse apud principem lyricorum Pindarum videor in libro quem inscripsit umnouz Is namque Herculis impetum adversus Meropas qui in insula Coo dicuntur habitasse non igni nec ventis nec mari sed fulmini dicit similem fuisse ut illa minora hoc par esset Quod imitatus Cicero illa composuit in Verrem Versabatur in Sicilia longo intervallo alter non Dionysius ille nec Phalaris (tulit enim illa quondam insula multos et crudelis tyrannos) sed quoddam novum monstrum ex vetere illa inmanitate quae in isdem versata locis dicitur Non enim Charybdin tam infestam neque Scyllam navibus quam istum in eodem freto fuisse arbitror Nec pauciora sunt genera minuendi vix ossibus haerent et quod Cicero in quodam ioculari libelo fundum Vetto vocat quem possit mittere funda ni tamen exciderit qua cava funda patet Sed huius quoque rei servetur mensura quaedam Quamvis enim est omnis hyperbole ultra fidem non tamen esse debet ultra modum nec alia via magis in kakoxhlian itur Piget referre plurima hinc orta vitia cum praesertim minime sint ignota et obscura Monere satis est mentiri hyperbolen nec ita ut mendacio facere velit Quo magis intuendum est quo usque deceat extollere quod nobis non creditur Pervenit haec res frequentissime ad risum qui si captatus est urbanitatis sin aliter stultitiae nomen adsequitur Est autem in usu vulgo quoque et inter ineruditos et apud rusticos videlicet quia natura est omnibus augendi res vel minuendi cupiditas insita nec quisquam vero contentus est Sed ignoscitur quia non adfirmamus Tum est hyperbole virtus cum res ipsa de qua loquendum est naturalem modum excessit Conceditur enim amplius dicere quia dici quantum est non potest meliusque ultra quam citra stat oratiordquo

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aumentar ou para diminuir o que se chama hipeacuterbole e muitas outras impossibilidades 116

Quintiliano segue seus predecessores de perto nessa definiccedilatildeo ateacute mesmo nas escolhas lexicais Contudo o desenvolvimento da figura em suas diferentes nuances e categorias assume um caraacuteter consideravelmente diverso daquele apresentado pela Retoacuterica a Herecircnio em que se diz que a figura eacute empregada ou separadamente (se-paratim) ou por comparaccedilatildeo (comparatio) nesta uacuteltima haacute ainda a divisatildeo entre se-melhanccedila (similitudo) e superioridade (praestantia) Por sua vez o autor da Institutio expande a classificaccedilatildeo para seis espeacutecies sem estabelecer uma hierarquia ou organo-grama entre elas

A primeira espeacutecie eacute a hipeacuterbole simples em que haacute mero exagero dos fatos (plus facto) O primeiro exemplo citado eacute extraiacutedo das Filiacutepicas de Ciacutecero (22563) em que a hipeacuterbole consiste em dizer que o vocircmito de Marco Antocircnio sujou todo o tribu-nal trata-se obviamente de um exagero poreacutem somente uma expansatildeo ou aumento do fato em si que seria o vocircmito de Antocircnio sujando sua roupa e suas cercanias no maacuteximo O outro exemplo vem da Eneida de Virgiacutelio (1162-3) onde os dois montes da ilha onde aporta Eneacuteias apoacutes a tempestade se erguem altos em direccedilatildeo ao ceacuteu Trata-se novamente de um mero exagero para ressaltar a altura dos montes mas sem implicar que o leitor de fato acredite que a montanha atinja o ceacuteu

A segunda espeacutecie eacute a hipeacuterbole por semelhanccedila (similitudo) onde o item

eacute comparado como que em um siacutemile a algum elemento impossiacutevel ou exagerado O exemplo aqui eacute tambeacutem extraiacutedo da Eneida (8691-2) na descriccedilatildeo do escudo de Eneacuteias em que podem ser vistos os portentos da histoacuteria romana os navios beacutelicos de Otaacutevio Augusto e Marco Antocircnio avanccedilando uns contra os outros naquela que seria a batalha final da guerra civil satildeo comparados agraves ilhas Ciacuteclades nadando soltasccxxi O efeito causado eacute o aumento do impacto ou da proporccedilatildeo da imagem sem no entanto que se perca o verossimilhanccedila ndash os leitores natildeo satildeo levados a acreditar que os navios satildeo as ilhas mas que ldquose parecemrdquo ldquosatildeo comordquo as ilhas avanccedilando no mar umas contra as outras

A terceira espeacutecie se daacute por comparaccedilatildeo (comparatio) em que a palavra ou no-ccedilatildeo hiperbolizada eacute ldquomaisrdquo ldquomaiorrdquo ldquomenosrdquo ou ldquomenorrdquo que o elemento comparado sendo esse elemento comparado um iacutendice de grande exagero para mais ou para me-nos O exemplo eacute novamente da Eneida (5319) onde durante as competiccedilotildees atleacuteticas o jovem Niso eacute descrito como mais raacutepido que as asas do raio (fulminis ocior alis)ccxxii O elemento comparado carrega um sentido de magnitude as asas do raio jaacute satildeo em si mesmas algo extremamente veloz por meio do adjetivo comparativo temos que Niso eacute ainda mais veloz que o proacuteprio raio e daiacute resulta o efeito hiperboacutelico

115 ldquosuperlatio est oratio superans veritatem alicuius augendi minuendive causardquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de MARX (1923)

116ldquoIn hoc genere oratoribus et philosophis concessum est ut muta etiam loquantur ut mortui ab inferis excitentur ut aliquid quod fieri nullo modo possit augendae rei gratia dicatur aut minuendae quae ίπερβολί dicitur multa alia mirabi-liardquo Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de WILKINS (1911)

A quarta espeacutecie tem uma definiccedilatildeo natildeo de todo clara em que se lecirc ldquocomo se por uns certos sinaisrdquo (signis quasi quibusdam) no sentido de uma insinuaccedilatildeo uma indicaccedilatildeo Mais uma vez o exemplo eacute extraiacutedo da Eneida (7808-9) Trata-se da descri-ccedilatildeo da guerreira Camila que eacute tatildeo veloz que se corresse por cima de um campo repleto de espigas natildeo arrebentaria nenhuma dessas ou seja nem sequer tocaria as espigas de tatildeo raacutepida que iria passar sobre elas Como se natildeo bastasse as espigas estatildeo madu-ras a ponto da colheita (intactae) de forma que qualquer leve toque as quebraria (te-neras) Aqui temos natildeo um mero exagero ou uma semelhanccedila ou uma comparaccedilatildeo temos uma construccedilatildeo fantasiosa em que a velocidade de Camila eacute descrita em uma imagem que a associe ao voo de ave ou ao vento a algo que possa passar correndo pelas espigas sem derrubaacute-las sem no entanto que essas palavras sejam citadas como se a comparaccedilatildeo ocorresse em um niacutevel sutil ao modo de uma insinuaccedilatildeo

A quinta espeacutecie eacute a metaacutefora (translatio) que natildeo deixa de ser um tropo em

si O exemplo eacute retirado da frase utilizada para a espeacutecie anterior em que o verbo voar (volare) eacute empregado para descrever a raacutepida corrida da jovem guerreira O uso de ldquovoarrdquo no lugar de ldquocorrerrdquo nada mais eacute do que o processo comum da metaacutefora e natildeo deixa de ser relevante o fato de que Quintiliano natildeo esboccedila uma hierarquia ou ascen-decircncia de um tropo sobre o outro ou seja aqui pode-se entender tanto uma hipeacuterbole do tipo metafoacuterico como uma metaacutefora de sentido hiperbolizado sendo as duas coisas na exposiccedilatildeo da Institutio uma coisa soacute Tambeacutem eacute importante notar que ao expor duas espeacutecies a partir de um uacutenico exemplo literaacuterio Quintiliano potildee em evidecircncia que as espeacutecies da hipeacuterbole natildeo satildeo categorias estanques e bem delimitadas no sentido de cada uma abarcar um campo exclusivo que natildeo pode ser abarcado por outra Pois ainda que o uso de ldquovoarrdquo ao inveacutes de ldquocorrerrdquo se constitua uma metaacutefora natildeo eacute a me-taacutefora que faz com que a passagem seja uma hipeacuterbole por insinuaccedilatildeo esta soacute se cons-titui com a reuniatildeo dos demais elementos como o campo repleto de espigas maduras a corrida por cima das espigas e a leveza de correr sem tocar nas espigas com exceccedilatildeo do ldquovoarrdquo todas as demais palavras aparecem em seu sentido proacuteprio e eacute a composiccedilatildeo de todas elas que resulta no efeito hiperboacutelico

A sexta e uacuteltima espeacutecie eacute aquela que poderiacuteamos chamar ldquometa-hipeacuterbo-

lerdquo pois eacute uma hipeacuterbole dentro de outra (hyperbole alia insuper addita) O primeiro exemplo citado volta a ser de Ciacutecero novamente das Filiacutepicas (267) em que o orador vocifera contra Marco Antocircnio nem Cariacutebde nem mesmo o Oceano que tudo devora tecircm o poder de devorar tantas coisas quanto a cupidez de Antocircnio O primeiro niacutevel hiperboacutelico reside na comparaccedilatildeo com Cariacutebde (quae Charybdis tam vorax) compa-raccedilatildeo que logo eacute dissipada como insuficiente (Charybdin dico Quae si fuit fuit animal unum) de Cariacutebde se passa por metoniacutemia para o oceano cuja capacidade de devorar coisas eacute diminuiacuteda na comparaccedilatildeo com Antocircnio comparaccedilatildeo esta que se constitui como o segundo niacutevel hiperboacutelico da construccedilatildeo

O segundo exemplo eacute extraiacutedo de Piacutendaro que Quintiliano natildeo cita e sim para-

fraseia onde a comparaccedilatildeo de Heacutercules com o fogo o vento e o mar satildeo considerados insuficientes ndash primeiro niacutevel da hipeacuterbole ndash de forma que soacute se pode comparaacute-lo com o relacircmpago ndash segundo niacutevel da hipeacuterboleccxxiv

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Haacute ainda um terceiro exemplo da meta-hipeacuterbole tirado do segundo discurso contra Verres de Ciacutecero (5145) Aqui a primeira comparaccedilatildeo eacute com Dioniacutesio e Faacutelaris tiranos crueacuteis da Siciacutelia e a segunda com Cila e Cariacutebde todas elas no entanto satildeo insuficientes para descrever a torpeza de Verres Eacute de se notar que os trecircs exemplos para a meta-hipeacuterbole trabalham com o aspecto da insuficiecircncia da proacutepria hipeacuterbole que eacute em princiacutepio a figura capaz de expressar em exagero aquilo que natildeo pode ser expressado Quando o poeta ou o orador afirmam que nem mesmo a hipeacuterbole que expressa o impossiacutevel eacute capaz de expressar o efeito hiperboacutelico eacute levado a um niacutevel exponencial ultrapassando todos os limites do exagero Esse aspecto da insuficiecircncia da hipeacuterbole para criaccedilatildeo de um efeito ainda mais hiperboacutelico foi tambeacutem explorado por Oviacutedio em sua poesia de exiacutelioccxxv

Apoacutes percorrer essas seis espeacutecies Quintiliano passa ao tratamento das hipeacuter-boles para diminuiccedilatildeo que satildeo na verdade as mesmas espeacutecies da amplificaccedilatildeo poreacutem com sentido negativo Para tanto satildeo citados dois exemplos ldquomal se sustinham nos ossosrdquo (vix ossibus haerent) de Virgiacutelio Eacutecloga 3103 e de um livro perdido de Ciacutecero uma passagem que brinca com o tamanho de um terreno que pode ser medido com uma funda e mais do que isso eacute comparaacutevel ao buraco de uma funda explorando o jogo lexical entre fundum (terreno) e funda (funda pequena arma de arremesso) No primeiro caso temos uma hipeacuterbole plus facto enquanto no segundo caso uma meta--hipeacuterbole

Em seguida a exposiccedilatildeo deixa a tipologia de lado e passa a advertir sobre os perigos da figura Deve-se usar a hipeacuterbole de acordo com a tradiccedilatildeo o usual (non tamen esse debet ultra modum) e com muita cautela pois eacute muito faacutecil cair em ldquoca-cozeliardquo ccxxvi ou seja no emprego errado ou abusivo do recurso Ligada ao risco que a figura conteacutem estaacute sua caracteriacutestica de ser uma mentira que natildeo engana (mentiri hyperbolen nec ita ut mendacio facere velit) o que gera alguma dificuldade junto agrave verossimilhanccedila do discurso os leitores e ouvintes perceberatildeo que se trata de uma mentira ou de um exagero e por isso o efeito precisa ser muito bem calculado

O mais das vezes a hipeacuterbole carrega consigo tambeacutem um efeito de riso Caso esse riso seja intencional o emprego eacute sem duacutevida uma virtude (urbanitatis) contudo se o orador ou poeta elabora uma hipeacuterbole tentando ser seacuterio e ainda assim causa o riso natildeo passa de uma ingenuidade (stultitiae) Essa consideraccedilatildeo sobre o sentido risiacutevel da hipeacuterbole eacute inaugural em Quintiliano pelo menos em relaccedilatildeo aos tratadistas anteriores a que temos acesso hoje serve tambeacutem como ferramenta uacutetil para analisar as passagens hiperboacutelicas presentes na produccedilatildeo literaacuteria da eacutepoca em especial de Oviacutedio e dos autores neronianos cuja utilizaccedilatildeo recorrente da figura tem sido por ve-zes considerada afetaccedilatildeo ou decadecircncia poeacutetica

Quintiliano identifica a hipeacuterbole no linguajar comum das pessoas desprovidas de instruccedilatildeo formal (ineruditos et rusticos) e com isso sustenta a teoria ciceroniana de que as figuras de linguagem satildeo da natureza orgacircnica da liacutengua sendo corriquei-ramente usadas para os efeitos de comunicaccedilatildeo e expressividadeccxxvii A organicidade da hipeacuterbole estaacute na base de sua principal funccedilatildeo conseguir dizer aquilo que natildeo pode ser dito aquilo para o que natildeo existem palavras suficientes (conceditur enim amplius

dicere quantum est non potest) Pois na poesia no discurso oratoacuterio ou mesmo na fala comum do dia a dia eacute melhor exagerar do que dizer algo aqueacutem daquilo que se precisa expressar (melius ultra quam citra stat oratio) porque em geral dizer algo aqueacutem equivale a nada dizer no sentido de natildeo se efetivar uma comunicaccedilatildeo qualquer

Com isso Quintiliano encerra o tratamento da hipeacuterbole e dos tropos em ge-ral e conclui o oitavo livro da Institutio Ao longo dos dez paraacutegrafos que compotildeem a exposiccedilatildeo o tratadista discorre sobre a definiccedilatildeo as espeacutecies os efeitos a natureza e a funccedilatildeo da hipeacuterbole Fica em aberto ainda que de maneira intencional a classificaccedilatildeo tipoloacutegica seria a hipeacuterbole uma figura um ornamento ou um tropo No quarto capiacute-tulo do livro 8 como vimos Quintiliano diz que a hipeacuterbole pode ser tratada no acircmbito do ornamento mas que ele iraacute tratar no acircmbito dos tropos seguindo uma ordenaccedilatildeo tradicional No entanto ao comeccedilar a exposiccedilatildeo ele diz que a hipeacuterbole eacute um orna-mento e depois iraacute se referir a ela como figura ou como tropo A partir dos exemplos arrolados eacute possiacutevel entender que o tratadista entende a hipeacuterbole nas duas chaves de ornamento e de tropo pois ela aparece tanto em situaccedilotildees em que o sentido proacuteprio da palavra natildeo se modifica (o que se configura um ornamento) como em situaccedilotildees em que o sentido proacuteprio de fato de modifica (o que se configura um tropo) O termo ldquofi-gurardquo por sua vez aparece ao longo do trecho em sentido pouco especiacutefico indicando que pode compreender em sua semacircntica tanto o ornamento como o tropo

A hipeacuterbole eacute definida como o aumento elegante ou decoroso da verdade o que faz dela uma mentira revelada jaacute exposta em si mesma sem intenccedilatildeo de enganar Suas espeacutecies satildeo a simples a semelhanccedila a comparaccedilatildeo a insinuaccedilatildeo a metaacutefora e a meta-hipeacuterbole Seu efeito para aleacutem do embelezamento e do poder de persuasatildeo do discurso pode ser tambeacutem o riso A sua natureza eacute orgacircnica no sentido em que a figura nasce de maneira espontacircnea na fala corriqueira de qualquer indiviacuteduo e disso resulta sua funccedilatildeo que reside em expressar aquilo que natildeo pode ser expresso Por isso a hipeacuterbole consta entre as mais ousadas das figuras por meio do exagero ela quebra o limite do criacutevel e verdadeiro para alccedilaacute-lo arremessaacute-lo ao alto em um movimento em direccedilatildeo ao incriacutevel ao impossiacutevel ao intangiacutevel movimento esse que somente a linguagem eacute capaz de fazer

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Hino Homeacuterico 2a Demeacuteter

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Leonardo Antunes

Ao traduzir os Hinos Homeacutericos empreguei uma espeacutecie hexacircmetro dactiacutelico vernaacuteculo de que Carlos Alberto Nunes jaacute fizera uso em suas traduccedilotildees da Iliacuteada da Odisseia e tambeacutem da Eneida de Virgiacutelio 118

Trata-se de um verso dactiacutelico de 16 siacutelabas (seguindo o modelo de contagem de Castilho)119 com acentos na primeira quarta seacutetima deacutecima deacutecima terceira e (como natildeo poderia deixar de ser) deacutecima sexta siacutelaba120

Com isso ignora-se uma peculiaridade importante do verso grego a possi-bilidade de contraccedilatildeo das siacutelabas breves dos daacutectilos em uma siacutelaba longa Poreacutem a soluccedilatildeo oferece bastante espaccedilo para que se trabalhe o texto e possui uma sonoridade singular fazendo com que seja a meu ver consistente para a traduccedilatildeo de hexacircmetros dactiacutelicos empenhada em imitar seu metroritmo121

Como exemplo ilustrativo cito o verso 49 do primeiro canto da Iliacuteada na tra-duccedilatildeo de Nunes

Do ar co de pra ta co me ccedila a ir ra diar -se um clan gor pa vo ro so

Sendo uma traduccedilatildeo que busca ser poeacutetica minha preocupaccedilatildeo principal ao traduzir estes hinos para o Portuguecircs foi a de construir um texto eufocircnico buscando natildeo soacute uma cadecircncia agradaacutevel de sons mas tambeacutem vocaacutebulos que se encadeassem de modo natural dentro do ritmo escolhido

118 Oliva Neto e Nogueira (2013) possuem um excelente artigo que investiga usos anteriores ao de Nunes para o hexacircmetro dactiacutelico vernaacuteculo119 Antes do tratado de Castilho (1858) contavam-se as siacutelabas poeacuteticas do verso lusoacutefono agrave maneira espanhola tomando a terminaccedilatildeo paroxiacutetona (grave) como o modelo para nomeaacute-lo Assim o que hoje conhecemos como decassiacutelabo era antes conhecido como hendecassiacutelabo Apoacutes o trato de Castilho passou-se a usar a maneira francesa de contar tomando por modelo a terminaccedilatildeo oxiacutetona (aguda) de um verso para nomeaacute-lo120 Por vezes o leitor sentiraacute necessidade de forccedilar algum desses acentos em especial o primeiro121 Outras soluccedilotildees meacutetricas incluem (mas natildeo se resumem a) o verso composto por duas redondilhas maiores com que Andreacute Malta (2000 e 2006) traduziu partes da Iliacuteada o hexacircmetro anapeacutestico de Jair Gramacho em sua traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos (2003) o hexacircmetro dactiacutelico com possibilidade de uma siacutelaba aacutetona inicial empregado por Eacuterico No-gueira em sua traduccedilatildeo dos Idiacutelios de Teoacutecrito (2012) o pentacircmetrohexacircmetro dactiacutelico-trocaico proposto por Marcelo Taacutepia em seu estudo de possibilidades riacutetmicas para a traduccedilatildeo de Homero (2012) e tambeacutem empregado apenas como hexacircmetro por Guilherme Gontijo Flores em suas traduccedilotildees das Odes de Horaacutecio (2014) e por Bruno Palavro em sua tra-duccedilatildeo da Teogonia de Hesiacuteodo (2019) o dodecassiacutelabo usado por Haroldo de Campos e por Trajano Vieira ao traduzirem respectivamente a Iliacuteada e a Odisseia e last but not least o decassiacutelabo com que Manuel Odorico Mendes inaugurou no seacuteculo XIX a tradiccedilatildeo de traduccedilotildees de Homero em liacutengua portuguesa aleacutem de tambeacutem ter traduzido a Eneida de Virgiacutelio da mesma forma

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Canto Demeacuteter de belos cabelos deidade solenejunto da filha de esguios tornozelos a quem Edoneuarrebatou por presente de Zeus de ampla vista troantelonge Demeacuteter de espada dourada de fruto brilhantequando brincava entre as oceaninas de bustos profundosde colher flores de rosa accedilafratildeo e violetas bonitassobre um gramado macio e de iacuteris bem como jacintoe de narciso ndash num dolo de Gaia agrave garota florentedentro do plano de Zeus alegrando o que tudo recebe ndashmaravilhoso e brilhante um espanto de ver para todospara os eternos divinos e para os humanos mortaisDele a partir das raiacutezes cem brotos de flor despontavamDuacutelcido odor exalava tatildeo doce que tudo do ceacuteuagrave vasta terra e ateacute a onda salina do mar lhe sorriuMaravilhada buscou alcanccedilaacute-lo com ambas as matildeosbelo ornamento Poreacutem a vastiacutevia terra se abriujunto agrave planiacutecie de Nisa e o que tudo reteacutem irrompeucom montaria imortal o Cronida de muacuteltiplos nomesTendo-a tomado contraacuterio agrave vontade ao palaacutecio douradofoi-se com ela em lamentos Gritava com voz incessantesuacuteplica ao pai que de Crono nasceu o mais alto e mais nobreNenhum dos deuses eternos nenhum dos humanos mortaispocircde escutar sua voz nem olivas de frutos brilhantesmas a donzela nascida de Perses de tenro pensarHeacutecate do diadema esplendente da gruta a escutoue Heacutelios tambeacutem o senhor que de Hipeacuterion nasceu reluzenteouve o pedido da moccedila ao pai Crocircnida mas apartadodos demais deuses estava em seu templo onde muitos suplicama receber oferendas venustas dos homens mortaisContra a vontade a levava (seguindo um alvitre de Zeuspai da donzela e irmatildeo do que tudo reteacutem e recebe)com imortal montaria o Cronida de muacuteltiplos nomesQuanto ainda pocircde mirar para terra e pro ceacuteu estreladoe para o mar de correntes possantes repleto de peixese para o brilho do sol ela teve esperanccedila de vera matildee zelosa e a famiacutelia dos deuses eternossurgentestanto a esperanccedila acalmava-lhe a mente sobeja na dor e ressoaram os cumes dos montes e o fundo do marjunto da voz imortal escutou-lhe sua matildee senhorilDor aguccedilada assaltou-lhe no seu coraccedilatildeo Das madeixasambrosiais a mantilha rasgou com as matildeos em pedaccedilosde ambos os ombros lanccedilou para o chatildeo o seu manto ciacircnicoe disparou como um paacutessaro ao longo da terra e das aacuteguasa procurar Mas dizer a verdade natildeo houve ningueacutemdentre os divinos nem dentre os humanos mortais que oquisesse nem dentre as aves ndash nenhuma lhe foi mensageiro ve-raz

Por nove dias depois pela terra a senhora Demeacuteterfoi-se vagando com tochas acesas levadas agraves matildeosNem de ambrosia jamais nem de neacutectar deliacutecia potaacutevelse alimentou sofredora nem aacutegua em seu corpo aspergiuMas quando a deacutecima aurora chegou ateacute ela brilhanteHeacutecate veio encontraacute-la trazendo luzeiros nas matildeose anunciando-lhe entatildeo proferiu a palavra e falouldquoDona Demeacuteter que guia as sazotildees donataacuteria de luzquem dentre os deuses celestes ou dentre os humanos mortaisrapta Perseacutefone e causa-te dor para o teu coraccedilatildeoVoz eu ouvi mas natildeo pude contudo enxergar com os olhosquem o seria De pronto professo-te tudo sem errordquoHeacutecate assim lhe falou mas natildeo houve resposta em discursovinda da filha de Reia que subitamente com elavai-se com tochas acesas brilhando portadas nas matildeosA Heacutelios chegaram vigia dos deuses bem como dos homensFrente aos cavalos puseram-se e a deusa entre as deusas lhedisseldquoHeacutelios ao menos respeita-me deusa que sou se jamaisminhas palavras ou feitos ao teu coraccedilatildeo te aqueceramMoccedila eu gerei um rebento tatildeo doce esplendente na formaDela pelo eacuteter infeacutertil eu ouvi um gemido adensadocomo sofresse poreacutem com os olhos natildeo pude miraacute-laTu todavia por tudo que existe na terra e no mardo alto do eacuteter divino perscrutas usando teus raiosDiz-me sem falha o querido rebento ndash se acaso tu viste ndashquem apartado de mim agarrando em forccedilosa violecircnciafoi que o levou se um dos deuses ou um dos humanos mortaisrdquoDisse-lhe assim Em resposta o nascido de Hipeacuterion falou-lheldquoFilha de Reia de belos cabelos senhora Demeacutetertu saberaacutes pois venero-te muito e de ti me apiedosocircfrega pela menina de esguio tornozelo natildeo outrofoi causador dentre eternos senatildeo o nubiacutecogo Zeusque a concedeu para Hades chamaacute-la de esposa formosadeu-a ao irmatildeo que por vez para o fundo do breu nevoentorapta-a e a carrega em seu carro por mais que ela muito gritasseCessa contudo divina esse ingente gemido Natildeo devester tanta coacutelera em vatildeo dessa forma Natildeo eacute um improacutepriogenro entre eternos aquele Edoneu o de muacuteltiplos nomeseacute teu irmatildeo foi gerado em conjunto tambeacutem ndash quanto agraves honrasque ele ganhou quando em trecircs a partilha foi feita de iniacutecio ndashentre os que vivem consigo seu lote eacute ser rei sobre todosrdquoTendo assim dito chamou os cavalos Por sob ameaccedilaslogo carregam o carro veloz quais aliacutegeras avesNela vem dor mais terriacutevel e infame no seu coraccedilatildeoPelo Cronida de nuvens escuras irada a tal pontoela apartou-se da grege divina e do Olimpo elevado

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indo agraves cidades dos homens e para seus fartos cultivosbranda em beleza por longo interstiacutecio Ningueacutem dos varotildeesa distinguiu quando a viu nem das damas de funda cinturaantes de que ela chegasse na casa do experto Celeuque era senhor nesse tempo de Elecircusis fragrante em incensoCom coraccedilatildeo dolorido sentou-se por perto da estradajunto do poccedilo da virgem de que os cidadatildeos aduavamnum sombreado debaixo de onde cresciam olivasassemelhada a uma velha vetusta que da gestaccedilatildeojaacute se gastou e dos dotes da amante de laacuteurea Afrodite da qualidade das amas de reis que ministram as leise governantas de infantes ao longo de ecoantes alcovasViram-na as filhas do filho nascido de Elecircusis Celeuvindo por aacutegua de faacutecil extraccedilatildeo que depois levariamdentro de jarras de bronze a caminho da casa paternaQuatro elas eram quais deusas ornadas na flor juvenilbela Demoacute e Caliacutedice junto a Clesiacutedice e aindaCalitoeacute que entre todas as outras nascera primeiroNatildeo a souberam os deuses satildeo aacuterduos de ver por mortaisPondo-se proacuteximas dela disseram palavras aladasldquoQuem eacutes e donde anciatilde que nasceste entre os homensde outroraQual a razatildeo de partires da poacutelis e nem das moradaste aproximares Aqui haacute mulheres nas casas vultosasvelhas assim como tu bem como outras mais jovens tambeacutemAmbas teriam a ti por amiga em palavras e em atosrdquoIsso disseram Entatildeo respondeu a senhora das deusasldquoFilhas queridas ndash quem quer que voacutes fordes em meio agravesmulheres ndasheu vos sauacutedo e vos digo ademais que natildeo eacute vergonhosopronunciardes discursos dizendo palavras verazesEu sou chamada Dosoacute Deu-me o nome a senhora maternaVim logo agora de Creta no dorso comprido do marmesmo que natildeo o quisesse forccedilada em forccedilosa violecircnciaHomens ladinos levaram-me embora Depois em seguidaforam com raacutepida nau para Toacuterico Laacute as mulheresdesembarcaram em grupos seguidas por elese preparavam banquete do lado da proa da nauMas coraccedilatildeo natildeo me aprouve o repasto gentil para menteDesembarcando em segredo atraveacutes da melacircnica terraeu escapei dos meus mestres soberbos que enfim natildeo lucrassemcom minha honra por me carregarem agrave venda no marVim para caacute dessa forma uma errante Tampouco sabiaqual era a terra e quem eram aqueles que aqui satildeo nascidosQue vos concedam contudo os que fazem morada no Olimpotodos varotildees que vos sejam esposos e filhos de prolecomo desejam os pais mas de mim tende pena meninas

Isso me estabelecei claramente que assim eu o saibafilhas queridas zelosas de quem eacute a casa a que chegoDe qual varatildeo ou senhora Que assim eu os sirva zelosanos afazeres cabiacuteveis a velhas mulheres fazeremPara um bebecirc neonato levado em meus braccedilos dobradosbelo cuidado daria e tambeacutem manteria o palaacutecioesticaria os lenccediloacuteis no interior das alcovas bem-feitasdo meu senhor e os trabalhos iria ensinar agraves mulheresrdquoDisse a deidade Depois respondeu a virgiacutenea donzeladita Caliacutedice que era a mais bela entre as filhas CeleidasldquoMatildee os presentes dos deuses por mais que soframos agrave forccedilanoacutes suportamos humanos pois satildeo bem mais fortes que noacutesVou te dizer claramente isso tudo e informar-te por nomequais os varotildees a quem haacute um enorme poder nesta terraeles que tecircm o respeito do povo e a mantilha da poacutelissalvam por meio do alvitre e da sua justiccedila escorreitaambos Triptoacutelemo de resoluta vontade e Dioacuteclese Polixeno tambeacutem junto do irreprovaacutevel Eumolpojunto de Doacutelico bem como de nosso pai varonilHaacute para todos esposas que cuidam do lar nos palaacuteciosDentre elas todas natildeo haacute quem iria agrave primeira das vistasdesestimando-te a forma da casa por isso expulsar-temas sim iratildeo receber-te pois eacutes claramente deiformeSe tu quiseres espera que iremos agrave casa paternapara informar nossa matildee Metaneira de funda cinturadesses assuntos de todos a fim de que sejas chamadaagrave nossa casa natildeo tendo que uma outra morada buscarEla possui um soacute filho tardio no palaacutecio bem-feitotardinascido mas muito bem-vindo apoacutes muacuteltiplas precesSe tu puderes criaacute-lo ateacute que ele se torne um rapazmui facilmente qualquer das femiacuteneas mulheres ao ver-tete invejaria satildeo daacutedivas tais que em criaacute-lo teriasrdquoDisse-lhe assim Assentiu por sua vez com o rosto Luzentesbaldes entatildeo tendo enchido com aacutegua carregam briosasLogo chegaram no enorme palaacutecio paterno e contaramraacutepido agrave matildee o que viram e ouviram Mais raacutepido aindavindo ordenou que a chamassem a fim de ter paga infinitaTal como cervos ou mesmo bezerros que na primaveravatildeo saltitando num prado aplacado o desejo com pastoelas assim segurando nas dobras das vestes amaacuteveisiam correndo por via deserta Ao redor os cabelossobre seus ombros fluiacuteam semelhos agrave flor do accedilafratildeoProacuteximo agrave estrada encontraram a deusa esplendente ondea haviamantes deixado Depois para a casa do pai estimadoforam agrave frente Detraacutes com o seu coraccedilatildeo doloridoela seguia com rosto abaixado Ao redor um vestido

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cor do oceano envolvia-lhe os peacutes delicados de deusaLogo a mansatildeo de Celeu alcanccedilaram aluno de ZeusForam adentro do poacutertico ateacute onde a matildee senhoriljunto agrave coluna do teto de firme feitura sentavacom um bebecirc neonato no colo Acorreram-lhe as filhasMas quando pocircs os seus peacutes na soleira alcanccedilou o batentecom a cabeccedila e um divino esplendor preencheu os umbraisPor reverecircncia respeito e esverdeado temor foi tomadaDe seu assento se ergueu e ordenou que ela ali se sentasseMas natildeo Demeacuteter que guia as sazotildees donataacuteria de luznatildeo desejou se assentar sobre o trono de aspecto brilhantemas se mantinha silente com seus belos olhos baixadosantes de Iambe sabendo cuidados dispocircr para elaoutra cadeira do lado e cobri-la com peles argecircnteasLaacute se sentando mantinha seguro nas matildeos o seu veacuteuPor muito tempo sofrendo silente quedou sobre o bancoNem por palavras saudava as pessoas tampouco por gestosmas sem risada mantendo o jejum sem comer nem beberela minguava agrave saudade da filha de funda cinturaantes de Iambe sabendo cuidados por meio de troccedilasmuitas fazendo piadas mudar a solene senhorapara se rir e sorrir e ter acircnimo mais benfazejo(Ela mais tarde tambeacutem num porvir agradou seus humores)Oferecia-lhe entatildeo Metaneira uma taccedila que encheracom vinho doce qual mel mas natildeo quis Disse improacuteprio tomarvinho vermelho Mandava que dessem cevada com aacuteguamistas a fim de tomar com um toque gentil de poejoFeita a poccedilatildeo ofertou-a conforme pedira agrave deidadeTendo a aceitado por sacro costume Demeacuteter excelsa Principiou Metaneira de bela cintura a falar-lheldquoSalve mulher Eu natildeo temo que vinda de maus genitoressejas mas sim de excelentes pois vecirc-se respeito em teus olhose gratidatildeo como se descendesses de reis julgadoresMas os presentes dos deuses por mais que soframos agrave forccedilanoacutes suportamos humanos pois tem-se o pescoccedilo no jugoMas como aqui tu chegaste teraacutes tudo quanto eu puder cria meu filho nascido tardio para aleacutem da esperanccedilaeste que os deuses mandaram que eacute muito querido por mimSe tu puderes criaacute-lo ateacute que ele se torne um rapazmui facilmente qualquer das femiacuteneas mulheres ao ver-tete invejaria satildeo daacutedivas tais que em criaacute-lo teriasrdquoPor sua vez proferiu-lhe Demeacuteter de bela coroaldquoEu te sauacutedo mulher Que os divinos te deem benessesReceberei de bom grado o teu filho conforme me ordenasHei de criaacute-lo e jamais por descuido da sua babaacutehaacute de um feiticcedilo afligi-lo nem mesmo lsquoo que ceifa por baixorsquopois sei de antiacutedoto muito mais forte que lsquoo ceifa-madeirarsquo

sei de excelente resguardo a feiticcedilo de muacuteltiplas doresrdquoTendo dessarte falado aceitou-o no peito olorosocom suas matildeos imortais Em seu iacutentimo alegra-se a matildeeDessa maneira passou a criar no palaacutecio o brilhantefilho do arguto Celeu Demofonte que de Metaneirabem-cinturada nascera Cresceu como um par dos divinospatildeo natildeo comia nem mesmo sugava do leite da matildeevisto que ao longo do dia Demeacuteter de bela coroacom ambrosia o ungia qual fosse rebento de um deustendo-o bem junto do peito e insuflando-o com sopro adoccediladomas pela noite encobria-o em chamas qual fosse um ticcedilatildeosem que seus pais o soubessem Crescia-lhes como um prodiacutegiotanto precoce cresceu parecia ser um dos divinosE com efeito o teria tornado imortal sem velhicecaso com insensatez Metaneira de bela cinturaespionando de noite a partir de seu quarto olorosonatildeo os notasse Mas ela gritou e espalmou suas coxasapavorada por conta do filho e afligida em seu peitoe lamentando-se entatildeo proferiu as palavras aladasldquoMeu Demofonte a estrangeira com chamas ingentes te encobree me coloca em gemidos e preocupaccedilotildees lutuosasrdquoDisse dessarte em lamento e a divina entre as deusas a ouviuColerizada com ela Demeacuteter de bela coroatendo tirado do fogo com matildeos imortais o meninoque ela gerara na casa jaacute quando natildeo tinha esperanccedilalanccedila-o no chatildeo irritada no seu coraccedilatildeo sobremodoe ao mesmo tempo maldiz Metaneira de bela cinturaldquoNeacutescios humanos Ineptos em reconhecer a medidade quanto bem sobreveacutem para voacutes tanto quanto do malTu pela tua insciecircncia causaste incuraacutevel feridaSaiba-se a jura dos deuses pela aacutegua implacaacutevel do Estigepois imortal e tambeacutem sem velhice por todos os diastua crianccedila eu teria tornado com honra indeleacutevelOra natildeo mais poderaacute se evadir do destino e da morteHonra indeleacutevel lhe iraacute persistir para sempre contudopor ter subido em meu colo e dormido amparado em meusbraccedilosAo lhe chegarem as Horas e os anos findando seu cursovede que os filhos de Elecircusis com guerras e gritos terriacuteveisvatildeo engajar-se uns aos outros constantes por todos os diasEu sou Demeacuteter quem honras deteacutem geratriz dos maioresjuacutebilos para imortais e mortais e tambeacutem benefiacuteciosVamos agora Que um templo bem grande e um altar logo abaixoos cidadatildeos sob a poacutelis e as altas muralhas me faccedilamsobre o Caliacutecoro na cumeeira de um monte elevadoRitos secretos eu mesma vos ensinarei que depoisao perfazecirc-los sem maacutecula ireis alegrar meu sentidordquo

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Tendo assim dito a deidade alterou sua forma e estaturaposta a velhice de lado Ao redor exalava belezadesde os vestidos fragrantes um amabiliacutessimo olorse dissipava de longe luzia da derme imortalbrilho da deusa dourados cabelos cresciam-lhe aos ombroscom o claratildeo preencheu-se a morada robusta qual raioFoi-se em seguida da casa Jaacute dela os joelhos vacilampermaneceu muito tempo sem voz nem sequer do meninotardinascido lembrou de tomaacute-lo de volta do chatildeoSuas irmatildes todavia escutando-lhe a voz lamentaacutevellogo saltaram dos leitos cobertos entatildeo uma delastendo-o tomado nas matildeos o coloca de junto do peitooutra reacende a lareira e a terceira com peacutes delicadoslogo se apressa em trazer sua matildee do aposento fragranteAglomeradas em torno lavavam-no enquanto choravadando-lhe muito carinho mas seu coraccedilatildeo natildeo calmavaeram piores as aias e as amas que agora o guardavamElas entatildeo toda a noite aplacavam a deusa famosatrecircmulas pelo terror No momento em que a Aurora surgiuao poderoso Celeu infaliacuteveis palavras disseramcomo mandara a deidade de bela coroa DemeacuteterEle depois de chamar para a aacutegora o povo abundantemanda que um templo opulento a Demeacuteter de belos cabelosfaccedilam tambeacutem um altar sobre o cume de um monte elevadoEles de pronto escutaram e lhe obedeccedilaram aos ditosComo mandara fizeram e o filho cresceu como um numeQuando por fim terminaram e deram por feito o trabalhoforam-se ao lar cada qual para o seu mas a loura Demeacuteterlaacute se sentando apartada de todos os outros ditososinda minguava agrave saudade da filha de funda cinturaO mais terriacutevel dos anos na terra de farto sustentofez para os homens um ano de catildeo As sementes a terranatildeo germinava ocultava-as a bem-coroada DemeacuteterMuitos arados recurvos os bois arrastavam em vatildeoMuita cevada brilhante no chatildeo se jogou sem sucessoEla teria arrasado a linhagem dos homens mortaispela estiagem terriacutevel privando das honras famosase sacrifiacutecios aqueles que fazem morada no OlimpoZeus natildeo houvesse notado e no espiacuterito entatildeo compreendidoIacuteris primeiro aurialada enviou para que ela chamassea de adoraacutevel figura Demeacuteter de belos cabelosDisse Ela ao mando de Zeus do Cronida de nuvens escurasobedeceu e cruzou o entremeio com raacutepidos peacutesLogo chegou agrave cidade eleusina fragrante de incensoonde no templo encontrou com vestido soturno Demeacutetere lhe falou proferindo as seguintes palavras aladasldquoZeus pai te chama Demeacuteter o saacutebio em saberes perenes

para que vaacutes agrave famiacutelia dos deuses eternossurgentesVai E que natildeo se descumpra a palavra de Zeus que lhe digordquoDisse-lhe assim suplicante mas seu coraccedilatildeo natildeo consenteMais uma vez o pai manda-lhe os deuses ditosos e eternostodos um deus atraacutes de outro Partindo ordenados assimeles chamavam-na e davam presentes venustos e vaacuteriose honras tambeacutem tantas quantas pudesse querer entre eternosMas ningueacutem pocircde suadir as entranhas nem o pensamentodela iracunda no seu coraccedilatildeo rechaccedilava os discursospois prometera jamais ascender para o Olimpo fragrantenem enviar para cima de dentro da terra a colheitaantes de ver com seus olhos a filha de belo semblanteZeus que ressoa profundo o de vasta visatildeo quando o ouviufez com que o auricetrado argicida para o Eacuterebo fosseque ele falando de perto palavras suaves com Hadesexconduzisse Perseacutefone augusta do breu nevoentorumo da luz junto aos deuses a fim de que entatildeo sua matildeeao contemplaacute-la com seus proacuteprios olhos cessasse o rancorHermes natildeo desacatou mas de suacutebito ao fundo da terraele partiu apressado baixando do assento do OlimpoLogo encontrou o senhor da morada no seu interiorem um sofaacute reclinado com a pudorosa consortemuito contraacuterio agrave vontade saudosa da matildee que agrave distacircnciaplanos terriacuteveis pensava por atos dos deuses ditososPondo-se proacuteximo dele falou-lhe o potente ArgicidaldquoHades de negros cabelos reinante entre os jaacute perecidosZeus pai mandou-me guiar para fora Perseacutefone augustado Eacuterebo para com eles a fim de que a matildee vendo a moccedilacom olhos proacuteprios refreie o rancor e sua coacutelera horriacutevelcontra os eternos pois ela intenciona um ingente trabalhoarruinar a impotente famiacutelia dos homens terrestresao ocultar as sementes na terra privando das honrasos imortais Ela tem um terriacutevel rancor nem aos deusesjunta-se mas no interior de seu templo fragrante apartadasenta-se enquanto deteacutem a cidade rochosa de ElecircusisrdquoDisse dessarte Sorriu-lhe Edoneu que entre os iacutenferos reinacom os sobrolhos mas natildeo descumpriu o comando de Zeus reipois de imediato ordenou a Perseacutefone percipienteldquoVai-te Perseacutefone para tua matildee de vestido soturnotendo uma forccedila gentil em teu peito e no teu coraccedilatildeonem tenhas oacutedio excessivo demais do que aos outros por mimNatildeo te serei um consorte de nada indevido entre eternosvisto que sou mesmo irmatildeo de Zeus pai Quando aqui teencontrarestu seraacutes mestre de todos de quantos viverem e andareme honras ainda teraacutes entre eternos maiores que todasDentre os injustos teraacute pagamento por todos os dias

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quem natildeo fizer sacrifiacutecios a fim de agradar teu poderfeitos sem maacutecula todos cumpridos com dons adequadosrdquoDisse dessarte Sorriu-lhe Perseacutefone muito prudenterapidamente se ergueu de alegria mas ele contudodoces sementes lhe deu de romatilde que comesse em segredosendo cuidoso que natildeo demorasse por todos os diasjunto de novo a Demeacuteter augusta de peplo soturnoOs seus cavalos agrave frente do carro dourado no jugopocircs imortais Edoneu que exercita o comando de muitosEla subiu para o carro e a seu lado o potente Argicidatendo tomado nas matildeos tanto as reacutedeas quanto o chicotefoi-se atraveacutes do palaacutecio e partiu seus cavalos voaramAtravessaram velozes estradas compridas Nem marnem mesmo as aacuteguas dos rios nem os vales gramados dosmontesnem as montanhas puderam deter seus cavalos eternosque sobre todos singraram os ares profundos correndoFecirc-los parar onde estava Demeacuteter de bela coroalogo de frente do templo fragrante Quando ela a notoufoi-se correndo qual mecircnade ao longo de um monte silvosoJaacute por seu turno Perseacutefone ao ver os beliacutessimos olhosde sua matildee afastou-se de carro e cavalos num saltopara alcanccedilaacute-la e lanccedilou-se-lhe em torno ao pescoccediloabraccedilando-aMas ao reter sua filha querida no entorno das matildeosseu coraccedilatildeo desconfia de um dolo e recua em terrorLogo cessando o carinho em discurso lhe fez a perguntaldquoFilha encontrado-se ao fundo da terra tu natildeo me comestede um alimento Relata e natildeo guardes que as duas saibamospara que vinda da tua estadia com Hades horriacutevelpossas viver junto a mim e ao Cronida de nuvens escurastendo honrarias tambeacutem entre todos os outros eternosMas se comeste de novo voltando ao profundo da terratu moraraacutes por um terccedilo das Horas a cada um dos anose as outras duas ao lado de mim e dos outros eternosMas quando a terra com flores fragrantes e primaverisde toda sorte florir novamente do breu nevoentotu voltaraacutes grande espanto aos divinos e aos homens mortaisMas dize como levou para baixo do breu nevoentoe com que dolo raptou-te o potente que tudo reteacutemrdquoDisse-lhe entatildeo em resposta Perseacutefone muito venustaldquoEu para ti minha matildee vou dizer por completo a verdadeQuando a mim Hermes chegou mensageiro veloz que traz sortepara agrave presenccedila do Crocircnida pai e dos outros celestesdo Eacuterebo me retirar que me vendo com teus proacuteprios olhosapaziguasses rancor aos eternos e coacutelera horriacuteveleu de imediato saltei de alegria Mas ele em segredo

doces sementes me deu de romatilde com que me alimentassee a contragosto por meio de forccedila forccedilou-me a comecirc-lasComo levou-me por soacutelida astuacutecia do filho de Cronomeu proacuteprio pai carregando-me para o profundo da terraeu contarei e direi sobre tudo conforme me pedesTodas de fato brincaacutevamos sobre um gramado amoraacutevelFano e Leucipo assim como Electra e tambeacutem Ianteacutejunto a Melite e Iaqueacute com Rodeia e Calirroeacutecom Meloboacutesis e Tique e com Ociroeacute rosto-em-flore com Criseida Ianeira Acaste e tambeacutem Admetee Rodopeacute e Plutoacute e tambeacutem a amoraacutevel Calipsoe com Estige e Uracircnia e com Galaxaure adoraacuteveljunto de Palas guerreira e com Aacutertemis atiradoratodas brincaacutevamos de colher flores amaacuteveis nas matildeosentre o accedilafratildeo delicado e entre a iacuteris jacinto tambeacutembem como brotos de rosas e liacuterios espanto de vere de narciso que a terra gerava semelho a accedilafratildeoTudo eu colhia feliz mas a terra por baixo se abriudela saltou o senhor poderoso que tudo reteacutemque me levou para baixo da terra em seu carro douradomuito contraacuterio agrave vontade Na voz eu gritei estridoresEssa por mais que me doa te digo ser toda a verdaderdquoElas concordes em acircnimo entatildeo pelo resto do diamuito no seu coraccedilatildeo e em seu acircnimo se acalentaramcom calorosos abraccedilos cessando-se a dor em seu acircnimoMuita alegria uma a outra ofertava e tambeacutem recebiaAproximou-se-lhes Heacutecate do diadema esplendenteMuito abraccedilou a menina sagrada nascida a DemeacuteterDesde esse tempo a senhora lhe foi atendente e ministraZeus de amplo olhar que ressoa profundo enviou-lhes de nuacutencioReia de belos cabelos a fim de que agrave grei dos divinosela levasse Demeacuteter de escuro vestido Honrariaslhe prometeu quais pudesse querer entre os deuses eternose concordou que sua filha demore por cada um dos anosuma das triacuteplices partes abaixo do breu nevoentoe as outras duas ao lado da matildee e dos outros eternosDisse e a deidade natildeo desacatou as mensagens de ZeusRapidamente lanccedilou-se voando dos picos do OlimpoLogo chegou ateacute Raacuterio nutriz a mais rica das terrasantes poreacutem nesse tempo natildeo era nutriz mas inertetoda sem folhas A branca cevada encontrava-se ocultaplano que foi de Demeacuteter de esguios tornozelos Contudologo se iria cobrir com espigas compridas de trigoao florescer da estaccedilatildeo e os opiacuteparos sulcos da terralogo estariam repletos de gratildeos e de feixes de espigasLaacute sobreveio primeiro partindo do eacuteter infeacutertilMutuamente se viram contentes com acircnimo alegre

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Reia com seu diadema esplendente lhe disse o seguinteldquoVamos filhinha que Zeus de amplo olhar que ressoa profundochama-te junto da grei dos divinos Tambeacutem honrariaslhe prometeu quais puderes querer entre os deuses eternose concordou que tua filha demore por cada um dos anosuma das triacuteplices partes abaixo do breu nevoentoe as outras duas ao lado da matildee e dos outros eternosDisse cumprir-se dessarte e assentiu com a sua cabeccedilaVem minha filha Obedece o que digo De modo excessivonatildeo te enfureccedilas mais com o Cronida de nuvens escurasFaz com que cresccedilam os frutos nutrizes de pronto aos humanosrdquoDisse e Demeacuteter de bela coroa natildeo desobedeceLogo ela fez despontarem os frutos nos feacuterteis terrenosToda com folhas e flores tambeacutem a vastiacutessima terrase carregou Em seguida indo aos reis que ministram as leisela mostrou a Triptoacutelemo e para Dioacutecles ginetee para a forccedila de Eumolpo e a Celeu comandante de povosa liturgia dos ritos e a todos tambeacutem os misteacuteriosMas para forccedila de Eumolpo e a Celeu e tambeacutem a Dioacuteclesdeu ritos sacros que natildeo se transgridem nem mesmo se aprendemnem se proferem pois grande respeito aos divinos os calaProacutespero eacute aquele que os viu entre os homens que vivem na terramas incompleto quem natildeo participa dos ritos nem nuncatem bom destino morrendo debaixo do breu nevoentoLogo depois quando tudo perfez a divina entre os deusasfoi-se a caminho do Olimpo ao encontro dos outros divinosonde demoram do lado de Zeus que se apraz com trovotildeese junto agrave augusta e sagrada Muitiacutessimo proacutespero eacute quemeles soliacutecitos amam dos homens que vivem na terraLogo lhe enviam ao fogo do lar no seu grande palaacutecioPluto que aos homens mortais oferece abundacircncia e riquezaMas vamos laacute portadora da terra fragrante eleusinaParos marinha e a rochosa cidade de Antrona tambeacutemdona que cedes a luz que conduz as sazotildees Deo rainhatu e tambeacutem tua filha Perseacutefone muito venustapela canccedilatildeo meu sustento agradaacutevel soliacutecitas mandaOra de ti eu irei me lembrar e de uma outra canccedilatildeo122

122Δήμητρ᾽ ἠύκομον σεμνὴν θεόν ἄρχομ᾽ ἀείδειν αὐτὴν ἠδὲ θύγατρα τανύσφυρον ἣν Ἀιδωνεὺς ἥρπαξεν δῶκεν δὲ βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεύς νόσφιν Δήμητρος χρυσαόρου ἀγλαοκάρπου παίζουσαν κούρῃσι σὺν Ὠκεανοῦ βαθυκόλποις ἄνθεά τ᾽ αἰνυμένην ῥόδα καὶ κρόκον ἠδ᾽ ἴα καλὰ λειμῶν᾽ ἂμ μαλακὸν καὶ ἀγαλλίδας ἠδ᾽ ὑάκινθον νάρκισσόν θ᾽ ὃν φῦσε δόλον καλυκώπιδι κούρῃ Γαῖα Διὸς βουλῇσι χαριζομένη Πολυδέκτῃ θαυμαστὸν γανόωντα σέβας τό γε πᾶσιν ἰδέσθαι

ἀθανάτοις τε θεοῖς ἠδὲ θνητοῖς ἀνθρώποις τοῦ καὶ ἀπὸ ῥίζης ἑκατὸν κάρα ἐξεπεφύκει κὦζ᾽ ἥδιστ᾽ ὀδμή πᾶς τ᾽ οὐρανὸς εὐρὺς ὕπερθεν γαῖά τε πᾶσ᾽ ἐγελάσσε καὶ ἁλμυρὸν οἶδμα θαλάσσης ἣ δ᾽ ἄρα θαμβήσασ᾽ ὠρέξατο χερσὶν ἅμ᾽ ἄμφω καλὸν ἄθυρμα λαβεῖν χάνε δὲ χθὼν εὐρυάγυια Νύσιον ἂμ πεδίον τῇ ὄρουσεν ἄναξ Πολυδέγμων ἵπποις ἀθανάτοισι Κρόνου πολυώνυμος υἱός ἁρπάξας δ᾽ ἀέκουσαν ἐπὶ χρυσέοισιν ὄχοισιν ἦγ᾽ ὀλοφυρομένην ἰάχησε δ᾽ ἄρ᾽ ὄρθια φωνῇ

κεκλομένη πατέρα Κρονίδην ὕπατον καὶ ἄριστον οὐδέ τις ἀθανάτων οὐδὲ θνητῶν ἀνθρώπων ἤκουσεν φωνῆς οὐδ᾽ ἀγλαόκαρποι ἐλαῖαιdagger εἰ μὴ Περσαίου θυγάτηρ ἀταλὰ φρονέουσα ἄιεν ἐξ ἄντρου Ἑκάτη λιπαροκρήδεμνος Ἠέλιός τε ἄναξ Ὑπερίονος ἀγλαὸς υἱός κούρης κεκλομένης πατέρα Κρονίδην ὃ δὲ νόσφιν ἧστο θεῶν ἀπάνευθε πολυλλίστῳ ἐνὶ νηῷ δέγμενος ἱερὰ καλὰ παρὰ θνητῶν ἀνθρώπων τὴν δ᾽ ἀεκαζομένην ἦγεν Διὸς ἐννεσίῃσι πατροκασίγνητος Πολυσημάντωρ Πολυδέγμων ἵπποις ἀθανάτοισι Κρόνου πολυώνυμος υἱός ὄφρα μὲν οὖν γαῖάν τε καὶ οὐρανὸν ἀστερόεντα λεῦσσε θεὰ καὶ πόντον ἀγάρροον ἰχθυόεντα αὐγάς τ᾽ ἠελίου ἔτι δ᾽ ἤλπετο μητέρα κεδνὴν ὄψεσθαι καὶ φῦλα θεῶν αἰειγενετάων τόφρα οἱ ἐλπὶς ἔθελγε μέγαν νόον ἀχνυμένης περ ἤχησαν δ᾽ ὀρέων κορυφαὶ καὶ βένθεα πόντου φωνῇ ὑπ᾽ ἀθανάτῃ τῆς δ᾽ ἔκλυε πότνια μήτηρ ὀξὺ δέ μιν κραδίην ἄχος ἔλλαβεν ἀμφὶ δὲ χαίταις ἀμβροσίαις κρήδεμνα δαΐζετο χερσὶ φίλῃσι κυάνεον δὲ κάλυμμα κατ᾽ ἀμφοτέρων βάλετ᾽ ὤμων σεύατο δ᾽ ὥστ᾽ οἰωνός ἐπὶ τραφερήν τε καὶ ὑγρὴν μαιομένη τῇ δ᾽ οὔτις ἐτήτυμα μυθήσασθαι ἤθελεν οὔτε θεῶν οὔτε θνητῶν ἀνθρώπων οὔτ᾽ οἰωνῶν τις τῇ ἐτήτυμος ἄγγελος ἦλθεν ἐννῆμαρ μὲν ἔπειτα κατὰ χθόνα πότνια Δηὼ στρωφᾶτ᾽ αἰθομένας δαΐδας μετὰ χερσὶν ἔχουσα οὐδέ ποτ᾽ ἀμβροσίης καὶ νέκταρος ἡδυπότοιο πάσσατ᾽ ἀκηχεμένη οὐδὲ χρόα βάλλετο λουτροῖς ἀλλ᾽ ὅτε δὴ δεκάτη οἱ ἐπήλυθε φαινολὶς ἠώς ἤντετό οἱ Ἑκάτη σέλας ἐν χείρεσσιν ἔχουσα καί ῥά οἱ ἀγγελέουσα ἔπος φάτο φώνησέν τεπότνια Δημήτηρ ὡρηφόρε ἀγλαόδωρε τίς θεῶν οὐρανίων ἠὲ θνητῶν ἀνθρώπων ἥρπασε Περσεφόνην καὶ σὸν φίλον ἤκαχε θυμόν φωνῆς γὰρ ἤκουσ᾽ ἀτὰρ οὐκ ἴδον ὀφθαλμοῖσιν ὅστις ἔην σοὶ δ᾽ ὦκα λέγω νημερτέα πάνταὣς ἄρ᾽ ἔφη Ἑκάτη τὴν δ᾽ οὐκ ἠμείβετο μύθῳ Ῥείης ἠυκόμου θυγάτηρ ἀλλ᾽ ὦκα σὺν αὐτῇ ἤιξ᾽ αἰθομένας δαΐδας μετὰ χερσὶν ἔχουσα Ἠέλιον δ᾽ ἵκοντο θεῶν σκοπὸν ἠδὲ καὶ ἀνδρῶν στὰν δ᾽ ἵππων προπάροιθε καὶ εἴρετο δῖα θεάωνἠέλι᾽ αἴδεσσαί με θεὰν σύ περ εἴ ποτε δή σευ ἢ ἔπει ἢ ἔργῳ κραδίην καὶ θυμὸν ἴηνα κούρην τὴν ἔτεκον γλυκερὸν θάλος εἴδεϊ κυδρήν τῆς ἀδινὴν ὄπ᾽ ἄκουσα δι᾽ αἰθέρος ἀτρυγέτοιο ὥστε βιαζομένης ἀτὰρ οὐκ ἴδον ὀφθαλμοῖσιν ἀλλά σὺ γὰρ δὴ πᾶσαν ἐπὶ χθόνα καὶ κατὰ πόντον αἰθέρος ἐκ δίης καταδέρκεαι ἀκτίνεσσι νημερτέως μοι ἔνισπε φίλον τέκος εἴ που ὄπωπας ὅστις νόσφιν ἐμεῖο λαβὼν ἀέκουσαν ἀνάγκῃ οἴχεται ἠὲ θεῶν ἢ καὶ θνητῶν ἀνθρώπωνὣς φάτο τὴν δ᾽ Ὑπεριονίδης ἠμείβετο μύθῳῬείης ἠυκόμου θύγατερ Δήμητερ ἄνασσα εἰδήσεις δὴ γὰρ μέγα σ᾽ ἅζομαι ἠδ᾽ ἐλεαίρω ἀχνυμένην περὶ παιδὶ τανυσφύρῳ οὐδέ τις ἄλλος αἴτιος ἀθανάτων εἰ μὴ νεφεληγερέτα Ζεύς

ὅς μιν ἔδωκ᾽ Ἀίδῃ θαλερὴν κεκλῆσθαι ἄκοιτιν αὐτοκασιγνήτῳ ὃ δ᾽ ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα ἁρπάξας ἵπποισιν ἄγεν μεγάλα ἰάχουσαν ἀλλά θεά κατάπαυε μέγαν γόον οὐδέ τί σε χρὴ μὰψ αὔτως ἄπλητον ἔχειν χόλον οὔ τοι ἀεικὴς γαμβρὸς ἐν ἀθανάτοις Πολυσημάντωρ Ἀιδωνεύς αὐτοκασίγνητος καὶ ὁμόσπορος ἀμφὶ δὲ τιμὴν ἔλλαχεν ὡς τὰ πρῶτα διάτριχα δασμὸς ἐτύχθη τοῖς μεταναιετάειν τῶν ἔλλαχε κοίρανος εἶναιὣς εἰπὼν ἵπποισιν ἐκέκλετο τοὶ δ᾽ ὑπ᾽ ὀμοκλῆς ῥίμφα φέρον θοὸν ἅρμα τανύπτεροι ὥστ᾽ οἰωνοί Τὴν δ᾽ ἄχος αἰνότερον καὶ κύντερον ἵκετο θυμόν χωσαμένη δὴ ἔπειτα κελαινεφέι Κρονίωνι νοσφισθεῖσα θεῶν ἀγορὴν καὶ μακρὸν Ὄλυμπον ᾤχετ᾽ ἐπ᾽ ἀνθρώπων πόλιας καὶ πίονα ἔργα εἶδος ἀμαλδύνουσα πολὺν χρόνον οὐδέ τις ἀνδρῶν εἰσορόων γίγνωσκε βαθυζώνων τε γυναικῶν πρίν γ᾽ ὅτε δὴ Κελεοῖο δαΐφρονος ἵκετο δῶμα ὃς τότ᾽ Ἐλευσῖνος θυοέσσης κοίρανος ἦεν ἕζετο δ᾽ ἐγγὺς ὁδοῖο φίλον τετιημένη ἦτορ Παρθενίῳ φρέατι ὅθεν ὑδρεύοντο πολῖται ἐν σκιῇ αὐτὰρ ὕπερθε πεφύκει θάμνος ἐλαίης γρηὶ παλαιγενέι ἐναλίγκιος ἥτε τόκοιο εἴργηται δώρων τε φιλοστεφάνου Ἀφροδίτης οἷαί τε τροφοί εἰσι θεμιστοπόλων βασιλήων παίδων καὶ ταμίαι κατὰ δώματα ἠχήεντα τὴν δὲ ἴδον Κελεοῖο Ἐλευσινίδαο θύγατρες ἐρχόμεναι μεθ᾽ ὕδωρ εὐήρυτον ὄφρα φέροιεν κάλπισι χαλκείῃσι φίλα πρὸς δώματα πατρός τέσσαρες ὥστε θεαί κουρήιον ἄνθος ἔχουσαι Καλλιδίκη καὶ Κλεισιδίκη Δημώ τ᾽ ἐρόεσσα Καλλιθόη θ᾽ ἣ τῶν προγενεστάτη ἦεν ἁπασῶν οὐδ᾽ ἔγνον χαλεποὶ δὲ θεοὶ θνητοῖσιν ὁρᾶσθαι ἀγχοῦ δ᾽ ἱστάμεναι ἔπεα πτερόεντα προσηύδωντίς πόθεν ἐσσί γρῆυ παλαιγενέων ἀνθρώπων τίπτε δὲ νόσφι πόληος ἀπέστιχες οὐδὲ δόμοισι πίλνασαι ἔνθα γυναῖκες ἀνὰ μέγαρα σκιόεντα τηλίκαι ὡς σύ περ ὧδε καὶ ὁπλότεραι γεγάασιν αἵ κέ σε φίλωνται ἠμὲν ἔπει ἠδὲ καὶ ἔργῳὣς ἔφαν ἣ δ᾽ ἐπέεσσιν ἀμείβετο πότνα θεάων

τέκνα φίλ᾽ αἵ τινές ἐστε γυναικῶν θηλυτεράων χαίρετ᾽ ἐγὼ δ᾽ ὑμῖν μυθήσομαι οὔ τοι ἀεικὲς ὑμῖν εἰρομένῃσιν ἀληθέα μυθήσασθαι Δωσὼ ἐμοί γ᾽ ὄνομ᾽ ἐστί τὸ γὰρ θέτο πότνια μήτηρ νῦν αὖτε Κρήτηθεν ἐπ᾽ εὐρέα νῶτα θαλάσσης ἤλυθον οὐκ ἐθέλουσα βίῃ δ᾽ ἀέκουσαν ἀνάγκῃ ἄνδρες ληιστῆρες ἀπήγαγον οἳ μὲν ἔπειτα νηὶ θοῇ Θόρικόνδε κατέσχεθον ἔνθα γυναῖκες ἠπείρου ἐπέβησαν ἀολλέες ἠδὲ καὶ αὐτοί δεῖπνόν τ᾽ ἐπηρτύνοντο παρὰ πρυμνήσια νηός ἀλλ᾽ ἐμοὶ οὐ δόρποιο μελίφρονος ἤρατο θυμός λάθρη δ᾽ ὁρμηθεῖσα δι᾽ ἠπείροιο μελαίνης φεύγου ὑπερφιάλους σημάντορας ὄφρα κε μή με ἀπριάτην περάσαντες ἐμῆς ἀποναίατο τιμῆς οὕτω δεῦρ᾽ ἱκόμην ἀλαλημένη οὐδέ τι οἶδα ἥ τις δὴ γαῖ᾽ ἐστι καὶ οἵ τινες ἐγγεγάασιν ἀλλ᾽ ὑμῖν μὲν πάντες Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχοντες

202 203

δοῖεν κουριδίους ἄνδρας καὶ τέκνα τεκέσθαι ὡς ἐθέλουσι τοκῆες ἐμὲ δ᾽ αὖτ᾽ οἰκτείρατε κοῦραι [τοῦτο δέ μοι σαφέως ὑποθήκατε ὄφρα πύθωμαι] προφρονέως φίλα τέκνα τέων πρὸς δώμαθ᾽ ἵκωμαι ἀνέρος ἠδὲ γυναικός ἵνα σφίσιν ἐργάζωμαι πρόφρων οἷα γυναικὸς ἀφήλικος ἔργα τέτυκται καὶ κεν παῖδα νεογνὸν ἐν ἀγκοίνῃσιν ἔχουσα καλὰ τιθηνοίμην καὶ δώματα τηρήσαιμι καί κε λέχος στορέσαιμι μυχῷ θαλάμων εὐπήκτων δεσπόσυνον καί κ᾽ ἔργα διδασκήσαιμι γυναῖκαςφῆ ῥα θεά τὴν δ᾽ αὐτίκ᾽ ἀμείβετο παρθένος ἀδμής Καλλιδίκη Κελεοῖο θυγατρῶν εἶδος ἀρίστημαῖα θεῶν μὲν δῶρα καὶ ἀχνύμενοί περ ἀνάγκῃ τέτλαμεν ἄνθρωποι δὴ γὰρ πολὺ φέρτεροί εἰσι ταῦτα δέ τοι σαφέως ὑποθήσομαι ἠδ᾽ ὀνομήνω ἀνέρας οἷσιν ἔπεστι μέγα κράτος ἐνθάδε τιμῆς δήμου τε προὔχουσιν ἰδὲ κρήδεμνα πόληος εἰρύαται βουλῇσι καὶ ἰθείῃσι δίκῃσιν ἠμὲν Τριπτολέμου πυκιμήδεος ἠδὲ Διόκλου ἠδὲ Πολυξείνου καὶ ἀμύμονος Εὐμόλποιο καὶ Δολίχου καὶ πατρὸς ἀγήνορος ἡμετέροιο τῶν πάντων ἄλοχοι κατὰ δώματα πορσαίνουσι τάων οὐκ ἄν τίς σε κατὰ πρώτιστον ὀπωπὴν εἶδος ἀτιμήσασα δόμων ἀπονοσφίσσειεν ἀλλά σε δέξονται δὴ γὰρ θεοείκελός ἐσσι εἰ δ᾽ ἐθέλεις ἐπίμεινον ἵνα πρὸς δώματα πατρὸς ἔλθωμεν καὶ μητρὶ βαθυζώνῳ Μετανείρῃ εἴπωμεν τάδε πάντα διαμπερές αἴ κέ σ᾽ ἀνώγῃ ἡμέτερόνδ᾽ ἰέναι μηδ᾽ ἄλλων δώματ᾽ ἐρευνᾶν τηλύγετος δέ οἱ υἱὸς ἐνὶ μεγάρῳ εὐπήκτῳ ὀψίγονος τρέφεται πολυεύχετος ἀσπάσιός τε εἰ τόν γ᾽ ἐκθρέψαιο καὶ ἥβης μέτρον ἵκοιτο ῥεῖά κέ τίς σε ἰδοῦσα γυναικῶν θηλυτεράων ζηλώσαι τόσα κέν τοι ἀπὸ θρεπτήρια δοίηὣς ἔφαθ᾽ ἣ δ᾽ ἐπένευσε καρήατι ταὶ δὲ φαεινὰ πλησάμεναι ὕδατος φέρον ἄγγεα κυδιάουσαι ῥίμφα δὲ πατρὸς ἵκοντο μέγαν δόμον ὦκα δὲ μητρὶ ἔννεπον ὡς εἶδόν τε καὶ ἔκλυον ἣ δὲ μάλ᾽ ὦκα ἐλθούσας ἐκέλευε καλεῖν ἐπ᾽ ἀπείρονι μισθῷ αἳ δ᾽ ὥστ᾽ ἢ ἔλαφοι ἢ πόρτιες εἴαρος ὥρῃ ἅλλοντ᾽ ἂν λειμῶνα κορεσσάμεναι φρένα φορβῇ ὣς αἳ ἐπισχόμεναι ἑανῶν πτύχας ἱμεροέντων ἤιξαν κοίλην κατ᾽ ἀμαξιτόν ἀμφὶ δὲ χαῖται ὤμοις ἀίσσοντο κροκηίῳ ἄνθει ὁμοῖαι τέτμον δ᾽ ἐγγὺς ὁδοῦ κυδρὴν θεόν ἔνθα πάρος περ κάλλιπον αὐτὰρ ἔπειτα φίλου πρὸς δώματα πατρὸς ἡγεῦνθ᾽ ἣ δ᾽ ἄρ᾽ ὄπισθε φίλον τετιημένη ἦτορ στεῖχε κατὰ κρῆθεν κεκαλυμμένη ἀμφὶ δὲ πέπλος κυάνεος ῥαδινοῖσι θεᾶς ἐλελίζετο ποσσίν αἶψα δὲ δώμαθ᾽ ἵκοντο διοτρεφέος Κελεοῖο βὰν δὲ δι᾽ αἰθούσης ἔνθα σφίσι πότνια μήτηρ ἧστο παρὰ σταθμὸν τέγεος πύκα ποιητοῖο παῖδ᾽ ὑπὸ κόλπῳ ἔχουσα νέον θάλος αἳ δὲ πὰρ αὐτὴν ἔδραμον ἣ δ᾽ ἄρ᾽ ἐπ᾽ οὐδὸν ἔβη ποσὶ καὶ ῥα μελάθρου κῦρε κάρη πλῆσεν δὲ θύρας σέλαος θείοιο τὴν δ᾽ αἰδώς τε σέβας τε ἰδὲ χλωρὸν δέος εἷλεν εἶξε δέ οἱ κλισμοῖο καὶ ἑδριάασθαι ἄνωγεν ἀλλ᾽ οὐ Δημήτηρ ὡρηφόρος ἀγλαόδωρος

ἤθελεν ἑδριάασθαι ἐπὶ κλισμοῖο φαεινοῦ ἀλλ᾽ ἀκέουσ᾽ ἀνέμιμνε κατ᾽ ὄμματα καλὰ βαλοῦσα πρίν γ᾽ ὅτε δή οἱ ἔθηκεν Ἰάμβη κέδν᾽ εἰδυῖα πηκτὸν ἕδος καθύπερθε δ᾽ ἐπ᾽ ἀργύφεον βάλε κῶας ἔνθα καθεζομένη προκατέσχετο χερσὶ καλύπτρην δηρὸν δ᾽ ἄφθογγος τετιημένη ἧστ᾽ ἐπὶ δίφρου οὐδέ τιν᾽ οὔτ᾽ ἔπεϊ προσπτύσσετο οὔτε τι ἔργῳ ἀλλ᾽ ἀγέλαστος ἄπαστος ἐδητύος ἠδὲ ποτῆτος ἧστο πόθῳ μινύθουσα βαθυζώνοιο θυγατρός πρίν γ᾽ ὅτε δὴ χλεύῃς μιν Ἰάμβη κέδν᾽ εἰδυῖα πολλὰ παρασκώπτουσ᾽ ἐτρέψατο πότνιαν ἁγνήν μειδῆσαι γελάσαι τε καὶ ἵλαον σχεῖν θυμόν ἣ δή οἱ καὶ ἔπειτα μεθύστερον εὔαδεν ὀργαῖς τῇ δὲ δέπας Μετάνειρα δίδου μελιηδέος οἴνου πλήσασ᾽ ἣ δ᾽ ἀνένευσ᾽ οὐ γὰρ θεμιτόν οἱ ἔφασκε πίνειν οἶνον ἐρυθρόν ἄνωγε δ᾽ ἄρ᾽ ἄλφι καὶ ὕδωρ δοῦναι μίξασαν πιέμεν γλήχωνι τερείνῃ ἣ δὲ κυκεῶ τεύξασα θεᾷ πόρεν ὡς ἐκέλευε δεξαμένη δ᾽ ὁσίης ἕνεκεν πολυπότνια Δηώ τῇσι δὲ μύθων ἦρχεν ἐύζωνος Μετάνειραχαῖρε γύναι ἐπεὶ οὔ σε κακῶν ἄπ᾽ ἔολπα τοκήων ἔμμεναι ἀλλ᾽ ἀγαθῶν ἐπί τοι πρέπει ὄμμασιν αἰδὼς καὶ χάρις ὡς εἴ πέρ τε θεμιστοπόλων βασιλήων ἀλλὰ θεῶν μὲν δῶρα καὶ ἀχνύμενοί περ ἀνάγκῃ τέτλαμεν ἄνθρωποι ἐπὶ γὰρ ζυγὸς αὐχένι κεῖται νῦν δ᾽ ἐπεὶ ἵκεο δεῦρο παρέσσεται ὅσσα τ᾽ ἐμοί περ παῖδα δέ μοι τρέφε τόνδε τὸν ὀψίγονον καὶ ἄελπτον ὤπασαν ἀθάνατοι πολυάρητος δέ μοί ἐστιν εἰ τόν γε θρέψαιο καὶ ἥβης μέτρον ἵκοιτο ῥεῖά κέ τίς σε ἰδοῦσα γυναικῶν θηλυτεράων ζηλώσαι τόσα κέν τοι ἀπὸ θρεπτήρια δοίηντὴν δ᾽ αὖτε προσέειπεν ἐυστέφανος Δημήτηρκαὶ σύ γύναι μάλα χαῖρε θεοὶ δέ τοι ἐσθλὰ πόροιεν παῖδα δέ τοι πρόφρων ὑποδέξομαι ὥς με κελεύεις θρέψω κοὔ μιν ἔολπα κακοφραδίῃσι τιθήνης οὔτ᾽ ἄρ᾽ ἐπηλυσίη δηλήσεται οὔθ᾽ ὑποτάμνον οἶδα γὰρ ἀντίτομον μέγα φέρτερον ὑλοτόμοιο οἶδα δ᾽ ἐπηλυσίης πολυπήμονος ἐσθλὸν ἐρυσμόν

ὣς ἄρα φωνήσασα θυώδεϊ δέξατο κόλπῳ χείρεσσ᾽ ἀθανάτῃσι γεγήθει δὲ φρένα μήτηρ ὣς ἣ μὲν Κελεοῖο δαΐφρονος ἀγλαὸν υἱὸν Δημοφόωνθ᾽ ὃν ἔτικτεν ἐύζωνος Μετάνειρα ἔτρεφεν ἐν μεγάροις ὃ δ᾽ ἀέξετο δαίμονι ἶσος οὔτ᾽ οὖν σῖτον ἔδων οὐ θησάμενος [γάλα μητρὸς ἠματίη μὲν γὰρ καλλιστέφανος] Δημήτηρ χρίεσκ᾽ ἀμβροσίῃ ὡσεὶ θεοῦ ἐκγεγαῶτα ἡδὺ καταπνείουσα καὶ ἐν κόλποισιν ἔχουσα νύκτας δὲ κρύπτεσκε πυρὸς μένει ἠύτε δαλὸν λάθρα φίλων γονέων τοῖς δὲ μέγα θαῦμ᾽ ἐτέτυκτο ὡς προθαλὴς τελέθεσκε θεοῖσι γὰρ ἄντα ἐῴκει καί κέν μιν ποίησεν ἀγήρων τ᾽ ἀθάνατόν τε εἰ μὴ ἄρ᾽ ἀφραδίῃσιν ἐύζωνος Μετάνειρα νύκτ᾽ ἐπιτηρήσασα θυώδεος ἐκ θαλάμοιο σκέψατο κώκυσεν δὲ καὶ ἄμφω πλήξατο μηρὼ δείσασ᾽ ᾧ περὶ παιδὶ καὶ ἀάσθη μέγα θυμῷ καί ῥ᾽ ὀλοφυρομένη ἔπεα πτερόεντα προσηύδατέκνον Δημοφόων ξείνη σε πυρὶ ἔνι πολλῷ

κρύπτει ἐμοὶ δὲ γόον καὶ κήδεα λυγρὰ τίθησινὣς φάτ᾽ ὀδυρομένη τῆς δ᾽ ἄιε δῖα θεάων τῇ δὲ χολωσαμένη καλλιστέφανος Δημήτηρ παῖδα φίλον τὸν ἄελπτον ἐνὶ μεγάροισιν ἔτικτε χείρεσσ᾽ ἀθανάτῃσιν ἀπὸ ἕθεν ἧκε πέδονδε ἐξανελοῦσα πυρός θυμῷ κοτέσασα μάλ᾽ αἰνῶς καί ῥ᾽ ἄμυδις προσέειπεν ἐύζωνον Μετάνειραννήιδες ἄνθρωποι καὶ ἀφράδμονες οὔτ᾽ ἀγαθοῖο αἶσαν ἐπερχομένου προγνώμεναι οὔτε κακοῖο καὶ σὺ γὰρ ἀφραδίῃσι τεῇς νήκεστον ἀάσθης ἴστω γὰρ θεῶν ὅρκος ἀμείλικτον Στυγὸς ὕδωρ ἀθάνατόν κέν τοι καὶ ἀγήραον ἤματα πάντα παῖδα φίλον ποίησα καὶ ἄφθιτον ὤπασα τιμήν νῦν δ᾽ οὐκ ἔσθ᾽ ὥς κεν θάνατον καὶ κῆρας ἀλύξαι τιμὴ δ᾽ ἄφθιτος αἰὲν ἐπέσσεται οὕνεκα γούνων ἡμετέρων ἐπέβη καὶ ἐν ἀγκοίνῃσιν ἴαυσεν ὥρῃσιν δ᾽ ἄρα τῷ γε περιπλομένων ἐνιαυτῶν παῖδες Ἐλευσινίων πόλεμον καὶ φύλοπιν αἰνὴν αἰὲν ἐν ἀλλήλοισιν συνάξουσ᾽ ἤματα πάντα εἰμὶ δὲ Δημήτηρ τιμάοχος ἥτε μέγιστον ἀθανάτοις θνητοῖς τ᾽ ὄνεαρ καὶ χάρμα τέτυκται ἀλλ᾽ ἄγε μοι νηόν τε μέγαν καὶ βωμὸν ὑπ᾽ αὐτῷ τευχόντων πᾶς δῆμος ὑπαὶ πόλιν αἰπύ τε τεῖχος Καλλιχόρου καθύπερθεν ἐπὶ προὔχοντι κολωνῷ ὄργια δ᾽ αὐτὴ ἐγὼν ὑποθήσομαι ὡς ἂν ἔπειτα εὐαγέως ἔρδοντες ἐμὸν νόον ἱλάσκοισθεὣς εἰποῦσα θεὰ μέγεθος καὶ εἶδος ἄμειψε γῆρας ἀπωσαμένη περί τ᾽ ἀμφί τε κάλλος ἄητο ὀδμὴ δ᾽ ἱμερόεσσα θυηέντων ἀπὸ πέπλων σκίδνατο τῆλε δὲ φέγγος ἀπὸ χροὸς ἀθανάτοιο λάμπε θεᾶς ξανθαὶ δὲ κόμαι κατενήνοθεν ὤμους αὐγῆς δ᾽ ἐπλήσθη πυκινὸς δόμος ἀστεροπῆς ὥς βῆ δὲ διὲκ μεγάρων τῆς δ᾽ αὐτίκα γούνατ᾽ ἔλυντο δηρὸν δ᾽ ἄφθογγος γένετο χρόνον οὐδέ τι παιδὸς μνήσατο τηλυγέτοιο ἀπὸ δαπέδου ἀνελέσθαι τοῦ δὲ κασίγνηται φωνὴν ἐσάκουσαν ἐλεινήν κὰδ δ᾽ ἄρ᾽ ἀπ᾽ εὐστρώτων λεχέων θόρον ἣ μὲν ἔπειτα παῖδ᾽ ἀνὰ χερσὶν ἑλοῦσα ἑῷ ἐγκάτθετο κόλπῳ ἣ δ᾽ ἄρα πῦρ ἀνέκαι᾽ ἣ δ᾽ ἔσσυτο πόσσ᾽ ἁπαλοῖσι μητέρ᾽ ἀναστήσουσα θυώδεος ἐκ θαλάμοιο ἀγρόμεναι δέ μιν ἀμφὶς ἐλούεον ἀσπαίροντα ἀμφαγαπαζόμεναι τοῦ δ᾽ οὐ μειλίσσετο θυμός χειρότεραι γὰρ δή μιν ἔχον τροφοὶ ἠδὲ τιθῆναι αἳ μὲν παννύχιαι κυδρὴν θεὸν ἱλάσκοντο δείματι παλλόμεναι ἅμα δ᾽ ἠοῖ φαινομένηφιν εὐρυβίῃ Κελεῷ νημερτέα μυθήσαντο ὡς ἐπέτελλε θεά καλλιστέφανος Δημήτηρ αὐτὰρ ὅ γ᾽ εἰς ἀγορὴν καλέσας πολυπείρονα λαὸν ἤνωγ᾽ ἠυκόμῳ Δημήτερι πίονα νηὸν ποιῆσαι καὶ βωμὸν ἐπὶ προὔχοντι κολωνῷ οἳ δὲ μάλ᾽ αἶψ᾽ ἐπίθοντο καὶ ἔκλυον αὐδήσαντος τεῦχον δ᾽ ὡς ἐπέτελλ᾽ ὃ δ᾽ ἀέξετο δαίμονι ἶσος αὐτὰρ ἐπεὶ τέλεσαν καὶ ἐρώησαν καμάτοιο βάν ῥ᾽ ἴμεν οἴκαδ᾽ ἕκαστος ἀτὰρ ξανθὴ Δημήτηρ ἔνθα καθεζομένη μακάρων ἀπὸ νόσφιν ἁπάντων μίμνε πόθῳ μινύθουσα βαθυζώνοιο θυγατρός αἰνότατον δ᾽ ἐνιαυτὸν ἐπὶ χθόνα πουλυβότειραν ποίησ᾽ ἀνθρώποις καὶ κύντατον οὐδέ τι γαῖα

σπέρμ᾽ ἀνίει κρύπτεν γὰρ ἐυστέφανος Δημήτηρ πολλὰ δὲ καμπύλ᾽ ἄροτρα μάτην βόες εἷλκον ἀρούραις πολλὸν δὲ κρῖ λευκὸν ἐτώσιον ἔμπεσε γαίῃ καί νύ κε πάμπαν ὄλεσσε γένος μερόπων ἀνθρώπων λιμοῦ ὑπ᾽ ἀργαλέης γεράων τ᾽ ἐρικυδέα τιμὴν καὶ θυσιῶν ἤμερσεν Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχοντας εἰ μὴ Ζεὺς ἐνόησεν ἑῷ τ᾽ ἐφράσσατο θυμῷ Ἶριν δὲ πρῶτον χρυσόπτερον ὦρσε καλέσσαι Δήμητρ᾽ ἠύκομον πολυήρατον εἶδος ἔχουσαν ὣς ἔφαθ᾽ ἣ δὲ Ζηνὶ κελαινεφέι Κρονίωνι πείθετο καὶ τὸ μεσηγὺ διέδραμεν ὦκα πόδεσσιν ἵκετο δὲ πτολίεθρον Ἐλευσῖνος θυοέσσης εὗρεν δ᾽ ἐν νηῷ Δημήτερα κυανόπεπλον καί μιν φωνήσασ᾽ ἔπεα πτερόεντα προσηύδαΔήμητερ καλέει σε πατὴρ Ζεὺς ἄφθιτα εἰδὼς ἐλθέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν αἰειγενετάων ἄλλ᾽ ἴθι μηδ᾽ ἀτέλεστον ἐμὸν ἔπος ἐκ Διὸς ἔστωὣς φάτο λισσομένη τῇ δ᾽ οὐκ ἐπεπείθετο θυμός αὖτις ἔπειτα πατὴρ μάκαρας θεοὺς αἰὲν ἐόντας πάντας ἐπιπροΐαλλεν ἀμοιβηδὶς δὲ κιόντες κίκλησκον καὶ πολλὰ δίδον περικαλλέα δῶρα τιμάς θ᾽ daggerἅς κ᾽ ἐθέλοιτοdagger μετ᾽ ἀθανάτοισιν ἑλέσθαι ἀλλ᾽ οὔτις πεῖσαι δύνατο φρένας οὐδὲ νόημα θυμῷ χωομένης στερεῶς δ᾽ ἠναίνετο μύθους οὐ μὲν γάρ ποτ᾽ ἔφασκε θυώδεος Οὐλύμποιο πρίν γ᾽ ἐπιβήσεσθαι οὐ πρὶν γῆς καρπὸν ἀνήσειν πρὶν ἴδοι ὀφθαλμοῖσιν ἑὴν εὐώπιδα κούρην αὐτὰρ ἐπεὶ τό γ᾽ ἄκουσε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεύς εἰς Ἔρεβος πέμψε χρυσόρραπιν Ἀργειφόντην ὄφρ᾽ Ἀίδην μαλακοῖσι παραιφάμενος ἐπέεσσιν ἁγνὴν Περσεφόνειαν ὑπὸ ζόφου ἠερόεντος ἐς φάος ἐξαγάγοι μετὰ δαίμονας ὄφρα ἑ μήτηρ ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα μεταλήξειε χόλοιο Ἑρμῆς δ᾽ οὐκ ἀπίθησεν ἄφαρ δ᾽ ὑπὸ κεύθεα γαίης ἐσσυμένως κατόρουσε λιπὼν ἕδος Οὐλύμποιο τέτμε δὲ τόν γε ἄνακτα δόμων ἔντοσθεν ἐόντα ἥμενον ἐν λεχέεσσι σὺν αἰδοίῃ παρακοίτι πόλλ᾽ ἀεκαζομένῃ μητρὸς πόθῳ ἣ δ᾽ ἀποτηλοῦ ἔργοις θεῶν μακάρων [δεινὴν] μητίσετο βουλήν ἀγχοῦ δ᾽ ἱστάμενος προσέφη κρατὺς ἈργειφόντηςἍιδη κυανοχαῖτα καταφθιμένοισιν ἀνάσσων Ζεύς με πατὴρ ἤνωγεν ἀγαυὴν Περσεφόνειαν ἐξαγαγεῖν Ἐρέβευσφι μετὰ σφέας ὄφρα ἑ μήτηρ ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα χόλου καὶ μήνιος αἰνῆς ἀθανάτοις λήξειεν ἐπεὶ μέγα μήδεται ἔργον φθῖσαι φῦλ᾽ ἀμενηνὰ χαμαιγενέων ἀνθρώπων σπέρμ᾽ ὑπὸ γῆς κρύπτουσα καταφθινύθουσα δὲ τιμὰς ἀθανάτων ἣ δ᾽ αἰνὸν ἔχει χόλον οὐδὲ θεοῖσι μίσγεται ἀλλ᾽ ἀπάνευθε θυώδεος ἔνδοθι νηοῦ ἧσται Ἐλευσῖνος κραναὸν πτολίεθρον ἔχουσαὣς φάτο μείδησεν δὲ ἄναξ ἐνέρων Ἀιδωνεὺς ὀφρύσιν οὐδ᾽ ἀπίθησε Διὸς βασιλῆος ἐφετμῇς ἐσσυμένως δ᾽ ἐκέλευσε δαΐφρονι Περσεφονείῃἔρχεο Περσεφόνη παρὰ μητέρα κυανόπεπλον ἤπιον ἐν στήθεσσι μένος καὶ θυμὸν ἔχουσα μηδέ τι δυσθύμαινε λίην περιώσιον ἄλλων οὔ τοι ἐν ἀθανάτοισιν ἀεικὴς ἔσσομ᾽ ἀκοίτης αὐτοκασίγνητος πατρὸς Διός ἔνθα δ᾽ ἐοῦσα

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δεσπόσσεις πάντων ὁπόσα ζώει τε καὶ ἕρπει τιμὰς δὲ σχήσησθα μετ᾽ ἀθανάτοισι μεγίστας τῶν δ᾽ ἀδικησάντων τίσις ἔσσεται ἤματα πάντα οἵ κεν μὴ θυσίῃσι τεὸν μένος ἱλάσκωνται εὐαγέως ἔρδοντες ἐναίσιμα δῶρα τελοῦντεςὣς φάτο γήθησεν δὲ περίφρων Περσεφόνεια καρπαλίμως δ᾽ ἀνόρουσ᾽ ὑπὸ χάρματος αὐτὰρ ὅ γ᾽ αὐτὸς ῥοιῆς κόκκον ἔδωκε φαγεῖν μελιηδέα λάθρῃ ἀμφὶ ἓ νωμήσας ἵνα μὴ μένοι ἤματα πάντα αὖθι παρ᾽ αἰδοίῃ Δημήτερι κυανοπέπλῳ ἵππους δὲ προπάροιθεν ὑπὸ χρυσέοισιν ὄχεσφιν ἔντυεν ἀθανάτους Πολυσημάντωρ Ἀιδωνευς ἣ δ᾽ ὀχέων ἐπέβη πάρα δὲ κρατὺς Ἀργειφόντης ἡνία καὶ μάστιγα λαβὼν μετὰ χερσὶ φίλῃσι σεῦε διὲκ μεγάρων τὼ δ᾽ οὐκ ἀέκοντε πετέσθην ῥίμφα δὲ μακρὰ κέλευθα διήνυσαν οὐδὲ θάλασσα οὔθ᾽ ὕδωρ ποταμῶν οὔτ᾽ ἄγκεα ποιήεντα ἵππων ἀθανάτων οὔτ᾽ ἄκριες ἔσχεθον ὁρμήν ἀλλ᾽ ὑπὲρ αὐτάων βαθὺν ἠέρα τέμνον ἰόντες στῆσε δ᾽ ἄγων ὅθι μίμνεν ἐυστέφανος Δημήτηρ νηοῖο προπάροιθε θυώδεος ἣ δὲ ἰδοῦσα ἤιξ᾽ ἠύτε μαινὰς ὄρος κάτα δάσκιον ὕλῃ Περσεφόνη δ᾽ ἑτέρ[ωθεν ἐπεὶ ἴδεν ὄμματα καλὰ] μητρὸς ἑῆς κατ᾽ [ἄρ᾽ ἥ γ᾽ ὄχεα προλιποῦσα καὶ ἵππους] ἆλτο θέει[ν δειρῇ δέ οἱ ἔμπεσε ἀμφιχυθεῖσα] τῇ δὲ [φίλην ἔτι παῖδα ἑῇς μετὰ χερσὶν ἐχούσῃ] α[ἶψα δόλον θυμός τιν᾽ ὀίσατο τρέσσε δ᾽ ἄρ᾽ αἰνῶς] παυομ[ένη φιλότητος ἄφαρ δ᾽ ἐρεείνετο μύθῳ]τέκνον μή ῥά τι μοι σ[ύ γε πάσσαο νέρθεν ἐοῦσα] βρώμης ἐξαύδα μ[ὴ κεῦθ᾽ ἵνα εἴδομεν ἄμφω] ὣς μὲν γάρ κεν ἐοῦσα π[αρὰ στυγεροῦ Ἀίδαο] καὶ παρ᾽ ἐμοὶ καὶ πατρὶ κελ[αινεφέϊ Κρονίωνι] ναιετάοις πάντεσσι τετιμ[ένη ἀθανάτοι]σιν εἰ δ᾽ ἐπάσω πάλιν αὖτις ἰοῦσ᾽ ὑπ[ὸ κεύθεσι γαίης] οἰκήσεις ὡρέων τρίτατον μέρ[ος εἰς ἐνιαυτόν] τὰς δὲ δύω παρ᾽ ἐμοί τε καὶ [ἄλλοις ἀθανά]τοισιν ὁππότε δ᾽ ἄνθεσι γαῖ᾽ εὐώδε[σιν] εἰαρινο[ῖσι] παντοδαποῖς θάλλῃ τόθ᾽ ὑπὸ ζόφου ἠερόεντος αὖτις ἄνει μέγα θαῦμα θεοῖς θνητοῖς τ᾽ ἀνθρώποις [εἶπε δὲ πῶς σ᾽ ἥρπαξεν ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα] καὶ τίνι σ᾽ ἐξαπάτησε δόλῳ κρατερὸς Πολυδέγμωντὴν δ᾽ αὖ Περσεφόνη περικαλλὴς ἀντίον ηὔδατοιγὰρ ἐγώ τοι μῆτερ ἐρέω νημερτέα πάντα εὖτέ μοι Ἑρμῆς ἦλθ᾽ ἐριούνιος ἄγγελος ὠκὺς πὰρ πατέρος Κρονιδαο καὶ ἄλλων Οὐρανιώνων ἐλθεῖν ἐξ Ἐρέβευς ἵνα ὀφθαλμοῖσιν ἰδοῦσα λήξαις ἀθανάτοισι χόλου καὶ μήνιος αἰνῆς αὐτίκ᾽ ἐγὼν ἀνόρουσ᾽ ὑπὸ χάρματος αὐτὰρ ὃ λάθρῃ ἔμβαλέ μοι ῥοιῆς κόκκον μελιηδέ᾽ ἐδωδήν ἄκουσαν δὲ βίῃ με προσηνάγκασσε πάσασθαι ὡς δέ μ᾽ ἀναρπάξας Κρονίδεω πυκινὴν διὰ μῆτιν ᾤχετο πατρὸς ἐμοῖο φέρων ὑπὸ κεύθεα γαίης ἐξερέω καὶ πάντα διίξομαι ὡς ἐρεείνεις ἡμεῖς μὲν μάλα πᾶσαι ἀν᾽ ἱμερτὸν λειμῶνα Λευκίππη Φαινώ τε καὶ Ἠλέκτρη καὶ Ἰάνθη καὶ Μελίτη Ἰάχη τε Ῥόδειά τε Καλλιρόη τε Μηλόβοσίς τε Τύχη τε καὶ Ὠκυρόη καλυκῶπις

Χρυσηίς τ᾽ Ἰάνειρά τ᾽ Ἀκάστη τ᾽ Ἀδμήτη τε καὶ Ῥοδόπη Πλουτώ τε καὶ ἱμερόεσσα Καλυψὼ καὶ Στὺξ Οὐρανίη τε Γαλαξαύρη τ᾽ ἐρατεινὴ Παλλάς τ᾽ ἐγρεμάχη καὶ Ἄρτεμις ἰοχέαιρα παίζομεν ἠδ᾽ ἄνθεα δρέπομεν χείρεσσ᾽ ἐρόεντα μίγδα κρόκον τ᾽ ἀγανὸν καὶ ἀγαλλίδας ἠδ᾽ ὑάκινθον καὶ ῥοδέας κάλυκας καὶ λείρια θαῦμα ἰδέσθαι νάρκισσόν θ᾽ ὃν ἔφυσ᾽ ὥς περ κρόκον εὐρεῖα χθών αὐτὰρ ἐγὼ δρεπόμην περὶ χάρματι γαῖα δ᾽ ἔνερθε χώρησεν τῇ δ᾽ ἔκθορ᾽ ἄναξ κρατερὸς Πολυδέγμων βῆ δὲ φέρων ὑπὸ γαῖαν ἐν ἅρμασι χρυσείοισι πόλλ᾽ ἀεκαζομένην ἐβόησα δ᾽ ἄρ᾽ ὄρθια φωνῇ ταῦτά τοι ἀχνυμένη περ ἀληθέα πάντ᾽ ἀγορεύωὣς τότε μὲν πρόπαν ἦμαρ ὁμόφρονα θυμὸν ἔχουσαι πολλὰ μάλ᾽ ἀλλήλων κραδίην καὶ θυμὸν ἴαινον ἀμφαγαπαζόμεναι ἀχέων δ᾽ ἀπεπαύετο θυμός γηθοσύνας δ᾽ ἐδέχοντο παρ᾽ ἀλλήλων ἔδιδόν τε τῇσιν δ᾽ ἐγγύθεν ἦλθ᾽ Ἑκάτη λιπαροκρήδεμνος πολλὰ δ᾽ ἄρ᾽ ἀμφαγάπησε κόρην Δημήτερος ἁγνήν ἐκ τοῦ οἱ πρόπολος καὶ ὀπάων ἔπλετ᾽ ἄνασσα ταῖς δὲ μέτ᾽ ἄγγελον ἧκε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεὺς Ῥείην ἠύκομον Δημήτερα κυανόπεπλον ἀξέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν ὑπέδεκτο δὲ τιμὰς δωσέμεν ἅς κεν ἕλοιτο μετ᾽ ἀθανάτοισι θεοῖσι νεῦσε δέ οἱ κούρην ἔτεος περιτελλομένοιο τὴν τριτάτην μὲν μοῖραν ὑπὸ ζόφον ἠερόεντα τὰς δὲ δύω παρὰ μητρὶ καὶ ἄλλοις ἀθανάτοισιν ὣς ἔφατ᾽ οὐδ᾽ ἀπίθησε θεὰ Διὸς ἀγγελιάων ἐσσυμένως δ᾽ ἤιξε κατ᾽ Οὐλύμποιο καρήνων ἐς δ᾽ ἄρα Ῥάριον ἷξε φερέσβιον οὖθαρ ἀρούρης τὸ πρίν ἀτὰρ τότε γ᾽ οὔτι φερέσβιον ἀλλὰ ἕκηλον ἑστήκει πανάφυλλον ἔκευθε δ᾽ ἄρα κρῖ λευκὸν μήδεσι Δήμητρος καλλισφύρου αὐτὰρ ἔπειτα μέλλεν ἄφαρ ταναοῖσι κομήσειν ἀσταχύεσσιν ἦρος ἀεξομένοιο πέδῳ δ᾽ ἄρα πίονες ὄγμοι βρισέμεν ἀσταχύων τὰ δ᾽ ἐν ἐλλεδανοῖσι δεδέσθαι ἔνθ᾽ ἐπέβη πρώτιστον ἀπ᾽ αἰθέρος ἀτρυγέτοιο ἀσπασίως δ᾽ ἴδον ἀλλήλας κεχάρηντο δὲ θυμῷ τὴν δ᾽ ὧδε προσέειπε Ῥέη λιπαροκρήδεμνοςδεῦρο τέκος καλέει σε βαρύκτυπος εὐρύοπα Ζεὺς ἐλθέμεναι μετὰ φῦλα θεῶν ὑπέδεκτο δὲ τιμὰς [δωσέμεν ἅς κ᾽ ἐθέλῃσθα] μετ᾽ ἀθανάτοισι θεοῖσι [νεῦσε δέ σοι κούρην ἔτεος π]εριτελλομένοιο [τὴν τριτάτην μὲν μοῖραν ὑπὸ ζόφον ἠ]ερόεντα [τὰς δὲ δύω παρὰ σοί τε καὶ ἄλλοις] ἀθανάτοισιν [ὣς ἄρ᾽ ἔφη τελέ]εσθαι ἑῷ δ᾽ ἐπένευσε κάρητι [ἀλλ᾽ ἴθι τέκνον] ἐμόν καὶ πείθεο μηδέ τι λίην ἀ[ζηχὲς μεν]έαινε κελαινεφέι Κρονίωνι α[ἶψα δὲ κα]ρπὸν ἄεξε φερέσβιον ἀνθρώποισινὣς ἔφατ᾽ οὐδ᾽ ἀπίθησεν ἐυστέφανος Δημήτηρ αἶψα δὲ καρπὸν ἀνῆκεν ἀρουράων ἐριβώλων πᾶσα δὲ φύλλοισίν τε καὶ ἄνθεσιν εὐρεῖα χθὼν ἔβρισ᾽ ἣ δὲ κιοῦσα θεμιστοπόλοις βασιλεῦσι δεῖξεν Τριπτολέμῳ τε Διοκλεῖ τε πληξίππῳ Εὐμόλπου τε βίῃ Κελεῷ θ᾽ ἡγήτορι λαῶν δρησμοσύνην θ᾽ ἱερῶν καὶ ἐπέφραδεν ὄργια πᾶσι Τριπτολέμῳ τε Πολυξείνῳ ἐπὶ τοῖς δὲ Διοκλεῖ σεμνά τά τ᾽ οὔπως ἔστι παρεξίμεν οὔτε πυθέσθαι

οὔτ᾽ ἀχέειν μέγα γάρ τι θεῶν σέβας ἰσχάνει αὐδήν ὄλβιος ὃς τάδ᾽ ὄπωπεν ἐπιχθονίων ἀνθρώπων ὃς δ᾽ ἀτελὴς ἱερῶν ὅς τ᾽ ἄμμορος οὔποθ᾽ ὁμοίων αἶσαν ἔχει φθίμενός περ ὑπὸ ζόφῳ ἠερόεντιαὐτὰρ ἐπειδὴ πάνθ᾽ ὑπεθήκατο δῖα θεάων βάν ῥ᾽ ἴμεν Οὔλυμπόνδε θεῶν μεθ᾽ ὁμήγυριν ἄλλων ἔνθα δὲ ναιετάουσι παραὶ Διὶ τερπικεραύνῳ σεμναί τ᾽ αἰδοῖαι τε μέγ᾽ ὄλβιος ὅν τιν᾽ ἐκεῖναι προφρονέως φίλωνται ἐπιχθονίων ἀνθρώπων αἶψα δέ οἱ πέμπουσιν ἐφέστιον ἐς μέγα δῶμα Πλοῦτον ὃς ἀνθρώποις ἄφενος θνητοῖσι δίδωσιν ἀλλ᾽ ἄγ᾽ Ἐλευσῖνος θυοέσσης δῆμον ἔχουσα καὶ Πάρον ἀμφιρύτην Ἀντρῶνά τε πετρήεντα πότνια ἀγλαόδωρ᾽ ὡρηφόρε Δηοῖ ἄνασσα αὐτὴ καὶ κούρη περικαλλὴς Περσεφόνεια πρόφρονες ἀντ᾽ ᾠδῆς βίοτον θυμήρε᾽ ὄπαζε αὐτὰρ ἐγὼ καὶ σεῖο καὶ ἄλλης μνήσομ᾽ ἀοιδῆς

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Referecircncias

CASTILHO Antoacutenio Feliciano de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa Lisboa Casa dos Editores 1858

FLORES Guilherme Gontijo Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horaacutecio Tese de Doutorado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2014

GRAMACHO Jair Hinos Homeacutericos Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2001

________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Vol I Satildeo Paulo Mandarim 2001b

________ IliacuteadaTraduccedilatildeo de Haroldo de Campos Vol II Satildeo Paulo Arx 2002

________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo PauloCampinas Ateliecirc EditorialUNICAMP 2008

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Edusp 2000

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2001c

________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Satildeo Paulo Editora 34 2011

MALTA Andreacute A Selvagem Perdiccedilatildeo Erro e Ruiacutena na Iliacuteada Satildeo Paulo Odysseus 2006

________ O resgate do cadaacutever o uacuteltimo canto drsquoA Iliacuteada Satildeo Paulo Humanitas 2000

NOGUEIRA Eacuterico Verdade contenda e poesia nos Idiacutelios de Teoacutecrito Tese de dou-torado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2012

OLIVA NETO Joatildeo Angelo amp NOGUEIRA Eacuterico ldquoO Hexacircmetro Dactiacutelico Vernaacuteculo antes de Carlos Alberto Nunesrdquo Scientia Traductionis n 13 2013

PALAVRO Bruno A Theogonia de Hesiacuteodo traduzida amp anotada pela matildeo de Bruno Palavro Trabalho de Conclusatildeo de Curso Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2019

TAacutePIA Marcelo Diferentes percursos de traduccedilatildeo poeacutetica como paradigmas me-todoloacutegicos de recriaccedilatildeo poeacutetica Um estudo propositivo sobre linguagem poesia e traduccedilatildeo Tese de doutorado Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2012

VIRGIacuteLIO Geoacutergicas ndash Eneida Volume III Traduccedilotildees de Antoacutenio Feliciano de Castilho

e Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo W M Jackson Inc Editores 1956

________ Eneida Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Editora 34 2014

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Pressupostos da comeacutedia grega entre os romanos

Quintiliano Ciacutecero Horaacutecioe Dioniacutesio

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Luciene Lages Silva

Logo direi no lugar apropriado que fim para a formaccedilatildeo dos jovens reservo agrave comeacutedia que muito pode conferir agrave eloquecircncia dado que envolve todos os caracteres e pai-xotildees Com efeito estando os bons costumes salvaguarda-dos deveraacute a comeacutedia ser lida entre as coisas principais Falo acerca de Menandro natildeo excluiria a outros pois os autores latinos tambeacutem produziram algo de utilidade Quintiliano

Propomos apresentar parte de uma pesquisa que investiga a recepccedilatildeo criacutetica da comeacutedia grega por alguns criacuteticos literaacuterios historiadores e poetas romanos duran-te o fim da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Os textos selecionados foram produzidos no decurso de pouco mais de 150 anos periacuteodo que contempla o domiacutenio de Juacutelio Ceacutesar (45 aC) ateacute o fim do reinado de Trajano (98-117 dC) Nossa pesquisa elenca seis fontes desse recorte temporal em que a preferecircncia por Menandro se consolida na tradiccedilatildeo latina nos textos de Horaacutecio Ciacutecero Dioniacutesio de Halicarnasso Quintiliano Pliacutenio (o jovem) e Plutarco

Os autores selecionados distam em torno de 100 a 150 anos do tempo aacuteureo da proacutepria comeacutedia latina do tempo de Plauto e Terecircncio mas conhecem a comeacutedia grega e a romana percebem os desdobramentos do gecircnero cocircmico de modo mais con-temporacircneo do que noacutes poderiacuteamos De tratados de esteacutetica literaacuteria como a Poeacutetica de Horaacutecio agraves cartas de Pliacutenio o jovem trocadas com o imperador Trajano nos depa-ramos com teorizaccedilotildees e revisotildees de determinadas premissas acerca da comeacutedia grega e do gecircnero cocircmico de modo geral Naturalmente Aristoacutefanes figura como o iacutecone da comeacutedia antiga enquanto Menandro da comeacutedia nova e natildeo eacute novidade certa predi-leccedilatildeo dos romanos pela comeacutedia de costumes ao inveacutes da comeacutedia poliacutetica daquele 124

A epiacutegrafe de Quintiliano que abre esse texto por exemplo e que foi extraiacuteda da obra Institutio Oratoria (Livro I VIII 6-8 na traduccedilatildeo de Marcos Aureacutelio Pereira) apresenta a preocupaccedilatildeo do retor na instruccedilatildeo dos jovens com o fim de orientaacute-los a alcanccedilar eloquecircncia primorosa em seus discursos A comeacutedia deve estar entre as prin-cipais leituras mas tal prerrogativa vem acompanhada de trecircs aspectos Um diz res-peito ao fato de que por ser rico em caracteres e paixotildees o gecircnero cocircmico favorece o desenvolvimento da eloquecircncia outro aspecto eacute o de que natildeo eacute qualquer comeacutedia que deve ser lida mas apenas as que respeitam os lsquobons costumesrsquo Por fim o fato de que da leitura da comeacutedia grega e latina pode-se extrair algo de uacutetil Quintiliano aponta natildeo

124 Veja-se a Introduccedilatildeo de Maria de Faacutetima Souza e Silva in MENANDRO 2007 p 7-41

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soacute porque a comeacutedia deve ser lida mas quem deve ser lido sendo Menandro o uacutenico comedioacutegrafo citado nominalmente ao lado da recomendaccedilatildeo de leitura de alguns au-tores latinos que natildeo satildeo nomeados

Sobre a literatura produzida em Roma Pompeu Silva e Silva (2017) afirmam que a trageacutedia e a comeacutedia perderam um pouco do espaccedilo para outros tipos de prosa e poesia na eacutepoca de Augusto como o gecircnero mimo e eacute somente com o imperador Nero que os gecircneros traacutegico e cocircmico voltaram a brilhar nos ambientes puacuteblicos atraveacutes dos festivais Ainda conforme as autoras as comeacutedias desenvolvidas e encenadas no periacute-odo imperial datavam dos seacuteculos III e II aC e na sua maior parte eram escritas por Plauto e Terecircncio comedioacutegrafos romanos com fortes influecircncias da comeacutedia nova

A indicaccedilatildeo de Menandro como leitura apraziacutevel e necessaacuteria tambeacutem eacute refe-rendada por Plutarco em seu pequeno tratado Compecircndio da Comparaccedilatildeo entre Aris-toacutefanes e Menandro ao lado de certa execraccedilatildeo agrave poesia de Aristoacutefanes125

As comeacutedias de Menandro contecircm sais abundantes e sa-grados como se viessem daquele mar do qual nasceu Afro-dite Em compensaccedilatildeo os sais de Aristoacutefanes satildeo amargos e aacutesperos possuem um sabor acre mordaz e ulceroso E eu natildeo sei onde reside a habilidade da qual ele se vanglo-ria nos discursos ou nos caracteres com certeza o que ele imita imita pior126

A criacutetica de Plutarco agrave imitaccedilatildeo dos caracteres produzida pela obra do poeta da comeacutedia antiga eacute um reflexo da criacutetica aristoteacutelica presente na Eacutetica a Nicomacos em que o filoacutesofo compara a comeacutedia antiga com a nova e conclui ldquoos autores das primeiras divertiam com a obscenidade mas os das uacuteltimas preferem as insinuaccedilotildees e as duas coisas diferem e natildeo pouco quanto agrave conveniecircnciardquo Aristoacuteteles discorre sobre a importacircncia do repouso e o lugar do entretenimento como parte da vida cotidiana mas eacute severo com a lsquoacircnsia de gracejarrsquo daqueles a que chama lsquobufotildees vulgaresrsquo que natildeo poupam a ningueacutem nem a si mesmos se isso puder provocar uma gargalhada sendo esses gracejos uma espeacutecie de abuso Levando em conta a predileccedilatildeo por Menandro e pela comeacutedia nova dos gregos observamos e selecionamos as impressotildees de Ciacutecero Horaacutecio e Dioniacutesio de Halicarnasso acerca do lugar da comeacutedia grega e do cocircmico de modo geral128

Em Do melhor gecircnero dos oradores De optimo genere oratorum Ciacutecero afir-ma que o texto de base oratoacuteria deve ser correto ter linguagem pura e adequada sem

125 Suetocircnio no entanto em A vida dos doze ceacutesares descreve a apreciaccedilatildeo de Augusto pela liacutengua e cultura grega e apesar de natildeo falar ou escrever em grego solicitava um tradutor se a circunstacircncia o exigisse De modo que ldquoA poesia grega natildeo lhe era tambeacutem inteiramente desconhecida Costumava deleitar-se com a comeacutedia antiga fazendo repre-sentaacute-la nos espetaacuteculos puacuteblicosrdquo SUETOcircNIO 1955 p 121 na traduccedilatildeo de Sady-Garibaldi126 (Moralia 854a-c) traduccedilatildeo nossa anteriormente publicada em artigo intitulado rsquoLiccedilotildees de Plutarco sobre a comeacutediarsquo 2013 p114 In Identidade e Alteridade no Mundo Antigo POMPEU et all Fortaleza Expressatildeo graacutefica editora 2013 127 Traduccedilatildeo Maacuterio da Gama Kury In ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Brasiacutelia editora UnB 1985

128 Os primeiros apontamentos dessa pesquisa foram publicados em A Palo Seco Escritos de Filosofia e Literatura Grupo de Estudos em Filosofia e Literatura Universidade Federal de Sergipe Aracaju Vol 1 n 5 2013 p 32-41129 (SEABRA FILHO 2013 p 17) Utilizamo-nos da traduccedilatildeo de Seabra nos extratos da obra citados adiante

viacutecios e estrangeirismos distinto no uso da palavra em seu sentido proacuteprio e tambeacutem em seu sentido figurado Natildeo aconselha o uso da linguagem popular na composiccedilatildeo do discurso devido ao descuido agraves regras gramaticais e aos decoros do estilo necessaacuterios agrave produccedilatildeo oratoacuteria De acordo com Seabra Filho tradutor da obra serve menos ainda para ldquoa transmissatildeo de todas as sutilezas de pensamentos e intenccedilotildees do oradorrdquo129

Ciacutecero alerta para o caraacuteter muacuteltiplo do gecircnero literaacuterio e que a partir dos gre-gos a praacutetica latina na composiccedilatildeo do poema quer seja traacutegico cocircmico eacutepico meacutelico e ditiracircmbico deve observar aquilo que eacute proacuteprio a tal gecircnero Atento para as especifici-dades de cada gecircnero elenca os principais autores da poesia latina Ecircnio para a poesia eacutepica assim ldquocomo Pacuacutevio o maior traacutegico e Ceciacutelio talvez o maior cocircmicordquo (CICERO De optimo genere oratorvm II 2) No entanto ldquoorador eu natildeo o divido em gecircnero procuro efetivamente o perfeitordquo (II3) Para o filoacutesofo o perfeito orador tanto ensina quanto deleita quanto comove os acircnimos porque ldquoensinar eacute devido deleitar honroso comover necessaacuteriordquo (II3)

Afirma mais adiante a autenticidade do pai da comeacutedia de costumes visto que natildeo se assemelha a Homero e escreve outro tipo de gecircnero conforme diz ldquoMas Menandro natildeo quis ser semelhante a Homero eacute que o gecircnero era outrordquo (CICERO De optimo genere oratorum II 6) Os limites do gecircnero devem ser observados pelos poetas ldquoE assim tanto na trageacutedia eacute errado o cocircmico como torpe na comeacutedia o traacutegi-co e nos demais gecircneros haacute como certo para cada um seu tom determinado e para os conhecedores um conhecido acento (CICERO De optimo genere oratorum I 1)

Aleacutem disso Ciacutecero nos fornece um testemunho da permanecircncia da poesia dra-maacutetica grega em traduccedilotildees latinas e apresenta uma resposta agrave certa resistecircncia de seus contemporacircneos agrave leitura de discursos da retoacuterica grega em traduccedilatildeo latina Ciacutece-ro pontua sistematicamente duas criacuteticas

A este nosso labor duas espeacutecies de criacuteticas se opotildeem Uma esta ldquoMas de maneira melhor os gregosrdquo A esse que fala assim perguntar-se-ia se porventura poderiam os gregos discursar de maneira melhor em latim Outra ldquoPor que eu leria de preferecircncia esses ao inveacutes dos discur-sos gregosrdquo Os mesmos que dizem isso aceitam Acircn-dria e Sinefebos e natildeo leem Terecircncio e Ceciacutelio menos que Menandro E natildeo admitiriam Androcircmaca ou Antiacuteopeou os Epiacutegonos em latim Mas todavia leem Ecircnio e Pacuacutevio e Aacutecio de preferecircncia a Euriacutepides e Soacutefocles Que eacute entatildeo o fastio deles quanto aos discursos traduzidos do grego quando nenhum haja quanto aos versos (CICERO De op-timo genere oratorum VI 18)

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Ressalta-se que os versos traduzidos natildeo causam fastio aos seus contemporacirc-neos jaacute que a leitura de Acircndria peccedila de Terecircncio ou Sinefebos peccedila perdida de Ceciacutelio eacute menos frequente do que a leitura de Menandro Do mesmo modo testemunha que os romanos liam Euriacutepides e Soacutefocles traduzidos para o latim sendo Antiacuteope e Epiacutegonos peccedilas que natildeo chegaram ateacute noacutes Ciacutecero faz questatildeo de marcar que os poetas traacutegicos gregos natildeo tecircm a preferecircncia sobre a leitura dos textos de autores traacutegicos latinos Ecircnio130 Aacutecio e Pacuacutevio No entanto a questatildeo central natildeo diz respeito agrave escolha da lei-tura dos gregos ou dos autores latinos natildeo eacute a questatildeo da primazia que estaacute em jogo e nem a negaccedilatildeo do discurso de alguns de que eacute melhor ler os gregos em grego Na verdade Ciacutecero criacutetica a postura de seus contemporacircneos que leem poesia grega em traduccedilatildeo mas resistem agrave leitura de oradores gregos pela mesma via

A seguir em sua busca Do melhor gecircnero dos oradores Ciacutecero faz defesa do la-bor do tradutor de discursos oratoacuterios gregos ele mesmo se dedicou a traduzir discur-sos de Eacutesquines e Demoacutestenes ldquoe natildeo traduzi como inteacuterprete mas como orador com as mesmas apresentaccedilotildees de ideias e de figuras natildeo tive necessidade de reproduzir palavra por palavra mas conservei o aspecto todo e o significado das expressotildeesrdquo (CI-CERO De optimo genere oratorum V 14) Ao explicar o tipo de traduccedilatildeo que pratica Ciacutecero deixa claro que como tradutor sua escolha natildeo eacute a de uma traduccedilatildeo ad verbum mas de uma traduccedilatildeo recriadora que tem como foco o gecircnero oratoacuterio de modo que o tradutor se vecirc mais como um agente tradutor-orador e natildeo tradutor-inteacuterprete131

Seabra Filho em seus comentaacuterios acerca da obra de Ciacutecero observa que os textos de Ciacutecero satildeo repletos de reflexotildees filosoacuteficas de ensinamentos de histoacuteria de teacutecnicas da redaccedilatildeo e da arte retoacuterica transpondo o objetivo praacutetico para o qual foram escritos (SEABRA FILHO 2013 p 13) Para o tradutor no que concerne agrave arte retoacuterica Ciacutecero apresenta ldquoQuase nada que seja substancial que seja da teacutecnica de composiccedilatildeo Em verdade ele passa para os romanos para a literatura latina toda a teacutecnica grega sistematizada na Retoacuterica de Aristoacutetelesrdquo (SEABRA FILHO 2013 p 16) Com exceccedilatildeo de apresentar preceitos sobre a figura do orador sobre sua cultura e dicccedilatildeo E ainda quando fala aos oradores natildeo podemos excluir a aplicabilidade de tal entendimento tambeacutem para o texto literaacuterio pois eacute necessaacuterio ensinar e persuadir o puacuteblico em am-bos os casos Ou como alertou Alberte (1989 p3) a presenccedila de aspectos retoacutericos no gecircnero poeacutetico eacute um fato que natildeo se limita ao gecircnero cocircmico mas remonta agraves origens da literatura

Ciacutecero postula o lugar do orador seu ofiacutecio e seus objetivos quando afirma ldquoOacutetimo eacute com efeito o orador que pelo discurso tanto ensina como deleita e comove os acircnimos dos ouvintes Ensinar eacute devido deleitar honroso comover necessaacuteriordquo (CICE-RO De optimo genere oratorum III 1) De modo paralelo Horaacutecio condena a criaccedilatildeo

130 Mesmo que Ecircnio obtenha destaque entre os romanos como poeta eacutepico a alusatildeo ao poeta nesse trecho parece se referir agraves suas trageacutedias jaacute que se contrapotildeem agraves peccedilas de Soacutefocles e Euriacutepides131 No original encontramos ldquonon verbum pro verbo necesse habui reddere sed genus omne verborum vinque servavirdquo literalmente lsquonatildeo achei necessaacuterio verter palavra por palavra mas conservei o gecircnero das palavras e sua forccedila expressi-varsquo O trecho deixa claro a predileccedilatildeo dos latinos pela trilha da emulaccedilatildeo e natildeo traduccedilatildeo literal essa premissa de Ciacutecero ecoaraacute na obra de outros autores e na Idade Meacutedia em que a potencializaccedilatildeo dessas duas formas de traduccedilatildeo se veem em disputa ad verbum (palavra por palavra) X ad sensum (pelo sentido) Sobre esse tema veja-se os apontamentos de FURLAN (2003) no artigo Breviacutessima histoacuteria da teoria da traduccedilatildeo no Ocidente - II A Idade Meacutedia

demasiada sem utilidade agrave vida Conforme se pode verificar em Epiacutestola aos Pisotildees obra posteriormente conhecida pela alcunha dada por Quintiliano de Arte Poeacutetica

Os poetas ou pretendem ser uteis ou deleitar ou ao mes-mo tempo dizer coisas belas e aproveitaacuteveis agrave vida O que quer que haacutes de ensinar secirc breve para que os espiacuteritos doacuteceis e fieis depressa apreendam e retenham os teus pre-ceitos Tudo que eacute supeacuterfluo se escapa da memoacuteria mui-to cheia As coisas inventadas em vista do prazer estejam proacuteximas da verdade que a faacutebula natildeo exija que se creia em tudo que ela queira nem retire vivo do ventre de Lacirc-mia o menino que ela almoccedilou (HORAacuteCIO Poeacutetica I 333-340 traduccedilatildeo de Dante Tringali)

Horaacutecio valoriza o empenho do poeta na sua produccedilatildeo aliada agrave arte e agrave utili-dade dessa produccedilatildeo Admite o prazer advindo das invenccedilotildees proacuteprias da ficccedilatildeo mas prefere que elas natildeo sejam demasiadas ou incoerentes Os limites devem por fim aos exageros e garantir a verossimilhanccedila (assim como Aristoacuteteles alertou na Poeacutetica XV 1454a) pois a liberdade ilimitada de inventar impede a utilidade da arte que para o poeta deve ser uacutetil verdadeira agradaacutevel e educativa

Horaacutecio prossegue tematizando um problema tradicional no debate das esco-las de retoacuterica a poeacutetica da arte X a poeacutetica do engenho Afinal um bom poema eacute con-sequecircncia da arte ou do engenho do poeta ldquoTecircm-se perguntado se um poema se torna digno de louvor pela natureza ou pela arte Eu natildeo vejo de que serve o trabalho sem uma veia feacutertil nem de que serve o engenho rude assim uma coisa reclama o auxiacutelio da outra e conspiram amigavelmenterdquo (vv 408-411) Nos versos 408 a 418 alerta que de nada serve o trabalho sem lsquorica intuiccedilatildeorsquo ou o lsquoengenho rudersquo com pouco trabalho Concluiraacute que ao bom poeta cabe o equiliacutebrio dessas duas qualidades que se comple-mentam a arte e o engenho (vv407-410) O talento precisa ser aperfeiccediloado o poeta eacute um artiacutefice do poema e como tal deve tambeacutem se atentar para o lugar da teacutecnica em sua criaccedilatildeo poeacutetica A soluccedilatildeo proposta aconselha o equiliacutebrio da arte e do talento de modo que as habilidades naturais sejam aprimoradas pelo trabalho contiacutenuo De nada adianta para Horaacutecio apenas o engenho sem praacutetica como do mesmo modo natildeo eacute possiacutevel o domiacutenio da teacutecnica sem a inspiraccedilatildeo sem a intuiccedilatildeo artiacutestica da qual depen-de o poeta ao exercer seu ofiacutecio

As premissas de Ciacutecero e Horaacutecio se convergem pois Ciacutecero fala para ensinar e ensinando se promove o deleite Horaacutecio fala sobre deleitar e deleitando se ensina Aleacutem disso outras aproximaccedilotildees entre os dois se destacam o conceito de orador ideal apresentado por Ciacutecero em De Oratore eacute similar ao conceito de poeta ideal na Arte Poeacutetica a utilidade social que o orador e o poeta devem render agrave paacutetria e tambeacutem ambos apresentam princiacutepios esteacuteticos similares em relaccedilatildeo ao conceito de unidade e harmonia da obra

Inicialmente pode causar estranhamento que na obra de Horaacutecio natildeo consta nenhuma referecircncia a Ciacutecero Segundo Alberte (1989 p88) Ciacutecero segue proscrito

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durante a eacutepoca de Augusto o proacuteprio Plutarco (Ciacutecero 49) relata que um sobrinho do Imperador se viu atemorizado enquanto lia uma obra de Ciacutecero e eacute interrompido pela chegada inesperada de Augusto Natildeo soacute Horaacutecio mas outros poetas do tempo de Au-gusto natildeo falavam em Ciacutecero pelo menos natildeo nos ciacuterculos de amizade do Imperador

Em outra obra na Republica livro IV 11-2 Ciacutecero trata da comeacutedia e expotildee seu julgamento acerca do que considera um excesso do teatro grego a liberdade sem limites nos gracejos

Jamais a comeacutedia se natildeo a tivessem autorizado os costu-mes puacuteblicos teria podido apresentar no teatro tatildeo vergo-nhosas infacircmias Os gregos mais antigos nos seus viacutecios permitiam que se dissesse no teatro tudo quanto se qui-sesse como se quisesse sem respeitar os nomes proacuteprios A quem natildeo aludiu a comeacutedia Ou antes a quem natildeo dei-xou A quem perdoou Pode permitir-se que fustigasse homens populares na Repuacuteblica como iacutemprobos e sedi-ciosos Cleatildeo Cleofonte Hipeacuterbolo Pode tolerar-se que para essa gente mais eficaz do que a alusatildeo do poeta fosse a censura dos seus cidadatildeos Mas ultrajar em verso e na cena Peacutericles que durante tantos anos na paz como na guerra com um creacutedito tatildeo legiacutetimo regeu os destinos de sua paacutetria eacute menos toleraacutevel do que se entre noacutes ultra-jasse Plauto e Neacutevio ou Cipiatildeo Catatildeo Ceciacutelio (traduccedilatildeo Neacutelson Jahr Garcia)

A criacutetica diz respeito agrave comedia antiga agrave comeacutedia praticada por Aristoacutefanes (tambeacutem por outros como Cratino e Eupocirclis por exemplo) mesmo sem nomeaacute-lo diretamente os homens citados como objeto de troccedila satildeo personagens das peccedilas do comedioacutegrafo Em certo sentido tal trecho dialoga com a passagem da ldquoEacutetica a Nico-macosrdquo anteriormente citada ali Aristoacuteteles critica aquele que estaacute agrave caccedila do riso faacutecil a qualquer preccedilo aqui Ciacutecero condena o excesso de liberdade dos comedioacutegrafos antigos em ultrajar figuras puacuteblicas mesmo a quem natildeo o mereccedila como eacute o caso de Peacutericles Liberdade essa que para o filoacutesofo natildeo deveria ser tolerada

Uma criacutetica parecida eacute aludida por Horaacutecio na Arte Poeacutetica quando se refere

a Teacutespis como inventor do gecircnero dramaacutetico a Eacutesquilo como inventor da maacutescara e da declamaccedilatildeo grandiloquente e ldquoa esses sucedeu a comeacutedia antiga e foi recebida natildeo sem vivo aplauso mas a liberdade degenerou em viacutecio e em abuso que teve de ser re-primido pela lei Depois de aceite a lei calou-se o coro para sua vergonha porque se lhe tirara o direito de injuriarrdquo (vv 275-284)132 Horaacutecio natildeo nega o sucesso alcanccedilado pela comeacutedia antiga mas marca como Ciacutecero o excesso de liberdade daqueles poetas cocircmicos que retratavam personagens puacuteblicas com injuacuterias abusivas Na sequecircncia natildeo se refere a outras fases da comeacutedia grega como a comeacutedia nova da antiga passa a abordar a comeacutedia latina

132 Na traduccedilatildeo de RM Rosado Fernandes

O poeta traz uma proposta de reforma para o teatro romano em moldes gre-gos busca a harmonia entre o seacuterio e o jocoso e condena excessos no espetaacuteculo dra-maacutetico seja traacutegico ou cocircmico O primeiro ponto de sua reforma eacute a moderaccedilatildeo que a trageacutedia modere o grau do pateacutetico e a comeacutedia modere o uso da vulgaridade Horaacutecio vecirc no drama satiacuterico uma resposta para abrandar o grau solene do traacutegico e para uma elevaccedilatildeo do cocircmico

Natildeo faccedilas no entanto representar na cena o que deva passar-se nos bastidores retira muitas coisas da vista es-sas que melhor descreve a facuacutendia de uma testemunha Que Medeia natildeo trucide os filhos diante do puacuteblico nem o nefando Atreu cozinhe publicamente entranhas huma-nas tatildeo-pouco em ave Procne se transforme ou Cadmo em serpente Detestarei tudo o que assim me mostrares porque ficarei increacutedulo Que a peccedila nunca tenha mais do que cinco actos nem me-nos do que esse nuacutemero se acaso desejar que voltem a pedi-la e tornar agrave cena depois de estreadaQue na peccedila natildeo intervenha um deus a natildeo ser que o de-senlace seja digno de um vingador nem tatildeo pouco se lan-ce um quarto actor a falar na mesma cena (vv 183-194)133

As premissas estabelecidas por Horaacutecio para a arte dramaacutetica se iniciam pelos caracteres pela representaccedilatildeo da accedilatildeo pela verossimilhanccedila pelo nuacutemero de atos pelo uso ponderado do deus ex-machina Primeiramente o poeta chama a aten-ccedilatildeo para a construccedilatildeo dos caracteres em versos anteriores no 113 a 127 estabelece que se siga a tradiccedilatildeo ou que se atente para a construccedilatildeo de caracteres apropriados tal como um Aquiles inexoraacutevel uma Medeia indomaacutevel ou uma Ino chorosa Dos carac-teres agrave representaccedilatildeo da accedilatildeo Horaacutecio condena a representaccedilatildeo de cenas sangrentas ou demasiadas espetaculosas como uma metamorfose em palco por exemplo Sobre o uso do deus ex-machina Horaacutecio parece admitir se o desenlace da peccedila necessitar de tal interventor ao contraacuterio de Aristoacuteteles que na Poeacutetica recomenda ldquoeacute pois evidente que tambeacutem os desenlaces devem resultar da proacutepria estrutura do mito e natildeo do deus ex machina como acontece na Medeacuteia ou naquela parte da Iliacuteada em que se trata do regresso das navesrdquo Nos versos seguintes o estagirita abre uma exceccedilatildeo ao uso do recurso de um deus ex-machina se a representaccedilatildeo de fatos sucedidos dizem respeito a fatos que aconteceram antes do drama comeccedilar ou em acontecimentos que ao homem eacute vedado conhecer como em prediccedilotildees mas natildeo deve ser usado para o desfecho do drama

As regras ou instruccedilotildees para o gecircnero dramaacutetico apresentadas por Ho-

133 Aristoacuteteles afirma que querer produzir emoccedilotildees no espectador ldquounicamente pelo espetaacuteculo eacute processo alheio agrave arterdquo Cf Poeacutetica 1453b 1-8134 Maacutequina no sentido de maravilhoso ou sobrenatural que no teatro grego contava com um aparato mecacircnico em que a personagem era elevada acima do cenaacuterio ressaltando seu aspecto sobrenatural ou divino Veja-se a nota 219 da traduccedilatildeo triliacutengue da Poeacutetica de Yebra (1974)135 Poeacutetica 1454b1-2 traduccedilatildeo de Eudoro de Souza No Craacutetilo(425d) Platatildeo tambeacutem condena o uso do ex-machina dizendo que os tragedioacutegrafos recorrem a maacutequinas elevando deuses porque natildeo sabem como terminar o desenlace

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raacutecio partem da valorizaccedilatildeo da capacidade do poeta de respeitar as regras especiacuteficas que compete a cada gecircnero Na instruccedilatildeo agrave famiacutelia dos Pisotildees afirma

ldquoSe natildeo posso nem sei observar as funccedilotildees prescritas e os tons caracteriacutesticos dos diversos geacuteneros por que hei-de ser saudado como poeta Qual a razatildeo por que prefiro com falso pudor desconhececirc-los a aprendecirc-los Mesmo a comeacutedia natildeo quer seus assuntos expostos em versos traacute-gicos e igualmente a ceia de Tiestes natildeo se enquadra na narraccedilatildeo em metro vulgar mais proacuteprio dos socos136 da comeacutediardquo (vv 85-92)

Horaacutecio alerta aos seus interlocutores que a um poeta cabe o conhecimento daquilo que eacute proacuteprio a cada gecircnero se o poeta natildeo o sabe e natildeo busca aprendecirc-lo natildeo deveria ser chamado de poeta Natildeo se compotildee uma comeacutedia em estilo proacuteprio da trageacutedia nem se usa na composiccedilatildeo de uma trageacutedia aquilo que eacute proacuteprio do estilo cocirc-mico Cada gecircnero tem seus limites e suas peculiaridades e os assuntos devem ser de-senvolvidos observando esses aspectos conforme se queira suscitar laacutegrimas ou risos A reformulaccedilatildeo necessaacuteria ao teatro deve considerar os limites da emoccedilatildeo para Ho-raacutecio agraves vezes a comeacutedia eleva sua voz e ldquoCremes indignado ralha em tom pateacuteticordquo (v94) Cremes eacute personagem de uma comeacutedia de Terecircncio um tipo de anciatildeo avarento e irasciacutevel Na representaccedilatildeo da comeacutedia a personagem cocircmica natildeo deve assumir um tom mais elevado improacuteprio ao gecircnero como no exemplo dado Em relaccedilatildeo a esses versos Tringali (1993 p79) afirma que ldquoHoraacutecio jaacute comeccedila a insinuar seu programa de reformas do teatro Deseja que a comeacutedia fique acima da vulgaridade e que a trageacute-dia modere a solenidade e o emocionalismordquo Para o tradutor aos poucos a digressatildeo caminha em direccedilatildeo ao drama satiacuterico que na visatildeo de Horaacutecio parece representar uma redenccedilatildeo dos desvios da trageacutedia e comeacutedia

O poeta marca o meacuterito dos antigos escritores que introduziram o teatro la-tino ldquoOs nossos poetas nada deixaram que natildeo experimentassem nem foi pequeno o louvor que mereceram os que ousando abandonar o grego trilho celebraram os paacutetrios feitos ora criando as faacutebulas pretextas ora as togadasrdquo (vv285-288) Horaacutecio natildeo nega a influecircncia do teatro grego na formaccedilatildeo do teatro latino mas enfatiza a ousadia daqueles que natildeo se renderam agrave forma de um modelo importado e transcen-deram o modelo considerando suas proacuteprias questotildees nacionais A criaccedilatildeo de peccedilas de argumento romano fizeram surgir as peccedilas pretextas que eram uma modalidade de trageacutedia aos moldes romanos em que os personagens vestiam togas como a dos altos magistrados nas cerimocircnias puacuteblicas e as togadas comeacutedias em que os atores se ves-tiam com a toga comum do cidadatildeo romano (TRINGALI 1993p 92)137

Horaacutecio continua suas admoestaccedilotildees aos Pisotildees afirmando no verso 309 que

136 O soco era o calccedilado tiacutepico da comeacutedia sem salto enquanto o coturno era o calccedilado tiacutepico da trageacutedia e tinha um solado mais alto 137 Sobre a origem das pretextas e a repercussatildeo dos temas romanos na trageacutedia italiana veja-se CARDOSO Zelia de Almeida O drama histoacuterico latino e suas projeccedilotildees no mundo Renascentista e Barroco Letras Claacutessicas n 6 p 161 ndash 195 2002

ldquosaber eacute o princiacutepio e a fonte do bem escreverrdquo e portanto apresenta suas premissas para a composiccedilatildeo teatral

Ao douto imitador aconselharei que atente no modelo da vida e dos costumes e daiacute retire viacutevido discurso Comeacutedias haacute por vezes que embora parcas de elegacircncia medida e arte por apresentarem temas atraentes e caracteres bem delineados agradam mais ao puacuteblico e o prendem muito mais do que versos sem realidade ou harmoniosas baga-telas poeacuteticas (vv317-322) 138

O poeta recomenda atenccedilatildeo agrave construccedilatildeo dos caracteres e temas adequados apoacutes a observaccedilatildeo pessoal da vida cotidiana A vida cotidiana como modelo eacute uma re-gra comumente associada agrave comeacutedia nova e agrave comeacutedia de Menandro Horaacutecio critica o uso dos versos muito ornamentados eacute preferiacutevel um estilo simples desde que os caracteres sejam consistentes A imitaccedilatildeo da vida e dos costumes eacute uma premissa que faz eco a um dito atribuiacutedo a Ciacutecero e que foi transmitido por Donato a conhecida formulaccedilatildeo segundo a qual lsquoa comeacutedia eacute a imitaccedilatildeo da vida o espelho de costumes e a imagem da verdadersquo imitatio uitae speculum cansuetudinis imago veritatis139 De acordo com Cordeiro

Esta definiccedilatildeo da comeacutedia gozou de uma extraordinaacuteria repercussatildeo na literatura e na poeacutetica dos seacuteculos XVI e XVII Eacute presenccedila obrigatoacuteria nas introduccedilotildees agraves comeacutedias dos autores claacutessicos figura em muitos tratados compre-ensivos de poeacutetica sendo tambeacutem frequente nos proacutelogos das comeacutedias em latim e em vulgar do periacuteodo humaniacutes-tico Haacute ecos desta regra em Saacute de Miranda Antoacutenio Fer-reira e Jorge Ferreira de Vasconcelos e tambeacutem em outros autores coevos bem no Quixote de Cervantes ou de uma forma mais distante no Hamlet de Shakespeare (DONA-TO 2011 p8)

A observaccedilatildeo da vida como modelo jaacute eacute uma regra bastante conhecida por Horaacutecio e Ciacutecero visto que tal premissa se consolida na transformaccedilatildeo do gecircnero cocircmico entre os gregos a partir do seacuteculo IV a C se consolida a comeacutedia nova ou co-meacutedia de costumes Tal modalidade foi ganhando ou ocupando um terreno habitado antes pelos temas poliacuteticos e os temas do cotidiano aos poucos passaram a prevalecer no gosto popular provocando assim uma mudanccedila no gecircnero teatral Para Souza e Silva pesquisadora e tradutora da obra de Menandro

A substituiccedilatildeo do plano domeacutestico ao ciacutevico na acccedilatildeo da

138 No texto latino consta ldquofabulardquo e natildeo ldquocomoediardquo a escolha da tradutora RM Rosado Fernandes pode estar pautada no fato de que Horaacutecio estrutura uma peccedila que deve observar os costumes cotidianos caracteriacutestica proacutepria da comeacutedia e natildeo da trageacutedia 139 Cf DONATO Eacutelio De Comoedia Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Adriano Milho Cordeiro Coimbra Artciencia 2011 p8 e 27

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comeacutedia consumou-se na Greacutecia na segunda metade do seacuteculo IV a C depois de sinais evidentes de mudanccedila que marcavam jaacute as uacuteltimas comeacutedias de Aristoacutefanes (Mulhe-res na Assembleia e Pluto) Os temas da comeacutedia caem agora em definitivo no terreno do quotidiano privado onde situaccedilotildees banais como viver em abastanccedila ou carecircn-cia o trabalho a alimentaccedilatildeo a agitaccedilatildeo do mercado as relaccedilotildees familiares dominam E dentro do mesmo espiacuteri-to os ldquoheroacuteisrdquo que lhes datildeo vida satildeo gente comum como a que habita uma qualquer rua da cidade (MENANDRO 2007 p12)

A ecircnfase na construccedilatildeo dos caracteres consolidada pela comeacutedia havia sido apontada anteriormente pelo historiador e criacutetico literaacuterio Dioniacutesio de Halicarnasso (60 aC ndash 7 dC) que no tratado Sobre a imitaccedilatildeo (II 9-14) afirma que dos comedioacutegra-fos se deve imitar o vocabulaacuterio puro e claro por serem bons construtores de caracte-res O tratado Sobre a Imitaccedilatildeo nos chegou apenas em fragmentos sendo recuperado parte dos dois primeiros livros e uma epiacutetome do segundo livro do terceiro nada ainda foi recuperado140 No tratado o historiador trata sobre o conceito de imitaccedilatildeo e aponta os poetas e prosadores que considera mais ilustres com o intuito de indicar os melho-res modelos aos que almejam aprender a escrever e falar bem Para Dionisio a imi-taccedilatildeo eacute uma atividade que parte da contemplaccedilatildeo do modelo a fim de reproduzi-lo O criacutetico atribui uma consequecircncia positiva decorrente de tal contemplaccedilatildeo a emulaccedilatildeo ou seja o desejo de exceder aos considerados ceacutelebres que seria um impulso da alma provocado pela admiraccedilatildeo do que eacute belo (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten I 2) No que concerne ao talento e ao gosto literaacuterio o criacutetico afirma que a parte mais importante do talento reside na natureza e natildeo em noacutes mesmos o gosto literaacuterio no entanto depende unicamente de noacutes (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten I 3)

Desse modo se o talento natildeo depende necessariamente do artista mas o gosto literaacuterio sim o historiador passa a elencar o que haacute de melhor nos autores instruindo para que se beba nas fontes consideradas as mais proveitosas Ele assinala a impor-tacircncia de se ler os antigos natildeo soacute para buscar temas mas tambeacutem para se esforccedilar na superaccedilatildeo das formas e das expressotildees Sobre os autores dramaacuteticos Dioniacutesio consi-dera Eacutesquilo sublime pois sabe utilizar adequadamente os caracteres e os sentimentos e eacute superior na capacidade de adornar tanto a linguagem figurada quanto a habitual aleacutem de ser criador de palavras e temas proacuteprios Soacutefocles se distingue tambeacutem nos caracteres e sentimentos e por colocar em cena personagens sempre dignos aleacutem de adornar seu discurso somente com o necessaacuterio Quanto a Euriacutepides Dioniacutesio afirma que ao poeta agrada mais a busca da verdade mais proacutexima da vida real lhe escapando agraves vezes o devido decoro e acerto na representaccedilatildeo de caracteres elevados apesar de descrever com maior detalhe os sentimentos indignos covardes e baixos das persona-gens (DIONISIO DE HALICARNASSO Imitacioacuten II 2 12)

140 Juan Segura(2005) tradutor da ediccedilatildeo espanhola da Gredos afirma que a obra nos chegou por quatro fontes distin-tas e incompletas mas natildeo haacute muitas duacutevidas quanto agrave autenticidade do tratado visto que o proacuteprio Dioniso eacute uma das fontes pois parte do livro II foi transmitida na Carta a Pompeu 32-611 Cf Tratados de Critica Literaacuteria p 478

No que diz respeito aos comedioacutegrafos Dioniacutesio natildeo se refere a Aristoacutefanes ou qualquer outro poeta da comeacutedia antiga Dos traacutegicos passa a um pequeno comentaacuterio sobre a importacircncia de se imitar todas as virtudes de expressatildeo dos comedioacutegrafos tais como a utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio puro e claro breve grandioso veemente proacute-prio do gecircnero comeacutedia Como jaacute foi mencionado Dioniacutesio considera os comedioacutegrafos bons construtores de caracteres e aleacutem de citar nominalmente a Menandro alerta que se deve observar como se daacute o tratamento dos fatos em suas peccedilas (DIONISIO DE HA-LICARNASSO Imitacioacuten II 2 14)

Dioniacutesio tende a evitar polecircmicas apresenta uma linguagem natural nem elo-quente por demais nem simploacuteria tem apurado olhar analiacutetico e apresenta um estu-do cronoloacutegico em que se dispotildee a escrever um tratado sobre a imitaccedilatildeo e portanto discorre especificamente sobre o que se deve imitar Consoante agrave imitaccedilatildeo conclamada pelo historiador Juan Segura (2005) nota em suas observaccedilotildees acerca da obra de Dioniacutesio aspectos negativos causados por essa concepccedilatildeo como a limitaccedilatildeo imposta a criaccedilatildeo dos artistas que deveriam estar sempre embasados nos modelos considerados perfeitos e o fato das produccedilotildees dos autores considerados em segunda categoria natildeo terem sido copiadas jaacute que se buscava copiar apenas as dos considerados perfeitos

Nossa pesquisa centra-se no estudo da criacutetica dos romanos sobre a produccedilatildeo literaacuteria grega com isso as postulaccedilotildees de Horaacutecio Ciacutecero e Dioniacutesio de Halicarnas-so enveredam para a elevaccedilatildeo dos modelos considerados egreacutegios Aleacutem disso outra perspectiva que poderia ser considerada eacute a investigaccedilatildeo da valorizaccedilatildeo da cultura gre-ga observando se constitui em valoraccedilatildeo ou preponderacircncia sobre a cultura romana como um modo de hierarquizaccedilatildeo Quanto a isso Luiz Fernando Dias Pita em Visotildees da identidade romana em Ciacutecero e Secircneca observa

Diversos autores pensarem ser a literatura grega ldquohierar-quicamenterdquo superior agrave latina esta seria enfim um con-junto de simples repeticcedilotildees dos processos desenvolvidos por aquela com os autores latinos servindo-se reitera-damente dos modelos gregos para criar obras que quase nunca poderiam igualar-se ao original Contudo devemos noacutes tambeacutem prevenir nosso olhar e nossa capacidade de julgamento quanto agrave ultravalorizaccedilatildeo ndash propugnada pelos romacircnticos e repetida por seus sucessores ndash da originali-dade como quesito avaliativo da primeira ordem (PITA 2010 p 21)

Por fim salientamos que nossa pesquisa natildeo tem como objetivo hierarquizar e sim apontar o que os criacuteticos conjecturaram como relevante para ser imitado e tal imitaccedilatildeo eacute percebida como positiva e como uma amaacutelgama e que contribui para a formaccedilatildeo do que poderiacuteamos denominar de cultura greco-latina mas ressaltamos que tal investigaccedilatildeo eacute um caminho possiacutevel para confirmar ou corrigir nossa concepccedilatildeo Inicialmente em atenccedilatildeo ao mote emprestado de Quintiliano o da lsquoobservaccedilatildeo dos

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bons costumesrsquo e o do lsquocaraacuteter uacutetil da comeacutediarsquo procuramos observar essas mesmas premissas em extratos da obra de Ciacutecero e Horaacutecio Horaacutecio natildeo soacute toma a arte como verossiacutemil e imitativa da vida a arte como imitaccedilatildeo da vida eacute um conceito imbricado ao prazer que vem da imitaccedilatildeo e da funccedilatildeo educativa que se exerce ao imitar E como na Poeacutetica (1458b 59) nos lembra o proacuteprio Aristoacuteteles ldquoo imitar eacute congecircnito ao homem () e os homens se comprazem no imitadordquo

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TRINGALI Dante Arte Poeacutetica de Horaacutecio Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de D Trin-gali Satildeo Paulo Musa Editora 1993

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Qual eacute o seu OrfeuBreve apreciaccedilatildeo do mitode helecircnico reinventado

pelas muacuteltiplas linguagens artiacutesticas

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Fernanda Lemos de Lima

Ah quero ser teu Orfeu cantar nos teus braccedilos meu poema ateu E fazer do teu sexo o meu verso controverso

Com os versos de Thiago Petit como epiacutegrafe inicio o presente texto so-bre uma das figuras miacuteticas e miacutesticas de maior impacto da antiguidade helecircnica Orfeu Todavia mesmo buscando compreender alguns pontos de sua escatologia no ambiente claacutessico o estudo aqui empreendido visa perceber a permanecircncia e reinven-ccedilatildeo do mito atraveacutes de diferentes teacutecnicas artiacutesticas as quais natildeo apenas revisitam o mito mas o reescrevem no processo incessante da estrada da Arte

Orfeu eacute o heroacutei miacutetico encantador de feras capaz de fazer adormecer o catildeo

triceacutefalo dos infernos eacute tambeacutem a personagem a sofrer um diasparagmoacutes (desmem-brado) por obra das bacantes as seguidoras do deus Dioniso curiosamente deidade cujo culto tem correlaccedilatildeo com os misteacuterios oacuterficos O que leva a outro ponto fortiacutessimo da histoacuteria sobre o cantor miacutetico o Orfismo como um culto de misteacuterios

Orfeu eacute filho de um rei com uma das Musas que no seacuteculo XX seraacute torna-

do tambeacutem em sambista de Vinicius de Moraes em personagem apropriada por Neil Gaiman no Sandman em tema de muacutesica Por essas breves menccedilotildees eacute possiacutevel com-preender a intensidade do mito que eacute atualizado de vaacuterias formas e ultimamente tambeacutem o seraacute pela arte pop

Para empreendermos a jornada em busca desse heroacutei eacute preciso compreender o

processo de construccedilatildeo do mito para em seguida percorrer os rastros das adaptaccedilotildees

1 Quem eacute Orfeu

De acordo com Junito de Sousa Brandatildeo (BRANDAtildeO 1997 p196) Orfeu eacute fi-lho do rei-rio Eagro e da Musa Caliacuteope nada mais nada menos que a musa da poesia eacutepica Outras versotildees filiam o cantor mortal ao deus Apolo o condutor das Musas Sua vinculaccedilatildeo a Apolo eacute compreensiacutevel em funccedilatildeo de sua habilidade musical Haacute vaacuterias passagens do mito em que o heroacutei se destaca por conta de seu canto e de sua capacida-de de encantar todos os seres atraveacutes da muacutesica

Aleacutem da ligaccedilatildeo com o culto Apoliacuteneo haacute as correlaccedilotildees entre o heroacutei de ori-gem traacutecia e a figura de Dioniso outra divindade que embora considerada grega uma vez que fora concebida em Tebas tem todo o processo de entrada e aceitaccedilatildeo do culto marcado em sua escatologia fazendo com que esse seja percebido como algo vindo de fora da Greacutecia Tais dados levam agrave compreensatildeo do mito e culto em torno da figura de Orfeu como de origem natildeo-helecircnica ou seja como um processo religioso incorporado agrave cultura da Heacutelade

Eacute interessante pensar no entanto como Orfeu eacute representado iconografica-

mente como grego mesmo ao ser representado ao lado de personagens reconhecidas

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como de origem Traacutecia como eacute destacado por Ordep Serra e visiacutevel na imagem de um vaso publicada na beliacutessima e importantiacutessima traduccedilatildeo dos Hinos Oacuterficos (SERRA p 754) Na referida imagem eacute preciso destacar que Orfeu traja uma tuacutenica e tange sua Lira de nove cordas sua proacutepria invenccedilatildeo uma vez que a lira tradicional apresentava sete cordas O contraste com os guerreiros traacutecios salienta a imagem selvagem e rude daqueles homens que se vestem com peles de leotildees todavia se encontram calmos a escutar o canto de Orfeu Esse retrato reforccedila a ideia de que o cantor filho da Musa eacute capaz de acalmar a selvageria de homens e animais

Haacute outras iconografias que ligam Orfeu agrave capacidade de acalmar as feras O

Museu Bizantino e Cristatildeo de Atenas guarda uma escultura do seacuteculo IV que justa-mente representa Orfeu a cantar e tocar para os animais que calmos escutam-no

O nome Orfeu tem uma etimologia obscura e nesse ponto eacute necessaacuterio res-

saltar novamente a hipoacutetese de se tratar originalmente de um heroacutei traacutecio que foi incluiacutedo no universo miacutetico helecircnico o que explicaria a obscuridade da etimologia de seu nome Novamente recorrendo a Brandatildeo observa-se que o estudioso levanta uma possibilidade para a compreensatildeo do nome Orfeu

A hipoacutetese de uma derivaccedilatildeo de orbho- ὀρφο- (orpho-) ldquoprivado derdquo( e Orfeu o foi de Euriacutedice) eacute apenas uma hi-poacutetese bastante influenciada pela existecircncia de ὀρφανός (orphanoacutes)

Em outra obra Brandatildeo (BRANDAtildeO 1995 p141) aventa a hipoacutetese de o nome estar ligada agrave palavra que em grego significaria a ldquoobscurordquo

A despeito da dificuldade etimoloacutegica de seu nome provavelmente de origem

preacute-helecircnica seu mito tem uma importacircncia bastante evidente na antiguidade como jaacute foi mencionado aqui Sua escatologia envolve accedilotildees que satildeo sobre-humanas e justa-mente por isso colocam o heroacutei na posiccedilatildeo de um mortal que ultrapassa sua medida seja pela capacidade ilimitada de encantar com a muacutesica seja por ter decidido ir ao mundo dos mortos mesmo estando ainda vivo Ordep Serra ao comentar os feitos de Orfeu no processo de encantar as feras com a muacutesica como apresentado nos versos de Simocircnides ldquoSatildeo imagens de beleza oniacuterica mas eacute evidente que essas faccedilanhas desa-fiam a ordem do mundo que a subvertemrdquo (SERRA p 41)

Para compreender essas desmedidas de Orfeu eacute preciso falar dos passos do

mito mesmo que de modo conciso Orfeu o muacutesico para aleacutem da sua filiaccedilatildeo agrave musa Caliacuteope e ao rei-rio da Traacutecia Eagro mais tarde associado a Apolo foi um dos heroacuteis a participar da expediccedilatildeo da nau Argo ao lado de Jasatildeo Heacuteracles e outros heroacuteis todos retratados na Argonautica de Apolocircnio de Rodes Nesse ponto eacute interessante pensar no papel de um cantor e poeta na expediccedilatildeo em busca do velocino de Ouro uma vez que Orfeu natildeo eacute reconhecido exatamente por suas virtudes guerreiras

Como entatildeo um cantor e poeta poderia ser imprescindiacutevel para aventura de

busca e captura de um objeto precioso em meio a uma regiatildeo baacuterbara Sobretudo em

uma terra cujo rei Aetes era conhecido por sua selvageria e violecircncia contra os estran-geiros Ele seraacute o indiviacuteduo que marcaraacute o ritmo das remadas e seraacute responsaacutevel por tudo que esteja ligado agrave canccedilatildeo e agrave calmaria Ele seraacute fundamental na viagem da nau Argo por ser o uacutenico capaz de encantar as sereias Sua forccedila natildeo eacute fiacutesica mas divina atraveacutes da muacutesica Serra ressalta em seu estudo introdutoacuterio agrave traduccedilatildeo dos Hinos Oacuter-ficos o que caracteriza Orfeu Ele era ldquosiacutembolo do fazer criativo que os gregos chama-vam de poicircesis uma atividade que daacute frutos em todas as esferas da imaginaccedilatildeordquo(SER-RA p21) Sua capacidade de accedilatildeo estaacute ligada portanto agrave arte criativa e em termos miacutesticos agrave capacidade encantatoacuteria Nesse sentido embora ele seja ligado ao deus da medida Apolo ele eacute o indiviacuteduo que supera seus limites humanos encantando seres sobre-humanos bem como os deuses Haacute algo de desmedido tambeacutem no mitologema de Orfeu

Aleacutem da aventura ao lado dos Argonautas o tema que mais marca o mito de Orfeu eacute seu infortuacutenio amoroso Aliaacutes na maioria das referecircncias contemporacircneas ao mito de Orfeu haacute a ideia de se falar da histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice Justamente a per-da de Euriacutedice marcaraacute a trajetoacuteria do heroacutei filho de Caliacuteope Essa passagem para aleacutem dos contornos amorosos da imagem de amor que se perde para morte natildeo uma vez mas duas traz traccedilos importantiacutessimos para a compreensatildeo dos passos dos misteacuterios

Antes de adentrar o tema do Orfismo opto por falar do enlace amoroso fun-damental para os passos do mito Orfeu casou-se com Euriacutedice depois de sua aventura junto aos Argonautas Vale ressaltar que o nome de Euriacutedice tem um significado de extrema relevacircncia Orfeu em uma hipoacutetese etimoloacutegica o obscuro ndash algo que remete agrave obscuridade dos misteacuterios ndash eacute casado com a ldquojusticcedila amplardquo pois o nome de Euriacutedice eacute composto pela raiz euri- que significa amplo e pelo vocaacutebulo diacuteke ordem justiccedila direito correccedilatildeo Karl Kereacuteny em sua obra Os heroacuteis gregos acrescenta a informaccedilatildeo de que o nome Euriacutedice significaria tambeacutem ldquoa que governa extensamenterdquo epiacuteteto atribuiacutedo agrave Perseacutefone esposa de Hades O mesmo autor elenca ainda outros nomes atribuiacutedos agrave amada de Orfeu como Agriacuteope e Argiacuteope respectivamente ldquoa de rosto selvagemrdquo e ldquoa de rosto argecircnteordquo (KEREacuteNYI p 232) Levando em consideraccedilatildeo a proposta de reflexatildeo da presente investigaccedilatildeo a respeito da permanecircncia do mito de Orfeu opto por me ater ao nome Euriacutedice Isso se daacute por ser esse o nome pelo qual se conhece a amada de Orfeu nas obras a serem trabalhadas aqui

Assim atendo-me ao nome Euriacutedice eacute interessante pensar esse desposar da ldquojusticcedila amplardquo que seraacute perdida por Orfeu No mito cantado por Virgiacutelio Euriacutedice eacute perseguida por Aristeu um apicultor que deseja a estuprar Em sua fuga Euriacutedice eacute picada por uma serpente e vem a falecer Orfeu natildeo aceita a morte da esposa e decide ir ao Hades para a resgatar

A decisatildeo de ir ao Hades eacute fundamental para a associaccedilatildeo de Orfeu aos mis-teacuterios namedida em que a ideia de ir ao mundo dos mortos e de laacute retornar implica numa espeacutecie de renascimento miacutestico renascimento do iniciado que precisa morrer e deixar sua vida anterior para traz renascendo ao voltar dos mortos

A passagem da morte da jovem Euriacutedice e da dor e busca de reparo por parte

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de Orfeu eacute contada em versos por Virgiacutelio como jaacute foi dito Mais precisamente nas Geoacutergicas IV versos 453-527 em que se vecirc Aristeu o apicultor procurando compreen-der que maldiccedilatildeo se abate sobre ele causando o perecimento de todas as suas abelhas

A resposta vem do velho Proteu o qual eacute uma figura tomada dentro da tradi-

ccedilatildeo literaacuteria claacutessica agrave Odisseia como bem lembra Veiga no comentaacuterio que antecede a apresentaccedilatildeo do texto original de Virgiacutelio e de sua proposta de traduccedilatildeo Assim o apicultor apoacutes aprisionar Proteu e esperar suas metamorfoses cessarem obteacutem final-mente a resposta

Eacute a ira a ira de uma divindade que te persegue pagas os grandes atentados o pobre Orfeu de nenhum modo se os destinos natildeo se opotildeem alivia a ti estas penas por causa do teu comportamento e se enfurece severamente por causa da esposa raptada De fato aquela menina prestes a mor-rer enquanto fugia de ti precipitada atraveacutes dos rios natildeo viu diante dos peacutes na relva densa a feroz cobra que vigiava as margens142 (Veiga p 175)

Eacute necessaacuterio perceber como o eu-liacuterico se refere a Orfeu como divindade a qual natildeo alivia as penas do apicultor na responsabilidade pela morte de Euriacutedice natildeo nomeada nessa passagem Os versos de Virgiacutelio destacam como morre a jovem esposa de Orfeu picada por uma viacutebora escondida na relva todavia isso ocorre apenas por-que a moccedila foge aos ataques do Apicultor Assim a responsabilidade pela morte de Euriacutedice cai sobre Aristeu

11 A simbologia do desapego agrave mateacuteria Continuando a observar o mitologema de Orfeu passamos a passagem que soacute

pode ocorrer devido agrave morte de Euriacutedice Com isso quero chamar a atenccedilatildeo para o fato de que o processo de iniciaccedilatildeo simboacutelica de Orfeu soacute pode se dar devida a perda daque-la que o completaria Nesse sentido eacute interessante pensar em outro par miacutetico e miacutesti-co Eacuteros e Psiquecirc Todavia no caso da busca empreendida por Psiquecirc na recuperaccedilatildeo de seu amor perdido por sua desconfianccedila haacute o reencontro e uniatildeo definitiva do casal Algo que natildeo se daraacute na versatildeo claacutessica do mito de Orfeu e Euriacutedice como seraacute visto a partir dos versos de Virgiacutelio por meio da traduccedilatildeo de Veiga Observe-se a passagem em que Orfeu comeccedila a empreender sua cataacutebase ou descida ao mundo dos mortos

Penetrou nas gargantas do Tecircnaro entrada profunda de Dite e no bosque obscuro sob o negro temor e dirigiu-se aos manes ao rei temiacutevel e aos coraccedilotildees que natildeo sabem se abrandar com as suacuteplicas dos homens Mas comovi-das pelo canto as sombras tecircnues e os espectros dos ca-

142 Non te nullius exercent numinis irae magna lui scommissa tibi has miserabilis Orpheus haudquaquam ob meritum poenas ni fata resistant 455 suscitat et rapta grauiter pro coniuge saeuit Illaquidem dum te fugeret per flumina prae-ceps immanem ante pedes hydrum moritura puella seruantem ripas alta non uidit in herba

rentes de luz acorriam das moradas profundas do Eacuterebo () Aleacutem disso os proacuteprios recintos e tambeacutem os abismos mais profundos da morte pararam e as Eumecircnides en-trelaccediladas de serpentes azuis nos cabelos detiveram-se e Ceacuterbero desejando abrir segurou as trecircs bocas tambeacutem o giro da roda de Ixiatildeo com o vento cessou143 (VEIGA p173)

As gargantas do Tecircnaro conduzem agrave entrada do Dite outro nome para Plutatildeo o senhor dos mortos O mundo daqueles que natildeo mais vecircm o sol leva o nome de seu senhor do mesmo modo que o Hades na cultura helecircnica eacute o nome dado ao reino do Zeus dos mortos Assim Orfeu adentra a morte como em um processo de iniciaccedilatildeo no qual o neoacutefito morre para a vida antiga e renasce O cantor filho da Musa adentra o Dite para encantar os senhores de laacute e convencecirc-los a devolver sua amada perdida para a morte Nesse sentido Orfeu segue buscando o amor que se foi e portanto voltando--se para um passado

No poema virgiliano observa-se perfeitamente o dom musical sobre humano de Orfeu ao encantar a todos inclusive agraves Eumecircnides as tatildeo terriacuteveis justiceiras do sangue congecircnito derramado Por conta desse dom Proseacuterpina permite o retorno de Euriacutedice mas com a condiccedilatildeo que ele natildeo se voltasse para traacutes buscando a ver antes de ter saiacutedo do Dite Todavia ele natildeo resiste e se volta para sua amada receacutem retornada dos mortos

E jaacute prosseguindo de todo acidente se evadira e Euriacutedi-ce restituiacuteda vinha para a superfiacutecie seguindo atraacutes (pois Proseacuterpina tinha imposto esta lei) quando uma loucura suacutebita que decerto deveria ser perdoada se os manes sou-bessem perdoar tomou o incauto amante parou e para a sua Euriacutedice jaacute sob a luz olhou esquecido ai e vencido pela paixatildeo Nesse momento todo o esforccedilo se perdeu e a lei do cruel tirano foi infringida e trecircs vezes se ouviu um estrondo nos lagos do Averno Ela disse ldquoQual oacute Orfeu arruinou a mim miacutesera e a ti Qual tamanha loucura Eis que os destinos crueacuteis pela segunda vez me chamam de volta e o sono encerra meus olhos em laacutegrimas E agora adeus sou levada envolta por uma noite sem fim e esten-dendo a ti as invaacutelidas matildeos ai jaacute natildeo sou mais tua144

(VEIGA p 176) O natildeo pertencimento de Euriacutedice em relaccedilatildeo agrave Orfeu eacute marcado no uacuteltimo

verso citado Esse natildeo pertencimento estaacute relacionado agravequilo que simbolicamente precisa ser deixado para traacutes pelo iniciado Olhar para traacutes eacute estar apegado ao passado

143 Taenarias etiam fauces alta ostia Ditis et caligantem nigra formidine lucum ingressus Manisque adiit regemque tre-mendum nesciaque humanis precibus mansuescere corda470 At cantu commotae Erebi de sedibus imis umbrae ibant tecircnues simulacraque luce carentum () Quin ipsae stupuere domus at que intima Leti Tartara caeruleosque implexa ecrinibus angues Eumenides tenuitque inhians tria Cerberus ora atque Ixionii uento rota constitit orbis

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agravequilo que simboliza a existecircncia antes da iniciaccedilatildeo reveladora e do renascimento do neoacutefito De acordo com Brandatildeo as direccedilotildees carregam dimensotildees simboacutelicas impor-tantes

Eacute assim que olhar para frente eacute desvendar o futuro e pos-sibilitar a revelaccedilatildeo() para traacutes eacute o regresso ao passado agraves harmatiacuteai agraves faltas aos erros eacute a renuacutencia ao espiacuterito e agrave verdade (BRANDAtildeO 1997 199)

A partir dessa reflexatildeo podemos compreender o ato de olhar para traacutes pelo menos na cultura que molda o Ocidente como um sinal de apego ao passado ou agrave vida que precisa ser deixada Brandatildeo em outra obra que trata do mito de Orfeu e do Orfismo corrobora a ideia de que o gesto de voltar para traacutes simbolizaria um apego agrave mateacuteria e ao passado representado por Euriacutedice Isso seria um reflexo do momento de desenvolvimento em que se encontra o heroacutei um a pessoa ainda natildeo preparada para ldquojunccedilatildeo harmocircnica e definitiva com sua animardquo (BRANDAtildeO 1995 p144)

12 O dilaceramento de Orfeu Apoacutes ter perdido definitivamente sua Euriacutedice Virgiacutelio canta como Orfeu cho-

rou por sete meses seguidos e chamou o nome de Euriacutedice Ele natildeo consegue mais cantar apenas chama por Euriacutedice

O passo seguinte seria o seu dilaceramento por Bacantes talvez por ter esque-cido o culto a Dioniso talvez por ter rejeitado o convite das Bacas para participar em seus folguedos dionisiacuteacos talvez ainda por ter fundado um culto vedado agraves mulheres todas essas hipoacuteteses satildeo aventadas por autores como Brandatildeo e Serra Kereacutenyi traz uma versatildeo baseada em Oviacutedio em sua obra Metamorfoses na qual

Segundo as histoacuteria mais antiga as mulheres da Traacutecia do-eram-se de que Orfeu se mantivesse afastado do amor das mulheres por trecircs anos inteiros Acostumado a procurar apenas a companhia dos moccedilos dele se dizia que intro-duziu a paixatildeo homoeroacutetica na Traacutecia (KEREacuteNYI p234)

Serra menciona a hipoacutetese de Pausacircnias segundo a qual Orfeu ter sido fulmi-nado por um raio de Zeus por ter revelado aos humanos os misteacuterios divinos De certo modo o Orfismo do qual se falaraacute mais a diante traz a promessa de uma vida apoacutes a morte a partir das praacuteticas miacutesticas e dos cultos de misteacuterios Os Hinos Oacuterficos embo-ra se saiba que satildeo textos bem posteriores a esse passado miacutetico da personagem Orfeu satildeo considerados escritos recitados a Museu disciacutepulo do canto traacutecio ou em algumas

144Iamque pedem referens casus euaserat omnis 485redditaque Eurydice superas ueniebat ad auras pone sequens (manque hanc dederat Proserpina legem) cum suacutebita incautum dementia cepit amantem ignoscenda quidems ci-rent si ignoscere Manes restitit Eurydicenque suam iam luce sub ipsa 490 immemor heu Uictusque animi respexit Ibi omnis effusus labor atque immitis rupta tyranni foedera terque fragor stagnis auditus Auerni Illa ldquoquisetmerdquo inquit ldquomiseram et te perdidit Orpheu quistan tus furor Em iterum crudelia retro 495 fata uocant conditque na-tantia lumina somnus Iamque uale feror ingenti circumdata nocte inualidasque tibi tendens heu Non tua palmasrdquo

tradiccedilotildees seu filho

Voltando ao episoacutedio do desmembramento mesmo com tantas variantes tem--se a ideia de que Orfeu tem o corpo destroccedilado por mulheres um tema recorrente em imagens de vasos aacuteticos como seraacute comentado mais agrave frente Desse processo de spa-ragmoacutes ou diaspagamoacutes o qual tambeacutem poderia ser considerado como um passo de uma ritualiacutestica simboacutelico-miacutetica encontrada em mitologemas de Dioniso e de Osiacuteris o deus Egiacutepcio resulta a viagem da cabeccedila de Orfeu lanccedilada ao rio Hebro Sua cabeccedila encontrada por um pescador na embocadura do rio Meles na Jocircnia eacute conservada em um templo erguido para esse fim donde a cabeccedila passaraacute a vaticinar

13 O Orfismo e os misteacuterios

Muitas vezes ouve-se falar dos misteacuterios no acircmbito da cultura religiosa he-lecircnica Sabe-se da existecircncia dos misteacuterios de Elecircusis dos misteacuterios ligados ao culto de Dioniso e dos misteacuterios Oacuterficos e no acircmbito do Impeacuterio Romano dos misteacuterios de Mitra De fato exatamente como eram os cultos de misteacuterios natildeo se pode falar jus-tamente por seu caraacuteter interdito aos natildeo-iniciados Entretanto eacute possiacutevel investigar alguns dados sobre os misteacuterios e compreender suas configuraccedilotildees em linhas gerais Serra (SERRA p22) referindo-se ao Orfismo afirma

O culto de Misteacuterios envolvia iniciaccedilatildeo alentada pela es-peranccedila de comunhatildeo com a divindade () Essa forma de culto distinguia-se de todas as outras na Greacutecia Antiga pelo imperativo do segredo O nome substantivo mysteria ndash que sempre se registra assim no plural nos documentos mais antigos ndash tal como seu cognato myeicircn (ldquoiniciarrdquo) e myeicircsthai (ldquoser iniciadordquo) deriva de uma raiz um [pre-sente no latim mutus donde o portuguecircs ldquomudordquo] que tem o significado baacutesico de fechar O mystes iniciado eacute algueacutem que mantem os laacutebios cerrados guardando segre-do religioso

Ou seja pela observaccedilatildeo do autor citado compreende-se o caraacuteter secreto das praacuteticas religiosas que envolvem os Misteacuterios

O Orfismo seria uma das formas de cultos de misteacuterios no ambiente helecircnico que ultrapassou os limites do periacuteodo arcaico e claacutessico e chegou ateacute a chamada an-tiguidade tardia Os Hinos Oacuterficos satildeo exemplo disso embora haja uma controveacutersia histoacuterica a respeito da existecircncia ou natildeo do Orfismo como comentam Brandatildeo (1995 p 150) e Serra (p 77) De qualquer modo a soteriologia ou seja um processo religioso que pretende a salvaccedilatildeo de seu adepto era algo evidente na praacutetica religiosa conhecida como Orfismo sendo a figura de Orfeu a do cantor iniciado a transmitir os ensinamen-tos para a salvaccedilatildeo O processo de culto oacuterfico a despeito da filiaccedilatildeo do muacutesico traacutecio a Apolo estaacute mais ligado agrave figura de Dioniso Vale ressaltar que tanto Dioniso quanto Orfeu apresentam em seus mitos a cataacutebase e o despedaccedilamento De acordo com Eliade (1978 p215)

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Diodoro da Siciacutelia refere-se ao que parece aos mis-teacuterios dionisiacuteacos quando escreve que ldquoOrfeu trans-mitiu nas cerimocircnias dos misteacuterios o despedaccedilamen-to de Dionisordquo (V 75 4) E em outro trecho Orfeu eacute apresentado como um reformador dos misteacuterios dio-nisiacuteacos ldquoeacute por esse motivo que as iniciaccedilotildees devidas a Dioniso satildeo denominadas Oacuterficasrdquo (III 65 6) () Com efeito Orfeu era proclamado ldquoprofeta de Dioni-sordquo e ldquofundador de todas as iniciaccedilotildeesrdquo

Os Hinos Oacuterficos oferecem ao leitor a ideia de que se trata de uma coleccedilatildeo de cantos celebrando os deuses ou os invocando com um ar ritualiacutestico como eacute possiacutevel perceber pelos dois uacuteltimos versos do ldquoProecircmiordquo de Orfeu a Museu ldquoPropiacutecios vinde oacute deuses de coraccedilatildeo alegreAo miacutestico sacrifiacutecio e agrave libaccedilatildeo perfeitardquo145

Essa breve abordagem do mitologema de Orfeu e de seus desdobramentos simboacutelicos aleacutem da menccedilatildeo ao Orfismo oferece ao leitor uma ideia da potecircncia do re-ferido mito Tal apreciaccedilatildeo auxilia a compreender a constante retomada do mito oacuterfico e em especial da passagem em que haacute a perda de Euriacutedice e a cataacutebase ao mundo dos mortos Assim passo a abordar a permanecircncia e as modificaccedilotildees do mito de Orfeu em diversas expressotildees de arte para aleacutem da palavra escrita

2 Tantos Orfeus Em vaacuterias expressotildees artiacutesticas o mito de Orfeu e seu amor por Euriacutedice satildeo

retomados e adaptados ao longo dos seacuteculos Desde o Renascimento ateacute a contempora-neidade No presente estudo selecionei apenas algumas obras de expressotildees bastante distintas para que fosse possiacutevel ter uma ideia da variedade de formas com as quais essa passagem da mitologia claacutessica eacute percebida e reconstruiacuteda como narrativa

21 A oacutepera canta Orfeu e Euriacutedice Assim comeccedilo a apreciaccedilatildeo por uma oacutepera que natildeo seraacute a primeira a retomar

a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice A primeira foi a oacutepera Orfeo de Monteverdi em 1607 (GARDNER 2015) A estoacuteria de amor interrompida pela morte que enreda Orfeu e Euriacutedice foi tomada como tema por Christoph Willinband Gluck na oacutepera Orpheacutee et Eurydice em 1762 Todavia se nas passagens miacuteticas claacutessicas Orfeu perde definitiva-mente sua Euriacutedice Gluck reescreve o mito e em sua oacutepera oferece ao casal um final feliz sob os auspiacutecios do deus Amor o Eacuteros da mitologia grega

Eacute interessante pensar como o desfecho da oacutepera oferece agrave audiecircncia o canto do deus Amor que celebra altivo as dores e alegrias do amor que traz dores e laacutegrimas mas eacute ldquopreferiacutevel agrave liberdaderdquo Definitivamente celebra-se o amor romacircntico com final feliz ecoando os romances gregos que satildeo amplamente lidos no mesmo periacuteodo histoacute-rico de Gluck e que sempre contam com o finais felizes

145 εὐμενἐας ἐλθεῖν κεχαρημένον ἦτορ ἔχονταςτήνδε θυηπολίην ἱερὴν σπονδήν τ´ἐπὶ σεμνήν

Eacute relevante refletir como a versatildeo de Gluck ao modificar o desenlace do episoacute-dio de ida ao mundo dos mortos elimina os outros passos da narrativa miacutetica Isso se daacute na medida em que tendo recuperado sua amada Orfeu natildeo cairaacute em tristeza e natildeo teraacute seu fim agraves matildeos das bacantes natildeo passando por um diaspargmoacutes e natildeo tendo sua cabeccedila lanccedilada ao rio

22 O pathosformel do dilaceramento Se para Gluck o final feliz eacute possiacutevel para alguns pintores gravuristas e escul-

tores o diasparagmoacutes baacutequico seraacute o tema eleito para dar plasticidade ao mito claacutessico como ocorre na imagem de Albrecht Duumlrer na gravura intitulada Morte de Orfeu de 1494

Albrecht Duumlrer A Morte de Orfeu 1494 (Hambourg Kunsthalle) (CARERI 2003 p 46)

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Vale ressaltar que em relaccedilatildeo a essa obra de Duumlrer pode-se tomar a ideia de Aby Warburg de pathosformel uma vez que haacute a repeticcedilatildeo de um tema formal a ser emulado a partir de um modelo Giovanni Careri aponta isso em seu artigo Rituel Pa-thosformel et forme intermeacutediaire referindo-se justamente ao tema de Orfeu Nesse caso a repeticcedilatildeo temaacutetica formal partiria de um vaso aacutetico que retrata a morte do He-roacutei pelas matildeos das bacantes repetido por Duumlrer e igualmente por Andrea Mantegna em um afresco como se vecirc nas imagens que se seguem Eacute possiacutevel perceber a seme-

La mort drsquoOrpheacutee vase grec de Nola (Louvre) (CARERI 2003 p48)

Andrea Mantegna A morte de Orfeu (palaacutecio de Mantoue) (CARERI 2003 p 51)

Morte de Orfeu (Wikimidia Commons 2020)

lhanccedila no conjunto de bacantes a agredir Orfeu caiacutedo ao chatildeo As obras se diferenciam pela teacutecnica suporte e estilo todavia apresentam o mesmo pathosformel

Acrescento agrave reflexatildeo de Careri que natildeo se limita ao mito de Orfeu outras obras que repetem o tema do dilaceramento pelas matildeos das bacantes caso da obra de Jean Baptiste Bin de 1874

23 O mito oacuterfico no cinema

Deixando a plasticidade busco agora as artes populares do seacuteculo XX como o cinema Jean Cocteau e Marcel Camus levaram Orfeu agraves telas mas de maneiras intei-ramente diferentes

Natildeo obstante antes de abordar as produccedilotildees ambientadas no Brasil vale men-cionar mesmo que natildeo venha a ser trabalhado no presente estudo o filme de produccedilatildeo grega de Nikos Nikolaiacutedis Euriacutedice BA 2037 em que a protagonista eacute Euriacutedice vivendo em um ambiente de clausura dentro de casa e lidando com a burocracia e a espera por Orfeu

Lidando com os filmes que trazem Orfeu como personagem busco observar as

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diferenccedilas entre a proposta de Cocteau e Camus Se o cinema de Cocteau traz uma ver-satildeo que lida com uma espeacutecie de fantasmagoria em que o poeta adentra o mundo dos mortos pelo espelho a obra de Camus seraacute baseada na livre adaptaccedilatildeo do mito para o contexto carioca das favelas do Rio de Janeiro realizada por Vinicius de Moraes em sua peccedila musical Orfeu da conceiccedilatildeo Na presente investigaccedilatildeo opto por me debruccedilar mais atentamente sobre o filme baseado no teatro brasileiro

Orfeu da Conceiccedilatildeo foi composto pelo poeta Vinicius de Moraes e musicado por Tom Jobim O espetaacuteculo teatral foi levado agrave cena em 1956 pelo grupo do TEM Tea-tro Experimental do Negro dirigido por Abdias do Nascimento A despeito da maneira folcloacuterica e romantizada como o ambiente da favela eacute retratado a adaptaccedilatildeo do mito eacute extremamente interessante e isso fica evidente na adaptaccedilatildeo para o cinema a qual daacute acesso ao puacuteblico de hoje agravequela rescrita do mito

Orfeu aleacutem de um condutor de bonde eacute um sambista que vai tirar o violatildeo do prego para poder voltar a tocar O filme se passa no periacuteodo do Carnaval e eacute esse o mo-mento em que Euriacutedice uma moccedila do interior que foge de uma figura fantasmagoacuterica ndash a morte destino do qual natildeo pode se livrar ndash chega agrave Favela e conhece o sambista

Haacute tomadas que procuram marcar a imagem do tempo de Carnaval como um momento de festa desregrada que atordoa Euriacutedice A imagem da barca atracando na Praccedila XV e de onde desembarca uma multidatildeo de foliotildees traz algo do frenesi exacerba-do como eacute percebido o Carnaval pela lente de Camus o universo caoacutetico do Carnaval

Orfeu aleacutem de condutor de bonde canta para o sol nascer remetendo a ima-gem do sambista agrave ideia apoliacutenea da conduccedilatildeo do carro do Sol ou seja de responsabi-lidade pelo amanhecer de cada dia Outras personagens que colaboram na economia do mito seratildeo encontradas em Orfeu Negro Hermes seraacute o chefe dos condutores de bonde Caronte seraacute retratado como um faxineiro da reparticcedilatildeo puacuteblica em que Orfeu vai buscar notiacutecias sobre sua amada desaparecida como se observa na imagem

Orfeu negro (CAMUS 1959)

Orfeu negro (CAMUS 1959)

Caronte o condutor da barca que leva os mortos para a travessia do rio Estige ateacute seu destino final no Hades seraacute tambeacutem no filme aquele que conduz o sambista na busca sobrenatural por Euriacutedice Caronte conduz Orfeu para ter contato com os mortos em uma toma de plasticidade iacutempar

Aqui a cataacutebase oacuterfica eacute representada pela imensa escada em espiral A ima-gem daacute uma sensaccedilatildeo de descida infinita como a penetrar o interior desse mundo subterracircneo que eacute a morada miacutetica dos mortos

O lugar do misteacuterios seraacute um centro religioso de matriz africana Na porta o catildeo Ceacuterbero guarda a entrada Euriacutedice se comunicaraacute com Orfeu estando incorporada em uma meacutedium O problema eacute Orfeu natildeo aceitar a morte de Euriacutedice e olhar para direccedilatildeo de onde vem a voz da amada

Orfeu eacute encontrado por Hermes (chefe dos condutores) na mitologia grega o psicopompo ndash condutor de almas ndash e o leva para buscar o cadaacutever de Euriacutedice I n -teressante perceber como pela leitura de Vinicius de Moraes levada agrave tela por Camus Orfeu apoacutes recuperar o cadaacutever de Euriacutedice encontra a morte pelas matildeos de sua ex-namorada Mira Mira na pronuacutencia do grego moderno eacute moira ou seja ldquodestinordquo em grego Pode-se perceber como eacute essa a personagem que sela o destino a moira de Orfeu Ele carregando o cadaacutever no colo cai colina abaixo e morre ao receber uma pedrada de Mira Em uma leitura de iniciaccedilatildeo miacutestica seria possiacutevel compreender como esse Orfeu natildeo consegue transcender a mateacuteria ele estaacute preso agrave finitude da vida encarnada

Em 1999 Cacaacute Diegues lanccedila sua versatildeo par o mito O tiacutetulo do filme eacute Orfeu o que jaacute constitui uma mudanccedila destacaacutevel para o tiacutetulo de Camus Do mesmo modo a ambientaccedilatildeo eacute outra a favela de Diegues natildeo eacute a romantizada pelo olhar de Camus e

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de Moraes mas a que traz a violecircncia cotidiana em que a poliacutecia sobe o morro ldquoescula-chandordquo e haacute o domiacutenio do narcotraacutefico Uma frase traduz a abordagem mais realista na fala de um policial que pergunta a Orfeu ldquoo que vocecirc ainda taacute fazendo aqui no meio desse monte de lixordquo referindo-se agrave populaccedilatildeo residente na favela com desrespeito Na abordagem de Diegues Orfeu jaacute eacute um sambista conhecido mas que natildeo deixa suas origens E mesmo com toda a truculecircncia eacute o mesmo policial que chora e faz o sinal da cruz com o cano de seu revolver ao constatar o assassinato de Orfeu Mesmo em meio a tanta violecircncia e brutalidade haacute espaccedilo para a expressatildeo do sentimento

Destaco a imagem de Orfeu ainda sambista e responsaacutevel pelo amanhecer e me detenho na letra na muacutesica tema do filme de autoria de Caetano Veloso em que se destaca a imagem da mulher que completa o homem

Mar sob o ceacuteuCidade na luzMundo meuCanccedilatildeo que eu compusMudo tudoAgora eacute vocecircA minha vozQue era da amplidatildeoDo universo da imensidatildeoHoje canta soacute por vocecircMinha mulher meu amor meu lugarAntes de vocecirc chegarEra tudo saudadeMeu canto mudo no arFaz do seu nome hoje o ceacuteu da cidadeLua no mar estrelas no chatildeoAos seus pegraves entre as suas matildeosTudo quer alcanccedilar vocecircLevanta o sol do meu coraccedilatildeoJagrave natildeo vivo nem morro em vatildeoSou mais euPorque sou vocecirc

A Letra de Caetano Veloso traz a ideia de completude no outro sou vocecirc e soacute posso ser ldquomais eu porque sou vocecircrdquo Importante notar a mudanccedila do eu-liacuterico cuja voz era do universo da amplidatildeo e agora canta soacute pela mulher amada ldquominha mulher meu amor meu lugarrdquo O viver passa a ter sentido pelo completar-se no outro

24 Orfeu nos quadrinhos Passando para cultura pop e mais especificamente para os quadrinhos o

mito de Orfeu eacute reinventado por Neil Gaiman e Brian Talbot na histoacuteria A canccedilatildeo de Orpheus publicada na saga de Sadman entre 1989 e 1996

Na versatildeo de Gaiman e Talbot Orfeu filho eacute de Oacuteneiros a personagem prin-cipal da saga Sandman Ele eacute portanto filho do senhor dos sonhos e tem uma famiacutelia emblemaacutetica que eacute apresentada ao leitor logo na primeira parte de A canccedilatildeo de Or-pheus

Seus tios e tias satildeo alegorias de sentimentos e potecircncias divinas satildeo eles Te-leute Aponia Ptomos Epithymia Eacute interessante pensar n significado dos nomes des-ses parentes de Orfeu Comeccedilo por Teleute que eacute a personagem Morte da saga de Sadman Em grego Teleute significa aquilo que se completa que chega ao fim o fim da vida ou simplesmente morte

Aponia em grego significa preguiccedila para epicuro seria o estado de liberta-ccedilatildeo da dor mas tambeacutem poderia significar em termos meacutedicos a ausecircncia da razatildeo correspondendo ao termo mania E eacute justamente a acepccedilatildeo de demecircncia que eacute eviden-ciada na abordagem dos quadrinhos Haacute ainda a tia Epithimia que significa desejo e o tio Ptomos o destino

Aristeu ao inveacutes de ser um apicultor seraacute um saacutetiro amigo de Orfeu O que torna o morte de Euriacutedice mais dramaacutetica ainda pois eacute causada por um amigo de seu noivo A saga se inicia no dia do casamento de Euriacutedice e Orfeu Aqui eacute interessante pensar em como a figura do saacutetiro eacute colocada no lugar do apicultor do mito original Isso pode ter se dado pela ideia que a imagem miacutetica do saacutetiro traz em si a ideia de desregramento de descomedimento

Vale ressaltar que a morte de Euriacutedice segue o padratildeo da tradiccedilatildeo claacutessica Natildeo obstante a trajetoacuteria de busca empreendida por Orfeu apresenta detalhes surprenden-tes como o momento em que o cantor vai ter com sua tia Morte e tem um choque com o ambiente em que ela vive que remete agrave segunda metade do seacuteculo XX

(GAIMAN TALBOT 1993 p 22)

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A canccedilatildeo de Orpheus seraacute uma releitura bastante proacutexima da tradiccedilatildeo claacutessica a exceccedilatildeo dos detalhes mencionados anteriormente A concepccedilatildeo da ida ao Hades o perda de Euriacutedice no momento em que ele se volta para olhar a amada e ter certeza de que ela o segue para fora do mundo dos mortos satildeo totalmente baseadas na tradiccedilatildeo miacutetica claacutessica Seu desmembramento pelas bacantes tambeacutem segue a tradiccedilatildeo Ape-nas o desfecho da obra apresenta o desvio em que Oneiros o pai de Orfeu no contexto de Sandman vai se despedir da cabeccedila que ainda fala

24 Orfeu no mangaacute no anime e no game

Entre 1985 e 1990 Masami Kuramada comeccedila a publicar seu mangaacute intitulado Saint Seiya no Japatildeo A seacuterie de anime conhecida como Cavaleiros do Zodiacuteaco foi ao ar em 1994 na extinta Manchete a rede de Televisatildeo A saga desse anime teraacute uma seacuterie de diaacutelogos com a antiguidade helecircnica e seus desdobramentos Eacute interessante pensar nos nomes de alguns cavaleiros rivais dos cavaleiros de Atena como o cavaleiro de Ceacuterbero Dante cujo nome remete ao catildeo triceacutefalo do Hades e ao poeta que retrata o ciacuterculos infernais em sua Divina Comeacutedia

Orfeu seraacute abordado duas vezes nesse anime Haveraacute o Orfeu de Lira e o Orfeu de Harpa dois cavaleiros diferentes

O cavaleiro que interessa especialmente agrave presente pesquisa eacute o Orfeu de Lira pois seraacute ele o cavaleiro que viveraacute os passos do mito tradicional com algumas adap-taccedilotildees evidentemente

Em Saint Seiya O Santo Guerreiro um filme autocircnomo da saga dos Cavaleiros do Zodiacuteaco Orfeu eacute um dos cavaleiros fantasmas revividos pela deus Eacuteris a discoacuterdia Nesse filme eacute apresentada a relaccedilatildeo amorosa de Orfeu e Euriacutedice na qual o casal tam-beacutem eacute separado pela morte Todavia ao trazer sua amada de volta do Hades o cavalei-ro cantor natildeo duvida de que sua Euriacutedice o segue um ponto interessante Na verdade ele eacute enganado pela personagem Pandora Ela o induz a erro ao fazer com que Orfeu acreditasse estar jaacute sob luz solar Assim o heroacutei se volta para Euriacutedice antes da hora adequada e ela eacute transmutada em estaacutetua de pedra Curioso perceber como o tema da materialidade que aprisiona eacute abordado tambeacutem nessa obra uma vez que natildeo eacute o espectro de Euriacutedice que desaparece mas eacute uma personagem com corpo transmutado em rocha que se torna prisioneira desse meio de caminho entre vida e morte

Entretanto Orfeu durante muito tempo preso diante da imagem de Euriacutedice- rocha decide libertar a amada para que ela tambeacutem possa ter paz A partir daiacute vem um passo importante na saga de Orfeu na animaccedilatildeo o momento em que reconhece o erro cometido ao tentar vencer a morte e promete agrave Euriacutedice que destruiraacute Hades realizando a chamada ldquoserenata mortalrdquo Um contraste forte entre o Orfeu da tradiccedilatildeo claacutessica e aquele da obra de Kuramada eacute o fato de que o Orfeu do anime tem um poder agressivo a serenata eacute mortal Jaacute o Orfeu da tradiccedilatildeo emociona e acalma atraveacutes de sua muacutesica

Por fim eacute interessante notar como Orfeu se torna personagem do jogo Cava-leiros do Zodiacuteaco sendo caracterizado pelo poder de cura O que eacute relevante pois vem

a ser uma caracteriacutestica nada belicista a que ele teraacute o que eacute curioso para uma perso-nagem de uma jogo de accedilatildeo e de luta Todavia sua canccedilatildeo natildeo mais acalma

3 Tantos Orfeus

Nesse breve passeio de apreciaccedilatildeo da permanecircncia e releitura do mito de Or-feu percebe-se natildeo apenas quatildeo profiacutecua eacute essa narrativa miacutetica mas como ela se desdobra em diferentes teacutecnicas sendo retratada inclusive pela arte pop e adentrando a induacutestria de games

Para terminar essa reflexatildeo volto agrave muacutesica escolhida como epiacutegrafe em que o eu-liacuterico quer ser o Orfeu que almeja natildeo a sua Euriacutedice mas deseja ser

o amante Que vocecirc devora de traacutes para frente Feito Bacante lambendo seus dentes Pra mastigar meu coraccedilatildeopelos bares da Consolaccedilatildeo

Nessa experiecircncia fagia eroacutetica ambientada em Satildeo Paulo fabrica-se o poeta de uma busca corporal por prazer

E assim derretendo na tua saliva Ser a substacircncia enlouquecida com que se escrevem cartas de amor

Desse modo encerro o pequeno passeio em torno da imagem do poeta-cantor miacutetico revisitado de inuacutemeras formas Creio eu que Orfeu continuaraacute sendo mateacuteria de poiesis para muitas e vaacuterias experimentaccedilotildees artiacutesticas

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Referecircncias

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BRANDAtildeO Junito de Souza Mitologia Grega 6 ed Petroacutepolis Vozes 1997 v 2

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ELIADE Mircea Histoacuteria das crenccedilas e das ideacuteias religiosas Rio de Janeiro Zahar 1978

GAIMAN Neil TALBOT Brian A canccedilatildeo de Orpheus Sandman Satildeo Paulo n1 1993 Ediccedilatildeo especial

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KEREacuteNYI Karl Os heroacuteis gregos Satildeo Paulo Cultrix 1993

ORFEU Direccedilatildeo Carlos Diegues Rio de Janeiro Globo Filmes 1999 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecom watchv=4fIbjaHFX-k Acesso em 27092020

ORFEU negro Direccedilatildeo Marcel Camus Satildeo Paulo Vera Cruz Paris Dispat Film 1959 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=fWIwTOtvbSkampt=5003s Acesso em 27092020

SAINT Seiya O Santo Guerreiro Direccedilatildeo Kocirczocirc Morishita Toacutequio Toei Animation 1987

SEU ORFEU Compositor e inteacuterprete Thiago Petit Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatch v=tvYLywWgtjc Acesso em 27092020

VEIGA Paulo Eduardo de Barros O mito de Orfeu e Euriacutedice no Livro IV das Geoacutergicas de Virgiacutelio Roacutenai Juiz de Fora n 1 v 6 p 172-178 2018

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Proecircmio de Metamorfoses aula de Poesia

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Milton Marques Juacutenior

ldquoIl fatto egrave che il traduttore non deve solo conoscere la lin-gua ma anche la storia e la topografia di ogni singola cit-tagraverdquo (Umberto Eco ndash Dire quasi la stessa cosa p 193)

ldquoQue ele o conselheiro depois de os citar em prosa nossa repetiu-os no proacuteprio texto grego e os dois gecircmeos senti-ram-se ainda mais eacutepicos tatildeo certo eacute que traduccedilotildees natildeo valem originaisrdquo (Machado de Assis Esauacute e Jacoacute Capiacutetulo XLV ldquoMusa cantardquo)

O proecircmio de Metamorfoses de Oviacutedio eacute miacutenimo quando levamos em conta o tamanho do poema Satildeo meros 4 versos num livro de exatos 11994 versos Pensemos por exemplo no proecircmio da Teogonia de Hesiacuteodo com 115 versos num total de 1022 Se no seu tamanho o proecircmio eacute iacutenfimo no seu sentido eacute de uma densidade iacutempar so-bretudo pelo fato de que nesses 4 versos Oviacutedio nos daacute uma aula de poesia no sentido aristoteacutelico do termo de ποίησις como a accedilatildeo de criar

O que se pode compreender do proecircmio em uma primeira leitura eacute a inten-ccedilatildeo do poeta de cantar as mudanccedilas ou metamorfoses de alguns dos personagens da narrativa desde a origem do mundo ateacute a sua contemporaneidade ndash esta eacute a proposi-ccedilatildeo ndash e o pedido aos deuses divindades aqui natildeo especificadas para o favorecimento e conduccedilatildeo de seu canto ndash esta eacute a invocaccedilatildeo

A partir do momento em que nos entregamos a um exerciacutecio de traduccedilatildeo desse proecircmio vemos que o poeta natildeo soacute diz qual o objeto de seu canto e natildeo soacute invoca os deuses para a sua proteccedilatildeo O poeta vai aleacutem e nos revela a proacutepria arte de construccedilatildeo poeacutetica dentro dos moldes da poesia claacutessica a eacutepica sobretudo que natildeo desprezava a invocaccedilatildeo Abramos um parecircntesis para dizer que embora composta em hexacircmetros ndash uacutenico poema de Oviacutedio a usar soacute este tipo de verso ndash Metamorfoses natildeo pode ser vista como exclusivamente eacutepica Obedecendo agrave proacutepria loacutegica interna do poema vemos no decorrer do enredo como ali se encontram o liacuterico e o traacutegico lado a lado com o eacutepi-co Se o amor frustrado de Apolo por Dafne no Livro I eacute um momento liacuterico objeto inclusive de um soneto camoniano ndash ldquoO filho de Latona esclarecidordquo ndash o mito de Me-leagro no Livro VIII eacute traacutegico embora ambos derivem de um nuacutecleo eacutepico no poema Do mesmo modo do Livro XII ao Livro XV vemos as suiacutetes troianas e romanas que confirmam o tom eacutepico mesmo que aiacute se encontrem os amores frustrados de Glauco e Cila e de Polifemo e Galateia Desse modo se haacute metamorfoses de personagens haacute metamorfose de gecircnero ao longo do poema diversidade que faz a sua beleza por que-brar a monotonia do eacutepicoccxxviii

Faccedilamos uma anaacutelise do proecircmio a partir de uma traduccedilatildeo por noacutes proposta

O acircnimo me conduz a cantar as formas mudadas para no-vos corpos deuses as minhas empresas (pois voacutes tambeacutem as mudastes)favorecei e desde a origem primeira do mundo

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ateacute os meus tempos conduzi meu canto contiacutenuo147

De modo a iniciar com alguns esclarecimentos sobre a nossa proposta de tra-duccedilatildeo gostariacuteamos de comentar o capiacutetulo XLV de Esauacute e Jacoacute ndash ldquoMusa cantardquo ndash de Machado de Assis que nos apresenta o conselheiro Aires definindo o caraacuteter dos gecircme-os antagonistas Pedro e Paulo a partir do proecircmio da Iliacuteada e da Odisseia de Homero Para Paulo o conselheiro escolheu a Iliacuteada que trata da fuacuteria funesta de Aquiles para Pedro a Odisseia que trata das mil voltas do astuto Odisseu Depois de ler o poema em prosa portuguesa o conselheiro cita as passagens diretamente do grego certo de que as traduccedilotildees natildeo valem o original Ainda assim natildeo faltou nada para que os dois ir-matildeos se acusassem mutuamente Pedro acusou Paulo de furioso como Aquiles Paulo acusou Pedro de velhaco como Odisseu distorcendo o caraacuteter de cada um dos heroacuteis Eacute aiacute que entra uma observaccedilatildeo final do conselheiro no sentido de que eles deveriam dizer isto em grego que eacute melhor do que a nossa prosa Tem razatildeo o conselheiro ao dizer que a traduccedilatildeo natildeo vale o original Na realidade traduccedilatildeo alguma vale o original Haacute sempre por melhor que seja a traduccedilatildeo a possibilidade de o tradutor voluntaacuteria ou involuntariamente distorcecirc-la quando natildeo manipulaacute-la

Digamos portanto que a nossa traduccedilatildeo se orienta pelos moldes do que pra-ticamos e ensinamos aos nossos estudantes em nossas aulas no curso de Letras Claacutes-sicas na Universidade Federal da Paraiacuteba Trata-se de uma traduccedilatildeo operacional cujo intuito eacute procurar extrair do texto original a concepccedilatildeo que ali se encontra Nesse processo orientamos os nossos alunos no sentido de perceber que a traduccedilatildeo da mor-fossintaxe latina natildeo eacute suficiente Haacute que se levar em consideraccedilatildeo ao menos dois requisitos O primeiro eacute o contexto cultural em que o texto foi criado o segundo eacute a estrutura do texto a ser traduzido Como se trata de um texto literaacuterio obviamente que temos de buscar saber como aquele texto se estrutura literariamente de modo que consigamos uma traduccedilatildeo que dele se aproxime Veja-se pois que natildeo estamos falan-do de traduccedilatildeo literal mas de uma maior aproximaccedilatildeo possiacutevel com o texto original de acordo com o que nos impotildee a sua estrutura Se por um lado estamos de acordo com todos os teoacutericos que apregoam a traduccedilatildeo ser escolha por outro lado vemos como necessaacuterio limitar essas escolhas para ficar com aquelas que traduzem melhor a estrutura do texto

Em seu livro A traduccedilatildeo como manipulaccedilatildeo Cyril Aslanov discute vaacuterios as-pectos da traduccedilatildeo procurando sempre estabelecer o contexto e a vivecircncia da liacutengua quando possiacutevel como elementos importantes no processo de traduzir Referindo-se agraves traduccedilotildees mecacircnicas do Google que para ele se assemelham agraves tentativas de tradu-ccedilotildees literais de alunos ruins sem levar em conta o contexto da liacutengua a ser traduzida Aslanov nos diz o seguinte

ldquoO modo demasiadamente mecacircnico pelo qual o Google

147In noua fert animus mutatas dicere formascorpora di coeptis (nam uos mutastis et illas)adspirate meis primaque ab origine mundiad mea perpetuum deducite tempora carmen

Tradutor traduz os idiomatismos de uma liacutengua para ou-tra relembra os alunos ruins que transpotildeem literalmente o texto a ser traduzido Ou seja em outro contexto faz pensar no modo de falar dos serviccedilos de propaganda ou de espionagem em tempo de guerra quando o conhecimento teoacuterico da liacutengua do inimigo natildeo eacute suficiente porque lhe falta a paacutetina da experiecircncia viva da liacutengua Conta-se que quando a Raacutedio Cairo difundia emissotildees em hebraico para desmoralizar o exeacutercito israelense durante a Guerra do Atrito (1969-1970) os jornalistas egiacutepcios que pensavam conhecer o hebraico cometeram gafes memoraacuteveis Refe-rindo-se ao Lado dos Cisnes que a raacutedio escolheu para servir de intermezzo musical o locutor usou a expressatildeo brekhat ha-barvazim (literalmente ldquopiscina dos patosrdquo) e vez do tiacutetulo canocircnico agam ha-barburim Nesse caso o efeito produzido foi diametralmente oposto agrave exaltaccedilatildeo que acompanha a escolha de tiacutetulos mais eloquentes que o original para as obras literaacuterias ou cinematograacuteficasrdquo (2015 p 38)

De igual modo nos parece que o entendimento de Umberto Eco em Dire qua-se la stessa cosa sobre traduccedilatildeo como negociaccedilatildeo eacute o mais indicado tendo em vista que se natildeo podemos dizer a mesma coisa numa traduccedilatildeo devemos procurar dizer pelo menos quase a mesma coisa num processo contiacutenuo de negociaccedilatildeo de termos considerando sobretudo que uma traduccedilatildeo eacute sempre um trabalho em processo Eacute exatamente o quase que se encontra no tiacutetulo que induz agrave negociaccedilatildeo dos termos para que o tradutor natildeo troque as matildeos pelos peacutes e passe a traduzir ldquopiscina dos pa-tosrdquo por ldquoLago dos cisnesrdquo por haver aacutegua e aves aquaacuteticas envolvidas no processo ou ainda ldquogarccedilardquo por ldquoalicaterdquo afinal de contas ambos tecircm bico e pernas compridas como mostra a capa da ediccedilatildeo italiana da obra de Eco Acreditamos que nada traduz melhor o conceito de infectum latino do que o processo de traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra

Eco chama a atenccedilatildeo para um fato oacutebvio mas como todo oacutebvio geralmente esquecido ldquoLe parole assumono significati diversi secondo il contestordquo (2016 p 28) para mais adiante ser bem claro no que diz respeito agrave contextualizaccedilatildeo

ldquoQuesto ci fa sospettare che una traduzione non dipenda solo dal contesto linguistico ma anche da qualcosa che sta al di fuori del testo e chi chiamaremo informazione circa il mondo o informazione enciclopedicardquo (2016 p 31)

Partindo do princiacutepio de que Metamorfoses eacute um texto literaacuterio e segue as regras da poeacutetica claacutessica comecemos a discutir a nossa traduccedilatildeo a partir do verbo dicō que aparece no texto em sua forma de infinitivo infectum dicĕre Como verbo im-portante em qualquer liacutengua dicō tem o sentido primeiro de mostrar fazer conhecer pela palavra dizer segundo Ernout (2011) agindo tanto na esfera juriacutedica quanto na religiosa Eacute na passagem para a esfera comum da linguagem que dicō perde seu caraacuteter

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solene passando a significar dizer Recordemos que esse verbo pode ainda significar cantar e celebrar termos que se adequam agrave criaccedilatildeo poeacutetica quando lembramos que o tipo de poesia que encontramos em Metamorfoses natildeo pode ser dissociado da religiosi-dade greco-latina ainda que sob a forma de representaccedilatildeo A nossa escolha portanto por cantar estaacute associada ao canto como celebraccedilatildeo noccedilatildeo naturalmente arraigada ao eacutepico e ao hino tendo em vista que seguimos a nossa compreensatildeo a respeito de traduccedilatildeo devidamente corroborada pela afirmaccedilatildeo de Umberto Eco de que ldquoil testo tradotto deve trasportare il lettore nel mondo e nella cultura in cui lrsquooriginale egrave stato scrittordquo (2016 p 64)

A escolha de anĭmus como acircnimo explica-se pelo fato de este termo correspon-der ao grego θυμός aplicando-se agraves coisas do espiacuterito ao coraccedilatildeo como sede da cora-gem do desejo das inclinaccedilotildees conforme ensina Ernout (2011) termo que assume um duplo valor racional e afetivo Assim o poeta eacute movido pela forccedila do acircnimo como um sopro que o leva a cantar a celebrar aquilo que ele propotildee Nesse momento nunca eacute demais lembrar duas coisas a primeira eacute a de que anĭmus tem um corresponde exato afirma Ernout em grego que eacute νέμος sopro A outra eacute a presenccedila do verbo ferō em sua terceira pessoa do singular do presente infectum do indicativo fert com o sentido de levar ou conduzir Vecirc-se que o poeta natildeo diz que eacute ele quem vai cantar mas eacute o acircnimo que o conduz a cantar Este acircnimo que se encontra dentro dele e o move eacute o acircnimo das Musas ou no caso de Metamorfoses dos deuses natildeo especificados o que engloba todos Natildeo se trata de um querer individual de um poeta mas de uma decisatildeo divina que o move agrave celebraccedilatildeo Se o Gaffiot (2000) abona a construccedilatildeo fert animus acompa-nhada de infinitivo com o sentido de ter a intenccedilatildeo de usando para isto Suetocircnio e o primeiro verso de Metamorfoses natildeo significa que esta construccedilatildeo tenha sempre que ser traduzida desse modo A abonaccedilatildeo tambeacutem aparece no Oxford com o sentido de to prompt suggest quando diz respeito agrave construccedilatildeo de ferō com infinitivo e quando se trata do vocaacutebulo anĭmus aparece com o sentido de ldquomente como sede do desejo e da voliccedilatildeordquo Para Suetocircnio que estaacute fazendo um relato histoacuterico da vida do imperador Otatildeo vemos como adequada essa traduccedilatildeo por se tratar de uma narrativa que se quer verdadeira e objetiva No caso de Oviacutedio e de outros poetas o que se quer eacute o contraacute-rio deseja-se a subjetividade inerente agrave criaccedilatildeo literaacuteria e uma verdade poeacutetica sob a orientaccedilatildeo dos deuses Voltamos aqui ao sopro criativo das Musas que transforma o pastor o homem apenas ventre em poeta em vate ao mesmo tempo em que subs-tituem o seu cajado por um cetro a partir de um ramo florescente de loureiro como bem o diz Hesiacuteodo na Teogonia (versos 26-34) de modo que o poeta glorie o passado e o futuro com o seu canto divino devidamente protegido por Apolo deus da inspiraccedilatildeo da muacutesica da poesia e da profecia Natildeo seria este o desejo de Oviacutedio no proecircmio de Metamorfoses Veremos a resposta a esta pergunta mais adiante

A proposiccedilatildeo traz o que eacute importante e essencial no poema Assim como a Iliacute-ada inicia-se com a palavra μῆνιν e o segundo verso inicia com οὐλομένην para dizer que a essecircncia desse canto homeacuterico eacute a fuacuteria funesta de Aquiles a Odisseia inicia-se com ἄνδρα completada por πολύτροπον de modo a expressar que o mais importante naquela narrativa eacute cantar o heroacutei de mil voltas ndash mil voltas fiacutesicas em suas viagens errantes e mil voltas no pensamento pela sua astuacutecia ndash no caso Odisseu Jaacute na Enei-da as palavras iniciais satildeo arma uirumque as armas e o heroacutei essecircncia desse poema

eacutepico que se centra na figura de Eneias e nas guerras travadas para a posse da nova terra no Laacutecio Oviacutedio comeccedila o seu poema com o adjetivo noua regido da preposiccedilatildeo in com sentido acusativo e com o substantivo correspondente ndash corpora ndash iniciando o verso seguinte A utilizaccedilatildeo de in com regecircncia de acusativo eacute decisiva para se entender que o poema se estrutura em movimentos para transformaccedilotildees A proposiccedilatildeo se defi-ne com o acircnimo levando a se cantar as formas mudadas para novos corpos O sentido direcional nos parece claro vez que o Oxford apresenta uma das formas de in regendo acusativo quando acompanhado de ldquopalavras que exprimam movimento ou mudanccedila de posiccedilatildeordquo Haacute uma diferenccedila fundamental entre cantar as formas mudadas para no-vos corpos e cantar as formas mudadas em novos corpos O poema natildeo vai cantar as formas mudadas nos novos corpos a proposiccedilatildeo eacute cantar como eacute que se deu esse mo-vimento essa metamorfose de um corpo para um novo corpo Quando isto acontece o mito se fecha e passa-se a outro mito e assim por diante A liccedilatildeo de Oviacutedio iniciando o seu poema com a preposiccedilatildeo in que nesse caso indica movimentaccedilatildeo nos daacute a medida exata do porquecirc seu poema se chama Metamorfoses Embasando a nossa escolha cito a explicaccedilatildeo de Eco agrave recorrecircncia do termo negociaccedilatildeo em seu livro

ldquoSe farograve ricorso tante volte allrsquoidea di negoziazione per spiegare i processi di traduzione egrave percheacute egrave sotto lrsquoinsegna di questo concetto che porrei anche la nozione sino a ora abbastanza imprendibile di significato Si negozia il signi-ficato che la traduzione deve sprimere percheacute si negozia sempre nella vita quotidiana il significato che dobbiamo attribuire alle spressioni che usiamordquo (2016 p 87-88)

Qual teria sido a mudanccedila provocada nas empresas de Oviacutedio O poeta queria fazer um poema essencialmente eacutepico e viu-se levado pela inspiraccedilatildeo divina a fazer um poema que se transforma ao longo de sua narrativa e mescla vaacuterios gecircneros literaacute-rios Ou estaria falando o poeta de que suas intenccedilotildees foram mudadas com o decreto de seu banimento para Tomi no Mar Negro por Augusto Georges Lafaye que estabe-lece e traduz umas das ediccedilotildees de Metamorfoses diz que seu poema estava terminado embora natildeo tivesse recebido a forma definitiva quando de seu banimento no fim do ano 8 de nossa era O poeta o havia comeccedilado informa Lafaye talvez no ano 1 a C e quando soube da sentenccedila que o atingia ele queimou os manuscritos ou por despeito com relaccedilatildeo agraves Musas causas de sua desgraccedila ou pela imperfeiccedilatildeo do poema (Ovide Introduction 1928 p I-II) Impedido de corrigir seu texto Oviacutedio ainda sofre o golpe de ser mantido distante das bibliotecas puacuteblicas expurgado que fora Mesmo quando Metamorfoses chega agraves matildeos de Secircneca pai um dos primeiros a citaacute-lo o seu texto eacute jaacute incerto em vaacuterios lugares diz Lafaye (id Ibid p III)

Qualquer que tenha sido a ordem da mudanccedila operada pelos deuses nos proje-tos de Oviacutedio ela vem a calhar num poema que tem por tiacutetulo mudanccedilas Nessa invo-caccedilatildeo Oviacutedio apela para os deuses ndash di ndash natildeo para uma divindade especiacutefica como as Musas o que se coaduna com outra invocaccedilatildeo que existe no Livro XVccxxix encerrando a narraccedilatildeo para que se abra o epiacutelogo do poema Aos deuses Oviacutedio pede o favoreci-mento e a conduccedilatildeo de seus versos O favorecimento vem com o verbo adspirō em sua forma de imperativo presente adspirāte Voltamos ainda uma vez agraves Musas de Hesiacuteo-

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do Se as Musas inspiraram o poeta soprando o divino para dentro dele agora na hora da criaccedilatildeo na hora da ποίεσις eacute preciso que elas soprem em direccedilatildeo de alguma coisa soprem para fora natildeo mais para dentro O primeiro sentido de adspīrō eacute exatamente soprar em direccedilatildeo de que nos eacute dado pela preposiccedilatildeo inicial regente de acusativo de movimento ad O sopro divino por sua vez mostra-se bem estruturado com o anĭmus do primeiro verso O poeta cria usa de sua racionalidade mas natildeo descarta a ajuda dos deuses que o motivam a criar Uma vez criado o poema eacute preciso que as divindades o soprem para fora favorecendo os seus versos de modo que eles se movimentem visto que a essecircncia da metamorfose eacute o movimento a mudanccedila Mas natildeo basta o sopro favoraacutevel eacute preciso que eles os deuses conduzam os versos do poeta de um lugar para outro retirando-o de dentro dele e fazendo-os mover-se num canto contiacutenuo Eacute nesse momento que entra o verbo dedūcō tambeacutem no imperativo presente deducĭte cujo sentido primordial eacute de deslocamento assegurado pela proposiccedilatildeo de ablativo de A nossa escolha por conduzi e natildeo por outro significado do verbo vem obviamente do verbo ducō cujo significado eacute conduzir estando agrave frente tornando niacutetido o sentido que o poeta quer para seus versos que eles sejam natildeo soacute favorecidos pelos deuses mas que eles proacuteprios os conduzam postando-se agrave frente puxando-os num contiacutenuo para que seus versos natildeo morram consigo Percebendo como o carmen perpetuum eacute parte estrutural de dicĕre e de di os deuses parece-nos ter respondido nesse momento agrave pergunta retoacuterica que fizemos antes Cantar as formas mudadas para novos corpos eacute uma celebraccedilatildeo em que o cantoprofecia (carmen) tem que ser perpeacutetuo contiacutenuo perene O sentido de perpetuum adjetivo importantiacutessimo no proecircmio eacute ambivalente pois significa que o que se canta das origens primeiras aos dias atuais do poeta natildeo tem quebra natildeo sofre soluccedilatildeo de continuidade por maiores e mais complicados que sejam a trama e os desvatildeos em Metamorfoses Por outro lado diz tambeacutem da perpe-tuidade do ato de criar ato que imortaliza o poeta Entendendo como Eco que ldquouna buona traduzione egrave sempre un contributo critico alla comprensione dellrsquoopera tradot-tardquo (2016 p 247) temos a consciecircncia de que um tradutor natildeo pode querer facilitar a sua traduccedilatildeo numa atitude do que chamamos de siacutendrome de Theacutetis No Canto XVIII da Iliacuteada Homero constroacutei o hexacircmetro do verso 54 com o epiacuteteto δυσαριστοτόκεια para Theacutetis a matildee de Aquiles que compreende quase todo o segundo hemistiacutequioccxxx

Ai de mim eu mesma infeliz ai de mim a infortunada que pariu o melhor 148

Muitos preferem a tiacutetulo de facilitaccedilatildeo a traduccedilatildeo interpretativa esquecendo que a interpretaccedilatildeo deve ser do leitor outros simplificam o verso desfazendo todo o esforccedilo do poeta que o construiu de modo a caber no hexacircmetro e para que ao mesmo tempo fosse uma siacutentese da condiccedilatildeo dessa divindade de matildee desafortunada por ter parido o melhor dos Aqueus ποίησις no caso o epiacuteteto de Aquiles conforme o heroacutei eacute apresentado desde o proecircmio da Iliacuteada O epiacuteteto diz de Theacutetis mas diz tambeacutem do oraacuteculo e da escolha de Aquiles de morrer jovem em combate Aquiles natildeo eacute apenas o uacutenico dos Aqueus que vai a Troia sabendo que morreraacute Ele eacute sobretudo o uacutenico que ali se encontra em busca da bela morte a uacutenica via para alcanccedilar a gloacuteria impereciacutevel κλέος ἄφθιτον Simplificar o epiacuteteto eacute destruir um contexto importante dentro da Iliacute-148 Ὤ μοι ἐγὼ δειλή ὤ μοι δυσαριστοτόκεια

ada

Enfim esperamos ter demonstrado a densidade do proecircmio de Metamorfoses bem como ter explicado as nossas escolhas tradutoacuterias fruto de negociaccedilotildees com o contexto e a com a estrutura do poema No nosso entendimento natildeo poderia haver maior exemplo na poeacutetica claacutessica do que esta liccedilatildeo que Oviacutedio nos daacute nesse proecircmio A poesia eacute criaccedilatildeo da racionalidade do poeta que natildeo exclui o sopro divino que o anima agrave criaccedilatildeo favorece os seus versos e os guia agrave perpetuidade mostrando como a invocaccedilatildeo pode se transformar em evocaccedilatildeo no sentido de que os deuses satildeo chamados a contri-buir com a inspiraccedilatildeo e com a expiraccedilatildeo retirando o canto e o perpetuando

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Referecircncias

ASLANOV Cyril A traduccedilatildeo como manipulaccedilatildeo 1ordf Ed Satildeo Paulo Perspectiva Casa Guilherme de Almeida 2015

ASSIS Machado de Esauacute e Jacoacute introduccedilatildeo e notas Heacutelio Guimaratildees 1 Ed Penguin Classics Companhia das Letras 2012

ECO Umberto Dire quasi la stessa cosa esperienze di traduzione VI edizione Mila-no Bompiani 2016

ERNOUT Alfred et MEILLET Alfred Dictionnaire eacutetymologique de la langue latine histoire des mots Paris Klincksieck 2001

GAFFIOT Feacutelix Le grand Gaffiot dictionnaire latin-franccedilais 3e eacuted revue et aug-menteacutee sous la Direction de Pierre Flobert Paris Hachette 2000

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano 4 ed Iluminuras Satildeo Paulo 2001

HOMEgraveRE Iliade texte eacutetabli et traduit par Paul Mazon notes drsquoHeacutelegravene Monsacreacute Paris Les Belles Lettres 2002 (3 tomes)

HOMEgraveRE Lrsquoiliade texte bilingue preacutesenteacute par Claude Michel Cluny Paris Eacuteditions de la Diffeacuterence 1989

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2002

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo de Odorico Mendes prefaacutecio e notas verso a verso de Saacutel-vio Nienkoumltter Campinas Ateliecirc Editorial Editora a Unicamp 2008

HOMERO Iliacuteada traduccedilatildeo e prefaacutecio de Frederico Lourenccedilo introduccedilatildeo e appendices de Peter Jones introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 1950 E V Rieu 1ordf ed Satildeo Paulo Penguin Clas-sics Companhia das Letras 2013

OVIDE Les meacutetamorphoses texte eacutetabli et traduit par Georges Lafaye Paris Les Belles Lettres 1928 (III Tomes)

OVIDIO Metamorfosi vol I Libri I-II a cura di Alessandro Barchiesi con um saggio introdutivo di Charles Segal texto critico basato sullrsquoedizione oxoniense di Richard Tarrant traduzione di Ludovica Koch III edizione Fondazione Lorenzo Valla Arnaldo Mondadori Editore 2011

OXFORD LATIN DICTIONNAIRE Oxford Clarendon Press 1968

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Semacircntica Aristoteacutelica

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Joseacute R Seabra F

A obra completa de Aristoacuteteles publicada nos dias de hoje inicia-se pelo Oacuterga-non seacuterie de seis tratados de loacutegica escritos em estilo direto seco breve Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Primeiros Analiacuteticos Segundos Toacutepicos Dos Elencos So-fiacutesticos Nesses seis livros o leitor vai encontrar em resumo respectivamente anaacutelise dos elementos das proposiccedilotildees estudo da proposiccedilatildeo teoria do silogismo silogismo cientiacutefico pontos da dialeacutetica os sofismas e os meios de refutaacute-los Mas que relaccedilatildeo com a gramaacutetica tecircm essas obras do filoacutesofo Eacute o que se confere a seguir Os livros de loacutegica englobados pelo tiacutetulo Oacuterganon apresentam em geral significado da palavra significado da linguagem semacircntica analisada e desenvolvida para entendimento de proposiccedilotildees isto eacute de frases de afirmaccedilotildees em uacuteltima anaacutelise tambeacutem assunto gra-matical loacutegica filosoacutefico-gramatical

Categorias (Κατηγορίαι) eacute o tratado que abre a seacuterie o nome vem de κατεγορείν

(acusar) e o significado seria entatildeo ldquoacusaccedilotildeesrdquo mas em Aristoacuteteles o sentido eacute de ldquoatributosrdquo Por exemplo na frase ldquoo homem eacute brancordquo homem seria a categoria da substacircncia e branco a da qualidade A classificaccedilatildeo aiacute de tipos de categorias (atributos predicados) serve para dar maior capacidade de anaacutelise e interpretaccedilatildeo a elementos e argumentos do discurso Conforme anaacutelise de estudiosos as categorias (os atributos) seriam uma espeacutecie de reflexatildeo sobre a gramaacutetica grega assim por exemplo seguindo a ordem do livro as quatro primeiras categorias ndash substacircncia qualidade quantidade relaccedilatildeo ndash correspondiam aos substantivos e adjetivos as quatro uacuteltimas ndash posiccedilatildeo possessatildeo accedilatildeo paixatildeo ndash aos verbos as duas do meio ndash lugar e tempo ndash aos adveacuterbios Exemplo de categoria quantidade Aristoacuteteles observa que as coisas em si mesmas e isoladamente natildeo satildeo ou grandes ou pequenas e soacute o satildeo por comparaccedilatildeo assim di-zemos que uma colina eacute grande que um gratildeo de milho eacute pequeno mas na realidade queremos dizer ldquomaiorrdquo ou ldquomenorrdquo do que coisas semelhantes do gecircnero pois nos referimos a algum padratildeo externo se tais termos fossem usados ldquoabsolutamenterdquo ja-mais deveriacuteamos chamar uma colina de grande como jamais deveriacuteamos chamar um gratildeo de milho de pequeno

O segundo da seacuterie Da Interpretaccedilatildeo (Περὶ ἑρμενείας) apresenta estudo das proposiccedilotildees e anaacutelise semacircntica dos elementos do enunciado A palavra ἑρμενεία sig-nifica para Aristoacuteteles ldquocomunicaccedilatildeo ou manifestaccedilatildeo do pensamentordquo Natildeo eacute livro propriamente de gramaacutetica mas acaba por tratar de noccedilotildees baacutesicas da linguagem no-ccedilotildees de que se serviraacute toda uma tradiccedilatildeo gramatical posterior Segundo nossa anaacutelise trecircs noccedilotildees sobressaem a distinccedilatildeo entre fonema e letra a definiccedilatildeo de nome (o nome como convencional) o futuro como tempo eventual Noccedilotildees repercutidas nas gramaacute-ticas modernas Exemplos a seguir de trechos com as principais definiccedilotildees Assim a respeito de fonema e letra

Das afecccedilotildees na alma existem certamente os siacutembolos na voz e das [afecccedilotildees] na voz existem as coisas grafadas150 (16a3-16a4)

150 ἔστι μὲν οὖν τὰ ἐν τῇ φωνῇ τῶν ἐν τῇ ψυχῇ παθηματων σύβολα καὶ τὰ γραφόμενα τῶν ἐν τῇ φωνῇ

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ldquoAfecccedilatildeordquoccxxxv traduz πάθημα (tudo o que afeta o corpo ou a alma ou a mente) no trecho consta παθημάτων (das afecccedilotildees) traduccedilatildeo pois bem literal o significado aiacute seria os sons da voz humana siacutembolos dos estados da alma as palavras escritas siacutembolos dos sons da voz Hoje muito comum nas gramaacuteticas a distinccedilatildeo entre fonema (som da voz humana vogal consoante) e letra (siacutembolo que representa o fonema) Adiante acerca do nome

Nome certamente entatildeo eacute voz significativa por convenccedilatildeo sem [referecircncia a] tempo da qual nenhuma parte eacute signi-ficativa isoladamente 151 (16a19-16a21)

Notem-se aiacute as expressotildees φωνὴ σημαντικὴ voz significativa som significati-vo e συνθήκη o ato o resultado de ldquocolocar juntordquo arranjo convenccedilatildeo Parece que a linguiacutestica moderna estabelece hoje como convenccedilatildeo o substantivo o nome das coisas mas desde a antiguidade houve discussatildeo sobre o assunto Sobre o verbo afirma-se

Verbo poreacutem eacute o que indica tempo do qual [verbo] uma parte nada significa separadamente e eacute o sinal das coisas ditas de outra coisa152 (16b6-16b7)

Aristoacuteteles diz que o verbo apresenta aleacutem da significaccedilatildeo proacutepria a de tem-po ὑγίεια (sauacutede) eacute nome ὑγιαίνει (estar satildeo) verbo pois este junta agrave sua proacutepria significaccedilatildeo a existecircncia atual desse estado Sobre o discurso afirma-se

E eacute o discurso todo certamente significativo natildeo como instrumento [natural] poreacutem mas como precisamente se disse por convenccedilatildeo153 (16b33-17a2)

Mais adiante capiacutetulo IX nas ediccedilotildees europeias modernas Aristoacuteteles anali-sa a oposiccedilatildeo dos futuros contingentes cada coisa necessariamente eacute ou natildeo eacute seraacute ou natildeo seraacute e entretanto se se consideram separadamente essas alternativas natildeo se pode dizer qual das duas eacute necessaacuterio λέγω δὲ οἷον (e digo como exemplo)ἀνάγκη με ἔσεσθαι ναυμαχίαν αὔριον ἢ μὴ ἒσεσθαι (eacute necessidade decerto haver de ser batalha naval amanhatilde ou natildeo haver de ser) οὐ μέντοι γενέσθαι αὔριον ναυμαχίαν ἀναγκαῖον (seguramente natildeo eacute necessaacuterio vir a ocorrer amanhatilde batalha naval) οὐδὲ μὴ γενέσθαι (nem natildeo vir a ocorrer) γενέσθαι μέντοι ἢ μὴ γενέσθαι ἀναγκαῖον (seguramente eacute necessaacuterio vir a ocorrer ou natildeo vir a ocorrer) Em traduccedilatildeo mais fluente ldquoNecessa-riamente haveraacute amanhatilde batalha naval ou natildeo haveraacute mas natildeo eacute necessaacuterio que haja amanhatilde batalha naval e natildeo eacute necessaacuterio que natildeo haja mas que haja ou que natildeo haja amanhatilde batalha naval eis o que eacute necessaacuteriordquo Entende-se proposiccedilatildeo natildeo-necessaacuteria

151 ὄνομα μὲν οὖν ἐστὶ φωνὴ σημαντικὴ κατὰ συνθήκην ἄνευ χρόνου ἧς μηδὲν μέρος ἐστὶ σημαντικὸν κεχωρισμένον152 ῥῆμα δέ ἐστι τὸ προσσημαῖνον χρόνον οὗ μέρος οὐδὲν σημαίνει χωρίςmiddot ἔστι δὲ τῶν καθʼ ἑτέρου λεγομένων σημεῖον153 ἔστι δὲ λόγος ἅπας μὲν σημαντικός οὐχ ὡς ὄργανον δέ ἀλλʼὥσπερ εἴρηται κατὰ συνθήκην154 ἀνάγκη δὲ πάντα λόγον ἀποφαντικὸν ἐκ ῥήματος εἶναι ἢ πτώσεωςmiddot καὶ γὰρ ὁ τοῦ ἀνθρώπου λόγος ἐὰν μὴ τὸ ἔστιν ἤ ἔστασι ἢ ἦν ἤ τι τοιοῦτο προστεθῇ οὔ πω λόγος ἀποφαντικός

ldquoamanhatilde haveraacute batalha navalrdquo proposiccedilatildeo natildeo-necessaacuteria ldquoamanhatilde natildeo haveraacute ba-talha navalrdquo proposiccedilatildeo necessaacuteria ldquoamanhatilde ou haveraacute ou natildeo haveraacute batalha navalrdquo ndash eis aiacute a oposiccedilatildeo dos futuros contingentes (incertos) ndash o futuro necessaacuterio sempre de oposiccedilatildeo de alternativas

Os tratados seguintes satildeo os dois Analiacuteticos o terceiro da seacuterie Analiacuteticos Ana-liacuteticos Primeiros de raciociacutenio em geral o quarto Analiacuteticos Segundos da metodolo-gia do conhecimento cientiacutefico Eacute costume dizer ldquotratados de loacutegicardquo mas em vez da palavra ldquoloacutegicordquo (λογικός) Aristoacuteteles usa ldquoanaliacuteticordquo (ἀναλυτικός) Que quer dizer esse termo ldquoanaliacuteticordquo trata-se do meacutetodo analiacutetico decompor em partes as questotildees e problemas

Os Analiacuteticos Primeiros (Αναλυτικὰ πρότερα) terceira parte do Oacuterganon constituem o maacuteximo da loacutegica aristoteacutelica Tarefa difiacutecil estudar esta obra sutilezas de linguagem requerem aiacute concentraccedilatildeo e esforccedilo por parte do leitor Texto sobre ciecircn-cia demonstrativa os Analiacuteticos Primeiros constam de dois livros teoria do silogismo no livro I propriedades do silogismo no livro II em resumo estudo da natureza e funcionamento do silogismo em geral Esta nossa anaacutelise contempla apenas o livro I que apresenta teoria do raciociacutenio em geral as leis do silogismo a anaacutelise dos ldquoargu-mentosrdquo (isto eacute das ldquoafirmaccedilotildees com justificativasrdquo) Tem-se aiacute o estudo exaustivo do silogismo que eacute para o filoacutesofo estagirita o raciociacutenio loacutegico por excelecircncia Enfim o objetivo eacute expor a natureza e funcionamento do silogismo em geral Consideram-se di-ficuldades de compreensatildeo imediata do texto toto os raciociacutenios esboccedilados e indicados por letras do alfabeto grego como a concisatildeo e brevidade e ainda verbo de ligaccedilatildeo su-bentendido e expressotildees que parecem impliacutecitas no texto Mostra-se a seguir que essas aparentes ldquodificuldadesrdquo podem ser consideradas ldquofacilidadesrdquo visto ser seca e objetiva e de palavras somente necessaacuterias a redaccedilatildeo de Aristoacuteteles Objetiva-se entatildeo mostrar tambeacutem o valor semacircntico que tinham quando foram aiacute usados os termos e expres-sotildees A loacutegica aristoteacutelica tem por base a ideia da deduccedilatildeo quer dizer a existecircncia de argumento particular a partir de argumento universal Aristoacuteteles considera premissa (πρότασις) o discurso (λόγος) que ou afirma ou nega alguma coisa esse discurso pode ser ou universal (καθόλου) ou particular (ἐν μέρει) ou indefinido (ἀδιόριστος) uni-versal a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo a algo tomado universalmente particular a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo a algo tomado particularmente ou natildeo-universalmente indefinido a atribuiccedilatildeo ou a natildeo-atribuiccedilatildeo feita sem indicaccedilatildeo de universalidade ou de particularidadeccxxxviii Vecirc-se entatildeo em Analiacuteticos Primeiros I a definiccedilatildeo de ldquoproacuteta-serdquo como oraccedilatildeo que afirma ou nega alguma coisa de algum sujeito

Proacutetase decerto eacute pois um enunciado afirmativo ou nega-tivo de algo acerca de algo155 (24a17-19)

Entre noacutes hoje em loacutegica esta palavra ldquoproacutetaserdquo indica a primeira proposiccedilatildeo duma demonstraccedilatildeo Forma-se de θέσις (a posiccedilatildeo o ato de pocircr de colocar) e πρό (an-tes diante) Em vez de ldquopremissardquo ou ldquoproposiccedilatildeordquo pode-se usar ao traduzir o texto aristoteacutelico a mesma palavra ldquoproacutetaserdquo A seguir algumas definiccedilotildees baacutesicas ainda do

155 Προτάσις μὲν οὖν ἐστι λόγος καταφατικὸς ἢ ἀποφατικὸς τινὸς κατὰ τινος

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livro I Definiccedilatildeo do silogismo

E silogismo eacute enunciado (discurso) em que colocadas certas coisas outra diferente das estabelecidas necessa-riamente decorrer pelo [fato de] existirem essas coisas E digo pelo [fato de] existirem essas coisas o em virtude dessas coisas decorrer e [digo] o em virtude dessas coisas decorrer o [fato de] natildeo ser necessaacuterio nenhum termo de fora para ter-se produzido necessariamente [a consequecircn-cia]156 (24b19-22)

Fala-se em silogismo aristoteacutelico mas discutem os estudiosos o que Aristoacutete-les entendia exatamente por silogismo Em geral muitos estudiosos consideram que silogismo tal como apresentado nos Analiacuteticos Primeiros possa ser resumido como laquo argumento vaacutelido com estrutura peculiar raquo Alguns tradutores preferem traduzir συλλογισμός por laquo raciociacutenio raquo ou por laquo deduccedilatildeo raquo Considera-se enfim o silogis-mo como um raciociacutenio ou deduccedilatildeo ou conclusatildeo a partir de premissas A palavra συλλογισμίς eacute constituiacuteda por συν (com) mais λογισμός (caacutelculo) indica ldquoconexatildeo de ideiasrdquo e ldquoraciociacuteniordquo Com essa palavra Aristoacuteteles designa a argumentaccedilatildeo loacutegica per-feita Pode-se dizer em resumo que o silogismo se constitui de trecircs proposiccedilotildees decla-rativas primeira premissa segunda premissa conclusatildeo

A seguir em pouco mais de quarenta capiacutetulos apresentam-se formas de ar-gumentos vaacutelidos como tais formas se relacionam entre si para construir sistema loacute-gico as propriedades de tal sistema loacutegico Em traduccedilotildees francesas e espanholas ndash natildeo no original ndash aparecem tiacutetulos dos capiacutetulos por exemplo laquo silogismos modais com uma proacutetase necessaacuteria e outra assertoacuteria (categoacuterica) raquo laquo silogismos modais sobre o admissiacutevel raquo etc Entende-se aiacute como silogismo modal aquele que pressupotildee pelo me-nos uma proacutetase modalizada ndash a modalidade em filosofia aristoteacutelica eacute uma particu-laridade da proacutetase uma proacutetase pode afirmar que algo precisa ser ou que realmente eacute (assertoacuteria) ou que pode ser Como exemplos de proacutetases assertoacuterias (proposiccedilotildees categoacutericas) podem-se considerar as relaccedilotildees seguintes

duas proposiccedilotildees satildeo contraditoacuterias se ndash e somente se ndash natildeo podem ambas ser verda-deiras e natildeo podem ambas ser falsas

duas proposiccedilotildees satildeo contraacuterias se ndash e somente se ndash ambas podem ser falsas mas natildeo podem ambas ser verdadeiras

Com estudo das sutilezas do texto original veem-se a seguir trecircs exemplos de alguns capiacutetulos em que Aristoacuteteles analisa silogismos[conversatildeo das proacutetases]

156 Συλλογισμὸς δὲ ἐστι λόγος ἐν ᾧ τεθέντων τινῶν ἕτερόν τι τῶν κειμέμων ἐξ ἀνάγκης συμβαίνει τῷ ταῦτα εἶναι Λέγω δὲ τῷ ταῦτα εἶναι τὸ διὰ ταυτᾶ συμβαίνειν τὸ δὲ διὰ ταῦτα συμβαίνειν τὸ μηδενὸς ἔξωθεν ὅρου προσδεῖν πρὸς τὸ γενέσθαι τὸ ἀναγκαῖον

Pois natildeo [se segue] se ldquohomemrdquo acaso natildeo esteja (natildeo es-teja como base) (natildeo exista) em algum vivente (animal) tambeacutem ldquoviventerdquo (animal) natildeo estaacute (natildeo estaacute como base) (natildeo existe) em algum homem157 (I 25a12-13)

Embora no subjuntivo na traduccedilatildeo eacute de se notar que no original o verbo apa-rece duas vezes sempre no indicativo ὑπάρχει mas na primeira vez antecedido de μή (que eacute um ldquonatildeordquo eventual) e na segunda antecedido de οὐχ (que eacute um ldquonatildeordquo real)

[silogismo assertoacuterio (categoacuterico)]

Se pois o M em certamente nenhum N estaacute (estaacute como base) (existe) poreacutem em algum Ξ necessidade o Ν em al-gum Ξ natildeo estar (natildeo estar como base) (natildeo existir)158 (I 27a32-33)

Em traduccedilotildees europeias duas negativas ldquose Μ natildeo estaacute em nenhum Νrdquo ndash o que natildeo parece bem em texto de loacutegica

[silogismo com duas proacutetases contingentes (com duas premissas admissiacuteveis)]

Quando entatildeo o Α aplicar-se a todo Β e o Β a todo o Γ silo-gismo haveraacute perfeito por [pelo fato de] ser fundamento o Α aplica-se a todo o Γ159 (I 32b38-40)

Na obra seguinte Analiacuteticos Segundos consta a ideia de que toda disciplina vem a partir de algum conhecimento preacute-existente Conforme Analiacuteticos Segundos 71a e toda disciplina dianoeacutetica se adquirem de um saber que precede o conhecimentordquo Em suma o objetivo neste quarto tratado eacute a demonstraccedilatildeo Conforme Aristoacuteteles ldquoOs meios pelos quais os argumentos retoacutericos convencem satildeo precisamente os mesmos uma vez que utilizam paradigmas que satildeo um tipo de raciociacutenio indutivo ou entime-mas que satildeo um tipo de raciociacutenio silogiacutesticordquo

Depois dos Analiacuteticos vem o tratado Toacutepicos (Τοπικά) que analisa o τόπος que se entende por ldquolugarrdquo donde se descobrem ou se inventam argumentos e por ldquoargu-mentordquo ou ldquomateacuteria de um discurso Esta obra se refere tambeacutem agrave arte oratoacuteria tra-ta-se dum tratado filosoacutefico-retoacuterico O objetivo dos Τοπικά penuacuteltima parte da seacuterie Oacuterganon jaacute eacute indicado de iniacutecio

ἡ μὲν πρόθεσις τῆς πραγματείας (o propoacutesito do tra-balho) μέθοδον (achar meacutetodo) ἀφʼ ἧς δυνησόμεθα συλλογίζεσθαι περὶ παντὸς τοῦ προτεθέντος προβλήματος ἐξ ἐνδόξων (pelo qual seremos capazes de raciocinar desde opiniotildees renomadas sobre todo problema colocado) καὶ αὐτοὶ λόγον ὑπέχοντες μηθὲν ἐροῦμεν ὑπεναντίον (e noacutes mesmos ao sustentar um

157 Οὐ γὰρ εἰ ἄνθρωπος μὴ ὑπάρχει τινὶ ζῴῳ καὶ ζῷον οὐχ ὑπάρχει τινὶ ἀνθρώπῳ158 Εἰ γὰρ τὸ Μ τῷ μὲν Ν μηδενὶ τῷ δὲ Ξ τινὶ ὐπάρχει ἀνάγκη τὸ Ν τινὶ τῷ Ξ μὴ ὐπὰρχειν

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argumento evitar dizer algo contraditoacuterio) O que se quer entatildeo eacute descobrir meacutetodo que capacite o raciociacutenio a partir de

opiniotildees de aceitaccedilatildeo geral acerca de qualquer problema que se apresente Aristoacuteteles repete em seguida tendo em vista agora a dialeacutetica a definiccedilatildeo de silogismo ldquoum dis-curso argumentativo no qual uma vez formuladas certas coisas alguma coisa distinta dessas coisas resulta necessariamente atraveacutes delasrdquo

Dos Elencos Sofiacutesticos (Περὶ σοφιστικῶν ἔλεγχῶν) o sexto e uacuteltimo da seacuterie trata do sofisma da falaacutecia A palavra ldquoelencordquo (ἔλεγχος) entre noacutes hoje eacute mais usa-da no sentido de cataacutelogo ou lista mas em Aristoacuteteles tem o sentido de ldquoargumento para refutarrdquo Iniacutecio do texto περὶ δὲ τῶν σοφιστικῶν ἔλεγχῶν [a respeito dos elencos sofiacutesticos (das refutaccedilotildees sofiacutesticas)] καὶ τῶν φαινομένων μὲν ἐλέγχων ὄντων [e que aparecem como sendo (parecem ser) certamente elencos (argumentos refutaccedilotildees contestaccedilotildees)] δὲ παραλογισμῶν ἀλλʼ ἐκ ἐλέγχῶ [poreacutem que satildeo paralogismos (enga-nos caacutelculos falsos falaacutecias) mas natildeo elencos (e natildeo refutaccedilotildees)] λέγωμεν [falemos] Para exemplificar pode-se ver um trecho do capiacutetulo IV ldquorefutaccedilotildees verbais e refu-taccedilotildees relativas agraves coisasrdquo consta aiacute o paraacutegrafo 4 de anaacutelise de refutaccedilotildees verbais Apresentam-se entatildeo exemplos de anfibologia agraves vezes difiacuteceis de passar numa tradu-ccedilatildeo Eacute o caso de ambiguidade ou duplo sentido neste periacuteodo composto com oraccedilatildeo reduzida τὸ βούλεσθαι λαβεῖν με τοὺς πολεμίους de dois significados literalmente ldquoo querer-se eu ter pego os inimigosrdquo e ldquoo querer-se os inimigos me terem pegordquo isto eacute ldquoquerem que eu tenha pego os inimigosrdquo e ldquoquerem que os inimigos me tenham pegordquo Frase correta mas ambiacutegua A oraccedilatildeo em negrito reduzida de infinitivo apresenta dois sentidos o sujeito do infinitivo λαβεῖν tanto pode ser o acusativo με como o acusativo τοὺς πολεμίους

159 Οταν οὖν τὸ Α παντὶ τῷ Β ἐνδέχηται καὶ τὸ Β παντὶ τῷ Γ συλλογισμὸς ἔσται τέλειος ὅτι τὸ Α παντὶ τῷ Γ ἐνδέχεται ὑπάρχειν

Referecircncias

Aristotelis opera ndash Academia regia Borussica Berlin 1960 vol I

Aristote ndash Organon (eacutedition J Tricot) Paris 1946 v 1

Cateacutegories v 2 De lrsquoInterpreacutetation v 3 Premiers

Analytiques v 4 Seconds Analytiques v 5 Topiques v 6 Les Reacutefutations SophistiquesAristotelis liber de interpretatione London Oxford University Press 1956

Aristotle ndash The Orgnon ndash Prior Analytics Hugh Tredennick Harvard University Press London 1955

Aristoacuteteles ndash Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Analiacuteticos Primeros Miguel Candel Sanmartiacuten Editorial Gredos Madrid 1995

Aulo Geacutelio ndash Noites Aacuteticas Londrina EDUEL 2010

Introduccedilatildeo de Bruno Fregni Bassetto traduccedilatildeo e notas de Joseacute Rodrigues Seabra Filho Nova tiragem revisada 2014

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Notas Finais

i LIDDELL Henry George and SCOTT Robert A Greek-English Lexicon Oxford University Press New York 1996 ii GENNEP Arnold Van The rites of passage Translated by Monika B rVizedon Routledge Library Editions London 2004 iii wwwperseustuftsedu (Apollodorus Library and Epitomes 2512) iv HOMERO Odyssey Translated by A T Murray Harvard University Press London 2002 (Loeb Classical Library) Book XI v VIRGIL Ecogles Georgics Aeneid 2V Translated by H R Fairclough Harvard University Press London 2001 (Loeb Classical Library) Georgics Book IV 453 ss vi wwwperseustuftsedu (Apollodorus Library and Epitomes 2512) vii Para a referecircncia da astuacutecia de Hera com relaccedilatildeo a Zeus fazendo de Euristeu o rei quando Zeus pensava em Heacutercules v Iliacuteada XIX 90-133 viii MIRCEA Eliade Rites and symbols of initiation the mysteries of birth and rebirth Translated by Willard R Trask Putnam Spring Publications 2005 p 112 ix HOMERO Odisseia XIX v 399-409 x HOMERO Odisseia XIX v 124-129 xi V Canto VIII da Odisseia na recepccedilatildeo a Odisseu entre os Feaacutecios em que Demoacutedoco canta o episoacutedio do cavalo de Troacuteia xii VIRGIacuteLIO Livro I v 257-296 xiii VIRGIacuteLIO Livro III v 441-444 xiv VIRGIacuteLIO Livro V v 724-739 xv VIRGIacuteLIO Livro VIII v 608-731 xvi HOMER Iliad Translated by A T Murray Harvard University Press London 2003 (Loeb Classical Library) Σ 478-608 xvii VIRGIacuteLIO Livro VIII v 626-728 xviii VOLPIS Leone Virgilio Eneide Libro sesto Milano Carlos Signorelli 1953 xix GLARE 2003 p 1238 xx Daiacute o significado do nome proposto pelo proacuteprio Virgiacutelio Averno seria proveniente do grego ἄορνος significando sem paacutessaro (VI 236-242) xxi VERNANT Jean-Pierre Mito e religiatildeo na Greacutecia antiga Trad Joana Angeacutelica DrsquoAvila Melo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 xxii Ver Iliacuteada Canto I v 37-42 na prece de Crises a Apolo e v 62-67 na fala de Aquiles sugerindo a consulta a um adivinho para saber o motivo de Apolo ter enviado ao acampamento a peste que dizimava o exeacutercito grego xxiii HOMERO Odisseia XI v 23-50 xxiv HESIacuteODO Teogonia v 383-403

xxv O escudo (ancile) segundo Tito Liacutevio teria caiacutedo do ceacuteu caelestiaque arma quae ancilia appellantur (Ab Vrbe Condita I 20) armas celestes que satildeo chamadas de escudos xxvi Espeacutecie de toga de cor puacuterpura usada pelos reis xxvii Primeiro ato de arar a terra xxviii O pronome hi estes faz referecircncia a Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e Marco Fuacuterio Camilo xxix Interregnum eacute o espaccedilo decorrente entre dois reinados xxx O termo nonae era empregado pois das nonae para os idus havia um espaccedilo de nove dias Sendo assim nos meses em que as nonae determinavam o 7ordm dia de cada mecircs os idus marcavam o 15ordm dia Nos meses de abril junho setembro e novembro as nonae determinavam o 5ordm dia e os idus o 13ordm dia xxxi A relaccedilatildeo de tais deuses se encontra em Le Culte Chez les Romains p11 xxxii Teogonia v 542 e v643 xxxiii Eneida I v 65 xxxiv Idem I v 254 xxxv Ibidem I v665 xxxvi Ibidem I v60 III v251 xxxvii Ibidem II v689 xxxviii Fulgurator eacute o que lanccedila relacircmpagos Tonitrualis e Fulminator os que lanccedilam raios Imbricitor o que faz chover Serenator o que acalma Frugiferum o que gera frutos o feacutertil o fecundo Tropaeophorus o que traz o trofeacuteu o vencedor xxxix Respectivamente Vencedor Invenciacutevel Auxiliador Instigador Mantenedor De cem peacutes Destruidor Sustentador Alimentador Nutridor xl Salii eram os antigos sacerdotes de Marte xli Flamen era o sacerdote que se consagrava a uma divindade particular Flamen Dialis Flamen Martialis Flamen Quirinalis respectivamente sacerdote de Juacutepiter sacerdote de Marte sacerdote de Quirino xlii vir refere-se a Varratildeo xliii O triacutemetro jacircmbico era composto por trecircs diacutepodas de jambo justapostas Jaacute Aristoacuteteles em sua Poeacutetica argumenta sobre seu uso na trageacutedia e na comeacutedia associando-o agrave fala cotidiana (1449a) ldquoquando se desenvolveu o diaacutelogo o engenho natural logo encontrou o metro adequado pois o jambo eacute o metro que mais se conforma ao ritmo natural da linguagem corrente demonstra-o o fato de muitas vezes proferirmos jambos na conversaccedilatildeo e soacute raramente hexacircmetros quando nos elevamos acima do tom comumrdquo (Trad Eudoro de Souza 1973) xliv Todas as traduccedilotildees exceto se especificado o contraacuterio satildeo de minha responsabilidade Adoto a ediccedilatildeo de Stevens (1971) para o texto grego xlv O diacutestico elegiacuteaco alterna hexacircmetros datiacutelicos o metro proacuteprio da poesia eacutepica ndash composto por seis peacutes datiacutelicos ou espondeus ndash com pentacircmetros (ou mais propriamente dois hemistiacutequios de hexacircmetro justapostos) Na traduccedilatildeo do passo elegiacuteaco da Androcircmaca embora natildeo busque em nenhum sentido reproduzir tal metro em liacutengua portuguesa busquei manter ao menos graficamente a estruturaccedilatildeo em diacutesticos xlvi Adoto a ediccedilatildeo de Garvie (2009) xlvii Adoto aqui em suas linhas gerais o argumento de Arthur (1981) Schein (1984 p168-191) e Redfield (1994 pp109-110) xlviii Um exemplo eacute o episoacutedio da morte de Paacutetroclo que incorpora cenas motivos e linguagem atinentes agrave morte de Aquiles que natildeo eacute contada no poema (ver Schein 1984 p 155-156) xlix Adoto a ediccedilatildeo de van Thiel (2010) para a traduccedilatildeo dos excertos da Iliacuteada l A traduccedilatildeo adota a ediccedilatildeo de Bury (1926)

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li Traduccedilatildeo de Iacutecaro Francesconi Gatti (2012) A ediccedilatildeo do texto grego eacute de Severyns (1977) lii Para a traduccedilatildeo deste excerto da Odisseia usei a ediccedilatildeo de Allen (1975) liii Traduccedilatildeo de Giuliana Ragusa (2011) segundo a ediccedilatildeo de Eva-Maria Voigt (1971) liv Um indiacutecio de canto lamentoso em Safo eacute o fragmento 140 Voigt um canto responsoacuterio agrave morte de Adocircnis embora natildeo definido tecnicamente como um treno lv Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira (2017) a partir da ediccedilatildeo de Burnet (1949) lvi Ver Swift (2010) lvii Adoto para a traduccedilatildeo a ediccedilatildeo de Dodds (1960) lviii Usado tambeacutem no Hino Deacutelfico a Dioniso de Filodamo e no hino de Iacuteaco nas Ratildes de Aristoacutefanes (vv324ss) Ver Dodds 1960 pp 72-74 lix Satildeo fundadores os textos de West (1974) e Bowie (1986) Para um desenvolvimento da discussatildeo aqui apresentada ver Brunhara (2014) lx Ediccedilatildeo do texto Diggle (1982) lxi Ver Fowler (1987) lxii Sobre o Poliacircndrio de Ambraacutecia ver DrsquoAlessio (1995) Uma traduccedilatildeo destes versos pode ser lida em Brunhara (2014 p27) lxiii Utilizo a ediccedilatildeo de Martin West (1972) para a traduccedilatildeo das elegias arcaicas de Arquiacuteloco e Tirteu lxiv Aristoacutefanes Aves v214 lxv Troianas v199 Ifigecircnia em Taacuteuris v146 Helena v185 Orestes v968 Euriacutepides Hipsiacutespile 8-10 Cocke) lxvi COSTA 2014 p 11 61 cf o prefaacutecio de Anatol Rosenfeld em LESKY 2003 p 14 lxvii LESKY 2003 p 21-23 lxviii Para atender agrave leitura do texto grego faz-se necessaacuterio transliterar pelo menos palavras e expressotildees isoladas na primeira ocorrecircncia A transliteraccedilatildeo eacute escrita entre colchetes quando segue a proacutepria palavra grafada em caracteres gregos (ROSSETTI 2006 p 327-337) lxix palavra ἁμαρτία [hamartia] eacute uma palavra composta e deverbal derivada do verbo ἁμαρτάνω [hamartanō] que literalmente significa errar o alvo errar a marca Assim ἁμαρτάνω tem amiuacutede a acepccedilatildeo de falhar no propoacutesito fazer errado negligenciar O ἀ de ἁμαρτάνω eacute privativo Por fim a palavra ἁμαρτία [hamartia] significa falha falta ou erro Essa culpa natildeo eacute senatildeo o estado de esquecimento diante dos verdadeiros objetivos reais (MORWOOD TAYLOR 2002 p 17 PEREIRA 1998 p 29 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 77 Confronte com a acepccedilatildeo judaico-cristatilde em LUST EYNIKEL HAUSPIE 1992 pt 1 p 22-23 RUSCONI 2003 p 36) lxx LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1150-1151 lxxi ARISTOTELES 1965 p 10-11 MARTINS 2009 p 128 lxxii ARISTOTELES 1965 p 11 lxxiii ARISTOTELES 1965 p 12 lxxiv ARISTOTELES 1965 p 12 MARTINS 2009 p 128-129 lxxv ARISTOTELES 1965 p 17 MARTINS 2009 p 128-129 lxxvi ARISTOTELES 1965 p 17 MARTINS 2009 p 128-129 lxxvii ARISTOTELES 1965 p 14 lxxviii HOMERO 2008 v 1 p 168 JEBB 2010 v 1 p xiv lxxix JEBB 2010 v 1 p xiv lxxx JEBB 2010 v 1 p xv lxxxi JEBB 2010 v 1 p xiv lxxxii MORWOOD TAYLOR 2002 p 8 PEREIRA 1998 p 16 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 36

lxxxiii FREIRE 1991 p 205-206 lxxxiv NIETZSCHE 2014 p 7-8 lxxxv LESKY 2003 p 34-35 lxxxvi JEBB 2010 v 1 p xvii xxi lxxxvii Ocorre o verbo ἁμαρτάνω [hamartanō] mas esse natildeo se aplica a Eacutedipo Faz parte da pergunta retoacuterica do servo e pastor de Laio quando inquirido (Oedipus Tyrannus 1149) lxxxviii Cf Ethica Nicomachea 1114a7-8 ARISTOTELES 2010 p 50 VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 40 lxxxix ARISTOTELES 1965 p 20 xc LESKY 2003 p 29-31 41-43 xci LESKY 2003 p 29-30 xcii A doutrina do estoicismo defendia a perfeiccedilatildeo do saacutebio Para Secircneca o proacuteprio saacutebio natildeo pode natildeo pecar Ainda segundo ele o verdadeiro saacutebio natildeo existe se natildeo peca natildeo existe Apenas existe um saacutebio que natildeo erradicando o pecado afasta-se dele aos poucos REALE 2008 v 7 p 79-80 xciii LESKY 2003 p 42 REALE 2008 v 7 p 79-80 Natildeo obstante as acepccedilotildees de ἁμαρτία e ἁμαρτάνω [hamartanō] como erro pecado falha errar pecar falhar podem ser encontradas na Septuaginta mas geralmente ligadas agraves observacircncias religiosas (LUST EYNIKEL HAUSPIE 1992 pt 1 p 22-23 RUSCONI 2003 p 36 GLARE 2015 p 1448) xciv ARISTOTELES 1965 p 20 LESKY 2003 p 43 xcv ARISTOTELES 1965 p 20 JEBB 2010 v 1 p xxvii LESKY 2003 p 43 xcvi LESKY 2003 p 28-29 xcvii NIETZSCHE 2014 p 5 xcviii ARISTOTELES 1965 p 20 xcix LESKY 2003 p 28-29 c JEBB 2010 v 1 p xxvii COULANGES 2004 p 95-102 ci LESKY 2003 p 28-29 cii ARISTOTELES 1965 p 19-20 MARTINS 2009 p 127-128 ciii ARISTOTELES 1965 p 28-29 MORWOOD TAYLOR 2002 p 22 PEREIRA 1998 p 36 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 101 civ MORWOOD TAYLOR 2002 p 70 PEREIRA 1998 p 114 115 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 350 355 cv MORWOOD TAYLOR 2002 p 3 PEREIRA 1998 p 6 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 12 cvi MORWOOD TAYLOR 2002 p 222 PEREIRA 1998 p 391 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1180-1181 FERRATER MORA 1964 t 2 p 303-304 FOBES 1959 p 284 cvii A palavra παράνοια [paranoia] eacute um substantivo composto e deverbal derivado do verbo παρανοέω [paranoeō] que pensamento desviado loucura ou deliacuterio uma anormalidade do νοῦς [nous] MORWOOD TAYLOR 2002 p 245 PEREIRA 1998 p 433 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1319 FREIRE 2001 p 268 cviii Platatildeo Leges 9860d (PLATO 1926 v 2 p 222-223) Platatildeo Leges 5731c 5734b (PLATO 1926 v 1 p 336-337 346-347) Platatildeo Timaeus 86e (PLATO 1929 v 9 p 234-235) cix VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 36-37 cx VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 35 cxi VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxii VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxiii VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 35-36 cxiv MORWOOD TAYLOR 2002 p 245 PEREIRA 1998 p 433 LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 1319 FREIRE 2001 p 268

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cxv VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37 cxvi VERNANT VIDAL-NAQUET 2014 p 37-38 cxvii ARISTOTELES 1965 p 20 cxviii NIETZSCHE 2014 p 5 cxix ARISTOTELES 1965 p 22 cxx Cf a nota sobre a linha 1360 em SOPHOCLES 2010 v 1 p 246-247 A palavra ὅσιος significa santificado pela divina lei ou pela lei da natureza sagrado aprovado pelos deuses santo pio casto puro MORWOOD TAYLOR 2002 p 225 A palavra ἀνόσιος eacute a negaccedilatildeo do ὅσιος cxxi Este capiacutetulo eacute parte de meu poacutes-doutorado supervisionado pelo Prof Dr Joseacute Antocircnio Alves Torrano na Universidade de Satildeo Paulo (USP) com financiamento da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo (FAPESP) cxxii Sobre a importacircncia da vida praacutetica em Diaacutelogo do Amor consultar FRAZIER 2008 p XXXIII-XXXVIII cxxiii Do caraacuteter conselheiro da filosofia agrave eacutepoca de Plutarco ver FOUCAULT 2010 cxxiv A intenccedilatildeo de Plutarco de unir a filosofia agrave praacutetica demonstra a influecircncia vinda da poesia grega anterior como Platatildeo e Aristoacuteteles sobre isso verificar PRICE 2011 cxxv Da misoginia de Euriacutepides averiguar MARCH 1990 cxxvi Segundo o Cataacutelogo de Lacircmprias Plutarco escreveu o tratado n 205 dedicado ao pensamento de Heraacuteclito intitulado Sobre o que pensou Heraacuteclito que natildeo chegou ao nosso tempo Aleacutem disso Plutarco eacute uma fonte importante dos fragmentos de Heraacuteclito (HERSHBELL 1977) cxxvii De acordo com o Cataacutelogo de Lacircmprias Plutarco escreveu o tratado de n 43 intitulado No Deacutecimo Livro de Empeacutedocles ainda que natildeo tenha sido preservado Nosso autor cita muitos pensamentos do filoacutesofo e poeta siciliano em sua obra o que o torna uma importante fonte de fragmentos pertencentes a Empeacutedocles (HERSHBELL 1971) cxxviii Para uma anaacutelise mais detalhada do uso plutarquiano do fragmento de Parmecircnides e dos versos de Hesiacuteodo consultar MARTIN JR 1969 cxxix Como notou Peacuterez Jimeacutenez (2004) Plutarco segue o pensamento cosmogocircnico hesioacutedico porque o poeta de Ascra sistematizou o corpus miacutetico tradicional conhecido por todos os gregos cxxx O pensamento de Crisipo representa a contribuiccedilatildeo do ceticismo na reflexatildeo plutarquiana quanto ao amor Para a leitura que Plutarco faz dos ceacuteticos verificar DeLACY 1953 cxxxi Homero eacute um autor importante para a finalidade pedagoacutegica desse tratado plutarquiano por conta de seus siacutemiles e de sua fama entre os gregos de ldquomestre da sabedoriardquo Para uma leitura mais aprofundada sobre a questatildeo ver DrsquoIPPOLITO 2004 cxxxii Em Hipoacutelito Euriacutepides exalta a amizade e a honestidade entre os homens (PAGLIALUNGA 20022003) cxxxiii O amor entre os guerreiros estaacute presente na tradiccedilatildeo literaacuteria grega em particular entre os espartanos Haacute dois importantes artigos sobre o poder de Eros em um campo de batalha HINDLEY 1994 e 1999 cxxxiv Acerca do amor entre Aquiles e Paacutetroclo averiguar CLARKE 1978 cxxxv Para uma melhor compreensatildeo do poema consultar SUTTON 1983 e HORDERN 1999 cxxxvi Haacute uma anaacutelise hermenecircutica na obra de Piacutendaro da autoria de Fera (1992) a respeito do significado da frase ldquoescaparam de Aqueronterdquo cxxxvii Existe a versatildeo platocircnica de Eros filho de Poros e Penia em que a matildee daquele Meacutetis tem participaccedilatildeo nos atributos de Eros como Diotima que herdou dela e Poros a habilidade na criaccedilatildeo e execuccedilatildeo de expedientes para alcanccedilar seus fins (PLATAtildeO O Banquete 203b-d) Conforme notaram Deacutetienne e Vernant (2008 p 135) a associaccedilatildeo entre Meacutetis e Eros jaacute fora

registrada por Parmecircnides (frag 13) o que evidencia a recepccedilatildeo em Platatildeo de um pensamento jaacute existente natildeo se tratando de uma criaccedilatildeo sua Para uma anaacutelise mais detalhada do episoacutedio ver NEUMANN 1965 cxxxviii Para ver uma lista de obras sobre a Histoacuteria da Linguiacutestica desde 1882-1976 ver Koerner (1978) De acordo com Koerner (2014 p 11) ldquoEacute verdade que podiacuteamos talvez falar de uma tradiccedilatildeo de 200 anos de escrita da histoacuteria da Linguiacutestica talvez a comeccedilar com o Tableau des progregraves de la science grammaticale (1796 cf Andresen 1978) de Franccedilois Thurot (1768- 1832) embora vaacuterias obras anteriores jaacute tenham sido citadas por exemplo o Versuch einer Historie der deutschen Sprachkunst (1747) de Elias Caspar Reichard (1714-1791) (cf Koerner 1978c para referecircncias a outras obras do seacuteculo XVIII) Poreacutem como sugerem as fontes (Koerner 1978c 1-4) eacute apenas a partir de finais da deacutecada de 1860 que surge um tipo de tratamento mais profundo da histoacuteria da Linguiacutestica do qual a Geschichte der Sprachwissenschaft (1869) de Theodor Benfey (1809-1881) pode ser considerada como o exemplo mais paradigmaacutetico Este trabalho tinha sido precedido pela obra de Heymann Steinthal (1823-1899) de 1863 que procurou substituir os trecircs volumes de Die Sprachphilosophie der Alten (1838-1841) de Laurenz Lersch (1811-1849) mas que soacute trata das contribuiccedilotildees da Greacutecia e Roma para o pensamento linguiacutesticordquo Essa mesmas informaccedilotildees satildeo encontradas tambeacutem em Koerner 1995 p 03 2004 p 28) cxxxix Robins (1979 [1967] p xvi) chega mesmo a afirmar que ldquoO interesse atual que os linguistas demonstram pelo desenvolvimento passado e recente da sua ciecircncia eacute em si mesmo sinal da maturidade que a linguiacutestica independentemente das suas possiacuteveis aplicaccedilotildees praacuteticas alcanccedilou como disciplina acadecircmicardquo cxl Podemos citar que um dos resultados desse empreendimento foi precisamente a compilaccedilatildeo de antologias multiautorais sobre a histoacuteria da Linguiacutestica entre as quais podemos destacar por exemplo Auroux (ed 1989ndash2000) Auroux Koerner Niederehe Versteegh (eds 2000ndash2006) Lepschy (ed 1994ndash98) Schmitter (ed 1987ndash2007) entre outros cxli Como observa Vivien Law (1993 p 2) os tratados gramaticais entre os textos antigos ateacute mesmo entre os filoacutelogos e os classicistas pareciam prescindir de um ldquovalor intriacutensecordquo que justificasse o interesse em sua pesquisa Diferente dos aacuteridos e por vezes sem graccedila tratados em torno da linguagem escrito por gramaacuteticos gregos e romanos os textos poeacuteticos retoacutericos e filosoacuteficos por outro lado em virtude seus meacuteritos esteacuteticos ou conceituais sempre tiveram a predileccedilatildeo dos estudiosos da Antiguidade cxlii Robins (1967 p 9) chega a afirmar que Its simply that the Greek thinkers on language and on the problems raised by linguistic investigations initiated in Europe the studies that we can call linguistic Science in its widest sense and that this Science was a continuing focus of interest from ancient Greece until the present day cxliii Como por exemplo Fortes (2012) Dezotti (2011 2013) e Beccari (2013) No Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica da UFJF na linha de Pesquisa Linguagem e Humanidades orientamos os seguintes trabalhos nessa perspectiva Rocha (2015) Freitas (2016) Silva (2018) Rodrigues (2020) cxliv Com a neutralidade epistemoloacutegica o classicista colabora para a concepccedilatildeo de que ldquonatildeo faz parte do nosso papel dizer se isto eacute mais ciecircncia do que aquilo mesmo se nos acontecer de sustentar que isto ou aquilo eacute concebido como ciecircncia por este ou aquele criteacuteriordquo E com o historicismo moderado traz com o seu vastiacutessimo corpus de textos gregos e latinos informaccedilotildees decisivas para que a comunidade cientiacutefica se possa convencer de que ldquoo valor de um saber eacute dado de acordo com o grau de adequaccedilatildeo desse saber a um fim dado (o que entretanto natildeo conduz ao ldquomito da incomparabilidaderdquo segundo o qual seria impossiacutevel ler textos do passado)rdquo

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cxlv Disponiacutevel em httpwwwmlatuzhchMLSxanfangphpcorpus=13amplang=0 cxlvi Por exemplo as dissertaccedilotildees de Dezotti (2007) Freitas (2016) e Rodrigues (2020) cxlvii Cf ldquothe history of linguistics may well serve as a guard against exaggerated claims in terms of novelty originality breakthrough and revolution in our (re)discoveries and thus lead to a less polemic kind of scientific discourse or as the late Paul Garvin suggested many years ago (Garvin 1970) a lsquomoderation in linguistic theoryrdquo (traduccedilatildeo nossa) cxlviii O presente trabalho faz parte do projeto de poacutes-doutoramento que atualmente desenvolvo no Departamento de Estudos Claacutessicos financiado pela Faculdade de Artes e Ciecircncias da Universidade de Toronto cxlix Trecho inicial do diaacutelogo 2 (22) ldquoCaronte e Menipordquo da obra ldquoDiaacutelogo dos Mortosrdquo de Luciano de Samoacutesata (ativo no seacutec II dC) na traduccedilatildeo de Henrique G Murachco (1996 p 53) Agradeccedilo ao caro professor e colega Breno Battistin Sebastiani que gentilmente me enviou as fotos do diaacutelogo pois meu exemplar do livro estaacute no Brasil infelizmente cl Pequena moeda grega que equivaleria a um centavo cli Diferentemente do que o filme ldquoTroiardquo(2004) infelizmente disseminou a moeda era colocada entre os laacutebios ou mesmo na boca do morto A relaccedilatildeo entre as moedas e as praacuteticas mortuaacuterias eacute discutida por exemplo por Stevens (1991) clii Utilizo aqui o mesmo termo que estabeleci na anaacutelise dos epigramas fuacutenebres da minha tese de doutorado (AMARAL 2018) O termo aglutina as duas funccedilotildees assumidas pelo leitor do epigrama pois a construccedilatildeo do epigrama com base epigraacutefica pressupotildee como interlocutor algueacutem que passa diante da laacutepide e lecirc o que estaacute escrito nela Como o termo passante natildeo abarca a funccedilatildeo do leitor do epigrama jaacute em contexto literaacuterio foi adotado o composto transeunte-leitor para apreender as duas funccedilotildees que o leitor do epigrama literaacuterio deve assumir ao estar diante de um exemplar do gecircnero cliii O epigrama 89 de Caliacutemaco foi incluiacutedo por conta do recorte temporal do corpus Entretanto ele natildeo eacute um epigrama fuacutenebre embora esteja arrolado no livro 7 da Antologia Grega Jaacute o epigrama 165 eacute atribuiacutedo por Gow and Page (1965) a Aacuterquias mas algumas outras ediccedilotildees mantecircm a dupla atribuiccedilatildeo de Antiacutepatro ou Aacuterquias Como foi adotada a ediccedilatildeo que considera a atribuiccedilatildeo a Aacuterquias eacute importante registrar que a dataccedilatildeo desse epigrama pode ser posterior ao periacuteodo heleniacutestico cliv Todos os epigramas do corpus foram traduzidos para o portuguecircs por Jesus (2019) Todos os epigramas de Caliacutemaco haviam sido traduzidos primeiramente por Silva (2014) sendo que o 524 havia sido traduzido pelo mesmo autor em artigo no ano anterior O mesmo epigrama (524) havia sido traduzido por Paes (1995) Em 2019 Flores publicou a traduccedilatildeo integral de Caliacutemaco e em 2018 Amaral havia traduzido o epigrama 725 do mesmo epigramatista Por fim os epigramas de Meleagro do corpus haviam sido traduzidos por Amaral (2009) clv Vale lembrar entretanto que apesar do desenvolvimento do epigrama novo gecircnero as inscriccedilotildees seguem sendo produzidas ao longo do tempo passando tambeacutem por mudanccedilas graacuteficas e ganhando novas localidades e liacutenguas Dessa maneira haveraacute uma muacutetua influecircncia da praacutetica de ambas as modalidades ao longo do tempo fenocircmeno que os pesquisadores da aacuterea tecircm estudado nos uacuteltimos anos clvi Haacute poreacutem discussatildeo sobre como a forma dialogada ocorre considerando tambeacutem as inscriccedilotildees e natildeo apenas os epigramas literaacuterios como aponta Kauppinen (2015) citando Rasche (1910) e Tueller (2008) clvii Encontra-se um ciclo de epigramas de Gregoacuterio de Nazianzo (AG 8104-117) que eacute justamente sobre tuacutemulos violados Floridi (2013) faz uma anaacutelise que compara inscriccedilotildees de mesma temaacutetica com os epigramas literaacuterios de Gregoacuterio clviii Pode-se fazer essa afirmaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos epigramas dialogados da Antologia Grega

Entretanto ainda natildeo foram analisadas as inscriccedilotildees dialogadas e portanto natildeo se pode afirmar sobre como o fenocircmeno se daacute nesse contexto clix Para maiores detalhes sobre o poeta cf Gutzwiller (1998) e Amaral (2009) clx Para recentes discussotildees sobre Meleagro e sua obra cf ldquoA Guirlanda de Meleagro de Gadara e o Epigrama Gregordquo na seacuterie ldquoEstudos Claacutessicos em Diardquo (YouTube) promovida pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo e ldquoMeleagro um poeta na era das bibliotecasrdquo na seacuterie ldquoCafeacute Gregordquo promovida pelo NUPEL (Nuacutecleo Permanente de Extensatildeo em Letras) da Universidade Federal da Bahia (YouTube) clxi Ainda natildeo haacute previsatildeo de publicaccedilatildeo do estudo clxii Entretanto foram recolhidos cento e trinta e cinco epigramas dialogados da AG no total durante a minha pesquisa atualmente em andamento clxiii Eacute curioso notar que todos os epigramatistas do corpus foram nomeados no proecircmio de Meleagro (AG 41) clxiv Agradeccedilo ao caro colega Rafael Brunhara por ter me enviado uma foto do poema pois infelizmente o meu exemplar do livro se encontra no Brasil clxv O texto desta pequena Introduccedilatildeo bem como o texto da seccedilatildeo 1 (As Mythologiae) satildeo de Joseacute Amarante e refletem ideias e textos de sua autoria presentes em O livro de mitologias de Fulgecircncio (2019) Para traduccedilotildees das Mythologiae de Fulgecircncio para outras liacutenguas vd Whitbread (1971) Wolff Dain (2013) e restrita ao Proacutelogo do Livro I Venuti (2018) clxvi A questatildeo eacute jaacute bem discutida de forma que hoje a confusatildeo natildeo mais se sustenta (AMARANTE 2019 vd tb VENUTI 2018 pp 11-21) Satildeo leituras obrigatoacuterias para esse tema os trabalhos de Gregory Hays constantes no site sob sua organizaccedilatildeo lthttppeoplevirginiaedu~bgh2nfulgbibhtmlgt onde se encontra uma bibliografia anotada do nosso autor clxvii Vd Moltzer (1535) Petrus (1536) Commelinus (1599) Muncker (1681) Staveren (1742) clxviii A traduccedilatildeo de Martina Venuti (2018) do Proacutelogo do Livro I das Mythologiae eacute acompanhada de uma nova ediccedilatildeo criacutetica referente a essa parte do texto com a inclusatildeo de novos manuscritos considerados Para o texto de Helm vd Fulgentii (1898) clxix A ediccedilatildeo de Helm (1898) nos daacute a obra como da autoria do bispo homocircnimo ldquoS Fulgentii Episcopi Super Thebaidenrdquo clxx ldquoEgli calpesta ogni regola di buon senso in modo cosigrave aperto grossolano e quasi brutale che mal srsquointende come un cervello sano abbia potuto concepire sul serio un cosigrave pazzo lavorordquo (COMPARETTI 1872 v I p 149) ldquoBoth Divine Comedy and Botticellirsquos Primavera would be very different works if Fulgentius had not writtenrdquo (HAYS 1996) As traduccedilotildees citadas neste trabalho satildeo nossas exceto quando informamos outro tradutor clxxi Uma parte significativa do que hoje afirmamos em relaccedilatildeo a Fulgecircncio e sua obra se deve principalmente aos estudos desenvolvidos por Gregory Hays em sua tese de doutorado Fulgentius the Mythographer (Cornell 1996) e a estudos desenvolvidos em sequecircncia (vd HAYS 1999-2019) Outros estudos sobre o autor costumam nos uacuteltimos anos girar em torno dos trabalhos de Martina Venuti Eacutetienne Wolff Massimo Manca e Silvia Mattiacci Vd Hays (1999-2019) clxxii Para outros estudos no Brasil vd pe Santos (2016) clxxiii O caso mais evidente eacute o da sequecircncia de interpretaccedilotildees evemeristas para explicar o ocorrido a Dacircnae e a Ganimedes em que se citam os mesmos ndash e outras ndash personagens numa mesma sequecircncia e com visiacuteveis decalques leacutexico-sintaacuteticos (vd AMARANTE 2019 p 84) Sobre as fontes fulgencianas veja-se tambeacutem Hays (1996 partic cap IV) clxxiv Segundo Brisson seraacute com a redescoberta dos textos gregos no Renascimento que haveraacute uma predominacircncia da influecircncia do neoplatonismo (2014 p 227) clxxv Para alguma bibliografia sobre essas tradiccedilotildees vd Amarante (2019 p 41-51)

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clxxvi ldquoPropone unrsquoanalisi complessiva dellrsquoldquoarchitetturardquo delle Mythologiae fornendone una lettura unitaria avanzando ipotesi sullrsquoorganizzazione ldquoorizzontalerdquo della materia e interessanti proposte critiche riguardo ai tituli delle fabulaerdquo clxxvii ldquoRather than relying on wide-ranging semantic matrixes Amarante concentrates on the micro-level of the transitions from one fabula to another He aims to demonstrate that the Mythologiae not only constitute a network but also that this network is linearly organized its rationale emerges through the succession of myths which far from being disjointed are proved to be readable ldquocover-to-coverrdquo As a result Amarantersquos analysis substitutes Wolffrsquos structural cohesion by resorting to a kind of flow cohesion ndash but cohesion is still the goalrdquo clxxviii Cf Venuti (2009 2018) que apresenta uma bem cuidada revisatildeo da ediccedilatildeo de Helm no tocante ao Proacutelogo do Livro I e faz uma uacutetil discussatildeo sobre seu conteuacutedo e sobre sua estrutura (essa mesma estrutura eacute retomada por Wolff e Dain 2013 pp 12-15) Cf tambeacutem Hays (1996 [2001] e 2003) e Mattiacci (2002) clxxix Dados os limites deste trabalho natildeo se faz aqui um detalhamento do conteuacutedo e da estrutura do proacutelogo Vd a leitura de Venuti (2018 pp 21-30) e de Mattiacci (2002) Em portuguecircs veja-se um resumo do Proacutelogo em Amarante (2019 p 25-26) clxxx Obviamente fazemos referecircncia aqui a esta narrativa no iniacutecio do Livro I como uma faacutebula em separado a partir do que a tradiccedilatildeo tem considerado Segundo Amarante (2018a e 2019) contudo trata-se apenas de uma narrativa introdutoacuteria numa sequecircncia discursiva una em todo o Livro I em que as faacutebulas natildeo se encontram divididas como narrativas independentes separadas por tiacutetulos clxxxi Cf Livro da Sabedoria 14 15 A ediccedilatildeo utilizada da Biacuteblia Sagrada eacute a ediccedilatildeo pastoral da Editora Paulus clxxxii O texto e as notas desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Raul Oliveira Para traduccedilotildees da Virgilianae a outras liacutenguas vd Whitbread (1971) Rosa (1997) Valero Moreno (2005) e Wolff (2009) clxxxiii Cf Comparetti (1943[1872] p 61) clxxxiv O texto desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Shirlei Almeida Para traduccedilotildees da Sermonum a outras liacutenguas vd Pizzani (1968) Whitbread (1971) clxxxv ldquo[hellip] entries 1-11 deal with terms involved with burial customs divination sacrifice and minor deities while 12-62 (except for 14 and 48 which may be misplaced and belong in the first category) cover odd words mdashcolloquial and technical termsmdashfor foods boats utensils women of the streets and so forth particularly as found in plays poems and romancesrdquo clxxxvi ldquoDei vari testimonia riportati da Fulgenzio nella esemplificazione dei sermones soltanto tre trovano rispondenza presso altri studiosi o eruditi o lessicografi quali Festo o Nonio o Servio o Isidoro a parte le voci addirittura ignote a codesti eruditirdquo clxxxvii O texto desta seccedilatildeo bem como as traduccedilotildees nela apresentadas satildeo de Cristoacutevatildeo Joseacute dos Santos Juacutenior Dadas as particularidades lipogramaacuteticas da De aetatibus em especial comentam-se questotildees tradutoacuterias especialmente nesta seccedilatildeo deste capiacutetulo clxxxviii O epiacuteteto de Mitoacutegrafo eacute muito utilizado para distinguir o Fulgecircncio das Mitologias de seu homocircnimo o Bispo de Ruspe em razatildeo de uma problemaacutetica de ordem filoloacutegica que foi explorada em liacutengua portuguesa por Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019b) clxxxix Em seu proacutelogo Fulgecircncio afirma que seu alfabeto teria 23 elementos a diferenccedila do claacutessico que possui 22 caracteres Tendo isso em conta Leslie Whitbread (1971) e Massimo Manca (2003) consideram que a letra adicional seria o lsquoyrsquo Para o excerto do proacutelogo em que satildeo abordados os elementos grafecircmicos vd traduccedilatildeo de Santos Juacutenior (2020ae) cxc Esta problemaacutetica filoloacutegica jaacute foi explorada em nossas duas traduccedilotildees lipogramaacutetica e alipogramaacutetica do proacutelogo da De aetatibus (SANTOS JUacuteNIOR 2020ae)

cxci Cristoacutevatildeo Santos Juacutenior (2019a) aponta natildeo apenas autores antigos e tardios como integrantes dessa tradiccedilatildeo mas tambeacutem aqueles do Classicismo Barroco Arcadismo Romantismo Simbolismo e Concretismo cxcii Para mais dados relativos agrave tradiccedilatildeo de escrita constrangida vd Santos Juacutenior (2019a 2020d) e Santos Juacutenior Amarante (2019) cxciii Jaacute foram publicadas as traduccedilotildees do proacutelogo lipogramaacutetica e alipogramaacutetica e as traduccedilotildees lipogramaacuteticas do Livro I (Ausente A) do Livro II (Ausente B) do Livro III (Ausente C) do Livro IV (Ausente D) do Livro VII (Ausente G) e do Livro XII (Ausente M) efetuadas por Santos Juacutenior (2019cd e 2020abcef) e por Santos Juacutenior em coautoria com Amarante (2020) cxciv Cf eg KROLL 1953 P 70 ROBINS 1979 p 42 DELLA CASA 1973 p 76 CAcircMARA JR 1975 p 21 LAW 2003 p 65ndash80 cxcv Essa busca aparece explicitamente manifesta em algumas passagens da Ars (propter compendium HOLTZ 1981 p 656 ne nimis longum sit p 660) Para o gramaacutetico e comentador Pompeio Donato escreveu sua arte ldquomais para oferecer a mateacuteria a se tratar do que tratar dela ele proacutepriordquo (re uera ars ista scripta est ut materiam potius dederit tractandi quam ipse tractauerit in Grammatici Latini vol 5 p 281 linhas 26-27) cxcvi et uide quem ad modum tractat tractat primo de illis communibus et postea redit ad istos speciales casus (Grammatici Latini vol 5 p 103 linhas 4ndash5) cxcvii Mencione-se que a recente ediccedilatildeo de Holtz (1981) traz uma nova divisatildeo em dois ldquovolumesrdquo (editiones) o primeiro com as noccedilotildees elementares (Arte menor Arte maior 1) o segundo com o ldquocurso superiorrdquo (Arte maior 2 e 3) cxcviii Grammaticae initia ab elementis surgunt elementa figurantur in litteras litterae in syllabas coguntur syllabis conprehenditur dictio dictiones coguntur in partes orationis partibus orationis consummatur oratio oratione uirtus ornatur uirtus ad euitanda uitia exercetur cxcix Marc Baratin (1989a p 198 1994 p 145) atribui essa ldquovisatildeo tradicionalrdquo aos estudos de K Barwick (1922 1957) cc Plerique artem scribentes a litterarum tractatu inchoauerunt plerique a uoce plerique a definitione artis grammaticae sed omnes uidentur errasse non enim propriam rem officii sui tractauerunt sed communem et cum oratoribus et cum philosophis nam de litteris tractare et orator potest de uoce nemo magis quam philosophi tractant definitio etiam Aristotelicorum est unde proprie Donatus et doctius qui ab octo partibus inchoauit quae specialiter ad grammaticos pertinent cci Um amplo estudo sobre o surgimento e estabelecimento da doutrina das partes da oraccedilatildeo da filosofia agrave gramaacutetica encontra-se em DEZOTTI (2011) e DEZOTTI (2015) ccii Aristotelici duas dicunt esse partes orationis nomen et uerbum Stoici quinque grammatici octo plerique nouem plerique decem plerique undecim (Grammatici Latini vol 4 p 428 linhas 12ndash13) cciii Nomina declinare et uerba in primis pueri sciant neque enim aliter peruenire ad intellectum sequentium possunt cciv hellipbene fecit Donatus partem illam priorem scribere infantibus posteriorem omnibus (Grammatici Latini vol 5 p 98 linhas 6ndash7 traduccedilatildeo nossa) ccv quare inchoauit Donatus a nomine et non a littera cum alii a littera inchoassent sciens Donatus quia et ipsa littera nomen erat ideo inchoauit a nomine et non a littera (YENES ed 1973 p 9 linhas 15-18) ccvi adtendendum quod Donatus strenuissime peritissimeque suam edidit artem primum enim componens minorem ad instruendos pueros eam in exordio sui uoluminis imposuit secundam uero editionem a littera ceterisque particulis ad superficiem pertinentibus

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inchoauit et postea octo partes his autem positis ad complendam secundam editionem barbarismum et cetera uitia posuit et sicut primitus partes id est uocem litteram syllabam ceterasque quae ad superficiem pertinent posuerat ita de uitiis disputans barbarismum in capite ponere studuit qui corrumpit superficiem in secundo loco soloecismum quod uitium corrumpit sensum contextumque partium ccvii scripsit enim artem duplicem id est octo partes quas minores uocant artes a quibus secunda haec est editio sed notandum est quibus personis primam quibusque scripsit secundam et interrogandum quot et quibus causis artes minores scripsit hoc est personis puerorum et causis tribus prima ut scirent quibus modis esset ars secunda ut discerent interrogare ut est partes orationis quot sunt tertia causa uti nossent soluere interrogata ut est octo et rel(iqua) in prima ad docendos pueros interrogationi satisfacit et solutioni in secunda autem editione personas perfectas docet scientiam Latinitatis sed nos nunc dicere conuenit quibus modis sit interrogatio id est tribus quasi discere uolens uel docere an quaestionis promendae gratia sed in artibus minoribus quasi docere uolens interrogat Donatus ccviii CICERO FILIUS Studeo mi pater Latine ex te audire ea quae mihi tu de ratione dicendi Graece tradidisti ndash si modo tibi est otium et si vis CICERO PATER An est mi Cicero quod ego malim quam te quam doctissimum esse Otium autem primum est summum quoniam aliquando Roma exeundi potestas data est deinde ista tua studia vel maximis occupationibus meis anteferrem libenter CF Visne igitur ut tu me Graece soles ordine interrogare sic ego te vicissim eisdem de rebus Latine interrogem CP Sane si placet Sic enim et ego te meminisse intellegam quae accepisti et tu ordine audies quae requires CF Quot in partes distribuenda est omnis doctrina dicendi CP In tres CF Cedo quas CP Primum in ipsam vim oratoris deinde in orationem tum in quaestionem CF In quo est ipsa vis CP In rebus et verbis (CICERO 1942) ccix partes orationis quot sunt octo quae nomen pronomen uerbum aduerbium participium coniunctio praepositio interiectio nomen quid est pars orationis cum casu corpus aut rem proprie communiterue significans nomini quot accidunt sex quae qualitas conparatio genus numerus figura casus qualitas nominum in quo est bipertita est aut enim unius nomen est et proprium dicitur aut multorum et appellatiuum ccx hellipin responsionibus callidi debemus esse plerumque aut male respondentes faciunt nos facere soloecismum aut male interrogantes ut puta siqui dicat Africanus sic debeo interrogare sic respondere Africanus quae pars orationis et puer dicat nomen ego interrogo quale nomen debet ille respondere proprium debeo interrogare quae pars proprii et debet ille dicere agnomen ipse est ordo uerus secundum interrogationem prius est enim ut dicas quod est generale et postea ut dicas quod est speciale ceterum si te interroget Africanus quae pars orationis et tu dicas agnomen ab imis coepisti non mihi dixisti quia nomen est deinde non mihi dixisti utrum proprium sit an appellatiuum sed dixisti quod erat imum ergo sic debes dicere nomen est est autem proprium pars autem proprii nominis est agnomen sic similiter et reliqua ccxi solent aliqui homines plerumque esse callidi et interrogat te aliquis et dicit tibi Lucius quale nomen est proprium quae pars est proprii nominis dicis illi praenomen dicit tibi falsum est nam ecce seruus meus ita appellatur et non habet praenomen ccxii Para um comentaacuterio contextualizado sobre as disputas de Geacutelio com gramaacuteticos de seu tempo cf KASTER 1988 pp 50-62 ccxiii laquoarma uirumque cano Troiae qui primus ab orisraquo hellip quot partes orationis habet iste uersus nouem quot nomina sex arma uirum Troiae qui primus oris quot uerba unum cano quot praepositiones unam ab quot coniunctiones unam que arma quae pars

orationis nomen quale appellatiuum cuius est speciei generalis cuius generis neutri quare quia omnia quae in plurali numero in a desinunt sine dubio neutri generis sunt hellip cuius est figurae simplicis fac ab eo compositum armiger armipotens inermis cuius est casus in hoc loco accusatiui unde hoc certum est a structura id est ordinatione et coniunctione sequentium cano enim uerbum accusatiuo iungitur ccxiv No que diz respeito agrave forma textual em perguntas e respostas o artigo de Papadoyannakis (2006) foi fundamental para delinear as hipoacuteteses aqui levantadas a despeito de tratar especificamente do uso das erotapokriacuteseis no ambiente filosoacutefico bizantino ccxv Tais como RITTER (2010) uma abordagem mais teoacuterica ETTENHUBER (2007) STANIVUKOVIC (2007) e JOHNSON (2010) que exploram aspectos teoacutericos a serviccedilo da anaacutelise de seus respectivos corpora especiacuteficos no acircmbito dos estudos claacutessicos LAW (1926) sobre a hipeacuterbole como recurso para narrativas mitoloacutegicas e PHILBRICK (2016) estudo mais aprofundado sobre a hipeacuterbole em Oviacutedio ccxvi Consideramos aqui a hipeacuterbole como figura em sentido vago agrave maneira que aparece na exposiccedilatildeo de Quintiliano sem implicar uma oposiccedilatildeo entre figura e tropo oposiccedilatildeo essa comum nos manuais e dicionaacuterios especializados cf MOISEacuteS (1974) ccxvii Cf siacutentese da bibliografia atualizada em POPA-WYATT (2010) ccxviii As passagens relativas agrave hipeacuterbole em autores anteriores a Quintiliano satildeo Aristoacuteteles Retoacuterica 311 Retoacuterica a Herecircnio 444 Ciacutecero Toacutepicos 1045 Apoacutes Quintiliano mas ainda na Antiguidade tardia eacute possiacutevel encontrar tratamentos da hipeacuterbole em Demeacutetrio Do Estilo 123ss Longino Do Sublime 38 Macroacutebio Saturnaacutelia 42 e 46 e Isidoro de Sevilha Etimologias 13621 ccxix VON ALBRECHT (1997 1254-5) ccxx VON ALBRECHT (1997 1262) ccxxi Na passagem original os navios satildeo tambeacutem comparados a montanhas se chocando umas contra as outras Quintiliano omite a segunda hipeacuterbole em sua citaccedilatildeo repetindo esse procedimento nas demais passagens virgilianas que apresentam um par consecutivo de hipeacuterboles ccxxii Na passagem original Niso eacute comparado tambeacutem aos ventos (vide nota 11) ccxxiii Na passagem original haacute tambeacutem a hipeacuterbole de Camila correndo sobre os mares sem sequer tocar a aacutegua (vide nota 11) ccxxiv A passagem explorada por Quintiliano natildeo eacute como pode parecer de Nemeias 4 e sim de um texto perdido cf BUTLER (1922 340) ccxxv SCHMIDT (2019 14) ldquo[O] diferencial das hipeacuterboles nos Tristia eacute anexaccedilatildeo de um discurso de que a hipeacuterbole eacute insuficiente para relatar a verdade Quintiliano diz que a hipeacuterbole eacute a figura adequada para exprimir aquilo que natildeo se pode exprimir Oviacutedio diz que mesmo a hipeacuterbole eacute incapaz de exprimir aquilo que ele quer exprimir Assim Oviacutedio faz da hipeacuterbole uma meta-hipeacuterbole no sentido de hiperbolizar a incapacidade da hipeacuterbole que em princiacutepio seria total Em pelos menos seis passagens o poeta faz questatildeo de expor a incapacidade da figura dizendo que mesmo esta estaacute aqueacutem da verdade Trata-se de um jogo com a estrutura da figura e com o efeito de verossimilhanccedila pois a hipeacuterbole estaacute aleacutem da verdade (supra fidem) mas Oviacutedio a trata como aqueacutem da verdade (1550 non habitura fidem 5642 minor quam verum) de tatildeo exagerada que eacute sua proacutepria verdaderdquo ccxxvi A ldquocacozeliardquo eacute definida em Inst 8356-8 ldquoA cacozelia isto eacute a afetaccedilatildeo perversa peca em qualquer gecircnero de oratoacuteria pois sob esse nome se encontra tudo o que eacute excessivo trivial luxurioso redundante rebuscado e extravagante Aleacutem disso chamamos cacozelia tudo o que vai aleacutem da virtude quando o engenho perde seu senso criacutetico e se engana com a aparente beleza o que eacute o pior de todos os viacutecios no discurso Pois os demais erros satildeo

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causados sem intenccedilatildeo mas este eacute causado de maneira intencional No entanto isso soacute ocorre na elocuccedilatildeo Pois os erros da mateacuteria (invenccedilatildeo) satildeo a tolice o mais do mesmo a incoerecircncia e a superficialidade jaacute o deslize na elocuccedilatildeo consiste principalmente no emprego de palavras inapropriadas ou redundantes ou de um estilo confuso ou de um ritmo dissonante ou ainda de uma busca infantil por expressotildees semelhantes ou ambiacuteguas A cacozelia eacute tambeacutem sempre insincera embora nem toda insinceridade seja uma cacozelia pois esta consiste em dizer algo de uma maneira artificial ou inconveniente ou supeacuterfluardquo (κακόζηλον id est mala adfectatio per omne dicendi genus peccat nam et tumida et pusilla et praedulcia et abundantia et arcessita et exultantia sub idem nomen cadunt Denique κακόζηλον vocatur quidquid est ultra virtutem quotiens ingenium iudicio caret et specie boni fallitur omnium in eloquentia vitiorum pessimum Nam cetera parum vitantur hoc petitur Est autem totum in elocutione Nam rerum vitia sunt stultum commune contrarium supervacuum corrupta oratio in verbis maxime inpropriis redundantibus compressione obscura compositione fracta vocum similium aut ambiguarum puerili captatione consistit Est autem omne κακόζηλον utique falsum etiamsi non omne falsum κακόζηλον est enim quod dicitur aliter quam se natura habet et quam oportet et quam sat est) ccxxvii Ciacutecero De Oratore 3155 ldquoO terceiro modo de figuraccedilatildeo das palavras eacute bem amplo pois foi criado pela necessidade gerada pela falta e pela carecircncia mas depois incrementado pelo prazer e deleite Pois assim como primeiro se utilizou as roupas para combater o frio e depois se comeccedilou a vesti-las por elegacircncia e dignidade do corpo tambeacutem a metaacutefora foi utilizada por causa da falta de palavras e em seguida recorrida por causa do deleite que proporciona Pois expressotildees como lsquobrotar em vinhasrsquo lsquoser luxuoso na gramarsquo lsquocampos felizesrsquo satildeo utilizadas ateacute pelos incultos Eacute porque se algo eacute difiacutecil de dizer com uma palavra em sentido literal quando eacute dito por uma metaacutefora a comparaccedilatildeo ilustra bem o que queremos dizer expressando por meio de uma palavra diferente de seu sentido literalrdquo (Tertius ille modus transferendi verbi late patet quem necessitas genuit inopia coacta et angustiis post autem iucunditas delectatioque celebravit Nam ut vestis frigoris depellendi causa reperta primo post adhiberi coepta est ad ornatum etiam corporis et dignitatem sic verbi translatio instituta est inopiae causa frequentata delectationis Nam gemmare vitis luxuriem esse in herbis laetas segetes etiam rustici dicunt Quod enim declarari vix verbo proprio potest id translato cum est dictum inlustrat id quod intellegi volumus eius rei quam alieno verbo posuimus similitudo) Texto original extraiacutedo da ediccedilatildeo de WILKINS (1902) ccxxviii Para o texto utilizamos a ediccedilatildeo criacutetica de R J Tarrant reproduzida em OVIDIO (2011) ccxxix Seria interessante comparar esta Invocaccedilatildeo inicial com a Invocaccedilatildeo final de Metamorfoses em que vaacuterias divindades satildeo citadas Quirino Marte Vesta Febo Juacutepiter (Livro XV versos 861-870) ccxxx Eacute de pensar em um ensaio enfocando a traduccedilatildeo deste trecho da Iliacuteada Em seis traduccedilotildees diferentes temos as seguintes soluccedilotildees para dusaristotokeia Odorico Mendes ldquoMiseranda O maior dos heroacuteis pari mesquinhardquo (HOMERO 2008) Paul Mazon ldquoMegravere infortuneacutee drsquoun preuxrdquo (HOMEgraveRE 2002) Claude Michel Cluny ldquoAh miseacuterable et malheureuse megravere que je suisrdquo (HOMEgraveRE 1989) Haroldo de Campos ldquoAi de mim dolorosa geratriz do bravoentre os bravosrdquo (HOMERO 2002) Carlos Alberto Nunes ldquoQue sinater dado agrave luz ao maior dos heroacuteis para um Fado tatildeo tristerdquo (HOMERO 2002) Frederico Lourenccedilo ldquoAi de mim desgraccedilada Infeliz parturiente de um priacutenciperdquo (HOMERO 2013) ccxxxi Aristoacuteteles usa as palavras ουσία (substacircncia) ποιόν (qualidade) ποσόν (quantidade) πρός τι (relaccedilatildeo)

ccxxxii Κεῖσθαι estar em tal situaccedilatildeo (estado posiccedilatildeo) ἔχειν ter (possessatildeo) ποιεῖν fazer (accedilatildeo) πάσχειν padecer (paixatildeo) ccxxxiii Ποῦ onde (lugar) ποτέ quando (tempo) ccxxxiv Hoje entre noacutes a laquohermenecircuticaraquo interpretaccedilatildeo dos signos etc ccxxxv Hoje usa-me mais essa palavra no sentido de doenccedila de oacutergatildeo afetado ccxxxvi Veja-se por exemplo o capiacutetulo X 4 de Aulo Geacutelio intitulado laquo foi costume ser procurado entre os filoacutesofos se os nomes existiriam por natureza (φύσει) ou por convenccedilatildeo (θέσει)raquo ccxxxvii laquo Loacutegica raquo (τέχνη λογική) foi usada por comentadores posteriores ccxxxviii Anal Pr I 24a16-21 ccxxxix Que diz respeito ao pensamento agrave inteligecircncia (de διάνοιαfaculdade intelectiva inteligecircncia) ccxl Haacute um tratado filosoacutefico-retoacuterico de Ciacutecero denominado Topica que compreende os lugares-comuns (os topica) dos discursos e apresenta conselhos aos juristas para que achem argumentos e os ordenem eacute mais ou menos uma traduccedilatildeo uma adaptaccedilatildeo de Aristoacuteteles

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Sobre os autores e as autoras

Alcione Lucena AlbertimProfessora do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Universidade Federal da Paraiacuteba e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPB Coordenadora do MYTHOS - Nuacutecleo de Estudos da Mitologia Greco-Latina Doutorado em Letras pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPB Bacharela em Psicologia pelo Centro Universitaacuterio de Joatildeo Pessoa PB - UNIPEcirc e Especialista em Psicanaacutelise pelo Espaccedilo Psicanaliacutetico ndash EPSI

Willy Paredes SoaresPoacutes-Doutorado pela Universidade de Satildeo Paulo Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraiacuteba Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Universidade Federal da Paraiacuteba Liacuteder no grupo de pesquisa Grutta - Grupo de Tradu-ccedilatildeo de Textos da Antiguidade Membro do grupo de pesquisa Grec - Grupo de Estudos Claacutessicos

Rafael BrunharaProfessor de liacutengua e literatura grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul Possui Bacharelado em Letras Portuguecircs e Grego pela Universidade de Satildeo Paulo ins-tituiccedilatildeo pela qual tambeacutem obteve o tiacutetulo de Mestre e Doutor em Letras Claacutessicas Eacute do-cente permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFRGS e coordenador do Nuacutecleo de Estudos de Traduccedilatildeo Olga Fedossejeva (NET) Atua principalmente nos seguintes temas elegia poesia grega arcaica traduccedilatildeo gecircneros poeacuteticos na Antiguida-de Desenvolveu com a Profa Dra Giuliana Ragusa (USP) uma Antologia de traduccedilatildeo e comentaacuterio da poesia elegiacuteaca grega arcaica prevista para 2020 (Editora Ateliecirc)

David Pessoa de LiraProfessor Doutor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco na aacuterea Liacutengua e Literatura Latinas Docente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFPE na Aacuterea de Teoria Literaacuteria Professor Permanente do Programa de Poacutes-Gra-duaccedilatildeo em Ciecircncias das Religiotildees da Universidade Federal da Paraiacuteba

Maria Aparecida de Oliveira SilvaPoacutes-Doutora em Estudos Literaacuterios pela Universidade Estadual Paulista Poacutes-Doutora em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo Pesquisadora do Grupo HeroacutedotoUnifesp Pesquisadora do Taphos Grupo de Pesquisa em Praacuteticas Mortuaacuterias no Medi-

terracircneo AntigoUSP Professora Orientadora Ad-hoc do PPGHUnB Liacuteder do Grupo CNPq LABHANUFPI Pesquisadora do Grupo CNPq LinceuUnesp-Araraquara Pes-quisadora do Grupo Retoacuterica Texto y Comunicacioacuten da Universidad de Caacutediz Membro do Conselho Acadecircmico do Seminaacuterio de Histoacuteria e Filosofia das Religiotildees da Universi-dad Autoacutenoma de Ciudad Juaacuterez - Meacutexico

Fabio FortesO presente trabalho decorre de pesquisa de Poacutes-Doutorado realizada no Deacutepartement de Sciences de lrsquoAntiquiteacute da Universidade de Liegravege na Beacutelgica (2019-2020) e foi re-alizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001 Bolsa Professor Visitante Juacutenior

Flaacutevia Vasconcellos AmaralPoacutes-doutoranda do Departamento de Estudos Claacutessicos da Universidade de Toronto com o projeto ampquotNarrative strategies in Greek dialogue epigramsampquot Doutora em Letras Claacutessicas pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Univer-sidade de Satildeo Paulo Faz parte do grupo de pesquisa Hellenistica da USP e do Taphos do MAEUSP

Joseacute Amarante Santos SobrinhoMestre em Letras e Linguiacutestica doutor em Liacutengua e Cultura Professor e pesquisador de Liacutengua e Literatura Latinas da Universidade Federal da Bahia atuando na Poacutes-gra-duaccedilatildeo em Liacutengua e Cultura na aacuterea de traduccedilatildeo dedicando-se principalmente a au-tores da Antiguidade tardia Membro do grupo de pesquisa NALPE (Nuacutecleo de Anti-guidade Literatura Perfomance e Ensino) do Instituto de Letras da UFBA Em 2016 poacutes-doutorado no Centro Antropologia e Mondo Antico da Universitagrave di Siena de que resultou O livro de Mitologias de Fulgecircncio

Raul Oliveira MoreiraPesquisador e tradutor na aacuterea de liacutengua e literatura latinas mestre em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatura e Cultura da Universidade Fe-deral da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Professor substituto da UFBA

Shirlei Patriacutecia Silva Neves AlmeidaEspecializaccedilatildeo em Gramaacutetica e Texto pela Universidade Salvador ndash UNIFACS mestra-do em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Doutorando pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Liacutengua e Cultura da Universidade Federal da Bahia Cristoacutevatildeo

Joseacute dos Santos JuacuteniorDoutor e mestre em Literatura e Cultura pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Literatu-ra e Cultura da Universidade Federal da Bahia Membro do grupo de pesquisa NALPE do Instituto de Letras da UFBA Mestrando em Estudo de Linguagens pela Universida-de do Estado da Bahia (UNEB)

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Lucas Consolin DezottiMestre em Letras Claacutessicas e Licenciado em Letras pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Univer-sidade Federal da Paraiacuteba

Pedro SchmidtProfessor de Liacutengua e Literatura Latina na Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutor em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo

Leonardo AntunesProfessor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Doutor em Letras Claacutessicas pela USP Docente Permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UFRGS

Luciene Lages SilvaDoutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais Pro-fessora do curso de Letras da UFS Desenvolve pesquisas com ecircnfase no teatro claacutessico recepccedilatildeo dos claacutessicos (teatro e cinema) Mitografia grega e ediccedilatildeo de textos Participa de dois grupos de pesquisa Vice-liacuteder do NALPE Nuacutecleo de Antiguidade Literatura Performance e Ensino CNPQUFBA (2008) e membro do grupo de pesquisa GEFELIT- Grupo de Estudos de Filosofia e LiteraturaCNPQUFS(2008) Membro colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da UFS

Fernanda Lemos de LimaDoutora em Ciecircncia da LiteraturaLiteratura Comparada Fernanda Lima eacute professora de Grego Claacutessico Literatura Grega e Literatura Claacutessica Koineacute Neotestamentaacuteria e Grego Moderno na Universidade do Estado do Rio de Janeiro Professora do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras da UERJ e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas da UFRJ Coordenadora da Especializaccedilatildeo em Koneacute Neotestamentaacuteria em processo de instalaccedilatildeo

Milton Marques JuacuteniorProfessor Titular da Universidade Federal da Paraiacuteba Coordena o GREC - Grupo de Estudos Claacutessicos e Literaacuterios - com produccedilatildeo na aacuterea das Literaturas Grega e Latina e Literatura Comparada

Joseacute R Seabra FLivre-docecircncia e Doutorado pela Universidade de Satildeo Paulo Professor Associado da Universidade de Satildeo Paulo Sua aacuterea de especializaccedilatildeo eacute Gramaacutetica Latina e traduccedilatildeo de textos do latim claacutessico

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