xvi mirin · para entender a rápida ascensão do partido nazista e o contexto que possibilitou...
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NUREMBERG
XVI MIRIN
GUIA DE ESTUDOS
GUIA DE ESTUDOS
XVI MIRIN
ANA CLARA CAMILLO
CAROL SIBILIO
FELIPE NAVE
GABRIELA DRUMMOND
JOÃO VICTOR MIRANDA
MATHÄUS BREDA
JULGAMENTO DOS CRIMES NAZISTAS
TRIBUNAL DE NUREMBERG
RIO DE JANEIRO
2019
2
1 Sumário
1 Sumário ................................................................................................................... 2
2 Carta aos Delegados ............................................................................................. 4
SEÇÃO HISTÓRICA
3 A escalada dos fascismos na Europa................................................................. 6
4 Perseguição e violação de direitos humanos .................................................... 9
5 Estrutura do Partido Nazista .............................................................................. 11
6 Perfil dos acusados ............................................................................................. 13
6.1 Rudolf Hess ................................................................................................... 14
6.2 Julius Streicher ............................................................................................. 16
6.3 Hjalmar Schacht ............................................................................................ 18
SEÇÃO JURÍDICA
7 Carta aos Delegados ........................................................................................... 21
8 Contexto jurídico de Nuremberg e doutrinas relevantes ............................... 23
8.1 O Estado do Direito Internacional .............................................................. 23 8.1.1 Desenvolvimento Histórico do Direito Internacional ................................... 24 8.1.2 Dificuldades e debates teóricos para a implantação do Direito Internacional .......................................................................................................... 33
8.2 Direito e Moral ............................................................................................... 37 8.2.1 Jusnaturalismo ............................................................................................. 38 8.2.2 Positivismo jurídico ...................................................................................... 40
8.3 Controvérsias jurídicas em Nuremberg ..................................................... 41 8.3.1 Tribunais de exceção e a retroatividade da norma internacional penal .... 42 8.3.2 Direito Internacional x direito interno .......................................................... 46 8.3.3 A responsabilização do indivíduo no Direito Internacional ........................ 48 8.3.4 O juiz natural e a imparcialidade do Tribunal ............................................. 50
9 Introdução aos conceitos jurídicos .................................................................. 51
9.1 Petição ............................................................................................................ 51
9.2 Provas............................................................................................................. 52
9.3 Contestação ................................................................................................... 53
9.4 Peritos ............................................................................................................ 54
9.5 Testemunhas ................................................................................................. 54
9.6 Sentenças ...................................................................................................... 55
3
10 Teoria da argumentação jurídica ................................................................... 55
11 Teorias dos métodos de interpretação jurídica ........................................... 56
12 O Funcionamento do Tribunal de Nuremberg .............................................. 57
12.1 Sessões Abertas ........................................................................................... 57
12.2 Sessões Fechadas ........................................................................................ 58
12.3 O pleito de discussões ................................................................................. 58
12.4 Recursos ........................................................................................................ 59
13 Bibliografia ........................................................................................................ 59
4
2 Carta aos Delegados
Prezados Advogados, Juristas e Juízes,
em primeiro lugar, sejam bem-vindos ao Tribunal de Nuremberg do XVI MIRIN!
Seremos curtos nesta carta, porque há mais a ser lido logo abaixo, mas tenham algumas
coisas em mente antes de chegarem ao comitê:
Em primeiro lugar, o XVI MIRIN é um projeto de simulações das Nações Unidas
desenvolvido na PUC-Rio tendo em seu cerne um objetivo de formação cidadã e pedagógico,
para os Diretores e para os Delegados. E nesse sentido se insere o Tribunal de Nuremberg
enquanto comitê jurídico a estudantes secundaristas que nunca tiveram um contato mais
aproximado com o mundo do Direito. Por esse motivo, saibam, estamos aqui para vocês, antes,
ao logo e até mesmo após o evento, para que possamos tornar a sua experiência a melhor
possível. Conte conosco!
Em segundo, o preparo para o Tribunal ocorrerá de cinco maneiras distintas. A primeira
delas envolve a leitura do Miniguia apresentado há algumas semanas na página do site do
comitê. A segunda a leitura da Seção Histórica deste Guia, que traça um panorama histórico
para os acontecimentos que antecederam o Tribunal de Nuremberg. A terceira a leitura da Seção
Jurídica, em que os senhores defrontar-se-ão com as hidras do Direito, e com os debates e
discussões mais importantes que ocorreram ao longo deste Tribunal na História. A quarta forma
envolve o estudo para além dos Guias, nos sites e nas fontes fornecidas ao longo deste preparo.
A última, por sua vez, compreende os Guias dedicados especificamente à sua posição, e que
enviaremos por e-mail, quais sejam: o Dossiê dos Magistrados, da Acusação e da Defesa.
Pedimos, em terceiro lugar, que se dediquem. Por ser um comitê fora da zona de
formação de todos os presentes, é imprescindível que os advogados e juízes se preparem com
dedicação e esmero.
Em quarto e último, esperamos que venham ao comitê de cabeça aberta, para
aproveitarem de uma experiência e para entrarem em contato com o ambiente engrandecedor
que uma universidade como a PUC-Rio pode proporcionar, ou com a atmosfera acolhedora de
modelos das Nações Unidas. Esperamos que todos se sintam confortáveis ao longo destes dias,
e contem conosco para o que precisarem.
Nos vemos em breve!
5
Cordialmente,
A Mesa Diretora
6
SEÇÃO HISTÓRICA
3 A escalada dos fascismos na Europa
Para entender a rápida ascensão do Partido Nazista e o contexto que possibilitou suas
ações enquanto no poder, é necessário entender a situação da Europa na segunda década do
século XX. Com o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, a derrotada Alemanha foi forçada
a se submeter às exigências de seus vencedores, mais notavelmente às de Reino Unido e França,
sacramentadas no Tratado de Versalhes.1 Entre as punições aplicadas estavam restrições à
indústria e exército alemão (que não poderia exceder cem mil homens ou se equipar de
submarinos ou aviações), a parte de território equivalente a 1/8 do seu total e 1/10 de sua
população (assim como a perda de suas colônias na África) e a obrigação de reparar os países
vencedores em dinheiro e matéria prima.2
Tais estipulações impostas pelo Tratado de Versalhes fizeram com que a República de
Weimar, recém-instaurada na Alemanha pela da Revolução Alemã de 1918 já nascesse
extremamente endividada e com severas limitações econômicas, impossibilitando qualquer
recuperação econômica.3 Mesmo sendo um dos governos mais democráticos de sua época (o
sufrágio universal foi garantido para todos acima de vinte anos e seus cidadãos votavam tanto
no presidente quanto nos partidos membros do parlamento), a República de Weimar não
conseguiu assegurar confiança popular nem estabilidade econômica para impedir turbulências
políticas em série.4 Em 1923, após não conseguir pagar parte dos reparos estipulados, a
Alemanha viu o exército francês ocupar a região do Reno (a mais industrializada do país),
enquanto se via imprimir cada vez mais sua própria moeda para poder comprar moeda
estrangeira e pagar suas dívidas, resultando em hiperinflação.5
O povo alemão, no entanto, não foi o único que conviveu com instabilidade política e
em descontento com o fim da Primeira Guerra Mundial. A segunda década do século também
representou enormes turbulências para a Itália, que havia se aliado à Tríplice Entente após
promessas de anexação de terras pertencentes ao Império Austro-Húngaro e de ganhos
1FABER, Emílio. “O Contexto Histórico da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial e a Ascensão do Nazismo”. História Livre, 2012. Disponível em: http://files.historia-e-o-futuro.webnode.com/200000204-057d90674c/Hitler%20e%20a%20Ascens%C3%A3o%20do%20Nazismo%20-%20HistoriaLivre.pdf. Acesso em: 20 abr. 2019. 2Ibid. 3Ibid. 4 “Weimar Republic”. Britannica, 1998. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Weimar-Republic. Acesso em 20 abr. 2019. 5 Ibid.
7
financeiros.6 No entanto, com a conclusão da guerra o governo italiano não recebeu as terras
prometidas, o que gerou um amplo sentimento de traição, principalmente perante a França e
Reino Unido, no que ficou conhecido como “Vitória Mutilada”; aumentando o sentimento de
traição presente entre os italianos, o soldados que lutaram pela Itália receberam a promessa de
terras pelos seus serviços, algo que também não foi cumprido.7 A então tensão política somada
ao aumento do desemprego, à popularização de ideais socialistas e à crise econômica
influenciaram a ascensão do fascismo, movimento liderado por Benito Mussolini.8
Mussolini comandava os Camisas Negras, uma milícia fascista que usava de táticas
violentas para ameaçar rivais políticos às suas propostas, especialmente adeptos aos ideais
socialistas.9 A atuação da organização fascista e o discurso de Mussolini centravam-se na
proposta de resolver os problemas italianos através de um governo forte e nacionalista, que
uniria a população contra a “ameaça” socialista.10 A crescente popularidade de Mussolini
culminou na chamada “Marcha sobre Roma”, em que milhares de Camisas Negras marcharam
em direção à sede do governo, resultando na nomeação de seu líder como primeiro-ministro
italiano em 1922.11 O Partido Nacional Fascista continuaria a ganhar poder no parlamento
italiano até que, em 1925, Mussolini tornou-se ditador de facto do país.12
Enquanto Mussolini ascendia meteoricamente ao poder, diversos grupos se opunham à
República de Weimar, com diversas tentativas de golpes de Estado partindo tanto de grupos de
esquerda (como a tentativa de se formar uma república socialista na região da Bavária) quanto
de direita.13 A mais famosa dessas tentativas veio em 1923 quando o Partido Nacional Socialista
dos Trabalhadores Alemães, liderado por Adolf Hitler, tentaram replicar a Marcha sobre Roma
mas foram impedidos pelo exército.14 Mesmo preso, no entanto, Hitler veria a popularidade de
seus ideais e a sua própria crescerem enormemente, o que ajudava a fortalecer o seu partido.15
6 “Italy Enters World War I”. National WWI Museum and Memorial, s.d. Disponível em: https://www.theworldwar.org/explore/italy. Acesso em 20 abr. 2019. 7 “The cost of victory”. Britannica, s.d. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Italy/The-cost-of-victory. Acesso em: 20 abr. 2019 8 “Benito Mussolini”. Britannica, s.d. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Benito-Mussolini. Acesso em 20 abr. 2019. 9 Ibid. 10 Ibid. 11 Ibid. 12 Ibid. 13 “Weimar Republic”. Britannica. 14 Faber, op. cit. 15 Ibid.
8
Os nazistas, assim como outros grupos de extrema-direita que surgiram após a Primeira
Guerra, beneficiavam-se da promulgação do “Mito da Apunhalada pelas Costas”, que pregava
que os alemães não haviam perdido a guerra por meios militares, mas que eles foram na verdade
traído pelos republicanos na assinatura do Tratado de Versalhes.16 Tal teoria conspiratória
buscava deslegitimar o governo vigente, representando-o como fruto do governo judeu e
marxista da Alemanha, que traíram a nação e trabalhavam pelos interesses estrangeiros.17 Este
discurso, porém, era apenas uma parte da ideologia nazista que atraía interesse popular.
Além de atribuir um culpado para os problemas vividos pelo povo alemão, Hitler
propunha o descumprimento do Trato de Versalhes (considerado humilhante por boa parte da
população) e a limitação de qualquer influência estrangeira na Alemanha, propondo uma
política voltada fortemente ao nacionalismo.18 Adicionalmente, o futuro ditador alemão se
colocava como uma liderança forte para combater o comunismo no país, e prometia retirar os
judeus do seu território.
Nesse contexto, cabe evidenciar a política racial nazista, que se utilizava de
experimentos e trabalhos pseudocientíficos para afirmar a superioridade da raça ariana
(composta pelos alemães e outros povos de ascendência germânica). Os líderes nazistas
pregavam que os judeus seriam a “anti-raça”, classificando-os como danosos aos interesses
arianos e desmerecedores de direitos. Valendo-se de teorias como o darwinismo social e a
eugenia para evitar justificar esforços para preservar as qualidades genéticas da raça ariana, que
não deveria se relacionar com as demais raças.19 Todos esses aspectos do discurso nazista foram
colocados na autobiografia “Mein Kampf”, escrita por Hitler na prisão.
Com a queda da Bolsa de Valores em 1929 e a consequente crise econômica mundial,
aumentou ainda mais a tensão política na Alemanha, destruindo basicamente em uma questão
de dias a economia alemã.20 O então presidente Hindenburg alegou estado de emergência,
convocando uma série de eleições com o intuito de acalmar os ânimos da população.21 Através
do voto popular, o Partido Nazista se consolidou ainda mais, alcançando a maior representação
16 “Antissemitism in History: World War I”. Holocaust Encyclopedia, s.d. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/antisemitism-in-history-world-war-i. Acesso em: 23 abr. 2019 17 Ibid. 18 “The Rise of the Nazi Party”, Museum of Jewish Heritage, 2019. Disponível em: https://mjhnyc.org/the-rise-of-the-nazi-party/. Acesso em 23 abr. 2019. 19 Ibid. 20 “The Nazi Rise to Power”. Holocaust Encyclopedia, op. cit. 21 Ibid.
9
entre partidos no parlamento alemão.22 Tendo em vista a crescente popularidade de Hitler
(principalmente entre os empresários), Hindenburg o apontou como chanceler, colocando-o
como chefe do parlamento.23
Após o prédio do parlamento (Reichstag) ser ateado em fogo, Adolf Hitler aproveitou o
ocorrido para mais uma vez colocar o comunismo como inimigo na nação alemã, convencendo
o presidente Hindenburg a assinar decretos que restringiam liberdades civis (como a liberdade
de expressão e de imprensa e o direito de protestar), além da Lei de Concessão de Plenos
Poderes, em que Hitler se tornava independente do parlamento e da constituição para passar
legislação, tornando-o ditador de facto da Alemanha, fato que se consolidou com a morte de
Hindenburg em 1934, o que fez com que Hitler acumulasse as duas funções e se declarasse o
Führer.24
4 Perseguição e violação de direitos humanos
Desde sua chegada ao poder, o Partido Nazista instaurou medidas e legislações com o
intuito de perseguir e eliminar minorias e adversários. Ainda em 1933, um ano antes da
ascensão máxima de Hitler, foi aberto o campo de concentração de Dachau, que serviu
primeiramente para abrigar prisioneiros políticos, mas que depois de 1935 passaria a abrigar os
diversos grupos perseguidos pelo regime nazista, tornando-se um protótipo para o
desenvolvimento dos demais campos de concentração.25 Antes disso, em 1929, foi criado o
Gabinete Central de Combate ao Cigano.26
O primeiro ato de perseguição com dimensão nacional, no entanto, foi o boicote nazista
aos negócios judeus organizado por membros nazistas do parlamento em março de 1933.
Durante o ato, membros da milícia nazista se deslocavam para lojas e escritórios pertencentes
a judeus, pintando a estrela de Davi em portas e janelas juntos a slogans antissemitas. Apesar
disso, a população como um todo não aderiu o boicote.
22 Ibid. 23 Ibid. 24 “Adolf Hitler”. Britannica, 1998. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Adolf-Hitler/Rise-to-power. Acesso em: 23 abr. 2019. 25 “Antissemitic Legislation 1933-1939”. Holocaust Encyclopedia, s.d. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/antisemitic-legislation-1933-1939. Acesso em: 23 abr. 2019 26 “Sinti and Rome: Victims of the Nazi Era”. United States Holocaust Memorial Museum, s.d. Disponível em: https://www.ushmm.org/learn/students/learning-materials-and-resources/sinti-and-roma-victims-of-the-nazi-era/introduction. Acesso em: 25 maio 2019.
10
Já a primeira legislação antissemita pode ser apontada como a Lei para a Restauração
do Serviço Público Profissional, que excluía não arianos e adversários políticos de profissões
ligadas às leis ou serviço público27. Tais leis criariam a base das Leis de Nuremberg, não só
pela retirada dos direitos da comunidade judia, mas também pela definição dos judeus não pela
religião, mas sim por uma linha ancestral genética, reforçando a segregação racial do discurso
nazista.28
Com o passar dos anos, mais leis foram aprovadas com o intuito de alienar a comunidade
judia das atividades públicas e econômicas, até que em 1935 foram sancionadas as Leis de
Nuremberg.29 Tal legislação foi o conjunto de leis que proibia o casamento e relação sexual
entre arianos e não arianos (incluindo judeus, negros e ciganos), sacramentando de vez a
segregação entre cidadãos e que afirmava que apenas aqueles “com sangue alemão” seriam
considerados cidadãos, retirando a cidadania daqueles perseguidos pelo Estado.30 Tal medida
culminou na perda de direitos básicos por parte de perseguidos, permitindo ao nazismo excluir
estes da população, dando assim legitimidade à sua perseguição.
Adicionalmente, com a sociedade alemã cada vez mais hostil perante seus perseguidos,
deixar o país tornava-se uma tarefa cada vez mais difícil. Acordos como o de Haavara, que
deixavam os judeus perseguidos emigrarem para Palestina em troca de parte de seus bens não
eram mais possíveis, e em 1938 seria necessário a um judeu que desejasse emigrar legalmente
deixar 90% de sua renda como um imposto, além da dificuldade de aceitação por outros
países.31 Enquanto isso, propagandas antissemitas eram espalhadas pelo país, e leis
continuavam sendo aprovadas para diminuir seus direitos.
A crescente retirada de direitos e campanhas de perseguição e desumanização
culminaram na detenção de milhões de judeus, afrodescendentes, ciganos, homossexuais e
opositores políticos em campos de concentração, campos de extermínio, guetos e outras
estruturas construídas para possibilitar o genocídio.32 A “Solução Final”, como era chamada
entre os líderes nazistas, promoveu os maiores desrespeitos aos direitos humanos registrados
no século, e envolvia dietas de fome, trabalho forçado, doenças e execuções. Além disso, o
27 “Antissemitic Legislation 1933-1939”. Holocaust Encyclopedia, op. cit. 28 Ibid. 29 Ibid. 30 “The Nuremberg Race Laws”. United States Holocaust Memorial Museum, s.d. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/the-nuremberg-race-laws. Acesso em: 25 maio 2019. 31 LONGERICH, Peter. Holocaust: The Nazi Persecution and Murder of the Jews. Oxford University Press. 32 Kirsch, Adam. “The System”. The New Yorker. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2015/04/06/the-system-books-kirsch. Acesso em: 23 abr. 2019.
11
plano de extermínio nazista não se restringia ao território alemão nem ao europeu, com os
territórios capturados durante a guerra também sujeitos ao plano de extermínio. Cerca de 90%
da população judia da Polônia, por exemplo, foi exterminada; a maioria executada em guetos
(que eram cercados, deixando os seus habitantes sujeitos a fome e a doenças) ou no campo de
concentração de Auschwitz (que se estipula ter recebido cerca de 1,3 milhão de prisioneiros).33
De acordo com estimativas do United States Holocaust Memorial Museum, entre quinze a vinte
milhões de pessoas morreram em campos de concentração ou guetos, 6 milhões destes sendo
judeus (o equivalente a dois terços da população judia europeia).34
Entre a lista de crimes cometidos pelos nazistas, devem-se destacar os experimentos
praticados em cima de prisioneiros de guerra e de campos de concentração, muitos dos quais
extremamente dolorosos e praticados em civis e crianças.35 Tais experimentos eram praticados
com o intuito de testar situações de sobrevivência (como resistência a altas altitudes e frio),
testar drogas e outros tratamentos (como exposição a gás mostarda e a diversas doenças) ou
para validar as ideologias raciais nazistas (nesse caso se ressaltam as experiências conduzidas
por Josef Mengele, famoso por sua crueldade e frieza).36
5 Estrutura do Partido Nazista
O Partido Nazista foi fundado em 1919, dois meses após a assinatura do Tratado de
Versalhes, sob o nome de Partido dos Trabalhadores Alemãos.37 O partido já possuía sua
posição antissemita, antimarxista e contrária ao armistício, tendo o objetivo de unir os vários
grupos populistas e nacionalistas que surgiram na Alemanha.38 Meses depois, Hitler se
associaria ao partido, e rapidamente se tornaria extremamente influente em seu funcionamento,
anunciando seu programa político que seria mantido até o fim da Segunda Guerra Mundial39.
Entre os principais pontos do programa estavam o abandono do Tratado de Versalhes, a
33 WYMAN, David. The World Reacts to the Holocaust. John Hopkins University Press, 1996, p. 493. 34 “Documenting Numbers of Victims of the Holocaust and Nazi Persecution”. Holocaust Encyclopedia, s.d. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/documenting-numbers-of-victims-of-the-holocaust-and-nazi-persecution. Acesso em 23 abr. 2019. 35 “Nazi Medical Experiments”. Holocaust Encyclopedia, s.d. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/nazi-medical-experiments. Acesso em: 23 abr. 2019. 36 Ibid. 37 “Nazi Party”. Britannica, 1998. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Nazi-Party. Acesso em 20 maio 2019. 38 Ibid. 39 Ibid.
12
demanda por territórios para expansão do povo alemão e definição do cidadão como aquele
com “sangue alemão” (e a consequente exclusão dos judeus).40
Em 1920, o partido mudaria seu nome para Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemãos (NSDAP).41 Aos poucos, o partido cresceria através dos discursos de
Hitler e do apelo que seus ideais tinham para jovens desempregados e descontentes com a crise
econômica alemã.42 Antes mesmo de assumir o poder, o partido só se encontrava disposto a
entrar em negociações quando suas demandas eram aceitas por inteiro, utilizando-se da força
caso contrário.43 Tal modo de conduzir suas movimentações políticas fica exemplificado em
marcos históricos, como o “Putsch de Munique” ou a “Noite das Facas Longas”, este último
em que a facção de Hitler, já no poder de chanceler, realizou uma série de execuções
extrajudiciais de opositores ao governo.
O partido era regido seguindo religiosamente o Princípio da Liderança, em que o Führer
possuía o direito absoluto de governar, administrar e decretar sobre qualquer assunto que se
referisse ao partido, sem qualquer limitação ou controle, com líderes hierárquicos sendo sujeitos
a ordens apenas vindas de superiores.44 Esse conceito dava irrestrita liberdade a Hitler, e se
aplicava aos demais oficiais do partido.
Diretamente abaixo de Hitler na hierarquia estavam os “Líderes do Reich”, que
recebiam ordens diretamente do ditador e eram responsáveis por áreas de atuação específicas
de interesse do partido. Entre alguns dos líderes nazistas com este posto estavam Joseph
Goebbels, Ministro de Propaganda do Reich, e Heirich Himmler, chefe da polícia alemã e um
dos principais arquitetos do Holocausto.
O NSDAP também continha dentro de sua organização diversos escritório e grupos
paramilitares, que buscavam trazer efetividade no planejamento e execução das políticas
nazistas. Os escritórios cuidavam de pastas políticas inerentes aos princípios pregados pela
ideologia nazista, incluindo os Gabinetes de Política Racial, Política Colonial e Política Militar.
Já os grupos paramilitares visavam apoiar a postura de repressão e amedrontamento nazista
perante seus opositores.45 Entre os principais grupos da ala militar do Partido Nazista estão a
40 Ibid. 41 Ibid. 42 “The Judgment: The Nazi Regime in Germany”. The Avalon Project, s.d. Disponível em: http://avalon.law.yale.edu/imt/judnazi.asp. Acesso em: 20 maio 2019. 43 Ibid. 44 Ibid. 45 Ibid.
13
Gestapo, a polícia secreta do regime cujo principal objetivo era eliminar oponentes políticos de
Hitler e na deportação dos judeus para os campos de concentração, e a Waffen-SS, formalmente
criada para servir de segurança para membros do partido, mas que na realidade também
realizava perseguições e prisões políticas, além de trabalhar ao lado do exército e da polícia
alemã.46
Com a chegada do Partido Nazista ao poder, diversas leis foram elaboradas para
diminuir o poder de governos regionais, a fim de centralizar o poder nas mãos dos líderes
nazistas, de maneira que a organização política da Alemanha espelhava a organização política
do partido.47 Os nazistas também se movimentaram com o intuito de dominar todos os aspectos
do aparato estatal, forçando a aposentadoria de servidores públicos “não arianos” e exonerando
aqueles que simpatizaram em algum momento com a oposição.48 Juízes eram pressionados a se
filiarem ao partido, e a criação de “Tribunais Populares”, composto por oficiais nazistas,
garantiam o controle das decisões jurídicas.49
No âmbito internacional, o objetivo do NSDAP de expandir a Alemanha além de suas
fronteiras através da conquista de território estrangeiro envolvia, necessariamente, a
conspiração de crimes contra a paz e guerras de agressão a outros Estados.50 O Partido Nazista,
a partir de seu controle da Alemanha, iniciou rapidamente o processo de rearmamento do país,
direcionando toda sua economia para o esforço militar, quebrando diversas limitações dispostas
no Tratado de Versalhes, como a criação de uma força aérea.51 O partido, portanto, funcionou
em torno do objetivo de planejar e possibilitar crimes contra a paz e guerras de agressão, além
de cometer (através de suas alas políticas e militares) crimes de guerra e contra a humanidade,
crimes que serão julgados pelo Tribunal de Nuremberg.
6 Perfil dos acusados
46 Ibid. 47 Ibid. 48 Ibid. 49 Ibid. 50 Ibid. 51 Ibid.
14
6.1 Rudolf Hess
Rudolf Richard Hess nasceu em Alexandria, no Egito, em 1894, filho de um comerciante
alemão da região da Bavária.52 Durante sua infância, estudou em escola alemã na cidade
egípcia, sendo em seguida enviado para a Alemanha com o intuito de completar seus estudos e
seguir a tradição familiar como comerciante.53 Com o início da Primeira Guerra Mundial em
1914, no entanto, Hess prontamente se alistou para servir no exército alemão, onde atingiria o
posto de tenente e receberia condecorações por sua atuação, tendo participado da famosa
Batalha de Verdun.54
Com o fim da guerra em 1918, a família de Hess sofreu grandes perdas financeiras,
tendo sido seus negócios no Egito expropriados pelo Reino Unido como consequência da
Primeira Guerra. Após ser dispensado pelo exército alemão, Hess se associou à Sociedade
Thule, um movimento popular antissemita de extrema-direita onde diversos futuros membros
e simpatizantes do Partido Nazista iniciaram sua caminhada. Durante esse período, Hess
participou de diversas batalhas contra grupos de esquerda e distribuiu panfletos antissemitas
pelas ruas. Em 1919, Hess se matricularia na Universidade de Munique, onde teria aula com
Karl Haushofer, um dos principais defensores do conceito de espaço vital (Lebensraum em
alemão)55, que defendia a expansão territorial de Estados e povos mais desenvolvidos através
da conquista daqueles menos desenvolvidos. Hess foi o responsável por introduzir tal conceito
ao Partido Nazista, que em seguida se tornou um dos pilares de sua ideologia, aplicando a ideia
de desenvolvimento maior à raça ariana.56
Hess rapidamente desenvolveria uma relação de devoção a Hitler, estando ao seu lado
na tentativa de golpe comandada pelo próprio, no que ficaria conhecido como Putsch de
Munique, com ambos sendo condenados e servindo tempo de prisão.57 Enquanto esteve preso,
auxiliou Hitler na publicação do seu livro Mein Kampf, participando de certa maneira em sua
edição.58 Devido à sua lealdade ao líder nazista, foi nomeado seu secretário particular e, com
sua ascenção ao poder, Delegado do Führer, assumindo o posto de Ministro do Reich em 1933.59
52 “Rudolf Hess”. Britannica, 1998. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Rudolf-Hess. Acessado em: 20 maio 2019. 53 Ibid. 54 Ibid. 55 DOUGLAS-HAMILTON, James/J. The Truth about Rudolf Hess. Filadélfia: Frontline Books, 2018. 56 Ibid. 57 “Rudolf Hess – Biography”. History Place, s.d. Disponível em: http://www.historyplace.com/worldwar2/biographies/apr-hess-cal.htm. Acesso em: 25 maio 2019. 58 Ibid. 59 Ibid.
15
Devido seu posto, era responsável por diversos setores do governo nazista, devendo qualquer
legislação aprovada que não se referisse ao exército, polícia ou política externa
obrigatoriamente passar pelo seu gabinete para aprovação, tendo também escrito e assinado
conjuntamente diversos decretos de Hitler.60
Entre os documentos legais com participação direta de Rudolf Hess estão as Leis de
Nuremberg, que foram de autoria e assinadas pelo Ministro do Reich, estabelecendo a estrutura
jurídica necessária para a perseguição de judeus.61 Com a conquista de territórios por parte do
exército alemão, Hess também foi responsável por estender a atuação das leis antissemitas para
esses territórios conquistados. Além disso, também foram conferidos a ele os poderes de alterar
sentenças dadas a cidadãos considerados inimigos do Partido Nazista, podendo aumentar o
tempo de cumprimento de penas, enviar os condenados a campos de concentração ou até mesmo
condená-los a morte.
Em 1941, a Alemanha se encontrava completamente concentrada nos esforços de
guerra, e Hess (que era encarregado dos assuntos internos) perdia cada vez mais influência
dentro do governo. Além disso, temia uma guerra em duas frentes contra Reino Unido e União
Soviética, além de ter admiração pelos britânicos, e a crença de que a “raça branca” sofreria
com um conflito entre os dois países.62 Devido a essas circunstâncias, orquestrou um plano para
propor um acordo de paz com os ingleses, partindo por impulso próprio (e aparentemente sem
autorização oficial) para Escócia, onde tinha o interesse de negociar um acordo de paz através
do Duque de Hamilton.63 Hess foi rapidamente preso pelo serviço secreto britânico, vivendo
como prisioneiro de guerra até seu julgamento no Tribunal de Nuremberg.
Durante seu julgamento, a saúde mental de Hess foi um grande obstáculo e causou
diversos questionamentos para seus promotores. Ainda enquanto prisioneiro no Reino Unido,
o político nazista entrava e saía de um estado de amnésia, insistia que sofria maus tratos (alegava
que sua comida continha “veneno para o cérebro” e que sua lavanderia continha pó causador
de assaduras) e variados sintomas de hipocondria.64 Uma primeira avaliação psiquiátrica
60 Writing Racial Laws Made Hess a War Criminal. New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/1987/09/29/opinion/l-writing-racial-laws-made-hess-a-war-criminal-355187.html. Acesso em 20 maio 2019. 61 Ibid. 62 Douglas-Hamilton. The Truth About Rudolf Hess, op. cit. 63 Ibid. 64 CHESLER, Caren/C. Rudolf Hess’ Tale of Poison, Paranoia and Tragedy. Smithsonian Magazine,2014. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/history/rudolf-hess-tale-poison-paranoia-and-tragedy-180952783/. Acesso em 20 maio 2019.
16
afirmou que Hess sofria de “psiconeurose, principalmente do tipo histérico, enxertada em uma
personalidade básica paranóide e esquizóide, com amnésia, parcialmente genuína e
parcialmente fingida”, mas que tais condições não o eximiam de responsabilidade e que ele
estava apto a ser julgado.65
Já em Nuremberg, Hess afirmava não se lembrar de nenhum evento ocorrido num
passado mais distante do que duas semanas atrás, não tendo nenhum lembrança de outros
políticos nazistas, sua função, amigos e até mesmo de sua família.66 Uma segunda avaliação
psiquiátrica foi realizada em meio ao julgamento, por quatro equipes diferentes, resultando em
quatro diagnósticos distintos.67 Uma delas, conduzida pelo médico de Winston Churchill,
afirmava que Hess era completamente incapaz de se apresentar para julgamento.68 Hess foi
acusado de conspiração contra a paz, participação em guerra de agressão a paz, crimes de guerra
e crimes contra a humanidade.69
6.2 Julius Streicher
Julius Streicher nasceu em 1885 na cidade de Fleinhausen, na Bavária.70 Streicher
trabalhou como professor até a Primeira Guerra Mundial, quando se alistou no exército alemão,
ao que se seguiu uma atuação de destaque, merecedora de diversas condecorações e promoção
ao ranking de tenente.71
Após a guerra, foi fortemente influenciado pela onda antissemita que percorreu a
Alemanha após a Primeira Guerra, juntando-se à Federação Nacionalista Alemã de Proteção e
Defesa, o maior e mais ativo grupo radical antissemita teuta.72 O grupo argumentava que judeus
e bolcheviques eram ambos traidores da pátria alemã que desejavam submeter o país ao
comunismo.73 Nesse grupo, Streicher apresentou pela primeira vez a retórica antissemita que
seria característica de sua atuação.
65 Ibid. 66 IRVING, David/D. Nuremberg: The Last Battle. London: Focal Points Publications, 1996 67 Ibid. 68 Ibid. 69 Ibid. 70 “Julius Streicher”. Britannica, 1998. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Julius-Streicher. Acesso em: 20 maio 2019. 71 Ibid. 72 “Julius Streicher: Biography”. Holocaust Encyclopedia, 1998. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/julius-streicher-biography. Acesso em: 20 maio 2019. 73 “Nuremberg Trial Defendants: Julius Streicher”. Jewish Virtual Library, s.d. Disponível em: https://www.jewishvirtuallibrary.org/nuremberg-trial-defendants-julius-streicher. Acesso em: 20 maio 2019.
17
Em 1920, Streicher ajudou a criar o Partido Social Alemão (partido de ideias similares
ao Partido Nazista) e no ano seguinte se uniu à Comunidade Trabalhadora Alemã, que visava
unir os vários movimentos antissemitas no país.74 Mesmo em meio aos grupos de ideias
extremos como o dele, suas posições ultrarradicais encontravam constantemente oposição, com
o ex-professor muitas vezes sendo considerado perigoso por seu ódio obsessivo por judeus e
“raças estrangeiras”.75
Em 1923, fundou o Der Stürmer, um jornal sensacionalista cujo único objetivo era
promover propagandas antissemitas. Através deste meio de comunicação, Streicher incitava o
povo alemão contra a população judia, pregando a perseguição e, com o avanço da opressão
estatal nazista, a sua exterminação.76 O jornal fazia uso de táticas de medo e metáforas que
incitavam o ódio para formar uma imagem do cidadão judeu como um perigo à comunidade.
Tal fato é melhor ilustrado pelos “Assassinato Rituais” criados pelo Der Stürmer, que reportava
que os judeus carregavam até os dias atuais o costume de matar crianças cristãs nas celebrações
da Páscoa.77
Adicionalmente, o editor ainda visava educar as crianças sobre a “ameaça judia”,
criando guias para professores sobre como explicar a questão judia para seus estudantes, e
criando livros infantis com mensagens antissemitas, com a mais famosa delas sendo “O
cogumelo venenoso” (Der Giftpilz em alemão), que compara os judeus com cogumelos
venenosos.78 A atuação de Streicher e de seu jornal são consideradas como cruciais para a
desumanização e marginalização dos judeus pela sociedade alemã no geral, criando o ambiente
necessário para a concretização do Holocausto.79
Pelo Partido Nazista, ao qual se afiliou em 1921, participou do Putsch de Munique e
após a chegada de Hitler ao poder, serviria como líder provincial da região da Francônia de
1939 a 1940. Além disso, presidiu o Comitê Central de Repulsa a Atrocidade Judia e Agitação
de Boicotes. Através dessa influência, o político orquestrou o boicote de um dia a todos os
negócios judios em 1933, que serviu como ensaio para as restrições que seriam impostas.80
74 Ibid. 75 Ibid. 76 Ibid. 77 Ibid. 78 “Julius Streicher: Biography”. Holocaust Encyclopedia, op. cit. 79 “Nuremberg Trial Defendant: Julius Streicher”. Jewish Virtual Library, op. cit. 80 “Julius Streicher: Biography”. Holocaust Encyclopedia, op. cit.
18
Julius Streicher foi acusado de conspiração contra a paz e crimes contra a humanidade.81
A acusação afirmava que seus discursos eram tão incendiários que serviam quase como
acessório aos assassinatos e extermínios cometidos, muitos, no entanto, não tinham certeza
sobre a possibilidade de enquadrar o editor e político nos termos do tribunal, já que este não
conspirou diretamente com o governo alemão, já que seu jornal era independente.82
6.3 Hjalmar Schacht
Hjalmar Horace Greenly Schacht nasceu em 1877 na cidade de Tingleff, território hoje
pertencente à Dinamarca, mas que até então fazia parte do Império Alemão.83 Recebeu seu
doutorado em 1899, na Universidade de Kiel, e em 1903 começou a trabalhar no Dresdner
Bank.84 Durante a Primeira Guerra Mundial, Schacht trabalhou como consultor financeiro para
o governo de ocupação na Bélgica, assumindo então diversas posições em diferentes bancos até
ser nomeado secretário da moeda em 1923.85 O economista então foi decisivo no combate à
hiperinflação alemã, com os seus esforços contribuindo para que ele fosse nomeado presidente
do Reichsbank, posição que usou para renegociar as reparações de guerra estipuladas no Tratado
de Versalhes.86
A partir de 1930, Schacht passou a se aproximar do Partido Nazista, acreditando que o
partido poderia recolocar a Alemanha como um relevante no âmbito internacional. Em 1931,
após uma reunião com Adolf Hitler, Schacht prometeu arrecadar fundos para suas pretensões
políticas, utilizando seus contatos com os industriais alemães para fazer com que grandes
empresários da época fornecessem o dinheiro de que o futuro ditador necessitava.87 Além disso,
liderou o grupo de empresários e industriais alemães que, por meio de uma carta, requisitaram
que o então presidente Hindenburg nomeasse Hitler como chanceler da República de Weimar.88
Com a ascensão de Hitler ao poder, foi nomeado mais uma vez presidente do Reichsbank
em 1933 e, no ano seguinte, assumiu o posto de Ministro da Economia, recebendo filiação
honorária ao Partido Nazista em 1937.89 Schacht foi o responsável pelo acordo de Haavara, que
81 Irving, David. Nuremberg: The Last Battle, op. cit. 82 Ibid. 83 “Hjalmar Schacht”. Spartacus Education, s.d. Disponível em: https://spartacus-educational.com/GERschacht.htm. Acesso em: 20 maio 2019. 84 Ibid. 85 Ibid. 86 Ibid. 87 Ibid. 88 Ibid. 89 Ibid.
19
possibilitava a emigração dos judeus alemães para a Palestina em troca de parte dos seus bens.90
O ministro da economia discordava de atividades que considerava “ilegais” contra judeus,
denunciando Julius Streichner por seu posicionamento antissemita, afirmando que os judeus
lutaram bravamente pela Alemanha na Primeira Guerra e deveriam ser tratados justamente.91
Por outro lado, o Ministro também realizava pronunciamentos antissemitas, afirmando em um
de seus discursos que a influência judia na Alemanha tinha desaparecido para sempre.92
Como Ministro da Economia, participou no processo de rearmamento da Alemanha,
mas com o tempo passou a se opor ao programa de rearmamento por acreditar que este não
cabia no orçamento do governo. Também não concordava com a forma como Hermann
Goering, que passou a ser o principal nome da economia nazista, conduzia o governo. Devido
a essas diferenças, deixou definitivamente o governo em 1939.
Schacht manteve contato com membros da oposição a Hitler na Alemanha, com Hans
Gisevius (um dos principais conspiradores contra o ditador e organizador da sua tentativa de
assassinato em julho de 1944) servindo como principal testemunha de sua defesa no Tribunal
de Nuremberg.93 Schacht, no entanto, se recusou a participar no Plano de Julho, tendo mesmo
assim sido preso e acusado por seu suposto envolvimento, direcionado por isso ao campo de
concentração de Dachau.94
Hjalmar Schacht foi acusado de ter usado suas várias funções oficiais, sua influência
pessoal e seus contatos com o Führer para promover a ascensão ao poder dos conspiradores
nazistas e a consolidação de seu projeto na Alemanha, sendo enquadrado em conspiração contra
a paz.95 Ele também foi acusado de encorajar os preparativos para a guerra e de participar de
planejamentos políticos e militares pelos nazistas de acordo com os termos das acusações por
participação em guerra de agressão contra a paz.96
A defesa de Schacht alegou que os valores investidos em rearmamento enquanto esteve
no ministério não era suficiente para pretensão de iniciar uma guerra, e que o rearmamento em
si não era um crime estipulado no tribunal, além de que o banqueiro não era um dos
90 Ibid. 91 Ibid. 92 Ibid. 93 Irving, David. Nuremberg: The Last Battle, op. cit. 94 “Hjalmar Schacht”. Spartacus Education, op. cit. 95 “Hjalmar Schacht”. Trial International, 2016. Disponível em: https://trialinternational.org/latest-post/hjalmar-schacht/. Acesso em: 20 maio 2019. 96 Ibid.
20
colaboradores próximos de Hitler, não tendo influência em suas ações militares e de
perseguição.97
97 SCHACHT, Hjalmar. The Magic of Money. London: Oldbourne Book Co., 1967
21
SEÇÃO JURÍDICA
“Enquanto habitantes de um planet tão grande que faz necessária a
existência de diferentes povos, vigoram leis na relação que mantêm
entre si; tal é o direito das gentes.”
Montesquieu
7 Carta aos Delegados
Queridos delegados,
é com extremo prazer que vos apresentamos o guia técnico-jurídico para vos auxiliar
nos estudos e preparação para o Tribunal de Nuremberg do XVI MIRIN.
O universo jurídico é decerto muito rico e vasto para compreendermos de prontidão. Ao
nos depararmos com a difícil escolha de carreira no Ensino Médio, as profissões tradicionais
ou nos saltam os olhos ou nos repulsam de imediato, de acordo com cada perfil. Entretanto, a
carreira jurídica oferece tantas possibilidades que não nos são ofertadas ao Ensino Médio que
quando as vislumbramos nos perdemos em tantas opções. Contudo, não posso enganar-vos: é
uma carreira que exige muitas habilidades de seu profissional e nos põe em desafios
constantemente.
A proposta do comitê jurídico do XVI MIRIN é tentar dar a oportunidade a vocês,
delegados, de conhecerem um ramo tão vasto e rico do Direito: o Direito Internacional Penal.
Vocês devem suspeitar da nossa paixão pela matéria e de fato estão certos. Compartilho com
meus codiretores um amor inexplicável pelo sistema jurídico internacional e, particularmente,
o ramo de Direitos Humanos. Pretendemos, portanto, oferecer uma experiência inovadora e
divertida aos senhores para que compreendam nossa simpatia pelo estudo do ramo.
Com devida pretensão, nós entendemos que a experiência de um tribunal simulado,
apesar de muito divertida, pode ser um pouco superficial pela falta de introdução aos conceitos
jurídicos que fornecem a magia às sessões da Corte. Desse modo, coube a nós a tarefa de vos
introduzir à parte mais desafiadora de nosso comitê e espero que tenhamos feito um trabalho
digno aos delegados que irão estudar este guia. Lembrem-se que nosso objetivo é fazer dessa
22
experiência algo, ao mesmo tempo, divertido e desafiador. Espero que estejam tão animados
quanto nós para participar dessa edição especialíssima do MIRIN e deste comitê tão singular.
Estamos disponíveis por meio de todos os meios digitais para fornecer qualquer tipo de
assistência a vocês. Não hesitem em nos procurar. E lembrem-se, vão além!
No mais, esperamos os senhores para darmos início às sessões!
Com carinho,
A Mesa Diretora
23
8 Contexto jurídico de Nuremberg e doutrinas relevantes
Tratar do Tribunal de Nuremberg implica primeiramente discorrer sobre o contexto -
não apenas histórico, mas também jurídico - em que este se inseriu. Isso porque a doutrina e o
regimento do julgamento beberam da fonte de princípios e teorias do direito já existentes
relacionadas tanto ao direito internacional como ao direito geral. Em segundo lugar, porque
como evento pioneiro e sem precedentes, o Tribunal de Nuremberg estabeleceu e criou uma
série de novos padrões e parâmetros que em seu tempo – e alguns ainda hoje – geraram intensas
controvérsias, fomentando debate entre juristas do mundo inteiro. Essas controvérsias
penetraram no próprio julgamento e inevitavelmente se fazem refletir nas argumentações das
partes.
Assim, faz-se mister rever o desenvolvimento do direito em sua doutrina, prática e
filosofia até o momento, como parte da contextualização e já elucidação do episódio histórico.
Para tal, iniciaremos com um breve resumo da evolução do direito internacional - o qual
também não era livre de controvérsias - e da teoria que o envolve. Em seguida, será feita uma
explanação acerca de tópicos de particular debate na filosofia do direito que muito se
relacionam com o Tribunal de Nuremberg. Desses tópicos, destaca-se como uma discussão de
grande apreço aos teóricos do direito as relações entre esse e a Moral. Ainda na onda desses
tópicos de debate jusfilosófico, será feita uma análise de algumas polêmicas suscitadas – ou
talvez seja melhor dizer intensificadas - após a efetiva instituição do Tribunal Militar
Internacional e de seu Estatuto.
8.1 O Estado do Direito Internacional
O Tribunal de Nuremberg representou importante passo para o desenvolvimento do
Direito Internacional, especialmente no ramo do Direito Internacional Penal. Isto não significa
dizer que essa área do Direito era antes inexistente ou irrelevante. No entanto, o Tribunal foi
sim um evento de originalidade ímpar, que concretizou um sonho já antigo da humanidade de
organizar um julgamento entre nações voltado para aqueles crimes de proporções globais.
Nesse sentido, o Tribunal teve de ser criativo e estabelecer uma série de princípios e diretrizes
para implementar aquilo que nunca a comunidade internacional havia sido capaz de pôr em
prática. Sendo assim, tratou-se de um capítulo no Direito Internacional amplamente inovador,
e essa inovação estava fadada a gerar debate e discussões. Para entendê-las, é necessário passar
brevemente pela evolução e o estado do Direito Internacional em 1945 bem como um pouco da
bagagem teórica relacionada a ele.
24
8.1.1 Desenvolvimento Histórico do Direito Internacional
Embora não haja consenso sobre a exata origem do Direito Internacional, é certo de que
este ramo do Direito não é de modo algum um fenômeno recente, estando presente na história
da humanidade há tempos98, ainda de que forma precária, limitada e protozoária. A pretensão
de constituição de um Direito Internacional está ligada à ideia de que deve haver um conjunto
de princípios e normas que estejam acima dos limites de cada nação e que, portanto, todos os
povos e Estados estariam obrigados a respeitar. Isso implica que, nesses termos, o Direito
Internacional versaria sobre as relações entre Estados (uma vez que cada um deles deveria agir
de acordo com esses princípios universais em suas interações com demais nações) e sobre os
casos em que fossem cometidas atrocidades tamanhas que violariam não só o direito interno de
um país, mas esses princípios e valores universais, e que colocariam em risco a humanidade
como um todo.
Como se pode perceber, essas ideias dialogam muito com a busca por uma moral
universal, um sistema ético objetivo e válido para todos os povos. Trataremos sobre as relações
entre Direito e Moral mais adiante. Contudo, é certo que o Direito Internacional não pode ser
algo recente na história humana, uma vez que se liga a essa procura humana pela moral
universal, busca essa acompanha a humanidade por toda sua caminhada, estando presente nos
projetos de diversas religiões e em antigas doutrinas filosóficas, como as de Sócrates e Platão.
De fato, a teoria sobre o Direito Internacional, em seus inícios, o identificava com o direito
natural. Essa expressão denota o que muitos acreditam ser justamente um conjunto de princípios
e normas objetivas e válidas a todas as nações, o qual corresponderia a tudo que fosse
verdadeiramente correto e justo. Deve-se destacar, no entanto, que o direito natural seria
também atemporal, imutável, o que não é o caso do Direito Internacional.
Muitos internacionalistas afirmam serem identificáveis modalidades de Direito
Internacional já na Antiguidade. De fato, vários de seus elementos já se verificam nessa época,
mesmo porque já então governos de povos diferentes precisavam se relacionar, ainda que não
fosse com os tratados e organizações internacionais com os quais mais se identifica esse ramo
do Direito. Alguns desses elementos e instituições do Direito Internacional já presentes na
Antiguidade, mais especificamente na Grécia, são “a arbitragem como modo de solução de
litígios; o princípio da necessidade da declaração de guerra; [...] o direito de asilo; a
98 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. P. 69-70.
25
neutralização de certos lugares”99. Em Roma, o princípio conhecido como jus fetiale distinguia
a guerra justa da injusta, outra das preocupações mais tradicionais do Direito Internacional. É
necessário ressaltar, contudo, que essas instituições tinham antes caráter religioso do que
jurídico. Também em Roma, outro instituto importante para o Direito Internacional é o jus
gentium. Essa lei regulava as relações entre romanos e estrangeiros, diante das transformações
e crescimento demográfico de Roma e a necessidade de universalidade do império por meio de
uma ordem jurídica internacional.
A construção do ius gentium foi marco regulatório cuja influência ainda se faz
presente, como ideia de direito universalmente aplicável a todas as gentes (livres) do
império. Inaugura-se a ideia de lei universal, ligada à natureza, e se não a expressão
perfeita de lei natural (na medida em que aceitava, por exemplo, a escravidão), seria
a expressão humanamente possível desta, na medida em que, refletindo a lei da
natureza, regulava a convivência entre as gentes, em toda a extensão do império
romano.100
Ao mencionar a “lei da natureza”, o trecho acima faz referência justamente a essa
concepção de um direito moralmente correto, superior ao direito interno de cada povo e
decorrente da própria natureza. O Império Romano desempenha modalidades de Direito
Internacional também pelas suas relações com o Império Persa. As relações entre essas duas
potências apresentam várias práticas de relações internacionais comuns na Era Contemporânea,
como a inviolabilidade das embaixadas, os privilégios e imunidades de chefes de Estado e
funcionários enviados durante visitas e a ratificação de tratados101.
No âmbito específico do Direito Internacional Penal, também se pode argumentar a
existência de precedentes manifestações do mesmo na Antiguidade, a partir do julgamento de
criminosos de guerra, no que, afinal, se constitui o Tribunal de Nuremberg. Registros relatam
sobre uma expedição de gregos dirigida por atenienses na Sicília que provocou o julgamento
de generais vencidos. Também os lacedemônios, após a destruição de uma esquadra ateniense
em Aegospótamos, promoveram o julgamento e condenaram os vencidos por crimes de
guerra.102
99 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 61. 100 Ibid. P. 62. 101 VEROSTA apud ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 63. 102 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2a ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 5.
26
Ao tratar do histórico do Direito Internacional, os autores Hildebrando Accioly, G. E.
do Nascimento e Silva e Paulo Borba Casella, o dividem em quatro fases: até os Tratados de
Vestfália, de Vestfália ao Congresso de Viena, de Viena ao Tratado de Versalhes, e de
Versalhes em diante103. Contudo, assim como não há consenso acerca da origem exata desse
ramo do direito, a fase anterior a Vestfália não é unanimemente aceita, visto que Mazzuoli
parece não a considerar, julgando que os casos citados aqui não constituem manifestações de
Direito Internacional propriamente dito como o conhecemos hoje104. É certo, porém, que ainda
antes dos Tratados de Vestfália, o desenvolvimento do Direito Internacional já havia se iniciado
graças às teorias de alguns autores pioneiros.
Os primeiros a teorizarem acerca do Direito Internacional foram os teólogos
dominicanos espanhóis Francisco de Vitoria e Francisco Suarez. Na época, referia-se ao Direito
Internacional como “direito das gentes”, indicando assim o ramo do direito que tratava das
relações entre povos distintos. Francisco de Vitoria o compreendia como sendo as normas que
a razão natural estabelecia entre as nações. Vê-se aí como havia uma íntima conexão entre a
ideia de um direito natural e o que seria o direito das gentes. Era comum, na época de Vitoria,
comparar o poder de um Estado sobre seu território com o poder de um proprietário sobre suas
terras. O poder do Estado seria, portanto, absoluto, sem nenhuma outra autoridade capaz de
limitá-lo. Em verdade, essa concepção de que não haveria poder superior ao do Estado em
matéria jurídica não estava completamente extinta na época de Nuremberg. Francisco de
Vitoria, contudo, já rejeitava essa tese. Enquanto muitos diziam haver uma independência entre
as nações, Vitoria defendia haver uma “interdependência”105. Essas ideias são bem sintetizadas
na seguinte passagem do autor:
O direito das gentes não tem somente força de pacto ou de convenção entre os homens,
mas possui, igualmente, força de lei. O mundo inteiro, na verdade, que, de certo modo,
constitui uma república, tem o poder de levar as leis justas e ordenadas para o bem de
todos, tais como são as do direito das gentes. Consequentemente, quando se trata de
questões graves, nenhum Estado pode se considerar desvinculado do direito das
gentes, pois este é colocado pela autoridade do mundo inteiro.106
103 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 104 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. P. 70. 105 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 74. 106 VITORIA apud ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 74-75.
27
Tanto Vitoria como Suarez se encarregaram de distinguir a guerra justa e a injusta. Para
Suarez, seria justa a guerra quando conduzida para garantir o direito e justiça, e, ao final, o lado
vencedor teria autoridade e jurisdição sobre o vencido. Suarez se ocupava também do tema da
caridade, afirmando que deveria haver regras que presidissem o conflito. Um beligerante
deveria impor ao inimigo apenas os males necessários para a vitória, poupando e respeitando
ao máximo os inocentes.107
Para além desses dois autores, há aquele que é tido como o “Pai do Direito
Internacional”: Hugo Grócio. Isso porque ele foi um dos maiores contribuintes para a teoria do
Direito Internacional, garantindo que a análise desse campo do Direito ganhasse espaço como
ciência. Inserido no contexto da Reforma Protestante e da perda de poder da Igreja Católica,
Grócio foi também responsável pela laicização das teorias envolvendo direito natural e direito
das gentes, que, até então, eram profundamente vinculadas às ideias de vontade e lei divina.
Grócio define o direito das gentes como:
[...] aquele que recebeu sua força obrigatória da vontade de todas as nações ou de
grande número delas. Acrescentei de ‘grande número’ porque, à exceção do direito
natural, que costumamos chamá-lo também jus gentium, não encontramos
praticamente direito que seja comum a todas as nações.108
Essa concepção de direito das gentes é o que leva Grócio a legitimar a sanção penal
internacional, um passo evidentemente importante dentro do desenvolvimento do Direito
Internacional. Para Grócio, o direito das gentes teria cada Estado como órgão, como sujeito.
Assim, tal qual a pessoa no direito interno de um país, os Estados deteriam uma série de direitos
e deveres em relação uns aos outros. Haveria, por exemplo, o compromisso de cumprimento
dos tratados dada sua inviolabilidade. Da mesma forma, esse status de sujeito no direito das
gentes daria ao Estado faculdades como “o poder de reagir contra as agressões injustas
atingindo a sua pessoa, direito de vingança e de reprimir pela força as violações do Direito
natural”109. Daí pode se traçar a distinção entre guerra justa e injusta. No entanto, em Grócio,
diferente de outros autores, não basta que a causa da guerra seja justa, mas também sua conduta
deve sê-lo.
107 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2a ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 7. 108 GRÓCIO apud BIAZI, Chiara Antonia Sofia Mafrica. A Importância de Hugo Grócio para o Direito. Disponível em: file:///C:/Users/Filipe/Downloads/66015-291880-3-PB.pdf. Acesso em: 15/5/2019. 109 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2a ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 8.
28
Outra particularidade do pensamento de Grócio (e que se verá ser aplicada em
Nuremberg) é a admissão da possibilidade de sanção não só ao Estado, mas ao soberano do
Estado responsável pelas violações do direito das gentes. Essa ideia representa uma
originalidade imensa do pensamento desse autor. Ao contrário do que se pode pensar, a
responsabilização de indivíduos no Direito Internacional foi assunto muito controverso, como
veremos mais adiante. Muitos descartavam essa possibilidade por julgarem que, no Direito
Internacional, seriam sujeitos exclusivamente os Estados, não se podendo, portanto,
responsabilizar e punir indivíduos. Diferente de muitos autores, porém, Grócio abre espaço para
essa responsabilização. É certo que estavam no centro da proposta e da fundamentação do
Tribunal de Nuremberg a ideia da possibilidade de sanção penal por parte de outros Estados em
caso de violação de direito das gentes, bem como, mais especificamente, a possibilidade sanção
contra um indivíduo no comando do Estado criminoso.
Como já dito, a obra e pensamento de Grócio se inserem no contexto da Reforma
Protestante e dos conflitos religiosos a ela ligados, o que explica seu interesse e preocupação
com o Direito Internacional e a laicização do direito natural. Com a perda de poder temporal da
Igreja Católica, aquilo que seria a principal autoridade supranacional tinha sua força
comprometida, enquanto o poder se centralizava na figura dos Estados modernos. De fato, o
estudo da história indica que a Igreja Católica, como a principal autoridade supranacional,
detinha amplos poderes no âmbito internacional, tal como declarar o direito e a legitimidade
para Estados conquistarem territórios110. Diante do contexto caótico de tantas guerras,
preocupava a Grócio definir as regras de convivência existentes entre os Estados como forma
de procurar manter a paz ou pelo menos reduzir a devastação e as tragédias da guerra. Com a
quebra da unidade religiosa anterior à Reforma, não havia mais como depender inteiramente da
religião para delimitar essas normas, o que levaria Grócio a buscar soluções além da teologia
para encontrá-las, contribuindo para esse processo de laicização.111
Dessa conjuntura de conflitos religiosos, resultou também o primeiro dos grandes
marcos de início de uma nova fase do Direito Internacional, o qual teve sua prática estimulada
– para além da teoria – com os Tratados de Vestfália de 1648, que aceleraram seu
desenvolvimento. Tomando muita inspiração do pensamento de Grócio, esses tratados
110 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 68. 111 BIAZI, Chiara Antonia Sofia Mafrica. A Importância de Hugo Grócio para o Direito. Disponível em: file:///C:/Users/Filipe/Downloads/66015-291880-3-PB.pdf. Acesso em: 15/5/2019.
29
estabeleceram o princípio da igualdade jurídica entre Estados, a base do equilíbrio europeu.
Está presente também o conceito de neutralidade na guerra. Além disso, o princípio adotado
para a determinação da religião do país pelo governante serviu como ponto de partida para o
princípio contemporâneo de não ingerência nos assuntos internos dos Estados.112 Não à toa os
Tratados de Vestfália são tidos como marco inicial de uma fase do Direito Internacional, fase
essa que durará até o Congresso de Viena em 1815.
No Congresso de Viena, temos a busca por equilíbrio no continente europeu, baseado
na união entre as monarquias para manutenção do status quo frente ao perigo da Revolução
Francesa e das Guerras Napoleônicas. A paz, a ordem e o entendimento máximo entre as nações
eram objetivos norteadores da nova fase que se instalou no Direito Internacional. Novos
princípios foram consagrados, como a proibição do tráfico negreiro, a liberdade de navegação
de rios internacionais e a institucionalização da classificação para os agentes diplomáticos. Com
o Congresso, ganhou força a ideia de que toda mudança no contexto internacional deveria
proceder pelo consenso entre as nações, para melhor garantia de ordem. Reflete-se aí essa busca
incansável pelo equilíbrio e pela paz, por meio da acomodação de interesses.113
Finalmente, com o Tratado de Versalhes de 1919, entra-se em uma nova fase do Direito
Internacional, muito mais próxima e decisiva para o Tribunal de Nuremberg. Caminha-se para
maior institucionalização do Direito Internacional, como se vê pelo Pacto da Sociedade das
Nações, contido no Tratado. Abre-se caminho para as organizações internacionais, um sonho
antigo de muitos teóricos, ainda que essas tivessem diversos obstáculos para sua afirmação e
plena eficiência. Mais importante, com Versalhes, vem se desenvolvendo agora um Direito
Internacional de cooperação, não apenas de coexistência e mútua abstenção que se via nas fases
anteriores. Essa ideia da cooperação entre nações junto com a institucionalização intensifica a
procura por mecanismos de solução pacífica de controvérsias e litígios entre Estados.114 Isso
contribui para conferir maior juridicidade ao Direito, com as ideias de implementação de
tribunais internacionais crescendo entre os acadêmicos. O Tribunal de Nuremberg se insere
nesse contexto, pois, de institucionalização do Direito Internacional.
112 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 88-89. 113 Ibid. 114 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P.111-116.
30
Nesse contexto, desenvolve-se mais aceleradamente também o ramo específico do
Direito Internacional Penal. Afinal, a própria Paz de Versalhes já previa o julgamento do Kaiser
Guilherme II, tido como o principal responsável pelo conflito da Primeira Guerra Mundial, e
de criminosos de guerra. Guilherme II seria condenado por “ofensa suprema contra a moral
internacional e a autoridade sagrada dos tratados”, por um tribunal composto por cinco juízes
representando EUA, Grã-Bretanha, França, Itália e Japão. Vários projetos e discussões
doutrinárias põem já como objetivo a instauração de alguma corte penal internacional, além da
codificação do Direito Penal Internacional. Um projeto do Barão Descamps propunha a criação
de uma Corte Permanente de Justiça Internacional que julgasse crimes contra o Direito
Internacional, mas o comitê de juristas encarregado de elaborar o estatuto dessa corte propôs
não aceitou a proposta, por afirmar não haver ainda um Direito Internacional Penal comumente
aceito entre as Nações. Ainda assim, a própria Sociedade das Nações convocou em 1937 uma
conferência para apreciar projetos para uma convenção para prevenção e punição do terrorismo
e para uma convenção para criar uma Corte Criminal Internacional, o que não foi ratificado por
nenhum Estado. Quanto a doutrinadores e juristas importantes, Donnedieu de Vabres, um dos
juízes do Tribunal de Nuremberg, em 1920, defendia a criação de uma câmara criminal dentro
da própria Corte Permanente de Justiça Internacional, defendo que assim satisfaria o princípio
da unidade da justiça civil e da justiça penal. Outro jurista, Quintiliano Saldaña, chegou a
elaborar um anteprojeto de Código Penal Internacional, alegando que os criminosos
internacionais estariam submetidos à jurisdição e competência penal da própria Corte
Permanente.115 116
Já começam a se desenvolver também as noções dos crimes no âmbito internacional
pelos quais os réus de Nuremberg foram acusados, especialmente crimes contra a paz e crimes
de guerra. Como já se viu, sempre foi tópico do Direito Internacional a distinção entre guerra
justa e injusta bem como a delimitação das atitudes aceitáveis a serem tomadas por beligerantes
contra seus adversários na guerra, visando a minimizar ao máximo o estrago e as atrocidades
dos conflitos bélicos. No entanto, com o Direito Internacional de cooperação de Versalhes
começa-se a caminhada para tornar a guerra algo ilícito. Nesse contexto, pode-se falar em um
princípio de renúncia à guerra (e ao uso da força em geral) por parte dos Estados e em crimes
115 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Penal e Direito Internacional. Rio de Janeiro, Publicação do Instituto de Relações Internacionais e Direito Comparado do Departamento de Ciências Jurídicas da PUCRJ, 1978. P. 207-208. 116 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2a ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P.13-15.
31
contra a paz. O Pacto da Liga das Nações obrigava os Estados a procurarem uma solução
pacífica antes de recorrerem à guerra. O Pacto de Briand-Kellog veio para estabelecer
juridicamente a renúncia à guerra. Aristides Briand havia sido ministro das Relações Exteriores
da França e, em famosa mensagem aos EUA, declarou que a guerra deveria ser posta “fora da
lei”. O Pacto, assinado em 1928 em Paris, contava com 63 signatários às vésperas da Segunda
Guerra Mundial. Os dois primeiros artigos do documento afirmam:
Artigo 1: As Altas Partes contratantes declaram solenemente, em nome
dos respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução
das controvérsias internacionais, e a ela renunciam como instrumento de
política nacional nas suas mútuas relações.
Artigo II: As Alta Partes contratantes reconhecem que o ajuste ou a
solução de todas as controvérsias ou conflitos qualquer natureza ou
origem, que se suscitem entre elas: nunca deverá ser procurado senão por
meios pacíficos.117
Celso de Albuquerque Mello coloca: “O Pacto Briand-Kellog rompe definitivamente
com a tradicional doutrina da guerra justa, isto é, as guerras são proibidas sem importar a sua
justiça”118. É admitida, porém, a guerra em legítima defesa. Desde então, vários outros tratados
surgiram proibindo a guerra e o uso da força na comunidade internacional, a saber o Pacto
Saavedra Lamas, a resolução da Comissão Política da Conferência para a Redução e a
Limitação dos Armamento de 1933 e a Declaração dos Princípios Americanos.
Os crimes de guerra, por sua vez, já vinham sendo discutidos e elencados mesmo antes
de Versalhes. Afinal, como já vimos, a regulamentação da guerra foi um dos objetivos mais
antigos do direito das gentes e suas primeiras obras tratavam justamente do direito do conflito.
A partir do século XIX, porém, intensifica-se o movimento para a regulamentação internacional
convencional acerca do comportamento na guerra. Dentre alguns documentos e convenções
importantes nesse sentido, vale a pena citar: a Convenção de Genebra de 1864 para a melhoria
da sorte dos militares feridos nos exércitos em campanha, a Convenção de 1989 para adaptação
à guerra marítima dos princípios da Convenção de Genebra, a Convenção de Haia de 1899
relativa às leis e usos da guerra terrestre, a declaração de Haia de 1899 proibindo o emprego de
117 Para ter acesso a todo o documento traduzido do Pacto de Briand-Kellog, conferir: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/segurancapublica/Tratado_renuncia_guerra_paris.pdf. Acesso em: 27/5/2019. 118 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Penal e Direito Internacional. Rio de Janeiro, Publicação do Instituto de Relações Internacionais e Direito Comparado do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC-Rio, 1978. P. 95.
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gases asfixiantes ou deletérios, a Convenção de Genebra de 1906 sobre a melhoria da sorte de
doentes e feridos, a III Convenção de Haia de 1907 relativa ao rompimento das hostilidades, a
IV Convenção de Haia de 1907 relativa às leis e usos de guerra terrestre, o Protocolo de Genebra
de 1925 sobre a proibição da guerra química e bacteriológica, a Convenção de Genebra de 1929
sobre o melhoramento da sorte dois feridos e doentes, a Convenção de Genebra de 1929 sobre
o tratamento dos prisioneiros de guerra. Essas são apenas algumas declarações e convenções
relativas à conduta dos Estados na guerra, havendo vários outros documentos relevantes. É
necessário ressaltar, porém, que a determinação da ilicitude de várias atividades no âmbito de
guerra não vinha acompanhada da previsão das penas e sanções contra seus perpetradores. Para
mais, a Conferência de Preliminares da paz de 1919 criou uma Comissão de Juristas que elencou
uma série de condutas como crimes de guerra. No entanto, a Comissão tinha o intuito de
enumerar alguns, e não todos os crimes de guerra, podendo ser incluídas à lista outras condutas.
Ao contrário dos crimes contra a paz e dos crimes de guerra, o conceito de crimes contra
a humanidade não estava ainda muito desenvolvido na doutrina internacional e em tratados e
convenções prévios. Dessa forma, coube muito ao próprio Tribunal de Nuremberg e a seu
estatuto conceituar esse ato ilícito, sendo o primeiro a formular essa noção119. O Estatuto do
Tribunal tipifica essas três espécies de delito internacional da seguinte forma:
A) Crimes contra a paz: isto é, a direção, a preparação e o desencadeamento ou o
prosseguimento de uma guerra de agressão ou de uma guerra de violação dos tratados,
garantias ou acordos internacionais ou a participação num plano concertado ou num
conluio para a execução de qualquer um dos atos precedentes;
B) crimes de guerra: isto é, violações de leis e costumes de guerra. Essas violações
compreendem, sem serem limitadas nas leis e costumes, o assassinato, maus-tratos ou
deportação para territórios forçados ou para qualquer outro fim, das populações civis
nos territórios ocupados, assassinato ou maus-tratos de prisioneiros de guerra ou de
pessoas no mar, execução de reféns, pilhagem de bens públicos ou privados,
destruição sem motivo de cidades e aldeias, ou devastações que as exigências militares
não justifiquem;
C) crimes contra a humanidade: isto é, assassinato, exterminação, redução à
escravidão, deportação e qualquer outro ato desumano cometido contra populações
civis, antes e durante a guerra; ou então, perseguições, quer tenham ou não constituído
uma violação do Direito Interno dos países onde foram perpetrados, tenham sido
119 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 73.
33
cometidos em consequência de qualquer crime que entre em competência do Tribunal
ou em ligação com esse crime.
8.1.2 Dificuldades e debates teóricos para a implantação do Direito Internacional
Apesar de todo esse desenvolvimento ao longo dos anos e de diferentes fases, não se
pode dizer ainda que o Direito Internacional tenha alcançado um nível de plena e efetiva
aplicação no cenário político, nem que esse desenvolvimento tenha de alguma forma chegado
perto do direito interno. É bem sabido que, no plano global, o Direito Internacional ainda
encontra muitos obstáculos para se estabelecer completamente, para montar uma burocracia e
estrutura com mecanismos de coerção e formulação de novas normas, e para que suas normas
sejam efetivamente cumpridas. Na prática, muitas vezes os Estados priorizam seus interesses
nacionais e sua soberania em detrimento de normas internacionais, tratados e declarações.
Nesse campo, é certo que a dita soberania dos países muitas vezes se coloca como obstáculo
para o desenvolvimento prático do Direito Internacional. Isso porque o respeito a ela é
frequentemente usado como pretexto para burlar tratados, normas internacionais, bem como
determinações de órgãos supranacionais. De fato, a sacralidade que se dava à soberania desde
o início da Era Moderna sempre foi empecilho para que muitos teóricos internacionalistas
concebessem ideias como a de um tribunal ou corte internacional ou mesmo as sanções penais
contra outros Estados120. A ideia de uma instância, uma autoridade de poder superior aos
Estados era inaceitável. Evidentemente, essas dificuldades eram ainda muito presentes nas
vésperas de Nuremberg.
Para além do plano prático, todavia, muitas doutrinas teóricas são também empecilho
para a fixação de um Direito Internacional mais evoluído. Isso se dá porque não apenas os
limites e formas de atuação do Direito Internacional eram questionados por alguns teóricos,
mas também o seu próprio caráter jurídico. Muitos pensadores negavam ao Direito
Internacional o status de Direito e, ao contrário do que pode se pensar, as teorias desses autores
continuavam muito influentes e de certa forma preponderantes no contexto de Nuremberg.
Assim como na prática, a razão pela qual muitos teóricos não identificavam o Direito
Internacional como Direito e suas normas como jurídicas se relaciona com a questão da
soberania estatal. Essa, segundo algumas concepções jusfilosóficas de ampla projeção na época
120 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2a ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 7.
34
do Tribunal, está muito ligada a própria essência do Direito. Tais dificuldades teóricas para a
fixação do Direito Internacional vão gerar debates e argumentos relativos não só à juridicidade
do Direito Internacional, mas à possibilidade de sua atuação frente ao direito interno de um
país, questões essas muito relevantes para as discussões de Nuremberg. Analisar esses debates
contribui para nos fazer entender melhor o contexto jurídico do Tribunal e todo o trabalho
criativo que ele teve para se estabelecer no Direito Internacional da época.
Acabamos de dizer que a razão pela qual muitos teóricos não veem o Direito
Internacional como Direito tem a ver também com a soberania estatal. Isso porque a soberania
se liga à concepção da essência do Direito de muitas doutrinas filosóficas de extrema influência
ao longo da história do pensamento jurídico. Via-se como elemento fundamental do fenômeno
Direito o seu poder coercitivo, o qual adviria justamente do fato de que o Direito decorre da
vontade do soberano, daquele que tem o monopólio da força e que pode portanto impô-lo.
Uma das teorias filosóficas mais populares, difundidas e aceitas na virada do século
XIX para o XX (e, portanto, no momento de Nuremberg) para explicar a essência do Direito e
o objeto de estudo da ciência jurídica é aquela do inglês John Austin, que justamente relaciona
o conceito de Direito com a soberania. Trata-se da teoria do comando, a qual associa a essência
do Direito com o conjunto de ordens de um soberano. Esse seria o Direito estritamente e esse
seria o objeto da ciência do Direito: “O objeto da jurisprudência121 é o direito positivo: ou o
direito posto por aquele politicamente superior àqueles politicamente subordinados”122. O
Direito, desse modo, é um conjunto de regras, e toda regra uma espécie de comando. Austin
define comando como a manifestação de um desejo acompanhada de uma ameaça de punição
caso esse desejo não seja cumprido, gerando um dever de obedecer ao comando. Percebe-se aí
que o Direito se relaciona com a ideia de um comando vindo de alguém superior, de um
soberano – seja ele um indivíduo ou um grupo – imposto a um subalterno. Esse comando, essa
lei, viria acompanhado de uma sanção, a ameaça de um mal que será aplicado caso a lei não
seja cumprida. Essa situação gera um dever do subalterno de obedecer ao comando. Tem-se,
pois, que também está vinculado ao Direito o poder de coerção.123
121 Nesse contexto, jurisprudência é entendida como ciência do Direito. 122 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=Lm__im02ewsC&hl=pt_BR&pg=GBS.PA4. Acesso em: 28/5/2019. Tradução livre. 123 MARCONDES, Danilo; STRUCHINER, Noel. Textos Básicos do Direito. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. P. 87-93.
35
A partir daí podemos começar a entender em que medida o Direito Internacional não
seria considerado Direito para aqueles partidários da teoria de Austin ou de outras parecidas.
Uma vez que a essência do Direito corresponde às determinações de um soberano
acompanhadas de uma sanção e, portanto, de poder de coerção, como poderia ser Direito um
fenômeno como o Direito Internacional, horizontal e não verticalizante, sem a presença de uma
hierarquia burocrática, nem de um soberano, de uma autoridade suprema acima dos Estados
capaz de impor suas ordens e manter um poder de coerção? Se houvesse uma instância superior
internacional, não se poderia falar em soberania dos Estados, o que seria inconcebível para a
conjuntura político-jurídica da época. E, de fato, o Direito Internacional não dispõe de um
aparato burocrático hábil a fazer valer suas normas e garantir o cumprimento delas, como
acontece com os governos dos países. Acusava-se que, desprovido de efetivas sanções, o Direito
Internacional não constituía Direito.
Com efeito, doutrinas que enxerguem o Direito com essa visão abrem espaço para que
se negue o caráter jurídico do Direito Internacional. Não à toa, Austin é tido como um dos
negadores do Direito Internacional. É importante ressalvar, contudo, que Austin não ignorava
a existência de normas internacionais, apenas negava que elas fossem normas jurídicas. Há,
porém, outros atores que, de fato, negam a existência de verdadeiras normas internacionais.124
É certo que, ao longo dos anos, novas teorias e concepções da filosofia do Direito surgiram,
superando e pondo em xeque as ideias de Austin. Ainda assim, na época de Nuremberg, o
pensamento de Austin era ainda dominante125.
Austin não era o único a identificar o fenômeno do Direito apenas com as ordens postas
pelo soberano, pelo Estado burocrático controlador do poder e da coação em um território.
Outro exemplo de teórico do direito com um pensamento semelhante é Karl Magnus Bergbohm.
Segundo esse autor, uma norma só se torna jurídica a partir do momento que é imposta pela
autoridade estatal. Destarte, não haveria Direito para além da vontade do poder soberano, é
Direito apenas aquelas leis postas e impostas pelo Estado e os indivíduos devem obedecê-las
sob o risco de sanção caso não o fizerem.126 Na verdade, todas essas correntes que delimitam o
Direito a só aquilo imposto pelo soberano remontam a Hobbes. Afinal, já no século XVII, o
124 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 1° vol. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. P. 115-116. 125 MARCONDES, Danilo; STRUCHINER, Noel. Textos Básicos do Direito. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. P. 11, 87-89. 126 DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo de Direito. 7 ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 27.
36
filósofo havia defendido que o Direito decorre da vontade política, é imposto pelo Estado e que
suas regras devem ser respeitadas porque quem as colocou tem o poder de constranger, isto é,
de coagir por meio da força os indivíduos a obedecer a suas normas. Assim, a lei seria
determinada pelo poder do Estado.127
Há outras teorias que podem pôr em questionamento a juridicidade do Direito
Internacional. Uma delas é a do jusfilósofo Rudolph von Ihering. Diferente da de Austin, não
há tanto foco na ideia de comando, entretanto, desempenha igual ou até maior importância nessa
teoria o poder de coerção. Ihering fala em “espada do Direito” para representar a força que ele
exerce e que lhe é característica devido a sua incessante luta contra a injustiça. Em suas próprias
palavras:
O direito não é uma ideia lógica, porém ideia de força; é a razão porque a justiça, que
sustenta em uma das mãos a balança em que pesa o direito, empunha na outra a espada
que serve para fazê-lo valer.
A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é o direito impotente;
completam-se mutuamente: e, na realidade, o direito só reina quando a força
dispendida pela justiça para empunhar a espada corresponde à habilidade que emprega
em manejar a balança.128
Logo, a força e também a coação estão no cerne do Direito para Ihering e são
indispensáveis para explicar a sua natureza. Esse é, na verdade, um dos principais pontos em
comum nas teorias dos autores brevemente tratados aqui: para eles, não se pode falar em Direito
sem coerção, sem sanções. Sendo o soberano o detentor do poder de coação em um território,
ele se torna peça central no fenômeno do Direito. Com a ausência de uma autoridade superior
aos Estados, justamente pela soberania destes, não poderia haver sanções e coação na esfera
internacional. Daí decorre que, para esses autores, torna-se incoerente falar em Direito
Internacional como Direito. Austin inclusive dedica trechos de sua obra para afirmar que o
termo Direito (ou law no original em inglês) era erroneamente utilizado para se referir às
normas da moral internacional129.
É certo que essas não eram as únicas teorias para explicar a natureza do Direito. Os
juristas Savigny e Ehrlich, por exemplo, associam o Direito muito mais ao espírito e consciência
127 Ibid. P. 23. 128 IHERING, Rudolph von. A Luta pelo Direito. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/luta.html. Acesso em: 20/5/2019. 129 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=Lm__im02ewsC&hl=pt_BR&pg=GBS.PA4. Acesso em: 28/5/2019.
37
de um povo, seus costumes e ao reconhecimento social das leis do que à imposição da vontade
estatal130. Além disso, mesmo alguns autores, como Hans Kelsen, que alinham a essência do
Direito com a coação, uso da força e a imposição política131, reconhecem a juridicidade do
Direito Internacional e julgam que ele dispõe de suas próprias modalidades de sanção, como,
por exemplo, a represália e a guerra132, também segundo Kelsen. Ainda assim, por mais que
não fossem únicas, essas teorias de Austin e Ihering e outros tornaram-se extremamente
influentes na comunidade acadêmica jurídica mundial. Isso, sem dúvidas, geraria debates
teóricas que contestariam e desafiariam a instituição e avanço do Direito Internacional.
O mais interessante a respeito dessas discussões teóricas, contudo, talvez não seja
simplesmente a existência ou não de um Direito Internacional, mas sim seus limites frente ao
direito interno dos países. Como veremos mais adiante, isso se trata de uma questão altamente
complexa, cujas polêmicas ser repercutirão na argumentação das partes de Nuremberg. Mesmo
com a instituição de órgãos internacionais, dispondo de suas próprias cortes e tribunais, é certo
que isso não apagaria a soberania e autonomia dos Estados nem a horizontalidade do Direito
Internacional. Desse modo, que autoridade teriam as normas e órgãos do Direito Internacional
frente à soberania dos países? Em caso de divergência entre o direito interno de uma nação e
Direito Internacional, poderiam as normas e a jurisdição internacionais condenar condutas que
aconteceram dentro da legalidade de seus países (como aconteceu em Nuremberg)?
8.2 Direito e Moral
É bem verdade que grande parte da motivação para julgar e punir as lideranças nazistas
decorre da alta reprovabilidade de suas ações, que ferem profundamente as noções e o
sentimento humanos de ética e de justiça. As acusações de Nuremberg têm, dessa maneira, uma
inevitável carga moral. Havia um senso de dever de reparação às vítimas da Segunda Guerra
Mundial e de punição aos responsáveis por aquelas que seriam algumas das atrocidades mais
revoltantes já cometidas na história. Além disso, o Direito como um todo é visto na consciência
coletiva como um instrumento para a efetivação da justiça, para a promoção do bem e como
forma de rechaçar práticas destrutivas e reprováveis. O Direito Internacional, especificamente,
tem ainda maior carga moral, pois, como visto na evolução histórica desse ramo do Direito, ele
frequentemente era associado por autores a um conjunto de normas tão fundamentais que nem
130 DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo de Direito. 7 ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 26-28. 131 Ibid. P. 29. 132 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2019. P. 355-360.
38
mesmo os Estados em sua soberania poderiam violar, muitos chegando a dizer que seria um
sistema de normas imutáveis, uma ideia que se aproxima muito da própria noção de ética.
Tudo isso faz com que o Tribunal de Nuremberg adquira um peso e um sentimentalismo
moral muito grande. Cria-se uma alta tendência de que valores morais entrem em jogo e
influenciem tanto na argumentação das partes como na tomada de decisões. Diante disso, faz-
se relevante passar por algumas reflexões acerca da relação entre essas duas esferas: o Direito
e a Moral. A relação entre esses dois conceitos (se é que existe alguma relação) é um dos tópicos
de debate mais acalorados na teoria e filosofia do direito e tende a se intensificar em casos de
particular complexidade e comoção, como Nuremberg. Pensadores discorrem sobre questões
como as distinções entre Direito e Moral e sobre uma possível conexão entre eles. Aqui, iremos
tratar sobre duas correntes opostas, cujo debate se estende por séculos de história, que tentam
explicar justamente se há alguma conexão entre Moral e Direito. As duas correntes em questão
são o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. O objetivo de analisá-las aqui é precisamente
demonstrar, diante de um caso tão comovente como Nuremberg, em que valores éticos tendem
a surgir na deliberação, como se entende que a Moral se insere no Direito, ou se ela se insere
de alguma forma. Como veremos adiante, essa discussão é relevante até mesmo para decidir se
o sistema jurídico nazista deveria, de alguma forma, ser considerado direito. Se for entendido
que é direito, teremos o caso de um conflito entre o direito interno de um país e o Direito
Internacional.
8.2.1 Jusnaturalismo
A primeira corrente que veremos teve grande influência sobre a formação do Direito
Internacional. O jusnaturalismo, basicamente, entende que o Direito é indissociável da Moral.
Essa corrente, antes de tudo, acredita existir algo como uma Ética, semelhante àquela presente
nas doutrinas das principais religiões do mundo. Haveria, desse modo, um grupo de preceitos
éticos, objetivamente válidos, universais e imutáveis e passíveis de serem conhecidos pelo
homem, uma Moral universal, portanto. Isso corresponde a um direito natural. Este seria um
direito, um sistema de normas, em uma instância acima do direito de cada povo. Seria um
sistema, como dito, universalmente válido, imutável e cognoscível, ou seja, capaz de ser
apreendido pelo homem. Nas palavras de Antígona, personagem-título de uma tragédia de
Sófocles, seriam “leis não escritas, perenes (...) não são de ontem nem de hoje, mas são sempre
vivas, nem se sabe quando surgiram”133 A origem exata desse direito natural varia de acordo
133 SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2013. P. 34.
39
com os autores, podendo ele ter uma origem divina ou cosmológica, uma origem derivada da
própria razão humana, ou uma origem na simples natureza das coisas.134 Como se pode ver,
esse conceito se assemelha às primeiras noções de direito das gentes, normas fundamentais, que
tratassem dos elementos mais gerais e básicos da raça humana, válidas em qualquer lugar e que
nem os próprios soberanos poderiam violar. De fato, as concepções jusnaturalistas foram
historicamente influentes para a formação do Direito Internacional. Não à toa, alguns autores
afirmavam que o direito das gentes era também imutável e alguns, inclusive, o identificavam
com o próprio direito natural.
O que vimos até aqui é identificado por muitos autores como sendo a primeira tese do
jusnaturalismo: a tese de existe um conjunto de normas éticas superiores aos direitos dos países,
imutáveis, universais, objetivas e cognoscíveis135. Para além dessa asserção, a corrente
jusnaturalista afirma também uma segunda tese: a de que só são direito válido aqueles sistemas
jurídicos que estão de acordo com o direito natural. Assim, não poderia existir um direito injusto
ou antiético. Todos os sistemas de normas que o fossem nem sequer seriam direito, por mais
que fossem postos em prática. O pensamento de Santo Agostinho de que “uma lei injusta não é
lei alguma” é bastante representativo dessa tese. De forma análoga, outro pensador católico,
São Tomás de Aquino, também compartilha dessa concepção. Segundo ele, haveria a lei escrita,
terrena, imposta pelo monarca, o “direito positivo”, criado pelos homens, que deveria estar
sujeito ao direito natural, à lei divina. Se a lei do monarca estivesse em dissonância com o
direito natural divino, ela seria tirânica e corrupta e não precisaria ser obedecida.136
A perspectiva jusnaturalista parece seguir a lógica da consciência geral de que o Direito
deve servir à justiça. Segue a linha do jurista romano Celso, para quem o direito “constitui a
arte do bem e do justo”137 Por esse caminho, seria inconcebível que um sistema de normas
injusto fosse considerado direito, pois estaria indo contra sua própria natureza. Desse raciocínio,
é possível tirar uma conclusão óbvia. O conjunto das leis nazistas, por ter aberto espaço para a
prática de atrocidades, não poderia de modo algum ser considerado direito. Sendo assim, ele
não teria, pela ótica jusnaturalista, qualquer validade jurídica e nem se poderia falar que no caso
de Nuremberg haveria um conflito entre o direito interno de um país e o Direito Internacional,
134 NINO, Carlos Santiago. Introdução à Análise do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010. P. 31-34. 135 Ibid. P. 30-31. 136 DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo de Direito. 7 ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 22. 137 Ibid. P. 21.
40
visto que o sistema nazista nem constitui direito. Pela doutrina jusnaturalista, são perfeitamente
cabíveis a valoração moral e o recurso à ética no âmbito jurídico.
8.2.2 Positivismo jurídico
A corrente que se opõe ao jusnaturalismo é o positivismo jurídico, segundo o qual
haveria uma separação ou no mínimo uma separabilidade entre Direito e Moral. O Direito, para
o positivismo jurídico, não está atrelado a normas morais, podendo, inclusive, existir a
possibilidade de um sistema de leis ser direito e ao mesmo tempo ser injusto.
O positivismo jurídico segue a linha da filosofia positivista de Auguste Comte, de
caráter extremamente cientificista. Entretanto, bases do pensamento juspositivista já se
encontram muito anteriormente na história, na obra de autores como Hobbes. Como herança da
filosofia positivista em geral, o positivismo jurídico demonstra um grande apreço pela ciência
como forma de conhecimento objetivo e parece, assim, querer aproximar a abordagem e o
método do estudo do Direito ao das ciências da natureza, semelhante ao que Émile Durkheim
pretendia fazer com a Sociologia. Essa pretensão cientificista fica evidente na obra de um dos
mais importantes positivistas, Hans Kelsen, que, em seu livro Teoria Pura do Direito, planeja
formular o método de uma ciência do Direito pura, livre e independente das demais ciências.
Isso levou os positivistas a distinguirem o juízo de fato e o juízo de valor. Seu trabalho seria
entender o Direito como ele é, um fato que precisaria ser entendido sem criar opiniões a respeito
dele. Seria possível estudar e identificar a natureza do Direito sem criar qualquer tipo de
valoração sobre ele, ou seja, sem julgá-lo como bom ou ruim de alguma forma. Aproxima-se
da abordagem das ciências da natureza, que procurariam entender o funcionamento da realidade
sem fazer qualquer julgamento acerca dela. Por essa razão. O pensador Norberto Bobbio
entende que o modo de abordar o estudo do direito é um dos aspectos do positivismo jurídico.138
Essa abordagem levou os positivistas a discordarem do jusnaturalismo ao não tentarem
explicar o Direito por aquilo que ele deveria ser (bom e justo), mas por aquilo que ele é na
realidade (nem todos os positivistas, porém, discordam da existência de uma Moral universal).
Assim, ao invés de identificar o Direito pelo seu mérito em ser bom e ético, eles passaram a
adotar um critério de fonte para definir o que é direito ou não. Para os positivistas no contexto
de Nuremberg, a coação está na base do Direito. A teoria do comando de Austin, como vista no
tópico 1.1.2, é predominante. O direito de um lugar se constitui, basicamente, nas ordens
138 BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995. P. 131-146.
41
impostas por quem detém o poder soberano, seja um indivíduo, um grupo, um órgão. Detém o
poder soberano quem detém o monopólio da coação. A fonte do direito, que é justamente o que
permite identificá-lo como direito, são os comandos impostos pelo soberano, carregados de uma
sanção. Nesse sentido, para que um sistema de normas seja direito elas não precisariam ser
éticas e justas. Daí decorre que, para o positivismo jurídico, o sistema nazista constitui
efetivamente direito, com plena validade jurídica. Por conseguinte, o Tribunal de Nuremberg
representa um caso em que as normas internacionais estariam em confronto com as normas do
direito interno de um povo. Essa situação gera novo intenso debate que veremos mais adiante.
Outra decorrência desse raciocínio é a de que os valores morais perdem força na deliberação
jurídica, visto que eles não podem tirar nem assegurar a validade de nenhuma norma. É um
grande receio de muitos adeptos do positivismo jurídico de que o recurso a valorações éticas
possa servir para relativizar e flexibilizar o sentido da lei e levar, assim, a abusos de poder por
parte de operadores do direito. A maior consequência disso seria o enfraquecimento do sistema
jurídico e, portanto, da legalidade. Não seria vantajoso para o Direito se render às concepções
morais, pois, por elas variarem tanto entre a sociedade, seriam comprometidas a ordem e a força
do estado de direito.139
8.3 Controvérsias jurídicas em Nuremberg
Como visto, apesar de o Direito Internacional não ser um fenômeno recente, seu
desenvolvimento, mecanismos e instituições encontravam ainda diversos obstáculos para que
alcançassem verdadeira eficácia. Embora projetos semelhantes já tivessem sido defendidos,
nunca algo como o Tribunal de Nuremberg havia sido implementado. Assim, existiam diversas
questões jurídicas controvertidas, tanto teóricas como práticas, acerca da criação de um tribunal
internacional. O Tribunal de Nuremberg teve de ser bastante criativo para se afirmar e se
implementar naquele contexto do Direito Internacional em que, conforme analisamos, a própria
existência desse ramo do Direito era questionada.
Nesse âmbito, a proposta de Nuremberg e seu estatuto foram criticados por muitos
juristas, que alegavam que os julgamentos violavam princípios essenciais do Direito140. Já em
sua época, portanto, o tribunal gerou diversas polêmicas, as quais, por sua vez, se refletirem
durante o próprio julgamento nos posicionamentos das partes, visto que havia diversas
139 NINO, Carlos Santiago. Introdução à Análise do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010. P. 22-25. 140 CARIOLA, Waleska; VIANA, José Guilherme Ramos Fernandes. Uma Abordagem dos Institutos do Direito Criminal no Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3551e8036c7244b6. Acesso em: 20/5/2019.
42
controvérsias a serem debatidas. Alguns desses dilemas jurídicos muito se relacionam com os
desafios teóricos para a implementação do Direito Internacional e as discussões sobre Direito e
Moral, já vistos nos tópicos anteriores. Agora, veremos mais especificamente algumas das
principais polêmicas e os conceitos e princípios jurídicos relacionados a elas. É importante
ressaltar que não só essas discussões adentraram a argumentação no próprio Tribunal de
Nuremberg como também o sucederam, visto que as dúvidas não foram completamente sanadas
depois do julgamento e continuaram gerando discussão nos anos seguintes. As controvérsias
abordadas aqui serão as seguintes: a possibilidade da retroatividade da normal internacional
penal e o tribunal de exceção; a aplicação do Direito Internacional frente à soberania do direito
interno de um país; a responsabilização de indivíduos no Direito Internacional Penal; a
parcialidade do julgamento.
8.3.1 Tribunais de exceção e a retroatividade da norma internacional penal
Um dos princípios do Direito que o Tribunal de Nuremberg foi acusado de violar é o
princípio de nullun crimen nulla poena sine praevia lege 141 142. Tal expressão em latim se
traduz e se explica como “não há crime e, portanto, não há pena sem lei anterior que o previna”
e foi formulada pelo jurista Paul Johann Anselm von Feuerbach, em seu Tratado de Direito
Penal. Esse princípio se trata da aplicação no ramo penal de um princípio ainda mais geral do
Direito: o princípio da legalidade.
O princípio da legalidade funciona como uma garantia do indivíduo frente ao poder
estatal. Elaborado no contexto do Iluminismo e da limitação dos poderes estatais143, esse
princípio reflete a concepção de que os meios do Estado são extremamente graves, representam
uma intervenção drástica na vida dos indivíduos e, portanto, devem ser limitados e regulados o
máximo possível, de modo a serem usados apenas como último recurso144. Assim, o princípio
da legalidade pode ser desenvolvido como a máxima de que ninguém pode ser obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Apenas uma lei é capaz de impor
141 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 49-50, 67. 142 CARIOLA, Waleska; VIANA, José Guilherme Ramos Fernandes. Uma Abordagem dos Institutos do Direito Criminal no Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3551e8036c7244b6. Acesso em: 20/5/2019. 143 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, Volume 1. Disponível em: https://forumdeconcursos.com/wp-content/uploads/wpforo/attachments/2/1296-Curso-de-Direito-Penal-Vol-1-Parte-Geral-2017-Rogrio-Greco.pdf. Acesso em: 14/5/2019. 144 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral, Volume 1. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
43
juridicamente uma conduta a um indivíduo. Esse postulado serve como uma proteção das
pessoas contra a possibilidade de uma arbitrariedade dos titulares do poder. Sobre o princípio
da legalidade, o jurista brasileiro Paulo Bonavides explica:
O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras
permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos
de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista
alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder,
evitando-se assim a dúvida, a intranquilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais
onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal
soberana ou se reputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivência não
foram previamente elaboradas nem reconhecidas.145
A partir daí torna-se mais claro o princípio de “nullun crimen nulla poena”, afirmado
no Direito Penal de diversos países ao redor do mundo. Uma atividade pode apenas ser
considerada um crime se houver uma lei que o defina assim. Logo, não se pode acusar nenhum
indivíduo de um crime que não esteja descrito na legislação. Da mesma forma, não poderia ser
atribuída nenhuma pena a alguém por ter praticado uma conduta não elencada como crime pela
lei. É nessa medida que o princípio funciona como uma garantia individual contra a
arbitrariedade dos titulares do poder, visto que não poderia ser considerado justo punir alguém
por uma ação sem que a pessoa não tivesse tido a chance de saber que tal ação era proibida.
Feuerbach explica a lógica do preceito da seguinte maneira:
I) Toda imposição de pena pressupõe uma lei penal (nullum poena sine lege). Por isso,
só a cominação do mal pela lei é o que fundamenta o conceito e a possibilidade
jurídica de uma pena. II) A imposição de uma pena está condicionada à existência de
uma ação cominada (nulla pena sine crimine). Por fim, é mediante a lei que se vincula
a pena ao fato, como pressuposto juridicamente necessário. III) O fato legalmente
cominado (o pressuposto legal) está condicionado pela pena legal (nullum crimen sine
poena legali). Consequentemente, o mal, como consequência jurídica necessária, será
vinculado mediante lei a uma lesão jurídica determinada.146
Por ser uma herança do Iluminismo, esse princípio encontra-se instituído primeiramente
na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Desde esse marco, tornou-se um dogma
145 BONAVIDES apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, Volume 1. Disponível em: https://forumdeconcursos.com/wp-content/uploads/wpforo/attachments/2/1296-Curso-de-Direito-Penal-Vol-1-Parte-Geral-2017-Rogrio-Greco.pdf. Acesso em: 14/5/2019. 146 FEUERBACH apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, Volume 1. Disponível em: https://forumdeconcursos.com/wp-content/uploads/wpforo/attachments/2/1296-Curso-de-Direito-Penal-Vol-1-Parte-Geral-2017-Rogrio-Greco.pdf. Acesso em: 14/5/2019.
44
de justiça de aceitação geral por parte de juristas do mundo inteiro. Os artigos 7° e 8° do
documento definem muito bem os moldes do “nullun crimen nulla poena”:
Art. 7º. Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados
pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem,
executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer
cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso
contrário torna-se culpado de resistência.
Art. 8º. A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e
ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes
do delito e legalmente aplicada.147
Vale ressaltar que esse pressuposto acaba por vedar também o que seria chamado de
retroatividade da lei. Se se assume que deve haver uma lei para que a conduta de um indivíduo
seja devidamente proibida e possa ser punida, tem-se que essa lei deveria já existir antes de o
indivíduo em questão praticar essa conduta. Não se entende como justo que alguém seja punido
por agir de uma forma sendo que a lei que proíbe tal ação tenha entrado em vigor apenas depois
de ela ter sido praticado. Retroatividade da lei configura a situação oposta: haveria
retroatividade se uma norma incriminadora pudesse ser aplicada mesmo contra as ações
praticadas antes que ela entrasse em vigor. Assim, a retroatividade nesses casos de uma lei que
defina um novo crime também é impedida por esse princípio da legalidade. Por essa razão a
expressão latina se expressa por nullun crimen nulla poena sine lege praevia.
Com a ocasião da Carta de Londres e a instituição do Tribunal de Nuremberg, alegou-
se que ele estaria violando esse princípio do Direito, por ser o que se chama de tribunal ad hoc,
um tribunal de exceção. Ad hoc é uma expressão latina cujo significado pode se traduzir por
“para este fim”. Tanto a expressão tribunal ad hoc como tribunal de exceção destacam que o
tribunal em questão foi criado de forma excepcional, com uma vigência temporária e destinada
para um caso específico. De fato, não havia qualquer aparato burocrático jurídico internacional
efetivo anteriormente, não havia quaisquer cortes de jurisdição mundial, e o Tribunal de
Nuremberg foi criado não para durar permanentemente, mas para julgar especificamente os
crimes de guerra dos nazistas.
147 Para ter acesso a todo documento traduzido da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ver: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html.
45
Diante disso, acusou-se de que Nuremberg estaria estabelecendo crimes internacionais
justamente para julgar (e punir) indivíduos que os teriam praticados antes que fossem
criminalizados. Logo, estaria violando o princípio de “nullun crimen nulla poena”. Havia sido
o próprio Estatuto do Tribunal que definira os conceitos de crimes contra a paz, crimes de guerra
e crimes contra a humanidade. Para muitos, os réus estariam sendo acusados por ações que não
constituíam crime no momento em que as adotaram, pela ausência de lei anterior. O Estatuto
estaria, portanto, retroagindo no tempo, ao criar novos crimes para punir os nazistas, impondo-
lhes um castigo ex post facto148. Quando uma conduta é expressamente definida em lei como
crime, diz-se que o crime foi tipificado. Assim, os crimes de que os réus estavam sendo
acusados não teriam sido tipificados no Direito Internacional.
Evidentemente essa concepção não era unânime entre juristas e, também já antes da
realização de Nuremberg, muitos se ocuparam de combatê-la. Foi defendido que o Direito
Internacional já vinha se encaminhando a tempos para proibir atitudes com as promovidas pela
Alemanha Nazista, por meio de diversos tratados e convenções. Além disso, foi alegado que a
gravidade das atividades dos réus era tamanha que infringia uma consciência universal. De fato,
foi visto que, por exemplo, o Pacto de Briand-Kellog já se propunha a instituir juridicamente a
renúncia à guerra. Além desse pacto, vários outros documentos foram usados como exemplo
para evidenciar os crimes julgados em Nuremberg já vinham sendo rechaçados na comunidade
internacional muito antes, a saber o Protocolo de Genebra de 1924, a Resolução da Assembleia
da Liga das Nações de 24 de setembro de 1927, a Resolução da IV Conferência Pan-Americana
de 18 de fevereiro de 1928, a Convenção de Haia de 1907, a Convenção de Genebra de 1939,
entre outros.149 Tais documentos se encarregavam de miríade de propósitos, dentre eles, a
tipificação de algumas condutas como crimes de guerra. Vimos aqui anteriormente como, na
evolução do Direito Internacional Penal, os conceitos e a proibição de crimes contra a paz e
crimes de guerra já vinham construídos. É verdade, porém, que nenhuma dessas instituições
estabelecera uma pena para os praticantes desses crimes, nem um órgão com jurisdição para
julgá-los150.
148 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 67. 149 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 67-71. 150 Ibid. P. 67.
46
8.3.2 Direito Internacional x direito interno
A próxima controvérsia já foi brevemente prenunciada quando tratamos dos desafios
teóricos para a fixação do Direito Internacional (1.1.2.) e também nas discussões sobre Direito
e Moral (1.2.). Mesmo que os desafios doutrinários previamente explicados no tópico 1.1.2 não
nos levem a negar a existência de um Direito Internacional, eles levantam questionamentos
importantes acerca da validade das normas desse ramo do Direito e sua aplicação frente à
legislação interna de um país. Basicamente, o dilema principal se resume em: deve a norma
internacional se sobrepor ao direito interno de um país, e, por conseguinte, à sua soberania?
Essa problemática toma proporções ainda mais polêmicas em casos como o de
Nuremberg. Como proceder se os institutos do Direito Internacional se colocam para punir
ações que ocorreram dentro da legalidade de um país? Poderia o Direito Internacional tomar
esse tipo de atitude e passar por cima do direito interno de um país? Não representaria isso um
desrespeito à soberania nacional? É justo punir internacionalmente indivíduos por condutas que
nem sequer eram ilegais onde viviam? Afinal, o que deve prevalecer em um território: o direito
interno desse próprio território ou as normas do Direito Internacional?
Inicialmente, a polêmica pode parecer desnecessária e injustificada. Muitos poderiam
entender que deveria prevalecer o Direito Internacional, pelo simples motivo de sua proposta
ser justamente a de zelar por aqueles princípios e interesses mais valiosos e essenciais para a
comunidade internacional como um todo, aqueles que em tese se encontrariam na consciência
de todos os povos e no escopo de todos os sistemas jurídicos, que fossem vitais para garantir a
justiça ao redor do mundo e a construção de uma verdadeira sociedade internacional, os
princípios e os bens que, portanto, nenhum estado teria o direito de violar. De fato, o Direito
Internacional, desde o direito das gentes, como vimos, surgiu com esse intuito de versar sobre
os valores mais gerais para toda a raça humana e aos quais todas as nações deveriam se curvar.
Apesar dessa aparência inicial, o debate teórico é mais complicado, visto que a
soberania nacional ocupa posição extremamente cara aos países na comunidade internacional,
inclusive no advento de Nuremberg. Destarte, é comum também entre os juristas o pensamento
de que a soberania seria inviolável pelo Direito Internacional, o qual, por sua vez, só teria valor
dentro do sistema jurídico de um país uma vez que incorporado por ele. O Direito Internacional,
por essa lógica, seria, na verdade derivado do direito interno de cada um dos países. É
importante ressaltar que organizações internacionais como a Liga das Nações, apesar de
supranacionais, não se encontram superiores aos Estados na hierarquia das pessoas jurídicas de
47
Direito Internacional, justamente porque são os Estados que conferem às organizações sua
validade e composição. Tal concepção acerca da prevalência do direito interno é, portanto,
bastante plausível e compatível com a própria natureza dos órgãos internacionais.
É perceptível, assim, a intensidade do debate, que não se esgotou após Nuremberg, do
mesmo modo que persistiram as demais controvérsias. A primeira posição, referente à
preponderância do Direito Internacional, tem entre seus maiores defensores Hans Kelsen. Seu
fundamento lógico pode ser ainda mais dissecado da seguinte forma:
(...) sustenta a unicidade da ordem jurídica sob o primado do direito externo, a que se
ajustariam todas as ordens internas (posição que teve em Kelsen o seu maior
expoente). Segundo essa concepção, o Direito interno deriva do Direito Internacional,
que representa uma ordem jurídica hierarquicamente superior. No ápice da pirâmide
das normas encontra-se, pois, o Direito Internacional (...), do qual provém o Direito
interno, que lhe é subordinado. Ambos os ordenamentos, o interno e o internacional,
sob o comando deste último, marcham pari passu rumo ao progresso ascensional da
cultura e das relações humanas. Em outras palavras, o Direito Internacional passa a
ser hierarquicamente superior a todo o Direito interno do Estado, da mesma forma que
as normas constitucionais o são sobre as leis ordinárias, e assim por diante. (...)
Ademais, se as normas do Direito Internacional regem a conduta da sociedade
internacional, não podem elas ser revogadas unilateralmente por nenhum dos seus
atores, sejam eles Estados ou organizações internacionais.151
Já a corrente defensora da primazia do direito interno raciocina que:
(...) o Direito Internacional não seria mais que uma consequência do Direito interno.
Trata-se da doutrina constitucionalista nacionalista, cujas bases filosóficas encontram
guarida no sistema de Hegel (1770-183 1), que via no Estado um ente cuja soberania
(correspondente ao imperium do direito romano) seria irrestrita e absoluta (a Lei
suprema sobre a Terra). (...) aceitam a integração do direito das gentes ao Direito
interno, mas sob o ponto de vista do primado da ordem jurídica estatal, valendo tal
integração somente na medida em que o Estado reconhece como vinculante em
relação a si a obrigação contraída. (...) É dizer, o Direito Internacional só tem valor
internamente sob o ponto de vista do ordenamento interno do Estado, pois é a ordem
jurídica estatal (a Constituição do Estado) que prevê quais são os órgãos competentes
para a celebração de tratados e como esses órgãos podem obrigar, internacionalmente,
em seu nome, a Nação soberana. (...) Trata-se, como se vê, da doutrina da delegação,
que apregoa a obrigatoriedade do Direito Internacional como decorrência das regras
151 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. P. 103.
48
do Direito interno. Sob esse ponto de vista, o Direito Internacional só é internamente
obrigatório porque o Direito interno - no exercício de sua competência soberana- o
reconhece como vinculante em relação a si. Segundo esse entendimento, o arbítrio do
Estado só encontra limitação no arbítrio de outro Estado, jamais nas regras do Direito
Internacional Público. Ou seja, da mesma forma que os indivíduos devem respeitar
uns aos outros no exercício de sua atividade autônoma, também os Estados devem
respeitar-se mutuamente no exercício de sua soberania. Se cada Estado, sem invadir
a esfera de competência do outro, por meio das suas regras constitucionais de
competência, determina e condiciona a existência das normas do Direito
Internacional, é porque o fundamento de validade do direito das gentes não encontra
guarida em sua própria existência, no seu próprio arbítrio, mas na vontade declarada
do Direito interno.152
Por esse caminho, seria o próprio Estado o responsável pela determinação de suas
obrigações internacionais, na ausência de uma autoridade supraestatal verdadeiramente capaz
de obrigá-lo.153
Com a ciência desse debate, aí se encontra mais uma complicação para Nuremberg. Se
a posição das normas internacionais em relação ao direito nacional acarreta tantas divergências
(que se estendem para além dos argumentos e das posições aqui apresentadas), a discussão está
fadada a se intensificar quando o Direito Internacional vem parar punir atitudes que, em tese,
estariam na legalidade de seu país.
8.3.3 A responsabilização do indivíduo no Direito Internacional
Uma das maiores polêmicas teóricas a ser resolvida no Tribunal de Nuremberg se refere
à possibilidade de se responsabilizar indivíduos em cortes e julgamentos internacionais, por
delitos cometidos na esfera global. Trata-se de uma discussão pois muito se questiona a
personalidade do indivíduo no Direito Internacional. Isto significa dizer se questiona a
qualidade dos indivíduos como sujeitos do Direito Internacional. Personalidade é um conceito
jurídico que, nesse contexto, pode ser entendido como a qualidade daquele cuja conduta é
prevista e regulamentada pelo direito, o que implica a concessão de direitos e a atribuição de
deveres e obrigações, carretando, por conseguinte, na possibilidade de responsabilização no
caso de descumprimento desses deveres. Da mesma forma que se fala em pessoas físicas e
152 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. P. 101. 153 Ibid. P. 102.
49
pessoas jurídicas no direito interno de um país, há as pessoas do Direito Internacional. Elas
seriam os sujeitos capazes de agir, de atuar internacionalmente, ainda que de forma limitada.154
Atribuir ou não personalidade ao indivíduo no plano internacional implica, portanto,
decidir sobre a possibilidade de lhe impor obrigações e responsabilizá-lo internacionalmente
em caso de descumprimento. Não só isso, mas essa decisão influencia na forma como os
indivíduos e seus direitos serão protegidos na esfera internacional. Acontece que, no contexto
de Nuremberg, a opinião doutrinária predominante tendia a não considerar o indivíduo como
sujeito do Direito Internacional, por entender que seriam sujeitos desse ramo exclusiva ou
primariamente os Estados. É certo que autores muito antigos, justamente pela noção de jus
gentium e pelas concepções de direito das gentes influenciadas pelo direito natural, poderiam
entender o indivíduo como um sujeito internacional. Mas também é certo que muito se entendia
o direito das gentes como o direito entre os Estados e que, ao longo das fases do direito de
Vestfália, de Viena e de Versalhes, o Direito Internacional se ocupava exclusivamente aos
Estados e resistia-se a conceber qualquer outra espécie de sujeito internacional.155 156 Havia,
dessa forma, uma ”aristocracia” dos Estados” e o indivíduo só poderia alcançar o mundo
jurídico internacional através do Estado.157 Essa situação começou a mudar nos séculos XX e
XXI, com o surgimento das organizações internacionais. Contudo, custou-se a reconhecer a
personalidade até mesmo da Liga das Nações, no momento de sua criação158. Desse modo, a
personalidade do indivíduo prosseguia sendo questionada.
Com a proposta de Nuremberg de julgar indivíduos por crimes internacionais, emergiu
evidentemente intenso debate, que chegou a penetrar o próprio julgamento. Muitos se puseram
a criticar a responsabilização das lideranças do Estado alemão. Desenvolve-se a teoria dos atos
e governo, segundo a qual, o Estado deveria ser responsabilizado ao invés dos homens por trás
dele. Além da concepção de que só Estados seriam sujeitos de Direito Internacional, os autores
dessas críticas alegavam que as ações julgadas pelo Tribunal constituíam atos públicos, atos
cometidos no exercício do governo, em nome do Estado. Logo. os indivíduos que se pretendia
154 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. P. 449-450. 155 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 253-254. 156 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. P. 450. 157 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. P. 807-809. 158 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 253.
50
incriminar haviam praticado os crimes na posição de órgãos estatais, na busca pela satisfação
dos interesses populares. Tendo sido cometidos em nome do Estado e em prol da vontade
nacional, deveria ser o próprio Estado o incriminado, deveriam recair sobre ele as
responsabilidades pelos crimes, não podendo o representante ser posto em seu lugar. Os
indivíduos só poderiam ser responsáveis pelos tais crimes dentro de seu próprio país e apenas
nele e pelos tribunais nacionais poderiam ser julgados.159
Articularam-se com igual intensidade os defensores da responsabilização individual. É
certo que havia práticas consideradas como crimes de guerra cuja responsabilidade parecia só
poder ser atribuída a indivíduos, como a pirataria, apontando para uma possível imposição de
deveres aos particulares por parte do Direito Internacional. Da mesma forma, muitos entendiam
ser um exagero e um desvio da realidade ignorar e ocultar as pessoas efetivamente responsáveis
pela tomada de decisões, pela formulação das diretrizes da política estatal e pelo cometimento
dos crimes, atribuindo a prática dessas ações a entidades abstratas. Entendiam também que o
Direito Internacional impunha igualmente deveres às pessoas físicas, que não estariam livres
para se apoiar m órgãos públicos para cometer crimes internacionais. Essa imposição de deveres
deveria ir além das obrigações do direito interno e, sob essa ótica, os indivíduos poderiam, sim,
ser punidos por delitos internacionais.160
8.3.4 O juiz natural e a imparcialidade do Tribunal
Outra polêmica envolvendo Nuremberg se refere à acusação de que o Tribunal estaria
violando o princípio do juiz natural e imparcial e da neutralidade do julgamento161. Trata-se de
um dos princípios mais basilares do direito processual como um todo ao redor do mundo.
Entende-se como um requisito para que seja aplicada a justiça que o julgamento seja conduzido
de forma neutra, com a garantia de ampla defesa para o réu e que a decisão seja proferida por
juízes imparciais ao caso. Além de imparcial, deve o juiz também ser natural. Juiz natural se
refere ao juiz detentor de jurisdição, competente para o julgar caso segundo regras
necessariamente pré-estabelecidas. O princípio do juiz natural pretende, assim, evitar que
alguém seja prejudicado pela escolha de um juiz posterior ao delito, um juiz que não tenha sido
estabelecido por regras já existentes antes da conduta do réu. Ele não pode ser estabelecido
159 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 54-56. 160 Ibid. P. 56-58. 161 CARIOLA, Waleska; VIANA, José Guilherme Ramos Fernandes. Uma Abordagem dos Institutos do Direito Criminal no Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3551e8036c7244b6. Acesso em: 20/5/2019.
51
depois do fato, depois do crime, mas deve já constar em uma lei anterior qual é o juiz
competente para determinado litígio. Não é o que ocorre em tribunais de exceção, como
Nuremberg.162
Além da naturalidade dos juízes, questionou-se também sua imparcialidade. Por se
tratarem de juízes nativos das quatro potências vitoriosas na guerra, muitos tentaram alegar que
o tribunal se tratava de uma justiça dos vencedores imposta aos vencidos e que careceria da
imparcialidade necessária a um processo devido. Seria mais uma manifestação do vae victis163
observados nos antigos julgamentos e condenações dos derrotados nas guerras. Nas palavras de
Carlos Franco Sodi:
Um tribunal de índole semelhante pode ser útil para os fins políticos e militares do
Estado vitorioso; mas dificilmente se firma na consciência universal como um tribunal
com a independência e a neutralidade necessárias para proceder com serenidade e
sentenciar com justiça.164
É certo, todavia, que o Estatuto do Tribunal procurou garantir uma defesa efetiva, com
advogados escolhidos pelos próprios réus, bem como havia também uma intensa preocupação
com a apresentação de provas. No entanto, aqueles que viam o julgamento como parcial
indagavam sobre em que medida haveria uma defesa verdadeira.
9 Introdução aos conceitos jurídicos
9.1 Petição
A petição se trata de um documento oficial, um pedido por escrito, que reivindica o
cumprimento de direitos junto à Justiça. É através desse documento que a parte autora dá início
ao processo, em busca da tutela jurisdicional165 do seu direito.
A petição é usada em situações que envolvem atos ilegais ou abusos de poder, por
exemplo. Por meio desse documento, a pessoa que se sentir lesada explica os motivos pelos
162 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 19ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2017. P. 205-206. 163 Expressão latina com o significado de ”ai dos vencidos” usada para designar a situação de mercê em que os perdedores da guerra se encontram em relação aos vencedores. 164 SODI apud FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Precedentes, características e legado com exemplos de provas da acusação e ilustrações. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2019. P. 41. 165 Tutela jurisdicional é a proteção dada, através dos mecanismos estatais e jurídicos, conferido pelo juiz à parte que tiver razão no processo
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quais acredita que seus direitos foram violados e solicita que a ação seja analisada pelo juiz
responsável.
A alegação necessita ser fundamentada juridicamente e contar com a indicação dos
fatos que motivaram o pedido, além de conter provas da infração cometida.
9.2 Provas
A prova para o processo legal é todo e qualquer elemento material dirigido ao juiz da
causa para esclarecer o que foi alegado por escrito pelas partes, especialmente circunstâncias
fáticas.
A doutrina confirma que são previstas determinadas etapas, em ordem cronológica, para
a realização da prova, geralmente podendo ser catalogadas em quatro: a) requerimento da prova,
pela parte; b) admissão da prova, pelo juiz; c) produção da prova, pela parte ou por perito; d)
valoração da prova, pelo juiz.
Quatro são os tradicionais sistemas de valoração da prova anotados nos mais diversos
livros de doutrina brasileira sobre a matéria, entretanto, somente dois vão nos interessar para o
processo da Corte:
a) Sistema do livre convencimento imotivado
Convicção íntima do magistrado, caráter racional, mas despido de motivação, julgava-
se com base em provas presentes nos autos e na experiência do julgador, sem que se pudesse
duvidar do juízo emitido pelo magistrado – resquício atualmente presente no campo penal
pátrio, como Tribunal do Júri. Isto é, o convencimento do juiz ocorre de maneira livre, baseada
na razão e levando em conta diversas variáveis, mas não precisa ser exposto ou motivado às
partes nem ao público.
b) Sistema da persuasão racional
Livre convencimento motivado do juiz; não é aceita hierarquia absoluta de provas,
podendo o julgador se valer de qualquer uma, desde que haja motivação a respeito. Isto
significa, portanto, que o juiz deverá se basear nas provas apresentadas e produzidas ao longo
do processo para formar seu convencimento, que deverá ser racional e motivado (não está
submetido a seu livre-arbítrio).
Esse tópico merece devida atenção dos magistrados, pois, como vamos aprender mais à
frente, não se pode valorar as provas de qualquer modo quando na consideração dos fatos para
53
análise de sentença. Os juízes estão comprometidos com uma decisão imparcial que analise e
valore todo e qualquer material apresentado de forma imparcial.
Entretanto, faz-se também necessária a avaliação dessa questão das provas pelas partes,
uma vez que, diante do sistema de valoração destas pelos magistrados, sabe-se que deve buscar
provas que sejam de acordo com o processo legal da Corte.
9.3 Contestação
A contestação é a peça que comporta toda a defesa do réu. É neste instrumento que o
réu deve rebater todos os argumentos do autor, demonstrando, claramente, a impossibilidade
de sucesso da demanda.
Na contestação, o réu poderá se manifestar sobre aspectos formais e materiais.
Os argumentos de origem formal se relacionam à ausência de alguma formalidade
processual exigida, e que não fora cumprida pelo autor em sua peça inicial (exemplo, o autor
ajuizou a petição em juiz que não poderia – por estar fora de sua competência – julgar aquele
caso). Esses argumentos, dependendo da gravidade, podem ocasionar fim do processo antes
mesmo do magistrado apreciar o conteúdo do direito pretendido.
Já os aspectos materiais se relacionam ao conteúdo do direito que o autor reivindica; é
mérito da causa. É a chamada defesa de mérito, na qual o réu ataca o fato gerador do direito do
autor, ou as consequências jurídicas que o autor pretende.
É nesse documento que o réu pode apresentar sua defesa, mesmo que contraditória,
demonstrando todos os possíveis argumentos às pretensões levantadas pelo autor. A ideia é que
esse é o único momento que o réu poderá se defender, e, para tanto, poderá usar de diferentes
argumentos para tentar demonstrar sua razão. Uma vez protocolada a contestação, apenas em
casos muito específicos a parte poderá modificá-la para acrescentar novo argumento. Uma vez
realizada, a regra é de que quase sempre serão aqueles os argumentos a serem levados em
consideração ao longo do processo.
No Direito Internacional, é mais comum ouvirmos falar de Memorial da Acusação e
Contra Memorial da Defesa, que nada mais são do que extensos documentos jurídicos em que
cada parte apresenta os seus argumentos.
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9.4 Peritos
O termo perito significa a pessoa que, por possuir determinados conhecimentos ou
experiência científica, artística, técnica ou prática, informa ao julgador sobre pontos do litígio
na medida em que se relacionam com seu notório conhecimento ou experiência.
Quando existem questões técnicas controvertidas no caso, o juiz costuma deferir (ou
seja, permitir, fazer com que se façam) perícias de diversas naturezas, para que o perito
responda às questões das partes e esclareça questões do ponto de vista técnico.
Quando a prova pericial é produzida, as partes indicam assistentes técnicos para
acompanharem o processo de perícia e podem produzir laudos críticos ao laudo pericial enviado
pelo perito. A ideia é que as partes possam supervisionar – ambos os lados – o trabalho do
perito, para que não haja excessos ou parcialidades.
9.5 Testemunhas
Define-se testemunha como o “indivíduo chamado a depor, demonstrando sua
experiência pessoal sobre a existência, a natureza e as características de um fato, pois face estar
em frente ao objeto, guarda na mente, sua imagem”166.
Existem diferentes espécies de testemunhas para serem apreciadas:
a) Diretas e indiretas
Testemunhas que assistiram ao episódio do caso, são testemunhas diretas; indiretas são
aquelas testemunhas “por ouvir dizer”, que ouviram dizer sobre os fatos.
b) Próprias e impróprias
Própria é a que presta depoimento sobre os fatos objetivos do processo, e impróprias
prestam depoimentos sobre fatos alheios ao fato principal, mas que possuem certo tipo de
relação com ele.
b) De ofício
Trata-se de testemunha que o Juiz julga ser necessária sua oitiva e que não foi arrolada,
isto é, solicitada, pelas partes.
As testemunhas já definidas para o tribunal estão nos links a seguir:
https://avalon.law.yale.edu/subject_menus/witness.asp
166 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. São Paulo: Atlas, Gen, 22ª edição, 2014, p. 467.
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Os senhores terão a oportunidade de fazer perguntas às testemunhas e pedimos que
tomem o devido cuidado de analisar todo o currículo e falas de cada uma, já que os testemunhos
diante dos juízes e das partes serão de fundamental importância para o convencimento dos
magistrados. Esse talvez seja um dos momentos mais tensos que terão que enfrentar no tribunal,
afinal, tudo pode mudar a partir do que as testemunhas respondam.
A dica que gostaria de dar é a seguinte: encaminhem suas perguntas para que a resposta
que possa vir beneficie sua tese de alguma forma.
9.6 Sentenças
Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo a uma das fases do processo, decidindo ou
não o mérito da causa.
É através deste documento que os juízes apresentarão a resolução do caso em questão.
O tribunal contará somente com sentenças, sem decisões interlocutórias.167 A sentença é o
pronunciamento que resolve o processo.
10 Teoria da argumentação jurídica
A argumentação jurídica tem sua base fundamentada na teoria dos argumentos, a qual
trata dos tipos de argumentos e para que se propõem. Apesar de ser muito interessante, a base
da fundamentação dessa teoria é extensa e, por enquanto, tentaremos diminuir os processos
complexos para o entendimento da parte jurídica.
Primeiro vamos distinguir os dois tipos de argumento:
• Argumentos teóricos são aqueles que possuem conclusões descritivas, ou seja,
sobre como as coisas são, foram ou serão.
• Argumentos práticos são aqueles que têm conclusões normativas, isto é,
conclusões sobre como as coisas devem ser, deveriam ter sido ou deverão ser.
Os argumentos práticos jurídicos são, em maioria, institucionais, ou seja, baseiam-se em
regras, leis, normas e procedimentos previamente estabelecidos. Os argumentos institucionais
se afastam dos argumentos puros que teríamos se estivéssemos conversando
despretensiosamente com nossos amigos, são aqueles argumentos que dependem de um certo
regramento institucional. Dessa forma, é necessário pesquisar com profundidade sobre as fontes
167 Decisões interlocutórias são aquelas proferidas pelo juiz ou relator do caso para decidir questões durante o processo, sem extingui-lo.
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que usamos em nossa argumentação, uma vez que qualquer argumento institucional tem grande
validade para a apreciação dos fatos da causa.
Sobre fontes, precisamos investigar quais são mais fortes para a argumentação, isto é,
basear nossas conclusões no maior número de argumentos com fontes convergentes.
Resumindo a teoria de fontes temos o seguinte:
• Fontes materiais do Direito são todo fator que exerce influência sobre a forma
como o direito surge e se desenvolve.
• Fontes formais são todo tipo de documento até práticas sociais as quais os
profissionais do direito oficialmente recorrem para resolver questões jurídicas.
As fontes formais são as mais relevantes, pois são as que sustentam argumentos
institucionais, os quais são os mais fortes em mérito de decisão judicial. Entretanto, o acúmulo
de fontes é imprescindível, como observamos antes, pois quanto mais fontes que sustentem
argumentos convergentes, tornando-os mais complexos, corroborando ou complementando-se
entre si, mais razão terá esta tese.
11 Teorias dos métodos de interpretação jurídica
Após identificarmos as fontes, precisamos elaborar interpretações do texto que se
apresenta para nós. Por isso, partamos de uma distinção importantíssima para o Direito: texto
normativo é o que encontramos escrito nos documentos de natureza jurídica, palavra por
palavra. Todavia, a norma é o que abstraímos do texto, ou seja, a interpretação que damos ao
texto escrito.
Para então prosseguirmos com a saga de dar sentido ao texto que identificamos, preciso
explicar que no Direito há diversos métodos de interpretação jurídica, entretanto, dividimo-nos
em duas categorias: formalistas e não formalistas.
Formalistas são aqueles métodos que se limitam pelo sentido literal do texto. De fato, o
método é muito pouco flexível, exigindo apenas a compreensão do sentido literal das palavras
do texto para ser aplicado, pois considera o texto claro e preciso, não suscitando a possibilidade
de incorporação de questões substantivas para compreender a dimensão daquele texto.
Por outro lado, os não formalistas, mais conhecidos como métodos teleológico-
objetivos, acreditam na interpretação do texto à luz dos fins e propósitos implícitos nele. É um
método menos institucional, mas é constantemente utilizado pelos intérpretes.
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Um método intermediário é o teleológico-subjetivo, o qual se utiliza dos fatos reais que
levaram a produção daquele texto, não cabendo ao intérprete formular os fins que ache mais
razoável, mas busca os fins previamente existentes, identificáveis, independentemente de
deliberação moral, política ou econômica.
Em resumo, os métodos podem interagir entre si e entrar em conflito (ou corroborarem,
acumularem ou se complementarem), e então nesse caso os magistrados entendem que os
métodos mais formais prevalecem.
12 O Funcionamento do Tribunal de Nuremberg
O Protocolo assinado na cidade de Londres em 1945 determinou regras e
responsabilidades para todos os presentes, principalmente os juízes. Estes receberam a
incumbência de, reunidos a outros juristas, determinar o procedimento de todo o Tribunal.
Neste documento, os juízes determinaram que haveria dois tipos de sessão as sessões
abertas nas quais as partes auxiliadas pelos seus respectivos advogados discutiriam e
apresentariam seus casos aos juízes, e sessões fechadas nas quais todas as partes reuniriam
evidências, estruturariam discursos, planejariam estratégias e revisariam todas as evidências
apresentadas, e em que os juízes deliberariam em privado sobre a sessão aberta.
12.1 Sessões Abertas
No primeiro tipo de sessão, aberta, é dever da promotoria apresentar aos juízes as
provas, testemunhos e evidências recolhidas junto a discursos que mostrem aos juízes a
necessidade de julgar culpados os réus. Contudo, torna-se dever da defensoria alemã apresentar
contra evidências, testemunhas e provas junto a teses que mostrem aos juízes a inocência dos
representados. Por fim, os juízes ouvirão atentamente as partes, tomando notas e interferindo
para manter a ordem no tribunal, quando necessário, bem como direcionando questionamentos
quando necessário.
Sendo assim, nas sessões abertas, tanto a promotoria quanto a defensoria podem e tem
o dever de submeter moções, objeções, documentos, provas e testemunhos que possam auxiliar
nos casos. Para possível reconhecimento desses documentos ou moções supracitados, as partes
enviarão suas descobertas à mesa, que por sua vez poderá aceitá-las ou indeferi-las. Caso
aceitas, serão levadas aos juízes para que estes possam, efetivamente, lê-las e aceitá-las quando
mencionadas no pleito.
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O procedimento para a apresentação de provas ou testemunhas, pela defesa, por sua vez,
é mais complexo, sendo necessário que seja escrita uma carta endereçada ao secretariado do
Tribunal de Nuremberg. Nesta carta, os defensores devem escrever o nome completo da
testemunha, a última localização conhecida da mesma e, mais importante, uma pequena
argumentação na qual exponham-se os motivos pelos quais a testemunha ou o documento são
importantes para o caso da defesa. Se aprovados os procedimentos da defesa, e a testemunha
ou documento estiverem dentro da área ocupada pelos aliados, as descobertas serão enviadas à
promotoria e, caso não haja observações contra a proposta, a testemunha será conduzida para o
Tribunal, efetuando um juramento similar ao de seu país de origem, visando garantir o
testemunho verdadeiro.
12.2 Sessões Fechadas
Nas sessões fechadas, juízes, promotoria e defensoria serão divididos em salas para que
possam discutir questões mais particulares e relevantes, principalmente, para suas determinadas
partes. Dessa forma, os advogados presentes deverão discutir estratégias, relevância de provas
e testemunhas e, por fim, como proceder em todas as situações que se apresentarem. As sessões
fechadas, por este motivo, são invioláveis e completamente secretas, pois acredita-se no
princípio de um julgamento justo e honesto no qual ambas as partes possam definir em pé de
igualdade suas estratégias e aplicá-las nos julgamentos. A promotoria revisará suas provas e
testemunhas, separando-as baseada em qual réu será julgado naquele momento. A defesa deverá
pensar em como argumentar no tribunal, em como proteger seus clientes, em estratégias para
lutar contra as acusações e se existe a necessidade para convocar testemunhas e entregar
documentos como provas.
Os juízes, por sua vez, serão responsáveis por averiguar muito bem cada prova
apresentada, por proteger os interesses jurídicos do tribunal e por discutir todos os argumentos
e provas visando construir uma sentença justa e imparcial para os réus.
12.3 O pleito de discussões
Durante o julgamento, nas sessões abertas, os diversos advogados da defensoria e os
múltiplos promotores se inscreverão e serão reconhecidos para realizar longos discursos, nos
quais terão o dever de elencar as acusações, apresentar as provas e determinantemente buscar,
dentro dos limites legais, a punição eficaz dos réus. Já a defesa terá o árduo dever de contra
argumentar a promotoria, apresentar provas que contrariem a acusação e por fim buscar
maneiras legitimas de desmontar a estratégia da promotoria. Será dever da mesa em conjunto
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com os juízes a manutenção da ordem no comitê, seguindo as regras padrão de respeito ao
discurso proferidos, conformidade para com a ordem, impedimento das radicalizações, prevenir
ataques pessoais e garantir a ordem no tribunal. Logo, a tolerância ao desrespeito a essa regras
é extremamente baixa, violações recorrentes podem incorrer na suspensão do advogado por
determinado tempo ou por todo o julgamento. Logo, lembramos, de forma acintosa, a
necessidade por impedir essas violações para garantir a todos um julgamento completo,
imparcial e justo para com os réus e vítimas.
12.4 Recursos
Alguns sítios úteis para a vossa pesquisa, como já divulgado em outros locais, mas que
cumpre ser aqui reproduzida novamente, encontram-se expostos abaixo. Recomendamos a
todos a leitura, e pedimos àqueles que têm dificuldade com a língua inglesa que entrem em
contato conosco para que possamos ajudá-lo em seu preparo.
• Avalon Project
o https://avalon.law.yale.edu/imt/imtrules.asp
o https://avalon.law.yale.edu/imt/rules4.asp
• Nuremberg Project
o http://nuremberg.law.harvard.edu/
o http://nuremberg.law.harvard.edu/transcripts/1-transcript-for-nmt-1-medical-
case?seq=2&q=+type:transcripts
• Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de São Paulo
o http://www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/grandes-causas/o-tribunal-de-nuremberg
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https://play.google.com/books/reader?id=Lm__im02ewsC&hl=pt_BR&pg=GBS.PA4. Acesso
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BIAZI, Chiara Antonia Sofia Mafrica. A Importância de Hugo Grócio para o Direito.
Disponível em: file:///C:/Users/Filipe/Downloads/66015-291880-3-PB.pdf. Acesso em:
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60
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Institutos do Direito Criminal no Tribunal Militar Internacional de Nuremberg.
Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3551e8036c7244b6. Acesso
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DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo de Direito. 7 ª ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2016.
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GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, Volume 1. Disponível em:
https://forumdeconcursos.com/wp-content/uploads/wpforo/attachments/2/1296-Curso-de-
Direito-Penal-Vol-1-Parte-Geral-2017-Rogrio-Greco.pdf. Acesso em: 14/5/2019.
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