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O original desta obra foi publicado em francês com o título L'invention du paysage
© 2000, Presses Universitaires de France.© 2007, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.
TraduçãoMarcos Mardonilo
PreparaçãoMaria do Carmo Zanini
RevisãoEliane de Abreu Santoro
Regina L. S. Teixeira
Produção gráficaDemétrio Zanin
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Cauquelin, AnneA invenção da paisagem / Anne Cauquelin;tradução Marcos Marcionilo. — São Paulo : Martins, 2007. —(Coleção Todas as Artes)
Título original: L'invention du paysage.ISBN 978-85-99102-53-4
1. Arte - Teoria 2. Natureza (Estética) 3. Paisagem na arte 4. Paisagem na literatura I. Título. II. Série.
índices para catálogo sistemático:1. Paisagem : Estética : Ontologia 111.85
Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à Livraria M artins Fontes E ditora Ltda. para o selo M artins.
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Biblioteca de Ciências Humanas e Educação-Artes Editora WMF Martins Fontes Ltda A invenção da paisagem
07-1485 CDD-111.85
Termo. 325/201024/06/2010
R e g i s t r o 496976R$ 32,33 LICITAÇÃO UFP
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AS FORMAS DE UMA GÊNESE
Gênese de uma forma. Quem diz gênese diz "começo". Ora, é sempre difícil dizer "eu vou começar pelo começo". Impossível apontar o dedo para esse "começo". Cada vez que tentamos datá-lo, o encontro repentino de algum acontecimento nos provoca, desmente de modo cruel nossa afirmação, mostra-nos a inanidade desse pretenso começo.
A decisão arbitrária é o único modo de evitar esse mau passo. O mesmo vale para a paisagem. Quando é que ela surgiu como noção, como conjunto estruturado, dotado de regras próprias de composição, como esquema simbólico de nosso contato próximo com a natureza?
Autores confiáveis situam seu nascimento por volta de 1415. A paisagem (termo e noção) nos viria da Holanda, transitaria pela Itália, se instalaria definitivamente em nossos espíritos com a longa elaboração das leis da perspectiva e triunfaria de todo obstáculo quando, passando
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a existir por si mesma, escapasse a seu papel decorativo e ocupasse a boca de cena.
Tais asserções são perfeitamente aceitáveis quando se trata apenas da pintura, isto é, da apresentação de elementos paisagísticos na moldura de um quadro. A invenção da perspectiva é justamente o nó da questão. Ao fixar a ordem de apresentação e os meios de realizá-la em um corpo de doutrina, a perspectiva tida como "legítima" justifica o aparecimento da paisagem no quadro: com efeito, de início encontramos na pintura - ou nos intarsia (marchetarias) - as severas arquiteturas das "cidades ideais". Elas não passam de praças desertas, de esquinas de edificações, de recortes de janelas, de arcos que se abrem para outros traçados, de monumentos de diversas formas, que parecem ser um repertório para a construção. Cidades-esboço, de núcleo estrito, sem nenhuma vegetação nem arbustos, sem a emoção desordenada dos corpos, nem a emoção, tempestuosa, das nuvens. Ao longe, na ponta-seca do olho, o ponto de fuga. A perspectiva - que é passagem através, abertura (;per-scapere) - alcança o infinito, um "além" que sua linha evoca. Mas é um além nu, uma geometria, o número de uma busca. A sensualidade está ausente, assim como o acaso, mas eles logo vão voltar à cena e exercerão seu encanto: aqui, uma planta se apoiará sobre um balcão; ali, o pináculo aéreo de uma árvore atrás daquele muro; enfim, um mar que, bem na linha do horizonte, virá como um falar tentador do absoluto. A paisagem parece se instalar timidamente, hesitar, vacilar, para depois se afirmar.
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Os três célebres painéis de Urbino, de Baltimore e de Berlim dão testemunho desse rigor apenas esboçado de uma paisagem ainda expectante. Quanto às intrincadas marchetarias que apresentam as mesmas perspectivas de cidades ideais, é ao polimento, ao grão, ao lustro, ao calor das madeiras nobres que elas devem o poder de evocar algo como uma paisagem.
Tomada exclusivamente no contexto da pintura, a paisagem se reduziria, pois, a uma representação figurada, destinada a seduzir o olhar do espectador, por meio da ilusão de perspectiva. A inesgotável riqueza dos elementos naturais encontraria um lugar privilegiado, o quadro, para aparecer na harmonia emoldurada de uma forma, e incitaria então o interesse por todos os aspectos da Natureza, como por uma realidade à qual o quadro daria acesso.
Em suma, a paisagem adquiriria a consistência de uma realidade para além do quadro, de uma realidade completamente autônoma, ao passo que, de início, era apenas uma parte, um ornamento da pintura. Aqui já poderíamos nos admirar com tamanha autonomia para um simples elemento técnico, com um vôo desses, com uma "naturalização" dessas. Mas, para podermos nos admirar realmente, é necessário ainda sair do círculo encantado da história da arte. Abandonar as obras, os artistas - mesmo que esse sacrifício seja penoso - e perguntar pelas novas estruturas da percepção introduzidas pela perspectiva. A meu ver, só então nos fixamos no mistério da paisagem, de seu nascimento.
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Pois essa "forma simbólica" estabelecida pela perspectiva1 não se limita ao domínio da arte; ela envolve de tal modo o conjunto de nossas construções mentais que só conseguiríamos ver através de seu prisma. Por isso é que ela é chamada de "simbólica": liga, num mesmo dispositivo, todas as atividades humanas, a fala, as sensibilidades, os atos. Parece bem pouco verossímil que uma simples técnica - é verdade que longamente regulada - possa transformar a visão global que temos das coisas: a visão que mantemos da natureza, a idéia que fazemos das distâncias, das proporções, da simetria. Mas é preciso render-nos à evidência: o mundo de antes da perspectiva legítima não é o mesmo em que vivemos no Ocidente desde o século xv.
Parece que se deu um salto que leva mais longe que a mera possibilidade de representação gráfica dos lugares e dos objetos, que é um salto de outra espécie: uma ordem que se instaura, a da equivalência entre um artifício e a natureza. Para os ocidentais que somos, a paisagem é, com efeito, justamente "da natureza". A imagem, construída sobre a ilusão da perspectiva, confunde-se com aquilo de que ela seria a imagem. Legítima, a perspectiva também é chamada de "artificial". O que, então, é legitimado é o
1. E. Panofsky, La perspective como forme symbolique et autres essais (Paris, Les ÉditiOns dê Minuit, 1976 [em português: A perspectiva como forma simbólica, Lisboa, Edições 70, 1999]). Consciente de sua importância histórica e social para o Ocidente, Panofsky nomeia a perspectiva como "forma simbólica". Forma no sentido de que é inevitável para todo conteúdo visual e desempenha o papel de a priori. Simbólica por unir num só feixe as aquisições culturais da Renascença que ainda estão em vigor em nossos dias e que constituem o fundo, o solo (Grund) de nossa modernidade.
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transporte da imagem para o original, uma valendo pelo outro. Mais até: ela .seria a única imagem-realidade possível, aderiria perfeitamente ao conceito de natureza, sem distanciamento. A paisagem não é uma metáfora para a natureza, uma maneira de evocá-la; ela é de fato a natureza. Aqui se poderia dizer: "Como? Se a paisagem não é a natureza, o que seria ela, então?". Falar, portanto, de uma construção retórica (de um artifício, desta vez lingüístico) acerca da paisagem é crime de lesa-majestade. A natureza- paisagem: um só termo, um só conceito - tocar a paisagem, modelá-la ou destruí-la, é tocar a própria natureza.
Aqui, convoca-se uma ontologia que torna vã toda discussão sobre uma provável gênese. Que a forma simbólica "paisagem" tenha se constituído no decorrer de séculos é então inadmissível, pois, se a paisagem é identificada com a natureza, ela esteve presente desde sempre. Sempre houve paisagens, não é? Que a paisagem-natureza tenha evoluído, sofrido mudanças, até se admite; assim como os climas, as estações e o solo se transformaram, mas isso decorre de uma natureza em evolução contínua. As "formas" evoluem, mas a partir de um dado existente desde toda a eternidade. Nada a ver, diz-se, com uma construção mental. A paisagem participa da eternidade da natureza, um constante existir, antes do homem e, sem dúvida, depois dele. Em suma, a paisagem é uma substância.
Para essa ontologia, a pintura é um intermediário interessante, porque faz ver de maneira sensível, mostra, exi
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be, exalta essa preeminência e anterioridade. A pintura é variação a partir do princípio. Nada além. Na verdade, se é mediadora, não é indispensável, é um adendo atrativo, às vezes emocionante e, por sorte, desvinculado, no domínio especializado que é o seu, de toda a distância que a estética mantém "[d]a vida".
Do contrário, acrescenta-se, seria preciso fiar-se apenas nos críticos de arte para perceber a natureza? Concepção elitista que favoreceria por demais os eruditos e privaria cada qual de sua relação com a natureza. Em tais condições, não haveria paisagem para o diletante em arte? Absurdo.
Esses argumentos defendem e ilustram a relação confusa que mantemos com essa paisagem-natureza, ou com essa natureza-paisagem. Uma dupla operação se manifesta aqui: de um lado, restituir a paisagem à natureza como a única forma de tomá-la visível (logo, de transformá-la por intermédio do trabalho paisagístico); de outro lado, desdobrá-la em direção do princípio inalterável da natureza, apagando então a idéia de sua possível construção. Confusão bem marcada no fluxo de noções de "sítio", de "meio ambiente", de "ordenamento" ou de "integração".
Pois os mesmos que querem salvaguardar a naturalidade da paisagem como dado primitivo se dedicam também a proteger os "sítios" depositários de uma certa memória, histórica e cultural. Ora, o "sítio", o que "permanece ali", designa tanto o monumento (esse arco, essa
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cidade antiga, esse vestígio) quanto a forma geológica singular que intervém num meio natural.
Nessa ótica, a paisagem é um "monumento natural de caráter artístico"; a floresta, uma "galeria de quadros naturais, um museu verde". Essa definição, elaborada pelo Ministério da Instrução Pública e das Belas-Artes francês em 1930, destaca a ambigüidade; reúne em uma fórmula os dois aspectos antagônicos da noção de paisagem: o ordenamento construído e o princípio eterno; enuncia uma perfeita equivalência entre a arte (quadro, museu, caráter artístico) e a natureza.
Uma definição dessas tinha ao menos o mérito de não eliminar a dificuldade, de reconhecer que se trata de uma forma complexa, com duas vertentes que intercambiam atributos segundo uma regra desconhecida e cuja unidade é mantida na e pela experiência ordinária.
Experiência que, de minha parte, na descrição do sonho de minha mãe, absorvi integralmente, pensando que aquele jardim enunciava o campo que enunciava a paisagem que enunciava a natureza, encontrando nessa entrada multiplicada a revelação do "belo natural". Como poderia eu de outro modo aproximar-me dele, a não ser pelo quadro emoldurado de um jardim composto, pelo artifício de sua disposição perfeita?
Mergulhada, aniquilada no sentimento de uma presença, sem tomar consciência, nem um único instante sequer, da operação que dessa forma o oferecia a mim, do aprendizado que, de muito longe, para além do jardim sonhado, construíra a segurança de que era exatamente aqui-
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lo, de que eu não me enganava, de que aquilo que eu via era evidentemente uma paisagem: a natureza.
Dobra onde se juntam, ponta com ponta, a natureza e sua figuração - essa dobra de sombra, essa lenta ascensão de uma forma da qual jamais poderíamos pensar que não fosse dada desde o início como realidade.
Desfazer essa dobra? Estender o tecido amarfanhado, tatear a textura dessa forma, desfazer e refazer as evidências, testar os implícitos? Isso consiste sempre em remontar a "antes da dobra". Apoiar-se na matéria-prima da "causa mental". Decompor os elementos, que, à beira dessa floresta de símbolos que é a história da edificação da paisagem, foram suas condições de possibilidade.
Da Grécia a Roma, de Roma a Bizâncio, de Bizâncio à Renascença, produziram-se algumas formas que governam a percepção, orientam os juízos, instauram práticas. Esses perfis perspectivistas passam de um a outro, desenham "mundos" que foram, para aqueles que os habitam, a evidência de um dado.
Esse trabalho de restituição, ao explicitar a dobra, não tem, contudo, a pretensão de nos separar de nossas crenças, da evidência de nossas intuições. Mesmo que saibamos que o sol não se põe, diz Gadamer, seguimos dizendo que ele se põe, e não poderíamos nos separar daquilo que a língua diz com a justeza do sentimento.
Inversamente, um saber não sabido, as pistas, refugos de crenças e de mundos antigos, ressoam longamente em
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nós. Saber ignorante de si mesmo, que forma, a nossa revelia, a maioria de nossos juízos de gosto.
É para o reconhecimento dessa mescla e para o misto de composições que ela gera em nossas avaliações comuns que se volta essa "gênese".
A NATUREZA ECÔNOMA1
No limiar de nossa pesquisa, uma surpresa nos espera. E de vulto. Na verdade, não voltamos a ela e a ela dificilmente retomaremos. Há quem tenha dificuldade em acreditar nisso e tente dar mil voltas à dificuldade: é que não há, entre os gregos antigos, nem palavra nem coisa semelhante, de perto ou de longe, àquilo que chamamos "paisagem"... Profunda estupefação em relação a nossa admiração secular por este céu e esta terra, as ilhas ao longe, as praias, as colinas áridas e as florestas delicadas, e a luz.
Aterrorizados pelas recordações literárias e pelos estereótipos de uma cultura herdada, vemos a Grécia com olhares enamorados e "caminhamos" pelas descrições da Acrópole ao sol poente. Vemos a Grécia com olhos de quadro. Quem, mais que os gregos, poderia ter naturalmente presente a noção de paisagem? Quem poderia fazer resplandecer, com um brilho mais incomparável, a luz do sol sobre o mármore dos templos? O rochedo acima do mar
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porta suas colunas como um fruto perfeito. Harmonia, beleza. Unidade espontânea de uma razão nascente com sua forma visível. A Grécia é isso. É possível que nenhuma idéia de "paisagem" tenha sido formada, formulada, elaborada? Coisa aparentemente impensável. Contudo, é isso mesmo. Para nosso grande desconcerto.
Deveríamos sondar bem essa ausência, por mais surpreendente e frustrante que ela seja. Não nos restaria algo dela nas mil dobras de nossa memória? Seríamos nós um pouco gregos em algum aspecto? Tão longa história não teria deixado marcas? E como nos haveremos com essa ausência? Porque, se a paisagem responde "ausente", a natureza está lá. Haveria, então, uma distância, um "buraco" entre os dois conceitos, que hoje temos o hábito de confundir em uma mesma figura?
Não há dúvida de que a Natureza não era figurada na forma da paisagem. Se ela aceitava ser representada con- cretamente, era em termos de ordenamento, de distribuição organizada. Potência atuante nos objetos animados e inanimados, a metáfora que se encarregava dela para torná-la inteligível era de ordem antropomórfica.
Com efeito, Aristóteles a apresenta como uma boa dona de casa. Uma ecônoma cuidando das reservas cuja guarda lhe foi dada, distribuindo-as com medida e bom senso.
Suas reservas, tesouros inestimáveis, ela as divide do melhor modo possível para a preservação dos seres que produziu (a natureza nada faz em vão), dotando o rinoceronte indiano de duros cascos, mais úteis para ele nos rochedos
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áridos do que se tivesse chifres na testa. De resto, boa moça, ela lhe concede, contudo, um só chifre, para se defender.
E como toda boa mãe de família que, por vexes, se engana na repartição, privilegiando um, ela fica sem nada para dar ao outro... Ou dá muito, ou o insuficiente: os monstros são erros por excesso ou falta, assim como os acidentes. Um problema de gestão.
Mas se recebem dons apropriados a suas constituições, os seres também são instalados em lugares específicos, planícies, rios, montanhas, desertos. A natureza se mostra generosa (ou avarenta) em sua atribuição: há condições de vida e de sobrevivência, um meio ambiente necessário que explica as particularidades de suas formas e de suas "partes". A relação entre uma suposta paisagem e o animal que nela se instala é da ordem da economia das partes que a compõem. Um pântano é indispensável para um elefante, que, andando pesadamente pelo fundo lamacento, tira a tromba da água para respirar. A planície árida é necessária ao avestruz, para que ele possa ali esconder seus ovos. Esse curioso bípede de pálpebra humana, que não anda nem voa, está instalado em seu meio, o deserto de areia.
Contudo, esse ambiente - o "meio" que determina os comportamentos animais e a eles está ligado de maneira estrita - não apresenta nenhuma característica pela qual pudesse valer por si mesmo. Ele envolve os corpos que contém, não é um "mundo" no sentido em que não é particularmente visado por meio das formas de sensibilidade e de percepção - uma forma simbólica ou uma construção.
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Em contrapartida, o "mundo" da Natureza, aquele que os gregos apresentaram como evidência do implícito de sua visão, seu "mundo", é o do logos, essa razão lingüística que atravessa as coisas de lado a lado e que instaura um entendimento, uma escuta, mais que uma visualização, dos objetos desse mundo. Heráclito vive nos repetindo isso na maior parte de seus fragmentos. Basta que um princípio (o logos como princípio da natureza) assegure a coesão, o ajuntamento dos elementos políticos, sociais, conceituais, para que a unidade esteja presente como totalidade indivisível. "Pois uma só é a (coisa) sábia, possuir o conhecimento que tudo dirige através de tudo1."
Dessa forma, é inútil - de verdade, com toda a certeza- destacar um fragmento dessa unidade. O invólucro visível, o lugar dos seres, é entendido - compreendido ou incluído - no estado das coisas tal qual elas se apresentam ao logos integrador.
O templo não está sobre o rochedo, não se situa em uma paisagem; reúne em si uma totalidade. O templo-ro- chedo é atravessado pela linguagem que o faz existir como parte do estado de coisas que revela ao se manter ali. Ele não designa, não significa: é o conjunto de um mundo que se deixa compreender em sua extensão. Com ele estão dados, ao mesmo tempo, a história, a lenda, o mito.
1. Heráclito, "Fragmento 41", segundo Diógenes Laércio, ix, 1, em Pré-socrá- ticos (trad, de José Cavalcante de Souza, São Paulo, Nova Cultural, 2000, coleção "Os Pensadores"), p. 92.
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Temos de reler Pausânias:<É
No cume do teatro se encontra uma gruta nos rochedos, ao pé da Acrópole; lá também há um tripé, sustentando uma cena que representa Apoio e Ártemis fazendo perecer os filhos de Níobe. Essa Níobe, eu mesmo a vi subindo ao monte Sípila; visto de perto, é um rochedo escarpado que não tem nada da forma de uma mulher, muito menos de luto, mas, se nos afastarmos um pouco, teremos a impressão de ver uma mulher em prantos e devastada pela tristeza2.
A distância, reconhecemos a lenda que a totalidade desse rochedo concentra. Isolado, visto como fragmento ou detalhe, ele não conseguiria encher a vista e, especialmente, a compreensão das coisas. Só podemos percebê-lo como um "mundo".
Nenhuma pedra, nenhum rochedo que seja pedra ou rochedo para Pausânias, mas signo para uma memorização de valor pedagógico ou apologético.
O mesmo ocorrerá com os historiadores-geógrafos da Antiguidade. Heródoto ou Xenofonte não são nada avaros em descrições de "lugares". Mesmo assim, não constituem o que chamamos de paisagens: simples condições materiais do evento, uma guerra, uma expedição, uma lenda, é a ele que estão submetidas. Fatores de causalidade e
2. Descrição da Ática, i, xxi, 3.
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de significação organizando o discurso e servindo de moldura aos saberes numerosos: o relevo, a flora, a fauna, os arranjos humanos, os vestígios do passado: tantas "locações" indispensáveis às narrativas e que a elas estão ligadas. O objeto paisagem não preexiste à imagem que o constrói para um desígnio discursivo.
A imagem não está voltada para manifestações territoriais singulares, mas para o acontecimento que solicita sua presença. E assim como o lugar (topos) é, segundo a definição aristotélica, o invólucro dos corpos que limita, a pretensa "paisagem" (lugarzinho: topion) nada é sem os corpos em ação que a ocupam. A narrativa é primeira e sua localização é um efeito de leitura3.
Nessa qualidade, o que vale como paisagem não tem nenhuma das características que estamos acostumados a lhe atribuir: relação existencial com seu preexistir, sensibilidade ou sentimento, emoção estética ausente. Sua apresentação, portanto, é puramente retórica, está orientada para a persuasão, serve para convencer, ou ainda, como pretexto para desenvolvimentos, ela é cenário para um drama ou para a evocação de um mito.
Quanto às paisagens estrangeiras (a cheia do Nilo) com as quais Heródoto nos encanta, elas são a exploração de uma opinião, segundo a qual tudo o que se oferece fora da Grécia é curiosamente o reverso, excitante, misterioso.
3. Cf. o belo texto de Christian Jacob, "Logiques du paysage dans les textes géographiques grecs", em Lire le paysage, lire les paysages, Colloque de l'Université de Saint-Étienne, 1982 (Actes..., Saint-Étienne, c ie r e c , 1982).
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Sua descrição é fictícia, deriva do romanesco, da peripécia. Essas "paisagens" descritas são conjuntos nos quais se instalam seres exóticos, de comportamentos curiosos. Tenhga ou não Heródoto ido ao Egito, fato é que ele, sobretudo, ouviu contar - rumores - o relato de viajantes dos quais ele se fez eco. É o fio da narrativa, as etapas de um périplo que fazem existir os lugares sucessivos. Desse modo, os "diz-se que" e os "diz-se que se diz" se acumulam, traçando círculos cada vez mais longínquos através de um mapa fantasioso. A voz de Heródoto é uma voz em "off", que fala por meio de uma multidão de outras vozes4.
O exemplo extremo desse tipo de descrições, talvez, se encontre em Plínio, o Velho, que, no livro vn de sua História natural, sobrepõe os prodígios dispensados pela Natureza, essa parens melior homini [mãe benevolente para o homem], que também pode se transformar em tristior noverca [ma- dastra severa].
Aqui, as anotações ambientais destinam-se a indicar, pela extravagância de suas formas, a extravagância dos seres que habitam as regiões remotas.
Quanto às árvores, conta-se que elas são tão altas que é impossível lançar flechas acima de seus topos. A fecundidade do sol, o clima do céu, a abundância das águas fazem com que (si libeat credere Icaso se possa crer]) uma única figueira possa abrigar esquadrões de cavalaria...
4. Como o nota C. Darbo Peschanuki em Le discours du particulier (Paris, Seuil, 1987).
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Que a natureza seja ecônoma, que seu princípio seja © aprovisionamento, eis-nos num mundo no qual a paisagem não pode ter valor em si, trata-se de uma peça útil a sua economia, como lugar-invólucro dos seres que ela âprovisiona.
* Que não faça nada em vão, mas tire partido dos recursos disponíveis, em nada indica que o território que ela leva em conta preexista a sua obra. Justo ao contrário, o território é "dado côm", não constitui "caso à parte". E, sobretudo - e é isso o que nos interessa aqui ela não se "diz" sob a forma figurativa da paisagem visual, mas vem a se apresentar sob a forma de um poder, cuja descrição é da ordem do discurso, não da sensibilidade.
O fio da narração e a viagem do pesquisador têm precedência sobre os lugares, que, por sua vez, acompanham a história; não são o objeto principal, apesar de serem indispensáveis à compreensão das coisas.
À semelhança do que ocorre com a tragédia na Poética de Aristóteles, a visão (opsis) - todo o lado espetacular do espetáculo - é secundária. Já tendo indicado que a opsis é uma das partes constitutivas da tragédia, depois da fábula, dos personagens, da elocução e do pensamento, Aristóteles, com efeito, acrescenta:
O espetáculo (opsis), mesmo sendo de natureza a seduzir o público, é tudo o que há de mais estranho à arte e menos adequado à poética, porque o poder da tragédia subsiste mesmo sem multidão nem atores e, além disso, para a encenação, a arte do homem pre-
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posto aos acessórios é mais importante que a do poeta (1450 bl7-20).
A fábula (mythos) e a narrativa são, primordialmente, o que reúne num todo a ação humana. É a fala, a lexis, que é "ouvida" como entendimento, como persuasão, e não o ver cênico. Um lugar é sempre um lugar "dito". Ele é sempre tomado na "unidade reinante de uma relação que chamamos um 'mundo'.. É só assim que o rochedo (o lugar onde o templo se ergue) manifesta a obscuridade de seu surdo portamen- to"5. Tomado assim na repetição e nos estereótipos lexicais. Sabe-se bem que os autores devem passar por isso e que, ao definir um cenário para o acontecimento, que é a única coisa que importa, basta qualificar sobriamente os elementos geográficos que o acompanham. E isso por um jogo de termos opostos: árido/fértil, planície/montanhas, seco/úmido, povoado/despovoado. Sobriedade que não exclui a diversidade de termos, mas designa o parco interesse pelas particularidades sensíveis. O regato será sempre fresco; o bosque, profundo; a planície, vasta. Vocabulário testado, de conotações antropomórficas, ligadas à metáfora fundadora da natureza como boa ecônoma6.
E, se ainda fosse necessário desdobrar essa dobra até sua raiz, para além da Natureza provedora e gestora de
5. Heidegger enfatiza esse "mundo" ("De l'origine de l'œuvre d'art", em Chemins qui ne mènent nulle part, trad. de E. Martineau, Paris, Gallimard, 1980). [Cf., em português: Martin Heidegger, A origem da obra de arte, Lisboa, Edições 70,2000. (N. de E.)]
6. Christian Jacob, cit., p. 164.
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Aristóteles, insistir nesse "esquecimento" da dimensão visual sensível pela qual qualificamos hoje o que é da natureza, deveríamos citar Homero. No canto xiii de A odisséia, quando Ulisses, por fim aportando às praias de ltaca, ajoelha-se e beija a terra de seus ancestrais, não é o entusiasmo de um reconhecimento visual que o move. Aquela ilha, ele não a reconhece. Ele não a "vê". O sentimento do lugar como lugar próprio por fim alcançado, ele não o experimenta. Aliviado de estar em terra firme. Só isso. É preciso que Atena se desvele, e desvele para ele, por meio da fala, a caverna e o bosque sagrado, a gruta e a oliveira, para que seus olhos enfim se abram, para que a lembrança sobrevenha, não a propósito dos objetos que a ele se oferecem, mas pelo artifício dê uma comemoração.
- ... Diga-me: é verdade que ali está minha Pátria?
- Vê comigo o solo de tua ítaca, o porto de Forco, o
velho do mar, e eis a oliveira que frondeia... eis a caver
na arqueada, eis a grande sala onde vinhas, tantas vezes,
oferecer uma hecatombe perfeita às Náiades, e eis, re
vestido de madeira, o Nérito.
Dizendo isso, Atena dispersou a noite. A terra apare
ceu. Quanta alegria o herói experimentou.
E que diz ele? "Ó vós, filhas de Zeus, ó Ninfas, ó Náiades que acreditei jamais voltaria a ver, eu vos saúdo..."
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Uma paisagem omitida
"Da noite deserta aos olhos de cego" Empédocles
Aberta unicamente ao mundo do logos, reunida em torno de um princípio de reunião, de uma unidade que fala a quem a escuta, a "paisagem" grega é omitida. Ela só comparece ao chamado de uma voz, de uma nomeação dos elementos que compõem uma cena. Ela não se oferece à visão, mas ressoa no ouvido, na luz da inteligência. O resto é esquecimento profundo, cegueira. "Todo o privilégio que subtrai aos olhos, ela o devolve ao ouvido", diz Plutar- co nas Quaestiones convivales (vni, 3,1).
Omitida? A expressão designa o ato pelo qual negligenciamos o todo ou parte de uma mensagem; essa omissão, aplicada singularmente à paisagem grega, diz respeito à cegueira particular dos gregos para a cor azul7.
Temos grande dificuldade em imaginar a Grécia privada do azul que banha as ilhas, inunda o céu, transforma- se em violeta nas colinas longínquas, matiza-se em rosa e em verde-cinza ao cair da noite. Mas devemos nos render aos fatos: as cores são idéias de cores, e quem não tem a amostra (o paradigma) não tem a coisa. Ora, os gregos não tinham amostra de azul. As quatro cores disponíveis eram
7. Cf. o texto de Nietzsche em Aurora, § 436 [em português: São Paulo, Companhia das Letras, 2004, (N. de E.)], e Manlio Busatin, Histoire des couleurs (Paris, Flammarion, 1986).
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 55
o branco, o preto, o amarelo/o ocre e o vermelho. Para eles, o mar era verde-pardo e vermelho-violáceo nos tempos de tempestade, glauco, e o céu unicamente "luminoso", brilhante pelo fogo do éter. O brilhante e o baço, o sombrio e o claro, o sol e sua sombra. Muita sombra cercando o brilho. Na verdade, preto e branco compõem o mundo visual, e sua mistura dá as outras cores.
Empédocles dá, segundo Teofrasto8, "o branco ao fogo, o preto à água", e assegura, diz Plutarco9, que "a cor do rio surge da sombra negra", conhece apenas "quatro cores, tantas quanto os elementos: o branco, o preto, o vermelho, 0 amarelo"10.
São três apenas as que bastam a Platão, no Timeu, para recompor os outros matizes: em princípio, o preto e o branco, respectivamente ligados à dissociação (o branco) e à concentração (o preto) das partículas da chama emitidas pelos objetos na direção do fogo dos olhos. Pois, se as partículas ígneas que entram em movimento a partir de um objeto são maiores que o órgão a que visam (o olho), elas dissociam (diacriticon) o corpo da visão. Se, ao contrário, são menores, elas o unem (syncrinon). Além do mais, no caso em que a grandeza é a mesma que a do olho, obtém- se o diáfano, o transparente. O vermelho (erytron), a terceira cor, provém do choque dos dois fogos em movimento, o das partículas das flamas saídas do objeto e o do fogo in-
8. Teofrasto, De sensibus, § 59.9. Plutarco, Quaestiones naturales, § 39.10. Aécio, i, 15,3; e Plínio, o Velho, xxxv, 12.
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tenor; propriedade do olho. Quando seu efeito se mescla, vê-se vermelho...11
Todas as outras cores provêm da mistura dessas três, e o azul (cyari), que é na verdade a cor lápis-lazúli, é obtido pelo branco combinado com a cor brilhante (lampro te leu- kon) caindo para o preto12.
Claro e escuro, obscuridade e luz, são assim os olhos que Aristóteles se empenha em classificar como glaucos e pretos13. Isso se aplica ao rio, que, segundo ele, deve ser pintado de uma cor amarela (ocros), ao passo que o mar deve assumir a cor verde amarronzado14.
A partir daí, metáforas se desenvolvem, ligando a superfície ao brilho, a profundidade ao terroso, ao negro abismo. "A água na superfície parece branca, e preta no fundo; a profundeza seria a mãe da escuridão15".
Os olhos de Minerva, glaucos, são olhos de coruja que enxergam à noite, por causa da indeterminação mesma de sua cor, cujo matiz vê o semelhante: a obscuridade tinta da noite. Quanto aos mares cantados por Homero, eles também serão glaucos, mistura de claridade e de profundidades fuscas.
11. Timeu, 67d. "As partículas provindas dos outros corpos e projetadas no órgão da visão são umas menores, outras maiores, outras, enfim, de mesma dimensão [...] É preciso chamar branco o que dissocia o corpo da visão, e preto o que produz o efeito contrário [...] peló efeito da mescla do reflexo do fogo com o humor do olho, se produz uma cor sangüínea que chamamos de vermelho."
12. Timeu, 68d.13. Aristóteles, Problemas, xvt, 14.14. Aristóteles, ibid., xxm, 6.15. Plutarco, ibid., § 39.
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Teoria da cor que também procede dos atomistas, porque examina o escoamento das partículas vindas dos objetos e, paralelamente, dos fisiologistas no que diz respeito ao fogo que sai do olho. Os dois movimentos se misturam porque só o semelhante atua sobre o semelhante - trata-se de dois fogos -, e a alteração (que produz a cor) é atribuída a um elemento diverso do fogo: a água que o olho contém. Encontro de elementos.JMistura.
Lá dentro, nada de geométrico. O processo da visão das cores não é descrito como o esquema de um cone visual, de uma refração ou de uma reflexão da luz, mas como abrasamento que escapa ao pensamento geométrico.
Apenas um Deus sabe como mesclar em um mesmo todo, para, em seguida, dissociá-los, elementos diversos, e também só ele é capaz de fazê-lo. Mas nenhum homem é realmente capaz de fazer nem uma coisa, nem outra ('Timeu, 68d).
Também é adequado desistir de se ocupar da cor, considerá-la como um mistério no qual o homem não tem participação alguma. É assunto de Deus, ou até mesmo algo que não seria verdadeiramente útil para o conhecimento.
Aristóteles, contudo, tenta compreender essa mistura introduzindo o "diáfano" como intermediário ativo entre os fogos cruzados da luz do dia e do olho. Nada mais de partículas provindas do objeto, entrando, em escala reduzida, no órgão da visão, mas uma teoria do "meio" ca
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paz de homogeneizar esses dois semelhantes derivados de fontes diferentes que são as duas radiações ígneas.
O diáfano, o transparente, deixa de ser o encontro inesperado do tamanho de um objeto com a dimensão do olho, como o afirmava Platão, para ser um princípio ativo que possui a virtude de acrescentar à cor a superfície dos objetos tornando sua iluminação possível.
É uma certa natureza, uma certa potência comum a todos os corpos, que não existe separada, mas tem sua existência nesses corpos... a cor pode, então, ser definida: o limite do diáfano em uma forma determinada"(De sensu, m, 10).
A cor de um corpo é a superfície, não do corpo propriamente, mas do diáfano que está nele e que passa ao ato quando é iluminado por um elemento de mesma natureza (o semelhante ilumina o semelhante), ou seja, o fogo do céu. Vemos, então, as diferentes cores se modelarem segundo os corpos em questão apresentem mais ou menos resistência ao diáfano: se forem terrosos, ou mais aquosos, ou mais ígneos. É a partir daqui que se pode esperar estabelecer uma certa proporção numérica entre branco e preto.
Com efeito, é a partir da oposição preto/branco que se constroem todas as outras cores em detrimento do... azul, que surge como uma irregularidade, não definida por um número dado.
Se não é mais o olho que faz contato e ilumina o objeto, se as partículas não se deslocam mais dos corpos para
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percutir o olho, se o diáfano passa a substituir esses contatos para introduzir o ato de uma potência instalada nas coisas, voltamos ao mesmo ponto, contudo, naquilo que se refere à cor. Nem a geometria nem a física estão habilitadas ã captar o matiz, e o fenômeno da cor é trabalhado segundo uma "forma": a aparência de um corpo ou a marca de um espelhamento. Em nenhum caso existiria para nós uma paisagem colorida, em sua presença separada, insistente.
Essa cegueira ao azul é justamente o efeito de uma dificuldade para pensar a cor, de uma tentativa de simplificar, com os meios teóricos de que dispõem os antigos, um fenômeno cativo do "contato" e dos "elementos": a essência elementar da luz - fogo - e dos corpos - terrosos ou aquosos.
Uma teoria dos eflúvios, das marcas, como a dos ato- mistas, ou a do "meio" ambiente - o diáfano que permite a continuidade de uma visão em Aristóteles -, manifesta essa outra cegueira, que é a das formas concretas da sensibilidade ao que é da ordem da visão.
A economia da natureza, então, pouco atenta a distribuir uma fruição suplementar, porque não tem os meios para isso, contenta-se em oferecer à compreensão planos de funcionamento - um desígnio e um desenho. Cabe aos pintores preencher os contornos das formas assim repartidas. Mas sobriamente.
Possuem-se pinturas antigas cujo colorido é trabalhado com a maior simplicidade (haplós) e que não apresen
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tam variedade alguma nas tonalidades. Mas as linhas são desenhadas com perfeição"16.
A cor é subsidiária. "O criador (a natureza) desenha primeiro os contornos, depois (hysteron), ele escolhe as cores...17"
A forma da idéia atravessa o mundo; e, se ela suporta depois o brilho que vem cumulá-la, não se encontra, por isso, submetida a seu aparecimento.
Fortemente estruturado, o mundo grego se defende da invasão dos brilhos dispersos e contra tudo aquilo que, separado, poderia prejudicar sua unidade: a natureza não tem necessidade alguma da paisagem sensível para revelar seu desígnio. O preto e o branco lhe convêm, lhe fornecem os cheios e os vazios de uma escrita pura.
O azul, vindo do Oriente, sintoma de uma decomposição, traz em si algo de selvagem, de bárbaro. Com ele, uma gama cromática enriquecida dispersa a idéia única, fragmenta o desenho, convoca à fruição, ao passo que aumenta a diversidade dos atores, que se cruzam e misturam as linhas de força de um "mundo" que se distancia sem cessar. Essas separações exigem uma mediação, uma figura de passagem, que se esforça para reproduzir, por artifício, a simplicidade do Todo no interior de um lugarzinho simbólico: o jardim.
16. Dionísio de Halicarnasso, De Isaeo, 4.17. Aristóteles, Da geração dos animais, n, 6.
OS JARDINS DO ÓCIO2
"... E a rama em que o pâmpano à rosa se alia."
Eis a longa teoria dos jardins, kepos-hortus1, lugares de repouso e de meditação, que, ao romper com o espaço indeterminado ou superinvestido de marcas por e para uma história, constroem seus traços distintivos longe da cidade. Essa forma, que os romanos levaram à perfeição, aproxima-se de uma noção ainda não estabelecida, a de paisagem. Trata-se, precisamente, de um impulso rumo a uma natureza, de um recolhimento no seio de elementos naturais, mesmo que os traços característicos do jardim o distingam nitidamente daquilo que ele toca de raspão: a paisagem está fora de sua visão.
í. Encontramos kepos em Platão, no Timeu (77), servindo de comparação ao corpo humano. As veias e as artérias são, com efeito, análogas aos condutos de irrigação das hortas. Comparação retomada em Aristóteles (Das partes dos animais). Referência a uma utilização prática, o jardim aparece sub-repticiamente, mas não é descrito por si mesmo. Ele deve, contudo, ser um lugar de delícias, se formos dar crédito às expressões "jardim das musas", "jardim de Zeus".
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E primeiramente para si, isolado, retraído. Isolando também o que parece melhor nas disposições da natureza a respeito de suas criaturas, a forma-jardim se àpóia em uma dupla disjunção, em duas subtrações conjuntas.
Se o "Jardim de Epicuro" designava um lugar, o lugar singular de um ensinamento, não conhecemos sua forma concreta, porque a fórmula substituiu sua forma material até recobri-la inteiramente. "Jardim de Epicuro" é metáfora para uma filosofia, sabedoria de uma vida ao abrigo das tempestades do mundo. Esse afastamento conduz a uma cerca, quase um claustro - um anteparo...
A descrição desses espaços desconhecidos que nos é oferecida pelas Investigações (.História) de Heródoto, que deles se encarregavam, dobra-se no espaço mensurado de uma disciplina interior, concentra-se no sujeito que habita e modela seu próprio espaço. Lugar isolado de um espaço típico: o campo, cuja existência é assegurada pelo corte com a Cidade: Urbis amatorem, diz Horácio no princípio da Epístola x. É assim que ele cumprimenta Fusco, amante da Cidade, ele que amava os campos, Ruris amatores. O campo oferece tudo o que a cidade subtrai - a calma, a abundância, o frescor e, bem supremo, o ócio para meditar, longe dos falsos valores.
Como um duplo invertido, o campo oferece o negativo da cidade, que, não obstante, toma dele emprestados alguns traços sem os quais não poderia passar: o que seriam, pois, as colunas de mármore que adornam as casas senão a imagem das florestas? E por que querer ter visão
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do campo longínquo senão por ser lá que se situa a verdade? O "laudatur domus longo quse prospicit agros" de Horácio ["elogia-se a casa que se abre para os campos ao longe"; Epístola x] é um elogio à calma dos espaços agrestes, não à "visão" sensível.
Mas esse campo (rus, campus, ager), cujos méritos são tã© louvados, só é bom à medida que refere às qualidades de economia, de aprovisionamento generoso que caracterizavam a physis aristotélica. É papel do jardim estabelecer e manter a distinção entre os terrores naturais e os benefícios dessa parens mater. Se o jardim se separa da cidade, ele também se separa de uma natureza furiosa, tempestuosa ou desértica. Nessa dupla condição, só o jardim é ameno (iamcenus), prazenteiro. É preciso, pois, fugir da confusão de Roma e de seu clima insalubre, passar setembro fora, nesse fora que é um pequeno dentro. O jardim oferece, com efeito, esse paradoxo amável de ser "um fora dentro". Fugir também - porque a liberdade está na fuga - da ferocidade dos animais selvagens que vagam pelos campos, do horror das matas fundas e das altas montanhas: "Tais lugares", diz Lucrécio no livro v (39-42), "está em nosso poder evitá-los".
A meio caminho entre os dois perigos da natureza e da sociedade, o jardim oferece o asilo desejado.
Desse modo, construir a distância essa pequena forma, esse pequeno lugar - topiano - que é o jardim, viabiliza o espaço da fruição - o otium, o lazer, a liberdade. A construção ideal da sabedoria - a dobra fora do mundo -
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tem como correspondente material a instalação do jardim prazenteiro. As duas vertentes, sabedoria e lugar próprio para exercer a sabedoria, estão unidas. Em uma formulação rápida, podemos pretender que a forma da vida sábia é ilustrada pela forma-jardim, cuidadosamente filtrada pela tela de uma abundância magnânima (numera naturae), cujos elementos são escolhidos com cuidado. São necessários a fonte ou o regato, o campo fértil, o bosque e a vinha, o rochedo musgoso e, por vezes, a vista (prospectus). "Ego laudo... rivos et musco circumilita saxa nemusque" ["Louvo o campo ameno, com seus regatos, seus rochedos recobertos de musgo e suas florestas"].
Reunidos esses elementos de amenidade, podemos então nos entregar a uma descrição, a fazer deles um "quadro" para seduzir os recalcitrantes. "Ut pictura poesis" [o poema (deverá ser) como uma pintura], dirá ainda Horá- cio, fórmula que se dissipou. É, sem dúvida, necessário compreendê-la como resultado desse mesmo jardim que descrevemos aqui: com efeito, a pintura é o que melhor dá conta da moldura-cenário montada com cuidado e diligência e que vale como a própria moldura da vida feliz. O quadro "mostra" e, com isso, desempenha seu ofício apologético e pedagógico. A poesia moral é quadro sedutor, colorido com todas as virtudes do jardim. O jardim é, com efeito, a imagem do que de melhor há no homem; ao residir no jardim, o homem se toma semelhante àquilo que o circunda. A alegria e a mansidão do campo provocam a
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alegria interior e a mansidão do caráter. Se a vida sábia tem como correspondente material o "lugarzinho próprio", esse lugarzinho tem como correspondente textual uma po- esia-quadro. Entre os três termos, uma correspondência simbólica propõe sua vinculação - eles se imaginam uns aos outros, por similitude de essência.
Nada de "paisagem" aqui, de horizonte remoto, o lugarzinho fecha a visão em seu amável cenário. Mesmo sendo um encanto a mais, a "vista" ao longe não é, contudo, necessária para a fruição do jardim:
"Neque enim mare et litus sed te, otium libertatem sequor", escreve Plínio, o Jovem (carta vi, 14) ["Nem o mar, nem sua costa, mas tu, o repouso e a liberdade que busco"]. O jardineiro não verá mais longe que a distância de seu pé - meçam-se a isso. Para ele, o sol tem a largura do pé de um homem - o dele mesmo... "Metiri se quemque suo modulo ac pede" ["Medir-se cada qual com seu próprio pé, eis a verdade"] (Horácio, Epístola vn).
É a dispensa e a despensa que o jardim designa, e não o rio e o mar, o longínquo e a contemplação do mundo em seu conjunto. Fruição do "próprio", da suspensão mensurada, de uma vestimenta feita à medida de seu proprietário. Fruição de uma parte de um pedaço escolhido da natureza, e não sua metáfora condensada.
O jardim não é, portanto, a paisagem em formato reduzido; ele tem seu esquema simbólico próprio. Na perspectiva do otium, ele não é a redução - na escala chamada humana - da generosa Natureza, não mais que uma metá-
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bole ou sinédoque pela qual ela se apresentaria. É, bem ao contrário, por meio de uma separação da Natureza que eje se constitui - e quase em sentido oposto.
E, se mantém relações de proximidade e de conflito - a cerca é, ao mesmo tempo, defesa e proximidade - com a natureza em seu todo, ele não se transforma, por isso, em forma de passagem entre a ausência de paisagem (termo, noção e descrição) que destacamos entre os gregos e sua aparição mais tardia.
O jardim não é um intermediário, um feto, ou um germe de paisagem, mas ele entrega, na forma da écloga, das bucólicas, da ode, os elementos da constituição do "campestre" — a árvore, a gruta, a fonte, o prado, o outeiro, torrão ou talude, os animais e os instrumentos que complementam seu léxico próprio. Eles serão retomados na tradição medieval e seguem, até nossos dias, inseparáveis dos atributos que conferimos à natureza na forma de paisagem. Nós os reencontraremos nas artes contemporâneas da paisagem, intocados. O jardim desenha uma das dobras da memória e ali permanece, ao lado da paisagem, como um modelo de naturalidade.
A fim de passar para o lado da paisagem, precisaremos voltar à fórmula de Horácio e transformar seu ut pic- tura poesis em ut poesis pictura. É sem dúvida aqui, nessa inversão semântica, que se decide o estatuto da imagem, do quadro como paisagem, como figurabilidade da Natureza... e isso é Bizâncio.
... E ISSO É BIZÂNCIO3
É paradoxal constatar que é pelo desvio do debate sobre o ícone - de sua condenação e de sua defesa1 - que passa a quase imperceptível linha de fuga, a fina fratura onde se instalará a possibilidade de figuração da paisagem.
Paradoxal porque, naquele lugar e naquele tempo, nenhum signo icônico, assim como nenhuma descrição literária, trata de perto ou de longe do que chamamos paisagem. A questão de sua existência ou de sua não-exis- tência, assim como a de sua representação, está completamente ausente.
Paradoxal porque nada mais que a pintura mural bizantina dá provas de perfeito desdém pelos elementos naturais de qualquer paisagem. Não obstante, é justamente
1. Cf., para tudo o que se refere a Bizâncio, o admirável trabalho de M. J. Baudinet, Les antirrhétiques de Nicéphore patriarche de Constantinople (Paris, Klin- cksiek, 1988). Cf. também seu artigo "La relation d'image à Byzance dans les antirrhétiques de Nicéphore, au-delà de l'aristotélisme", Les Études Philosophiques (jan. 1978).
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aqui, justo nesse ponto preciso de formulação teórica, que se cogita a condição de sua possibilidade.
Dobra bem oculta, que a história da arte não recomendaria - ela só vê o fogo, só olha para o que é dad<g como visível: a rígida, reta, frontal figura de madeira dos ícones.
Contudo, dobra que necessitamos desdobrar, pois ela contém em germe, com a fortuna do quadro e de toda obra pictórica futura, o simultâneo infortúnio de suas futuras transformações.
Momento curioso, difícil de imaginar, indubitavelmente único na história do Ocidente, no qual o estatuto da imagem - questão teórica que aparentemente deveria suscitar apenas um "debate" - se torna questão de vida e de morte, de ultrajes e de insultos, de exílio e de destruição. Guerra de Religião, para falar a verdade, devastações. A imagem sangra por todos os lados. Má-fé, de um lado e de outro, e Fé má. Tudo isso sob o signo do signo.
O estatuto da imagem é, inicialmente, a questão da validade de uma representação mimética. Ou mais exatamente, no que diz respeito a esse momento preciso, a de sua verdade.
Claro que não se trata da Natureza como princípio nem de sua relação com sua figuração sob a forma da paisagem, mas do princípio divino, o Deus cristão em três pessoas, e de sua figuração sob a forma de imagens a sua semelhança. Contudo, ao formular essa questão, e ao providenciar uma resposta para ela, é também a relação da natureza com sua representação que está posta.
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Pode o princípio divino ser representado em uma forma sensível (visível)? Não, dirão uns (os iconoclastas), porque essa forma material trai a essência do divino e, ao propor a ilusão de uma similitude, faz o signo ser tomado pela coisa e conduz os cristãos à idolatria, Sim, dirão os outros (os iconó- dulos), porque nem toda imagem é necessariamente similitude ou visa à identificação do signo com a coisa.
Toda a discussão se dá em torno da distinção entre uma imagem "semelhante a" e uma imagem "produzida para". Em -resumo, em redor da distinção entre imagem natural e imagem artificial, entre eídolon e eikon, simulacro e retórica. Compreendamos aqui o que significa "produzir segundo o princípio, ou modelo", e "copiar o modelo". Penetremos os arcanos de uma distribuição providencial dos signos e das coisas que eles assinalam, ou, se quisermos, de uma economia geral dos signos.
Quando se pretende semelhante a seu modelo divino, a imagem material é traição, pois exibe aquilo que é, em essência, invisível. Vertente sensível de uma presença ideal, ela divide o que é único e, pior ainda, substitui a ordem do espírito pela ordem da matéria. Habitada pela homoousia, ou semelhança entre essências, ela usurpa a essência daquilo que se considera que ela possa figurar e se adona daquilo que não pode ser. Toda imagèm é, na perspectiva iconoclasta, tomada no jogo de substituição falaciosa da homoousia. Por isso é condenável.
Há outras maneiras de analisar o estatuto da imagem, retrucam os iconófilos, pela voz do patriarca Nicéforo. Des
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sa imagem fundada na semelhança de essência temos, claramente, um e o mais alto exemplo: o Cristo, imagem do Pai, é a ele idêntico em essência, e contudo é ta ibém sua imagem de carne, a encarnação. Mas é aqui justamente que se tem um caso particular, uma divina exceção ao caráter da imagem. Inútil pensar que nós outros, criaturas, poderíamos rivalizar com essa homoousia. Condenar sua prática é, por isso, absurdo. Seria o mesmo que castigar e fustigar algo que nos é impossível por natureza.
Porque se Deus "realiza" absoluta e perfeitamente a operação da homoousia, a saber, a adequação perfeita e essencial do modelo e de sua imagem, nós outros só podemos admirar e venerar sua obra, tentando simplesmente dar, para fins apologéticos, a imagem da imagem.
Se assim é, o perigo passa a ser, então, o de confundir em uma mesma vindita toda forma de produção de imagens, supondo que toda forma de semelhança é do tipo dessa única homoousia.
Ora, existem imagens de outro tipo, não apenas viáveis, sem traição, mas até mesmo necessárias para compreender o mistério divino e convocar a graça de sua contemplação perfeita. Para tanto, basta estabelecer a legitimidade de se entregar a uma análise, de tipo aristotélico, dos diferentes sentidos do termo "imitação".
Levar em conta e apoiar-se na imagem-produção, aquela que Aristóteles chama de mímesis. Aqui, não é o modelo que é diretamente imitado, mas o modo de produção do modelo. Assim, o célebre "imitar a natureza"
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não significa que se vão "copiar" os objetos que ela oferece, mas a "economia" pela qual a natureza ou Deus age no mundo. Aqui, a relação da imagem com o modelo não é uma relação de identidade, mas uma relação homônima: um mesmo nome designa aqui dois objetos diferentes.
Como se diz no livro i das Categorias:
são chamadas de homônimas as coisas que só têm em comum o nome, mas a noção segundo a qual o nome é diferente pela essência..."homem"indica, desse modo, o homem vivente, mas também o homem representado em uma pintura.
Relação de heterogeneidade que não suprime a relação, mas a assegura ao separar os termos. Com efeito, para que haja relação, é necessária a esquiz(o), a separação do que é posteriormente reunido - toda a questão do símbolo deriva dessa constatação.
Podemos, pois, produzir a homonímia, a homoiesis, sem para isso substituir - por metáfora ou metonímia - a coisa pela imagem que ela iconiza. Nesse sentido, o ícone não é a parte de um todo, nem sua repetição material.
Do mesmo modo, a mímesis aristotélica não é simples cópia, mas produção original: poíesis. A tragédia não é simulacro das ações humanas, mas produção de um conjunto de traços, que por uma linguagem elevada, provocando piedade e temor, obedecendo a leis específicas, às regras do gênero, propõe ações exemplares à admiração e ao re
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conhecimento dos atenienses. Cabe a eles preencher esses traços, reunir os fragmentos em uma totalidade mnêmica. Do mesmo modo, o poeta "imita" o processo produtivo da natureza, cuja palavra de ordem é a economia. A distribuição e a partilha de um bem comum em fragmentos que refletem inteiramente sua potência.
Um distanciamento produtivo governa, desse modo, a fabricação do ícone, distinto por natureza daquilo que ele evoca. O ícone, produzindo-se como imagem artificial, produz ele mesmo uma tensão para, um ítpòcm [prosti]. Ele pertence à ordem da prática, está voltado para o uso.
Em resumo, ele pertence à ordem da sedução e da persuasão retórica. Ele é, antes de qualquer coisa, um "traço". Traço de união ou flecha atirada, apelo e convocação de uma unidade - a da Santíssima Trindade - no fragmento material. Longe de estabelecer aí uma similitude, ele propõe simplesmente um suporte para o reconhecimento.
Desse modo, ele manifesta a potência do princípio divino, que se mostra em todos os pontos da natureza, não por efeitos isolados uns dos outros, mas de maneira total e única até naquilo que nos parecem fragmentos. Essa faculdade de se dividir em mil fragmentos permanecendo único provém justamente da natureza divina, e o ícone, essa forma construída para a arte, esse artifício humano, participa do desígnio geral da Providência, ao qual obedece.
Com efeito, se a natureza se comporta como ecônoma e dispensa seu estoque, partilhando-o com exatidão (salvo erros mínimos), vê-se Deus agir do mesmo modo, instaurando o plano geral de uma partilha. Com a distinção entre
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arquétipo e imagem, ele oferece o modelo de uma economia distributiva. Esse é o gesto que o poeta de Aristóteles imita, e é o gesto que o artesão de ícones reproduz em seu trabalho. Desse modo, a mediação do Cristo, imagem natural, é fundadora do ícone, imagem artificial. Hierarquia de signos, sem a qual nenhuma mímesis seria possível.
O traço que circunscreve a imagem separa-a de seu modelo, mas, ao mesmo tempo, instaura por meio dessa disjunção um chamado à reunificação. O traço circunda um vazio, não um cheio. A pretensão da imagem icôni- ca não é dar positivamente um substituto essencial, mas cavar uma diferença. Diferença que virão esclarecer com seus brilhos as cores resplandecentes da graça e a figura, sempre ausente, do Cristo.
Portanto, o ícone e seu hieratismo austero, o manto de dobra rígida, os olhos circundados de preto, os joelhos e a nuca que se pressentem retos. Uma economia de signos que remete à Economia divina, mas, curiosamente, nenhum traço de paisagem, de natureza, de floração diversificada: a natureza está inteira dobrada e como que refugiada no manto de seu Senhor. É idéia dele, nele está contida. Evocá-lo, ele, o Senhor, por meio do traço icônico, é designar economicamente o que ele criou para envolver sua obra, o homem. Não há, portanto, a mínima necessidade de insistir nesse invólucro.
Onde estão, então, os jardins do otium e do uti com que Horácio e Plínio nos encantam? As bucólicas de Virgílio, com Títiro tocando flauta sob os olmos, enquanto
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os pequenos deuses campestres protegem os rebanhos? Nada de "bucólicas". Não se encontram mais nem fontes nem bosques sagrados, relvados floridos de mil flores, sopro do zéfiro, e os próprios pássaros já não misturam mais suas vozes aos murmúrios do vento. Onde está a poesia que toma a pintura como modelo? Ao contrário, é a pintura que, em Bizâncio, toma por modelo a poesia: a representação icônica, o traço que circunscreve a ausência é um traço retórico, uma figura do nome. Na verdade, sua figuração. Dessa maneira, a apresentação de um pedaço da natureza, apresentação que era habitual entre os latinos, cede passagem a um dispositivo completamente distinto: da ho- moousia passou-se à homoiesis: agora a imagem é uma fabricação, distante daquilo que ela "iconiza", é um ícone (e não um eídolon) onde se mostra a potência do nome, intermediário obrigatório de toda construção pictórica. Com efeito, o jardim latino não podia ser paisagem, visto que era um pedaço arrancado da Natureza, da mesma espécie ou essência. Ele era uma parte dela, separada, e era justamente essa separação que o tornava incapaz de designá-la por inteiro.
Ao renovar o estatuto da imagem, Bizâncio, mesmo sem se interessar pelo meio ambiente natural, torna pela primeira vez possível a operação de substituição artificial que a paisagem ilustrará.
Na natureza em que sua apresentação é de ordem icônica, a paisagem responderá, com efeito, à regra de sepa
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ração e de substituição dos termos de uma relação: será ícone da Natureza, e não semelhante a ela; será construída, artificialmente produzida para convocar a natureza a preencher o vazio que o traço perigráfico estende ao olhar. Assim é que se tornou possível a relação paisagem-natu- reza como a de uma Verdade indizível e de seu correspondente gráfico, de uma Voz ausente e do nome pronunciado. Relação de homonímia.
Mas, no mesmo movimento, a travessia do signo artificialmente constituído em sua produção econômica rumo ao modelo - Deus ou a Natureza - produz uma espécie de confusão e incita (o que os iconoclastas temiam) à identificação abusiva das duas extremidades da cadeia. Tanto mais que o Oriente liberou, para o prazer dos olhos, as suntuosas riquezas de suas cores: o ouro e o púrpura, mas também o azul que se vê no céu das cúpulas, violetas delicados, matizes de verde, uma profusão de ocres pálidos. Claro que era necessária essa passagem teórica, essa argumentação densa que estabelece a imagem em seus direitos e em seus limites, mas, sem dúvida, também era necessária essa passagem à cor para que a imagem, agora capaz de funcionar como ligação entre dois mundos, pudesse ser vista, sentida e imaginada enquanto análogon da Natureza... até tomar o lugar dela e responder em seu nome. Isso decorrerá da pintura, de sua questão, de sua importância.
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A QUESTÃO DA PINTURA
Até aqui, a pintura fez apenas uma tímida aparição. De modo geral, sem dúvida, com o ut pictura, onde o termo aparece, mas ainda na forma de simples promessa, disposição do espírito. Sim, seria preciso que a poesia pintasse (pintar ou representar?), que arrastasse e incitasse ao visível, que fizesse quadro. Mas que espécie de quadro?
Ou teríamos falado da cor, de formas por meio das quais a natureza podia ser evocada; mas qual natureza? Uma natureza idealizada - a economia divina, a Providência, o destino. De pintura propriamente dita, nem uma palavra, apenas a possibilidade de um ícone, signo de sua duração como imagem.
Tempos da pintura, de sua questão. Como evitá-la? E de situá-la em seu lugar: a Renascença. Não para, doravante, passar a residir com ela, e com ela permanecer definitivamente, dizendo: "A paisagem é a pintura", como a
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todo momento, na evidência implícita do natural, dizemos: "Bem, a paisagem está a nossa frente", apontando o dedo na direção desse "a nossa frente". Agora, bem que poderíamos dizer, fundamentados em tanta arte, em tantos quadros, em tantos planos azulados das telas quatrocentistas: "A paisagem nos é dada pelo artifício da técnica, aqui e também acolá..." Não teríamos nomes suficientes para nomear todos os pintores, todas as obras. E, mais uma vez, nos encontraríamos numa dobra, numa sombra. E, dessa vez, no quadro.
Com efeito, a questão - a da pintura propriamente - não está em: "Como fazem os pintores com a paisagem?" Seria fácil e, por assim dizer, apaixonante responder a isso.
A questão é, sobretudo, a seguinte: como pode ocorrer que, em um domínio tão restrito - tela, madeira, paredes, cores -, aquilo que os pintores da Renascença fabricaram tenha se tornado a própria escrita de nossa percepção visual? Teriam eles projetado uma espécie de máquina de olhar a paisagem, ou melhor, de fazê-la aparecer em um lugar onde ela não tinha a mínima razão de ser, impondo-a assim como o único olhar possível para a natureza e em vista da mesma?
Pergunta que não deixa de nos surpreender e que manifesta o estatuto singular da pintura, sua originalidade em comparação com as outras artes. Porque ninguém contestaria, por exemplo, o poder de a arquitetura modelar nossos comportamentos, gestos e maneiras, à medida que sabemos perfeitamente que os espaços estruturados
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nos obrigam à ação comedida. Há nisso uma ação e reação quase direta sobre nossos comportamentos, sobre o sentimento do pleno e do vazio, sobre as orientações, as distâncias a respeitar, sobre a própria consciência que temos de nosso corpo e de suas possibilidades de agir no espaço que nos é assim oferecido. Na cidade moderna, as estradas e as vias expressas, as pontes e as ruas, as praças e os lugares abertos transformam nossos usos, liberam ou entravam a caminhada, provocam alguns de nossos gestos que se tornaram habituais e condenam outros.
Sem dúvida, o mesmo ocorre com o barulho, dado que deixamos de suportar bem o silêncio; vivemos em uma espécie de zumbido contínuo, no qual a estridência se combina com o ruído de fundo. Percebemos as artes do construído e do sonoro como a presença de uma sociedade determinada, conveniências de época, obrigações rituais e submissão ao "as coisas são assim". Mas nem passaria por nosso espírito confundir os acidentes necessários com a "verdadeira natureza das coisas", muito menos com a própria natureza. Pensamos civilização, costumes, sociedade, relatividade.
O mesmo não se passa com a visão, que, parece, se apodera do que "realmente" existe. A pintura, então, à medida que nos fornece esse olhar sobre coisas chamadas de reais, e apesar de não passar de uma representação, tem a ver com a verdade fora de toda relação com a conformidade social. A questão da pintura depende disso: ela projeta diante de nós um "plano", uma forma à qual se cola a
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percepção; vemos em perspectiva, vemos quadros, não vemos nem podemos ver senão de acordo com as regras artificiais estabelecidas em um momento preciso, aquele no qual, com a perspectiva, nascem a questão da pintura e a da paisagem.
Tratar-se-ia aqui da pintura como de uma questão que sempre teria estado ali, implícita, mas que se viu, subitamente, desdobrada como questão?
Porque, se se trata de paisagens, e de paisagens pintadas, elas estavam ali muito avant la lettre, antes da Renascença. As vilas de Pompéia com suas cenas de ilusão: as paredes são crivadas de céus e de pássaros, de ma- rinas e de barcos. Ilusão que dão as janelas pintadas, encaixadas em enquadramentos de colunas e de balaustradas, no desdobramento das verticais, "vistas" se oferecem à vista. Perspectivas de perspectivas: as janelas pintadas se abrem para outras janelas, armários se entreabrem para prateleiras carregadas de objetos, enquanto Ulisses aparece ao longe, em um cenário de grutas e de portos...
Contudo, a questão da pintura não está posta. A paisagem "pintada" permanece cativa nas paredes cegas, é história, narrativa. Não abre a natureza à visão por meio de si mesma. Não é de dupla face. A plástica que a "relata" segue encerrada em seu domínio técnico. Ela pensa moldura e quadros isolados, ela pensa "ilusão". Ela aparenta parecendo. A regra que a orienta é o bom senso, a ratio, prova
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de que seu critério propriamente pictórico ainda não nasceu. Portanto, essa istoria figurada não enfrenta a relação com a realidade, mas com o texto mitológico.
Desse modo, é o texto e sua coerência que fazem a lei; o que o olho percebe deve dobrar-se a uma verossimilhança, permanecer nos limites do bom gosto, evitar o efeitis- mo. Porque, se a virtuosidade leva a melhor, tem-se muitas vezes um abuso de cores, desperdício, brilho, e nem um dedinho de "verdade".
Vitrúvio declara guerra a esse mau gosto e notifica (vm, 5, 9) que a pintura deve permanecer aquilo que é, um conjunto de imagens; aconselha a não pintar o inverossímil, a não defender, por exemplo, "um junco frágil de estatuetas partidas ao meio, nem pintar candelabros como suporte de edifícios que carregam talinhos delgados acompanhados de espirais, sobre as quais, contrariamente ao bom senso (sine ratione), vêem-se estátuas assentadas".
A razão julga aquilo que viu. Ela diz: "Isso não pode". É impossível ver construções acima do céu, jardins sobre tetos, sustentando eles próprios outras construções. Ela diz: "Isso é falso". Nada há acima do que está acima. A razão julga a pintura de acordo com a ordem do mundo, sua idéia. Ela que conhece as leis põe as coisas no lugar. Privilegia a solidez, a coerência. Nulidades, esses cenários.
E, claro, a visão não é solicitada: não se trata de ver a pintura. De mostrar algo, de levar a ver, mas de ilustrar, do melhor modo possível, o relato, de maneira convincente. Um vocabulário de elementos está à disposição, e a sin
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taxe que os articula pertence à istoria. É a razão que vê, e não o olho.
Seria preciso pensar o momento de uma questão da pintura como uma inversão de prioridades. De repente, dá-se o seguinte: o "mostrar o que se vê" toma a dianteira da representação de uma idéia do mundo. Mostrar o que se vê, esse é o novo imperativo que vai abalar as relações entre realidade razoável e aparência, fazendo da técnica pictórica o pedagogo de uma ordenação. Parece que existe uma ordem da visão, distinta das construções mentais pelas quais estaríamos certos até mesmo da realidade.
E nenhuma outra lição, só a da pintura, pode nos ensinar essa ordem. Até valer para uma formalização do que devemos ver, impondo uma construção simbólica (um elo) entre os elementos - forma rigorosa que leva o olhar a representar o mundo para si mesmo segundo a pintura.
Quadro, forma, tela, como se queira, armadilha onde se cativa a natureza. Doravante, podemos recorrer ao "mostrar" da pintura para organizar as aparências, e a razão, que nada mais pode, dobra-se a esse imperativo, recupera o atraso e justifica o conjunto. São as leis da perspectiva, ela dirá.
Esse "mostrar o que se vê" faz nascer a paisagem, a separação do simples ambiente lógico - essa torre para significar o poder, essa árvore para significar o campo, esse rochedo escavado para abrigar o eremita. A istoria e suas razões discursivas passam para segundo plano: e, veja, fa-
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Íamos de "planos", de proximidade e de longes, de distância e de pontos de vista, ou seja, de perspectiva.
Luta, discórdia e reencontros, compromisso entre aquilo que é próprio da pintura e aquilo que ainda é próprio da solidez da coerência e da continuidade que atribuímos ao mundo. Nascimento difícil quando, hesitando entre razão do mundo, bom senso e a loucura do ver que des- trói sua prioridade, os artistas só a muito custo encontram seu próprio caminho. Nascimento tão vertiginoso que dele ainda não nos restabelecemos. Passagem inevitável para quem toma a iniciativa de dizer o que é a visão, o que é que o olho vê a propósito da natureza, como ele constrói esse filtro, dá-se a si mesmo uma cena, instala uma perspectiva. São incontáveis os estudos eruditos sobre esse tema, e cada autor que se põe a estudá-lo - mesmo que se trate de uma análise das "novas imagens", as imagens da tecnologia contemporânea - vê-se levado a voltar à fonte, à questão da pintura: à invenção da perspectiva.
Ainda preso nesse conflito de nascimento, Leonardo da Vinci recomenda observar uma coerência espacial nas diferentes cenas de uma mesma "história" (istoria). Elas devem ser mantidas na unidade do sujeito. Isso é bem próprio da lógica da idéia - pelo artifício de uma perspectiva em planos escalonados -, mas impõe também uma lógica do olhar1.
1. Leonardo da Vinci, Traité de la peinture (trad. de A. Keller, Paris, Berger Levrault, 1987).
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É preciso articular duas coerências: uma é adquirida, é a do sentido narrativo; a outra, que tenta construir © trabalho pictórico, ainda está por nascer. Esse é o ponto em que se situa a questão da pintura. Organizar e constituir a coerência do ponto de vista seria mostrar que se vê aquilo que se vê: ou seja, o estado de coisas tal como a razão cognoscente as apreende. Trata-se, portanto, de interpor, entre a impressão dos sentidos e o conhecimento das leis da realidade necessária, um protocolo de acordo: um "quadro" ou uma "forma" que os una fortemente, de tal maneira que uma não possa dispensar a outra e vice-versa.
Porque a pintura dá a ver não os objetos, mas o elo entre eles, como se tentasse também tecer um vínculo incorruptível entre o que se sabe e o que se vê. E se existisse uma relação oculta entre essas duas ordens, relação que a pintura mostraria?
Hipótese frágil, sempre carente de ser reanimada, consolidada.
Por meio de qual conivência quase-divina o que eu sei que sei sobre o estado das coisas que me cercam poderia coincidir com as impressões de meus sentidos? Isso deriva de uma verdade oculta, de uma ordem da transparência do sensível ao intelectual, ordem permanentemente desmentida pelas ilusões, pela relatividade das sensações, por sua falta de constância e de consistência. Enquanto eu reproduzia a idéia das coisas tal como as concebia, a torre bem que podia figurar a cidade e seu poder, a palmeira resumia
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o deserto, e são Jerônimo podia brincar com um leão três vezes maior que a gruta que lhe servia de abrigo... Mas, se eu confio em meus olhos, se existe uma ordem da visão, então como fazer para coincidir a idéia da torre (potência, triunfo, grandeza) - torre que se oculta no centro da cidade e da qual só parcialmente me apercebo - com sua pequenez ou quase-desaparição? Isso só é possível em virtude de um plano preestabelecido, de um desígnio geral, fortemente "mostrado": a exibição do vínculo existente entre o pensamento e a visão.
É a lei da perspectiva que tece, entre os elementos armazenados no saber, a tela de uma visão sintética. A proporção e a superposição dos planos levam a "ver", ou seja, a compreender aquilo que a visão sensível, particular, muitas vezes dissimula. A organização do conjunto terá validade para o conhecimento da istoria, cujos reféns são os objetos pintados.
Passagem, ligação original, que reconcilia dois mundos preservando sua relativa independência.
Dessa conjugação nasce a pintura, terceiro mundo. Lugar onde, pouco a pouco, se arma e se desarma o vínculo, o olhar e a razão em acordo e desacordo, negando- se mutuamente, ora para que a aparência triunfe, ora para sua derrota. Quem dirá se as Demoiselles d'Avignon dão razão à razão que analisa, discute, sabe, ou à lógica do olho, que só vê azul ali? Quem dirá a verdade acerca da Sainte-Victoire? A reconstrução de Cézanne está mais próxima de enunciar a estrutura das colinas que a própria
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natureza, mais razoável que perceptiva, não deixa ver, ou © contrário?
Uma constante revolução agita o par compreender- ver. Compreendo porque vejo, e à medida que vejo, mas só vejo por meio e com o auxílio do que compreendo que é preciso ver naquilo que vejo.
A imagem, ao mesmo tempo, me desafia e me cumula, dá e retira uma realidade, aquela que conheço conhecer. Faz esse frágil saber vacilar. Visão, caminho do conhecimento além do conhecimento, o olho é a janela pela qual compreendo as coisas. Trata-se da vigília da razão e do sono dos sentidos? Ou o contrário: o olho, obscuridade pela qual me vem a dúvida, vela pela alma adormecida?
A questão da pintura não cessa de suscitar a questão desse confronto, numa dialética compacta. Ela faz o papel da importuna, despe gradualmente de suas vestes tanto a mulher casada quanto as solteiras.
Pela janela pintada na tela ilusionista, vê-se o que é preciso ver: a natureza das coisas mostradas em sua vin- culação. Então, o que se vê não são as coisas, isoladas, mas o elo entre elas, ou seja, uma paisagem. Os objetos, que a razão reconhece separadamente, valem apenas pelo conjunto proposto à visão. Porque a invenção da perspectiva estabelece as regras de uma redução e de um ajuntamento. Toda a natureza (o exterior) está lá, em uma apresentação que reduz sua dimensão ao que pode ser captado no feixe visual; mas essa redução só pode se dar à medida
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que a totalidade for mantida, a unidade constituída - uma unidade mental, isto é, uma construção. A razão, critério do verossímil pré-renascentista, transformou-se em lógica visual.
E se pode dizer, tanto dos objetos como das palavras, que eles só têm valor quando se compõem entre si e que, se refulgem com algum brilho, é porque estão dispostos com arte em algum ponto do discurso que os circunda. Os objetos da paisagem, essa árvore, essa fonte, essa fronde encrespada ou inclinação de nuvens não remetem, parte por parte, às coisas da natureza tomadas separadamente; é a ordenação de sua aparição que significa: "natureza". A maneira de ordenar essas "coisas", o vínculo que as une depende então de uma retórica. O que existe de "natural" na natureza, sua sensualidade imediata, só é percebido como enigma, por meio do artifício de uma construção mental.
Ninguém duvida de que a paisagem não nasce aqui, no momento da pintura, porque, por sua complexidade "natural", ela responde melhor à questão do vínculo. A natureza, sive Deus, exprime ao mesmo tempo o sensível e o intelecto, é sua própria idéia, que ela mesma mostra sob a forma e no espaço da paisagem... O "mostrado" (natureza) e o "mostrar" (a arte) concorrem então para situar a demanda e a resposta e se conservam juntos.
A arte se alicerça sobre o conceito de "maravilha da natureza", diz L. Wittgenstein. Um broto que eclode, que tem isso de magnífico? Mesmo assim, é por meio da arte
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que digo o que vejo que devo ver na natureza. E o que vejo dessa maneira é paisagem.
É preciso ver, ver diante de si, ver o que é "dado" a distância. Vê-lo como um todo e relacionar esse todo com a natureza. Mas quem é que está encarregado de administrar a primeira aula? Quem, dentre pintores ou arquitetos, por primeiro pôs sua marca no período que se abre à pintura? Quem inventou, projetou, lançou a primeira pedra de um edifício do qual ainda somos cativos? Tema de controvérsias apaixonadas, de debates eruditos, de pesquisas.
Questão da construção de uma autonomia da pintura, de seu distanciamento do relato, de sua passagem para o lado daquilo que ela mostra: a paisagem.
Entre tantas obras, escolherei uma por seu caráter permanentemente enigmático: A tempestade, de Giorgio- ne. Ela suscita *à própria questão da paisagem e desperta inúmeras interpretações.
Os comentadores se perguntam se há ou não um "tema" para esse quadro. Por "tema", deve-se compreender o relato que estaria subjacente à pintura e que teria suscitado uma ilustração como "a tempestade".
A pintura necessita ou não de um tema? Uma narrativa que estenda sua tela de fundo, que faça o enredo, para ligar os diferentes signos pictóricos, serve de elo (de ponto de encadeamento) à tela pintada? O indecifrável enigma do tema da tempestade fornece aos defensores da ausência do tema, de uma rejeição da narrativa, um exemplo
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incontornável: A tempestade é precisamente um quadro, é precisamente pintura, e não tem tema explícito, nem mesmo oculto. Quanto aos defensores do tema na pintura, A tempestade lhes fornece o exemplo ideal para exercitar seus talentos de exegetas. O que é que mostra esse quadro, a não ser o relato? Se o relato for difícil de encontrar? Não mostraria ele nada além de si mesmo? E o que é, então, esse "si mesmo"?
O interesse de A tempestade é levantar essa questão. Até Giorgione, não se tomava isoladamente o fundo em forma de paisagem das telas. Dado que o tema já era muito explícito por si mesmo, o fundo servia de cenário, instalava a distância, dava o tom geral. Por sua vez, com A tempestade, parece que não havia nada além disso: árvores, céu, nuvens, uma ruína, um regato e, perdidos, isolados nos dois cantos extremos do quadro, dois personagens que parecem se ignorar mutuamente.
Desde então, os comentários tiveram livre curso: o primeiro (1530) menciona "uma paisagem sobre tela, com a tempestade, a cigana e o soldado". Vasari declara, pouco depois, não entender o tema e pensa que não se trata de modo algum "de personagens ilustres da Antiguidade nem dos tempos modernos". É preciso esperar os eruditos do século xix e o ateliê exegético2 para encontrar discussões sobre a significação da tela. Ou ela tem sua significação em si mesma, e o tema-pretexto é de pouca importância (Lionel Ven-
2. Salvatore Settis, L'invention d'un tableau (Paris, Les Éditions de Minuit, 1988). Cf. nas pp. 86-7 o quadro das 28 exegeses.
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turi), ou podemos nos entregar a todo tipo de hipóteses. O problema é que, em meio às 28 exegeses diferentes (compiladas e classificadas por Salvatore Settis) que se abateram sobre A tempestade, nenhuma é realmente satisfatória, nem dá conta de todos os elementos do quadro. Qualquer que seja a perspectiva em que ele seja encarado, alguns pormenores são refratários a uma explicação global.
Quem é a mulher amamentando uma criança de ar melancólico, o homem que monta guarda no outro canto do quadro? Onde estão essa cidade, esse rio, essas colunas rachadas e, ao longe, o que é esse céu tumultuoso de tempestade emoldurado por grandes árvores tristes, arbustos magros e a terra ocre do primeiro plano?
Diante da hipótese de que se pode tratar ali da "família de Giorgione", referindo-se a uma infância bastarda, ou da família humana em geral, abandonada por Deus, ou ainda de um "repouso no Egito", quem poderia concordar com uma delas se não se visse ali uma cidade e um rio atrás da mulher e da criança? Tratar-se-ia de uma danaide amamentando seu filho Perseu na presença de um raio jupiteriano, mas, então, que fazer com o homem no primeiro plano à esquerda? De uma mulher (cigana) seduzindo um soldado, provocando-o, para que abandone a guarda da cidade? Mas o "guarda" não demonstra interesse e a mulher com uma criança ao seio não parece querer seduzi-lo. De uma ninfa amada por Júpiter - Zeus se manifestando por seu relâmpago, um são Roque curador da peste... são tantas as possibilidades que até as esqueço... A última em or
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dem cronológica, a de Settis, extensamente argumentada, faz um relato da iconografia acerca da exclusão do paraíso depois da queda. O anjo exterminador tornou-se um simples fulgor, o paraíso perdido é essa Jerusalém celeste meio arruinada; Adão se mantém a distância, como um pastor laborioso, e Eva, levando ao seio Caim infeliz, tem o olhar perdido que convém à situação.
Explicação engenhosa, mas que nada diz sobre a importância da paisagem na obra, sobre as colunas em ruína, sobre a ponte que salta o rio, sobre o tratamento do céu, alta massa trabalhada na pasta, sobre a vibração das árvores, sobre o primeiro plano terroso, em forma de pedestal. A hipótese do tema está lá, mas a pintura, nessa explicação, desaparece... e com ela a paisagem considerada como um todo. Contudo, é justamente pela importância dessa paisagem tempestuosa, de sua presença opressiva, que a questão do "tema" é suscitada. Se não encontramos um tema apropriado, se as duas figuras humanas do quadro parecem ter pouca relação com o que se passa atrás deles, e com qualquer outra história, é aí que a dominação da paisagem (ela ocupa dois terços da tela) impõe sua ordem não humana. A partir daí, todo comentário que tome a paisagem por um simples fundo, concedendo o protagonismo ao relato, frustra o próprio objeto. E o frustra porque o julga "excessivo". Ora, o que parece sobrar são os personagens. Como que esmagados pelo espetáculo ao qual viram as costas, e que só o espectador pode ver, eles parecem expulsos, não do paraíso terrestre, mas da representação da
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Natureza. Seus olhares meditativos (o homem) e melancólicos (a mulher) se ausentam, ao passo que atrás deles se desenrola a cena primordial: o quadro pintado deixa aparecer a verdade-paisagem da Natureza.
Algo parecia sobrar, algo do qual história alguma pode resultar. Algo como a invenção da pintura de paisagem. O tema "oculto", que assim se ausenta da representação colorida do quadro, manifesta em sua nudez o fato-pintura, sem o álibi ilusório de um tema qualquer. O fato-pintura: o nascimento conjunto da paisagem e da pintura.
O "tema" do quadro bem que poderia ser a própria pintura, e, particularmente, o vínculo que a cor e a forma introduzem entre objetos: simples disposição das "coisas da natureza" numa moldura. Os olhos dos personagens pintados se desviam para deixar a natureza se expressar. Não temos necessidade deles para "ver" a paisagem, doravante nós mesmos a veremos. Ela foi descoberta.
Livres éstão os romancistas, fazedores de histórias em seqüência, para comentar essas visões ofertadas unicamente ao olhar. Eles contam fábulas para ninar a visão, falas que se ligam em arabescos aleatórios às cores e às formas do quadro.
Proposições. Butor embarca a rainha de Sabá no poema ritmado dos remos que levam seus tesouros até o grande navio, qüe se move ao largo3.
3. Michel Butor, L'embarquement de la reine de Saba, d’après Claude Lorrain (Paris, La Différence, 1989).
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É um porto, a noite cai. Uma luz dourada envolve os edifícios, que têm algo de ruína em sua fachada altaneira. O mar, ao nível do cais, lança seus últimos amplexos. O coração também embarca. Há necessidade de uma história? De um tema? A pintura refulge. Os barcos são de prata sobre o mar brilhante. Um sonho, o de Butor, se esforça em seguir a bruma dourada, ao passo que a paisagem está lá, simplesmente lá.
Como são inventadas as paisagens
"Devo" ver. Esse imperativo se dá inicialmente como um todo. Contudo, ele é construído com mil estratos justapostos, que até mesmo o historiador mais minucioso e mais bem documentado não consegue apreender separadamente, no pormenor de sua exigência.
É o que se passa, por exemplo, com a descoberta da montanha ou do litoral4. A sensibilidade social a essas "paisagens" é historicamente atestada em épocas determinadas e bastante recentes. "Descobre-se" a beleza, freqüentam-se os lugares até então considerados desertos maléficos, aterradores. Eles entram na moda, primeiro para a elite da sociedade, depois entram no vocabulário das "necessidades" naturais, são um bem comum, disponível a todos.
Essa passagem de um estado a outro, como ela ocorre, como e quando têm início as diferentes viradas, que levam
4. A esse propósito, cf. B. Kalaora e A. Savoye, La forêt pacifiée (Paris, L'Harmattan, 1986); Alain Corbin, Le territoire du vide (Paris, Aubier, 1988), e Hegel, Journal d'un voyage dans les Alpes bernoises (Grenoble, Jérôme Millon, 1988).
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multidões à praia ou a praticar esqui (o mesmo valendo para o deserto, com ou sem safári)?
Aqui, as anotações se acumulam, se dispersam. Uma onda de nomes e de datas me submerge. Qual é a chave desse movimento? Temos de admitir que se trata de uma trama de elementos heteróclitos que governa a sensibilidade de uma época a esse ou àquele aspecto da "Natureza". Também temos de admitir a importância da arte nessa fabricação.
A arte, muito bem, mas qual? Parece que, para as duas descobertas da montanha ou do litoral, a literatura foi a primeira. Poemas, meditações, relatos de viagem abriram caminho. A pintura vai no encalço. Ela abre uma segunda vez o caminho e leva a partilhar a visão da imagem descrita pela língua. Uma vez representada em desenho e cor, a paisagem que suscitava a emoção dos escritores adquire certa realidade. Ela existe. A prova: eu estava lá, sentada diante de meu cavalete.
A visualização de um lugar, qualquer composição feita pelo artista, atribui àquilo que é representado um valor de verdade que o texto ainda não oferece: as palavras podem mentir; a imagem, por seu lado, parece fixar o que existe. Ela espera, porém, por seu turno, a ciência (a geo- morfologia ou a geologia), para tomar assento entre as realidades comprovadas. Viollet-le-Duc desenha o mapa do Mont Blanc com o traço de desenhista obstinado. Ruskin é, por seu lado, sentimental e lírico: sugere, mas não prova.
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É que o território é um "palimpsesto"5, continuamente ès- crito e redesenhado.
Parece que só se pode "ver" aquilo que já foi visto, isto é, contado, desenhado, pintado, realçado. E do relato ao desenho, é o desenho que é "o instrumento epistemológi- co" por excelência, como o atestam tão pertinentemente Horace Benedict de Saussure em seu Voyage dans les Alpes, e Viollet-le-Duc, que faz dele um princípio geral6.
Porque, se a descrição poética, romanesca, geralmente vem por primeiro na ordem dos fatos, a imagem pintada ou o desenho especializado vêm, ambos, por primeiro na ordem da afirmação de uma realidade. Passamos, sem nos dar conta, de uma para outra para chegar a estabelecer uma existência até então ignorada. Por um efeito de retomo, quase uma anamorfose, a imagem, então, parece tomar a dianteira: é o relato que parece seguir a representação pictórica... Não posso ler Rousseau sem me remeter ao parque de Ermenoville, sem "ver" o jardim de Julie; não posso pensar "praia" sem a ajuda dos Boudin. O pintor-paisagista e o arquiteto de paisagens se substituem sem lutar com a literatura.
Passagem tão suave, como se fosse natural, que Alain Corbin, em seu belo livro sobre a invenção das praias, nem
5. Cf. Alain Corbin, "Le territoire comme palimpseste", em Diogène (Paris, Gallimard, 1983).
6. Isso é perfeitamente sabido pelos geomantes do Oriente Médio, cujos estudos preparatórios para a instalação em um sítio apelam para uma grande quantidade de desenhos, tomados a partir de todos os ângulos possíveis: seria interessante comparar esses desenhos com os de Viollet-le-Duc, que podem ser consultados em E. Viollet-le-Duc et le massif du Mont-Blanc 1868-1879 (Lausanne, Payot, 1988). Cf. as pranchas anexadas ao texto.
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chega a marcá-la. A passagem de uma arte a outra não parece problemática para ele, como se um rumor geral se estendesse de um ponto a outro por meio de contatos sucessivos, abarcando todo o campo das representações possíveis, seja as que são sustentadas pelo escrito, seja as que são sustentadas pelo mostrado, logo apelando ao sentimento popular. Ele relata apenas, de um lado, a batalha pictórica entre italianos e flamengos, a necessidade de os flamengos assegurarem sua identidade nórdica pela produção de paisagens marinhas. Por outro lado, a curiosidade dos pintores estimulada pelas produções literárias de alguns "loucos" por mar, pelas considerações da teologia natural e pela paixão inédita pelos fundos submarinos. Se o "princípio" é quase indeci- dível, o que se pode é dar atenção ao movimento do público para beira-mar a partir dos quadros. Um uso social se instaura, provindo da imagem. Função publicitária da pintura.
Mas quem, dentre o paisagista-pintor e o paisagista- artesão de parques e jardins, leva adiante a questão?
Ninguém chama de "verdadeira" essa arte, a ilusão e a imitação são igualmente distribuídas, é tanto o artesão imita o pintor como o pintor imita o que o artesão produz. Tanto no plano da cronologia como do conhecimento, as práticas se mesclam para formar um todo, um arranjo a três com a natureza.
A história não decide, ou as respostas são, sobretudo, circulares. Porque, se o pintor produz um modelo - por exemplo, as paisagens-modelo de Lorrain e de Poussin pa
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ra a gentry inglesa -, o jardineiro-demiurgo produz, por sua vez, uma realidade que servirá de modelo para o pintor-pai- sagista. Numerosos retornos, circuitos de influência7.
Tumer vem depois de Hegel, ele volta a abrir, segue o mesmo percurso. "Coincidência? Contaminação?" Por sua vez, ele "descobre" a montanha: ela já não é tão horrível assim, visto que pode ser "representada"... Onde Hegel narra e descreve um "caos indescritível", Tumer mostra, dá a ver. Logo, logo, coortes de pintores associados passarão a se chamar "pintores da montanha" e participarão da defesa de suas belezas naturais (leia-se "picturáveis") em uma ótica do patrimônio. Passagem obrigatória para os pintores de paisagem.
Só vemos o que já foi visto e o vemos como deve ser visto. "Vê, como é belo..."
O mesmo se dá com a paisagem, sua "realidade" social, uma construção que é passada por filtros simbólicos, antigas heranças. Uma forma mista, tanto mais pregnante quanto mais finamente trançada, a ponto de não se ver seu início e de ela poder passar por original, como se não tivesse origem determinável. Viagens de modernos Telêma- cos, com a cabeça povoada de poemas antigos, nos passos de Virgílio, e portanto de Enéias, ou nos de Cícero, de Dan- te, de Fenimore Cooper, de Dickens, de Thackeray, de Jane Austin (ah! o encantamento retrospectivo de Bath!), de Júlio Verne - onde está, então, o capitão Grant?
7. Cf. o posfácio de M. Conan ao livro de William Gilpin, Trois essais sur le beau pittoresque (Paris, Éditions du Moniteur, 1982), e seus numerosos trabalhos publicados na coleção "Le Temps des Jardins".
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Literatura, pintura e paisagens formam um conjunto indissociável, e o melhor exemplo que disso se pode produzir é, sem dúvida, De la composition des paysages, de René Louis de Girardin, que "fez" Ermenonville. O texto acompanha, redobrando seu efeito, a própria realização. Trata-se, ao mesmo tempo, de um manual de pintura, de um guia para o paisagista-arquiteto e de um guia turístico. Além disso, ele não hesita em convocar textos de Jean-Jac- ques: eis uma mensagem particularmente significativa.
Aqui, quem foi então o primeiro? Rousseau, ao escrever A nova Heloísa, Girardin, ao ler o texto e ao formar a idéia de uma paisagem "moral", a pintura à qual ele se refere (Nerval não diz que o lago se inspira em Watteau, na viagem a Cite- ra?), os jardins-paisagem ingleses do século xvn, ou a "sensibilidade" inglesa, ela mesma provinda dos fisiocratas8?
Mas, isso é certo, é o conjunto encadeado que vem por primeiro: "o princípio é que tudo esteja junto e que tudo seja bem encadeado". Proposição que abre o capítulo n de La composition des paysages.
São necessários esses retornos, esses atravessamentos da linha9, e, dominando tudo isso, a perspectiva, prospecto, o projeto iniciado pela pintura, sua questão, porque
8. Cf. o posfácio de M. Conan ao livro de R. L. Girardin, De la composition des paysages (Paris, Éditions du Champ Urbain, 1979).
9. Passagem que parece se produzir, atualmente de modo mais freqüente, do escritor ao paisagista. É o que se passa com Hamilton Finlay ou Philip Fry. Suas realizações paisagísticas se inspiram diretamente em figuras de um discurso erudito, historicizante para o primeiro, ecologista para o segundo. A pintura aqui é posta entre parênteses - ela só está presente, em Finlay, na forma de citações de nomes de pintores —, ainda que haja muitas relações estreitas entre a arte conceituai e a de Finlay.
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é exatamente a pintura que "encadeia" os elementos da natureza. Uma retórica, bem formada, governa desde já as relações do conhecido e do visível, e isso na ordem do verossímil e no registro da sedução.
A questão da pintura - para além das exemplificações e das modalidades passageiras— governa a apreensão de uma paisagem que parece, para nós, evidente.
Longa travessia de signos. Idas e vindas entre imagem e fala, entre idéia e imagem. Mundos sucessivos, onde entramos com dificuldade. Cegueira de nossa parte àquilo quê chamamos cegueira nos outros. Movimentos diversos que nos agitam com estupor. Bizâncio, com seu mundo de imagens, mais próximo dos gregos que dos romanos, que, porém, pareciam copiar seu modelo. A natureza, de propriedades dessemelhantes, ao mesmo tempo tão simples na formulação de seus atributos e tão distanciada da possibilidade de se dar totalmente em imagens. Seu retrato, por meio dos artifícios cada vez mais numerosos. A crescente multiplicidade de uma "engenharia" com o crescimento das técnicas - e, em contrapartida, o sentimento cada vez mais vivo de uma "Natureza" a respeitar.
Um retrato que se envolve a si mesmo em esquecimento e que, não obstante, se distingue na profusão de termos da linguagem cotidiana. As palavras para dizê-lo nunca são plenamente "próprias". Retomemos, portanto, tais palavras, ajustando-as em um turbilhão de negativas: "Meu jardim", diz meu vizinho, "não, não é o campo; o campo são as extensões cultiváveis... não, não é uma pai
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sagem; a paisagem é a vastidão, e meu jardim é pequeno; não, não é a natureza, a natureza são a floresta, as montanhas... meu jardim, não sei, eu quis que ele fosse assim... mas, ao menos, é mais natureza que a cidade...".
O "ao menos" e o "mais... que" são as expressões de um afastamento e de uma aproximação, de um "passo além" que hesita e retorna sobre si mesmo. Eles marcam a distância entre o evidente e a retomada. Eles remendam continuamente o sentimento da totalidade, ao mesmo tempo em que desvelam seu afastamento. Que crença surge para manter unidos movimentos contrários? Quem nos garante que é justamente ali que se encontra a resposta adequada à questão de nossa pertinência a um "mundo"? Não é necessário entender o "eu quis que ele fosse assim" de meu vizinho como a afirmação de uma adequação perfeita entre a realidade e a linguagem?
O mesmo teria acontecido com o jardim descrito por minha mãe, e que ela recebeu do sonho; e ainda que ela tenha tido a impressão de que ele era autônomo, de que surgira por si mesmo, exprimindo a verdade tanto quanto a natureza pode exprimi-la, ele tinha, com tudo isso, de estar vinculado a uma disposição geral da linguagem.
O imperativo "Olhe isto, é uma paisagem" podia ser traduzido por "Veja como a natureza está toda ligada, admire a harmonia que se manifesta aqui". Obviamente, é justo na qualidade de imperativo que tenho de ver o que está diante de meus olhos. E, ao contrário do que exigiria
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uma obra de arte (uma pintura dessa paisagem justamente), a apreciação não é solicitada: é evidente que a natureza é bela. Os critérios são implícitos.
Em virtude dessa gênese que tentei reconstruir, as diferentes dobras da memória estão envolvidas nesse implícito, estratificadas e seladas por numerosos acordos tácitos, nos quais se acumulam as imagens de uma natureza ecô- noma, diversa, rica, forte em sua perenidade, exprimível em termos de razão, em um discurso que vai abandonando pouco a pouco suas pretensões para ceder lugar a uma organização visual, tátil, emocional: a natureza se torna bela, de certo modo sublime, sempre reiniciada em outras figuras. E são principalmente os pintores que assumem essas figuras da natureza, chamadas de "paisagens".
Se, por minha vez, pretendo desdobrar esses implícitos, vou encontrar referências a esses estratos compósitos: toda uma retórica em ação, a tecer o laço necessário entre elementos antigos, dispostos segundo uma gramática, interpretados e geridos por instituições da cultura, da língua, dos costumes, pelos imperativos econômicos que governam não apenas as "coisas" da vida, mas também as maneiras de apreendê-las.