153766490 reis elisa maria pereira elites agrarias state building e autoritarismo

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:--""!- -. .ç,>/ ","' L /' J I. \ fC1 dados - Revista de Ciências Sociais (ISSN 0011-5258) é uma publicação quadrimestral do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, óigão de estudos e pesquisas em Ciências Sociais da Sociedade Brasileira de Instrução, fundada em 1902, mantenedora, também, da Escola Técnica de Comércio Cândido Mendes, da Faculdade de Ciências Políticas e Econômi- cas do Rio de Janeiro e da Faculdade de Direito Cândido Mendes. Diretor Cândido Mendes Editores Amaury de Souza Charles Pessanha Conselho Editorial Edi tores Associados Alexandre de S. C. Barros Cesar Guimarães Elisa Pereira Reis Secretária Maria Alice Silva Ramos Alexandre de S. C. Barros, Amaury de Souza, Cândido Mendes, Carlos A. Hasenbalg, Cesar Guimarães, Charles Pessanha, Edmundo Campos Coelho, Eli Diniz, Elisa Pereira Reis, Guillermo O'Donnell, José Murilo de Carva- lho, Licia Valladares, Luiz Antonio Machado da Silva, Luiz Werneck Vianna, Maria Regina Soares de Lima, Mario Brockmann Machado, Neuma Aguiar, Olavo Brasil de Lima Junior, Renato Boschi, Sérgio Abranches, Simon Schwartzman e Wanderley Guilherme dos Santos. Conselho Consultivo Antonio Octávio Cintra, Aspásia Alcântara de Camargo, Bolivar Lamounier, Carlos Estevam Martins, Celso Lafer, Eduardo Diatay B. de Menezes, Fábio Wanderley Reis, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Hélgio Trindade, Luiz Gonzaga de Souza Lima, Maria do Carmo Campello de Souza, Otávio Guilherme Velho, Roberto Da Matta, Roque de Barros Laraia, Ruth . Correa Leite Cardoso, Silvio Marcelo Maranhão e Wilmar Faria. Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva res- ponsabilidade de seus autores. Redação dados - Revista de Ciências Sociais Iuperj Rua da Matriz, 82 22260 Botafogo Rio de Janeiro, Brasil Assinaturas - Exterior ORBE Assinaturas de Revistas Ltda. Caixa Postal 16.222 Rio de Janeiro - RJ Assinaturas - Brasil Editora Campus Ltda. Rua Japeri 35 Rio Comprido Te!.: 2848443 PABX 20261 Rio de Janeiro, Brasil Endereço telegráfico: CAMPUSRIO dados - Revista de Ciências Sociais é publicada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Finan- ciadora de Estu dos e Projetos (Finep). f 1/ cdJ cdJ Vol. 25, n. 3, 1982 ISSN 0011-5258 .- O @) O CQ) IVERSIDADE D)[,I O BRAsíLIA el8L lOTECA Cf:NTRI\\,. REVISTA O e AGO CIÊNCIAS SOC I Uma publicação do INSTITUTO UNIVERSITARIO DE DO RIO DE JANEIRO Apresentação Cartas INTERPRETAÇÕES SOBRE O BRASIL TRADICIONAL E CONTEMPORÂNEO Seis Interpretações sobre o Brasil Crise e Transição: Uma Interpretação do Momento Político Nacional Elites Agrárias, State-Building e Autoritarismo A Trajetória do Pragmatismo - Uma Análise da Pol ítica Externa Brasileira Realinhamento Pol ítico e Desestabilização do Sistema Partidário: Brasil, 1945-1962 O Brasil no Conselho de Estado: Imagem e Modelo Sumário do Volume 25, np 1,2 e 3 Luiz Carlos Bresser Pereira Sérgio Henrique Abranches Elisa Maria Pereira Reis Maria Regina Soares de Lima Gerson Moura Olavo Brasil de Lima Júnior José Murilo de Carvalho (English language table of contents on page 407) EDITORA CAMPUS 265 267 269 307 331 349 365 379 409

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dados - Revista de Ciências Sociais (ISSN 0011-5258) é uma publicação quadrimestral do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, óigão de estudos e pesquisas em Ciências Sociais da Sociedade Brasileira de Instrução, fundada em 1902, mantenedora, também, da Escola Técnica de Comércio Cândido Mendes, da Faculdade de Ciências Políticas e Econômi­cas do Rio de Janeiro e da Faculdade de Direito Cândido Mendes.

Diretor Cândido Mendes

Editores Amaury de Souza Charles Pessanha

Conselho Editorial

Edi tores Associados Alexandre de S. C. Barros Cesar Guimarães Elisa Pereira Reis

Secretária Maria Alice Silva Ramos

Alexandre de S. C. Barros, Amaury de Souza, Cândido Mendes, Carlos A. Hasenbalg, Cesar Guimarães, Charles Pessanha, Edmundo Campos Coelho, Eli Diniz, Elisa Pereira Reis, Guillermo O'Donnell, José Murilo de Carva­lho, Licia Valladares, Luiz Antonio Machado da Silva, Luiz Werneck Vianna, Maria Regina Soares de Lima, Mario Brockmann Machado, Neuma Aguiar, Olavo Brasil de Lima Junior, Renato Boschi, Sérgio Abranches, Simon Schwartzman e Wanderley Guilherme dos Santos.

Conselho Consultivo Antonio Octávio Cintra, Aspásia Alcântara de Camargo, Bolivar Lamounier, Carlos Estevam Martins, Celso Lafer, Eduardo Diatay B. de Menezes, Fábio Wanderley Reis, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Hélgio Trindade, Luiz Gonzaga de Souza Lima, Maria do Carmo Campello de Souza, Otávio Guilherme Velho, Roberto Da Matta, Roque de Barros Laraia, Ruth

. Correa Leite Cardoso, Silvio Marcelo Maranhão e Wilmar Faria.

Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva res­ponsabilidade de seus autores.

Redação dados - Revista de Ciências Sociais Iuperj Rua da Matriz, 82 22260 Botafogo Rio de Janeiro, Brasil

Assinaturas - Exterior ORBE Assinaturas de Revistas Ltda. Caixa Postal 16.222 Rio de Janeiro - RJ

Assinaturas - Brasil Editora Campus Ltda. Rua Japeri 35 Rio Comprido Te!.: 2848443 PABX 20261 Rio de Janeiro, Brasil Endereço telegráfico: CAMPUSRIO

dados - Revista de Ciências Sociais é publicada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Finan­ciadora de Estu dos e Projetos (Finep).

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cdJ cdJ Vol. 25, n. 3, 1982 ISSN 0011-5258 .- ~.

O @) O CQ) IVERSIDADE D)[,I O BRAsíLIA

el8L lOTECA Cf:NTRI\\,.

REVISTA O e AGO '~ea ~

CIÊNCIAS SOC I Uma publicação do INSTITUTO UNIVERSITARIO DE PESQ~

DO RIO DE JANEIRO

Apresentação

Cartas

INTERPRETAÇÕES SOBRE O BRASIL TRADICIONAL E CONTEMPORÂNEO

Seis Interpretações sobre o Brasil

Crise e Transição: Uma Interpretação do Momento Político Nacional

Elites Agrárias, State-Building e Autoritarismo

A Trajetória do Pragmatismo - Uma Análise da Pol ítica Externa Brasileira

Realinhamento Pol ítico e Desestabilização do Sistema Partidário: Brasil, 1945-1962

O Brasil no Conselho de Estado: Imagem e Modelo

Sumário do Volume 25, np 1,2 e 3

Luiz Carlos Bresser Pereira

Sérgio Henrique Abranches

Elisa Maria Pereira Reis

Maria Regina Soares de Lima Gerson Moura

Olavo Brasil de Lima Júnior

José Murilo de Carvalho

(English language table of contents on page 407)

EDITORA CAMPUS

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Appropriate articIes are abstracted/indexed in:

Actualidad Bibliografica Iberoamericana-ABC

Bulletin Analytique de Documentation Politique, Economique et Sociale Clase-Citas Latinoamericanas en SOciologia y Economia Current Contents/Social & Behavioral Sciences Indice de Ciências Sociais

Social Sciences Citation Index Sociological Abstracts

© 1982 Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e Editora Campus Ltda.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, eletrônicos, mecânicos, fotográfi­cos, gravação ou quaisquer outros, sem uma permissão por escrito.

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UM J VER SIDA lJ l~ BRA~lLIA

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COLABORAM NESTE NÚMERO

- Elisa Maria Pereira Reis é professora do Programa de Pós­Graduação do IUPERJ, onde desenvolve estudos sobre a sociedade agrária e a ordem política brasileira numa perspectiva rustórica.

_ Gerson Moura é pesquisador do CPDoc/FGV e autor de Autonomia na Dependência: A Politica Externa Brasileira de 1935 a 1942, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.

_ José MUTilo de Carvalho é professor do Instituto Universi­tário de Pesquisas do Rio de Janeiro. A Construção da Ordem: A Elite Política ImperÜll, Rio de Janeiro, Campus, 1980, é seu tra­

balho mais recente.

_ Luiz Carlos Bresser Pereira é professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, tendo publicado recente­mente o livro Economia Brasileira: Uma Introdução Critica, São Paulo, Brasiliense, 1982.

_ Maria Regina Soares de Lima é professora do IUPERJ. Atualmente desenvolve pesquisa sobre a política externa brasileira

na década de setenta.

- Olavo Brasil de Lima Júnior, professor do Instituto Uni­versitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, é autor de Os Sistemas Partiddrios Brasileiros - A Experiência Federal e Regional: 1945-1962, Rio de Janeiro, Graal, 1982.

- Sérgio Henrique Abranches é professor do IUPERJ e autor de The Divided Leviathan: State and Economic Policy For­mation in Authoritarian Brazil, tese de doutorado em Ciência Po­lítica pela Universidade de ComeU, EUA.

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ELITES AGRÁRIAS f STATE-BUILDING E AUTORITARISMO·

Elisa Maria Pereira Reis INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo central esboçar, de forma sumária, um conjunto de proposições teóricas que, com maior ou me­nor grau de previsibilidade, orientaram um projeto bastante amplo que empreendemos sobre o papel das elites agrárias na constitui­ção de um padrão de modernização autori­tária no Brasil_!

Na primeira parte, partiremos de uma breve apresentação da problemática de in­vestigação. Apresentaremos a seguir o mo­delo teórico que nos pareceu mais afim à referida problemática, qual seja, aquele proposto por Barrington Moore quanto ao papel de "senhores e camponeses na cons­trução do mundo moderno": Acrescenta­remos então algumas modificações teóricas que nos pareceram pertinentes para tomar o modelo mais fértil.

A segunda seção será dedicada a um retrospecto da experiência histórica brasi­leira, no período que vai da abolição do trabalho escravo à revolução de 30, à luz das proposições teóricas sugeridas anterior­mente.

Finalmente, na terceira parte do tra­balho, será conferida ênfase à análise his­tórico-comparada enquanto instrumento de compreensão teórica de processos singula­res de um lado, e enquanto recurso útil na própria atividade de teorização de outro. Nesse sentido, procederemos a uma breve comparação entre o Brasil e a Alemanha, salientando paralelos e contrastes entre es­sas duas experiências.

Os propósitos reconhecidamente ambi­ciosos da discussão proposta parecem-nos justificáveis na medida em que desde já fi­que explícito seu caráter meramente explo-

Trabalho apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho "Elites Políticas", durante o V Encon­tro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, Friburgo, 21 a 23 de outubro de 1981.

Elisa Pereira-Reis, "The Agrarian Roots of Authoritarian Modemization in Brazil, 1880-1930", Cambridge, MIT. Tese de Doutorado, 1979.

Barrington Moore Jr., Social Origins of Dictatorship and Democracy, Lords and Peasants in the Making of the Modem World, Boston, Beacon Press, 1967.

dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 25, n? 3,1982, pp. 331 a 348.

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ratório. É a partir dessa relativização aprio­rística que deve ser entendida nossa preten­são de colocar teoria e análise histórico­comparada como dimensões simultâneas e interdependentes do conhecimento de fenô­menos sociais.3 Nesse sentido, partimos do suposto de que o exame da trajetória singu­lar brasileira ganha sentido e clareza a par­tir de seu enquadramento em um arcabou­ço teórico macro-histórico, que funciona muito mais como instrumento heurístico do que como proposta lógica de teste do real. Ao mesmo tempo, reconhecemos tam­bém como objetivo explícito o intuito de usar a discussão do caso brasileiro para, através da análise comparada, apontar pos­síveis revisões teóricas que contribuam por sua vez para aclarar processos históricos particulares.

A busca de explicações para a persis­tência de elementos não-democráticos na ordem política brasileira tem sido um desa­fio constante na literatura, sobretudo entre aqueles que vêem o autoritarismo como al­go persistente na história do país e não ape­nas como algo efêmero, transitório. Assim, de uma perspectiva normativa, Azevedo

Amaral identificava como um dos proble­mas nacionais mais graves a importação de formas políticas liberais incompatíveis com a realidade nacional? No mesmo sentido, Oliveira Viana denunciava o que considera­va fúteis tentativas de democratização da ordem política brasileira. Racionalizando a necessidade de um sistema autoritário, diria ele: "O erro de nossos reformadores políti­cos tem sido a pretensão de criar aqui, em meio a nossa cultura política rudimentar, uma democracia de tipo inglês .. .',5

Despojada de conotações normativas, a noção de continuidade reaparece com fre­qüência em esforços mais recentes de expli­car a falência da democracia liberal no Bra­sil e em outros países latino-americanos. Grande pârte desses esforços tem se concen­trado nos fatores culturais como aqueles decisivos para se compreender a persistên­cia de fórmulas políticas autoritárias. A "tra­dição ibero-americana", o "ethos mediterrâ­neo" e o "corporativismo" enquanto ideo­logia nacional são versões diferentes de uma mesma matriz teórica, a cultura polí­tica é considerada o obstáculo crucial à de­mocratização? Não nos deteremos aqui na crítica às explicações centradas na esfera cultural, tema que tem sido amplamente

Veja~e a respeito Theda Skocpol e Margaret Somers, "The Uses of Compara tive History in Macrosocial lnquiry", Comparative Studies in Society and History, Vol. 22, n. 2, 1980, pp.

174-197.

Azevedo Amaral, O Estado Autoritdrio e a Realidade Nacional, Rio de Janeiro, José Olympio, 1938.

Francisco José de Oliveira Viana, Instituições Polfticas Brasileiras, Rio de Janeiro, José Olympio, 1949, Vol. 2, p. 184.

Howard J. Wiarda, "Toward a Frarnework for the Study of Political Change in the lberic-Latin Tradition: The Corporative Model", World Po/itics, Vol. XXV, n. 2,1973, pp. 206-235. Kalman H. Silvert, "Leaderslúp Formation and Modernization in Latin America", Journal of Interna· tional Affairs, Vol. X, n. 2, 1966, pp. 318-331. James M. Malloy, "Authoritarianism, Corporatism and Mobilization in Peru", F. B. Pike e T. Stritch, eds., The New Corporatism:Social-Political Structures in the Iberian World, Londres, Notre Darne University Press, 1974, pp. 52-84.

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I.

explorado na literatura.? Gostaríamos ape­nas de chamar atenção para o fato de que explicações de tipo cultural ten dem a to­mar Como "dados" aspectos da realidade que merecem eles próprios explicação cui­dadosa. Tais explicações freqüentemente negligenciam o fato de que a própria per­sistência de traços culturais é constantemen_ te recriada e que, nesse sentido, a continui­dade de valores, atitudes etc., merece tan­to esforço de explicação quanto a mudança dos mesmos.

Outra linha de interpretaçao teórica si­tua as origens do autoritarismo brasileiro na estrutura jurídico-política que, à seme­lhança dos fatores culturais, tende a ser con­siderada como dada e imutável. Assim, Faoro viu nos primeiros estágios do proces­so de construção do Estado no Brasil a mar­ca' genealógica do patrimonialismo-burocrá_ tico português, que persistiria até o presen­te como obstáculo poderoso à consolida­ção da ordem liberal.8 Mais recentemente, Schmitter e Schwartzman adotaram pers­pecti vas de certa forma similares a essa. En­quanto o primeiro identifica um sistema corporativo de representação de interesses como o aspecto distintivo do sistema polí­tico nacional, o segundo vê uma tensão constante entre formas representativas e co optativas de participação política no Bra­sil? A predominância de representação cor­porativa em um caso e de cooptação políti­ca no outro explica em ampla medida a fa­lência da democracia liberal.

Essas análises tiveram o mérito inesti­mável de legitimar o papel explicativo dos

fatores políticos, demolindo assim as inter­pretações simplistas que vêem o Estado autoritário como mero instrumento da do­minação de uma classe. Entretanto, é preci­so estar atento ao fato de que, da mesma forma que características políticas parti­culares afetam o perfil da ordem social, o reverso é igualmente válido: fatores econô­micos e sociais específicos desempenham um papel decisivo na delimitação dos parâ­metros políticos nacionais. Essa afirmação trivial implica na prática na difícil tarefa de explicitar a influência mútua entre caracte­rísticas políticas historicamente consolida­das e interesses sociais específicos. Sem um esforço consciente de integrar a análise do processo de state-building com a dinâmica das classes sociais, corremos o risco de con­verter o impacto de fatores jurídico-políti­cos em uma forma de determinismo políti­co e/ou supor imutáveis certas característi­cas institucionais supostamente responsá­veis por uma tradição anti democrática. Isso não implica em negar a importância do legado jurídico português ou de quaisquer outras características políticas relevantes. Contudo, torna-se crucial evidenciar os fa-

, tores e processos que viabilizaram continui­dades. Tradições políticas interagem COm a dinâmica social através de um processo de influências recíprocas. O próprio fenômeno de construção do Estado nacional deve ser entendido como um processo contínuo se se quer evitar mecanicismos e reduções ina­dequadas na explicação de fenômenos que dizem respeito simultaneamente à socieda­de e ao Estado_

Veja-se, por exemplo, Edward W. Lehman, "On the Concept of Political Culture: A Theoretical Reassesment", Social Forces, VaI. 5, n. 3, 1972.

Raimundo Faoro, Os Donos do Poder, ~ edição revista e ampliada, Porto Alegre, Editora Globo, 2 vais., 1977,

Simon SChwarztman, São Paulo e o Estado Nacional, São Paulo, DIFEL, 197 5, Philippe C. Sé'hmit­ter, Interest Conflict and Política I Change in Brazi/, Stanford, Stanford University Press, 1971.

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Continuidade - Explicações da esfera cultural
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Continuidade - Explicações da esfera cultural
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Reis: Críticas aos outros autores.
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Da perspectiva indicada acima, sem ne­gar a importância explicativa de valores e tradições, a presente discussão concentra-se na atuação de classes sociais específicas, .frente a condições econômicas particulares, e em interação dinâmica com o centro polí­tico nacional. "f,nfase é também conferida aqui às opções políticas confrontadas pelos atores políticos pertinentes, de forma a se evitar a rigidez inerente à noção de "inevi­tabilidade histórica"!O Assim, sustentamos

sas classes entre si, com o centro político nacional e com as classes urbanas emergen-' tes permite ao autor delinear três variantes políticas básicas do processo de desenvolvi­mento: revoluções liberais-burguesas, revo­luções conservadoras e revoluções campo­nesas levando à instauração de sistemas co­

munistas.

a necessidade de se ter sempre presente, de forma simultânea, duas dimensões cruciais: os limites paramétricos constituídos pelos condicionantes estruturais, e as escolhas efetivas dos atores políticos em situações histórico-concretas. Em particular, tratare­mos de enfatizar aqui as relações de traba­lho na agricultura e a interação entre a clas­se proprietária rural e o Estado.

A relação entre estruturas agrárias par­ticulares e resultados políticos específicos tem tradicionalmente despertado a atenção de cientistas sociais historicamente orienta­dos. Assim, por exemplo, Weber, Turner, Gerschenkron exploraram de ângulos parti­culares a questão das implicações de longo prazo da sociedade rural para a consolida­ção da ordem política nacional.

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já clássica de Barrington Moore sobre as origens da ditadura e da democracia é her­deira legítima dessa tradição, ao privilegiar as classes agrárias na análise da emergência de caminhos políticos alternativos no mun­do modemo.12 A análise da interação des-

Estas três vias políticas de moderniza­ção nacional constituiriam, na visão de Moore, alternativas historicamente esgota­das no sentido de que parece totalmente inadequado pensar na repetição de uma ou outra delas no caso das nações ainda em de­senvolvimento. Acrescente-se a isso o fato de que, no caso da grande maioria das na­ções emergentes, a dominação colonial in­terferiu de várias maneiras no sentido de tornar mais complexa a estrutura de classes e nessa medida levou o setor agrário a re­partir importância com outros interesses

sociais. De qualquer forma, parece-nos ainda

útil pensar a partir das alternativas políti­cas de modernização acima referidas o caso do Brasil ou de outras nações latino-ameri­canas, já que aí a emergência do Estado na­cional data da primeira metade do século 19 e nesse sentido a importância est.ratégica das classes agrárias é inquestionável..Embo­ra a natureza dos laços coloniais no passado e a peculiaridade de nossa integração no mercado mundial introduzam variações im­portantes relativamente à experiência euro­péia, ainda assim a dinâmica interna da so-

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Norbert Elias, What is Sociology, Nova York, Columbia University Press, 1978, esp. pp. 158-174.

Max Weber, "Capitalism and Rural Society in Germany", H. H. Gerth e C. W. Mills, eds., From Max Weber: Essays in Sociology, Nova York, Oxford University Press,1958, pp. 363-385. R. A. Billington, ed., Selected Essays of Frederick Jackson Turner: Frontier and Section, Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1961. Alexander Gerschenkron, 8read and Democracy in Germany, 2~ edi­ção, Nova York, Howard Fertig, 1966. Elisa Pereira-Reis, "Sociedade Agrária e Ordem Política",

Dados, Vol. 23, n. 3, 1980, pp. 275-296. 12 B. Moore, Social Origins ... , op. cito

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ciedade agrária e sua interação com o cen­tro político permanecem cruciais na con­formação do sistema político. Isso não sig­nifica que nos propomos a aplicar mecani­camente um conjunto de proposições lo­gicamente integradas, e nem é certo que Moore nos fornece um modelo abstrato­formal que se preste a tal empreendimento. O que temos em vista é tão-somente explo­rar a dimensão heurística da proposta teó­rica por ele esboçada, tomando como re­ferencial básico de discussão as cinco' con­dições históricas que o autor identifica co­mo decisivas para a consolidação da via li­beral-burguesa.

A primeira condição enunciada no mo­delo liberal-burguês de modernização diz respeito ao estabelecimento de um equilí­brio de poder entre a autoridade central e os grandes proprietários rurais. Um balanço de poder que favoreça, seja a coroa, seja a aristocracia rural, é visto como desfavorá­vel à emergência da democracia liberal. O que essa condição parece estabelecer é ba­sicamente a emergência precoce de um sis­tema de pesos e contra-pesos evoluindo da tensão típica entre os elementos feudais e patrimoniais usualmente presentes nos es­tágios iniciais dos processos de state-buil­ding no contexto europeu. De qualquer forma, a condição se manteria válida tam­bém em situações onde o balanço entre o público e o privado não envolve disputas patrimoniais-feudais, tal como ilustrado pelo caso norte-americano.

A segunda condição do modelo refe­re-se a "uma transição bem-sucedida para a agricultura comercial, seja por parte das classes dos grandes proprietários rurais, seja por parte do campesinato". Conforme reve­la a experiência inglesa, a habilidade reve­lada pela aristocracia rural em converter-se à produção mercantil e sua firme inserção na ordem comercial parecem constituir um

bom augúrio para a democracia liberal. Tal conversão alinharia as antigas.elites agrárias a serviço das tendências modernizadoras, eliminando assim possíveis focos de tensão social. No caso inglês, ocorreu uma forma de simbiose entre elementos aristocráticos e burgueses que parece ter sido estratégica no estabelecimento de uma ordem política liberal. Ela aumentou as chances de uma política pluralista e tornou pouco provável a sobrevivência de um Estado absolutista. O caso americano merece atenção especial aqui, já que nesse particular ele é mais pró­ximo à experiência brasileira. Nos Estados Unidos, o lugar da comercialização agrícola estava estabelecido desde cedo e os arran­jos feudais nunca se desenvolveram. Os obstáculos à democracia liberal ali eram de­correntes sobretudo da vigência de relações escravistas de trabalho; mas uma vez que o conflito regional foi superado, a porta esta­va aberta para a cónsolidação da ordem li­beral. Redefinindo, diríamos que na reali­dade essa segunda condição prende-se mui­to mais à superação de formas extra-eco­nômicas de coerção nas relações de tra­balho_

Uma terceira condição diz respeito ao "enfraquecimento oportuno da classe pro­prietária rural". O que é enfatizado aqui é uma mudança na coalizão de poder, no sen­tido de privilegiar os interesses urbano-in­dustriais sobre os agrários. Embora não seja explícito, o elemento que nos parece cru· cial aqui é a questão do timing adequado: "quando", no processo de modernização, o setor urbano-industrial ultrapassa o agrário em termos de poder parece uma variável decisiva. A predominância persis­tente do setor agrário aumenta as chances de que um Estado autoritário venha subs­tituir a burguesia industrial no papel de liderança estratégica no processo de mo­dernização.

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Como o texto se concentra aqui no modelo de Moore, começarei a classificar os trechos a partir das outras categorias além de Modelos e sistemas de organização, (roxo).
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Uma quarta condição no modelo deve ser entendida como derivação da imediata­mente anterior: ela se refere à inviabiliza­ção de uma coalizão reaci onária entre elites agrárias e industriais. Nos casos em que a burguesia urbana foi incapaz de desafiar o predomínio das elites agrárias, a evolução mais "natural" foi uma coalizão entre essas elites, legitimada por um Estado autoritá­rio que garantia aos interesses industriais um papel de sócio menor na coalizão de poder. Nesses casos, a polarização de inte­resse colocou de um lado as classes traba­lhadoras ou subalternas, de outro os capi­talistas urbanos e rurais. O Estado desem­penhou uma função estabilizadora nesse modelo, impedindo revoltas, seja através de formas abertas de repressão, seja através de algum tipo de apelo popular para neutrali­zar demandas de classe. Nesse contexto, as chances de consolidação da democracia li­beral eram mínimas. O Estado ocupou uma posição estratégica que lhe possibilitou controlar o acesso à arena política, e a competição de interesses mútiplos, típica das sociedades liberais, nunca se tomou le-

gítima. Finalmente, como que culminando as

coalizão de poder. O Estado emergiu nes­sas experiências como o ator estratégico pa­ra conciliar a velha e a nova ordem, comO bem ilustram as experiências da Alemanha

e do Japão. Assim, pode-se concluir do acima ex­

posto que duas variantes políticas de mo­dernização capitalista foram historicamen­te consolidadas: a via liberal-burguesa e a via conservadora. Uma terceira alternativa política de modernização diz respeito aos casos em que o campesinato - e não a aris­tocracia rural - desempenhou o papel prin­cipal, como nas experiências russa e chinesa. Também nessa variante histórica ocorre uma ruptura radical com o passado, mas a nova ordem aí não se conforma à ótica mo­dernizadora de mercado típica do capitalis-

mo. Se a via liberal-burguesa e a da moder-

quatro condições anteriores, alguma forma de ruptura revolucionária com o passado tem que ocorrer para cimentar a vitória da democracia-liberal. A Guerra Civil de 1641

nização conservadora constituíram alterna­tivas históricas de modernização, parece vá­lido interpretar a recorrência do autori taris­mo em diversas sociedades atualmente em processo de desenvolvimento como conse­qüência de condições básicas que diferem significativamente daquelas identificadas no modelo anteriormente descrito como decisivas na consolidação de uma trajetória capitalista-democrática. Razões de natureza pragmática e substantiva concorrem para tornar atraente esta estratégia de análise. Assim, por exemplo, parece-nos interessan­te fazer uso do modelo em questão para lançar luz sobre experiências particulares de modernização autoritária que, ao nível da retórica, se propõem comO democrati­zantes. Mais ainda, é possível que o modelo nos sugira algumas generalizações substanti­vas que permitam, a partir de eventos his­tóricos singulares, redefinir nossa própria compreensão das ditaduras e outras pana­céias autoritárias que freqüentemente se in­sinuam como medicina desenvolvimentista.

e a Revolução Gloriosa de 1681 na Ingla­terra, a Grande Revolução Francesa e a Guerra Civil Americana assinalaram na visão de Moore a vitória da via democrático-bur­guesa nessas sociedades. Sem essa ruptura radical, o capitalismo poderia ter triunfado, mas não o capitalismo liberal. Onde a mO­dernização capitalista teve lugar sem esse ingrediente de ruptura com o passado, a re­sultante política mais natural foi a "revolu­ção pelo alto" ou "modernização conserva­dora", que preservou as antigas elites na

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Conceder tamanho destaque à via libe­ral-burguesa de modernização pode parecer inadequado já que, privilegiando-a como instrumento de análise, poderíamos termi­nar por incorporar o viés etnocêntrico que identifica a experiência anglo-saxônica com o padrão de desenvolvimento político. Esse risco nos parece porém perfeitamente con­tro!avel, sobretudo na medida em que a pró­pria análise comparada aguça nossa percep­ção da historicidade dos processos sociais_ Nesse sentido, é bastante claro que a via li­beral-burguesa de modemizaçoo constitui uma alternativa historicamente esgotada_ Não podemos esperar ver repetidas hoje tra­jetórias modernizantes tais como as que ca­racterizaram a Inglaterra, a França ou os Es­tados Unidos. O que a análise histórica real­ça é sobretudo a possibilidade de desmis­tificar a rigidez dos processos sociais. E quanto mais compreendemos as tendências históricas de uma sociedade, tanto mais nos capacitamos para elaborar estratégias flexí­veis de mudança.

Se por um lado parece-nos extrema­mente atraente a possibilidade de usar o modelo liberal-democrático de Moore para explorar outros processos de modernização, por outro parece-nos crucial introduzir aí duas alterações teóricas radicais: a primeira delas diz respeito à inclusão do Estado co­mo um ator político em si mesmo. Enquan­to portador de interesses peculiares e autô­nomos, o ator público nos parece merecer uma atenção especial, sob pena de perma­necer oculto sob o jogo dos interesses so­ciais e nessa mesma medida ocultar dina­mismos políticos decisivos.13 Em segundo

lugar, propomos que as escolhas efetivas dos atores políticos em jogo sejam sempre que possível explicitadas. Identificada a existência histórica de cursos alternativos de ação, o reconhecimento de opções so­ciais permite, por um lado, a superação de determinismos mecânicos e, por outro, um entendimento não-metafísico da noção de responsabilidade histórica dos atores so­ciaiS.14

11

Em que medida os aspectos teóricos enfatizados nas páginas anteriores podem ser úteis à compreensão do processo histó­rico brasileiro? Conquanto as possibilida­des de uso do referencial teórico em ques­tão nos pareçam múltiplas, limitamo-nos aqui a explorá-lo para refletir sobre a ques­tão da continuidade e da mudança no perío­do que vai da transição para o trabalho livre e a instauração da República à consolidação de um processo de modernização autoritá­ria a partir dos anos trinta.

A abolição do trabalho escravo e a queda do Império ao final do século deze­nove são normalmente considerados mar­cos decisivos do processo de modernização capitalista no Brasil. Entretanto, pouca atenção tem sido dada à natureza e às im­plicações políticas de longo prazo desses dois eventos. A transição para o trabalho li­vre é geralmente vista sob um prisma econô­mico que enfatiza basicamente os requisitos técnicos do processo de acumulação. Nessa perspectiva, as mudanças da sociedade são vistas essencialmente como ajustamentos às

13

14

Para uma crítica nesse sentido, veja-se Theda SkocpoI, "A CriticaI Review of Barrington Moore's Social OriginsofDictatorship and Democracy", Polities and SOciety, VoI. 4, n. 1, 1973, pp. 1-34.

Para uma crítica contundente da falsa antítese entre determinações sistêmicas e ações sociais, ve­ja-se Philip Abrams, "HistorY, Sociology, HistoricaI Sociology", Past and Present, n. 87, maio, 1980, pp. 3-16.

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alterações de mercado e em padrões de in­vestimento. Nesse sentido, a persistência de fatores extramercado como determinantes de relações de trabalho rural aparece como anacrônica e ineficiente. Por sua parte, a li­teratura política e sociológica referente ao período pós-abolição considera as relações sociais persistentes no meio rural brasileiro como típicas da preservação do poder dos grandes senhores de terra. Uma vez que ten­tamos integrar as dimensões política e eco­nômica dos processos de mudança aqui em questão, as transformações econômicas e a persistência de dimensões sociais tradicio­nais ganham sentido como aspectos que, aparentemente contraditórios, se reforçam mutuamente.

Quais teriam sido as implicações polí­ticas de longo prazo do processo através do qual a escravidão foi abolida? Quais teriam sido as conseqüências da propalada transi- . ção "lenta, pacífica e gradual" para o tra­balho livre? Embora esse não seja o lugar apropriado para uma análise detalhada do processo de abolição, queremos sugerir, ten­do em vista o contraste com a experiência norte-americana, que o encaminhamento da questão do trabalho rural aqui teve con­seqüências políticas conservadoras.

Não assistimos, no caso brasileiro, a uma ruptura radical com o passado, na me­dida mesmo em que a abolição aqui não implicou um confronto entre formas auto­ritárias e liberais de capitalismo. Apesar das interpretações do fim da escravidão como uma vitória dos cafeicultores liberais-bur­gueses sobre os latifundiários conservadores do Nordeste, a evidência disponível corro-

bora perfeitamente uma interpretação al­temativa: a transição para o trabalho livre se deu graças a uma coalizão entre latifun­diários "velhos" e "novos".

Os cafeicultores de São Paulo - fre­qüentemente identificados com os precur­sores da revolução burguesa - aliaram-se aos antigos donos de engenhos do Nordeste para promover uma transição pacífica ao trabalho livre.15 A negociação política da questão do trabalho permitiu aos cafeicul­tores paulistas evitar a competição com a elite rural nordestina pela mão-de-obra na­cional. A demanda crescente de trabalho nas áreas cafeeiras seria suprida pela impor­tação de trabalhadores europeus, assistida pelo poder público. Como tem sido apon­tado na literatura, a opção paulista pela imi­gração estrangeira implicou uma segmenta­ção regional do mercado de trabalho.16

Acrescentaríamos a esse argumento que tal evolução retardou também a expansão do mercado político, na medida em que pre­servou formas na coerção extra-econômica de trabalho em amplas áreas do país. O po­der político do proprietário rural foi pre­s.ervado, já que a massa da população do campo não contava com a possibilidade de lealdades políticas alternativas.

Em resumo, a abolição da escravidão foi uma mudança crucial, mas não uma mu­dança revolucionária. A condução política do problema abolicionista garantiu a unida­de das elites agrárias nacionais. Uma vez mais recorrendo à comparação com o caso norte-americano, a transição para o trabalho livre no Brasil teve um impacto moderniza­dor incontestável, mas não implicou uma

15 E. Pereira-Reis, "The Agrarian ... " op. cit., capítulo dois; e "Conservative Modernization in Brazilian Agriculture: The Post-Abolition Plantation", trabalho apresentado na reunião anual da Latin American Studies Association, Houston, 1977.

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16 Nathaniel Leff, "Desenvolvimento Econômico e Desigualdades Regionais: Origens do Caso Bra­sileiro", Revista Brasileira de Economia, Vol. XXVI, n. 1, 1972, pp. 3-22.

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revolução liberal-burguesa. 17 Sob o predo­mínio dos cafeicultores paulistas, uma es­tratégia de conciliação de elites impediu o "enfraquecimento oportuno dos grandes senhores rurais", e permitiu a continuidade de formas repressivas de trabalho no cam­po.

I -Se a questão da abolição nos permite \observar de forma privilegiada a dinâmica das relações inter e intraclasses no mundo agrário, o segundo marco histórico ante­riormente mencionado, a queda do Império, favorece o exame das relações entre as eli­tes agrárias e o poder público. Ressaltamos em outro lugar que o sentido da queda do Império foi sobretudo o de fazer pender significativamente a balança de poder em favor dos proprietários rurais. 18 Embora a crise interna ao Estado seja mais elucidati­va do esfacelamento efetivo do Império, os interesses, estratégias e comportamento da oposição civil, e particularmente dos seto­res mais dinâmicos da agricultura, ganham predominância quando nos detemos nas conseqüências políticas, econômicas e so­ciais desse processo de mudança.

Apesar da profissão de fé liberal do re­gime republicano estabelecido em 1889, o exercício do liberalismo estava seriamente comprometido, dada a representação exclu­siva das elites agrárias. Nesse sentido, o Es­tado não enfrentou o desafio de mediar en­tre interesses sociais conflitantes; não se viu ele na contingência de celebrar alianças po­líticas tópicas com um setor urbano com­bativo como se observa historicamente no caso da Inglaterra, nem de se aliar a um campesinato independente como ocorreu no caso francês. O poder público respondia basicamente às elites agrárias, sendo tími-

das as tentativas de exigir dele maior res­ponsabilidade social. Faltavam nesse senti­do incentivos de base para criar os alicer­ces de um processo político pluralista. A função política primordial da autoridade central era arbitrar disputas entre as elites agrárias regionais, e mesmo essa tarefa era consideravelmente suavizada pela considerá­vel descentralização político-administrativa do período. Dentro das condições vigentes, a federalização do Estado fomentou um pa­drão de segmentação de interesses que tor­nou particularmente difícil institucionali­zar oposições políticas.

Se é verdade, conforme sugerimos aci­ma, que o Estado na Primeira República re­velava uma grande permeabilidade aos in­teresses agrários, também é verdade que es­se mesmo fenômeno deu lugar a um para­doxo extremamente curioso: quanto mais o Estado respondia às demandas dos pro­prietários rurais, mais ele consolidava uma função tutelar sobre a economia, aspecto esse que, dadas as regras limitadas do jogo político do período, viria a ter profundas conseqüências. A política imigracionista e a defesa agressiva dos preços do café no mercado internacional revelam a extensão da dependência dos fazendeiros frente a so­luções de autoridade em detrimento de so­luções de mercado. Da mesma forma que o liberalismo político, o liberalismo econô­mico adquiriu um sentido peculiar dentro dos parâmetros da pol ítica oligárquica.

O grau e a n&tureza do crescimento do Estado durante a República Velha, influen­ciados pelas práticas econômicas e políticas das- elites agrárias, sugerem-nos que as bases para um processo de modernizaçãO autori­tário já tinham sido lançadas antes de trinta.

17 Para uma comparação entre o processo abolicionista no Brasil e a experiência dos Estados Unidos, veja-se Pereira-Reis, "The Agrarian ... ", op. cit, pp. 78-86.

18 Idem, capítulo tres.

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o fortalecimento relativo do poder executi­vo, as intervenções freqüentes nos Estados, a reforma constitucional de 1926 são indi­cações claras do crescimento do poder do Estado numa direção pouco afim ao padrão Iiberal-democrático.19 A precocidade relati­va desse fortalecimento do Estado se torna visível quando nos damos conta de que a autoridade pública estava estendendo suas bases de poder em um contexto onde as eli­tes agrárias não enfrentavam séria competi­ção de outros interesses sociais na arena po­lítica. Dessa forma, quando se desmoronou a "república dos fazendeiros" em 1930, o Estado já contava com recursos cruciais que lhe possibilitaram regular e tutelar mes­mo a entrada de novos atores políticos no cenário.

A posição privilegiada do Estado e a natureza da coalizão de poder que se con­solida depois de 1930 são os elementos-cha­ve para uma compreensão do processo mo­dernizante que tem lugar com Vargas. Em­bora percam a exclusividade de representa­ção, as elites agrárias não são alijadas do poder. No novo arranjo político, elas divi­dem o poder com as elites industrializantes, sob o patrocínio de um Estado significati­vamente autônomo. A preservação do siste­ma de propriedade de terra e das relações de trabalho no campo permitiu manter inalteradas as bases do poder local dos lati­fundiários. No contexto urbano, a estraté­gia adotada para incorporar a classe traba­lhadora ao sistema político atrelou-a fir­memente ao controle do Estado. A moder­nização "pelo alto" gradualmente se afir­mou, promovendo mudanças decisivas, sem contudo permitir uma ruptura radical com os antigos padrões de dominação.

Sumariando a discussão, reafirmaría­mos que, sob a dominação rural-oligárqui-

19 Idem, pp. 217-262.

ca· no Brasil, fatores de ordem estrutural e escolhas políticas concretas interagiram de­cisivamente na moldagem do futuro políti­co da nação. A notável capacidade de "mu­dar conservando", que caracteriza o proces­so histórico brasileiro, não pode ser enten­dida apenas ao nível da cultura nacional, da mesma forma como também não satisfa­zem as explicações que atrelam o sucesso da modernização conservadora unicamente ã habilidade pessoal da liderança. Para en­tender os elementos de continuidade de for­ma adequada, temos que ter sempre pre­sente: a) os interesses sociais concretos, tais como eles se confrontam em situações par­ticulares; b) o processo de state-building que, apesar do equívoco freqüente, não constitui um evento discreto na história de uma sociedade; e c) a interação dinâmica entre a e b.

111

Para concluir, propomo-nos a compa­rar brevemente a'experiência brasileira refe­rida nas páginas anteriores com outro pro­cesso histórico onde é notória a contribui­ção das elites agrárias à emergência de uma estratégia conservadora de modernização. A oportunidade de uma comparação com a Alemanha se impõe de imediato, quando se tem em conta que, como no caso dos gran­des fazendeiros no Brasil, os junkers prus­sianos controlavam firmemente de um lado sua força de trabalho, e dominavam de outro o cenário político nacional, enquan­to a nação unificada embarcava em um pro­cesso de modernização "pelo alto".

A experiência de desenvolvimento ale­mã tem inspirado diversas tentativas de ex- . plicação teórica das diferenças entre pa­drões de desenvolvimento no leste e no oeste da Europa. Significativamente, a

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maioria desses esforços se centra na dinâmi­ca da sociedade agrária. Assim, Lenin dife­renciou uma via "Ocidental" e outra "Prus­siana" de desenvolvimento do capitalismo na agricultura, com base no papel diferen­ciado que senhores e camponeses exerce­ram na comercialização da produção ru­ral. 20 Em épocas mais recentes, observa-se uma preocupação acadêmica recorrente com as implicações especificamente políti­cas da experiência alemã. Bendix, por exem­plo, salientou o papel conservador dos jun­kers ao criarem obstáculos a uma evolução liberal-democrática.2\ Barrington Moore considera a Alemanha um caso claro de mo­dernização capitalista autoritária, ampla­mente condicionada pelas ações e reações da classe proprietária rural.22 Anderson contrasta a ascensão do Estado absolutista no leste e no oeste europeus com base na força relativa da aristocracia agrária. 23 Gers­chenkron via nas opções políticas dos jun­kers e em suas manobras para impô-las o obstáculo decisivo à democratização da Alemanha.24

Em seu prefácio à segunda edição de Bread and Democracy in Germany, Gers­chenkron ressaltou a persistência e a notável capacidade de sobrevivência dos latifundiá­rios prussianos. Como ele observa, "os jun­kers eram capazes de transformar qualquer situação nova, crise grave ou adversidade ameaçadora em seu próprio benefício".25

Essa capacidade de sobrevivência e o suces­so em digerir mudanças lembram em certa medida os latifundiários brasileiros. Mesmo os cafeicultores paulistas, que freqüente­mente aparecem como os agentes de uma revolução liberal-burguesa, se prestam a al­guns paralelos com os senhores de terra a leste do Elba. Assim, por exemplo, diante da inelasticidade da oferta de escravos, os cafeicultores de São Paulo converteram-se à última hora à causa abolicionista, transfor­mando-a ao mesmo tempo num investimen­to lucrativo.

Da mesma forma que osjunkers, os ca­feicultores auferiram grandes benefícios de uma tardia adoção do trabalho livre, graças à hábil manipulação de recursos econômi­cos e políticos. Em ambos os casos, os fato­res políticos desempenharam um papel-cha­ve na capacidade de sobrevivência da classe proprietária rural. No caso brasileiro, foram utilizados recursos públicos para criar uma oferta abundante de mão-de-obra estrangei­ra que comprimia os salários e tomava pos­sível a operação de um mercado de traba­lho graças à incorporação contínua de no­vos contingentes migratórios. No caso da agricultura prussiana, o Estado tornou a ini­ciativa de abolir a servidão no começo do século 19, mas o processo reverteu em be­nefício da aristocracia rural, que ampliou seus domínios territoriais e manteve a força de trabalho politicamente subordinada?6

20 V. I. Lenin, "Agrarian Programme of Social Democracy", Co/lected Works, Vol. 13, Londres, Lawrence Wisbart, 1962.

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26

Reinhard Bendix, Nation Building and Citizenship, Berkeley, University of California Press, 1974. B. Moore, Social Origins ... , op. cito

Perry Anderson, Lineages of the Absolutist State, Londres, Verson Edition, 1979.

Gerschenkron, Bread and Democracy ... , 0p. cito

Idem, p. vii.

Sobre esta questão veja-se, por exemplo, Hans Rosenberg, "The Rise of the Junkers in Branden­burg Prussia", American Historical Review, Vol. XLIX, n.l, pp. 1-22 e n. 2, pp. 228-242,1943.

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Em ambos os casos, pode-se argumentar, o Estado teve um papel ativo na manutenção de condições para a expansão da agricultu­ra sem alteração no sistema de dominação latifundiário.

Além da questão do trabalho, outros elementos de convergência parecem existir entre os junkers e os cafeicultores paulistas. Diante da competição imbatível da produ­ção cerealífera norte-americana, os junkers conseguiram impor uma série de medidas protecionistas que anularam os efeitos das condições adversas do mercado. Na análise de Gerschenkron referida acima, a preocu­pação central ~ra salientar as implicações politicamente conservadoras desse protecio­nismo agrário. Poder-se-ia sugerir uma in­terpretação similar da preferência dos cafei­cultores paulistas pela intervenção estatal no mercado? No caso brasileiro, diante de crises de superprodução, o Estado foi cha­mado a retirar estoques do mercado para manter os preços artificialmente altos.

Em ambos os casos, observa-se que os setores agrários dominantes conseguiram impor seus interesses específicos como in­teresses da nação como um todo.27 O para­lelo entre as duas experiências históricas é ainda mais sugestivo quando lembramos que, em ambos os casos, as respectivas eli· tes agrárias tinham sido antes defensoras ati­vas do laissez-faire. Inicialmente, como suo pridoras de bens primários no mercado in­ternacional, ambas elites defenderam a suo perioridade dos mecanismos de mercado frente a qualquer esforço governamental de regulamentação. E significativamente, am­bas abandonaram Smith em favor de List, quando se tornou claro que a autoridade

do Estado podia ser ativada para neutrali­zar condições de mercado desfavoráveis.

Em ambas as experiências confronta­das aqui, o poder político foi um elemento decisivo no sucesso econômico dos senho­res rurais, o que por sua vez reforçava seu poder político, garantindo assim a longo prazo sua persistência na coalizão dominan­te_ No Brasil, como na Alemanha, o poder político dos proprietários rurais não foi en­fraquecido pela consolidação de uma bur­guesia combativa que desafiasse suas bases de poder. No caso alemão, os junkers pre­servaram sua ascendência política e econô­mica sob o histórico casamento do ferro com o centeio, apadrinhado pelo Estado. No caso do Brasil, conforme observado an­teriormente, o estabelecimento da Repúbli­ca legitimou a inclinação da balança do po­der em favor das elites rurais. As eli tes agrá­rias corisolidaram um sistema de domina­ção oligárquica, enquanto o setor industrial aceitava uma posição subordin~da.

Também é significativo o paralelo refe­rente às implicações efetivas da adoção de um modelo político liberal em condições de dominação agrária. Em ambos os casos, a ausência de power contenders fortes con­finou o jogo político a limites muito aca­nhados. OSjunkers, em aliança com a buro­cracia estatal, imprimiram ã política um ca­ráter aristocrático e autoritário. A elite agrá­ria brasileira, durante a República Velha, entendia o Estado como seu "comitê exe­cutivo", e os próprios princípios democrá­tico-liberais eram utilizados para reforçar seu monopólio de poder.

Existiram também diferenças significa­tivas entre as duas experiências em questão,

Theodore S. Hamerow, Restoration, Revolution, Reaction: Economics and Politics in Germany, 1815-1871 ,Princeton, Princeton University Press, 1966.

27 A. Gerschenkron, Bread and Democracy ... ,op. cito Com relação ao Brasil, veja-'3e Pereira-Reis, "The Agrarian ... ", op. cit., capítulo cinco.

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e negligenciá-las seria fazer violência à histó­ria e barbarismo teórico. Assim, ressaltemos de começo que o contexto e as circunstân­cias envolvendo os processos através dos quais os servos na Alemanha e os escravos no Brasil foram emancipados foram pro­fundamente diferentes. Mais ainda, embora constituam ambas formas coercivas de tra­balho, servidão (! escravidão têm implicações de longo prazo bastante diferenciadas.28

Apesar dos paralelos que viemos de es­tabelecer entre junkers e cafeicultores, tais atores históricos também se prestam a con­trastes relevantes. Observemos a esse respei­to que a agricultura a oeste do Elba evol uíra cedo para relações de produção modernas, seguindo de perto o padrão clássico da Eu­ropa ocidental nos primórdios da expansão capitalista. A aristocracia do leste, ao con­trário, persistiu utilizando tradições feudais para reforçar seus interesses já capitalistas, sem abrir mão de uma mistura peculiar de autoritarismo e benevolência como instru­mento de dominação. Nesse sentido, no contexto alemão os junkers constituíam o setor social mais tradicional - embora não atrasado. Em contraste, os cafeicultores bra­sileiros nem sequer contaram com tradições feudais e nunca desenvolveram qualquer coisa parecida com a configuração de status que caracterizava a ordemjunkeriana. Os ca­feicultores paulistas constituíram de fato o setor mais modernizado da agricultura na­cional, e os pioneiros na adoção de uma so­lUÇão de mercado para a questão do traba­lho. Nesse sentido, aqui são as formas extra­econômicas de coerção do trabalho ampla­mente difundidas no nordeste do país que mais se assemelham à experiência dos jun­kers.

Com relação às implicações políticas da intervenção estatal na economia, há tam­bém diferenças importantes entre o Brasil e a Alemanha. No caso desta última, as po­líticas adotadas para proteger a produção cerealífera doméstica, com Bismarck, tive­ram sua implicação política mais grave na inviabilização de uma coalizão liberal entre as classes populares urbanas e os pequenos e médios proprietários rurais que poderiam ter constituído uma oposição efetiva aos junkers. Como salientou Gerschenkron, as classes baixas urbanas se opuseram radical­mente ao protecionismo agrário, que incidia diretamente sobre o cur~~ de sua dieta bási­ca. 29 Contudo, sem o concurso de aliados políticos, sua oposição foi inócua. Os pe­quenos agricultores, que poderiam ter for­necido o apoio decisivo à oposição, referen­daram ao contrário a orientação política junkeriana. Seduzidos por promessas políti. cas, os pequenos agricultores foram levados a confundir os interesses do setor latifundiá­rio com os seus.

No contexto brasileiro, a manutenção de preços artificialmente altos para o café teve implicações políticas diferentes. A va­lorização cafeeira não tinha um impacto di­reto sobre os preços domésticos de alimen­tos, já que se tratava de um produto de ex­portação.! As políticas adotadas para prote- :~ ger o setor cafeeiro envolviam basicamente a formação de mecanismos de tipo carteli­zador, sob a coordenação do poder público, para atuar no mercado internacional. É ver­dade que, a exemplo do que ocorreu na Ale­manha, o protecionismo concorreu para preservar o poder latifundiário. Há porém aqui uma conseqüência adicional menos óbvia, que diz respeito ao papel privilegia-

28

29

A propósito das implicações diferentes da servidão e da escravidão, veja-se John Hicks, A Theory of Economic History, OXrord, Oxford University Press, 1969, pp. 122-140.

Gerschenkron, Bread and Democracy . .. ,op. cit., esp. capítulo lI.

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do que o Estado vai adquirir. Conforme sa­lientávamos anteriormente, o Estado surge como um ator importante na economia bra­sileira antes que outros setores sociais se equipassem para desafiar os interesses agrá­rios. E quando a Revolução de 1930 pôs fim à República Velha, enfraquecidas tem­porariamente as elites agrárias, o Estado contava já com recursos políticos que lhe permitiriam cooptar novos atores políticos para impor de cima para baixo um processo de modernização nacional.

Recapitulando a discussão, o aspecto comum às duas experiências que parece mais óbvio é a ausência de uma ruptura re­volucionária com o passado. Apesar de gran­des transformações sociais, o lugar das elites agrárias na coalizão de poder foi sempre preservado. Em ambos os casos, os proprie­tários rurais demonstraram grande habilida­de para se adaptarem à mudança e lograram estabelecer alianças conservadoras com as elites industriais emergentes. Mais ainda, nos dois casos o sucesso dessas alianças depen­deu em grande parte do concurso do Esta­do. Recursos de autoridade propiciaram, tanto na Alemanha como no Brasil, o êxito da modernização de cima para baixo. Nes­se sentido, parece bastante clara, quando confrontamos os dois processos, a similari­dade entre os padrões de interação da elite agrária com o Estado e com o setor indus­trial ascendente de um lado, e o sucesso de uma fórmula capitalista autoritária de mo­dernização por outro.

A comparação sugere que um determi­nante decisivo da modernização autoritária

são os obstáculos erigidos pelos senhores de terra a uma ruptura revolucionária. Em am­bos os casos, as elites agrárias reconhece­ram a necessidade de "mudar para conser­var" e, controlando a mudança, neutraliza­ram as chances de qualquer desafio revolu, cionário. No caso da Alemanha, a aristocra­cia rural do leste assumiu ela própria o pa­pel de empresário capitalista, quando a oportunidade de produzir para o mercado internacional se tornou uma realidade ao fi­nal do século dezoito. Ao mesmo tempo, essa "aristocracia empresária" reforçou o controle exercido sobre a mão-de-obra, e usurpou a funções comerciais tradicional­mente exercidas pelos mercadores urba­nos.30 Há óbvios paralelos com a experiên­cia do Brasil, onde o latifúndio também es­tava ativamente envolvido na produção pa­ra o mercado, apesar das diferenças introdu­zidas pelo status original de colônia e da maior vulnerabilidade da economia brasilei­ra. Aqui também, ao invés de desafiar pro­prietários rurais "pré-capitalistas retrógra· dos", as elites industriais aliaram-se a empre­sários agrícolas dinâmicos. Mais do que isso, historicamente as cidades brasileiras estive­ram subordinadas ao dinamismo do mundo rural e nesse sentido se aproximam mais da trajetória alemã que do padrão clássico li­beral-burguês.3

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No que se refere à importância estraté­gica do Estado, a tese de que no caso alemão ela se deve a uma situação de atraso nacio­nal relativo é amplamente aceita.32 Isto é, o fato de que a Alemanha tenha iniciado sua trajetória modemizante tardiamente

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3!

Veja-se a propósito Bendix, Nation Building . .. ,op. cit., p. 224.

32

Sobre a evolução diferente das cidades no leste e no oeste da Europa, veja-se Jerome Blum, "The Rise of Serfdom in Eastern Europe", American Historical Review, Vol. LXII, n. 4, 1957, pp. 807-836.

A formulação clássica dessa tese aparece em Alexander Gerschenkron, Economic Backwardness in Historical Perspective, Cambridge, Belknap Press, 1966.

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torna necessário um esforço rápido e massi­vo de mobilização de capital e cápacidade empresarial. Nessas circunstâncias, argu­menta-se, faz-se crucial a ação enérgica do poder público para mobilizar os recursos re­queridos e superar os obstáculos políticos e sociais à mudança. Mesmo que aceitemos essa explicação sobre a' adequação funcio­nal do "Estado empresário" em sociedades de modernização tardia, questões teóricas importantes persistem. Assim, além do fato de que o próprio atraso relativo é alguma coisa a ser explicada, restaria saber que tipo de condição toma possível a consolidação de um Estado forte, de que maneira as no­vas e as velhas elites logram estabelecer uma coalizão de poder, e que tipo de conexões existe entre o poder relativo do Estado e o autoritarismo.

Na tentativa de estimular a discussão das questões acima sugeridas, recapitulemos aqui alguns elementos comuns aos dois pro­cessos históricos que nos propomos a com­parar. Em ambos os casos, o papel dos lati­fundiários foi decisivo no processo de cen­tralização do poder. Na Prússia, e depois na Alemanha, embora variáveis político-milita­res intrínsecas ao cenário europeu estimu­lassem a consolidação de um Estado forte, foi o apoio dos junkers todo-poderosos que tornou possível esse fenômeno.33 Como tem sido amplamente ressaltado na literatu­ra, a simbiose entre a aristocracia rural, uma casta de burocratas e a corporação militar constituía a base da concentração estatal de poder.34 No caso do Brasil, o papel das

elites agrárias foi bastante mais contraditó­rio: defendendo a descentralização de poder sob o federalismo, elas paradoxalmente contribuíram para concentrar a autoridade pública. Na medida mesma em que estas elites lograram sucesso em diluir a fronteira entre as esferas pública e privada, elas con­tribuíram para a centralização de poder. Tanto política como economicamente, os fazendeiros atuaram de forma a conferir ao Estado o status de ator político privilegia­do. Fortalecendo o Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário, neutralizando a competição política, exigindo a interven­ção constante do Estado na economia, a do­minação oligárquico-rural abriu caminho para um Estado forte.

A coalizão entre a elite agrária e a in­dustrial foi estimulada em ambos os casos comparados aqui por dois fatores básicos: em primeiro lugar, o sucesso comercial do latifúndio e a preservação de formas não­mercantis de trabalho no campo. Em segun­do lugar, a consolidação de um Estado for­te que patrocinou a coalizão de poder in­ter-setorial e manteve sob controle os inte­resses populares que poderiam ameaçar a aliança das elites. As conexões entre a cen­tralização do poder e o autoritarismo apa­recem implicitamente nesses dois aspectos. State-building sob a dominação oligárqui­co-rural estabeleceu as bases a partir das quais Vargas no Brasil e Bismarck na Ale­manha extraíram recursos para implementar mudanças de cima para baixo. O fato de que em ambos os casos o crescimento do Esta-

33 Para uma análise detalhada da importância do fator militar na história política da Alemanha, ve­ja-se Gordon A. Craig, The Politics of the Prussian Army, 1640·1945, Oxford, Oxford University Press, 1955.

34 Veja-se, por exemplo, Hans Rosenberg, Bureaucracy, Aristrocacy and Autocracy: The Prussian Experience, 1660·1815, Cambridge,Harvard University Press, 1958. Ou ainda Lysbeth W. Muncy, The Junker in the Prussian Administration under William lI, Providence, Brown University Press,1944.

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do tenha precedido a incorporação de in­teresses sociais múltiplos ao sistema tornou possível a ação paternalista do Estado en­quanto estratégia de cooptação política_ Além disso, a própria manutenção da coa­lizão interelites dependia do autoritarismo do Estado como forma de manter as massas sob controle.

Embora as similaridades apontadas per­mitam-nos avançar as proposições genéricas sugeridas acima, o paralelo não pode ser le­vado longe demais. A modernização "pelo alto" que observamos nos dois casos tem lugar em contextos sociais diferentes. Sob a liderança de Bismarck, a Alemanha unifica­da tinha uma estrutura social consideravel­mente mais complexa que o Brasil dos anos trinta. Apesar da importância persistente dos junkers, a estrutura agrária era muito mais diversificada que o mundo rural brasi­leiro. O mesmo argumento se aplica ao ce­nário urbano. A expansão da indústria pe­sada e o vulto dos empreendimentos finan­ceiros dão testemunho de uma burguesia muito mais forte na Alemanha. Acrescente­se a isso o fato de que o operariado alemão mobilizado constituía uma ameaça às elites estabelecidas que não encontra paralelo no cenário brasileiro. Finalmente,é importante lembrar que a posição da Alemanha no mercado internacional nunca se caracteri­zou pelo acentuado grau de dependência que marca o processo histórico brasileiro.

A evidenciação das diferenças em pau­ta sugere-nos a oportunidade de uma vez mais retomar criticamente às proposições teóricas de Barrington Moore. Na sua pers­pectiva, a via capitalista autoritária desem­boca historicamente no fascismo e chega mesmo a se confundir com ele. Tal visão in­troduz um problema, qual seja o de tratar

o "fascismo" como um fenômeno de igual status teórico e/ou histórico que a demo­cracia-liberal e o comunismo, que corres­pondem às demais variantes políticas de modernização discutidas pelo autor.

Conceitualmente, lembremos aqui que os regimes fascistas são uma das formas pos­síveis de sistemas políticos autoritários. Outras modalidades de dominação autoritá­ria têm existido, como bem ilustram, por exemplo, as ditaduras modemizantes tão populares no terceiro mundo.3s Ao nível da história, faz-se mister lembrar que o fascis­mo não teve, felizmente, a mesma longevi­dade que as demais alternativas exploradas por Moore e nesse sentido não chega a ca­racterizar uma via política de moderniza­ção enquanto tal. Esses dois tipos de argu­mento sugerem-nos a conveniência d€ re­pensar teoricamente a questão da moderni­zação conservadora. Tentativamente, suge­rimos que o modelo da "revolução pelo alto" seja desvinculado dessa identificação "biológica" com o fascismo. Ao mesmo tempo, sugerimos que as peculiaridades do processo de state-building, no sentido dis­cutido nas páginas anteriores, passem a constituir parte integrante do modelo. Isto é, propomos que o timing do crescimento do Estado relativamente à incorporação de interesses extralatifúndio à arena política seja incorporado como uma variável deci­siva do modelo. Tal procedimento nos permitiria ainda, por acréscimo, relativizar sobremodo o peso conferido por Moore às características de personalidade da lideran­ça autoritária. E nessa mesma medida, es­taríamos mais aptos a vincular o problema da responsabilidade histórica dos atores políticos ao horizonte das práticas e ideo­logias de classes.

35 Veja-se Atílio A. Borón, "EI Fascismo como Categoria Histórica: En Torno ai Problema de las Dictaduras en America Latina", Revista Mexicana de Sociologia, Vol. 2, 1977, pp. 481-528.

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Acreditamos que as sugestões teóricas acima ajudam-nos a esclarecer as perspecti­vas políticas com que se defrontam nações ainda hesitantes entre vias políticas de de­senvolvimento. E nesse sentido, a consta­tação inicial com que nos deparamos é, la­mentavelmente, desalentadora: ela nos for­ça reconhecer que prqvavelmente as "di­taduras modemizantes" do presente têm possibilidades de sobrevida histórica que não podem ser subestimadas. Enquanto as experiências autoritárias fascistas do pas­sado constituíram uma ameaça efetiva ao mercado do mundo liberal e provocaram da mesma forma uma reação militar efici­ente para destruí-las, o mesmo não ocorre em relação a outras formas de autoritaris­mo atualmente existentes. Assim, pode-se argumentar que as ditaduras do mundo subdesenvolvido, dado o caráter depen­dente de suas economias, têm condições de sobreviver politicamente ao permane­cerem contidas regionalmente. Não cons­tituindo uma ameaça expansionista, revolu-

ções conservadoras poderiam continuar contando com o apoio de sociedades pós­industriais.

A constatação acima não deve, porém, fomentar qualquer espécie de fatalismo, e há bons argumentos em favor dessa nega­tiva: em primeiro lugar, lembremos que a dinâmica interna de uma sociedade tem importância decisiva e não pode ser redu­zida a mero reflexo das determinações do mercado internacional. A própria discus­são empreendida nesse trabalho ilustra a importância dos fatores internos a urna sociedade na conformação de seu perfil po­lítico. Finalmente, não nos esqueçamos que qualquer refinamento teórico que lo­gremos atingir nos toma sempre mais aptos a elaborar estratégias de ação mais efica­zes no combate a todas as forma de autori­tarismo. E esse é um desafio que dá senti­do à prática da ciência social.

(Recebido para publicação em abril de 1982)

ABSTRACT Agrarian Elites. State Building, and

Authoritarianism

The central theme of this pape r is the role of landed elites in the historical process of natio­nal state building. The theme is initially approa­ched from a theoretical angle, discussing Barring­ton Moore's ideas concerning the rural world's role in the consolidation of a liberal-bourgeois path to modernity. Two new analytic dimensions are presented next in order to make Moore's mo­dei more fruitful. The second part of the paper is devoted to a brief reinterpretation of the Brazi-

lian historical process from the abolition of sla­very to the 1930 Revolution based on the theo­retical propositions discussed earlier. Finally, the pape r presents a compara tive historical analysis indicating parallels and contrasts between the national experiences of Brazil and Germany. Comparative analysis is seen as a necessary means for the theoretical understanding of single natio-. nal processes as well as for the development of theory building.

RESUMÉ Élites Agraires, State-Building et

Autoritarisme

Le theme central de cet article est le rôle joué par les élites de propriétaires ruraux dans le

processus historique de construction des états na­tionaux. La premiere partie présente la discussion

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de ce theme au niveau théorique. Pour cela, l'auteur part de I'examen des propositions théo­riques de Barrington MODre concernant les apports du monde rural à la consolidation de la voie libérale-bourgeoise de modernisation. Elle propose ensuite l'introduction de deux nouvelles dimensions d'analyse qui, selon elle, augmente­raient la fertilité du modele de Maore. La seconde partie de I'article est consacrée à une breve ré-in­terprétation, dans I'optique des propositions théo­riques vues antérieurement, du processus histo,

rique brésilien durant la période qui va de l'abo­lition du travai! esclave jusqu'à la révolution de 1930. A la fin, I'auteur s'éfforce d'ébaucher une analyse historique comparée qui met en relief les paralleles et les contrastes entre I'expérience de l'Allernagne et celle du Brésil. Cette tentative de comparation, selon elle, doit servir, d'une part, à la compréhension théorique de processus singuliers et, d'autre part, à l'activité d'élabora· tion théorique elle-même.

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A TRAJETÓRIA DO PRAGMATISMO - UMA ANÁLISE DA POLíTICA EXTERNA BRASILEIRA

Mario Regina Soares de Limo Gerson Mouro

Já se consagrou no vocabulário políti­co brasileiro a noção de pragmatismo para designar a política externa brasileira, espe­cialmente a partir do governo Geisel (1974-78), quando o Itamarati tomou uma série de iniciativas políticas e econômicas no pla­no internacional que caracterizaram uma "nova fase" na política externa do país.

Este artigo pretende examinar o con­texto em que se originou essa política, as­sim como alguns aspectos de sua aplicação, e finalmente as modificações mais significa­tivas que ela vem sofrendo no governo Fi­gueiredo. Alguns ângulos e elementos serão destacados para estudo, vale dizer, não estamos preocupados em fazer um inventá­rio completo de todas as iniciativas e todas as relações que caracterizam o pragmatismo.

A escolha do período tem razões evi­dentes: embora alguns dos componentes da política externa brasileira atual possam ser detectadQs entre 1967-1974, o pragmatis­mo assumiu contornos mais concretos no Governo Geisel (1974-78), quando se for-

mulou mais claramente o seu conteúdo. De fato, análises acuradas dos governos ante­riores (Costa e Silva e Médici) apontam o rompimento da poUtica de interdependên­cia do governo Castelo Branco, que signifi­-cou na prática um alinhamento quase-auto­mático à política norte-americana. Mas a política exterior do governo Costa e Silva teria se caracterizado por um "terceiro­mundismo" difuso, enquanto no governo Médici as atitudes inovadoras pareciam vin­cular-se a um projeto de Brasil-Potência. I Das atitudes políticas de valor simbólico do período Médici até a diplomacia econômi­ca que hoje predomina na atuação do Ita­marati uma grande distância foi percorrida. Mas as formulações mais explícitas do que hoje chamamos de política pragmática fo­ram elaboradas entre 1974-1978, na gestão do Chanceler Azeredo da Silveira. Depois de 1978, podem-se constatar mudarlças de ênfase, estilo e até mesmo de orientação, mas os componentes básicos do pragmatis­mo permaneceram os mesmos. Pretende-

Carlos Estevam Martins, "A Evolução da Política Externa Brasileira na Década 64/74", Estudos Cebrap, n.12, 1975, pp. 53-97 .

. dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 25, n? 3,1982, pp. 349 a 363.