cauquelin, anne - arte contemporânea - uma introdução
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5/14/2018 CAUQUELIN, Anne - Arte contemporânea - uma introdução - slidepdf.com
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ARTIECONTEM
. .
UMAINTRODUC:;AO
--- ------------ ----
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tat;6es atuais em criterios artfs-
movimentos
artista,
velocidade de transmissao.
Questionada, saturada e deslo-
cada, transcendendo 0 espa~o
expositivo classico, a arte exige
do espectador urn novo modele
para sua compreensao.
Em Arle coniemporitnea: uma
introdufao, Anne Cauquelin
mapeia a transformacao dos
. mecanismos da arte gerada por
Marcel Duchamp, Andy Warhol
e Leo Castelli. Dos ready-mades
.as series, dos salOes as galerias,
. da sociedade de consumo a
sociedade de comunicacao, da
obra an espaco da arte, a autora
apresenta uma analise critica
da arte contemporanea e
seus desdobramentos no
p6s-modernismo.
ARTE CONTEMPORANEA
U MA INTRODU<;:AO
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•. . . . . .
ANNE CAUQUELIN
,.ARTE CONTEMPORANEA
UMA INTRODU<;AO
Traducao
REJANE JANOWITZER
Revisao de tradw;ao
VICTORIA MURAT
martinsMa rtin s F on te·s
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r . . . . .
o original desta obra Ioi publicado em frances com 0titulo
Ea r t c c n iem po ram
Copyright © 1992, Presses Universitaires de France, Paris.
Copyright © 2005, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
Sao Paulo, para a presente edicao.
05-6141 CDD-709.04
s U M A R I O
l' edi~aooutubro d e 2 0 05
Tradu~ao
Re i an e Janowi tz c r
Revlsao tecnica
V ic to r ia M u ra tPreparacao
A dr ia na d e Oliveira
Revisao
Eliane Santoro
T e re w G o uv e ia
Produ~ao grMica
G e ra ld o A lv e s
Pagina~ao/Fotolitos
Studio 3 De se n vo lv im e n to E d it o ri al
Impressao e acabamenlo
Yangra f
Introdu<;ao .
I. Modemo ou conternporaneo? .II. 0 dinheiro da arte ..
IU. A arte: um sistema ..
IV. Um obstaculo: a ideia de arte .
9
1113
14
17
P RI ME lR A P AR T E
os REGIMES DAARTE 21
Dados Inrernacionais de Cataloga~ao na Publicacao (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
indices para catalogo sistematico:
1.Arte conternporanea :Seculo 20 : Historia 709.04
CAPITULO I - A arte moderna ou 0 regime
de consumo 23
I. 0 regime de consume ou a sociedade moderna 28
1.Um esquema linear 30
2. Os intermediaries, fabricantes da dernanda 32
II. Os efeitos do regime de consumo no registro da arte. 34
1. Contra a Academia 34
2. Que quer dizer 'liberacdo'? 36
3.0 crftieo-marchand 37
4. 0 critico, juiz do gosto .. 39
5.0 critico vanguardista 43
6.0 produtor: 0 artista...................................................... 46
7.0 consurnidor: diletante, colecionador.............................. 48
Cauquelin, Anne
Arte contemporanea :uma introduca» / Anne Cauquelin;
[tradutora Rejane [anowitzer]. - Sao Paulo: Martins, 2005.-
(Colecao Todas as artes)
Titulo original: L'art contemporain.
Bibliografia.
ISBN 85-99102-18-4
1. Arte modema - Seculo 20- Historia 2. Estetica moder-
na - Seculo 20- Historia L Titulo. II. Serie.
T o do s o s d ir ei to s d es ia e d j~ a o p a r a 0 B r a si l r e se r oad o s a
Lioraria Martins Fontes Editora Lida. prITQ 0 selaMartins.
R un C on se lh eiro & ma lho , 3 30 0 132 5-00 0 S ao P au lo S P Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fa x (11) 3115.1072
e-mail: in lo@mar t in seditom.com.bTh l tp: l lu rww.mar t in sedi tora .com.b r
III. A arte moderna 52
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CAPITULO II - 0 regime da cornunicacao ou a arte
contemporanea ;........................................... 55
I. A ideologia da cornunicacao na sociedade de mesmo
nome 57
1.Rcde........................................................................... 59
2. Bloqueio............ 60
3. Redundancia e saturacao 61
4. Norninacao 61
5. Construcao da realidade...... 63
II. Os efeitos da comunicacao no registro do mercado
da arte 65
1.0 efeito rede 65
2. 0 efeito bloqueio........................................................... 74
3.0 efeito 'segunda realidade'............................................. 79
SEGUNDA PARTE
FIGURAS E MODOS DE ARTE CONTEMPoRANEA .. 85
CAPITULO I - Os embreantes... ... .. .. .. .. .. ... .. .. .. .. .. ... .. .. .. . 87
L 0 embreante Marcel Duchamp (1887-1968) 891.Primeira proposicao: a distincao estetica/arte 91
2. Segunda proposicao: a indistincao dos papeis 96
3.Terceira proposicio: 0sistema da arte e organizado em rede. 99
4. Quarta proposicao: a arte pensa com palavras 101
5.0 transformador Duchamp 102
~. :. . .
'1
\
I
II. 0 embreante Andy Warhol (1928-1987) 106 ~I
1.Urn falso moderno, urn verdadeiro conternporiineo............. 106
2.Warhol's system 109
3.A arte dos neg6cios 117
4.0 transformador Warhol 120
III. Leo Castelli (1907-1999)...................... 121
CAPtruLO II -A atualidade 127
1 . 0 pos-moderno ou a atualidade da arte 128
Il, Distincao entre os diferentes estados da arte atuaI... 133
1. Depois dos embreantes: conceitual, minimalismo, l a nd a r t. .. 134
2. A reacao ou a neo-arte: figura<;ii.oivre,ac t ion pa in t in g body ar t . . 14 4
3.A arte tecnol6gica 151
Conclusao 161
Bibliografia........................................................................ 167
Apendice 169
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INTRODUy\O
o publico, confrontado com a dispersao dos locais de
cultura, com a diversidade das 'obras' apresentadas e seumi-
mero sempre crescente, com 0 nurnero tarnbern crescente
de revistas, jornais, amincios, atraido por cartazes, atirado de
urn lado para 0outro por cnticos de arte, acumulando cata-
logos, parece desnorteado diante da arte contemporanea: e
a minima que se pode clizer.0 mais surpreendente e a boa
vontade e a disposicao desse mesmo publico, sempre pron-to a responder a todas as solicitacoes, perambulando pelas
ruas de Beaubourg ou da Bastilha, com 0convite na mao, in-
cansavel, tentando captar alguma coisa da arte conternpora-
nea. Pouco preparado para esse entendimento, 0publico pa-
rece contar com 0 acumulo de suas experiencias, com urn
certo habito, com seu olhar 'tarimbado', e observa tudo que
lhe e apresentado para ten tar aplicar urn julgamento estetico,
ou, na falta dele, poder ao menos 'se encontrar'.
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10 ANNE CAUQUELIN
De urn lado, de fato 0publico e 'educado' - jaha muitas
decadas vern-lhe sendo incuIcados valores culturais relacio-
nados a uma modernidade ou a urn modernismo necessa-
rio como sinal de elevada posicao cultural. Como uma obri-
gacao civica, uma regra de comportamento adequado, ate
mesmo urn principia de desenvolvimento. as paises de-
senvolvidos sentem-se obrigados, paralelamente ao pro-gresso tecnico-cientffico que os caracteriza, a aderir a alguma
ideia de desenvolvimento da cultura.
De outro, simultaneamente a essa preocupacao rnerito-
ria,0publico esta atento ao interesse comercial das obras que
podem, de urn dia para 0outro, ultrapassar muito os rendi-
mentos geralmente esperados de uma aplicacao financeira.
Essa dupla atracao toma ainda mais cruel a indecisao
na qual0publico se encontra: "Esta obra tern valor? Caso eu
a compre, sera que esse valor vai aumentar ainda mais? Por
que esta aqui e nao aquela la? Devo seguir meu 'gosto'?
Mas, na verdade, qual e ele? au devo seguir 0gosto de ou-
tras pessoas e quais sao, entao, os criterios delas?". Por isso,
na maior parte das vezes,0publico acaba sevoltando para os
valores atestados, consagrados, com base nos prec;:osprati-
cades, porque0artista e 'reconhecido', fazparte da nomencla-
tura e nao se pode ignora-lo sem ser taxado de inculto, E se
a compra esta forade questao, e a conternplacao extatica que
o publico e induzido, em grandes festas consensuais e ritua-
lizadas.E PREClSO tervisto a exposicaodeVanGogh, E PRE-
ClSO ter ido ao Museu Picasso. a rito iniciatico dolaroso
IIIli
ARTE CONTEMPOAANEA: UMA lN1RODUc;:AO 11
consiste em interrninaveis filas de espera, 0 prec;:oa pagar
para se sentir culto.
LMODERNO au CONfEMPoRANEO?
Infelizmente nao se trata, no caso,de arte contemporanea
no sentido estrito do termo - a arte do agora,a arte que sema-
nifesta no mesmo momento e no momento mesmo em que 0
publico a observa.Tao-somente se trata de arte 'modema', se
entendermos por modemo 0seculoXXem gera!.
A arte conternporanea, par outro lado, nao dispoe de
urn tempo de constituicao, de uma formulacao estabilizada
e,portanto, de reconhecimento. Sua simultaneidade - 0que
ocorre agora - exige uma juncao, uma elaboracao: 0aqui-
agora da certeza sensfveInao pode ser captado diretarnente.
Friedrich Hegel no primeiro capitulo da F en cm en oio gia d o espi-
rito, fazia esta constatacao: 0agora ja deixou de se-Io quando
e nomeado, ja e passado; quanta ao aqui , ele exige a cons-
tituicao de urn lugar que 0envolva. Trabalho que, se e feito
sem que 0 saibamos para as coisas da vida cotidiana, exige
uma atencao especial quando se trata do domfnio da arte, na
medida em que as producoes artisticas estao destacadas de
nossos interesses vitais, da urgencia de nossas necessida-
des, e formam uma esfera quase autonorna.
Para apreender a arte como contemporanea, precisamos,
entao, estabelecer certos criterios, distincoes que isolarao 0
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1 2 ANNE CAUQUELIN
conjunto dito 'contemporaneo' da totalidade das produ-
c;6es artisticas. Contudo, esses criterios nao podem ser bus-
cados apenas nos c on ie ud os d as o br as , em suas formas, suas
composicoes, no emprego deste ou daquele material, tam-
bern nao no fato de pertencerem a este ou aquele movi-
mento dito ou nao de vanguarda. Com efeito, a esse respeito,
teriamos ainda que nos defrontar com a dispersao, com a plu-ralidade incontrolavel de 'agoras'. De fato, os trabalhos que
tentam justificar as obras de artistas contemporaneos sao
obrigados a buscar 0que poderia roma-los legiveis fora da
esfera artistica, seja em 'temas' culturais, recolhidos em re-
gistros literarios e filosoficos - dcsconstrucao, sirnulacao,
vazio, minas, residuos e recuperacao -, seja ainda em uma
sucessao temporal- classificada de 'neo', 'pre' , 'pas' ou 'trans'-
16gica, de evolucao bern dificil de manter. A menos que nos
contentemos em classificar par ordern alfabetica as diferentes
tendendas que se manifestam na esfera artistica, sempre obri-
gados a admitir que muitos artistas pertencem, de acardo com
a momento, a muitas dessas tendencies.
Uma estrutura se revel a, pois, indispensavel como con-
tinente, envo1t6rio. Tal estrutura deveria poder, ao mesmo
tempo, operar a separacao entre 0que e e 0que nao e arte
conternporanea e, ademais, reunir suas manifestacoes es-
parsas segundo determinada ardem.
ARTE CONTEMPORANEA: UMA INTRODU~O 13
II. 0 DINHEIRO DA ARTE
,
I
Uma das caracteristicas mais aparentes da relacao que
o publico mantern com a arte conternporanea e a questao,
sempre levantada, de seu valor economico, de seu preco, Se,
com efeito, admite-se que as obras do passado podem per-
feitamente alcancar somas consideraveis - 0velho e sempre
:mais' caro, como no caso dos moveis ditos 'de epoca' -, os
prec;os do contemporaneo parecem fabulosos, exagerados.
Fala-se entao de especulacao, de valor-refugio, de mercado
ficticio. Acusam-se os marchands ' importantes', as galerias,
os operadores da bolsa de todos os rnatizes, As obras, e se
ve ai 0paradoxa mal compreendido, sao cada vez mais nu-
merosas; os rnuseus, as galerias crescem e se multiplicam, e
a arte nunca esteve tao afastada do publico.
Seria 0 caso de se ver nessa acusacao dirigida aos mar -
chands uma reacso a incompreensao suscitada pelas obras?
(Acusacao que se apoiaria no argumento economico para se
recusar a entrar no jogo), ou seria urn mal-estar relacionado
ao fato de as pessoas se verem expulsas do dominic da arte,
desapropriadas de alguma maneira? Trata -se de falta de in-
formacao, de perda das referencias esteticas, au de aplicacao
de criterios mal ajustados as obras, nao pertinentes para a arte
conternporanea, uma vez que refletiriam criterios validos para
as obras do passado? Neste caso tratar-se-ia da adesao do
publico a uma ideologia, a uma ideia convencionada do que
devem ser a arte, 0artista, 0mercado e 0aficionado.
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14 ANNE CAUQUEUN
Parece que todos esses fatores atuam simultaneamente
e cada urn de uma vez para culminar numa confusao maxima.
A conclusao a tirar desse estado de coisas e que 0 piibli-
co se apercebe de urn conjunto, de urn dominic cujos ele-
mentos nao sao separaveis, e nao - como ele desejaria e co-
mo se poderia imaginar que fosse - de obras de artistas de
urn lado e uma rede de distribuicao econornica de outro. Ele
esta diante de urn conjunto complexo cuja articulacao nao
percebe e que, na tentativa de distinguir as obras propostas
a sua apreciacao, nao consegue destacar de urna especie de
grande 'imbroglio' , que percebe confusamente. Esse publico
se sente ludibriado, e nao sao as informacoes - cada vez mais
nurnerosas, porern dispersas e pontuais - fornecidas por. re~
vistas, jornais, catalogos ou trabalhos especializados que po-
dem instrui-Io a respeito desse mecanismo.
III. A A RT E: U M SIST EM A
Contudo, e e urn ponto que e preciso frisar, 0publico
nao se engana quando tern essa visao global. Sua intuicao
esta correta; ha de fa to urn 'sistema' da arte, e e 0conheci-mento desse sistema que permite apreender 0conteiido das
obras, Nao que esse sistema seja pura e simplesmente eco-
nomico, baseado na tradicionallei da oferta e da pracura, nao
que as determinacoes do mercado tenham urn efeito di-
rete sobre a obra, que seria seu reflexo, pois 0mecanisme
compreende da me sma forma 0lugar e 0papel dos diversos
''-
ARTE CONTEMPoRANEA: UMA INrRODU<;:AO 15
agentes ativos no sistema: 0produtor, 0comprador - colecio-
nador ou aficionado - passando pelos criticos, publicitarios,
curadores, conservadores", as instituicoes, os museus, Fonds
Regional d'Art Contemporain e Direction Regionale des
Affaires Culturelles etc.
E urn sistema como esse, em seu estado contemporaneo,
que tentarernos apresentar aqui. 'Estado contemporaneo' sig-
nifica que esse sistema nao e mais 0sistema que prevaleceu
ate recentemente; ele e 0produto de urna alteracao de estru-
tura de tal ordem que nao se podem mais julgar nem as obras
nem a producao delas de acordo corn 0antigo sistema. E jus-
tamente neste ponto que se instala 0mal-estar: avaliar a arte
segundo criterios em atividade ha somente duas decadas e
nao compreender mais nada do que esta acontecendo.
Essa s i tua l,Cao inquieta e intriga certo ruirnero de pesqui-
sadores: sociologos, politicologos, economistas assumem a
analise ate entao reservada a critica artistica, a historia da arte
ou a teoria estetica. 0 divorcio entre a arte contemporanea
• Faz-se necessario estabelecer a diferenca entre a figura do censer-
vador e a do curador. ~ conservador e um funrionario superior encarregado
da guarda, a?ml111~tr~\ao e_co.nseIVa~iio de hens, monumentos e objetos per-
teneen tes a msntuicoes, pubheas ou privadas, como museus, bibl iotecas e tc .
o curador e aquele que responde pela unidade de determinada mos-
t ra o~ ~ceIVoart is tico de uma insti tu icao, mais sob 0ponto de vista hist6rico
e . estetJco do ~ue no que tange as questoes administrativas propriamente
ditas, No Brasil, a palavra 'eonservador' e poueo utilizada e sua fun<;iioe exer-cida P?r diretores de mu~eus e instituicoes. Os curadores tern quase que
exduslvame~te ~a funcao acaderrcca e de definicao de politicas esteticas,
no entanto e rmuto frequente nas instituicoes brasileiras haver urn so indi-
vfduo que desempenhe simultaneamente 0papel de curador e de conser-
vador. (N. de RT.)
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16 AN N E CAUQUELIN
e seu publico torna-se uma questao de Estado - em todos os
sentidos do tenno.
Podemos dassificar esses estudos, a cada dia mais nume-
rosos. segundo seus angulos de abordagem: existem, grosso
modo, tres tipos, que tern por alvo:
1 . A n oc do d e m o de rn id ad e. De que modo a arte contern-
poranea e continuidade ou ruptura em relacao ao que se con-
vencionou chamar de arte modema. 0 proximo passo e de-
finir as nocoes de modemidade, modernismo, arte modema,
vanguard a, pos-modernismo ou arte pos-moderna. Trata-se
de estudos do conteiido dos movimentos artisticos'.
2.0 m er ca do d e a rte . Descricao dos mecanismos em uti-
lizacao, papel do Estado, da politica cultural, dos grandes
marchands , da arte internacional. Trata-se entao de repartir
as funcoes entre produtores e consumidores, de tracar um
quadro dos diferentes agentes e de avaliar seus poderes'.
3. A recepdio . Trata-se de analisar os meios onde a arte
contemporanea (ou nao) e vista. Quem freqiienta quais ma-
nifestacoes e em que numero. Analise de opini6es. Analise
critica da educacao artistica',
1. P o r e x. , Antoine Compagnon. L es c in q p ar ad ox es d e l a m od em ite (Le
Seuil,1990).
2. Philippe Simmonot, DolI'art (Gallimard, 1990); Henri Cuero e Pierre
Gaudibert, Ua r en e d e I 'a r t (Galilee, 1988);Yves Michaud, I 'a r ti st e e f l es c omm is -
saires (lacqueline Chambon, 1989); Emmanuel Wallon (org.), Tartisie, le prince,
p o uv o ir s p u bl ic s ef creation (pUG, 1990); 'La mise en scene de l'art contem-
porain', Co ll o qu e d e B r ux e ll es , 1989 (Les Eperonniers, 1990); 'Art contempo-
rain et musee', C ah ie rs du M us ie N atio na l d'A rt M ode me , n~ 18 (1989).
3. Cf. especialmente 'Publics et perception esthetique', ern Raymonde
Moulin (org.), S o ci o lo g ie d e r a rt (Documentation Francaise, 1986).
ARTE CON TEMPOR i\ NEA : UMA INTRODU c ,: AO 1 7
Conforme 0caso, 0motivo dessa modificacao e atribuido
aos proprios artistas (que seguem ou contestam 0atual movi-
mento de dispersao), aos especuladores e aos intermediaries
(que pervertem 0mercado), a politica estatal (que tem derna-
siado au insuficiente poder) e ao desconhecimento relacio-
nado a uma educacao deficiente da parte do publico.
N. UM OBSTAcULO; A IDEIA DE A RTE
Ao simples enunciado dessas explicacoes em forma de
censura ou de Iastima, percebe-se que a arte em sua forma
contemporanea coloca um doloroso problema para tad os,
para 0publico, mas tambern e talvez mais ainda para os que
tern a rnissao de analisa-Ia.
Podemos nos perguntar se a arte nao conternporanea
- a do seculo X IX e do principio do seculo XX- tinha quali-
dades tao fantastic as do ponte de vista da inovacao, do status
economico e do reconhecimento do publico, a ponto de pare-
cer oportuno, ate mesmo necessario, coloca-la sobre um pe-
destal e chorar seu desaparecimento.
E provavel que estejamos saturados de certas ideias re-
ceb idas que supomos universais e duradouras, esquecendo as
diferentes formas e os diferentes status aos quais a obra e 0
artista estiveram submetidos nos diferentes periodos da his-
toria, A ideia, por exemplo, de uma continuidade ao longo de
uma cadeia temporal marcada pela inovacao: a velha nocao
de progresso, que, embora em geral contestada no dominic da
I
i
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18 ANNE C AUQU EL IN
arte, prossegue perseveranternente seu caminho (como pro-
va: as vanguardas, a nocao de progressao), a ideia de arte em
ruptura com 0poder instituido (0artista contra 0burgues, os
valores da recusa, da revolta, 0exilado da sociedade), a ideia
de urn valor em si da obra, valendo para todos (a autonomia
da arte, desinteressada, suspensa nas nuvens do idealismo). a
ideia de comunicabilidade universal das obras baseada na in-
tuicao sensivel (a questao do gosto, ao qual todos tern acesso),
a ideia do 'sentido' (0 artista da sentido, abre urn mundo, ex-
poe a vista a verdadeira natureza das coisas, "a natureza se
serve do genic para dar suas regras a arte", dizia Kant).
Essa constelacao de opiruoes feita de elementos hete~
roclitos, herdada em parte das teorias do seculo XVIII (Kant,
Hegel e 0romantismo), em parte do seculo XX (a critica so-
cial e a arte para todos). esta solidamente enraizada e for-
ma uma tela, uma mascara atraves da qual tentamos apreen-
der em vao a contemporaneidade'.
Precisamos, portanto, atravessar essa cortina de fumaca
e tentar perceber a realidade da arte atual que esta encoberta.
Nao somente rnontar 0panorama de urn estado de coisas-
qual e a questao da arte no momenta atual - mas tambem
explicar 0que funciona como obstaculo a seu reconhecimen-
to. Ern outras palavras, ver de que forma a arte do passado nos
impede de captar a arte de nosso tempo.
4. a. Ernest Kris e Otto KUTZ,I :im a ge d e l 'a r ti st e (Ed. Rivages, 1 97 9) . O s
autores mostram a que ponto essa imagem Ii fabricada pelo rumor, pelas
narrativas mantidas, e a que ponto ainda estamos ligados a sua invencao.
''-
ARTE C ONT E MPOAANE A : U MA INTRODU e ,: Ao 19
Ora, para nos, 0passado, no que diz respeito a arte, foi
ontem, e a arte que dizemos 'moderna' e sobre a qual acha-
mos que fazemos justas apreciacoes, que reconhecemos
como arte verdadeira - bastante orgulhosos, por sinal. de
possuir suficiente cultura para tal.
Sem duvida, e essa arte moderna que nos impede de ver
a arte contemporanea tal como
e .Proxima dernais, ela de-
sempenha 0papel do 'novo', enos temos a propensao de que-
rer nela incluir a forca as manifestacoes atuais.
Tambern dedicaremos a Primeira Parte deste trabalho a
esbocar os dois mundos confrontados, 0moderno e 0con-
ternporaneo, seus mecanismos de producao e de distribui-
r;ao - descricao de sistemas - antes de abordar, na Segunda
Parte, a analise dos movirnentos que percorreram e com fre-
quencia anunciaram, no interior do dominio artistico, 0novo
estado da arte - analise do que podemos chamar de 'em-
breantes', palavras de ordem e injuncoes, acontecimentos
espetaculares ou sugestoes insidiosas que abrirarn 0carni-
nho para uma nova concepcao da relacao entre a arte e 0
publico, assim como as reacoes a essa perturbacao. Por fim,
tentarernos fazer urn resume das atividades artisticas con-
ternporaneas, levando em conta essa grade de Ieitura,
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PR IM EIRA PA RTE
OS REGIMES DA ARTE
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CAPITULO I
A ARTE MODERNA OU 0 REGIME DE CONSUMO
Os termos 'rnoderno', 'modernismo' e'modernidade'
suscitam muitas interpretacoes, E bastante diversas. Parece
entao necessaria definir seu usa no dominio do exerdcio
onde se pretende utiliza-los, caso se queira manter urn pro-
p6sito coerente. A opcao que sera adotada sera a da clareza,
mesmo correndo 0risco de simplificacao, Confiar na lingua
em seu emprego habitual parece efetivamente uma estrate-
gia iitil, pelo fato de ela perrnitir urn acesso 'publico' it sig-
nificacao e nao requerer referencias 'privadas', que s6 trazem
beneficios ao estreito cfrculo dos historiadores da arte e dos
criticos e te6ricos informados 1,
1. 0 mimero significative de trabalhos e artigos de revistas dedicadosa estabelecer as nocoos de moderno, modernisrno, rnodernidade e p6s-mo-
demismo atesta a dificuldade da analise. Por ex: Henri Meschonnic, Moder-
n ite , m od em i te (Verdier, 1988); Le s C ahiers du M usee N ationa l d'Art M odem e,
n~ 19-20 (junho de 1987) e n'' 22 (dezembro de 1987); Antoine Compag-
non, Les c inq para doxes de la m odern ile (Le Seuil, 1990),
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24 ANNE C AU QU E LIN
A maior parte dos teoricos de arte 'modema' se inte-
ressa pelo conteiido das obras, pelo reparte das tendencias
no interior dos movimentos que estao analisando e pela ava-
Jia<;aodas caracteristicas que os marcam. E desse modo que 0
termo 'modemismo' e , para 0 grande enrico e teorico Clement
Greenberg e para todos as criticos e historiadores que 0 se-
guem (as 'greenberguianos'), oposto ao termo 'rnoderno', que
se tom a por sua vez tarnbern distinto do termo 'modernida-
de', se e que nao chega a ser, ao final de tudo, contrario, Para
Greenberg, com efeito, 0rnodernismo e a radicalizacao dos
traces da arte moderna, carregando consigo as qualidades de
abstracao de pureza abstrata, de abstracao formal, que tendem
a dar a arte uma autonomia total, deixando bern arras dela as
referencias exogenas, extrapictoricas, que ainda caracterizam
a arte modema. 0 que nos chamamos de modemidade (ou
nossa modernidade) estaria entao ao lado desse movimento
de autonomizacao, de auto-referenciacao da arte ', deixando
de lado au excluindo qualquer outra significacao e, sobretudo,
a term a 'modemo' aplicado a arte. Com toda certeza, a neces-
sidade dessa separacao entre term os tao vizinhos escapa a
maior parte do publico nao-especializado,
Deixando de lade as analises de conteiido, 0 que nos
interessara e uma visao mais global da significacao.Assim, po-
deriamos afirmar que modernismo, de acordo com a lfngua,
2 . C lem en t G r ee n be rg , Ar t e t c u lt u re . E s sa is c r it iq u es ( B o st o n , 1 96 1, trad,
franc, M a cu la , 1 98 8) . C f. t ar nb em a s p ri me ir os t ra ba lh os d e R o sa lin d K ra us s
e d e M ich ae l F rie d.
ART E C ONT E MPOAANEA : U MA IN IRODUc ;A o 25
designa urn comportamento, uma atitude diante das inova-
<;6esculturais e sociais, E 'rnodemista' e aquele que e 'a favor'
da novidade, seja em que dorninio for, como se pode ser,
contrariamente, passadista. 0 modernista e aquele que gosta
de estar a par dos modismos, adota-os com entusiasmo, pro-
paga -os e contribui para fabrica -los.
Par designar urn comportamento deixado ao Iivre-arbf-
trio de cada urn, esse termo nao vai nos interessar aqui,
A modemidade , termo abstrato, designa 0conjunto dos
traces da sociedade e da cultura que podem ser detectados
em urn momenta determinado, em uma determinada 50-
ciedade. A esse titulo, 0termo 'rnodernidade' pode ser apli-
cado da mesma forma a epoca que nos e contemporanea,
agora em 1991 ('nossa modemidade e 1991'), como poderia
ser aplicado a qualquer outra epoca, do momenta em que a
adesao a cultura dessa epoca fosse reivindicada. Assim, ha
uma modernidade de 1920, de 1950 ou de 1960 etc. A uni-
ca observacao a ser feita aqui sobre a emprego do termo e
de ordem socio- historica: foi so recenternente na historia que
a 'modernidade' passou a ser reivindicada por certos gru-
pos de atores sociais, Marca de uma adesao a 'sua' epoca no
que ela tern de inovadora, ou seja, de critica diante dos va-
lores convencionais, essa reivindicacao e sobretudo propria
de intelectuais, de artistas e de alguns formadores de opiniao,
Dentro dessa otica, 0modele classico da querela entre An-
tigos e Modernos no seculo XVII continua valido. Digamos
que esse modelo, a partir do seculo XIX,tende a se tomar nor-
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26ANNE CAUQUELIN
mativo. Hi urn imperativo de modemidade do qual seria im-
proprio alhear-se. Sob esse aspecto a 'modemidade', seja qual
for seu conteiido, e a arma par excelencia do modemista. E
preciso ser moderno, sob pena de ficar demode . E 0mesmo
que dizer que e preciso compreender esses dois termos como
pertencentes aos 'modos' de vida, a moda.
Se a cronologia da nocao' pode englobar todos os pe-
riodos - desde 0termo modernu s referido em baixo latim (no
seculo V) e enraizado em uma tradicao mais antiga ainda,
atravessando a ldade Media, 0Renascimento e 0seculo XVII,
com a ideia de uma temporalidade sempre renovada e de
uma criacao continua, opondo 0passado ao presente, mar-
cando de alguma maneira a fronteira -, foi somente apes Le s
cur io s i te s e s the t iq ue s e L e p ein tre de fa vie m od em e, de Charles
Baudelaire (1859), que se convencionou ligar 'modemidade'
a 'moda'.Atribuindo a 'moda' um valor especilico de tempo-
ralidade efernera, de circunstancial- "Oestacar da moda 0que
ela pode conter de poetico no historico, retirar 0eterno do
transitorio" -, Baudelaire acentua a alcance estetico de urn
olhar 'modal', de urn olhar no presente que tern origem nas
modificacoes impostas pelas condicoes sociais e historicas
ao artist a, ao pensador, Trata -se de colocar em evidencia a
necessidade - dupla e, por 1SS0mesmo, ambigua - de 'ade-
rir' ao presente, a moda: "A modemidade e 0 transitorio, 0
3 . Cf. a belfssimo estudo de Hans Robert [auss, 'La rnoderni te dans
la tradition litteraire et la conscience d'aujourd'hui', em Pou r u n e e s th fi iq u e
d e l a r ec ep ti on (Gallimard, 1978).
ARTE CONTEMPoRANEA: lIMA INTRODU~O 27
fugidio, 0contingente"; e de se destacar deles para permitir
o advento "da outra metade da arte, 0eterno e 0imutavel" ,
do que por definicao e nao-essencial. "Mergulhar no desco-
nhecido para encontrar 0novo." 0 novo, au a modemidade,
essa e a partir de agora a palavra de ordern da estetica,
Assim ligados, 0 conceito de modemidade e a pratica
estetica fundem -se no que vai se tamar a a rt e m o dem a.
Nos nos serviremos entao do termo modemo para qua-
lificar certa forma de arte que conquista seu lugar (ao mesmo
tempo que adota 0nome) por volta de 1860 e se prolonga
ate a intervencao do que chamaremos de arte contempora-
nea, Esse posicionamento historico, ligado a denominacao
'modemo', bastara par enquanto para sugerir os conteudos
nocionais que acabamos de mencionar: 0gosto pela novi-
dade, a recusa do passado qualificado de academico, a po-
sicao ambivalente de uma arte ao mesmo tempo 'da moda'
(efemera) e substancial (a etemidade). Assim situada, a arte
modema e caracteristica de urn periodo econornico bern de-
finido, 0 da era industrial, de seu desenvolvimento, de seu
resultado extrema em sociedade de consumo.
Modemidade, artee sistema industrial- Essa situacao
gera certas proposicoes, tais como 0 engajamento progres-
sivo no circuito do consumo de rnassa, 0 resvalar do status
de obra de arte em direcao ao de 'produto' e, paralelamente,
a transformacao (ou 0 ' travestimento') do produto industrial
em produto estetico. Tudo que e produzido deve ser consu-
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28 ANNE CAUQUELlN
mido, para ser renovado e consumido novamente. E essa oni-
presenc;a do consumo que rege a arte moderna, por excesso
ou por falta, por adesao au por recusa. Importa, pais, dese-
nhar em grandes traces 0 regime de consumo geral para po-
sicionar em seguida os atorcs do campo especffico da arte: ar-
tistas, Intermediaries e publico.
Nao se trata aqui de pretender que as obras reflitam uma
realidade social determinada nem que 0aspecto economico
seja 0grande determinante, mas tao-somente que a circula-
c;aodas obras, as lugares ocupados pelos diferentes atores do
campo artistico e a recepcao das obras pelo publico estao li-
gad os, por urn lado, a imagem da arte e dos artistas que e
reconhecida como valida em urn dado momenta e, por ou-
tro, aos mecanismos que colocam essa imagem em circula-
C;ao,que a propagam e a tornam eficaz.
Mas as posicoes desses atores, responsaveis pela aura da
obra, por seu poder de seducao e, portanto, por seu valor tan-
to no plano do julgamento estetico quanta no plano econo-
mica, sao elas proprias dependentes daquilo que uma socie-
dade atribui como valor a sua producao, da maneira pela qual
essa sociedade pretende utiliza-la, do Iugar que seu sistema
hierarquizado de distribuicao de bens estabelece para a arte.
1. 0 REGIMEDE CONSUMO OU A SOCIEDADE MODERNA
Vemos ainda mais c1aramente as caracteristicas da so-
ciedade do final do seculo XIXate as anos 1980 por estarmos
'.-
ARTE CONTEMPoRANEA: UMA INTRODU<;Ao 29
afastados. 0 efeito do distanciamento nos permite resumos,
ou mesmo anamorfoses esclarecedoras: e assim que a 'so-
ciedade do espetaculo', que produziu os grandes momentos
das geracoes de 1960, conta, a pos te r io r i, a verdade a respei-
to de urn seculo de consumo. As reacoes dos situacionistas
esclarecem a fundo os mecanismos adotados e explorados
bern antes da crise de 1968. Acontece 0mesmo com a 'so-
ciedade de consume". Consorne-se produto sob a forma de
espetaculo, consomem-se as signos espetaculares como se
'fossern produtos e os produtos como signa do consumo dos
produtos. Em suma, consome-se. Por que? Como? Porque e
preciso que a mercadoria circule, que ela escoe; a teoria dos
fluidos e, no caso, a mesma que explica a economia: 0dinhei-
ro 'corre', leva consigo as objetos que estao a deriva, carrega-
dos por esse movimento lfquido. Sempre os mesmos e sem-
pre diferentes. "Nao se entra no mesmo rio duas vezes.?"
o movimento de con sumo que se generaliza provern
dessa tensao entre 0mesmo eo diferente, entre 0 escoa-
mento do rio e 0que se pode dele reter, para logo em segui-
da deixar fluir. E de novo, no caso, retomar a dupla impo-
sicao da 'modernidade' tal como foi definida por volta de
1860: seguir 0 fluxo efernero e rete-Io, como a ampulheta
que eternamente deixa filtrar a areia-instante e conta 0tem-
po-duracao,
4. Jean Baudrillard, La soc ie te de consommation (Gallimard, 1970).
5. Heraclito, frag. 91 (trad. Bollack),
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30 ANNE CAUQUELIN
Contudo, para que a passagem da producao ininterrup-
ta de novidade a seu consumo seja feita continuamente ha
necessidade de mecanismos, de engrenagens.
Uma especie de grande maquina industrial, incitante,
tentacular, entra em acao, 1550 se chama 'rnercado', Mas bern
depressa a simples lei da oferta e da procura segundo as 'ne-
cessidades' nao vale rnais: e precise excitar a demanda, ex-
citar 0acontecimento, p r ov o c a- lo , e s pi c ac a -I o , f a br ic a -I o , pois
a modernidade se alimenta.
1. Urn esquema linear
ABana l i s e s que mencionamos discriminam muito bern
as derradeiras etapas da transforrnacao do regime industrial
classico em regime de puro consumo. No entanto, 0movi-
menta comeca a nascer a partir dos anos 1850, com a aumen-
to do poder da media e pequena burguesia. Nao nos esqueca-
mas de que 0final do seculo XIXe toda a primeira metade do
seculo XXforam tomados pelo debate sobre as teorias econo-
micas que servern de base aos movimentos sociais, par reivin-
dicacoes a respeito do trabalho, do salario justo, do direito a
expressao, em que valor de uso e valor de trocaconfrontam-
se em conflitos sujeitos a regras. Enquanto colapsos financei-
ros e especulacoes nas bolsas de valores seguem seus cursos,
uma classe media emerge lentamente e estabiliza seus gos-
tos, seus comportamentos, suas opini6es.
o valor do progresso (progresso cientffico e tecnico, mas
tambem progressao na escala social), do trabalho, que da
ARTE CONTEMPoRANEA: UMA INfRODu<;:Ao 3 1
acesso a propriedade, 0aumento da importancia da educa-
<;ao- garantidora de 'situacoes' futuras - e das boas manei-
ras (de que fazem parte tambem 0 bom gosto e a cultura),
tudo concorre para desenhar um modelo que segue estreita-
mente 0 esquema tripartite bern conhecido: producao-dis-
tribuicao-consumo. Esse esquema diz respeito nao somente
aos bens materiais mas tam bern aos bens simbolicos. Pro-
dutores: os fornecedores de materias-primas, os industriais
(grandes e pequenos), mas tambem os educadores, os in-
telectuais (cientfficos au literarios), os artistas, Distribuido-
res: os comerciantes, negociantes, marchands . Consumidores:
todo 0mundo. Sem excecao - pois mesmo 0 pobre, ate 0
r ruseravel , consome alguma coisa. Em urn sistema como esse
as posicoes sao claras e bem definidas, e se nem todos en-
contram seu lugar, ao menos as que encontram estao bern
,encaixados'. E ainda necessaria que esse equilibrio possa
ser mantido. Para isso, 0 consumo dos bens deve no mini-
ma engolir a producao e, melhor ainda, devolve-lao Nada de
tempo marta. E a velocidade continua, sem interrupcao desas-
trosa para a equilibria do conjunto que e. aqui, a lei. Nos
dais extremos da cadeia, producao e consumo Iancam-se um
desafio permanente. Eles sao necessaries um ao outro, pois,
na qualidade de peca da mecanica, 0consumidor e pelo me-
nos tao necessario quanta 0produtor; e um cliente, urn mem-
bro da familia, quer esteja atualmente consumindo, quer seja
apenas virtual.
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32 ANNE CAUQUELIN
2. Os intermediaries, fabricantes da demanda
Vemos se instalar uma circularidade na continuidade li-
near do esquema, a ponto de ser possivcl pretender que a pro-
prio consumidor, em certo sentido, tambern 'produz': produz
demanda, a qual e produzida par sua vez pelos intermedia-
r ios-marchands . Estes se encarregam da 'propaganda', provo-
cacao a compra, incitacao ao consumo. 0 produtor e 0 in-
termediario beneficiam -se disso. Se cada um tern seu lugar,
todavia todos se encontram para fazer girar 0sistema, na me-
dida em que sao, urn de cada vez, produtores e consumido-
res: estao unidos pela maquina. E perfeitamente concebivel
que essa maquina possa se desreguIar, enlouquecer, que os
consumidores nao sejam suficientes para a tarefa de absorcao
que lhes compete, e que logo a simples propaganda se trans-
forme em sistema de publicidade, inchando assim 0mimero
de intermediaries (eles se tornaram 'rnediadores'), por sua
vez especializados em diferentes funcoes - do estudo de mer-
cado as campanhas de venda. 0 esquema se complica, os al-
vos se multiplicam: jovens, velhos, aposentados, executivos,
operarios, maes de familia ou solteiros exigem tratamentos
diferentes; a publicidade visa, com uma precisao rnaniaca,
a grupos cada vez mais estreitos, enquanto 0mimero glo-
bal de consumidores cresce.
Na distribuicao dos papeis, 0 Iugar do interrnediario,
daquele que faz a ligacao entre producao e consumo, torna-se
predominante. Compete a ele ativar a demanda, introdu-
''-
A R TE C ON T EM P oR A NE A : U M A I NT RO DU <;: AO 33
zir 0 ternpero picante que torna dcsejaveis os bens; compe-
te a ele escolher as alvos propicios, fragmenta-Ios, dirigir
assim 0escoamcnto da mercadoria, provocando entao uma
producao de acordo com a fabricacao das famosas 'neces-
sidades'. Essas 'necessidades', ja que e precise. vao encontrar
urn campo particularmente propicio a renovacao: 0 dominic
da cultura, os bens 'simbolicos'i Aqui, eo intermediario queinstitui a regra, fomece seus criterios, transforma -os, reno-
vando assim os rnodelos para esse tipo de necessidade. Em
suma, parcelamento das grandes concentracoes economicas,
multiplicacao dos pontos de venda e dos intermediarios, frag-
mentacao da clientela e, paralelamente, acesso ao consumo
mais ample, consumo que, por sua vez, refere-se tanto aos
bens materiais quanto aos bens simbolicos, como signos do
sucesso social. Ou ainda como simples signos de uma ade-
quacao a logica do consumo, ou seja, de uma adequacao de
todos as consumidores ao sistema de troea geral que e tam-
bern troca social consumada".
E nesse contexto que convern situar 0que diz respeito
a arte moderna. sua ernergencia e coristituicao num siste-
ma que funcionara durante uma centena de anos segundo
esse esquema.
6. Jean Baudrillard, P ou r u ne c ritiq ue d e l'e co no mie p olitiq ue d u s ig ne
(Gallimard,1972).
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34 ANNE CAUQUELIN
II. as EFEITOS DO REGIME DE CONSUMO
NO REGISTRO DA ARTE
1.Contra a Academia
Nao e par acaso que se situa a inicio da arte moderna
por volta de 1860. Com efeito, 0 fim do seculo XIX registra
o recuo da hegemonia da Academia, instituicao destinada a
gerir a carreira dos artistas, concedendo prernios, gerando
encomendas. Por que esse reeuo? Em vista do desenvolvi-
mento industrial que sucedeu, com 0 Segundo Imperio, a
urn periodo conturbado. 0 enriquecimento da classe bur-
guesa provoca uma afluencia de compradores potenciais,
ao mesmo tempo que os pintores reivindicam urn estatu-
to menos rigidamente centralizador, menos autoritario -
liberando-os da imposicao do Salao de Paris, corn seu juri
reeonheeendo a merito das obras, ou excluindo das paredes
os pintores que nao agradarn. Reivindicacao de urn sistema
mais livre, mais maleavel, do direito a exposicao, Como re-
sultado, 0salao e dec!arado 'livre' em 1848, e 5.180 telas sao
apresentadas, em vez das 2.536 exibidas em 1847 - uma vez
e meia 0mimero alcancado no ano anterior. A partir de 1850,
cerca de 200 mil telas sao produzidas por ano. obras de eerea
de 3 mil pintores reunidos em Paris e de mil outros traba-
Ihando no interior. Um crescimento consideravel,
Porern, diante dessa multiplica~ao, 0sistema acadernico
oferece apenas uma iinica escola - a Belas-Artes -, urn iini-
co Salao, 0de Paris, urn tinico juri (mesmo que os membros
•
'.-
ARTE CONTEMPoRANEA : l IMA INTRODU (, 'AO 35
mudem frequentemente) submetido as mesmas imposicoes
e pressoes, alguns prernios, meda lhas e hor s - concour s que
pennitem 0 reconhecimento e a obtencao de encomendas
do Estado.
A ausencia das at ividades econornicas das quais a Acade-
mia Real havia muito se desobrigado doravante se faria sentir
de forma muito cruel. 0hotel Drouot era 0 iinico recurso da
estrutura acadernico-governamental que permitia vender as
obras de arte aos individuos, Ademais, a maior parte das ven-
das por lei lao ali organizadas era de antigos mestres ou de an-
t iguidades. 0 sis tema academico nao soube nem desenvolver
nem cultivar os diversos mercados potenciais que existiam
dentro de um publico aumentado de compradores, assim como
tambern nao soube, na mesma proporcao, encorajar a ident ifi-
cacao das individualidades artisticas com esses mercados',
Outra falha, aquela manifestada pela contradicao entre
duas crencas paralelas e opostas: a crenca dos pintores na
necessidade de uma instituicao oficial, dotada de poder de
julgamento 'serio', e a crenca no julgarnento de urn publi-
co, do qual dependem a reputacao e a venda das obras.
Resposta a essas contradicoes? A especializacao dos sa-
lees e sua dsscentralizacao. Ern outras palavras, a abertura de
urn mercado independente: 0 'sistema marchand- en t i co ' s .
7. Harrison e Cynthia White, LA ca rr ie re d es p e in tr es au XIX' s iec le, 1%5
(trad. franc. Flammarion, 1991), p. 157.
8. Idem, ibid.
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3 6 ANNE CAUQUEL IN
2.Que quer dizerIiberacao'?
A 'liberacao' que a arte modcrna pretende perseguir
diante do sistema de arte acadernico esta ligada ao libera-
lismo economico, que e a marca de urn regime de producao e
de consumo. Contudo, essa libera~ao da arte nao significa a
reruincia a algum apego aos valores seguros do sucesso ofi-
cial. 'Contra a Academia' e uma palavra de ordem que re-
sulta mais da constatacao da impotencia do sistema em gerir
o dominic da arte e dos artistas do que de uma recusa dos
valores atestados e defendidos por esse sistema.
Com efeito, 'sucesso' no sistema academico significava
reconhecimento, confirmacao e, portanto, dinheiro. Se 0Sa-
lao anual e seu juri nao eram mais capazes de realizar a tare fa
de considerar aceitavel ou inaceitavel urn mimero crescen-
te de artistes, era entao necessario que alguma instituicao.
nesse caso nao-oficial, se encarregasse de assegurar uma fun-
~ii.oidentica: 0reconhecimento do taIento e a rernuneracao.
Os valores permaneciam as mesmos, simplesmente sua dis-
tribuicao mudava de maos, De agora em diante passavam a
ser, entao, paralelamente ao Grande Salao e as suas deci-
sees, assunto dos orgaos privados. Passavam as rnaos dos
mar c hand s , dos criticos (seus preciosos auxiliares) e dos com-
pradores (seu alvo).
As exposicoes acontecem a margem dos locais oficiais:
Courbet eManet tern seu proprio pavilhao na ExposicaoUni-
versal de 1867.Os impressionistas decidem reunir-se na casa
I.'-ARTE COJ> . .' TEMPoRANEA: UMA Th .' TRODUc ;:AO 3 7
de Nadar (1874),de Durand-Rue] (1876),depois em um local
da rna Le Peletier (1877).0 dinarnismo desloca-se progres-
sivamente na dirccao do empreendimento privado, das 50-
ciedades como ados aquafortistas (1872)ou das galerias de
exposi<;,aode marchands como Durand-Rue]".
3.0 critico~marchand
Uma vez que 0Estado nao podia mais absorver as en-
comendas, outro publico devia substitui-lo, Mas, para isso,
era preciso que ele fosse informado e que urn movimento se
delineasse na opiniao publica em favor dessa margem cres-
cente de pintores 'recusados' ou simplesmente deixados de
lado peIo sistema academico. Essa tarefa vai ser levada a cabo
por urn personagem ate entao 'influente', mas cujo papel
era acompanhar com seus comentarios+ apresentar, apoiar
ou vituperar - detenninado artista ou detenninada exposi-
~ao, e que vai agora ser 0elo indispensavel a circuiacao das
obras: 0critico.
De escritor, de jornalista, ate mesmo de novelista ja em
atividade e exercendo alguma influencia sobre seus leitores,
o critico se torna urn profissional da mediacao junto de urn
publico muito maior: 0dos aficionados da arte, ou dos sim-
ples curiosos. Ele 'fabrica' a opiniao e contribui para a cons-
9. La p rom en a de d u c ri ti qu e i nf lu en t: anthologie de la critique d'art en
France, 1850-1900, textos reunidos e apresentados por Jean-Paul Bouillon,
NIcoleDubreuil-Blondin.Antoinette Ehrard, Constance Naubert-Riser (Ha-
zan, 1990),p. 100.
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38 ANNE G\UQUELIN
trucao de uma imagem da arte, do artist a, da obra 'em geral'
- e de determinado artista au grupo de artistas ao qual se
ligara especialmente.
As duplas se formam, au melhor, as trios: marchands
com seus crit icos, artistas com seus marchands e os criticos que
os ap6iam. Njio se tratara mais de apoiar urn grupo de opo-
sicao em conflito com os oficiais, sistema de duas vozes opos-
tas, mas de atuar habilmente em urn mercado aberto, e de
encontrar 'seu' artista ou 'seu' grupo no qual apostar sua re-
putacao de critico. Pois sao os criticos que vao nomear os mo-
vimentos e, nomeando-os, irao constitui-los como tal.
Sabe-se, por exemplo, que 0termo 'impressionista' foi
lancado como urn insulto par certo Louis Leroy, em urn ar-
tigo do jomal frances Charivari de abril de 1874, a respeito
de uma pintura de Monet, I rnpressiio : so l nascen te .Adotado co-
mo desafio, a vocabulo serviu em seguida de bandeira para
todo a grupo.
Assim, 0 papel do critico e, doravante, 0 de 'colocar'
urn artista, seja integrando-o a urn grupo de oposicao, seja
isolando-o como figura singular e, portanto, original . Origi-
nalidade compensada - como seria de esperar - pelo trata-
menta do comentario que mediatiza seus efeitos. Isso porque
'coloca-lo: em sua prasa jornalfstica au em seus escritos e
atrair a atencao do publico e tambern vende-lo. Por outro
lado, quando a critico faz 0artista se tamar conhecido, se
faz conhecer tambern, Ele tern necessidade desse reconhe-
cimento uma vez que, contrariamente aos escritores ja co-
. ... . .
ARTE CONTEMPO~EA: UMA INTRODU<;:AO 39
nheddos que comentam este au aquele acontecimento ar-
t15tico, ao lado au alern de seu trabalho habitual, 0 critieo
mediador deve se exibir para existir, Ele se mostra, entao:
escreve nos jomais especializados.
Uma dezena de peri6dicos especializados em arte em
1850, mas ja cerca de 20 em 1860. Scm contar os jornais
diaries, com sua secao 'Arte', e as revistas existentes, como
a R ev ue de s D eu x M on de s, que dedicam paginas aos 'Saloes',
Em 1859, Charles Blanc funda a Ga ze tt e d es B e au x- Ar ts , mas
a partir de 1861 sao incontaveis os lancamentos: C o ur ti er A r-
tis tiqu e, L a R evu e F antaisis te, L a C hro niqu e des A rts e t de la C u-
r io siie , P etit J ou rn al, N ain J au ne .
Em 1882, 0desligamento do Estado da organizacao do
Salao annal e a constituio;:ao da Sociedade dos Artistas Fran-
ceses, a partir de entao encarregada da gestae daquele even-
to, dao ainda mais importancia ao papel do critico, a iinico
habilitado nesse momenta a distribuir louvores e censuras.
4. 0 critico, juiz do gosto
Entretanto, nao se pode acreditar que v a emergir uma
nova maneira de julgar de uma 56 vez; que, pela criacao a
margem da Academia - e numa especie de oposicao a ela -
de urn mecanismo de apresentacao das obras e de fixacao do
prec;o destas, os valores atribuidos van mudar bruscamente.
Tampouco a crit ico, nova estrela ascendente no firrnamento
da arte, vai revolucionar subitamente 0jogo. Na qualidade de
intermediario entre 0artista e 0publico que tenta conven-
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40M'N"E CAUQUELIN
cer; 0eritico deve se manter bern proximo dos valores reco-
nhecidos anteriormente. Na verdade, ele substitui 0juri dos
saloes, tom a 0 Iugar dele. Vai, portanto, promover durante
algum tempo os mesmos temas e a mesma hierarguia en-
tre os sujeitos gue a Academia prornovia. Em urn primeiro
mom en to, triunfa ainda a dassificac;:ao em grande pintura
mitologica, nus, retratos. A paisagem, antes de se tomar he-
gemonlca, emerge lentamente como tema valido, mas per-
manece ligada as figuras que funcionam como 'motivo',
Millet, Breton ou Bastien-Lepage mantern 0 interesse por-
que nao renunciam ao motivo, enguanto sao mantidos afas-
tados Pissaro, Manet ou Renoir.
Em rneio a esse aciimulo de obras e diante da afluencia
do publico gue chega curioso as exposicoss, e preciso cada
vez rnais separar, distinguir, hierarguizar. 0 sistema dessas
escolhas resiste as novas 'figuras' gue os pintores propoern
ao olhar, A critica marca a cadencia, nao cede facilmente, se-
gue com atraso agueles eujas obras deve promover. Entre-
tanto, opera-sa a modifieac;:ao em duas frentes:
- A existencia de artistas independentes obriga 0eritico
a escolher seu campo, a afirmar suas posicdes, Seus julga-
mentos de valor nao mais dirao respeito apenas a escolhapeIo pin tor deste ou daguele 'tema' e ao tratamento mais ou
menos bem-sucedido gue ele deu a obra, mas estarao rela-
donados a sua e sco lh a i deo16g ic a . Ele e a favor ou contra as
movimentos 'de oposicao'? Ele vai au nao vai se inscrever
como ator do mercado livre? Em urn ou outro caso, 0estilo
de suas proposic;6es sera necessariamente diferente.
ARTE COI\TIMPORA:''':EA: U~1A INIRoou(Ao 41
- Se ele decide entrar no jogo 'livre', a simples descri-
c;:aoliteraria, a qual as obras com temas se prestavam ate en-
tao, deve ceder diante da apreciacao da forma plastica, 0 cri-
tico transforma-se em mestre de atelie, emite julgamento
sobre urn esboco, urn molde, urn efeito de iluminacao.vai mais
adiante no detalhe da obra. E assim ele se torna, aos olhos
do publico nao-iniciado, urn verdadeiro profissional que sabe
do que esta falando. 0 [ovem escritor conquista assim suas
posic;:6es e sua notoriedade: os riscos econornicos e a reno-
vac;:aodas esteticas permitem-lhe se singularizar.
A escolha inicial, que e 'politica' au ideologica, traz com
ela uma o br ig a( ii o d e e st il o. Na medida em que a critico se ve
obrigado a romper com a tradicao classica, academica, de
dcscricao de temas (os novos pintores que escolhe defender
nao se fixam em temas), ele se ve necessariamente colocado
na situacao de ter de inovar.
Quando a existencia e a consistencia de urn mercado
independente estao devidamente estabelecidas, a partir dos
anos 1890, 0poder da crftica de arte e dominante sabre to-
dos os outros planas e substitui progressivamente 0poder do
reconhecimento 'oficial'.
A critica de arte nao e mais urn acompanhamento nem
uma transposicao: ela se toma - alern de sua destinacao co-
mercial - uma tentativa de decifrar e de teorizar as novas
formas plasticas. E desse modo conquista certa autonomia,
acompanhada da independencia recentemente adquirida
pelos artistas, eoncorrendo para estabelecer a autonomia da
forma pict6rica como tal.
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42 ANNE CAUQUELIN
Felix Feneon (1861-1944) e urn bom exemplo dessa von-
.tade do cntico 'modemo' de seguir mais de perto 0trabalho
dos artistas que ere elegeu: inventor do termo 'neo-impres-
sionismo', ele e 0teorico de Seurat, Signat Pissaro. Na cons-
tatacao do efeito objetivo do quadro considerado como urn
fato pictorico autonomo, na analise da mistura otica e do fun-
do bran co na pintura de Seurat, sua critica contribui para fixar
as caracteristicas do quadro como picturalidade pura, consi-
derada a essencia do quadra, sem referencia a urn tema qual-
quer. "Sem a preocupacao com um objeto visual a ser pinta-
do diretamente", como notava 0critico Teodor VVyzeka10, em
1886, os pintores modificaram 0discurso critico na direcao da
analise plastica enquanto esse mesmo discurso Ihes fornecia
uma argumentacao cientifica",
Iambem independente, a critica de arte afirma sua auto-
nomia, toma-se urn genera especifico, Caminha na direcao da
exploracao de criterios pr6prios da picturalidade e deixa 0do-
minio das avaliacoes normativas que eoncemem a formatos,
temas, adequacao das figuras ao tema - em suma, 0 trata-
mento iconografico que era ate entao a essencia da critica ofi-
cial, Assim fazendo, nao somente segue de perto os artistas e
os grupos que privilegia, como tece 0vinculo entre 0mundo
da arte e 0 dos aficionados da arte; entre tern 0publico com
10. Idem, ibid., p, 283s5.
11. Felix Fencon, 'Definition du nco-tmpressionnisme', L 'a r t m o d er -
ne (maio de 1887); 'Les neo-impressionnistes', C a rt m o d er n e (abril de 1988).
a. tambern A u -d e li l d e l 'i m pr es si on n is m e, F e n eo n , textos apresentados por
Francoise Cachin (Hermann, 1966).
{ ~,
'.-
ARTE CONTEMPOAANEA: UMA INTRODUV,O43
roblemas propriamente pict6ricos e contribui para formar,
Pd' , d' 1na opiniao publica, a imagem 0 anista mo erno, que e a
, d 'projeta no futuro como vanguar a.
5. 0 critico vanguardista
Da mesma forma que, no plano da economia, 0inter-
mediario marchand-publici tar io torna-se motor da produ-
<;aoe do consume. 0critico de arte realiza no dominio da arte
o trabalho de 'projetor', novo na tradicao critica. Seu objeti-
vo visa ao futuro, desenvolve as possibilidades ainda latentes
do grupo que defende, coneedendo-lhe um futuro pictorico.
Guillaume Apollinaire - na qualidade de critico de arte -
redige seus textos para apoiar os amigos eubistas, mas traca
ao mesmo tempo urn rumo para alguns deles. A prop6sito de
Marcel Ducharnp":
(...) Talvez esteja reservada a urn artista tao imbuido de
energia como Marcel Duchamp a tarefa de reconciliar a arteeo povo (.,,).Uma arte que se atribuira como objetivo desta-
car da natureza nfio generaliza~6es intelectuais, mas formas e
cores coletivas cuja percepcao ainda nao se tornou uma nocao,
sendo muito concebivele provavel que urn pintor como Marcel
Duchamp tenha acabado de realiza-la,
o entice influenciando 0marchand em suas escolhas, pu-
blicando em revistas nas quais se aproximam eseritores e poe-
12. Guillaume Apollinaire, L e s p em t re s c u in st es , 1913 (Hermann, 1965,
2~ed., Hermann, 1980).
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44 ANNE CA.UQUEUN
tas, alimenta uma 'vanguarda' decididamente orientada na
direcao do modemo. E par intermedio de peguenos grupos,
as quais unem as amizades e as desavencas, gue se formam
ESseS pastas avancados da arte. Os pintores que recebem seus
elegies sao em geral tam bern amigos - estiveram juntos na
Academia de Belas-Artes, expuseram juntos, tern atelies pro-
xirnos, possuem obras de urn au de Dutro. Retinem-se com
freqilencia. Criticam-se. imitam-se au se distinguem.
Eo caso do grupo dos impressionistas, muitas vezes des-
crito, mas tarnbern dos cubistas, de Pablo Picasso, Duchamp,
[acques Villon, no ana de 1915, da Iigacao entre Andre Breton,
os surrealistas e os pintores da epoca.
o crftieo de vanguarda esta la para cimentar as grupos,
para teorizar seus confli tos, para lutar contra as conservado-
res e para convencer 0publico. E urn trabalho de promocao
cujo argumento de venda baseia-se na profecia auto-realiza-
dora. Assim, Apollinaire se serve de uma predicao do futuro,
que tern como efeito projetar no porvir urn cubismo de uma
segunda fei<;ao e rnergulhar na sornbra os movimentos da
vespera, 0irnpressionismo ja foi abandonado. A modernida-
de e reivindicada, nao mais como uma simultaneidade, co-
mo era 0caso de Charles Baudelaire, mas como 'urn avanco' .
A arte deve desenhar a via furura, lancar as bases de uma so-
ciedade nova; se a futurismo nao e admitido pelos criticos
franceses, nem por isso deixa de dar uma licao: a modernida-
de deve ser realizada 'a frente' do conservadorisrno burgues,
Sempre a frente.
-.-
A R T E CONTEMPoRf.NEA·. UMA 1l'-'TRODU(Ao 45
romada assim como guia de um progresso social , a arte
de vanguarda adquire tintas poimcas. Os criticos que teorizam
ESsesmovimentos realizam urn comb ate ideologico cujo tom
e freqiientemente 0 do manifesto.
o Cab are Voltaire expoe as obras de Jean Arp, Otto Van
Rees, Picasso, Viking Eggeling, Wassily Kandinsky e Fillippo
Marinetti ; fundado em plena guerra, em Zurique, precede urn
pouco 0movimento dada. 0movimento se politiza muito
depressa. Toma 0partido da Ievolu~ao proletaria. 0 s logan
'Dacia e politico' e lancado em 1920, seguido de exposi(.;iioa es-
candalos e manifestos sucessivos. A revista Dada e publicada
em fascicuIos numerados enquanto Schwitters lanca Merz a
margem do cubismo e do futurismo. Essas vanguard as tem seu
arauto: Breton, diretor da revista L a R iv o lu tio n S u rr ea ti st e" a
partir de 1926,
A importancia do entice de vanguarda nao para de cres-
cer, mesmo que, na chegada dos anos 1950, as dissensoes po-
liticas e tomadas de partido ideo16gicas se facam sentir com
menor intensidade. A vanguarda se define entao, progressiva-
mente, como 'a ponta do movimento de arte modema' e reu-
ne artistas bastante afastados uns dos outros, mas representan-
do 0que se faz de mills 'avancado' na area. Ainda aqui sao os
criticos que lancam essa vanguarda, nomeando-a e colocan-
do-a em epfgrafe. A escola de Nice e um exemplo significa-
13. Rene Passeron, H is to ne d e [(1 peinture surrea l is te (Librairie Gene-
tale Francaise, 1968).
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, IiI
46 ANl \' E CAUQUELIN
tiv014.O tenno e utilizado pela primeira vez no jomal Comba t
peIo critico Claude Riviere, depois lancado de novo em 1965
na L'Express par Otto Hahn, retomado por Gaumont, ado-
tado por Ben em Identites. Mas esse termo Jiga pinto res de
horizontes muito diferentes: os nOVDS realistas, os pintores
de support-surface", assim como as independentes que se ali-nham a eles "porque uma chancela e muito import ante para
[ovens artistas"";
6.0 produtor: 0artista
Nesse sistema 'marchand- cx iuco ' , deixamos de lado de-
Hberadamente as duas extrernidades da cadeia: a produtor
do objeto posto em circulacao e seu consumidor. Ambos 50-
freram transformacoes em relacao ao esquema de arte aca-
demica, mas, diriarnos nos, nao par iniciativa propria, e sim
indiretamente.
o artist a se isola de urn sistema que the garantia a se-
guranca, tornando-se uma figura marginal. Submetido as
flutuacoes do mercado - devidas em boa parte it concorren-
cia, ao ruirnero crescenre de artistas =, eIe se aflige par sua
sobrevivencia e se coloca na dependencia de marchands e crf-
ticos. Mas 'marginal' nem por isso quer dizer 'solitario'; ele
;4. EdouardValdman, L e r on ul lt d e I 'ecole de N ir e ( La Diffe rence , 1991) .
. Support-surtac.e: nome adotado em 1970 por urn grupo de iovens
arnstas franceses (D'lJ~.lelDezeuze, QaudeViallat, entre outros), inspirados
notadamente em Matisse, na arte minirnalis ta norte-americana, e com urn
fundo de engajamento poli t ico . (N. de T, )
15. Entrevista de Cesar, em Le roman d e l 'e c oi e d e N i ce , op. cit
" ,_
ARTECONTEMPORANEA: UMA INTRODUQ.O 47
faz parte de urn grupo que e sua salvaguarda. a grupo tern urn
nome (que 0pintor nem sempre tern), apoios, audiencia. Ele
sustenta e protege. 0sistema de consuma promave urn gru-
po, nao um artista isolado, peIa simples razao, calcada no mer-
cado, de que urn produto unico atrai menos consumidores do
que uma constelacao de produtos da mesma rnarca. Nessa
mesma gama, certos objetos serao colocados it frente e puxa-
rao os outros menos reputados, portanto mais baratos e sus-
cetiveis 'por coloracao' de ser desejados par compradores
menos abastados (a contrapartida dos mestres menores do
seculo XVIII) .
o termo 'escola' e substituido par urnnome que agrupa
pintores que trabalham de determinada rnaneira, apoiados
pelos mesmos crfticos e vendidos pelos mesmos marchands.
Em vista disso, a singularidade de urn dos artistas desse gru-
po nao sera visivel a nao ser que ela seja construfda par meio
da excentriddade au ate da extravagancia. Ao menos sua bio-
grafia devera ser objeto de urn tratamento romantico. 0 ar-
tista tern perfeita consciencia desse fato e oferece material
para isso - se e que nao a fabrica. A vanguarda, em nome da
qual 0critico desenvolvera seu trabalho, pretende ser provo-
cativa. Da atitude 'burguesa' dos primeiros recusados, preo-
cupados em ganhar a vida, em nao ser atirados fora da (boa)
sociedade, em suma, Ci050S de honorabilidade - como era 0
caso dos impressionistas - passa-se cada vez mais a uma ati-
tude contestatoria, aos happen ings, as cenas preparadas (as
apresentacoes de Salvador Dali, Yves Klein atirando seu lin-
gote de ouro no Sena ...). Nao somente a imagem do artista
• • • •- - - - - - - - - - - - - - - ~ , - - - - - - - - - - - - - - -
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48 A N N E C A UQ U E LI N
se inverte como essa inversao se torna a norma, a ponto de
as biografias de pintores do passado serem reconstruidas so-
bre 0mesmo modele".
E 0meio de manter intacta a fonte da producao, 0cria-
dar, independente do mercado e, portanto, livre de qual-
quer suspeita de cornercializacao, para que sua credibilidade
junto ao publico permaneca inabalavel.Voluntaria au nao, a
exibicao do artista como anti, fora au alem das regras do mer-
cado de consume e t ida como certa. Tatica vitoriosa uma vez
que, se i i i nao se trata mais do estudante pobre em seu case-
bre, que freqiienta tabernas com as amigos e arruina sua saii-
de e familia - imagem herdada do seculo XIX rornantico+,
nem par i550 a imagem que a publico faz do artista e muito
diferente dessa historieta. Na verdade, esse publico recusa a
ideia de qualquer enriquecimento do artista, apegando-se aarte desinteressada, a criacao 'livre', oriunda do sofrirnento,
pronto a se tamar cego aos lucros muito reais e acusando
sobretudo as intermediaries de explorar a produtor, 0artista.
Vincent van Gogh, a maldito,o exilado da sociedade, estabe-
ieee 0paradigma, obtendo todas as aprovacoes,
7.0 consumidor: diletante, colecionador
Para que as mediadores-intermediarios da cadeia de con-
sumo de obras de arte - como de qualquer outro produto -
16. 0 trabalho de Kris e Kurt G a citado) nos oferece a analise suti]
dessa fab rica<;ao e refabricacao con stante da irnagem do anista . E precise
acrescentar ainda 0 Iivro de Mart in Wamke, L 'a rt is te e t l a c ou r, a ux o ri gi ne s
de ['artiste modeme (Edi tions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1989} .
•
ARTE CONTEMPORAJ -. ,: EA :UMA lN IRODUy \O 49
sejam eficazes, e necessaria isolar a prociutor, 0artist a, corn~
se ele nao tivesse consciencia do destino de sua producao. E
o mediador que tern essa consciencia, que a desenvolve e a
sustenta. Porque e ele quem tern 0conhecimento do consu-
midor virtual. Quem e, entao, esse consumidor?
Em primeiro lugar, 0 colecionador, geralmente quali-
ficado de 'grande'. E uma reproducao do grande burgues ou
do aristocrata esclarecido, amante das coisas belas e possui-
dor dos meios para satisfazer seus gostos. Seu ecletismo ga-
rante, em principio. urn largo leque de escolhas possfveis
dentro do que Ihe sera. proposto. Como ele esta 'em eviden-
cia', torna-se por si rnesmo a melhor propaganda para as pin-
tares que adquire. Funciona como locomotiva. Funciona tam-
bern como tesouro publico. De fato, a tradicao manda que
legue sua colecao a urn museu, a uma fundacao. tornando
assim disponivel uma quantidade nao-negligenciavel de obras
maiores e outras menos importantes, au ate mesrno desco-nhecidas. Agente ativo do mercado, assegura tambem a tro-
ca com outros colecionadores, fazendo transitar as obras de
urn pais para outro. Com isso, reforca a atividade dos media-
dores; tece a vinculo entre marchands e cnticos, e urn ponto
central do mecanismo.
Do mecenas historico, evergeta". ele guardou alguns
tracos: nao a ajuda financeira a artistas escolhidos, como nor-
• Everge ta : no mundo grego, ge ralmente urn h0n:'ern rico est ranger-
ro que, em circuns tancias diversas. e considerado benfeitor de uma ridads,
(N.deT.)
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50 ANr- :E CAUQUELIN
malmente se pensa, mas a busca da propria gloria e 0desejo
sirnultaneo de enriquecer 0patrirnonio publico com uma obra,
a sua propria, monumento insigne que levara seu nome. Na-
turalrnente essa otica nao a impede de ser urn hornem de ne-
gocios, para quem 0gosto pelas obras depende em grande
parte de seu 'faro' para as boas 'tacadas'",
Em seguida vern as diletantes, infonnados, que compram
para seu prazer e com 0pensarnento primeiro de fazer urn
born negocio. Para as intermediaries, 0meio de chegar ate
essa clientela e evidenternente ressaltar as beneficios possi-
veis: uma tela pode repentinamente alcancar uma cotacao
significative. Curiosidade, gosto pelo risco, prazer de ter 'olho
clinico', sentimento de participar de urn mundo a parte, jus-
tamente 0dos colecionadores, tudo sao atrativos para 0tu-
rista -apreciador.
Dutra possibilidade: os diletantes com freqiiencia fazem
parte do circulo de amigos que cercam os pintores, au sao as
proprios pintores que, como parte do grupo, trocam entre si ou
com pram mutuarnente suas obras. Comunicam as enderecos
dos marchands, os locais de exposicao, discutem as condicoes
de seu trabalho, em suma, se autoconsomem de alguma rna-
neira, como urn organismo que se nutre de si mesmo.
Finalmente,o publico que consome pelo olhar, que fica
diante da vitrine, exercendo urn papel passive, mas impor-
17.A1bertBeirne, 'Les homrnes d'affaires et les arts en France au XIX'
siecle', ernAcresde la Recherche en Sciences Sociales, n?28 (junho de 1979).
'.-
51ANTE C ONT E MPORJ \NE A : U MA INTRODU <; :AO
tante. de puro espectador; por meio de sua massa movel. sus-
tenta a totalidade do mecanismo. A ele compete 0reconhe:
cimento, a opiniao firmada. 1 3 . ele que transporta 0boato, E
a ele que compete formar e transformar a imagern do artista
e ada arte. Sem ele nao ha vanguarda, dado que a ela falta-
ria 0objetivo de uma provocal)'ao renovada.
Contudo, essa massa diminui propordonalmente ao au-
mento do poder dos intermediarios. Nao ha mais, como ocor-
ria nos saloes anuais, aquele afluxo de diletantes ou de simples
curiosos que acorriam como fregueses e que se amontoavam
a ponte de nao se poder mais respirar diante das paredes co-
bertas de telas". A disseminacao. a explosao em multiplas ga-
lerias e a abundancia de manifesta~Oes desencorajam em vez
de aumentar 0publico. Ele se desinteressa das vanguardas
e continua a se f ixar nos valores da arte - modema, decerto -
representados para de pelos impressionistas. Trata-se, entao.
de urn 'nao-publico', como entendem alguns sodologos da
arte"? A recusa do publico a levar a serio as obras de van-guarda, chegando algumas vezes ate rnesmo a destrui-las, in-
dicaria que esse nao-publico pretende permanecer fiel a sua
ideia de etica. baseada essencialmente na conformidade as
normas. a circunspec\,ao, ao que urn 'bern cultural' deve re-
presentar no conjunto dos valores de consumo. 0 exemplo
do Beaubourg tenderia a provar que e exatamente par nao
18. Harrison e Cynthia White, La c a rr ie re d es p ei nt re s a u XIX' siixle,
op. cit. . I . I' t19.Dario Gamboni, Ticonodasme contemporam, e gout vu galre e
le 'non-public", em S o c io l og ie d e l 'a r t, op. cit.
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52 A N NE C AU Q UE LIN
estar integrada ao sistema de consumo habitual que a arte
vanguardista e recusada. Se 0Beaubourg, como outros es-
pa~os culturais, e extremamente frequentado, e por ser urn
espa~o livre, polo de atividades diversas, local de encontro.
(...) Biblioteca dominada por uma cafeteria e provida
de escada rolante, uma serie de salinhas de exposicao tern-
porarias abertas no final do dia, um grande ha l l onde as pes-
soas vern ver a 'multidao', com os cotovelos apoiados du-
rante horas na balaustrada do mezanino, parada rapida no
terrace panorarnico, entre 0Forum des Halles e 0Bazar do
Hotel de Ville (...) 2 0 .
I I I . A ARTE MODERNA
Esta descricao sucinta do estado da arte moderna des-
taca certos traces caracteristicos,
1)A arte modema origina-se de uma ruptura com 0an-
tigo sistema de academismo, extremamente protegido, centra-
lizado, orientado segundo 0julgamento suscitado pelo Saliio
anual. Mas nem por isso essa ruptura provoca 0abandono dos
valores do reconhecimento e do desejo de seguranca que 0aca-
demismo oferecia a um pequeno mimero de pintores.
2) Fracionando-se em varies grupos independentes des-
centralizados, mas ainda assim geograficamente situados na
. 20;Nathalie Heinich, 'La sociologie et les publics de l 'art ', em Soc io-
[ ogw de [ a rt, op. cit.
ARTE CONTEMPOAANEA: Ul\1A INTRODU~Ao 53
regiao parisiense, os pintores ofere cern a opiniao publica a
possibilidade de formar uma imagem do artista como urn
'exilado', pertencente a uma esfera a parte, ao mesmo tempo
valorizada e estranha. Concebe-se 0artista como antagonico
ao sistema comercial que 0explora, incapaz de estrategia e vi-
vendo em um mundo 'artistico', inconseqiiente e desconec-
tado dos imperativos materiais. Assirn, 0artista e isolado co-
mo produtor e confirmado nessa funcao pelos entices, pela
literatura, pelas histories de vida.
3) 0 espa~o intermediario entre produtor e consumidor
povoa-se de uma grande quantidade de figuras - do marchand
ao galerista, passando pelos criticos, especuladores e colecio-
nadores. Se esse espa~o tende a mistura-las - colecionador
e marchand , entice e especulador, galerista e colecionador -,
nao passa de um universe fechado. de papel bem definido.
4) A visibilidade social do pintor depende de seu enga-
[amento em uma vanguarda, em urn movimento - e 0grupo
que atrai a atencao -, 0que vern contradizer 0valor de iso-
lamento de que e feita a essencia do artista. Disso decorrem
uma lenta dissociacao e um recuo do publico. Ele nao aceita
que as leis do mercado economico sejam aplicadas ao dorni-
nio artistico, Da mesma maneira, a concentracao de exposi-
~6es na capital, paralela a fragmentacao delas, provoca uma
dispersao do publico.
o que produz este estranho mecanismo:
- Continuar opondo ao que realmente esta se passan-
do a ilusfio de urn estado da arte no qual 0 lugar do circulo
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54 ANNE CAUQUEL IN
intermediario tende a invadir os outros dois. Quando se con-
sidera valido 0modelo 'moderno', esse estado de coisas e
sentido como catastrofe:
- Continuar sonhando com uma vanguarda, como se
ela devesse fazer parte do domfnio artistico como imperati-
vo s in e qu a n on , ao mesmo tempo que se constata seu desa-
parecimento;
- Continuar acreditando na imagem do artista isola do,
lutando contra os especuladores, quando na verdade ha exem-
plos de enriquecimento de pintores mais farnosos e se sabe
que eles sao tarnbem grandes colecionadores, ate mesmo
agentes;
- Continuar supondo presente urn publico de massa e
tentar acoes educativas, quando se sabe que, na verdade, ele
esta cada vez mais ausente da cena artfstica.
De fata, a imagem da arte modema, que se znantem
por meio das mfdias de todas as especies, contribui para des-
cansiderar a arte contemporanea: julga-se 0presente pelos
padroes do tempo passado, quando as criterios de valor sub-
sistiam, quando a 'modemidade' era limitada e cabia intei-
ramente dentro do conceito de 'vanguarda', quando a arte,
ao que parece, assumia sua funcao critica.
Nesse caso, teriamos hoje perdido toda a medida, todo
o julgamento e todos os valores? E uma tonga decadencia
que nos espreita, ou sera que e preciso utilizar urn modele in-
teirarnente diferente para captar a realidade contemporanea?
CAPiTULO II
o REGIME DA COMUNlCAC;Ao OU
AARTE CONTEMPoRANEA
Com a arte modema, nos virnos crescer a distancia que
separa 0produtor - 0artista - de seu comprador - 0aficio-
nado da arte. Como em toda sociedade de consumo, 0mi-
mero de intermediaries aumenta e e acompanhado da for-
macao de urn circulo de profissionais, verdadeiros manager s .
Surgem as figuras do grande marchand , do grande coleciona-
dar, alicercado no poder das midi as, 0qual naturalmente acar-
reta a especulacao sobre os produtos, as listas de cotacoes, a
variacao das avaliacoes em funcao de urn mercado.
Mas, ao contrario do que se pensa, nao e no movimento
continuo de crescimento desses fen6menos, nao e na pro-
gressao linear do regime de consumo que van se encadear
as caracteristicas da arte contemporanea,
E sempre diffcil para nos refletir sobre a ruptura. Na maio-
ria das vezes juntamos dados novas ao que ja conhecemos,
indo do pouco conheeido ao mais conhecido para captar mo-
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56 ANNE CAUQUELIN
dulacoes - procedimento economico que evita ter de rees-
truturar a realidade passo a passo. Contudo, aqui, parece certo
que nao podemos escapar da tarefa de repensar a transfor-
macae do dominic artistico, pois 0 trace do regime de con-
sumo, mesmo aumentado, nao explica 0conjunto dos feno-
menos atuais.
Para dar conta russo, teremos entao que destacar primei-
ramente os mecanismos induzidos peIo regime de consumo
em operacao na sociedade conternporanea e esbocar suas
principals manifestacoes.
Primeira constatacao: nos passamos do consumo a comu-
nicacao. Constatacao banal. De uma banalidade tao grande
que sua constatacao parece bastar. E, curiosamente, quando
urn grande barulho esta sendo feito em torno da analise dos
processos de cornunicacao, em tudo que diz respeito a or-
ganizacao social e aos diferentes sistemas tecnol6gicos de
transmissao de informacao: quando os sistemas em vigor nas
'tecnocienrias" sao engenhosamente analisados e quando se
aperfeicoam as praticas sustentadas por esses sistemas, a arte
parece continuar fora de qualquer analise consistente da rnu-
danca de perspeetiva. Fato ainda mais estranho, as prdticas
artfsticas absorveram bastante essa modificacao, mas nao sus-
citam nenhum comentario que as leve em conta para refer-
mular os princfpios de seu exercfcio.
Mas 0mundo da arte, como outras atividades, foi sa-
cudido pelas 'novas cornunicacoes': sofre seus efeitos, e pa-
reee leviano tratar esses efeitos como mutacoes superficiais.
ARTE COl' .' TEMPORANEA UM:A l r- .. 'TRODU<; :A_O 5 7
Analisar os princfpios de comunicacao em acao, acompanhar
suas consequencias particulares e, portanto, a primeira tarefa
que se apresenta para nos.
Esses efeitos sao de diversos tipos:
- Alguns estao relacionados a ideia que a sociedade faz
de si mesrna, em outras palavras, a ideologia dorninante.
Nessa ideologia, certos conceitos desempenham 0papel de
senha e tecem entre si urn lexico , ou mesmo uma sintaxe,
, uma lingua gem por meio da qual uma realidade ve 0dia, se
nomina e se define. Coneeitos-chaveque servem tanto para
compreender 0que acontece quanto para operar dentro des-
semundo.
- Outros dizem respeito a domfn io s particulares que a
aura da comunicacao transformou particularmente - e 0
caso do dominio da arte - enquanto outros continuaram
em uma estabilidade relativa, admitindo algumas modifica-
~6es marginais - 0sistema de educacio, por exemplo. e E , alias,essa disparidade dos efeitos que difieulta uma visao clara da
modificacao.)
I.A ID EO LO GIA D A CO MU NlCA c::A O N A SO CIE DA DE
DE M ESM O NOM E
o incremento vertiginoso dos mecanismos de comu-
nicacao nao e mais novidade. Cada vez mais sofisticados e
numerosos, tem-se submetido a competicao internacional
e passaram a funcionar como uma necessidade social: es-
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58 ANNE CAUQUELIN
tao encarregados de assegurar, ao mesmo tempo, 0 nivel
tecnologico no qual se reconhece uma sociedade desenvol-
vida e a unidade dos gropos sociais em vias de desagrega-
c;ao.A tecnologia se encarrega, entao, de dois principios es-
senciais: a do progresso e 0 da identidade. Supostamente
em grande parte acessiveis a todos, esses mecanismos trazem
embutida, alern do mais, a ideia de uma igualdade diante
da informacao, que, distribufda em tempo real, atesta que
ha transparencia total entre acontecimento retransmitido e
realidade presente. Palavra de ordem tao pregnante que dis-
cutir seu born fundamento seria 0mesmo que se exorbi-
tar. Ao contrario, a competencia comunicativa e reconhecida
como urna das prirneiras virtudes de urn cidadao responsa-
vel e e 0grande trunfo em qualquer profissao, Cursos, de-
bates, trabalhos teoricos se multiplicam enquanto, paralela-
mente, atividades especificas sao executadas: departamentos
antes chamados de 'relacoes publicas' nas empresas e ago-
ra denominados 'departamento ou service de cornunicacao'.
Nao me estenderei por mais tempo nessa constatacao, mas
examinarei com maior atencao as nocoes que dao suporte a
esse movimento generalizado de comunicacao. Sao verda-
deiros 'efetuadores",
Em prirneiro lugar, a nocao de 'rede': redes conecta-
das e metarredes. Depois vern: 2) 0bloqueio, ou autonomia;
1. Sobre a ideologia da comunicacao e sua critica, d. Lucien Sfez,
Cri t ique de fa commun i ca t i on , 2~ed. (Le Seuil, 1990), e Lucien Sfez (org.),
D ic ti on n ai n: c ri ti qu e d e fa commun i ca t i on (pup, 1992).
,p
A R T E COl'.'TS\fPORM..'EA: lIMA ll\.'1RODU(AO 59
3) a redundancia, ou saturacao da rede; 4) a norninacao ou
prevalencia do continente (a rede) sobre 0 conteudo: 5) a
constru<;ao da real idade em segundo grau, ou simulacao.
Sob 0 signo desses diferentes efetuadores se colocam
as praticas de comunicacao, que parecem 6bvias tal 0modo
como seus principios sao ignorados pelas mesmas pessoas
que as utilizam.
1.Rede
Em termos de comunicacao, a rede e urn sistema de li-
gacoes multipolar no qual pode ser conectado um mimero
nao definido de entradas, cada ponto da rede geral poden-
do servir de partida para outras microrredes. Isso e 0mesmo
que dizer que 0conjunto e extensivel. Nesse conjunto, pouco
importa a maneira pela qual se efetua a entrada. as diver-
50S canais tecnol6gicos encontram-se ligados entre si: tele-
fonia, audiovisual ou informatica e inteligencia artificial. En-
trar em uma rede significa ter acesso a todos os pontos do
conjunto, a conexao operando a maneira das sinapses no
sistema neural.
Conseqiiencia: uma extrema labilidade, uma estrutura-
C;30 permanente, mais proxima da topologia do que do orga-
nograma, quer ele seja pirarnidal, linear, em arvore. quer em
estrela. Dentro dessa topologia, a importancia nao e conce-
dida a urn centro, a uma origem da informacao em circula-
C;ao,mas ao movimento que perrnite a conexao. Significa que
a nocao de 'sujeito' comunicante apaga-se em favor de uma
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60 ANNE CAUQUELIN
producao global de comunicacoes, E 0que sc dcsigna tam-
bern como interatividade (nocao que sugere uma acao cuja
finalidade e conectar dois 'sujeitos' em um dialogo supos-
tamente enriquecedor, geralmente bem vista como um as-
pecto favoravel da comunicacao, numa interpretacao psico-
logica e socializante da rede). Um exemplo: as informacoes
das quais as diferentes midias (imprensa e televisao) nos fa-
zem beneficiaries nao tern 'autor', Elas provern de redes in-
terconectadas que se auto-organizam, repercutindo umas
nas outras. A autoria e da metarrede',
2. Bloqueio
Uma das caracterfsticas da rede e 0 fato de sua extre-
ma extensibilidade produzir urn efeito de bloqueio em vis-
ta das conexoes sempre reativadas; em outras palavras, nao
somente nao se pode sair da rede uma vez que se esta co-
nectado (M uma memoria da rede}, como tambern, dado quenao M orientacao principal, mas uma infinidade de pontos
e de nos, cada entrada e par si mesma seu corneco e seu
fim. Cada parte da rede e virtualmente a rede total. A circula-
ridade, cujo princfpio e a reversibilidade sempre possivel,
conduz entao ao que se poderia chamar de tautologia. A
propria rede se repete indefinidamente, com os diversos ca-
nais de conexoes reproduzindo sempre a mesma mensa-
2. Sabre rede, d. Anne Cauquelin, 'Concept pour un passage', Qua -
derni, n~3 (1988).
ARTE CONTEMPORANEA : UMA I l'. 'T RODUC ;:A o 61
gem nas diferentes versoes tecnicas, sendo que a mensagern
e , definitivamente: 'H5 uma rede e voce esta exatamente
dentro dela',
3. Redundancia e saturacao
o bloqueio pela repeticao de uma mesma coisa e sinal deautonomia, mas tambern assinala as limites de urn exercicio.
A redundancia dos diferentes vetores assegura, Com efeito,
, a manutencao da rede, mas tarnbem a condena ao desgas-
te par saturacao, Da mesma maneira que uma proposicao
necessita de certa taxa de redundancia para ser compreen-
dida e se toma inaudivel se essa taxa for ultrapassada, 0siste-
ma-rede tambern se toma inutilizavel passada uma detenni-
nada taxa de repeticao. A falha do sistema-rede e nao poder
sai r de simesmo; ele realmente digere as informacoes 'novas',
os acontecimentos, impondo-lhes uma redistribuicao instan-
tanea que anula a diferenca. Assim como 0autor (de uma
mensagem) nao e mais tido como origem, 0acontecimento
tambern deixa de ser novidade. Todo 0conteiido se encontra,
nesse caso, no mesmo plano, na mesma circularidade.
4.Nominacao
Para dissimular essa dificuldade, recorre-se entao as
nominacoes, 0 nome cria uma diferenca, marca urn objeto
dentro da rede indiferenciada das comunicacoes. Nomes de
codigo, ri tos de passagem. Uma sociedade nominativa se ins-
taura, onde 0nome funciona como identidade, classifica e
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62 ANNE CAUQUELlN
designa uma particularidade. Quer diga respeito a uma pes-
soa, quer a urn grupo, a nominacao e de fato individuali-
zante. Ela opera uma classificacao dentro das diferentes en-
tradas conectadas entre si - como uma hierarquia por niveis
de complexidade; obtemos assim uma serie de encaixes, e 0
ruimero de ligao:;:6esue podem ser induzidas a partir dessa
ou daquela entrada serve como medida da complexidade.A
nominacao permite, de urn lado, 0recambiamento entre par-
tes e totalidade, e,de outro, escapar it ideia muito desagrada-
vel de nao ser senao urn ponto sem consistencia dentro de
uma rede cuja totalidade escapa a qualquer apreensao,
Aqui, e preciso evitar confundir nominaaio com nom i -
na l i smo. 0 termo 'nominalismo' designa uma teoria filoso-
ficabern precisa, que tern sua origem na filosofia medieval,
e cujo prolongamento atual e tema da logica, 0 nominalis-
mo de fato diz respeito aos names, mas seu objetivoe marcar
a ruptura entre 0que pertence a essencia e 0que pertence it
existencia: toda realidade e recusada aos conceitos abstratos
e apenas dos individuos (objetosau seres) se reconhece a exis-
tencia. Enquanto a nominacao e urn rernedio para a reali-
dade de uma abstracao (a rede), 0nominalismo afirma que
nao ha nada alern de concretos existentes, pontuais', Quanto
ao 'nominalismo pictorico", ele se refere mais a uma teoria
3. Paul Vignaux, N om in alis me a u X IV ' siecle (Vrin , 1981); Alain de Li-
bera, L e nomina / i sme (PL'F, 1989. Col. Que sais-je?).
4. Thierry de Duve, em seu trabalho L e n am i na i isme p i ct u ra l , trat a de
fato da relacao entre linguagem textual e imagem na arte conceitual, e nao
do nomina li smo propriamente dito.
p''-
A R TE C ON T EM P oR A NE A : U M A I NIR O DU c;:A O 63
da eonstru<;aoda realidade pela linguagem do que a urn no-
minalismo Iogico.
5. Construcao da realidade
Se reconhecemos que a comunicacao fomeee a socie-
dade 0elo indispensavel a seu funcionamento, a papel da
linguagem e seu exercicio se tomam dominantes. E par in-
, terrnedio da linguagem que se estruturam nao somente as
grupos humanos, mas ainda a apreensao das realidades ex-
teriores, a visao do mundo, sua percepcao e sua ordena-
r;ao.Assim, apaga-se poueo a pouco a presenr;a positivada
de uma realidade dada pelos sentidos, as s en se d a ta , em fa-
vor de uma construcao de reaIidade de segundo grau, ate
rnesmo de realidades no plural, da qual a verdade ou a fal-
sidade nao sao mais marcas distintivas. E a mesmo que dizer
que a rede de relacoes cujos princfpios esbocamos determi-
na, constroi urn mundo e a maneira como podemos abor-
da-lo, tecido diretamente com a linguagem de redes. A per-
cepcao usual do mundo na qual continuamos a confiar e
para a qual nos servimos de nossa linguagem comum se so-
brep6e entao - ou substitui - uma construcao linguageira
cujos enunciados tern valor de injun<;6es,determinando as-
sim 0campo das acoes possiveis. Significa que as intencoes
dos sujeitos, a intencionalidade - no sentido de vontades au
desejos proprios a urn sujeito - cede a vez it intencao iini-
ea de utilizar a linguagem para comunicar, pais a sintaxe, 0
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lexico- em uma palavra, as regras da linguagem - se encar-
regam do restante. Se0mundo circundante tern para nos al-
guma realidade objetiva, e a construida pela linguagem que
utilizamos. Nao podemos eseapar a esse universo de lingua-
gem. 0 que signifiea, entre outras eoisas, que 0desenvolvi-
menta de linguagens artificiais e 0uso cada vez mais gene-
ralizado delas alteram nossa visao da realidade. Constroem,
pouco a pouco, outro mundo.
As filosofiasanaliticas, a partir de LudwigWittgenstein,
tern orientado nesse sentido as trabalhos dos lingtiistas bern
como, e sobretudo, os dos cognitivistas (os pesquisadores de
inteligencia artificial, os filosofos das novas comunicacoes).
Vma vez que 0 aprendizado dos 'jogos de linguagem' e 0
mesmo da realidade, estabelece-se urn pragmatismo lingufs-
tico.Vejaas trabalhos deAustin, de John Searle, da escola de
PaloAlto, da qual0primeiro na hierarquia atual, PaulWatzla-
wick, intitula urn de seus ensaios: 'La realite de la realite",
Os conceitos que acabam de ser brevemente apresen-
tados sao novas instrumentos de apreensao das realidades
que nos cercarn. 'Tecnologias do espiritc', como as chama
LucienSfez',estao efetivamente ligados a concepcao e a cons-
trucao de urn mundo da comunicacao e sao indispensaveis
a uma analise dos fenomenos contemporaneos - conceitos-
5. John Searle, Uinten t ionnal i te (Ed. de Minuit , 1988); L 'i nv en tio n d e la
rfuliti, organizacao de Paul Watzlawick (Le Seuil, 1985); La n o u v el le c ommu n i-
ca t ion , textos selecionados e comentados porYves Wmkin (Le Seuil, 1981) .
6. Lucien Sfez, op . c it. , p . 379s5.
•
ARTE CONTEMPORM.'EA liMA I!'.'TRODUy\O 65
chave de que iremos agora nos servir para perceber as trans-
forrna.;6es profundas da arte de hoje em dia.
Essas transformacoes alcancam 0dominic artistico em
dois pontos: no registro da maneira como a arte circula,au
seja, do mercado (au continente), e no registro intra-artfstico
(au conteudo das obras).
II. OS EFEITOS DA COMUNlCAy\O NO REGISTRO
DO MERCADO DA ARTE
1. 0 efeito rede
Nos falarnos - ou ouvimos falar -, em relacao a artemodema, de 'rede' de venda das obras. 0 termo remetia,
entao, a uma definicao minima de rede, indicando somente
que a trama de intermediaries entre 0 artista e 0publico com-
plicava-secom os recem-chegados, espessando-se de alguma
maneira ate se tomar opaca para os artistas e para 0publico.Mas essa acepcao restritiva do termo 'rede' deve ceder dian-
te da outra, global, que acabamos de definir, Entre trama
complicada e rede complexa situa-se a diferenca considera-
vel entre urn mercado de consumo classico e urn mercado
ligado a comunicacao.
Em seu importante artigo de 1986,Raymonde Moulin'
introduz novos dados: a intervencao dos pcderes publicos e
7. Raymonde Moulin, 'Le marche et le musee, la cons titution des
v~leurs artistiques contemporaines', R e vu e F r an c oi se d e S o ci ol og ie , XXVII -3( ju lho de 1986).
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do Estado-Providencia e a consideracao de urn tempo 'curto',
animado pela velocidade aumentada do mercado, vizinha
do imediatismo, para falar de uma 'complexidade' nova.
Contudo, na verdade, sua analise pretende mais enrique-
cer urn esquema existente do que reformular novos dados.
Assim, ela fala de 'rede internacional de galerias e da rede
internacional de instituicoes culturais'; fala tarnbern de 'in-
teracao entre mercados onde sao formados os precos e
campo cultural onde se operam as avaliacoes esteticas e 0
reconhecimento social'. Dois termos - redes e interacao -
que vimos redefinidos pelas teorias da comunicacao. Mas
essa interacao e essas redes sao trabalhadas a partir de con-
teiidos esreticos: a partir, por exemplo, da disputa figurati-
vo/nao-figurativo, ou da que opoe as anti gas vanguard as
ao 'seja la 0que for' atual, ou do valor artistico absoluto, ao
que Moulin chama ainda de 'rnodernidade' e que seria de-
finido como uma volta para tras. Mas, se desejamos per-
manecer na analise do mercado contemporaneo, devemos
levar em conta justamente a lei da comunicacao, que exclui
qualquer 'intencao' da parte dos atores, e privilegiar 0con-
tinente, au seja, seus papeis e seus lugares, em vez de seus
conteudos intencionais.
A) Os produ t or e s
Em uma rede complexa de comunicacao, os atores sao
ativos de acordo COm0maior ou menor numero de Iigacoes
•~,
ARTE CONTEMPoRANEA: UMA IN1RODU<;AO 67
de que dispoern, de acordo com as conexoes mais ou me-
nos diretas - au seja, mais rapidas ou menos rapidas - com
outros atores, par sua vez tambern ativos. Assim, no domi-
nio artistico, as atores mais ativos sao os que dispoem de uma
grande quantidade de informacoes, provenientes do con-
junto da rede, e 0mais rapidamente possfvel, Esses atores
privilegiados se tornam os mestres locais. Comunicarn-se
uns com as outros - e portanto transmitem entre si a infor-
macae - por meio de circuitos ultra-rapidos postos a sua dis-
'posir;ao pelas novas tecnologias: fax, terminais de computa-
dares, telefonia, catalogos eletr6nicos, mail ing. Conservadores
de grandes museus, importantes ma rc ha nd s- ga le ri sta s, e x-
perts, diretores de fundacoes internacionais, os chamados
'profissionais', Sao os primeiros a obter e a passar adiante a
informacao: a da cotacao (0 preco) e, conseqiientemente, a
do 'valor' estetico, Mas passar a informacao, em uma rede
de comunicacao, e tambern Iabrica-la. Essa lei que governaa emissao e a distribuicao de inforrnacoes na midia escrita
e audiovisual e tarnbern a que gere 0mundo da arte. Em ou-
tras palavras, esses agentes ativos sao as verdadeiros pro-
dutores. Sao eles que produzem 0valor como resultado de
sua corrida de velocidade.
Os agentes ativos, como par exemplo os grandes cole-
cionadores norte-arnericanos, "sabendo que uma galeria-lf-
der se prepara para expor um pintor europeu, podem con-
seguir no pafs de origem do artista, beneficiando-se de uma
taxa de.cambia favoravel e antes do efeito da exposicao 50-
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68 A N N E CA UQ U E LIN
bre 0pre<;o, obras que depois revenderao entre eles, com a
cotacao ja em alta", nota Moulin",
E precise observer com atencao, nessa breve nota de
Moulin, as caracteristicas que dizern respeito implicitamente
a rede de comunicacao: a primeira e a velocidade de transmis-
sao de ur n ponto aa outro do mundo. A segunda e a aniec i -p a(iio do sign o so bre a co isa : antes de ter sido exposta, a obra
do pintor, ou mais precisamente seu signa, ja circula nos cir-
cuitos da rede. 0signo precede, pois, aquilo de que e signa.
Depois, novamente, a utilizacao da rede para a revenda entre
os atores produtivos. Finalmente, caracteristica nao-negli-
genciavel, a c olo ca dio d o a riis ta e ntr e p ar en te se s, aquele que
fu ncio na co mo objeta-obra funciona tambern como objeto de
uma troca de sign os. Nada que se refira, nesse mecanismo,
a qualquer julgamento estetico por parte dos produtores de
valores. Esta subentendido que a escolha do artista pela gale-
ria reconhecida como galeria-lfder e indiscutivel. Se a galeria
em questao faz parte da rede, 0produto que ela vai lancar 56
pede ser born. Nao e preciso ir ate la olhar de perto".
B) Nioeis d e p r odud io
Mesmo que no mecanismo rede toda entrada fragmen-
tada participe do conjunto das informacoes, existern ainda
assim redes de primeira grandeza e redes-satelires. A rede
8. Raymonde Moulin, ibid.9.Francois Latraverse, Tamour de raft', ETC , n~16 (Montreal, 1991).
A R T E CONTEMPORN-;EA: UMA Th.'TRODU<;AO 69
e realmente estruturada por niveis hierarquizados e inter-
conectados. Pode-se ser ator em uma rede, deixando-se Ie-
var ao sabor dos encontros. confiando de alguma maneira
no poder de ligacao que ela por si desenvolve, mas se pode
tambem trabalhar ativamente para construir uma super-
rede, mais confiavel, ou seja, mais rapida e unindo pontos
mais afastados entre si. Uma das caracteristicas do poder
da rede e 0fato de ela deslocar 0poder de decisao: ele nao
, e mais central, nao tem mais local proprio, nao parte de urn
sujeito ou de urn grupo de sujeitos para se transmitir as pe-
riferias; mesrno uma instituicao localizada e centralizada
5 6 tern poder na medida em que e capaz de estar presente
dentro de toda a rede ao mesmo tempo. Nao sera verda-
deiramente ativa a nao ser pelo ruimero e pela diversidade
de suas conexoes.
Os profissionais da rede sao de fato os produtores - da
rede e das obras -, tendo em vista 0valor que sera atribui-
do ao produto desde 0momento em que comeca a circular
como signa.
Sabre esse primeiro nivel de comunicacao se acrescenta
u rn segundo mecanismo: a da encamenda.
o A e nc om e nd a
A encomenda de obras provem mais frequenternente de
instituicoes como museus ou departamentos de arte contem-
poranea, Fundos Regionais de Arte Contemporanea (Frac) de
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70 A."JNE CAUQUELIN
grandezas e modalidades diversas. Sabendo-se que essas ins-
tituicoes tern por funcao designar para 0publico 0que e arte
conternporanea, elas sao atores importantes dentro da rede.
Os conservadores ou os diretores de instituicoes desse tipo
entram nojogo com a vantagem de promover obras sem usu-
fruir, em princfpio, beneficios ligados a especulacao, Umaneutralidade que, em tese, sempre preservaria a escolha se-
gundo criterios puramente esteticos. Mas a rede nao percebe
exatamente assim.lsso porque nao leva em conta 0conteii-
do das transmissoes, mas apenas 0aspecto da circulacao da
inforrnacao. Se de fato existem especificidades na consti-
tuicao de redes parciais, nao sao especificidades dos conteii-
dos, mas da extensao deles, Assim, a encomenda nao pode
constituir rede desconectada das redes de profissionais-mar-
chands do primeiro tipo, pois e 0mesmo fluxo de comunica-
~ao que as alimenta. E, desse modo, a encomenda ira para
as obras ja escolhidas e valorizadas pelos primeiros, pois, de
outra maneira, as instituicoes e os museus se colocarao fora
do circuito. Mas e importante para eles serem competitivos,
tanto para aumentar seu potencial economico, quando de-
tiverem uma parte das obras do mercado internacional, quan-
to para assegurar sua credibilidade diante de outras instancias
no mundo e do publico ao exibirobras reconhecidas peia rede
e por meio dela.
Nos vernos, portanto, com relacao a esses que chamamos
produtores, estabelecer-se uma circularidade (urn percurso
em forma de anel): os grandes co l ec ionadores-marchands que
. A R T E cO[\''TEMPORA.''EA: UMA INTRODU\=AO 71
intervem nas cotacoes, reconduzindo-as aos conservadores,
que sao exatamente os colecionadores do Estado e que sao
tidos como aqueles que intervem no valor estetico. Se uns
estao interessados no beneficio propriamente econornico,
as outros trabalham em beneficio da imagem cultural que
valoriza a [nstituicao que dirigem e, por isso, a Estado que a
subvenciona.
D) Os a ux ili ar es d a producao
Os produtores de que acabamos de falar buscam e di-
fundem suas informacoes par meio de urna rede onde se en-
contram misturados a irnprensa especializada (assessores de
imprensa, agendas, jomalistas-crfticos de arte, ligados a s ga-
lerias au aos museus), as experts e os organizadores de expo-
si<;ao1D(especie de cenografos para a apresentacao das obras)
e os viajantes-comerciantes, que cruzam os ceus e fazem im-
porta<;ao-exporta\,aode informacoes, ou as corretores, que,
por sua vez, transportam as obras. Notar-se-a que a critica,
ate bern pouco tempo uma figura influente" no mecanismo
da arte modema, nao e mais a unica a assegurar a articula-
<;.1.0ntre obra e publico, mas se ve seguida - e se dispersa
_ por uma profusao de profissionais da publicidade e tern di-
ficuldade de manter urn status particular. E uma peca entre
10.Yves Michaud. Eartiste ei commissa ire (Jacqueline Charnbon, 1989).
11. Ll p ro m en ad e d u c ri ti qu e i nfl ue nt (Montreal-Paris, Hazan, 1990),
0p . cit.
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72 ANNE CAUQUELIN
outras do mecanismo de apresentacao", cujo papel com fre-
qiiencia e reduzido a prefaciar catalogos desse au daquele ar-
tista, dessa au daquela galeria. Como figura de destaque,
desempenhara outros papeis dentro desse sistema.
Assim, pode-se afirmar que, dentro de urn sistema de
cornunicacao onde triunfa a rede, sobrevern efeitos 'para-
doxais': 0prof tss ionalismo, evidenciado por todas as analises
crit icas, corresponde bern a uma especializacao: a producao
de arte volta aos grandes mar c hand s e gran des colecionado-
res - especialistas em informacao e em apresentacao -, mas,
ao mesmo tempo, nessa esfera de profissionalismo, os pa -
p ei s n do s ao i nd iv id ua is : um conservador de museu que exi-
be arte conternporanea pode tambern escrever (prefacio de
catalogos), pode garantir 0papel de curador de exposicao,
pode ainda ser 0 gestor - trocar ou comprar obras e fazer
subir as cotacoes, como qualquer born especulador, de for-
ma a se posicionar no mercado internacional. 0 entice, por
sua vez, pode muito bern nao escrever, mas servir de intro-
dutor de obras escolhidas par ele a galerias ou colecionado-
res de sua rede. Pode tambern ser curador de exposicao au
desernpenhar 0papel de expert em urn museu de arte con-
ternporanea 13.
12. 'La mis e en vue de l'art cantemporain " ern A ct es d tc C o ll oq ue d u
Bruxellee, outubro de 1989 (Les Eperonniers, 1990).
13. J a em 1972, Lawrence Alloway havia indicado e descrito essa ca-
racteristica com a expressao role blllrring. Cf. 'Network: The art world des-
cr ibed as a system', Artforum (setembro de 1972),pp. 28-32.
A R TE C ON T EM P OA A NE A : U M A IN T RO DU c;:A O 73
E) Os 'ar t i s tas-criadores '
Diante dessa impressionante assernbleia de produtores
erando redes em diferentes nfveis, a que acontece com osg -que sao objeto (nos dois sentidos do termo) dessas atencoes
espedais? Se a comunicacao caminha - ao que parece - em
circui to aut6nomo, necessita ainda assim de um pretexto,
mesmo que seja minimo. Onde se situam, entao, 0autor, 0
'criador'. a obra? Se a rede exclui a figura individual de urn au-
'tor de mensagem, eis que nosso artista se ve em rna situacao
e os gestores da rede postos tambern muito pouco a vontade.
Pois toda essa agitacao comunicativa tern urn ponto nodal
preciso: a arte ou sua ideia, 0 artista ou sua representacao na
cuttura tradicional. Nem urn nem outro sao instados a desa-
parecer, muito ao contrario. Entao, como aceitar a liberdade
ou a autonomia, 0 sentido carregado por uma obra reputada
'iinica', em suma, valores ao mesmo tempo morais e esteticos
assumidos pela ideia de arte?
Em princfpio, e nao sem contradicoes. a obra e 0artista
serso ' tratados' pela rede de comunicacao simultaneamente
como elemento constitutive (sem eles, a rede nao tern razao
de ser) mas tambern como urn produto da rede (sem a rede,
nem a obra nem 0artista tern existencia visfvel), Sao as no-
<;oes-principios da comunica<;ao - bloqueio, saturacao e nomi-
nacao - que darao eonta de seu estatuto contemporaneo.
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7 4 ANNE CA.uQUELIN
2.0efeito bloqueio
Tal como acabamos de descrever, a rede de comunica-
c;:aoque carrega a arte conternporanea caracteriza-se por urn
bloqueio; em outras palavras, por uma drcularidade total do
d i spo s it iv e . ve e rn -se expostas a vista do publico n ii o t an to o br as
sin gu la re s, p ro du zid as p ar a uio re s, m as u ma im age m da re de p ro -
pr iamente di ta . Quando vemos uma obra dita de 'arte contem-
poranea', estamos venda na verdade a arte contemporanea
em seu conjunto. Ela mesma se apresenta em seu processo
de producao. Ela se exp6e como totalidade, e totalidade blo-
queada, amarrada em seus mecanismos de transmissao. Es-
tes nao estao escondidos: exibem-se, por exernplo, em publi-
cacoes de listas e de avaliacoes, que supostamente ajudam os
produtores a fazer boas escolhas ou a informar 0publico a
respeiro dos 'me1hores' artistes. Como eo caso do K un st K om -
pass! ', que estabelece uma escala de notoriedade dos artistas
de acordo com 0grau de reconhecimento que obtiveram no
ana (mimero de exposicoes, individuais ou coletivas , compras
por museus, por colecionadores, em suma, grau de visibili-
dade do que ja se tomou visfvel). Essa lista assim confirmada
predeterrnina as escolhas futuras, que nao sao diferentes das
ja operadas pelos produtores, uma vez que forarn eles que
apresentaram os artistas hierarquizados na lista.
14. Para tuna analise detalhada do K u ns t K o mp as s, d. Annie Verger,
Tart d'estimer l'art, Comment dasser l'incornparable?', A cte s d e /a R ec he r-
c h e e n S c ie nc es S o ci al es , n? 67/68 (marco de 1987), pp. 105-21.
._
A R TE C ON fE M PO RA N EA : L lM A IN TR OD Ll C;:A o 75
Esse sistema de tomar visiveis as obras pertence ao
proprio principio da cornunicacao: 'tudo' dizer, 'tudo' tor-
nar publico. Pois a palavra de ordem da cornunicacao e a
transpan2ncia; nao se omitem furtivamente as informacoes,
nenhum produtor consegue trabalhar as escondidas. A in-
formac;:ao nao e 'manipulada', como ainda se acredita, pois
a manipulac;:ao e tfpica do antigo sistema, aquele em que 0
produtor (artista) era distinto do intermediario (entice, mar-
chand, galerista), 0qual era distinto do consumidor (0dile-
tante. 0 publico). Aqui, tudo se passa a ceu aberto, nao ha
segredo, somente a velocidade da transmissao pode desern-
penhar urn papel discriminador entre os grandes produtores
e seus seguidores.
A velocidade de rransmissao tern par corolar io a procura
da ubiqiiidade. Na t op l ea gu e (a !ista dos melhores artistas,
correspondente, nos Estados Unidos, ao K u ns t K o mp as s ale-
mao) 0que e contabilizado e 0numero de locais onde, num
mesmo ano, urn artista determinado expos: e preciso que ele
esteja ao mesmo tempo em toda parte, ilustracao manifesta
do principio da comunicacao generalizada".
Assim, 0artista tern de ser internacional, ou nao ser nada;
ele esta preso na rede ou perrnanece de fora. In au out - esco-
lha bern dificil de ser assumida por urn artista, e que, com fre-
quencia , e consumada pelos produtores-descobridores. Essa
ubiqilidade - uma vez na rede, os mesmos artistas se encon-
15. E preciso ser in tcrnacional ou nada . .., E a re ne d e l 't m , Henri Cueco
e Pierre Gaudibert (Galilee , 1988).
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76 ANNE CAUQUELIN
tram em toda parte e sao objeto de urn movimento girato-
rio - produz uma especie de vertigern ou, de acordo com 0
termo que utilizamos, uma sa turadio .
Torna-se entao necessario - e um efeito do bloqueio e
da saturacao - renovar de alguma maneira essa massa que
circula de maneira identica, proceder a uma individualiza-
r;ao; em outras palavras, multiplicar as novas entradas. Sera a
corrida pela modificacao, pela procura de novas denomina-
r;oes, de novos artistas, novos 'rnovimentosVersao contem-
poranea do antigo sistema de vanguarda que caracterizava
a arte moderna.
As analises sociologicas do mercado de arte" mendonam
essa renovacao permanente de movimentos ali de artistas-
cada vez mais jovens -, mas parecem considerar esse fato
uma evolucao interna do dominic artistico, um trace carac-
teristico autonorno desse campo singular, /uma 16gica da mo-
da', 'urn turbilhao renovador perpetuo', a 'tempo curto oposto
ao tempo longo' etc. Farece contudo que esse movimento de
renovacao pode estar ligado nao a uma intencao particular,
mas, sirn, a uma consequencia do proprio sistema. Diferen-
ternente das vanguardas da arte modema, que se organizavam
contra 0mercado oficial para preservar a autonomia da arte,
no caso da arte contemporanea pretende-se uma absorcao
da autonomia pela comunicacao,
16. Raymonde Moulin, ibid.: d. do mesmo autor La m is e e n s ce ne de
I 'a rt con tempora in , op. cit., e L 'a rt is te e t Je peintre, Emmanuel Wallon (org.)
(PUG,1991).
. . . . .
A RT E CON f EM P oRA N EA : L 'M A [ l':T ROD U c;: AO 77
o artista que entra ou I e posto' na rede e obrigado a
aceitar suas regras se quiser permanecer nela, Ou seja, re-
[loVaf-se e individualizar-se permanentemente, sob pena de
desaparecer dentro do movimento perpetuo de nominacao
que rnantem a rede em ondas. Mas essa exigencia de reno-
var;ao e de mdividualizacao contradiz constantemente outra
exigencia: a da repeti~ao, da redundancia. Com efeito, para
que sua obra sature a rede e seja mostrada em toda parte ao
mesrno tempo, e preciso que seja reconhecida por urn signo
de identidade, E precise, entao, que se repita. Que faca eco de
si mesma, Entre inOV3(aO e repeti<;ao obrigat6ria instala-se
entao uma especie de desgaste, nao de seu talento - estamos
supondo que 0 artista 0 tenha -, mas de sua exposicao ce-
gante, exaustiva, sabre a qual nenhuma exibicao au operacao
de descoberta pode mais ser feita. Excessivamente desco-
berto, ele nao esta mais protegido da cornunicacao que di-geriu sua obra e ele, Estratagemas de toda sorte entram entao
em a(aO, sendo que as mais conhecidos e utilizados sao as
meias-voltas, os emprestimos e as citacoes. a busca de furos
de reportagem, de '[ogadas'", a busca de espacos artisticos di-
ferentes, as modificacoes de papeis. De artista ele pode passar
a curador de 'exposi~ao', ou seja, produtor dessa vez, agente
17 . JeffKo o n s, p a r e x er n pl o, produz to do s o s a no s u rn a 'jogada' dessas ,
alguma coisa suficientcrnertte visivel para interessar as midias: seu casamento
corn a atriz porno e deputada i taliana Cicdolina, a mudanca de iugar e a subs-
tituicao de urn rnonurnento kitsd: (em bronze) de Munster por uma copia
em a\o inoxidave], Internacional pelos locals de intervencao e pela publi-
cidade das 'jogadas'. Cf,Art Press, n~ 51 (outubro de 1989).
- - - _ - .. ...-----------
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: 1
78 ANI '. r E CAUQUELIN
i'
I'
de sua propria publicidade, assegurando assim urn bloqueio
complete".
a consum idor da rede - Par conseguinte, temos de urn
lado as produtores - profissionais da circulacao das obras -,
e de outro as obras e os artistas-objetos - pretextos dessa
transmissao -, mas podemos nos perguntar para onde vai
essa comunicacao e quai s sao seus destinatarios,
A definicao tradicional da comunicacao e a passagem
de urna informacao de urn emissor a urn destinatario (diz-se
alguma coisa a alguern). Em princfpio, os dois sujeitos - 0
emissor e 0destinatario - s a o distintos (mesmo que se esteja
falando sozinho, e ao outro-eu que se esta dirigindo: ocorre
urn desdobramento). Mas, com 0sistema de rede de cornu-
nicacao ci rcular, os destinatarios sao tarnbem os gestores da
rede. Ou seja, para 0sistema da arte conternporanea, 0fa-
bricante produtor da colocacao em rede de uma informacao
(no caso presente, de uma obra) destina-a a si mesrno, e a
consome apos have-Ia fabricado.
o produtor (ou os produtores), como mostramos, pro-
duz urn artista - no caso, nos dois sentidos do termo produ-
zit: produzir alguern em cena e fabricar urn objeto - nao para
vende-lo a outro, ou seja, a urn publico distinto, fora do dorni-
nio que € 0seu, mas para ele mesmo comprar e revender a
outros produtores, numa circularidade infinita.
o financiador-produtor e tambern aquele que consome,
como era 0caso na epoca dos 'principes e artistas', Com ape-
18.Buren e urn bom exemplo dessa ubiqilidade dos papeis,
I ''-
ANT E coNT EMPORANEA : UMA I N1 RODU y \O 79
nas uma diferen\a, que e 0fato de a exibicao do produto ter
se tornado publica. Curta sequencia de exposicao enquanto
o produto nao volta para uma colecao privada, onde pede
ser trocado e servir de valor de troca ou terminar nos poroes
deummuseu.
o que nos chamamos de 'publico', ou seja, cidadaos co-
mun s , e convidado ao e sp et ac ulo e nao tern como nao aquies-
eer. Com seu julgamento estetico posto entre parenteses, a
questao e antes de mais nada faze- lo se dar eonta de que se
trata de arte contemporanea, independentemente do que ele
proprio possa pensar. 0 preco e a cotacao estao lapara the as-
segurar que 0espetaculo tern valor. Que e de fato arte, uma
vez que as obras estao expostas em urn local a d h oc , no mu-
seu au em galerias de arte conternporanea.
Nessa ultima etapa, que deveria coroar 0 circuito colo-
cando a disposic;:ao de todos 0 resultado de urn tao longo
trabalho, e ainda 0continente que prevalece sobre os con-
t eudos ; e a 'exposit;ao' que carrega a significac;:ao:'isto e arte',e nao as obras. E a rede que expoe sua propria mensagem:
eis 0mundo da arte contemporanea, E assim 0publico eon-
some a rede, enquanto a rede consome a S 1 propria.
Com esse mecanismo de autoconsurno e de auto-exibi-
~ao da arte, 0bloqueio da rede esta perfeitamente assegu-
rado, eLapode funcionar protegida das intemperies.
3.0 efeito 'segunda realidade'
Este breve esquema do regime de cornunicacao da arte
contemporanea pode esclareeer sem rodeios aspectos que 0
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80 ANr -. .' E CAUQUELIN
publico prefere nao enxergar e que as atores da rede frequen-
temente encobrern, com as melhores intencoes, com 0manto
dos valores admitidos.
Hi, pois, de fato urn efeito de ocultacao: a imagem que
se faz da arte entra em contradicao com 0processo contem-
poraneo de sua valorizacao, A ideia da arte - autonomia, va-
lor absoluto, criterios esteticos - e, paralelarnente, a ideia do
artista - exprimindo uma realidade nova, critica da sociedade
e de seus valores rnercantilistas (a arte nao tern preco) - con-
tribuem para ocultar a processo que foi descrito. E, quando
nao sao pudicamente velados ou ignorados - mas gual pro-
fissional, seja de que nfvel for, poderia ignora-los? -, os tracos
caracteristicos desse rnundo artistico em rede sao violenta-
mente criticados. Sao apenas nostalgias, rabugices, em suma,
reacao, 0que serve de plataforma a essas reivindicacoes e
o habito adquirido, imbuido de certo tipo de construcao men-
tal relative it arte; 0 desejo de manter essa construcao, custe 0
que custar. Ouve-se, assim, born mirnern de galeristas, e que
sao agentes ativos da rede, torcendo por uma crise: "Isto nao
pode durar, 0mercado vai desabar ... J a se veern os sinais
precursores de uma volta a ordem ...", enquanto, ao mesmo
tempo, dizem a urn pintor jovem: "Nao, nao precisamos mais
de pintura, erie entao urn acontecirnento, voce tern urn asses-
sor de imprensa, voce trabalha com quem?". Em suma: "Voce
tern a envergadura para se tomar urn artista internacional?".
A a r te con tempor ti n ea e su a im a ge m. Esse espeIho ofere-
cido aos artistas e no qual eles podem perceber 0conjunto
ARTE CONTEM : poRANEA: VMA Th. 'T RODUc;: AO 81
_0sistema - do mundo artistico contemporaneo reflete a
construC;ao de urna realidade urn tanto diferente da que existia
h a algumas decadas. Pode-se ver, ainda nesse caso, a pre-
dOIDinancia de urn dos princfpios da nova sociedade de co-
municac;ao gue ja haviamos evocado: 0de uma realidade de
segundo (ou de decimo) grau, que substitui a realidade que
tinhamos 0costume de tomar como urn dado objetivo. Por
isso essa hesitacao e ambigiiidade: a arte continua sendo 0
que era 'antes', ligada a criterios esteticos, ou cedeu lugar a
urna realidade que nao tern mais mas nada a ver com 0gos-
to, a bela, a genio, 0unico, ou conteiido critico? Em outras
palavras. a arte, as obras ainda tern em si algumas realida-
des, vindas de suas qualidades proprias e que podem ser
julgadas como tais - uma especie de autonomia -, au sao
apenas tributarias da imagem que a comunicacao pode fa-
zer circular?
A 'realidade', ou seja, a substancia da arte, ainda per-
tence a obra ou ja se acha relegada ao exterior do objeto pre-
texto, como acontece com sua imagem - urn signo -, sub-
metida entao a todo tipo de criterios?
Parece de fato que a analise do mecanismo de producao
e de distribuicao da arte conternporanea nos conduz a se-
gunda resposta. A realidade da arte contemporanea se cons-
tr6i fora das qualidades proprias da obra, na imagem que
ela suscita dentro dos circuiros de comunicacao.
Sabre essa questao, seria possivel falar de 'simulacro',
se 0 termo nao fosse impregnado de referenda a realidade
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82 ANl'\'E CAUQUELIN
do objeto simulado. Falar em simulacra significa com efeito
conceder uma realidade superior ao objeto-fonte da simu-
lar;ao.A ffsica de Epicuro, que dolorigem a essa nocao, de fato
estabelecia que 0que nos percebemos nao sao as coisas, mas
seus duplos sutis, que escapam dos objetos sob forma de
atom os irnobilizados que vern tocar 0orgao da visao. Quanto
it circulacao do signo, por outro lado, nao se coloca nenhurna
realidade por tras dessa mesma circulacao.
Oaf 0 desconforto dos profissionais que querem per-
manecer fieis a imagem que fazem de seu trabalho (eies sao
os descobridores, as defensores da inovacao. os amantes da
arte, os juizes experts na questao da qualidade das obras), ao
mesmo tempo constrangidos pela existencia de uma rede que
adota outros valores.
Para reunir em uma formula essa passagem de urna rea-
lidade a outra, poderfamos propor duas definiroes: estetica eo termo que convern ao dominic de atividade onde sao julga-
das as obras, o s a rt is ta s e o s c om en ta rio s que s us ci ta m, A e ste -
tica insiste em valores ditos 'reais', substanciais ou ainda es-
senciais, da arte. Por outro lado, artistica delimita 0campo das
atividades da arte contemporanea. 0termo insiste na denomi -
tuuiio: sera considerada artfstica qualquer obra que seja exibi-
da no campo definido como dominio da 'arte'.
Sao duas ideias do que e a arte ensejando duas atitudes
dianre da obra, Forem, mais do que isso - pois as afirmacoes e
as posicoes adotadas nao sao c1aras -, ideias que se acumulam,
que se sobrep6em.
A . R T E c oN TEMPOMNE A : U MA U >< 'T RO DU(A O 83
Assim, observamos partidarios e praticantes de urna arte
tecno10gica - e por conseguinte sustentada por 'novas tee-
nologias da comunicacao' que enaltecem as 'novas imagens',
nUlllericas ou de sintese -, que deveriam teoricamente aceitar
o esquema de comunicacao e contribuir para ele, fazendo
parte dos defensores da estetica tradicional, da qual com-partilham os valores que se esforcam para reivindicar para
seU5trabalhos. Mais coerentes em sua recusa, os partidarios
da realidade de uma autonomia das obras, agastando-se
corn as realizacoes da tecnologia, aferram-se aos encantos
da aquarela. Essa coerencia lhes da peso, os fazem admira-
dos, nao so pelo publico pouco afeito a arte contemporanea
como tambern pelos produtores da rede, pois tudo que pode
sustentar a ideia da arte, promover sua irnagem, seja ela qual
for, e benefico.A essa altura estamos em condir;6es de esbocar os es-
quemas de exibicao da obra de arte, levando em conta as
posi~6es dos atores em cada urn deles.
Notaremos no Esquema 2 ao mesmo tempo urn enco-
lhimento do circuito, uma vez que ele se volta sobre si mes-
rna, e a lugar reduzido que as obras ocupam nele. Notare-
mas igualmente, em oposicao ao Esquema 1, que 0dorninio
artistico se confunde com a propria sociedade, pois os me-
canismos e a atribuicao de valores sao identicos, Por fim, ul-
timo trace caracteristico: as obras nao sao mais divididas
entre academismo e vanguards. Elas estao au nao incluidas
no circuito.
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8 4
Produ~de
umcampo
estetico
ANNE CAUQUEL IN
Esquema 1.A arte e urn campo especifico, com atores individuals.
Uma l in ha a tr ao es sa 0e sq ue m a, d a p ro du ci io a o c on su m o, p er co rr en do
o c am in ho d os a to re s-m ed ia do re s.
Esquema 2. 0 esquema e circular. Entre 05 produtores estao todos
as agentes ci a comunicacao de signos,
SECUNDA PARTE
FlGURAS E MOOOS DE
ARTECONlEMPORANEA
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CAPtruLOI
as EMBREANTES
Ha, de fato, ruptura entre as dais rnodelos apresenta-
dos,0
da arte modema, pertencente ao regime de consumo,e o da arte conternporanea, pertencente ao de comunicacao.
Contudo, mesmo em meio ao 'modema', diversos indfdos
pennitiam antever a chegada do novo estado de coisas. Real-
mente, se no dominio social e politico as teorias algumas
vezes se adiantam as praticas, no dominic da arte, em con-
trapartida, 0movimento de rupture esta a cargo 0mais das
vezes de figuras singuIares, de praticas, de 'Iazeres', que pri-
meiramente desarrnonizam, mas que anunciarn, de longe,
urna nova realidade. Essas figuras que revelarn as indfciosse-
rao par nos chamadas de 'embreantes'.
o termo 'embreante' designa, em lingiiistica, unidades
que tern dupla fun~ao e duplo regime, que rernetern ao enun-
dado (a mensagem, recebida no presente) e ao enunciador
que a anunciou (anteriormente), Os pronornes pessoais sao
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88 ANNE CAUQUELIN
considerados embreantes, pois ocuparn urn Iugar determinado
n o e n u nc ia d o , onde sao tornados como elementos do cod i -
go, alern de manterem uma reJa\,ao existencial com urn ele-
mento extralingiifstico: 0de fazer ato da palavra' .
Ao isolarmos aqui os 'ernbreantes', estamos fazendoreferenda a esses dois modos temporais: uma mensagem
recebida no presente e seu enunciadar - que foi seu autor-,
e desse modo nos referimos a conexao que se operou entre
passado e presente mas tambem ao jogo duplo dessas uni-
dades calocadas no limite do objetivo (a mensagem enviada)
e do subjetivo (a singularidade de quem anuncia). Se nos co-
locarnos no ponto de vista do conternporaneo, 0 fato de a
mensagem - ouvida no presente - voltar a seu autor antigo
pertence a figura de pensamento dita 'anM'ora' (au movimen-
to que leva para tras), e faz surgir elementos do passado na
esfera da atualidade.
Mas parece, tanto pela freqiiencia Com que sao citadas
quanto pelo rnovimento de pensamento que provocam ain-
da hoje, que duas ou tres figuras - as quais a cronica pode-
ria situar na arte modema - podem se c caracterizadas como
'embreantes' do novo regime, e nos as colocaremos, por cau-
sa disso, na arte contemporanea.
Dessa otica, citarernos em primeiro lugar dois artistas:
Marcel Duchamp e Andy Warhol, e, em segundo lugar, urn
marchand-ga l er i s t a -co l ec ionador: Leo Castelli . Esses tres per-
1. Roman [akobson, E ss ais d e l inguis t ique genera le (Le Seui!, 1963),
''-
89
sonagens tern em comum 0exercicio de uma atividade que
responde aos axiomas-chave do regime de consuma.
1.0 EMBREANTE MARCEL DUCl-IAMP (1887-1968)
o fenorneno Duehamp tern de interessante 0 fato de
sua influeneia sabre a arte contemporanea creseer a medi-
da que passarn os anos, De urn lado, 0ruimero de trabalhos
que lhe sao dedicados e cada vez mais importante' , de outro,
ele e a referenda, explicita ou nao, de numerosos artistas
atuais. Por que? Porque esse artista - que declarava nao se-Io
_ parece expressar 0modelo de comportamento singular que
corresponde as expectativas contemporaneas.
E nao tanto por causa do conteiido 'estetico' de sua obra
quanto pela maneira pela qual encarava a relacao de seu tra-
balho com 0regime da arte e tambern a divulgacao dele.
Em outras palavras, sao as posicoes seguintes que fun-
cionam como 0 atrativo de Duchamp e que 0 coIocam no
topo da lista dos 'ernbreantes':
2. Andre Breton, 'Apres Breton', 'Le phare de Ia mariee ', em Le sur-
rialisme et Ia peinture (Gall imard, 1%5); Entrevistas com Marcel Duchamp,
de Pierre Cabanne, sob 0 titulo M arcel Ducham p. ingfn ieur du tem ps perdu
(Belfond, 1967, reedi tado em 1977); Jean Clair , D uch am p o u le g ra nd fictif
(Galilee, 1975); [ean-Francois Iyotard, Le s t ra n sf orma te u re Du ch amp (Galilee,
1 98 0) ; U rn c oJ 6q ui o d e C e ri sy s ob re Duchamp, UGE. u lOJ18" , 1979. DeThierry
de D uve, L e n om in al is m e p ic tu ra l (Mlnuit, 1984); R eso nan ce s d u re ady m ad e
(lacqueline Chambon, 1989); Cousus de fils d'ot (Art edi tion. 1990); Jean Su-
quet, legrand terre r ioe (Aubier, 1991). Os textos de Duchamp estao reuni-d os s ob 0titulo D uc ham p d u s ign e (Flammarion, 1975).
5/14/2018 CAUQUELIN, Anne - Arte contemporânea - uma introdução - slidepdf.com
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90 ANNE CAUQUELIN
1.A distincao entre a esfera da arte e da estetica.
Estetica designando 0conteiido das obras, 0valor da obra
em si; a arte sendo simplesmente tuna esfera de atividades en-
tre outras, sem que seu conteiido particular seja precisado.
2. Na esfera da arte, considerando-a nao mais depen-
dente de uma estetica: os papeis dos agentes nao sao mais
estabelecidos como anteriormente.
Produtores, intermediaries e consumidores nao podem
mals ser distinguidos. Todos os papeis podem ser desempe-
nhadas ao mesmo tempo. 0 percurso de uma obra ate 0con-
sumidor presumido nao e mais linear, mas circular.
3. Essa esfera nao esta mats em conflito com as outras
esferas de atividades, mas, ao contrario, integra-se a elas.
Abandono dos movimentos de vanguarda e do roman-
tismo da figura Iartista'.
4. Como a arte e urn sistema de signos entre outros, a
realidade desvelada por meio deles e construida pela lin-
guagem, seu motor determinante.
Importancia dos jogos de linguagem e da construcao
da realidade: a arte nao e mais emocao, eIa e pensada; 0ob-
servador e 0 observado estao unidos por essa construcao e
dentro dela.
E bastante evidente que esses quatro pontos nao eram
perceptfveis logo de inicio. Eles entravam em conflito com
. . . . . .
A R T E CONTEMPOAANEA: illviA INTRODU(AO 91
a regime 'modema' dominante e traziam em si uma carga de
oposi\ao pesada demais nao somente para serem admiti-
dos como percebidos. Ou melhor, eles erarn admitidos como
a ponta extrema da arte moderna. De urn lado, com efeito, as
obras de Duchamp nao apresentavam tun carater estetico que
suscitasse urn julgamento de gosto; de outro, elas eram, com
freqiiencia, rnaterialmente imperceptfveis, consistindo ern tuna
afirmal)'ao pura e em u r n i ron ismo a f trm il ti vo1
da existencia de
uma esfera de arte,
Para fazer justice a novidade delas, devemos, pois, pro-
ceder, nao a analise termo a termo das obras, 0 que seria
apropriado a uma historia da arte, mas ao posicionamento
global da atitude de Duchamp,
1. Primeira proposi.;ao: a distin<;iio estetica/ arte
A) A r up tu ra
Continuidade, filiacoes, rupturas: os pintores estao
geralmente presos em uma rede de referencias que 05 une
a seus predecessores. Os movimentos artfsticos se desen-
voIvem - crescem e morrem - para reviver sob outra for-
ma como se fossem mores enxertadas. Duchamp, quan-,
do [ovem, pinta' como' au em 'oposil)'ao a'. De 1907 a 1910,
realiza uma serie de telas a maneira dos impressionistas;
depois se aproxirna de Cezanne, em 1911, com Cou r an t d 'a ir
3. Marcel Duchamp, Du du lm p d u s ig ne , p.46.
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92 ANNE CAUQUELIN
sur un pom mier du Japan; e passa pelo cubismo corn [eune
hom me tr isie dan s un tra in ; por fim, poe termo a picturali-
dade com N u desc enda um a esca da , que data de 19124. Nes-
sa epoca ere esta cercado de pintores, de poetas ou escritores,
Seus dois irmaos, Jacques Villon e Raymond Duchamp- Vil-
Ion, sao pintores e escultores. Participa do movimento sur-
realista e do cubismo, ao menos das discussoes e par rneio
do convivio com Breton e Apollinaire; afasta-se de Cezan-
ne, evita-o, mas mesrno assim vai ate ele, nao tanto par sua
maneira de ser, mas por sua conduta intelectuaI. Uma pas-
sagem por Munique, na Alemanha, ern 1912, e pelo movi-
mento dada isolaram-no'. Duchamp rompe com a pratica
estetica da pintura: ele se declara 'antiartista'. E af comeca a
aventura.
Essa ruptura nao e uma oposicao, que estaria ligada a
sua antitese seguindo uma cadeia causal, mas, sim, urn des-locarnento de dominio. A arte nao e mills para ele uma ques-
tao de conteiidos (formas, cores, visoes, interpretacoes da
realidade, maneira ou estilo), mas de continente. E assim que
Marshall McLuhan dira, cinqiienta anos mais tarde: "0 meio
e a mensagem", apagando a distincao classica entre mensa-
gem (conteiido intencional) e canal de transmissao (neutro
e objetivo) para estabelecer a unicidade da comunicacao atra-
4. Contudo, elc pintara urna ultima tela, Tum', para Katherine Dreier,
em 1918, col. Yale University A rt Gallery.
5. "Dada foi muito iitil como purgative", Marcel Duchamp, Duchampd u s ig n e, p. 173.
._
ARTE CONTEMPOAANEA : L iMA lNTRODUc :: AO 93
ves do meio", E 0mesmo apagamento feito por Ducharnp
do contelido intencional da obra diante do continente, bas-
tando este ultimo para afirmar que se trata de arte.
Atitude antinomica a de Walter Benjaminque, em urn
texto famoso, deplara a perda da aura da obra de arte, que,
de iinica e nao-reproduzivel, tornou -se pe\,a de urn jogo me-
dnieo de reproducao tecnica, Antigamente unida ao local
onde e para 0 qual tinha sido concebida, a obra esta agora
exposta a todos. em locais que nao sao feitos para ela', Para
Benjamin, a exposicao e a marca, modema, da inautentici-
dade das obras.
B) as ready-mades
Em 1913, Duchamp apresenta os prirneiros ready-mades,
R oda de bicideta; anos depois, em 1917, Fonte , no Salao dos
Independentes de Nova York. Ele deixou 0 terreno estetico
propriamente dito, 0 'feito a mao'. Wio mais a habilidade,
nao mais 0estilo - apenas 'signos'. au seja, urn sistema de
indicadores que delirnitam os locais. Expondo objetos 'pron-
tos', ja existentes e em geral utilizados na vida cotidiana,
como a bicicleta ou 0mict6rio batizado de fo n ta in e [ tb n te I, ele
faz notar que apenas a lugar de exposicao toma Esses obje-
6. Pour romprendre les medias, de Marshall McLuhan,. e de 1964. Suasproposicoes, precedidas de muito pelas de Duchamp, eram consenso en-
tre os artistas dos anos 1%0.
7. Walter Benjamin, 'Loeuvre d'art a l 'ere de sa reproductibil ite tech-nique' , em CEll1JTtS, II: P oe si e e t reoolution (Denoel, 1971).
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94 A NN E C AU QU EL IN p . R T E c o N T E M P o R A N E A : UMA IN 'TRODU< ::A,O 95
tos obras de arte. E ele que da 0valor estetico de urn objeto,
por menos estetico que seja. E justamente 0continente que
concede 0peso artistico: galena, salao, museu. au, ainda, tex-
tos, jornais, notas, publicacoes, ate anotacoes escondidas, que
Duchamp transporta consigo em seu museu portatil, as 'va-
lises' e as 'caixas' ic aix a d e 1914, c aix a v er de , c aix as em v alise )8 .
o proprio terrno 'caixas' mostra bern qual fum~ao Duchamp
arribuia ao continente. 0 museu porta tilpode nunca ser aher-
to, ou mesmo uma caixa pode estar selada e nao conter nada:
"Fazer urn ready-made com uma caixa encerrando alguma
coisa irreconheclvel pelo sam e colar a caixa'".
Em relacao a obra, ela pode entao ser q ua lq ue r c ois a,
m a s n um a h ora de ie tm in ada . 0valor mudou de lugar: esta
agora relacionado ao lugar e ao tempo, desertou 0proprio
objeto. A divisao entre estetica e arte se faz em beneficia deuma esfera delirnitada como palco, onde 0 que esta sendo
mostrado e arte. Nesse caso,o autor desaparece como artista-
pintor, ele e apenas aquele que mostra. Basta-Ihe apontar,
assinalar. A assinatura que acompanha a objeto ja pronto
e a tinica marca de sua existencia, marca por sinal corn fre-
quencia disfarcada: como R Mutt" assinando 0 rnictorio ,
Rrose Selavy"", ou ainda alguns 'acrescimos' (os ready-mades
a c r e s c e n tados, como Ba ru lh o s ec re ta (1916)). Uma bola de bar-
baIlte e apmada entre duas placas de latao. No interior da
bola, pochornp pede a Arensberg* para inserir urn objeto a
respeito do qual Duchamp - e, portanto, 0espectador - igno-
ra tudo, a nao se r que faz u rn barulho quando 0ready-made e
sacuclido. As informacoes ( in s e ri r in jo rma¢es ) que acompa-
nham 0 objeto sao tambem marcas que disfarcam ironica-
mente, desta vez nao mais 0nome do autor, mas 0proprio ob-
jeto: como 0pente de aco que traz, gravado em sua borda, a
seguinte f ra se : "trois ou quatre gouttes de hauteur n'ant rien a
voir avec la sauvagerie"**. 0mesmo pente pode tarnbem es-
tar acompanhado da expressao "impossibilite du fer". a jogo
de paJavras e evidente: trata-se clararnente de marcar a ruptura
com a 'feito a mao', a picturalidade entendida como estetica,
C) 0acaso e a escolha
Se 0fazer e impossivel, resta a escolha, it qual esta re-
duzida a parte do artista. Com efeito, ja que 0continente es-
pacial e importante, 0continente temporal, 0memento, 0e
• Louise Arensberg: uma das maiores colecionadoras de Marcel
Ducharnp. (N. de T. ). * A frase de Duchamp beneficia -se de varias possibilidades de jogos
de palavras , com a palavra hauteur, que pode signif icar altura, alt ivez, no-
breza, arrogancia. coragem, valor. Se adotada 'altivez', terernos 'tres ou
quatro gotas de altivez nada tern a ver com a selvageria' . Hi ainda a br in-
cadeira entre gout tes de h au te ur - gotas de altivez - e go ut d 'au te ur - gosto
do autor -, de sonoridade semelhante.
A expressao seguinte, im p os sih iliti d u f er (impossibil idade do ferro),
~mete a i m po ss ih il it i d u j ai re (impossibilidade do fazer) pelo mesmo mo-
t rvo , ( _ N . d e R .T .)
8. Entrevistas co m Pierre Cabanne, M arc el D uc ha mp , in grn ie ur du te mp 5
perdu , p. 13655 .
9. D uc ha mp du signe , p. 49.• R Mutt: nome inventado por Marcel Duchamp. (N. de T.)
.. Rrosc Selavy: alter -ego feminine inventado por Marcel Duchamp
com urn logo de palavras ( C 'e st l a v ie ). (N. de T.)
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9 6 ANNE CAUQUELIN
da mesma rnaneira, pois a escolha do objeto pertence ao aca-
so, ao encontro, a ocasiao, Duchamp chamara esse exercicio
temporal de a ca so e m c on se ro a.
Provavelmente este e 0 ultimo signo referente a uma
Figura do passado: a marca de uma presen~a inventiva, de
urna intuicao criadora, que ainda teria algum efeito na ati-
vidade artistica, E no encontro desse acaso encenado que se
refugia 0 saooir-jaire, ou seja,0 saber-escolher do artista, con-
siderado como antiartista, como nao-pintor,
o ready-made , encontrado por acaso, escolhido e reser-
vado, indica 0 estado da arte em um m om enta determinado, Ele
esta em urna relacao de fragmento com a totalidade dos aeon-
tecimentos da arte. Em nenhum caso e uma obra a parte,
uma obra em si dotada de valor estetico, e urn indicador,
urn signo dentro de urn sistema sintatico, Elemanifests essa
sintaxe apenas por seu posicionamento.
2. Segunda proposicao: a indistincao dos papeis
Se a estetica,0savoir-faire manual foram, assim, deixados
de lado, se 0artista e aquele que mostra, se produz signos,
toda a distribuicao de papeis dentro do dominio da arte deve
ser reconsiderada. Duchamp dedica-se a isso.
A) 0 a rtis ia c om o p ro du to r
o artista e, nesse novo jogo, aquele que produz, ou seja,que coloca a frente, que exibe urn objeto. Ele arranja 0ob-
''-
A RT E C ON TE MP oR A;_ ~ U M A IN TR OD U< ;:A .o 97
jeto e dispoe dele. Assim fazendo, identifica-se com 0gale-
rista-marchand, que tambem 'produz' artistas no palco da
arte. Ele os ordena e tambern dispoe deles de alguma rna-
neira. Identifica-se, alern disso, com 0 fabricante do objeto
em questao. Nurn objeto fabricado, a intervencao do artis-
ta e , em resurno, minima. Ele 'acrescenta' algumas vezes aoready-made ou ao signo, mas a materialidade do objeto con-
. tinua fora dele. A atividade daqueie que mostra, organizador
da representacao. e exercida por meio do deslocamento do
objeto: muda-o de lugar, de temporalidade. Assim, esta rejei-
tada ou afastada qualquer pretensao a criacao de formas e
cores.0 artista nao cria mais, ele utiliza material.
Fazer alguma coisa e escolher urn tubo do azul, um
tuba de vermelho (.. .).Esse tubo foi comprado por voce, nao
foifeitopor v oc e. Voce a comproucomo ur n ready-made: to-
das as telas do mundo sao ready -made s 'acrescentados' e tra-balhos de montagem.
o que Duchamp mostra e simplesmente a condicao de
toda obra, de toda pintura, "rnesrno normal'?",
o primeiro produtor da obra e 0industrial; 0segundo,e 0artista que escolheu utilizar urn objeto fabricado. 0 ar-
tistaidentifica-se comuma etapa da producao industrial, con-
tribuicom urn simples 'coefidente de arte', Ele faz urn apor-
te ao ready-made mas tambem ao fabricante.
10. Entrevistas com Georges Charbonnier, RTF, 1961, e com Kathe-rine Kuh, citada por Thieny de Duve, R e so n an ce s d u ready mad e , op. cit.
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98 A N N E CA U QU E LIN
B)0 p ro du to r c om o o bs er oa do r
Segundo deslocarnento de papeis, A famosa propos].
C;aode Duchamp "E 0observador que faz a quadro" e paraser tomada ao pe da letra. Ela nao se refere - como se e r ecom muita freqiiencia - a alguma metafisica do olhar, a urn
idealismo do sujeito que enxerga, mas corresponde a uma
lei bern conhecida da cibernetica, retomada pelas teorias da
comunicacao: a observador faz parte do sistema que observa;
ao observar, ele produz as condicoes de sua observarao e
transforrna 0objeto observado. Ve-se que nao se trata mills
de separar a artista de seu consurnidor virtual mas de uni-los
em uma mesma producao. 0 lugar do artista se encontra en-
tao identificado, de urn lado com 0 fabricante, de outro com
o observador.
Na obra 0 grande oidro, a placa de vidro extrafino ofe-
rece ao observador seu proprio reflexo,misturado as inscri-c;oesgravadas sobre ela. 0 espectador faz parte da obra.
q0a rtis ta c om o c on se ro ad or
Aqui, uma vez mais as papeis estao embaralhados: 0
intermediario - conservador, galerista au m archand - e 0
proprio artista. Nao somente Duchamp 'conserva' a acaso
posta em conserva, como preserva notas, textos e objetos
fotocopiados nessas valises, nessas caixas em valises. Eleas
acumula e transporta consigo. Par outro lado, para perfazer
a ciclo,toma-se conservador do departamento do museu da
Filadelfia, que apresenta as 45 obras da colecao Arensberg
r I T r o ~ ~ U M A ~ O D U ~ O_ suas proprias obras. E tambem membra de urn juri, inter-
pretando dais papeis ao mesmo tempo: a de artista que
apresenta seu trabalho e a de membra do juri. .. que recusa
sua 'fonte'. Em abril de 1917, na Sociedade dos Indepen-
dentes, ele apresenta urn mict6rio feito de louca esmaltada,
assinado 'R. Mutt'.
99
Eu estava no juri,mas os organizadores nao sabiam que
era eu quem 0tinha enviado; eu inscrevera 0nome de Mutt
para evitar referencias a questoes pessoais (...) Mas mesrno
assim era bastante provocador (...) 1 1
A demonstrar;ao e perfeita: 0artista nao e urn elemento
a parte,separado do sistema global; nao ha autor, nao ha re-
ceptor,ha apenas uma cadeia de 'comunicacao' encerrada em
simesma.
3.Terceira proposicao: a sistema da arte
e organizado em rede
As duas primeiras proposicoes conduzem diretamente
11erceira.Com efeito, a relacao da arte com a sistema geral
(social,politico, economico) e uma relacao de integracao e
naode conflito.Atuando em particoes simultaneas, Duchamp
desmontaa antiga ideologia do artista exilado,recusado, con-
testador:a estetica nao e urn dominio que tern leis diferentes
11.Entrevistas com Pierre Cabanne, M a rc el D uc ha m p, in gt fu ie ur d u
t emps pe rdu , p. 93.
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100 ANNE CAUQUEUN
do sistema geral. E uma simples per;a dentro de urn jogo de
comunicacao, cuja entrada, assim como a said a, nao pode ser
encontrada. Nao ha origem nem fim, e urn circulo, As opera-
r;6es que se desenrolam no interior de urna rede tern a ver com
propriedades da rede, nao com a vontade do artista. Cada pon-
to da rede esta ligado aos outros, cada interveniente pode es-
tar em toda parte ao mesmo tempo.
Nesse caso, nao existe vanguarda propriamente dita; nao
existem manifestacoes anti-sociedade ou ant imarchands . Mui-
to ao conrrario, 0jogo da arte consiste em especu1ar a respeito
do valor da simples exposicao de urn objeto manufaturado.A
exposicao, a colocacao no circuito por si so institui 0valor do
signo, valor especulado que pertence de plene direito, de urn
direito teoricamente axiomatizado, ao dominio da arte.
A singularidade de Duchamp - com a incompreensao
que ele frequenternente suscita - e ter posio a nu urn funcio-namento, ter esvaziado do artiste e da obra seu conteiido
intencional, emocional. 0 g ra nd e v id ro ou A n oioa desp ida
p or seus cel ibauir ios , mesmo , e a propria arte, desembaracada
de seus falsos brilhas esteticos, Por meio de 0 g ra n de v id ro ,
frio, e de seus mecanismos trituradores, e 0regime novo da
arte contemporanea, sua logica impecavel, que se delineia.
L6gica da rede anonima: a S o ci ed a de a n im ima, batizada
por Man Raye fundada por Katherine Dreier e Duchamp,
constitui uma colecao internacional perrnanente que devia
ser legada a urn museu, especificamente para aYale Univer-
sity Gallery; e uma logica internacional, engendrada entre
Nova York, Paris e Buenos Aires.
A RT E c oN TE MP oR AN EA : U MA iN TR OD U< ;:.A O 101
4. Quarta proposicao: a arte pensa com palavras
Ultimo efeito dentro da ordem axiornatica: a irnportan-
cia da linguagem. Em urn jogo de designacao e dernonstra-
c ; a a , que consiste em escolher urn objeto ja existente no usa
comum e conceder-lhe urn coeficiente de arte, 0'aporte' (ou'acrescimo') pode vir de uma nova montagem, mas tambem,
e mais necessariarnente, dos titulos que 0acompanham. Ex-
. par urn objeto e intitula-lo, 0 mictorio e fonte, 0porta-casaco
colocado no chao e al~apao; quando 0 objeto e reconhedvel
como objeto estetico (como a Monal i sa ) , 0 titulo 'acrescen-
tado' desloca 0valor estetico: LHOOQ 0dessacraliza.
No entanto, as notas e os textos que se encontram no
museu portatil, encerrados nas caixas, sao obras da mesma
natureza que os objetos prontos. Sao tambem formulacoes
'ja prontas', quase impenetraveis. Ready -made em palavras.
A sintaxe delas e perfeita, e 0 sentido escapa. A diferenca
dos jogos surrealistas, nao se busca nenhum efeito poetico
em particular; e 0 exercicio puro da lingua remetendo-se a
ela mesma. Nao se sente de modo algum 0'estilo' do artis-
ta, e como se as proposicoes estivessern congeladas em sua
pureza definitiva. Daf decorre sua admiracao por Roussel e
por Brisset. "Eu achava que, na qualidade de pintor, era me-
lhor ser influenciado por urn escritor do que por outro pin-
tor.ja estou farto da expressao 'idiota como urn pintor'."
Como 0 conteiido fisico da pintura - cores e formas -
e rejeitado. e a arte nao e mais retiniana, e nao-optica, en-
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102 ANNE CAUQUELIN
tao deve utilizar outro suporte. Mas as palavras sao signos
impalpaveis, pouco pesados, que a cadeia de comunicacar,
pode fazer circular dentro dessa leveza, Elas servern simulta-
neamente de lugar e de tempo aos objetos aos quais dao ti-
tulo, e substituern a materia: 0 titulo Ii um a cor .
Alem disso, como acabamos de destacar em relacao as
formulas, a lingua e alga que ja esta al , urn r eady -made , pron-
to para 0emprego. as usuaries da lingua nao a inventam;
eles a transformam ou mudam de lugar seus elementos.
Portanto, assim como os jogos de Iinguagem de Witt-
genstein esclarecem nao a mensagem, mas a sistema da
lingua e seu usn, as proposicoes de Duchamp que 'acrescen-
tam' aos r eadu-mades (au sao utilizadas como ready-mades)
esclarecem nao tanto as proprios objetos - cujo significado ha-
bitual tendem antes a obscurecer - e sim 0funcionamento
da arte.
5. 0 transformador Duchamp
Duchamp como obra contem em germe as desenvol-
vimentos que as artistas que virao depois dele impulsiona-
rao, em urn sentido au em outro: a arte conceitual, 0mini-
malismo, a pop art, as instalacoes, ate mesmo os happenings
que ele tanto apredava. Mas nao e nessa sequencia historica,
nessa continuidade de desenvolvimento de urn conteudo
estetico que se deve procurar a transformacao de Duchamp.
Seria um contra-sense fundamental. E nas proposicoes axio-
maticas que anunciam e fundam a regime da arte contem-
r '.-
A R ' f E CONfEMPOAANEA , lJMA INTRODUc; :AO 103
poranea que seu trabalho e verdadeiramente transforma-
dor. E nesse ponto que a esfera da arte se articula com a era
da comunica<;ao todo-poderosa.
Vejamos urn resumo breve dessas articulacoes:
- Passagem da mensagem intencional, com emissor e
receptor, ao signo produzido pela rede e dentro da rede e sus-
ceavel de nela circular (anonimato ou disfarce da assinatura,
banalidade do objeto, inexistencia de quaIquer emocao de
origem retiniana).
- Paralelamente, desaparecimento do autor COmo sujei-
to livre e voluntario. A descoberta ao acaso, a escolha, subs-
tituem 0fazer: IIQualquer coisa, mas na hora deterrninada".
Aqui, Duchamp prefigura 0movimento de retirada do su-
jeito, seu lugar como elemento determinado peIo sistema.
Prenuncia Michel Foucault e Roland Barthes.
- Importancia da linguagem, nao como expressao deurn pensamento, mas como fundo radical dele proprio. A
lingu~ pensa sabre si, como a arte 0faz por meio dela. E toda
a escola pragmatics anglo-saxa e 0 trabalho de Wittgenstein
que estao aqui prenunciados, E comum entre as artistas nor-
te-americanos dos anos 1960 citar Wittgenstein". Na Franca,
Duchamp e citado como referenda (Ben e um de seus grandes
admiradores) .
- Desaparecirnento das vanguardas e da mensagem
sociopolftica.
12. Irving Sandler, Le triomphe de I'art americain, le s annies soixante
(Carre, 1990), pp . 88-9.
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104 ANNE C AUQU EL IN
Dois efeitos interligados: de fato, para os criticos de arte
tradicionais, a vanguarda e urn fenorneno que pertence a
hist6ria da arte. E 0motor do desenvolvimento da arte em
sua busca da novidade, em suas provocacoes. Se nos situa-
mos com Duchamp fora da hist6ria da arte estetica, nao ha
mais tomada de posicao que tenha valor por sua novidade
formal e, conseqiientemente, nao ha mais vanguarda (nern,
alias, retaguarda) . Outro fenorneno e a recuperacao quase
instantanea do que poderia ter passado por vanguarda. Como
tudo e admitido, recebido e reconhecido como atual, a van-
guarda nao pode mais se destacar do pelotao,
Por outro lado, a mensa gem polftica e social das van-
guard as era abertamente critica a sociedade mercantilista e
se colocava como den uncia ou recusa dos valores do capital.
Ao integrar arte a sociedade como uma esfera dentre ou-
tras, essa mensagem se ve bloqueada. Como se trata, na 50-
ciedade de comunicacao, menos de dinheiro do que de in- .
formacao - a informacao e sua circulacao sao a verdadeira
riqueza -, 0conflito desaparece por si mesmo.
- Busca das condicoes minimas de transmissao de urn
signo: a assinatura se toma a garantia da arte, seu coeficiente
de valor artistico: a obra pertence ao genero do cheque.
Duchamp faz urn cheque falso e 0entrega a seu den-
tista Tzanck como pagamento por seus services. S6 0fato de
ter acrescentado sua assinatura de artista dara valor ao che-
que, vinte anos mais tarde. Lernbrerno-nos da encenacao
de Yves Klein: Vender uma 'zona de sensibilidade pict6rica'
._
A R f E cONTEMPORM:EA: UMA 1t>.'TRODUC;:AO 105
remete ao que 0comprador paga em ouro; ele obtern, em
troca, urn recibo que deve queimar, enquanto 0artista joga a
metade do ouro no rio (no caso, 0Sena).
Alem disso, ecoam os neg6cios de Warhol, que se inti-
tula urn 'business-artist',
- Apresentacao do continente espacial que coloca 0
objeto em situacao de obra. (0 desenvolvimento de museus,
galerias, fundacoes e fundos regionais hoje em dia repercute
e realiza plenamente esse axioma.)
- Esboco de urn desnudamento da rede formada pelos
profissionais da arte. (Apesar da ignorancia ou incompreen-
sao e da recusa do publico, apesar das poucas obras visiveis, as
profissionais - urn pequeno micleo de elite - fazem a cotacao.)
o modelo Ducharnp, tao discreto que s6 alguns inicia-
dos tomaram conhecimento dele, oferece nao tanto 'novas
imagens', mas a iinica imagem possivel de urn exercicio da
Arte em urn sistema que ja comeca a ser instaurado, 0da co-
municacao, a qual sua obra serve de analisador.
A partir desse memento, 0dominic da arte nao e mais
o da retirada e do desentendimento, do conflito com a 50-
ciedade, mas de urn aclaramento, circunstanciado, dos me-
canismos que a anirnam",
13.Segundo Amy Goldin e Robert Kushner, 'Conceptual art asopera',
A rt N e w s (abrilde 1970):#Acontribuicao da arte conceitual e provavelmen-te a reflexao sobre 0 significado da arte, e nao sobre seu aspecto formal
(...).NOsmal comecamos a nos perguntar como a arte absorve as ideias e
de que forma estas contribuem para sua significacao",
5/14/2018 CAUQUELIN, Anne - Arte contemporânea - uma introdução - slidepdf.com
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106 ANNE CAUQUELIN
Exibindo Esses mesmos mecanismos nos quais eles se
inserem, as 'antiartistas' se aproveitam enormemente dessa
ironica conivencia. Como sera 0caso do segundo embreante
de que trataremos, Andy Warhol.
II. 0 EMBREANTE ANDY WARHOL (1928-1987)
Se a obra de Duchamp e de dificil acesso, quase man-
tida secreta, a ponto de tomar opaca sua relacao com a 50-
ciedade de seu tempo, fazendo com que haja necessidade de
uma analise para encontrar nela os principios gerais do re-
gime da comunicacao, a obra de Warhol e , em compensacao,
tao publica, e toma emprestado de maneira tao notoria as vias
e as meios da publici dade mercantil, que torn a tambern di-
ficil a avaliacao de sua contemporaneidade.
1. Um falso moderno, urn verdadeiro contemporaneo
Certamente, os termos que sao em geral adotados a seu
respeito sao aqueles que caracterizam uma sociedade de
con sumo 'moderna': maquina-ferramenta, sistema de publi-
cidade, maquina de consumo. Suas series, suas repeticoes
estereotipadas de produtos de consumo, sua empresa (a
Factory1' ) concebida como um verdadeiro consorcio, as de-
14. Em 1962, Warhol instaLouseu atelie em urn loft, no numero 321
da East Forty-seventh Street, em Nova York,e batizou 0Lugarde Factory.
!\RTE CONTEMPoRANEA: UMA INIRODU~O 107
c1arac;oes que as acornpanham, em forma de slogans publi-
citanos, tudo parece indicar que ele e 0 porta-voz hicido e
satfrico dessa sociedade de consumo. A arte sera regida pelas
leis de mercado dos produtos, sera um produto como qual-
quer outro.
Essa constatacao que Warhol, longe de desmentir, afir-
rna com insolencia fornece municao aos criticos. Se Warhol
, e urn 'artista' - e nao se pode ignora -10 como tal - e porque
sua obra sera dupla: de um lado, ela ira se situar no sistema
mercantil, mas de outro, ao exibir notoriamente esse siste-
ma, ela 0criticara - Warhol faz negocios e nao os esconde,
o que deixa muito pouco it vontade aqueles que comentam
a arte 'rnoderna'. 0 julgamento estetico: Warhol tern talen-
to, tern 'um born olho' ("ele tinha urn verdadeiro dom", diz
Greenberg), e e recoberto por urn juIgamento moral: Warholquer que falem dele. "Tao logo chegou a Nova York, em 1949,
Warhol perseguiu a celebridade com a obstinacao de urn sal-
mao na epoca da desova"."
A) A c ri ti ca e nv er go nh a da
Para evitar esse julgamento moral e 0desconforto que
ele suscita, e preciso que os criticos se entreguem ao eontor-
" E urn rnundo so dele, de paredes cobertas de folhas de prata, e povoado
de ~elebridades, de superesnobes inadaptados" (Sandler, op. cit., p. 189).Mais tarde, Factory se rnudara para 0 ntirnero 860 da Broadway.
, .1~.Calvin Tomkins, citado por Irving Sandler, Le ir io mp he de l'a rt
a me nc am , le s a nn ee s s oix an ie , op. cit., p. 113.
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108 ANNE CAUQUELIN
cionismo. Falarao do desejo de Warhol de se identificar com
uma maquina, de uma participacao-deruincia da vida norte-
americana, do kitsch, da delacao publica do banal, do meca-
nieo, da seriacao pela reduplicacao da propria serie, de urn
espelho de dupla face que exibe a realidade do vazio social:
"Onde esta a realidade quando dois espelhos estao frente a
frente?". De uma obsessao tragica pela morte, instalada na
repeticao, do carater duplo da tecnica, simultaneamente per-
da e salvacao, segundo a analise de Martin Heidegger; em
suma, tentarao juntar a imagem tradicional do artista, critico
da sociedade, a de 'homem de negocios' em busca de dinhei-
ro e de poder. Salvam 0que e possivel da Arte (e portanto do
artista Warhol), apelando para a intcncao, para a profundi-
dade etc. Assim fazendo, adotam uma atitude contraditoria
que pensam corresponder perfeitamente a seu trabalho, re-
tribuindo-o na mesma moeda. Contraditoria, diiplice ou du-pla, por vezes tripla - teria havido tres Warhol: 0 primeiro,
simples desenhista de publicidade; 0segundo, artist a pop re-
conhecido; 0terceiro, empreendedor de negocios".
E verdade que Warhol 'pertence', na historia da arte, apop art, aos anos 1960 - anos do triunfo norte-americano -, e
portanto a arte moderna. Mas, se ele esta no mesmo nivel de
16. Sobre as contradicoes da critica, imitando as contradicoes de Warhol,
d. os art igos em Artstudio, n" 8 (1988): S p ec ia l Wa rh o l, enos C a hie rs d u M u se e
N a tio n al d 'A rt M o de rn e , n?3 (1990) (Warholiana). Entre outros, cf. Jean Bau-
drillard falando sobre maquina, Bruno Paradis sobre tecnica de dupla face,
Bernard Marcade sabre frui~ao retardada e insercao, e Demosthenes Davvetas,
sobre contradicao.
ARTE CONTEMPOAANEA: UMA INTRODU~Ao 109
James Rosenquist, Roy Lichtenstein e Claes Oldenburg, dis-
tingue-se deles, contudo, pela forma como ve de que modo
a arte se articula a sociedade e, em particular, ao mundo dos
negocios. E sobre essa articulacao que convem refletir, e e ela
que nos leva a considerarWarhol parte da arte contempora-
nea, na qualidade de embreante da sociedade de comunica-
,¥ao.Se fosse necessario, poderiarnos tambern alegar a refe-
renda a Ducharnp, por intermedio de sua devocao a Jaspers
Johns e de sua proximidade com as ideias de arte conceitual.
E essa reflexao que permite considerar a obra de Warhol
em sua complexidade sem ter de tomar partido em relacao
a moral de seus 'negocios'. ou entao considerar essa atitude
resultado de uma filosofia da comunicacao e nao uma perver-
sao cinica do sistema de consumo.
2. Warhol's system
Retomemos, entao, os pontos que servem de prindpios
a arte em regime de comunicacao:
A) 0 a ba nd on o d a e ste iic a
Como Duchamp, Warhol abandona a estetica, deixa seu
oficio de desenhista, renuncia ao estilo, a habilidade manual,
e se dediea a Arte - esfera que se dissocia das questoes de
gosto, de bela e de unico, Os objetos que mostrara serao ba-
nais, kitsch, de mau gosto. Serao objetos de consumo usual:garrafas de Coca-Cola, fotos publicadas em jornais e rear-
5/14/2018 CAUQUELIN, Anne - Arte contemporânea - uma introdução - slidepdf.com
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110 ANNE CAUQUELIN
ranjadas. Em surna, duplicatas, remade . Exatamente como
Duchamp, trata-se de mostrar 0que jti existe, mas, ao ready -
made ' acrescentado' de Ducharnp, que permanece unico e
quase impossivel de ser encontrado, Warhol opoe a repen.
r;ao em serie, a saturacao das imagens e 0 paradoxo de uma
despersonalizacao hiperpersonalizada. "Seria fantastico Se
mais gente empregasse a serigrafia, ninguem jamais saberia
se meu quadro e de fato meu ou se e de outro." Ou seja, to-
dos os quadros poderiam perfeitamente ser seus.
Entao, se Duchamp havia concedido ao local a incum-
bencia de anunciar a mensagem "Isto e arte", renunciando
assim a habilidade e a estetica do gosto, afastando-se por as-
sim dizer da ceria e se preservando, WarhoL ao colocar em
pratica seu conhecimento das redes, abandona esse ultimo
refugio e essa ultima marca da arte, que e 0 local de expo-
sic;ao,para se estabelecer no espac;o inteiro das comunicacoes,
Passa de urn lugar ( topos) determinado, marcado com lin
rotulo 'arte', ao conjunto de urn circuito que ele ocupara intei-
ramente. A despersonalizacao visada vai, portanto, transfor-
mar-se em personalizacao desmesurada por meio da invasao
do nome 'Warhol' sabre todos as suportes.
Serigrafia e fotografia, ampliacao de imagens ja conhe-
cidas, cores fortes, fidelidade ao motivo, apagamento da in-
tencao, esmaecimento do autor, antiexpressionismo: se e ver-
dade que os artistas pop dos anos 1960 trabalham as imagens
do cotidiano da mesma forma, tendo todos eles operado
uma separacao entre a estetica das formas e da 'habilidade
ARTEcONTEMPoRANEA: UMA INIRODU<;Ao 1 1 1
manual', nao chegaram contudo a explorar nem a levar as
Ultirnas consequencias os outros conceitos que regem a co-
municar;a017: a rede, com a redundancia e a saturacao, 0pa-
radoxo, com 0bloqueio em torno de si mesmo; a autopro-
clamar;ao com 0nominalismo; a circulacao dos signos dentro
da rede sem autor nem receptor, e finalmente0
totalitarismo,com a internacionalizacao do sistema de comunicacao. Pois
bern, sao esses preceitos ou prindpios que Warhol vai utilizar
da melhor maneira possivel,
B) A re de d e c om u nic ad io
Warhol compreende muito cedo 0sistema publicitario,
Quando, em 1960, abandona a arte comercial, ele sabe 'como
aquilo funciona', Essa experiencia e fundamental porque
[he serve para construir sua propria imagem e utilizar me-
canismos da publicidade para torna-la conhecida. (Em suma,
ele e 0 fabricante de urn produto charnado Warhol eo pu-
blicitario que transforma 0 produto em imagem e 0vende.)
Assim, sabe que e preciso entrar na rede no lugar especi-
fico onde ha mais chances de estar imediatamente conec-
tado com a mundo a que ele visa: a galeria de Leo Castelli,
onde Warhol vai entrar em 1964.
17.Eispor que Oldenburg au Rosenquist tiveram seu momenta de
glOria.mas nao conheceram a efeitoWarhol: de faro,0que osconsome ain-
da e 0 lugar das formas, do conteiido de suas mensagens, a insercao delasnahistoria da arte de sua !!poca.Warhol, par sua vez, s6 falara de inscricao
sociale de duplicacao, evitando cuidadosamente qualquer ideia de origi-nalidadeou de profundidade. Ele falara de si, nao como sujeito-autor, mas
comode urn nome assodado a urn rosto.
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11 2 A N N E CA UQ U EL IN
C) A repet idio
A segunda 'lei' da rede de comunicacao e a r ep etic ao a u
tautologia. Ao contrario da obra unica e original, que e uma
das exigencias da estetica tradicional, trata-se de duplicar 0
mais rapido e com maior mimero possivel de entradas a mes-
ma mensagem. A publicidade Ihe mostra 0caminho. Admi-
tindo que 0 trabalho do artista da pop art consiste nao em
'fazer' mas em escolher a imagem que mostrara, sera ne-
cessario selecionar a irnagem que causara sensacao ou 0meio
de tomar qualquer imagem sensacional.
No primeiro caso, as fotos de catastrofes publicadas na
imprensa servirao ao proposito. E a serie Di sa s te r s: Tuna fi sh
disas ter (1963), F iv e d ea th au S a tu rd ay d is as te r.
Em Tun afi sn d is as te r, sao imagens de latas de atum se-
gundo a princfpio das garrafas de Coca-Cola au das sopas
Campbell's, mas suspeitara -se que essas latas tinham pro-
vocado a morte de diversas pessoas. As fotografias das vfti-
mas estao colocadas sob as latas mortiferas. A proximidade
desses rostos anonimos e sorridentes e de sua morte em latas
de atum causa justamente 0choque. A morte ocupa as pa-
ginas dos jornais, e e a essa morte cotidiana em seus aspectos
mais corriqueiros que Warhol da destaque.
o tema da morte, que aparece com frequencia na obra
de Warhol, nao esta ligado a uma intencao tragica nem a
qualquer tipo de gosto morbido - interpretacao psicologi-zante exibida tradicionalmente, mas que deve ser conside-
''-
A R T E C O NT E M PO RANE A : UM A I NI RO DU c. :A o 113
rada dentro da otica da rede: a efeito saturacao-repeticao traz
em si seu proprio fim, soa como urna queixa obsessiva.
No segundo caso, e urn objeto qualquer, sem absoluta-
mente nada de sensacional, que sera escolhido. Urn objeto
que todo mundo conhece. Ele e publico. Ligando seu nome
ao objeto em serie, conhecido de todos, Warhol se toma tao
conhecido quanta a irnagem que assina. Sera 0caso da sopa
Campbell's, da Coca-Cola, de estrelas e Idolos do publico
, como Marilyn Monroe ou Liz Taylor, au, melhor ainda, da
nota de urn dolar, Bastara tomar esses objetos sensacionais,
seja pelo tamanho - as cern Marilyns tern 205 ,5 x 5 67 ,5 e m; as
Liz, 21 1 x 564 em; 0do la r, 228 x 177,5 em -, seja pela repeti-
\ao: cern Marilyns; 11 2 garrafas: G r ee n C o c a-C o la b o tt le s (1962).
E 0irnpacto sobre 0publico que importa; e preciso co-
brir as paredes, repetir incessantemente, saturar. Porque a
comunicaC;ao funciona como tautologia , como redundan-cia. "Uma lata de sopa Campbell's e uma lata de sopa Camp-
bell's e uma lata de sopa Campbell's'." Os McDonald's sao
McDonald's que sao McDonald's: "0 que ha de mais bonito
em Toquio e 0McDonald's, 0que ha de mais bonito em Es-
tocolmo e 0McDonald's, 0que ha de mais bonito em Floren-
~ae a McDonald's. Pequirn e Moscou ainda nao tern nada de
bonito".
Como ele diz ainda: "Todas as Coca-Colas sao parecidas.
Sao todas boas. Liz Taylor sabe disso, 0Presidente sabe, a
mendigo sabe enos tam bern sabemos disso", E como sabe-rfamos senao pela publicidade?
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114 ANNE C AUQU ELI N
E precise, portanto, saturar as redes e fazer usa de todos
as suportes possiveis. Para isso, e necessario que seu nome
e suas imagens ocupem ao mesmo tempo todas as posir;6es
possiveis dentro da cadeia de comunicacao e que 0grupo reu-
nido na Factory tambem colabore.
Em 1965,Warhol monta 0Velvet Underground, grupode rock que ele produz em NovaYork,em 1966.Elmes: Sleep
(que dura seis horas, pais 0 tempo tambern pode ser repe-
ticao e saturacao), C h els ea G ir ls , D ra cu la .
Entrevistas, acontecimentos que envolvam 0astra, como
o atentado par ele sofrido em 2 de junho de 1968, tudo isso
circuJa na irnprensa, na televisao, no mundo das redes in-
ternacionais, como para a estrela de cinema ou de rock.
"Ser tao conhecido quanto a lata de sopa Campbell'st=
D) 0 paradoxa
o paradoxo e uma das leis elementares da rede. Trata-sedo bloqueio entre a autor de uma mensagem e a propria
mensagern", Em urn sistema de cornunicacao, 0nome e a
obra sao identicos. 0 nome de Warhol nao e urn nome que
assina uma au diversas obras: e uma obra, 0 resultado de
urn circuito de producao de rruiltiplas entradas (como 'fri-
18. Entrevista de Leo Castelli, Artstudio, n?8.
. . 19. Trata-se de auto-referenda: a mensagem remete a si mesma, sem
significar outra coisa senao simples presen;;a no rircuito. Assirn, para tamaro exernplo classico: 'Esta frase tern 28 letras' nao significa nada fora dela
mesma, remete-se apenas a sua mera presen~a.
'.-
A R T E CONTEMPORM.,'EA: UMA rNTRODU<;AO 115
gidaire' e urn nome generico para qualquer refrigerador na
Franc;a).Nesse objetivo, a signa Warhol marea uma serie de
produc;oes em rede: pinturas, filrnes, fotografias, exposicoes,
textOS."0 autor Warhol identifica-se com a rede que faz cir-
cular as produtos Warhol."
Como as astros que sao produto de uma cadeia de rea-
lizac;6escinematograficas e avalizam essas realizacoes com
suas presences celebres, a obra deWarhol esta numa relacao
de destaque diante do sistema de producao, que a coloca a
£rente. Ou, se quisermos, e como ele mesmo faz questao,
Warhol produz a si como sua propria obra, como seu pro-
prio astro (pois nao existe astra desconhecido, assim como
nao existem 'marcas' desconhecidas). Urn astra e , em sua
personalidade visivel, impessoal como urn objeto. Ele nao
envelhece ("Memorex impede as estrelas de envelhecer").Pertence a rede antes de perteneer a si mesrno, e se multi-
plica identicamente.
o paradoxo - eo bloqueio proprio do embreante Wa-
rhol- e a fato de ele ser ao mesmo tempo a produtor de uma
imagem de astra, a qual se dedica a fazer circular pelas ca-
deias de comunicacao, e 0astro em si, que ele produz como
obrae que e simplesmente ele mesmo, 0 abjeto que apresen-
ta- a lata, a garrafa au 0astro - traz sua rnarca, e WarhoP'.
20. HO objeto nao passa do suporte do nome, propaga~ao compulsiva
d~ um a assinatura" (Lue Lang . 'Trente Warhol valent mieux qu'un', Artstu-dw, n? 8 (1988), p. 42.)
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116 ANNE CAUQUELlN
Assim, a separacao existente entre 0nome que designa
um autor singular e a assinatura que promove esse nome
como signo, valendo como nome, encontra-se aqui esmae-
cida. Nome, assinatura e obra se veern confundidos. Nesse
caso diferentemente de Duchamp, que protegia seu nome
'proprio' naquilo que este tinha de unico ao abrigo de uma
assinatura disfarcada, preservando assirn seu carater reser-
vado, discreto, secreta.
Outro nivel do paradoxo: 0no formado pela impessoa-
lidade exibida par meio do re-m ade - nao ha engenho, nao
ha toque pessoal, nem transformacao do objeto mostrado,
ele e reproduzido tal como e - e a hiperpersonalizacao do
nome-assinarura, Ademais, e esse nome-assinatura que sera
idolatrado pelos adolescentcs", como 0 de um astro cuja fi-
gura aparecera estampada nos jeans, nos bones, nas camise-
tas, e cujos posteres serao pregados em paredes - p in -u p -, e
nao os objetos mostrados.
A interpretacao sociologies que consiste em explicar 0su-
cesso de Warhol junto ao publico jovem norte-americana pela
apresentacao de objetos do cotidiano, geralmente deixados de
lado pelos artistasartesaos', nao da conta da especificidade do
efeito WarhoL uma vez que as outros artistas da pop art que
trabalhavam as mesmos temas estao lange de ter conhecido
a mesma sorte. E preciso deixar bern claro que a diferenca se
deve a explora~ao por Warhol da rede e de seus principios.
21. Em 1965, uma horda enlouquecida de adolescentes invadiu a ex-posicao no Insti tute of Contemporary Art of Philadelphia. Foi preciso reti-
rar os quadros.
~;
II
0 . -
) \RYE CONTEM I'ORANEA : UMA INTRODUc ;:AO 117
3 . A arte dos neg6cios
Comecei minha carreira como artista comercial e quero
termina-Ia como 'business-artist' (...) Eu queria ser urn ho-
mem de neg6cios da arte au um artista-homem de neg6cios
(...) Ganhar dinheiro e urna arte, trabalhar e uma arte e fazer
bons neg6cios e a melhor das Artes",
Essa declaracao de Warhol deu 0que falar. Pode pare-
cer provocativa, e e, mas provavelmente nao pelas raz6es
que em gerallhe atribuem. Seria provocativa para urn autor
inserido na tradicao ideologies do artista, produzindo afas-
tado do mundo uma obra genial, consciente de urn valor
iinico e incomparavel. Mas, como virnos, essa exigencia de
pureza, essa recusa do comercio e da arte comercial desa-
pareceram com 0 abandono da estetica, Corn seu aspecto
anticomercial, as vanguardas cederam lugar aos artistas ab-
solutamente determinados a se tomar ricos e celebres e a
fazer uso, para isso, de todos os trunfos mundanos, Se urn
deles nao alcanca, como Warhol, seu objetivo deterrninado,
e talvez por nao possuir 0dominio do processo.
A ) Um a e mp re sa : F ac to ry
"No mundo dos negocios, nao e 0 tamanho que conta,
e 0tamanho que voce d es eja t er ,"
Para se tomar rico e celebre, para ter 0tamanho que voce
deseja, e preciso freqiientar celebridades, e, melhor ainda,
22.AndyWarhoL T h e p hi lo so ph y o f A n dy W ar ho l (Harcourt , 1977), P 92.
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118 A N NE CA UQ U EL IN
fabrica-las, tomar-se 0centro da vida in. Foi 0que se tomou
a Faciorv" . Ela chegou ao tamanho que Warhol queria. De
1963 a 1965, la se encontravam todas as especies de subcul-
turas, a eontraeultura, 0pop, superstars, todo 0je t set e as es-
trelas fabricadas pela Factory. Em 1968, antes do atentado de
que foivitima, Warhol tinha aumentado seu publico, a Factory
tomara-se uma instituicao. Warhol podia entao realizar a se-
gunda parte de sua proposicao: tornar-se urn homern de ne-
gocios de arte.
Lernbrerno-nos: a arte para Duchamp nao tinha mais
conteiido intencional, ela so existia em relacao ao local onde
estava sendo exibida a obra, esta por si 56 urn objeto banal,
ja presente no mundo, ja fabricado. A intervenrao do artista
consistia em exibi-Ia - primeiro deslocarnento - e em assi-
na-la 'acrescentando' alguma coisa - segundo deslocarnento.
De posse dessa definicao minima, Warhol tarnbem vai
mostrar objetos comuns nao em sua materialidade em tres
dimensoes, mas reproduzidos (serigrafias, fotografias) sem
nenhuma intervencao de sua parte para deslocar ou poeti-
zar 0motivo. A unica a<;30pela qual entao seu trabalho se
define consiste ern tomar publica essa exposicao, torna-la
de alguma maneira obsedante, inevitavel, Mas esse 'tamar
publico' e impensavel fora de uma rede de comunicacao cujo
processo e preciso dominar, e esse processo pertenee, em sua
base, a esfera do cornercio, dos 'negocios'.
23. Irving Sandler, 'L'artiste hamme du monde', L e tr io mp he d e l'a rtamenca in (Cap. 4).
',,-
A RTE CO NT E MP oRA NE A : U M A INT ROD U <::A o 119
B) U ma defin icao : a arte e neg6cio
Eis portanto a arte situada e definida pelo mundo dos
negacios: espaco sempre ern extensao, onde 0jogo consis-
te em tomar crivel a publicidade, em fidelizar a clientela,
em estabeleeer 0valor do que lhe e proposto. Urn jogo de
ilusoe5 ou verdadeiramente 0 objeto e 0 que se quer que
seja.O mesmo COma arte: uma ilusao credibilizada, ou seja,
que atrai 0credito e que vive desse credito, Transformemos
a primeira formula tornando 'contar' ao pe da letra e tere-
mas entao: "Nao e a valor do objeto que eonta, e 0valor que
voce deseja que ere tenha", Nao somente 0objeto de Arte
nao e diferente de qualquer outro que ele reproduz, como
tambem segue as mesmas leis de propagacao e de procla-
ma<;aodo valor.
Nesse momento, 0 artista e aquele que leva adiante 0
processo dessa propagacao. Ele e 'artista de negocios', poisos negacios sao de arte e, por outro lado, a arte e uma ques-
tao de negocios.
o negocio e garantido pelo Nome, que se autoprocla-
rna, pela ubiqiiidade (intemacionalizacao) do produto, pelo
tamanho da empresa e de suas rmiltiplas filiais, pelos papeis
desempenhados simultanearnente pelos agentes da empre-
sa. Sao esses elementos que tornam verossirnil, em outras pa-
lavras, que transformam a ilusao da realidade em realidade
de uma ilusao.
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1 2 0 ANNE CAUQUEUN
4. 0 transformador Warhol
Tomar crivel uma ilusao nao tern side a grande questao
da arte desde a Antiguidade? Mas essa busca da ilusao na~ e
exercida da mesma maneira nem a respeito dos mesmos ob-
jetos. lmitar os temas da natureza ou 0processo dela, como
o da luz ou da construcao do visivel, coloca 0artista em urna
situacao de ter de responder a urn destine impasto de fora.
Trata-se agora de construir esse destino, comandando e ge-
rindo ele mesmo a empresa ilusoria,
A definicao de arte como negocio e do artista como
homem de negocios da arte e uma proposicao terminante,
que da seguimento as proposicoes de Duchamp. Ela nao
parece cinica a nao ser aos olhos daqueles para quem a arte
tern ainda alguma coisa a ver com a estetica: 0gosto, 0belo e
o unico, De fato, ela e nao 56 coerente com 0Wa rh ols s ys te m
(0 sistema de Warhol), com as proposicoes da pop art, da arte
conceitual e do minimalismo, como portadora de uma des-
mistificacao fundamental na qual residern justamente as en-
cantos da arte contemporanea, orientada segundo os prin-
cipios da comunicacao,
o percurso sonhado por Andy Warhol- passar do status
de artista comercial ao de artista de neg6cios - esta cornple-
to. No caminho, fechou-se tarnbern a definicao de arte con-
temporanea - fora da subjetividade, fora da expressividade -
na qualidade de sistema de signos circu1ando dentro de redes ,
Definicao estrita, quase insuportavel em seu rigor.
'.-
ARTE CONTEMPORA. .. .l \, J EA :M A INTRODU~O 1 2 1
A esses dois embreantes que sao Duchamp e Warhol
convem acrescentar um terceiro elemento de transformacao:
Leo Castelli, agente.
III. LEO CASTELLI (1907-1999)
Figura emblernatica do mercado internacional, como 0
chama Moulin", a galer i s ta -marchand Leo Castelli se deu
canta, como Warhol, do partido a tirar das redes de comuni-
cacao. Muito cedo, ao longo dos anos 1 9 6 0 , desempenhou
o papd de lfder de outras galerias, participou diretamente
da construcao de artistas reconhecidos, lancou artistas da
pop art, da arte conceitual e do minimalismo.
Os artistas que ele apoiou foram Robert Rauschenberg,
Jaspers Johns, Frank Stella, Warhol, Lichtenstein. 0sucesso
de sua galeria se deve a exploracao dos seguintes principios:
A) A in formadio
E a pedra angular do sucesso. Manter-se informado so-
bre 0que se passa no meio da arte, nao somente nos Estados
Unidos mas tambern na Europa. Castelli fala seis idiomas,
mantem cantatas com museus europeus, marchands e cole-
cionadores dos Estados Unidos e do Canada. Esses contatos
24. Raymonde Moulin, 'Le marche et Ie musee, la constitution des
valeurs artistiques contemporaines', R e ou e F r an c oi se d e S o do lo gi e, XXVII-3(1986).
5/14/2018 CAUQUELIN, Anne - Arte contemporânea - uma introdução - slidepdf.com
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122 AN}, 'E CAUQUELIN
s6 se tornam possfveis porque, ern vez de fazer concorrenda
(que e uma das leis do regime de consumo), firma acordos.
Seus assistentes e ele mesmo exploram os atelies",
Ivan Karp, por exemplo, 0mantern a par do que se pas-
sa no underground nova-iorquino. E por meio dele que che-
ga a informacao sobre 0 que Warhol esta fazendo, Em Urn
primeiro momento, a visita ao atelie nao the parece corwin,
cente, 0trabalho e proximo dernais do que Lichtenstein faz,
Mas a exposicao que Warhol monta em 1962 na Stable Gal-
lery abre-lhe os olhos: ele sera 0galerista incondicional de
Warhol ate sua morte.
Manter-se informado e, por urn lado, ver os artistas, mas
e tambem se docurnentar e docurnentar todo comprador even-
tual: os catalogos, 05p r e s s kits sao largamente distribufdos aos
jornalistas. Os cat.ilogos se tornam cada vez mais l uxuosos ,
B)0 consenso
Contudo, essas informacoes, para serem levadas em
conta, necessitam nao somente de entendimento entre ga-
leristas mas tambem de certo consenso. Os criticos de arte,
os conservadores dos grandes museus, a imprensa de arte for-
mam urn conjunto do qual depende a validacao das obras e
dos movimentos.
E irnportante obter 0 consenso para promover urn novo
artista. Todo urn trabalho de preparacao e necessario. Assim, a
2 5 . C l a u de Berri r enamtre Le o Cas te l l i , editado por Ann Hindry (Renn,1991).
''-
A R T E (ONTEMPOAANEA UMA INTRODU~O 123
sucesso de Rauschenberg na Bienal deVeneza em 1964 foi pre-
cedido de grande mimero de exposicoes na Europa. Mas ele
tarnbem se beneficiou do apoio do grupo fonnado pelos habi-
t u e s da galeria de Castelli, escolhidos a dedo, e cuja importan-
ciana arte norte-americana era reconhecida: Richard Bellamy e
David Whitney, 0c?nservador Alan Solomon, a critica de arte
Barbara Rose, assirn como os colecionadores R e E . Scull.
. 0 consenso repousa portanto nas relacoes mundanas
e midiaticas, urna verdadeira rede mantida por Castelli. Ele
mesmo chama sua galeria de c lub.
o0bloqueio
Uma vez estabelecido 0sucesso de urn artista, 0prestfgio
de Castelli aurnenta. Ou seja, sua credibilidade, 0que e 0mes-
mo que dizer que 'Castelli era 0mais irnportante marchand da
nova arte porque representava urn mimero grande de artistas
apoiados por urn consenso' . Sua reputacao repousa portanto
sobre esse consenso, forjado por uma longa labu ta, e sua re-
putacao faz com que, assirn que apresenta urn artista, a con-
sensa ja tenha sido feito a seu favor. (Era exatamente por isso
que Warhol desejava ir para a galeria de Castelli) Assim, a
apresentacao de artistas que obtern 0consenso e a garantia do
nome Castelli , que, como retorno, afianca-a, Ao associar seu
nome ao sucesso de Jaspers Johns, Lichtenstein, Stella, Raus-
chenberg e WarhoL.Leo Castelli faz de si urn selo, urna marca.
Se Leo Castelli nao e a sopa Campbell's, e aquele que vende
ao mundo inteiro a sopa Campbell's.
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1 2 4 A "lN E CA U QU E LIN
D) A in te r nac iona li zao io
"Sempre aehei que meus artistas preeisavam de uma
reputacao mundial." Essas palavras de Leo Castelli indieam
bern urn dos fenomenos ligados a comunicacao, Para ser
eficaz, uma rede deve se estender, tornar-se pratieamente
mundial. Para fazer a arte norte-americana ser conhecida nos
Estados Unidos, era preciso dar essa volta pelo estrangeiro.
o esforco publicitario recai sobre as galerias e os marchands
do alem-Atlantico. Uma rede de galerias amigas - estas fir-
maram com ele acordos comerciais prevendo partilha de co-
missoes - cobre os dois continentes.
Sao as galerias des Estados Unidos, do Canada e da
Europa que mostrarao 'seus' artistas e e par intermedio delas
que 70% das obras serao vendidas, Ileana Sonnabend em
Paris, depois Daniel Templon e Yvon Lambert. Paul Maenz
na Alemanha, Paul Mayor em Londres, Margo Leavin, Jim
Corcoran e, em Los Angeles, Dan Weinberg. Essas galerias
amigas confiam em Castelli, concedern-Ihe urn credito que,
estao seguras disso, deveria Ihes proporcionar uma notorie-
dade aumentada, "Elas tinham em mente que, vindo ate mim,
iriarn descobrir que eu tinha bons artistas. Eu comeeei tam-
bern a dividir artistas com outras galerias.2b "
Ja que ha uma lei que determina que toda informacao
que circula em uma rede seja de inicio e antes de mais nada
uma informacao, ou seja, uma realidade, poueo importa sa-
26. Ibid., p. 69.
j\RTECONTEMPoRANEA: UMA INIRODU~O 1 2 5
ber a qual verdade au a qual ilusao artfstica essa informa-
~ao corresponde. _
Assim, Leo Castelli compreendeu a li<;aodas redes: nao
se pode ter apenas urn, e precise que eles todos se mistu-
rem e que se eubram uns aos outros As r ed e s m unda n as (mos-
trar-se em toda parte, estar em todos os eventos) tem tanta
importancia quanta as r ede s m idi d ti cas (sua cobertura e in-
dispensavel), e estas sao, definitivamente, r e de s c ome r ci a is .
Apresentar aqui Leo Castelli como um dos embreantes
da arte contemporanea e aeentuar a importancia desse mo-
delo para as galerias contemporaneas que aspirarn, todas, a se
tomar a Castelli do momento. Forem, nem todas compreen-
deram 0processo de busca do sucesso que ele alcancou. E ,
por outro lado, reconhecer a imporrancia e a influencia da
arte norte-americana da qual ele foi 0mais fervoroso defensor.
E
etambern se perguntar se seu desejo de ocupar urn espaco
na arte conternporanea, promovendo 'seus' artistas, con-
tribuindo assim para escrever as paginas da contemporanei-
dade, nao teria side atendido muito mais pela utilizacao de
urn sistema de comunicacao bastante eficiente do que par urn
gosto e urn julgamento estetico infalivel.
(...) Eu preferiria ser diretor de urn grande museu, mas
me dei conta de que [as diretores] nao tinham muita liberda-
de; 0offcioque exerco e a maneira pela qual 0 face me per-
mitiram cometer todas as loucuras".
27. Ibid.
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C A P i T U L O I I
A ATUALIDADE
Acabamos de ver como as embreantes abalaram a cam-
po da atividade artfstica, introduziram urn novo jogo. des-
prezando as valores tradicionais da estetica, lancaram pala-
vras de ordem, apontaram direcoes, ate mesmo diretivas.
Mas seria ingenue e irrealista acreditar que a arte contem-
paranea - obras e artistas - segue ao pe da letra essas de-
termina\,oes. 0 que encontramos atualmente no dominic
da arte seria muito mais uma mistura de diversos elemen-
tos; as valores da arte modema e as da arte que nos chama-
m as de conternporanea, sem estarem em conflito aberto,
estao lade a lado, trocam suas formulas, constituindo entao
dispositivos complexos, instaveis, maleaveis, sempre em trans-
formacao, Urn trabalha ' a . mao' e confia nos criterios esteticos
retomando, contudo, por sua conta, os 'temas' dos embreantes
e se servindo das redes de comunicacao a maneira de Warhol.
Outro, sempre pronto a trabalhar 'a maneira de Duchamp',
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128 ANNE CAUQUELIN
continua tradicional em seu modo de comunicar sua obra
ao publico. Em surna, e por fragmentos que as proposi~6es
dos embreantes sao utilizadas. A mesma coisa em rela~ao
aos 'profissionais' da arte: uns poucos galeristas ou censer.
vadores (sern falar dos criticos de arte e dos historiadores)
lhes dirac que pouco se preocupam com 0genio, com 0ca-
rater artista do artista, com 0alcance universal de sua obra
ou das quaJidades propriamente esteticas de seu trabalho.
Ao contrario, eles desenvolvem urn discurso de glorifica~ao
da imagem do artista tanto para nao chocar a opiniao pu-
blica (pois se trata de uma fonte de mercado) quanto por
conviccao pessoal. Quanto aos artistas, mesmo que recupe-
rem os 'temas' duchampianos, suas proposicoos navegam
em meio a urn clima que valoriza 0 artista e a arte e estao
muito longe de mostrar 0mesmo distanciamento ironico
diante dos valores.Com efeito,ha insistenda e apego a certa ideiaou imagem
da arte que se instrui em uma longa historia e cujoprestigio,
longe de se apagar sob 0peso das novas producoes, aumenta,
no sentido contrario ao pavor que sua perda provocaria.
1.0 P6S-MODERNO OU AATUALIDADE DAARTE
Essa mistura de tradicionaIismo e novidads, de formas
contemporaneas de encenacao e de olhar na dire\ao do pas-
sado caracteriza0que se convencionouchamar de p r 5 s - m o d e m o .
ARTE CONTEMPOAAh' EA : UMA INTRoDU<;AO 129
E necessario, portanto, distinguir arte contempori inea de
arte atual . E a tua l 0conjunto de praticas executadas nesse do-
minio, presentemente, sem preocupacao com distincao de
tendencias ou com dedaracoes de pertencimento, de rotulos,
Nao se pode realmente definir 0pos-moderno como 'con-
temporaneo' no sentido que lhe haviamos atribuido - intei-ramente voltado para 0 comunicacional, sem preocupacao
estetica - mas simplesmente como aiual. 0 termo designa
justamente 0heterogeneo, ou a desordem de uma situacao
na qual se conjugam a preocupacao de se manter ligado a
tradic;aohistorica da arte, retomando formas artisticas expe-
rimentadas, e a de estar presente na transrnissao pelas redes,
desprezando urn conteiido formal determinado. E , pois,uma
formula mista, que concede aos produtores de obras a van-
tajosaposicao de portadores de uma nova mensagem e des-
loca ou inquieta os criticos e historiadores de arte, que nao
sabem como capta-la nem a quem aplica-Ia.
Podemos nos Iembrar da origem do termo, primeira-
mente utilizado pelos arquitetos em sua contestacao da arte
modema, como a de Bauhaus, 0 'pas' sendo entao urn 'anti'.
Duas preposicoes que sugerem uma sequencia, urn praces-
so temporal.
Com efeito, ao contestarem 0funcionalismo, os arqui-
tetos foram levados a buscar seus modelos no contrario, 0
omamentalismo, e a fazer citacoes sem renunciar, no en-
tanto, as aquisicoes tecnicas do modernismo. 0 'pos' e , ao
mesmo tempo, urn 'anti', au seja, urn retorno, medido e do-
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1 3 0 A N NE CA UQ U EL IN
sado, a certas formas do passado arquitetonico. Vem da i a
ideia de uma cornbinacao de elementos, de um misto. Pros-
seguindo, 0termo pode designar uma especie de indiferen-
ca em relacao a marcha tradicionalrnente linear de uma histo .
ria das formas, em suma, a recusa a participar de uma his-
toria em progresso. 0 tempo dos 'grandes relatos' passou;a narrativa epica cede diante do trabalho dos detalhes, da
atencao ao minimo, ao corriqueiro. 0 movirnento entao afe-
ta nao somente as artes plasticas mas tambem outras formas
de atividade, como a producao literaria, a sociologia, a pro-
pria historia'.
Criticada, definida e redefinida, rejeitada ou abusiva-
mente utilizada, a nocao de poe-modernismo pelo menos mos-
tra muito daramente 0desconforto em que se encontram
o critico, 0 teorico e 0historiador de arte diante da atuali-
dade artistica.
Em sua indeterminacao essencial, a situacao em que 0
termo nos coloca tern de interessante 0fato de deixar0histo-
riador na obrigacao de se voltar criticamente a sua discipli-
na, ou seja, de se questionar a respeito nao somente de seu
metoda historico e crftico como tambem sobre 0objeto ao
qual se dedica (apropria arte), seus processos e 0papel de-
sempenhado pela historia na interpretacao que se pode dar
a isso tudo.
1. 0. jean-Francois Lyotard, La c on ditio n p ostm od em e, r ap po rt s ur Ie
savoir (Ed. de Minuit, 1979); L e p osim od em e e xp liqu e a ux e nfa nts (Galilee,1986); Henri Meschonnic, Mod er ni te , m o de m it e, op. cit.
'.-
A R ' f E CONTEMPOAANEA: UMA INTRODU<;AO 1 3 1
E por isso que numerosos te6ricos, ao tamar como pon-
to de apoio a que e apresentado pela arte atual, arneacam
as not;6es sagradas de desenvolvimento, influencia, atribui-
t;ao, autenticidade, intencionalidade e autor.
Efetivamente, certo ruimero de artistas - seguindo
Duchamp, mas tambem coniventes com a critica filosoficae social das iiltirnas decadas - recusa 0 autor como sujeito,
exigeseu apagamento, indo ate a reivindicacao do anonima-
to.Recusam-se a se inscrever em uma 'Iinha', sempre ideolo-
gica,e coneentram sua atencao nos locais institucionais onde
sao produzidas as obras, uma vez que - sempre de acordo
coma licao de Duchamp - sao exatamente esses lugares que
definem a arte como arte.
Toda essa bateria de concepcoes perturba efetivamen-
tea eritica,roubando-lhe os fragmentos de escolha sobre as
quais se fundava ainda ha pouco.
Muitos trabalhos publicados ultimamente, como 0de
Michael BaxandalF, de Hans Belting, de Svetlana Alpers',
analisamde maneira critica a nocao do fazer artistico. 0 pro-
jeto de obra e sua realizacao nao pertenceriam a urn siste-
ma de decisao - 0rnesmo que da conta da producao de urn
trabalho tecnico como a ponte sobre 0 rio Forth? Nao seria
suscetivelde uma analise em termos de determinacoes su-
2.Michael Baxandall, Fame s d e I ' in tent ion (Jacqueline Chambon, 1991).
3. Hans Belting, L:his taire de r a rt e s t- e ll e f in i e? (Jacqueline Charnbon,
1991).
4. Svetlana Alpers, L'atelier d e Rembrandt: la l iber te, la peinture et l'argent(Callimard, 1991).
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132 ANNE CAUQUEL IN
cessivas, de conflitos de racionalidades, de multifinalidades?
Se e assim, 0 que aconteceria com a nocao de autor integral,
livre e criativo? Adernais, e surpreendente que a crftica do es-
quema tripartite de decisao tenha side feita ja h < i muito tem,
pas no dominio de atividades sociais ou politicas, e que tenha
sido necessario alcancar a situacao atual da arte para tocar
no processo de criacao artfst ica.
omesmo acontece com a hist6ria e sua cronologia. Sua
continuidade, ostentando sem dificuldade sua magnificen-
cia gracas ao subterfiigio das influencias, a caloca em situa-
~aodelicada quando se toma consciencia do estado atual da
arte. Mais ainda, se considerarrnos a arte contemporansa,
Rupturas numerosas, falhas profundas impossfveis de ser atri-
buidas a algum precedente. Causalidade em perigo. E, contu-
do, ha born mimero de Iigacoes com 0 ambiente sociopoliti-
co, possibil idades de isolar 'pacotes' de expressao, Em outras
palavras, possibilidade de apreender seqiiencias condicio-
nadas pela unidade de urn problema. Uma vez satisfeitos os
dados do problema, abrir-se-ia entao outra serie de quest6es,
independente da primeira: as normas rnudam, os conceitos
devem novamente ser questionados e teorizados. E 0 caso
da arte atual: para urn historiador consequente, trata-se de
interpretar as novas regras do jogo, teorizando esse pluralis-
mo sem !he aplicar as normas do passado. As nocoes de ori-
5. Como a Critique de fa decision de Lucien Sfez, ~ I'd. (Presses de [a
Fondahon Nationale des Sciences Politiques, 1981) I' L a decision (pUF,
1984. CoL Que sais-je?).
'.-
A R ' f E CONTEMPOAANEA : UMA INTRODUc, :AO 133
ginalidade, de conclusao, de evolucao das formas ou de pro-
gress.3.0na direcao de uma expressao ideal nao tern mais ne-
nhuma prerrogativa nesse momenta de atualidade pos-mo-
dema. A nocao de sujeito, ja criticada no campo das ciencias
sociais, torna-se problernatica, au seja, precisa ser preble-
matizada; depois dela, a da intencao, considerada, depois de
Wittgenstein e da filosofia anali tica, uma simples jogada ini-
cial: uma proposicao de linguagem, sem conteiido secreto.
Intenc;ao e realizacao sao uma iinica e mesma coisa. Os esta-
dos sucessivos da realizacao sao testemunhas de urn propo-
sito ou de uma direcao cuja forma nao e possivel adivinhar
antes de 0processo ter side conclufdo. Contrariamente a ideia
recebida, a intencao 56 e discemivel a po s te r io r i.
II. DlSTlN~AO ENTRE OS DIFERENTES ESTADOS
DA ARTE ATUAL
Deixando, pois, ° termo po s -modemo com sua designa-
\ao de atualidade artistica e literaria global, vamos nos de-
dicar agora a isolar, na atualidade artistica. 'pacotes' ou se-
ries de situacoes contrastantes. Como fizemos em relacao
aos embreantes, vamos somente nos propor a escolher, en-
tre todos os artistas que ilustrarn essas diferentes series, urn
au dais especirnes particularmente representativos. Na ver-
dade, a questao nao e ser exaustivo, nem seguir uma crono-
logia nem as labirintos de encaminhamentos singulares, mas,
sim, destacar estruturas e situacoes,
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134 A NN E C AU QU EL IN
Segundo essa distincao, tres series vao reter nossa aten-
cao: a primeira se encarrega dos temas embreados por Du,
champ. A segunda reune os movimentos que estao reagin do
contra esses temas. A terceira finalmente incumbe-se das no-
vas tecnologias da comunicacao,
1.Depois dos embreantes: conceitual,
minimalismo, land art
A) A r te c o nc e it ua l
o divorcio entre estetica e atividade artfstica tornou-se
definitivo. Agir no domfnio da arte e designar urn objeto
como 'arte'.A atividade de designacao faz a obra existir en-
quanta tal. Pouco importa que ela seja isto au aquila, deste
ou daquele material, sobre este ou aquele suporte, feita a
mao ou ja existente, pronta, Nesse aspecto, reconhecern-ss
as proposicoes duchampianas. Elas se desenvolvem na dire-
(ao de urn trabalho sobre a propria designacao: a designa<;ao
pode se decompor em uma pesquisa sobre a nominacao -
ou seja, sobre a linguagem - e em uma pesquisa sobre a ex-
posicao, pois designar e tambem mostrar - sao os locais de
intervencao da obra que estao agora em questao.
B) a tra ba lh a sa bre a lin gu ag em
Nao e mais, como freqiientemente em Duchamp, urn
jogo articulando urn objeto e seu titulo, jogo que distorcia de
A R T E C ON TE MP oR AN EA : U MA IN 1R OD U<;:A O 135
certa maneira 0uso habitual para coloca-lo a parte, operan-
do assim urn distanciamento; agora, as proposicoes-titulos
sao em si mesmas seu proprio objeto. 0 que Joseph Kosuth
chama de iautologia passa a formar a base da arte conceitual".
A tautologia, como repeticao e duplicacao, e uma figu-
ra bern conhecida da ret6rica e que na linguagem comum e
pouco utilizada, em que dizer duas vezes a mesma coisa e
pleonasmo. Contudo, a tautologia interessa a 16gicae aos de-
senvolvimentos da filosofia analftica. De fa to, dizendo, por
exemplo, "eu sou quem eu sou", a repeticao vale por defini-
~ao; a referenda da segunda parte da frase e a propria frase,
a informa<;ao veiculada e interpretada como urn posiciona-
mento frontal e opaco do locutor. A obra, para a arte concei-
tual, afirma-se como tal exibindo-se opaca, auto-referendal.
Agindo assim, ela rompe com toda representacao de qual-
quer exterioridade. Ela e 0que ela diz que e. Sua autonomia
fica assim encerrada em si mesma, por pretericao,
Em urn tal dispositive, 0 engenho pict6rico e anulado,
o artista como autor se desvanece. A obra de Kosuth Five
w ord s in o ra ng e n eo n compoe-se desse enunciado inscrito em
neon com letras cor de laranja. 0 enunciado diz a respeito
de si mesmo que esta mostrando cinco palavras em neon la-
6.Joseph Kosuth, 'Art after philosophy' , em [ ar t c on ce pt ue l, u n e p e r s p e c -
tive, Musee d'Art Modeme de la Ville de P aris , 1990 . C f. tambern Catherine
Millet, I. e m on ta nl d e f a fll1lfOll; Catherine Prancblm, 'Cart conceptuel entre les
actes',em A rt P re ss , n~139 (seternbro de 1989); e Louis Cummins, Tart con-
ceptuel peut-il guerir de la philosophic?', Parachute , n~ 61 (1991).
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136 ANNE CAUQI JEL lN
ranja que sao 0que 0enunciado diz. Essa obra diz a respeito
de si que e urn enunciado a respeito dela mesma.
Mas pode se tratar de uma proposicao emitida pelo ar-
tista e pode se tratar de mensagens prontas recolhidas aqui
ou ali dentro da massa de textos disponiveis: excertos de jor-
nais, contratos, notas de lavanderia. 'Documentacao', como
as chama Kosuth. Prova material. as certificados de venda,
por exemplo,nao estabelecem somente a legitimidade da obra
ao mesmo tempo que seu valor mercantil; eles se tornam, ao
serem expostos, a substancia da propria obra. Lawrence
Weiner, Ian Burn, Ian Wilson, Carl Andre, Bruce Nauman,
Bernar Venet praticam a 'documentacao', Kosuth utiliza a
tautologia acompanhando a obra e xp os ta - que e urn contra-
to - da reducao dessa mesma obra, reducao que sera entre-
gue ao comprador no momento da transacao.
a apagamento do autor-artista -pintor e ainda redobra-
do pelo esmaecimento do conteiido da proposicao: ela nao
e mais para ser lida como uma mensa gem de alcance geral
au critic0,mas como simples dado afirmando sua identidade
como obra integral.
Esse jogo de names, que poderia ser considerado es-
teril, induz contudo a uma critica bastante radical do con-
junto de imagens do artista e do comentario: convida a in-
terrogacao a respeito das relacoes da obra com sua inter-
pretacao, sobretudo quando a proposicao exibida e apenas
urn simples nome: 0do autor, au 0de urn pintor notavel.
au ainda a serie do P or tr aits d e caracteres como a de Gerard
ARTE cor..TEMPOAANEA : UMA INTRODUc ;:AO 137
collin-Thiebaut, na qual se exibem tipograiicamente as na-
mes de personagens conhecidos.Aqui a obra se sustenta em
sua inscri~ao na historia para se declarar obra de arte. Refe-
renda suficiente, uma vez que se articula sabre paradigmas
ilustres e desse modo coloca no lugar aquele cujos vestigios
estao sendo exibidos na linhagem de seus predecessores'.
C) 0tr ab alh o n os lo ca is
A segunda linha de pesquisas a partir da posicao con-
ceitualdiz respeito aos locais inves t idos . Se 0discurso e cons-
titutivo da obra, a espa~o em que esse discurso e apresen-
tado passa a ser urn componente essencial dela. Trabalhar
esse local torna-se urn imperativo para urn movimento que
faz recair a identificacao de uma obra como obra de arte,
nao sobre seu conteudo, mas sabre sua afirmacao como tal.
E nesse sentido que e preciso considerar, par exemplo, os tra-
balhos de Daniel Buren" , Uma vez mais, nesse caso, ocorre
o apagamento do autor, paralelamente a uma pesquisa da
invisibilidade da intervencao nos locais. As famosas tiras
verticais, de uma obra voluntariamente neutra, dao lugar
aos tecidos manuiaturados, algumas vezes tom sobre tom
ouinteiramente brancos. Significa que a obra pode se com-
portar como urn 'local', urn simples involucre sem caracte-
ristica particular.
7.Catherine Bedard, Gerard Collin- Thiebaut, Parachute, n? 61 (1991).8.Cf. Daniel Buren, Michel Parmentier, Propos deliberes (Bruxelas, Art
Edition, 1991).
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138 AN N E C AUQ UEL IN
Recobrir uma tira branca com pintura branca ela mes-
rna cercada de outras tiras alternadas entre brancas e colon,
das,me levaa fazer perguntas a respeito da parede sabre a qual
estao apresentadas e, imediatamente, sobre as consequen,
cias do local no qua1se encontra a parede, quem e a seu pro-
prietario, quem vira olhar a parede, como ver a parede etc.'
A intervencao nos espa~os de exposicao, museus, gale-
rias fundamentou-se, e verdade, em urna critica socioecn,
nomica que era, no corneco, antiinstitucional, mas que teve
em seguida que se recompor com a institui~ao - esta ultima
sempre no encalco da critica a fim de engloba-la. Esse as-
pecto entice da arte conceitual nao e negligenciavel e a tor-
na decerto mais facilmente detectavel e qualificavei do que
outros movimentos que eompartilham os mesmos tema 5,
mas nao tem 0mesmo objetivo crftieo explfcito,
D) M i n im a l ism o
Vejamos 0 caso do minimalismo: apagar 0 conteudo re-
presentativo, reduzir a forma visivel a sua mais simples ex-
pressao, apagar 0vestigio do autor, tudo i5S0vem direta-
mente da atitude duchampiana. Mas, com 0minimalismo
a letra, a importancia da lingua gem tambem se apagam e se
mantem discretamente por tras do processo. Formas geo-
metricas, dessas que sao encontradas diariamente prontas
9. Ibid., p. 86.
''-
ARTE C ON T EM POAAN EA : UM A I NT RODUy\O 139
para serem usadas, como caixas, aparadores, simples bas-
toes, espetos, sao usadas para esse f im, Notadamente por
Don Judd. Trata-se de um jogo de espaco, de simples posi-
donamentos e nao mais de proposi~6es. Apos 0desvio por
intermedio da linguagern, a visibilidade se desembara~a de
sua carga emocional, expressiva, mas tambern de uma pro-
voca~ao relativa a linguagern que nao tern mais razao de
ser.0artista plastico retoma a seu trabalho com as formas.
Elerenunda desde logo a nao-opticidade, para construir ar-
quiteturas visiveis que se expressam por si, estabelecendo
as regras de sua percepcao. 0espa<;oe 0 tempo se tornarn
as categorias principais, nao tanto como suportes vazios
e formais do trabalho, mas como sua propria substancia.
Conceituais no sentido kantiano, os minimalistas fazem sur-
gir,permitem que sejam percebidos os conceitos a p rio ri
da percep~ao.
Os trabalhos de Stella, 0primeiro, segundo Leo Castelli,
a trabalhar as formas minirnalistas de objetos fabricados -
"nada e feito a mao, tudo e produzido industrialmente",
"redUl;ao das formas a uma simplicidade tao total quanta
posslvel"lO_, 05 de Robert Ryman, assim como os de Ad
Reinhardt, de Carl Andre, de Sol LeWitt au de BriceMarden
testemunham esse fato. Urn exemplo: os trabalhos de Sol
LeWitt sao acompanhados de anotao;oes colocadas ao lado
10. Art minimal II (Musee d'Art Conternporain de Bordeaux, 1987),
p.46.
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140A N N E CA U QU E LIN
dos desenhos, assim: "Dez mil retas secantes de 20 em de
eomprimento. Dez mil retas nao secantes de 20 em de com-
primenro"!'.
Quanta a Ad Reinhardt, ele designa a obra como "urn
objeto claramente definido, independente e separado de
todos os outros objetos e circunstancias (...) Um kane li-
vre, nao manipulado e nao rnanipulavel, nao fotografavel,
nern reproduzfvel, sern usc, invendavel, irredutivel, inexpli-
cavel (...) " 1 2
Urn serie de 'naos' sobrepostos as caracterfsticas con-
vencionais e que poem a nu 0ato artistico, distinto de qual-
quer marca exterior a seu proprio fundamento.
A mesma preocupacao em questionar as condicoss de
producao da obra alimenta 0movimento support-surface.
o retorno ao pictorico passa pela questao de sua possibi-
lidade. Sera. posta a prova a convencao do quadro tradicio-
nal, a moldura, 0suporte. a tela, a bidimensionalidade; mas
tarnbem as condicoes em que e pendurado, 0sitio e as ins-
tituicoes que se encarregam de tudo. Claude Viallat, Patrick
Say tour e Daniel Dezeuze rompem com a pintura de cava-
lete, enquanto e desenvolvida uma eontesta~ao polftieo-eco-
nornica baseada na analise marxista da situacao. Panfietos,
manifestos e textos tedricos se sucedern".
11 .A r l m i n ima l ll (Musee d'Art Contemporain de Bordeaux, 1987), p. 46 .12. Ibid., p. 14.
13. Cf. Jean-Marc Poinsot, Suppor t-sur face (Limage 2,1983).
T!
ARTE CO [\ .'T EMPoRANEA : UMA L1\ ,r rRODU t; AO 141
E ) L an d a rt
E tarnbem nesse sentido que convem interpretar a
la nd a rt.
Na verdade, 0que esta em jogo com a la nd a rt e exata-
mente a concretizaciio, a visibilidade presumida das catego-
rias do espac;:oe do tempo", Colocar um rochedo no deserto
de Nevada, tracar uma linha sobre quilometros de paisagem,
dispor circulos de pedras em um local afastado chamam a
atencao sobre a constituicao de uma cena que passaria des-
percebida sem essas marcas, sobre a cornposicao de toda
cena em geraI. Marcas que se fundem na paisagem natural,
apagam-se com 0 tempo, ou exigem tempo para descobri-
las au percorre-Ias. Invisiveis para as amadores devido a
seu afastamento, impossfvels de ser expostos em locais ins-
titucionais, afastados do publico, os trabalhos da la nd a rt fa-
zem do espectador nao mais urn observador-autor como que-
ria Duchamp, mas uma testemunha de quem se exige a
crenca: de fato, apenas as fotografias, um diario de viagem,
notas tomadas ao longo do trabalho de reconhecimento es-
tao disponiveis atestando que, de fato, existe alguma coisa
relacionada a arte acontecendo 'la longe', em algum lugar.
A presenca efetiva nos locais, ou seja, a relacao visual que
sempre e , de algum modo, de natureza emocional, esta es-
maeeida. E claro que ha algo visivel, mas esta fora do alcance:
e apenas seu duplo, uma marea de segundo grau que ates-
14. Cf. Gilles Tiberghien, L an d a rt (Carre, 1992).
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142 ANNE CAUQUELIN
ta sua possivel realidado>. A fotografia do trabalho efetuado
no sftio nao e , nesse caso, uma reproducao do real, mas urn
indice. Ela nao pode ser tom ada pela obra completa, em si,
mas como uma simples testemunha:
Quando se v e a obra (trata-se do Sp ira l j e t ty , de Robert
Smithson), nota-se que ela nao tern de jeito nenhurn essa ea-
racteristica puramente graf ica: se voce a considerar ass irn , es-
tara negando a experiencia temporal, que e 0eonteudo real
da obra".
o diario de viagem atesta 0passeio, a encaminhamento.
Balizas, marcos indicam 0percurso: a espaco se constr6i pro-
parcionalmente a obra . 0spaco nao preexiste ao usa que se
faz dele; e , ao contrario, 0usa que define 0lugar como lugar,
que tira 0espar;o de sua neutralidade 'natural' para artificia-
Iiza-Io, au seja, habita-lo.
"Urn local e urna area dentro de urn ambiente que foi al-
terado de maneira a tomar 0 ambiente geral mills percepti-
vel.?" Confrontada com 0 conceitualismo - que, por Sua vez,
construia a definicao de uma obra como obra de arte por
15. 0 aspecto 'ecologico' dessas a;;:6es, a critica do ambiente indus-
t rial e 0 retorno a n a tu re za , a o mesmo tempo que a critica dos espacos insti-
tucionais, es tao entre os componentes mais facilrnente detect3veis, mas r u oos mais importantes, da land art.
16. Richard Serra, dtado por Catherine Francblin, 'Une image entransit', L e e Cahiers du Musk National d'Art Modeme, n? 27 (1989).
17. Carl Andre, dtado por Thieny de Duve, 'Ex situ', L e s C a hie t» d u
Musee d'Art Modeme, n? 27 (1989).
'.-
A K T E CO? l .' TEMPORPu" JEA:l iMA INlRODUc;AO 143
sua relacao com 0 local preexistente -, a la nd a rt reforca a
ocupar;ao de urn territ6rio vazio, sem funcao especifica, que a
obra entao faz existir como local marcado, dotado de urn coe-
ficiente de arte e que, sem tal ar;ao, perrnaneceria desabitado.
Arte conceitual e la n d a rt, embora ambas se preocupem em
tratar da questao da relacao da obra com 0local, com 0sitio',
caminham, contudo, na direcao contraria, em espelho.
Esse duplo ponto de vista - trazer a baila 0local ins-
titucional existente (a museu) pela introducao da obra ou
assegurar a existencia de urn local ainda virtual, alterando-o
_ pode ser sustentado simultiinea ou sucessivamente pelo
mesma artista.
Assim, Buren pode ao mesrno tempo criticar 0 espar,;o
do museu por intermedio de todo um jogo de constrangimen-
tos, de recusa e de aceitacoes contrastadas, e propor urn lo-cal em movimento, animado por projecoes continuas de 320
fotografias sobre uma cortina de tecido". Ve-se Carl Andre,
cujonome e ligado ao minimalismo, enunciar proposicoes quepoderiam servir de bandeira it land art, como por exemplo:
"Minha escultura ideal e uma estrada" ou ainda "A posicaodo artista engajado e eorrer pete chao". Proposicoes que po-deriam ser as de Richard Long ou de Robert Smithson.
Pode-se evidentemente fazer distincoes sutis entre 0in
situ, a l an d a r t, as instalacoes minimalistas e os princfpios da
arte conceitual. Restam os topoi , os 'lugares comuns' desses
18 . Deambu la t o ir e apresentada em 1985.
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1 4 4 ANNE CAUQUEUN
diferentes movimentos. Destaque concedido as condi\"oes
de producao da obra, apagamento ou minirnizacao do su-
jeito, impacto da linguagem, secundarizacao cia realidade,
2.Area~ao
ou a neo-arte: figura~ao livre,ac tion pa in ting, body ar t
Em relacao a esses principios-axiomas claramente cen-
trados nas proposicoes duchampianas, a segunda serie de
manifestacoes artfsticas de que iremos falar agora se define
menos par uma posicao determinada em contradicao com
a primeira, par uma recusa motivada, do que por uma pra-
tica relativamente diferente au ainda heterogenea e ate mes-
rna variada. A pratica cIaramente leva a melhor em rela<;iio
as consideracoes, ditas intelectuais, das primeiras,
Contrapondo-se a nac-opticidade, ao apagamento do
autor e a inexpressividade, e , ao contrario, 0 'fazer' pict6rico,
a emocao primordial, 0gesto e 0 corpo, a espontaneidade,
que os artistas de pintura proclamam - pintura, de b a d p a in -
ting, de a c ti on p a in ti ng , de livre figuracao, de funk ar t, dos
gratites, au de body art. Cai entao em desuso a distin<;ao en-
tre atividade estetica e atividade artistica. Retorno a ideia tra-dicional do artista como autor. Contudo, 0 'qualquer coisa,
mas na hora determinada duchampiano e utiIizado, a linea-
ridade hist6rica e negada, e a simultaneidade das praticas,
assumida. Assim como tarnbem 0 conhecimento das redes
de comunicacao £ explorado.
TARTE CONTEMPOAANEA : UMA I l': TRODU<; :A o 1 4 5
Em suma, alguns fragmentos, pedacos destacados dos
princfpios, sao mantidos. Iracos subsistem, misturados: nao
saO esquecidos nem 0 support-surface nem a i n s it u, nem os
monoc:romos, nem os al l over ou 0dripping. Esse misto e rei-
vindicado como expressao da modernidade (isto e, da atua-
lidade). Dinc i ] de set colocado em f6nnulas, caracterizado parsua heterogeneidade, esse neo-retorno pretende ser 'impuro'
em oposicao a pureza dogmatics dos conceituais.
Nos seremos, pois, conduzidos a tratar das individuaii-
dades reagrupadas de acordo com 'estilos' de expressao, mais
do que com posicoes firmemente enunciadas.
A) Figuradio l ivre , instalacoes
o rnaior dos grupos, do qual faz parte uma boa parte
dos artistas 'neo', £ a da figuracao livre. Designacao que nao
e uma estrategia, longe disso, mas que envolve, antes, uma
'atitude': a da espontaneidade, da expressao individual. A par-
tir do desenho animado, da publicidade, dos cartuns, sabre
suportes heter6clitos: telas soltas, cartazes, canoes recupe-
rados, latas velhas, grandes empastamentos coloridos, mis-
turando tecnicas (a descri<;ao ' recnica mista' acompanha
com freqiiencia as obras), colagens, pecas juntadas, rasgadu-
ras. Os personagens ou as hist6rias sao recolhidos na 'cul-
tura popular', aquela que as midias transmitern e exibem.
Ben(Benjamin Vautier), que batizou a movimento, liga-se, par
sua parte, a tradicao dadaista: ironia, violencia, antiintelec-
tualismo, anti- historicismo, auto-escarnio. Apesar de grande
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146 A N N E C A UQ U EL IN
admirador de Duchamp, Ben nao se liga a arte conceitual, em
parte pelo 'feito a mao' e pela significacao nao auto-referen-
cial de suas mensa gens.
"Pintar antes de pensar", tal poderia ser 0lema de Robert
Combas e di Rosa, assim como de Herve Perdriolle e Francois
Boisrond. Arte que se pretende, pois, popular, ou seja, aces-sivel a qualquer pessoa. "E apenas uma sensacao, nenhuma
racionalidade interna ... Eu nao reflito antes de pintar." 0 ins-
tinto tern a primazia.
Espontaneidade, expressionismo. individualismo: 0re-
torno a figuracao se faz por urn retorno ao primitivo. Os per-
sonagens sao 'pessoas comuns', como nos desenhos de crian-
cas, capias ingenuas de 'imagens' cujos traces sao cuidado-
samente desenhados.
o que confere, contudo, 0 toque de contemporaneidade
aos artistas da figuracao livre e a utilizacao da cultura midia-
tica: sua ingenuidade pictorica, com efeito, para onde come-
ca a publicidade. Mais precisamente, como assinala Cathe-
rine Millet": "Quando a arte recorre a estetica das midias,
ela se presta particularrnente bern a sua aplicacao midiatica".
Aqui, como em Warhol, 0 contetido pictorico esta em
estreita ligacao com a estrutura de comunicacao na qual ele
se apresenta a vista e a circulacao, 0 axioma da sociedade
de comunicacao, segundo 0qual urn produto deve circular
em diversas midias, se ve da mesma maneira realizado na
19. Catherine Millet, r :a rt c on te mp or ain e n F ra nc e (Flammarion, 1987),
p.232.
ARTE CONTEMPORANEA : lJII,fA Ir- . 'TRODU~O 147
figuracao livre: os costureiros, os fabricantes de brinquedos,
o design, 0movel sao investidores assiduos. Quanto a ence-
nacao midiatica de seus trabalhos, ela e dessa vez bern pen-
sada, e sem diivida 'antes' de ser pintada. 0 que ha entao e
urn eco abafado - pois ele nao e mais provocative - da pra-
tica warholiana de redes.
Da mesma mane ira, tambem se ouve urn eco de crftica
in s itu nas in sia la oie s - que poderia ser posto na conta da fi-
gura<;.1olivre, na qualidade de pratica ecletica nao-critica.
Dramaturgia: a atividade artistica intervern como dispo-
sitivo teatraI. Como 0 termo 'instalacao' indica, trata-se me-
nos de criticar 0local institudonal, a maneira de Buren, do que
de se instalar la por causa da 'visibilidade' e da integracao, re-
tornando a ilusao perspectivista, a instalacao 'abre' urn espa-
< ;0 de representacao no qual se produzem objetos de arte".
Aqui podem ser representados todos os tipos de cenas: seja acolocacao em perspectiva de espacos em tensao, seja a cena
domestica insignificante da vida cotidiana. do escritorio, au
do atelie do pintor, au ainda do local de exposicao, abertos as-
sirn a transparencia", E 0ambiente da atividade artistica que
esta sendo comunicado, segundo uma das leis da rede de co-
municacao: a mensagem que transita dentro da rede e menos
importante do que a visibilidade da rede em si.
20. Bernard Marcade, 'I.:"insitu comme lieu commun',Arl Press, n~ 137
(1987).
21. Rene Payant , 'Une ambigui te resis tants: I 'insta llat ion ', Parachute,
n~39 (1985).
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1 4 8 ANl \: "E CAUQUEL IN
B) A ctio n p ain tin g, b ad p ain tin g, b ody a rt, fu nk a rt, gra fite
A lista e incompleta por definicao. Com efeito, nesse
retorno ao 'estilo', a originalidade, a individualidade - ou in-
dividualizacao - sao a regra: as denominacoes florescem, nas-
cem e morrem em uma efervescencia 'expressionists'. 0que
une esses movimentos e a referenda ao gesto, ao corpo e a
reacao ao ambiente direto. Esse ambiente pode ser a parede
ou 0metro (grafite e pichacoes ), a cidade (intervencoes), 0
proprio corpo (tatuagens, happening s ) , objetos usuais ( a rt c lo -
che ) . A arte assume com freqiiencia uma postura de reivin-
dicacao: 0corpo na cidade conternporanea e negado, rejei-
tado, neutralizado, funcionalizado ao exagero. E apenas uma
per;a de um jogo abstrato, dentro de uma enorme maquina
que devora a energia. 0 artista reivindica entao um 'direito
ao corpo', it emocao carnal, mesmo que tenha de passar pelo
sofrimento - a b od y a rt poe em cena 0 corpo torturado do ar-
tista" -, 0inaceitavel, 0feio, 0sujo. mesmo 0pavoroso. Como
qualquer corpo, do qual ela seria a expressao, a obra e efeme-
ra, convive com a escatologia, 0dejeto e 0lixo. Um dos aspec-
tos dessa atitude e a fu nk a rt, que tem as mesmas origens do
punk , utiliza os mesmos procedimentos satiricos e caricaturais.
Se esse segundo grupo parece muito dividido, disper-
so, em agitacao continua, nem por isso deixa de apresentar,
globalmente. uma coerencia, nao tanto pela preocupacao em
22. Francois Pluchart, L l ar t c o rp o re ! (limage 2,1983).
ARTE CONTEMPORM.:EA: L'MA INTRODU<;:AO 1 4 9
respeitar principios ou em seguir uma linha, mas pelo fato
de estar manifestamente ligado a uma realidade conternpo-
ranea: a da comunicacao generalizada.
Quais sao, verdadeiramente, as marcas 'comunicacio-
nais' das obras dessa ultima serie?
Uma conivencia acentuada com os modos de transmis-
sao midiaticos da informacao:
1. Sao os apoios publicitarios, como os jornais, dese-
nhos animados, cartazes e inscricoes murais que alimentam
a figuracao.
2. A individualizacao, 0estilo proprio de urn artista, e exi-
gido para 0reconhecimento de uma mensagem dentro da
rede: de certa maneira corresponde ao c6digo obrigat6rio para
entrar nela. Ate mesmo se, paradoxalmente, a rede 0trans-
porta em seguida de maneira quase ubiqiiitaria e, portanto.
anonima a toda especie de veiculo - carnisetas, bot toms, em-
balagens etc. 0 retorno do estilo, desprezado pelos concei-
tuais porque representava uma evolucao da forma pictorica
ligada it hist6ria da arte, e urn fenomeno menos intencional-
mente 'artistico' do que resultante de uma entrada em rede.
3 A nao-distincao entre os diferentes generos tradicio-, -
nalmvr> -parados: pintura, escultura, design, arquitetura
de intenores, decoracao, grafismo. A rede aplaca as diferen-
cas ao mesmo tempo que exige, como acabamos de ver, 0
c6digo proprio de um autor.
4. A tendencia it saturacao da rede por repeticao anula
o efeito de novidade. A obrigacao entao
ede introduzir micro-
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1 5 0 AN l\ :E C AUQU EL IN
diferenciacoes.E, ligada a essa ultima caracteristica,a necessi-
dade de certa rapidez de execucao:a 'pincelada breve' da pin-
tura, a Iigeireza podem ser reivindicadas como 0principio da
espontaneidade, mas sao na verdade 0resultado de uma ve-
locidade de prcducao exigida pela estrutura da comunica-;ao.
A atividade artistica e assim estendida largamente a se-
tores diversos, sem levar em conta a qualidade estetica do tra-
balho e, mesmo que a figuracao esteja de volta, as qualida-
des formais que antigamente eram ligadas a ela sao deixadas
de lado. Dispositive fragmentado: por urn lado, a palavra de
ordem duchampiana e respeitada - a atividade artistica nao
esta mais centrada na estetica -, mas ao mesmo tempo co-
res, formas, referenda ao real em representacao ilusionista,
apresentacao tradicional em telas sabre cavaletes ou obje-
tos a vista, tudo isso e mantido. 0 choque dos dais sistemas
contraries produz urn e fe it o c on tempo ran eo desconcertante
para 0espectador.
Ao lado dessas duas series - uma atividade artfstica
que leva a serio a pesquisa conceitual e questiona as condi-
~6es de possibilidade da obra, e uma atividade sobretudo
relacional, que adota como suporte uma tradicao pictorica
antiga no que ela tern de mais banal- instaura-se outra ati-
tude diante das tecnicas de comunicacao: a utilizacao, co-
mo materia-prima, de uma atividade artistica, de maquinas
que comunieam par si.Tern, pois, de ser repensados urn pro-
eesso 'criativo', a imagem do artista, a ideia de uma 'obra' ter-
''-
A RTE CON TE MPoR AN EA : U MA IN TR ODU <;:A O 1 5 1
minada, de urn objeto de arte. Em suma, a arte em seu con-
junto esta em busca de uma nova definicao, em busca tam-
bern de uma posicao reconhecida pelo conjunto dos atores
de cena artfstica.
3.A arte tecnoI6gica
Aqui, ainda devemos distinguir duas praticas.
, A primeira utiliza meios de comunicacao tradicionais:
o correio, os envios postais (mai l ing) como suporte de uma
atividade artistica livre, cujos principios sao os da figuracao.
Ou ainda tecnicas mistas como as que aliam nas instalacoes
irnagens de video, de televisaoe intervencoes pictoricas.Esses
dispositivosfazem atuar as novas tecnologias de maneira pon-
tual e dentro de uma esfera definida como artistica.
A segunda pratica joga com as possibilidades do com-
putador como suporte de imagens, mas, sobretudo, como ins-
trumento de composicao. Outro universo e explorado a par-
tir dos sofrwares; uma segunda realidade se constr6i pouco a
pouco, enquanto se constroi tarnbern uma relacao nova no
processo da obra, no ambiente social e na realidade virtual.
A) Ma il a rt, a rte s oc io l6 gic a, v id eo ar te
o suporte postal e utilizado como rede de atores. Os
enviossao feitos entre artistas ou entre artistas e destinata-
rios anonimos e constroem uma trama de acontecimentos.
Materia-prima da comunicacao, essa troca permite construir
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152 A N N E CA UQ U E LIN
uma obra a diversas vozes, abalando assim a nocao de autor
iinico, 0tempo da producao e posto em evidencia, e a referen-
cia e questionada. Ligada a transmissao. a m ail a rt destaca a
irnportancia contemporanea da informacao e da necessidade
de constituir redes. Nisso reside seu aspecto sociologico. Na
vertente propriamente artfstica, a atividade textual da m ail a rt
esta freqiienternente proxima da arte conceitual. Dentro da
mesma linha, a co py a rt utiliza sistemas mais sofisticados - fo-
tocopiadores, telecopiadores e geradores de imagens video-
grMicas e infogrMicas. Sao instrumentos de composicao de
imagens e de transmissao que provocam urn curto-circuito
- ate certo ponto - no sistema tradiciona! de exposicao. 0 mu-
seu se torna entao uma "tela de exibicao do virtual, 0ponto
de emergencia do organismo difuso e reticular da cria~ao"23.
Em 1982, na Bienal de Paris, Don Foresta faz intercam-
bios de imagens par linha telef6nica dos Estados Unidos: ,
em 1983, com L a p liss ur e d u te xte , Roy Ascott exp6e seu pro-
jete de trocas planetarias.
Com a ar te soc io l 6gi ca , vai -se mais adiante na utilizacao
da rede de comunicacao multirnidia. Com a intervencao das
redes existentes, como a televisao hertziana, 0satelite, a ra-
diodifusao, a transmissao telefonica. os instrumentos nao
sao rnais a origem da producao de obras, mas, sim, a trans-
missao ja existente (uma especie de ready-made irrvisivel),
23. Jean-Louis Boissier, 'Machines a communiquer faites ceuvres',
em Lucien Sfez (org.), La c ommun i ca t io n (PUF/Cite des Sciences, 1991).
. . . . .
A R TE C ON TE M Po RA N EA : U M A lNIRODUC;:Ao 153
na qual trabalha 0artista da comunicacao. 0prop6sito e tor-
nar 'visivel' a invisibilidade do regime de redes. Sociol6gica
porque as intervencoes vern embaralhar as evidencias de uma
transparencia da informacao, tornando sensivel e critico urn
universo de comunicacao que pareeia funeionar automa-
tieamente. Se nos vivemos, sem saber, em um mundo en-
tregue as transmissoes mais ou menos mecanicas, para nao
dizer maquinais, a arte sociologica nos convida a tomar cons-
. ciencia do fato, com urn tom frequentemente satirico, qua-
se dadaista.
Fred Forest, que lancara a metro quadrado artfstico (com-
pra-se um metro quadrado de terreno dito 'artistico' e entra-se
assim na esfera da arte, tornando-se um artista), faz correr
uma torneira por intermedio de uma chamada telefonica pas-
sando par T6quio e NovaYork,coloca na imprensa amincios
.de procura-se uma pessoa desconhecida que deve ser identi-ficada,interfere em programas de televisao,enviando uma ima-
gem sabre a tela, apropria-se par alguns minutos de uma cadeia
de televisao, transmite, em publico, conversas vindas de todos
os pontos do globe".
A videoarte se serve das possibilidades oferecidas pela
entrada em rede de monitores para atuar no sistema que
apresenta a liga<;ao observador/observado - ou seja, a rela-
24. Fred Forest, obra L e r o bi ne t t el ip h on iq u e, exposicao Mach ine s a
commun ique r (Cite des Sciences, 1991); Hommag e a Y ve s K le in , idem; La
r ec he rc he d e J ulia M a rg are t C am er on , a~ao midiatica, em associacao comArt-Terre, 1988.
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154 A r ' . r r . : E CA.uQUEUN
o;aodo espectador com a obra, 0jogo de espelhos das ima-
gens entre si ~ nos dados relacionais do espaco/tempo.
A instalacao de monitores de video e de esculturas pro-
pagadas como eco delimitam um espaco onde a real e a ficcao
estao lado a lado e se interpenetram.
Nas instalacoes de Dan Graham, 0espectador se encon-
tra preso na armadilha de sua propria imagem: em Present
c o n ti n uo u s p a st (s ) "uma camera capta 0espac;ode uma parede
coberta com urn grande espelho colocado diante dela; foi pos-
ta em cima de urn monitor que difunde a imagem captada
por ela;pelo jogo do espelho e da televisao,0espectador se ve
repetido ao infinite, no limite da definicao da tela. Mas a ima-
gem de video inicial tern uma diferenca de segundos e seu
atraso se acumula: virtualmente, a imagem do espectador nolo
sai mais da instalacao":".
Com Nam June Pa ik , e 0universo da tela que perturba
a distincao entre realidade/imagem e questiona a relacao doespectador com a tela televisual: "TVBuda: uma pequena es-
tatua, buda au pensador, esta sentada diante de uma tela de
video; ele reflete, olha sua propria imagem captada ao vivo
por uma camera colocada ligeiramente de lado... Como po-
dem as duas permanecer se vigiando assirn, nessa pura pre-
senC;atautologica'?"?
25. Dan Graham, obra Pr e se n t c o n ti n uo u s pastes), exposicao Mach i -
ne s a commun iqu er (Cite des Sciences, 1991) . Cf. Jean-Louis Boissier , 'Ma-
chines a communiquer fai tes ouvres', em Lucien Sfez (org.), L a c o mmun i-
cation (PUF/Cite des Sciences, 1991) .
26 , Jean-Louis Boissier, ibid.
L. -
ART E CO t -- .'1 E \WORJ\ t. ;E A : VMA r t- -. TRODU9\O 155
B) As n ova s im agen s OU tecnoimagens 27
Com a chegada das imagens numericas, das animacoes
em 3D, dos efeitos especiais e das imagens virtuais, e 0 si-
tio estetico propriamente dito que se ve abalado. Por saio e
preciso entender-se a area definida onde se exerce a ativi-
dade artistica e que compreende, alem das obras dos artis-
tas, os comentarios de criticos de arte, os dos historiadores
e dos teoricos de arte; abarca tambem os aficionados, cole-
, cionadores, marchands , ga1eristas, eonservadores de museus
e espectadores. Esse mundo da arte se encontra imerso na
crenca em uma dada definicao ou ideia de arte, do que ela
e ou deve ser. Definicao que deve seus elementos consti tuti-
vos a teoria kantiana do julgamento estetico, que 0usa trans-
formou pouco a pouco em vulgata.
o que diz essa vulgata? Que a arte e desinteressada,ou seja, nao deve estar relacionada nem ao iitil ~ a obra nao
pode ser utilizada como um objeto comum, nao deve, em
suma, servir para nada =: nem ao prazer sensual- que deve
ser mantido afastado. Que a arte nao deve estar sujeita ao
julgamento intelectuaI assim como nao deve estar sujeita
ao julgamento moral. Que a arte nao tern regras, s6 0autor
e 0 legislador de sua obra ~ uma especie de demiurgo que
determina a regra de sua arte. Que a arte tern a dever de co-
municar universalmente, pois se apresenta como uma fina-
27 , Neologismo que e apenas uma das tecnologias da comunica<;iio e
das imagens as quais estarnos habituados. Cf. R e v u e d'Esthitique, n? 25 (1994),
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156 ANNE CAUQUELIN
lidade sem fim, au seja, alcanca objetivos da natureza sem
ter ela mesma urn proposito determinado,
A todos esses requisites, as tecnoimagens opoem urn
fim de nao-receptor, A tecnica que gera as representacoes e
Urn instrumento complexo, que tem algo de utili tario: requer
instrucoes de uso. A atividade intelectual (calculo, digita-
~ao, operacoes com programas de computador) lhe e indis-
pensavei e prioritaria. A unicidade do autor e grandemente
abalada pela necessidade de urna equipe trabalhando em
conjunto. A unicidade da obra produzida e negligenciada
em favor de um desenvolvimento de possibilidades ofereci-
das pela matriz e que podem explorar numerosas midias.
Dotada de uma vida quase autonorna, a obra digital pode se
multiplicar, se modificar indefinidamente, basta dota-Ia de
parametres para que se desenvolva; nao existe obra parada,
consumada. Teoricamente, a obra - imagem digital- nunca
deixa de ter possibilidades infinitas", Enfim, a comunicacao
universal mudou de sentido, nao tem mais de ser conquis-
tada por intermedin da interpretacao das finalidades da na-
tureza, mas, desde 0inicio, se ve diante da transparencia das
operacoes que serviram para produzir as tecnoimagens.
Pode-se facilmente imaginar que todas essas caracteris-
ticas criam desconforto aos que precisam cornentar e apoiar,
julgar a atividade artistica: podemos afirmar que as tecnoi-
28 . Ph i lippe Queau, Metaxu ( Ch am p V a ll on , 1 9 89 ) ; Le » i rt uet (ChampVaDon , 1993).
ARTE CONTEMPOAANEA : UMA INfRODu c, :AO 157
magens pertencem a esfera da es tet ica, ou devemos de i xa - l a s
de fora? Ou, ainda, como falar delas? As obras, ate a chegada
dessas producoes de c om p ut er a rt , podiam ser descritas - uma
parte do trabalho do critico consistia na descricao das obras.
Elas estavam ali, em uma estabilidade muito pouco abalada
pelas instalacoes eferneras ou pelo esvanecimento dos ob-jetos. Com as tecnoimagens, 0que a crit ico precisa descre-
ver nao e a imagem, resultado passageiro de urn processor
~as 0proprio processo de elaboracao, que exige urn conhe-
cimento dos procedimentos utilizados, urn vocabulario e
uma gramatica que escapam ao nao-iniciacio. Se ele se con-
centra no que esta vendo na tela, enreda-se em urn contra-
sensa obvio, tanto que tended. entao a aplicar os criterios es-
teticos ao que ira tomar como obra: a originalidade, 0estilo,
o material e a maneira, a composicao, 0 'sentido'. Ora, nao ha
nada desse genero a ser salientado nas tecnoimagens, que
so sao originals em virtude de seu modo de producao e nao
pelo que apresentam, e que so tern sentido ao se manifes-
tarem como tecnoimagens.
A resposta a esse desconforto sera portanto, na maior
parte dos casas, 0silencio, 0 que e uma maneira radical de
excluir urn objeto do campo da estetica. Em outros casas,
assistirernos a ocorrencia de ataques dirigidos contra a sa-
ciedade de cornunicacao que produz tais insanidades e vern
perturbar a ordem da arte. sua vulgata. Quanta aos teoricos
da arte, sensiveis it perturbacao do sitio estetico, esforcam-se
para ampliar limites, mas dedicarn-se a qualquer outra coisa
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158 A.~NE CAUQUELIN
que nao seja as tecnoimagens; pois estas ainda nao derarn
provas suficientes de sua legitimidade! a rap, as pichacoes,
a culinaria e a tapecaria sao admitidos, mas nao 0 que tern
a ver com a tecnologia", Encontra-se ai a velho combate da
arte contra a tecnica, que se alimenta sempre das mesmas
razoes: mecanizacao, repeticao, falta de aura, que devem ser
banidos. (Sem se perguntar como advern a aura de uma obra
e par meio de quem. Nem pensar no comeco doloroso da
fotografia como arte.)
Contudo, apesar de todas essas relutancias frivolas, a
arte nascida das tecnologias de comunicacao segue seu ca-
minho, mesmo que fora da sociedade bern pensante. EIa en-
contra apoio entre os que tern interesse em seu desenvolvi-
mento: os industriais, as grandes empresas internacionais
de microeletr6nica, os produtores de f i lmes, ou simplesmente
os pesquisadores de informatica.
a Estado, por razoes evidentes de concorrencia e de
cornpeticao, nao fica mais indiferente a esse ramo de neg6-
cios; e bern verdade que, em paralelo, 0aspecto artistico dei-
xa-o relativamente frio. Projetos para urn polo de avanco
tecnologico dedicado it arte continuam nesse status. As sub-
vencoes que afluem para os festivals, os fundos de arte con-
29.0 ernpreendirnento estetico preconizado pelo pragmatismo anglo-
saxao funda 0criterio da obra na experiencia e critica a estetica tradicional
por seu elitismo, Ao mesrno tempo, tenta fazer com que sejam adrnitidas
as manifestacoes de arte popular (proveniente do povo) no santuario dessa
estetica, (Cf.Richard Shustermann, [art iz l'eiat viI, Ed.de Minuit, 1992).Se-
ria admitir que nao ha experienda estetica no caso das tecnoimagens?
ARTE COt -. 'TEMPOAANEA: U t .. . iA INTRODUc; :AO 159
temporanea, sao suspensos para projetos como 0Metaforro,
cuja vocacao confessa e ser 0 local de reuniao dos artistas e
dos pesquisadores em c om p ut er a rt.
a impulso de urn novo instrumento que causa grande
alvoroco, a Internet, sera suficientemente forte para emo-
cionar enfim a critica e os poderes publicos? Trata-se de uti-
lizar essa rede de comunicacao quase planetaria para nela
abrir 0que se chama de s i te s a r t is t ico s . Nada a ver, bern en-
tendido, com 0 'sftio' da arte tal como 0pensamos normal-
mente. A ideia que esta por tras dessa instalacao na rede e
a organizacao de urn local para a encontro de artistas, para
a troca interativa de projetos em curso, para a construcao de
uma obra comum, na qual possam intervir as supostos 'uti-
lizadores', que acabariam se tornando verdadeiros artistas.
As auto-estradas da informacao, que se desenvolvem
por razoes evidentes de velocidade de acesso a informacao,
de possibilidades de consultar arquivos a disrancia. e que
pedem a intervencao de todos para fornecer novos dados
ou troca -los, permite sonhar com uma C ida de d as A rte s V ir -
tua is , onde cada urn seria artista sem obstaculo de tempo
nem de espa~o, em resurno, quebrando 0 gelo das institui-
\oes rigidas e passando atraves do espelho. numa viagem
sem fim pelas maravilhas da arte.
30.0 Metafort d'Aubervilliers define-se como uma comunidade de
trabalho interdisciplinar, 0no de uma rede de parceiros, especie de forum
onde debater uma nova etica e a estetica da tecnica. Cf. Pierre Musso e
Jean Zeitoun, Le WtaJort J'Aubervilliers (Ed. Charles Le Bouil, 1994).
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160 ANNE CAUQUELIN
Realidade au utopia, numerosos 'servidores' se instalam,
algumas revistas comecam a ser publicadas, iniciando uma
reflexao sabre esses novas dispositivos. A arte de amanha
sera feita par intermedio das auto-estradas da informacao?
A questao merece ao menos ser colocada. E, se ela nao co-
move muito as atores tradicionais do sitio da arte, que ape-nas a repelem com horror, um publico cada vez maiar se in-
teressa par seu desenvolvimento",
Claro, restam numerosos pontos a serern explorados,
como por exemplo: a entrada na rede par interrnedio de ser-
vidores sera administrada pelos idealizadores do service, e
o acesso sera livre? Os servidores, rmiltiplos, provavelmente
mirados em alvos particulares, nao ameacarao dispersar os
supostos habitantes da CidadeVirtual ideal? Sao muitas ques-
toes que repetem em outro registro aquelas mesmas coloca-
das pela arte tradicional e que dao destaque a pontos cruciais
que passam muitas vezes despercebidos au sao deliberada-
mente ignorados.
Se as tecnoimagens e seus desenvolvimentos pudes-
sem ajudar a redefinir a que e a arte, seu sitio, seus objetos
e seus atores, reunindo assim 0trabalho empreendido pe-
los proprios artistas em seu proprio sitio, ja seriam detente-
ras de todas as virtudes 'esteticas' desejaveis - aquelas do
dominio da critica. Sern falar de vanguards, seriam realmen-
te a parte viva da arte contemporanea,
31. 0 evento Imagina realizado todos os anos em Monte Carlo, sob a
egide do Institut National de I 'Audiovisuel (INA), registra urn numero ex-ponencial de visitantes e nao apenas de industrials ,
.": h
' . " "
CONCLusAo
Agrupamos aqui as constatacoes preliminares: a arte con-
temporanea e mal apreendida pelo publico, que se perde em
meio aos diferentes tipos de atividade artisticamas e , contudo,
incitado a considera-la urn elemento indispensavel a sua inte-
grac;:aona sociedade atual.Aonde quer que se va, nao importa
a que se facapara escapar,a arte esta presente em toda parte,
em todos os lugares e em todos os ramos de atividade. Que-
rendo-se ou nao, a sociedade tomou-se 'uma sociedade cul-
tural'. No nfvel artistico, as conseqiiencias sao tao perturba-
doras quanto a confusao que se opera no espirito do publico.
Com efeito, em t a l sociedade, 0 imperativo de ter de 'ser
criativo', de ter de 'produzir arte', abate-se sobre os deciso-
res: politicos eleitos, administradores encarregados de resol-
ver os problemas urbanos, sociais, de integracao das dife-
rencas etnicas dentro de urn vasto 'lugar comum". As obras
1. Joseph Mouton, So is artiste (Aubier, 1994).
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162 ANNE C AUQU E LIN
de arte - escultura publica, projeto paisagistico, conjunto
arquitet6nico, decoracao de salas de reunijio - sao reputadas
como portadoras de uma resposta aos problemas da cidade.
A arte e a local de reuniao simbolica. unificador das diferen-
cas, que deve exercer a funcao de Iigacao e servir de substi-
tuto a uma coesao diffcilde ser conseguida; em suma, deve
tomar 0 lugar do consenso politico.
Essa operacao de reunificacao nao data de hoje: a ati-
vidade artfstica sempre foi requisitada pelo poder para dar
visibilidadeaos conceitos que the servem de princfpios.Arcos
do triunfo, castelos, pIanos urbanisticos, avenidas em pers-
pectiva,jardins e parques reais,teatros, essas realizacoes sem-
pre responderam a uma concepcao definida pelo comandita-
rio; e ele que escolhe a execucao desse ou daquele projeto,
o que melhor corresponde a ideia que faz de sua propria ima-
gem - do que ele pretende exibir como imagem.
Tratar-se-ia, nesse contexto, de uma decisao centrali-
zada, de uma orientacao determinada e de urn processo clas-sica de decisao em tres etapas: deliberacao, escolha e rea-
Iizacao, que deviam ocorrer em sequencia. Mais ou menos
hesitacoes au falhas no esquema nao tornariam objeto de
questionamento 0fato de que a realizacao do projeto era en-
dossada pessoalmente pelo comanditario, Tratava-se em es-
pecifico de 'encomendas' no sentido estrito",
2. Michael Baxandall nos rnos tra como, no Renascimento, essas enco-
mendas chegavam ao extrema detalhamento: temas, formas, cores, forma-
to, materiais, local de instalacao da obra encomendada (L 'e ri l du quatirocen to ,
Gallimard,1985).
TART E C ONTE MPoRANE A : U MA I l' -. 'T RODU c;AO 163
Mas 0que ainda se chama de 'encomenda' nao existe
mais em uma sociedade de multicentros, 0que significatam-
bern muItirracionalidade e multifinalidade, Em outras pala-
vras, a decisao da 'encomenda' se reduz a urn desejo de co-
municar uma imagem (a da cidade pelo politico, a da nat;ao
pelo ministerio) que possa provocar uma apreciacao lisen-
jeira do presumido comanditario, mas uma imagem que edefinida em sua forma e seu conteudo somente pelo sim-
ples adendo do qualificativo 'artistico". Em outras palavras,
a realizacao de urn trabalho artistico desejado pelo coman-
ditario permanece no nivel puramente tautologico: "E ne-
cessario criar alguma coisa artistica, portanto e preciso enco-
mendar alguma coisa artistica aos artistas, uma vez que sao
os artistas que produzem arte".A argumentacao para por ai.
a prosseguimento depende da rede de relacoes mantida
pelo politico eleito (au administrador) com 0 dominio da
arte, das situacoes e de oportunidades - as recornendacoes
de urn ou de outre, 0desejo de fazer bonito tanto quanto 0
vizinho - as quais vern se somar 0peso da assinatura: 0tra-
balho sera tanto mais artistico quanta mais renomado for0
artista que 0concebeu.
Assim como falta a ligacao entre uma orientacao politica
definida e sua visibilidade publica, da mesma maneira os es-
tereotipos intervem agora em seu lugar:um parque publico, a
instalacao de urn ecomuseu. 0lancamento de uma empreita-
3. Pa y sa g es s u r commande , Colloque de mars 1988 (Le Triangle, Rennes).
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1 6 4 A N N E C A UQ U EL IN
da artistica de grande porte - quem nao tern seu festival de
verao ou de outono? Pouco importa 0conteiido da empreita-
da, contanto que ela exista e que 0evento seja elogiado.
A encomenda nao funciona mais como tal, mas como
uma demanda .
Na qualidade de demandante, 0decisor, que e tamberno financiador da operacao, pratica essa atividade artistica que
dissemos ser, na sociedade de comunicacao, distinta da ati-
vidade propriamente estetica, Ele estende essa atividade por
toda parte onde intervern como 'demandante de arte'. Em urn
case, ele po de se fundir a urn artista conceitual na medida
em que enunciar sua demanda, formuhi-la, significa pratica-
mente realiza-la. "Eu quero a arte, portanto, sou urn artista."
Em outros casos, ele faz 'figuracao livre'.
J a haviarnos vista os 'profissionais da arte' reivindicarem
para si uma funcao artistica: agora temos os profissionais da
industria, dos ban cos e da politica como criadores.~ obras de arte veern-se, entao, nao somente confron-
tadas com a estrutura da comunicacao do mercado - no qual
os artistas, a despeito de nao controlarem as regras, podem,
no entanto, gerir 0uso e nutrir seu trabalho, como vimos-
como tam bern com essa extensao totalizante de uma ativi-
dade no domfnio da arte, extensao para cima e para baixo,
que pode conduzir a seguinte conclusao:
Em uma sociedade de comunicacao, a criacao artfstica
e a atividade mais requisitada, mais dernandada, e talvez a
{mica que convem perfeitamente a circulacao de inforrna-
•
ARTE CONTEMPOAANEA: UMA INTRODU~Ao 1 6 5
coes sem conteudos especificos - capaz de, par isso me smo,
assegurar 0funcionamento das redes em seu aspecto exclu-
siva de redes, Assirn, a visualizacao do proprio sistema esta
assegurada, urn beneficio etico: a igualdade de todos as in-
tervenientes designados como criadores. Par meio dessa pra-
tica universalist a, a comunicabilidade da arte, que Kant con-
siderava urn dever, torna-se a regra. Outro beneffcio, desta vez
politico: ao se intemacionalizar, a arte toma-se 0signa de uma
vontade de reuniao, de concordia, da qual os regimes politicos
nao podem escapar. A imagem simbolica de uma na<;ao se en-
contra tomada par esse imperative - por iS50 os posiciona-
mentos de urn 'Estado cultural'.
Como constatamos na introducao, 0 contraponto des- .
sa politica, contudo. e uma impressao confusa, uma incorn-
preensao no que diz respeito ao publico - onde esta 0 artista, _
onde esta a arte? - e ao mesmo tempo - 0 que parece con-
trario ao principia de comunicabilidade universal - seu dis-
tanciarnento,
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_SSiD E J l C / I I W . 1 E N I C >
YANG IM .. F " ~
~
Doutora e professora emeri-
ta de filosofia da Universite
de Picardie, na Franca, Anne
Cauquelin e autora de
ensaios sobre arte e filosofia,
dos quais se destacam
T eor ia s da a r te (Martins) e
Aristoieles (Jorge Zahar), e
dos romances Po t amor e L es
p r ison s de C esa r. E redatora-chefe da revista Revue
d'Esihetique e artista plastica,
Proj eto gr.if ico: Joana Jackson
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ISBN8599102184
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