x machado arlindo a fotografia sob impacto da eletronica

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A fotografia sob 0 impacto da eletronica Ar li ndo Machado" Resumo o a pa rcc im en to d a I ot og ra fi a c le tr on ic a. b er n c om o d e i ru ir ne ro s recursos inforrnatizado de conservacao e arrnazenarnento de fotos, ou ainda dos varies aplicativos de processarnento digital da Iotografia. c rnesmo clos recursos de rnodelacao direta da imagem no cornputador, sern 0 aux fl io da carnara, tudo isso tem causado urn si gnif icative impact o sobre 0 conceito tradi .ional de fotografia e vern d ese nc ad ea nd o u rn n ur ne ro i nc al cu la ve l d e c on se qu en ci as q ue dcvern sc r d isc ut id as e e nf re nt ad as I '10<' an al ist as da f ot og ra fi a. Abstract The recent arriva l of elec tr onic p ho to gr ap hy a nd t he i nn ume ra bl e p os si bi li ti es o f p ho to gr ap hi c d ig ita l processing, as well as the development of methods of image modeling by computer, have p ro vo ke d a m yr iad o f c on seq uen ce s which must be faced up to a d d isc us se d b y p ho to gr ap hi c an al yst s. Resume L'apparition recente de la p ho to gr ap hi e el ec tr on iq ue, au ta nt que les innombrables possibilites de processer digitalemen t la p ho to gr ap hi e, sa ns d ev oi .r p ar ler encore des moyens de model age direct de l'irnage par ordinateur, tout cela a provoque un numero non moins considerable de consequences que devront affronter et discuter les analystes de la photographie. * Professor do Programa de Pos-Craduacao em Cornunicacao e Scmiotica da Ponti- licia Universidadc Catolica de Sao Paulo (PUC-SP), tC'I11-sededicado ao estudo das I ovas tecnologias audiovisuals. Entre varies artigos e li vros , publicou A IIl1sao Especular (Sao Paulo: Brasiliense, 1984), A /srle do Vfdeo (Sao Paulo: Br as il iens c, 1989), Mriqllilw e Imagil'lririo (Sao Paulo: Edusp, 1994), e Pre-Cinemas e Poe-Cinemas (Carnpinas: Pa pi ru s, 1 99 7) . E m ai s r cc cn te me nte : A 7 'e le vis iio Leiuuia a 5(;-';0 ( Sa o P au lo : E di to ra Senile Sao Paulo, 2000), 0 Quarl.o tconoclnsino ( Ri o d e j an ei ro : C on tr ac ap a, 200 I), El Pa! aje Medialico (Buenos Aires: Rojas. 20(0), e Made ill B ra z il : Tres Dicadas do VIdeo Hmsiir'iro (Sao Paulo: ILau ultural. 200 ).

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A fotografia sob 0 impacto da eletronica

Arlindo Machado"

Resumo

o aparccimento da Iotografia

cletronica. bern como de iruirneros

recursos inforrnatizado deconservacao e arrnazenarnento de

fotos, ou ainda dos varies aplicativos

de processarnento digital da

Iotografia. c rnesmo clos recursos de

rnodelacao direta da imagem no

cornputador, sern 0 auxflio da

carnara, tudo isso tem causado urn

significative impacto sobre 0conceito

tradi .ional de fotografia e vern

desencadeando urn nurnero

incalculavel de consequencias que

dcvern scr discutidas e enfrentadas

I '10<' analistas da fotografia.

Abstract

The recent arrival of electronic

photography and the innumerable

possibilities of photographic digitalprocessing, as well as the

development of methods of image

modeling by computer, have

provoked a myriad of consequences

which must be faced up to and

discussed by photographic analysts.

Resume

L'apparition recente de la

photographie electronique, autant

que les innombrables possibilites deprocesser digitalement la

photographie, sans devoi.r parler

encore des moyens de model age

direct de l'irnage par ordinateur, tout

cela a provoque un numero non

moins considerable de consequences

que devront affronter et discuter les

analystes de la photographie.

* Professor do Programa de Pos-Craduacao em Cornunicacao e Scmiotica da Ponti-

licia Universidadc Catolica de Sao Paulo (PUC-SP), tC'I11-sededicado ao estudo das

Iovas tecnologias audiovisuals. Entre varies artigos e livros, publicou A I Il1 sa o Especu lar

(Sao Paulo: Brasiliense, 1984), A / s r l e d o V fde o (Sao Paulo: Brasiliensc, 1989), Mriqlli lw

e Imagil'lririo (Sao Paulo: Edusp, 1994), e Pre-Cinemas e P o e- C in e m as (Carnpinas:

Papirus, 1997). E mais rcccntemente: A 7 'e le vis iio L eiu uia a 5 (; -';0 (Sao Paulo: EditoraSenile Sao Paulo, 2000), 0 Quar l .o t conoc ln s ino (Rio de janeiro: Contracapa, 2 00 I) , El

Pa ! a je Med ia l ic o (Buenos Aires: Rojas. 20(0), e Made ill B ra z il : T re s Di cada s do V Ideo

Hmsiir'iro (Sao Paulo: ILau ultural. 200 ).

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oadvento recente da fotografia eletronica (a fotografia que e registrada

diretamente em suporte magnetico ou 6ptico e mais comumente

conhecida como s til l vid e o), bern como dos inumeros recursos

informatizados de conservacao e armazenarnento de fotos (como 0Photo-

CD da Kodak), ou ainda dos dispositivos de processamento digital da

fotografia (como as maquinas da empresa Scitex Corporation ou

programas de computador tais como Photoshop ou PhotoS tyler), ou

mesmo dos recurs os de rnodelacao direta da imagem no computador, .

sem auxilio de camara, tudo isso tem causado grande imp acto sobre 0

conceito tradicional de fotografia e promete daqui para a frente introduzir

mudancas substanciais tanto na pratica quanta no consumo de imagens

fotograficas em todas as esferas de utilizacao.

A hegemonia dessas novas imagens e facil de ser verificada. Basta observar

o crescimento vertiginoso das telas eletronicas ao nosso redor. Em casa,

no trabalho, nas escolas, nas empresas, nos bares, nos estadios, nos

aeroportos, nos metros, nas ruas, nos hospitais, aonde quer que se va, ha

serrtpre urn (ou varios) monitor(es) ligado(s), espalhando para todos os .

quadrantes uma imagem granulosa, mosaicada, estilizada, translucida e

flamejante, que apenas remotamente pode ser associada a imagem muito

mais definida, mais consistente e mais homogenea da fotografia. E mesmo

nos meios impressos, como jornais e revistas de massa, ja nos estamos

acostumando a conviver com certo tipo de imagem que, apesar de rnuitas

vezes lembrar estreitamente a familiar imagem fotografica, pode ja nao

ter sido captada por uma camara ou, se 0 foi, pode estar de tal forma

alterada que nao guarda mats que palidos traces de seu registro original

em pelicula.

A fotografia eletronica, ou 0 tratamento eletronico da fotografia, ou a

simulacao da fotografia por meio de recursos digitais, tudo isso ja e hoje

fato nsumado. Muitos fotografos poderao simplesmente ignorar tal

assedio. muilos deverao mesmo resistir heroicamente persistir ate 0 firn

da vida bus ando 0 "memento decisivo" das coisas que se olerecem a

carnara. Mas 0 problema - se e que se trata de procnrar problemas - e

que ssas novas praticas ou esses novos fenornenos encontram-se hoje

tao estreitamente inseridos, misturados, permeados nas praticas fotogra-

ficas con v ncionais, que se torna cada vez mais dificil aber 0 que e ainda

e pe ificamente jo to-graj ia , ou seja, rcgistro da luz sobre uma pelicula

rcvcstida gujmicamente e 0 que e. por outro lado, metamo r jo s e , ou seja.

onversao dos graos fotoqufmicos em unidades de cor e brilho, matema-

ti amcntc ontrolav is, as quais dames 0 nome de p ixe l s . Uma vez que

h je c pede tanto onvcrtcr imagens fotograficas em elctronicas, quanta

3 ' 1 0

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A Iotografia sob 0 im pac to d a ele tr6 nic <I ·11

eletronicas em fotogrMicas, sem que nessa passagem permane<;a nenhuma

marca do seu estado anterior, vive-se uma situacao de ind i f erenc iacao entre

os meios, situacao essa que e contagi.ante e ameaca ate mesmo 0 mais

singeIo dos £lagrantes.

A situacao vivida hoje no universo da fotografia nao e muito diferente

da situacao vivida, por exemplo, no cinema, que v e 0video e a informatica

penetrarem como um 1'010 compressor em seus process os significantes,

tomando 0 controle de todas as etapas de elaboracao do filme. Moder-

r-amente, no cinema, a edicao ja esta toda inforrnatizada, a filmagem e

assistida por video, quando nao e gravada diretamente em meio magne-

tico, a maioria dos efeitos de pos-producao sao gerados eletronicamente

e ate mesmo 0 roteiro e 0 s to ryboard sao editados em rnicrocomputado-

res. A pr6pria lingua gem do cinema e hoje uma derivacao da linguagem

da televisao, uma vez que 0 filme deve ser pensado e produzido levando-

se em consideracao a sua funcionalidade na tela pequena, quando ele for

distribuido em fitas de videocassete ou nos canais de televisao. Na area

da rruisica, a situacao nao e muito diferente: os sons dos instrumentos

sao sampleados (construidos por amostras) ou sintetizados eletronica-mente, ao passo que as pe<;as musicais nao consistem em outra coisa que

uma edicao desses sons numa tela de computador, por meio de s equ en c i a -

d a r e s concebidos especificamente para esse fim. 0 que quer dizer que, tal

como ocorre agora na fotografia, a musica que se ouve num disco nao e

mais, em grande parte das vezes, 0 registro da p e r j o rman cc de urn ins-

trwnentista, mas 0 resultado de um trabalho de edicao de sons eletro-

nicamente gerados. Ate mesmo 0 velho e tradicionallivro impresso, que

remonta ao tempo da imprensa de Gutenberg, no seculo XV, estasendo

rapidamente substituido pelo livro eletronico, distribuido em disquetes..

discos CD-ROM ou diretamente atraves de cabos telef6nicos e redes defibras 6pticas.

-A fotografia nao vive, portanto, uma situacao especial nem particular:

ela apenas corrobora um movimento maior, que se da em todas as esferas

da cultura, e que poderiamos caracterizar resumidamente como sendo

urn processo implacavel de "pixelizacao" (conversao em informacao

eletronica) e de informatizacao de todos os sistemas de expressao. de todos

os meios de comunicacao do homem contemporaneo. A tela mosaicada

do monitor representa hoje 0 local de convergencia de todos os novos

saberes e das sensibilidades emergentes que perfazem 0 panorama da

visuaJidade (e tarnbem da musicalidade, da verbalidade) deste final deseculo. Esse fenorneno surge, evidentemente, arrastando consigo um

numero incalculavel de consequencias, desencadeando problemas de toda

ordern, e sao justamente essas derivacoes que nos devem ocupar daqui

para a frente. Mas seria urn equivoco descomunal olhar para tudo isso

como se estivessemos diante de uma catastrofe, como se as telas eletroni-

cas, ao se rnultiplicarem ao nosso redor. estivessem tambem anunciando

a chegada do Apocalipse. A nova situacao criada pelo advento dos meios

eletronicos e digitais oferece uma boa ocasiao para repensar a fotografia e

o seu destino, para colocar em questao boa parte de seus mitos ou de seus

pressupostos e, sobretudo, para redefinir estrategias de intervencao capazesde fazer desabrochar na fotografia uma fertilidade nova, de modo a

recolocar 0 seu papel no milenio que se aproxima.

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" ' 2

Realismo em crise

A consequencia mai obvia . rnai: alard 'ada da h 'g .rnonia dz I 'trani c

e a pcrda do valor da fotografia como do umento, 01110 viden ia, omo

atestad de urna pr xistcncia da oisa fotografnda. ou C0l110 .irbitro da

verdad . A crcnca rnais ou monos gencralizada de qu' a amara n-o

mente e de que J fotografia e, ante de qualquer outra oi a, 0 re ultad

imaculado de l im regi tro dos raios de luz refletidos pclos 'res) objctos

do mundo, enfirn, toda e 'sa milologia a que a fot grafia tern sido associada

desde as suas origens, tudo isso esta fadado a desaparecer rapidarnente.

No tempo da manipulacao digital das imagens, a fotografia nao difcre

mais da pintura, nao esta mais isenta de subjetividade e nao pode atestar

mais a existencia de coisa alguma. Qualquer imagem fotogrMica podc

ser profundamente alterada, alguns de sells elementos podem ser impor-

tados de outras imagens, 0 nariz de um modelo pode ser alongado ou re-

duzido e ate mesmo trocado com 0 de outra figura, rugas ou excesso de

gorduras podem ser eliminados dos corpos fotografados, a posicao dos

objetos no quadro pode ser alterada par<l possibiJitar um novo enquadra-

mente. ate mesmo erros de foco, de mensuracao da luz ou de velocidade

de obturacao podem ser corrigidos na tela do computador. 0 conceito de

ed icao da fotografia se amplia e compreende hojc nao apenas 0 trabalho

de recorte do quadro e a sua insercao na pagina de uma revista, mas

tambem a manipulacao dos elementos constitutivos da propria imagem,

ate mesmo no nivel do grao mais elementar de inforrnacao: 0 pixel.

Certamente ja se manipulava a foto em outros tempos e a historia da fo-

tografia esta repleta de exemplos de alteracao da inforrnacao luminosa

impressa no negativo para fins_publicitarios .. politicos ou ate mesmo es-

teticos. E rn 1986, 0 jomalista Alain Jaubert organizou em Paris uma ex-

posicao denominada A s Fo tos qu e Fa ls ific a ra m a H is io r ia , onde foram

expostas quase uma centena de fotos "historicas" reconhecidamente adul-

teradas por meio de retoque ou colagem, como a celebre imagern de Lenin

na tribuna (em 1920), de onde Trotski foi eliminado, 0 famoso enterro de

Mao Tse-Tung (1976), de onde foram apagadas as figuras da Camarilha .

dos Quatro, e 0 retrato de Fidel Castro, tirado no Chile em 1971, de que

o lider cubano mandou suprimir a figura do General Pinochet, que posava

ao seu lado. Mas a manipulacao fotogrMica que se fazia em outros tempos

era grosseira e podia ser facilmente descoberta com um simples exame

atraves de microscopic. Hoje e extremamente dificil (senao impossivel)

saber se houve algum tipo de manipulacao numa foto, pois 0processamen-

to digital, uma vez realizado numa resolucao mais fina que a do proprio

grao fotogrMico, nao deixa marca alguma da intervencao. Uma vez que

agora se pode fazer qualquer tipo de alteracao do regisrro fotozrafico e

com um grau de realismo que torna a manipulacao impossivel de ser ve-

rificada, a conclusao logica e que, no limite, todas as fotos sao suspeitas

e, tambem no limite, nenhuma foto pode legal ou jornalisticamente provar

coisa alguma. A foto perde 0 seu poder de produzir verossimilhanca e.

como tal, e bern provavel que dentro de mais algum tempo ela seja excluida

ate mesmo de nossos documentos de identidade.

Alem da impossibilidade de verificar qualquer modificacao do registro

original, e preciso tambem constatar a relativa trivialidade com que esse

processo se da napratica habitual da fotografia. as recursos para editar

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.\ fotOg!,ilfiil sob 0 impacto da elctronica

digitalrnente uma foto estao cada vez mais ao alcance de qualquer

empresa editora, de qualquer fotografo profissional e ate mesmo do

cidadao cornum, uma vez que as camaras eletronicas de baixo custo e

destinadas ao publico amador ja sao vendidas acompanhadas de pro-

gramas de edicao de imagern. A rapida expansao da fotografia elctronica

e do processamento digital da fotografia nos faz crer que grande parte

das imagens que consumimos hoje nas revistas ilustradas sao imagens

editadas no seu proprio conteudo imagetico. A tarefa do Iotografo con-vencional se rcduz cada vez mais a do colhedor de imagcns, entendida

como tal a atividade do mero fornecedor de uma materia-prima que de-

vera ser depois process ada em estacoes grMicas computadorizadas. Os

limites entre a fotografia como registro da luz e a iconografia dos meios

de comunicacao tornam-se irnprecisos, na medida em que 0 registro etomado e explorado no que tem de potencial grafico, na medida em que

o resultado buscado e mais pictorico do que fotografico e na medida ainda

em que a questao da fidelidade ao mundo visivel mostra cada vez menos

pertinencia.

Uma avaliacao madura do momenta vivido hoje pel a fotografia e muito

diffcil de ser procedida, justamente porque vivemos um momenta de

transicao, e as mudancas ainda nao tomaram corpo com a devida enfase. 0

publico ainda nao esta inteiramente consciente das mudancas radicais que

se process am no interior das imagens que ele consome cotidianamente, 0

perigo de luna utilizacao perversa da fotografia e mills iminente do que nuncae, por outro lado, 0movimento de resistencia as mudancas tambern tem-se

mostrado muito forte, dele derivando, como subproduto, 0 retorno de Luna

atitude de fetichismo em relacao a fotografia classica de base fotoquimica. 0

intelectual norte-americano John Berger ja.observou, por exemplo, que,

durante a Guerra do Golfo Persico, varios jornais e revistas de seu palsalteraram rnuito sutilmente a imagem de Saddam Hussein, produzindo urn

estreitarnento mais acentuado de seu rosto e de seu bigode para forcar Luna

semelhanca com a fisionomia de Adolf HitleLl Mas e verdade tambem que,

na mesma guerra, a quase inexistencia de irnagens do conflito, ou, quando

existentes, a indicacao explfcita das Fontes Iornecedoras (com a sugestao

implicita da autoridade censora), bern como ainda as irnagens de simulacao

de batalhas atraves de recursos estilizados de computacao grMica, tudo isso

tornou evidente a urn publico estupefato que a notfcia (e com ela a "verda de")

e uma construcao. e Wl1. di scu rso sujeito, como qualquer outro discurso, a

intencionalidade da fonte emissora.

Nos circulos de especialistas. ji i e lugar-comum dizer que 0 universo da

imagem vive hoje a sua fase p 6 s - f o t o g l ' l ? f i c a , qucrendo-se dizer (om isso

uma fa e em que a im; gem - c sobretudo a imagem tecnicarnente pro-

duzida -Tibera-se finalmente do seu referente, do seu modele, ou daquilo

que n6s chamamos urn tanto impropriarnente de a "realidade", 0 que

marca d forma mais aguda essa fase e uma lenta, mas inexoravel mu-

danca dos habitos perceptivos do publico em relacao a uma, digamos

assirn. onio logia da im z gem fotografica. A convivencia diana com a tele-

visao e om os rneios cletroni os em geral vem mudando substancial-

mente a man ira omo 0 cspectador sc relaciona com as irnagens tecnicas,

e iss t m cons quen ias diretas na abordagem da fotografia. A tela de

baixa r .solucao -_gm profundidade da imag m clctronica fragmenta e

>moldura de forma impla avel 0 espac;o visfvcl, torna sensivel a textura

3]3

IAd ri an S el f, "Al te re d

[mages", em Co mpu t e r

Shoppe r , n O 61, Londres,

marco d e 1993, p. 41.6.

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31-1

Arlin (IMa h do,A

f lu ito Fspe ular: lntrodudio

a IO /fJX ra to ( -0Paul :

Uril<,illl-J1~, 1984).

, AnJ((~B , 7.in," lologi('

r i c · l ' lmagf'

l 'hollJgr h iqu ,", m

'..!u 'e '> l e q ue 11 ' inem a l ,

vol. 1 Wari! . : c rf , 1 95 8) ,

. 15

Arlinda MachJdo

granulosa do mosaico videografico e se oferece a todas as interferencias e

manipulacoes. Mais que isso: a imagem eletronica se mostra ao espectador

nao mais como um atestado da existencia previa das coisas visiveis, mas

explicitarnente como uma p rodu caa do visivel, como urn efeito de med ia cdo ,

A imagem se oferece agora como um "texto" para ser decifrado ou "lido"

pelo espectador, e nao mais como paisagem a ser contemplada.

Is 0 nao quer dizer que as imagens contemporaneas sejam indiferentes arealidade, como querem Iazer crer certos profetas do Apocalipse, mas

que 0acesso a esta ultima e agora mais mediado e menos inocente. Atribuir

um carater perverso ao efeito de opac i d ad e produzido pela imagem

eletronica ou, pior ainda, inculpar esta ultima de uma pretensa "desreali-

zacao" do mundo visivel, como fazem certos filosofos da pos-rnoder-

nidade, implica, na verdade, urn retorno a um discurso platonico sobre a

imagem, um discurso que nao consegue pensar a imagem fora de sua

funcao indicia l mais elementar e que nao admite qualquer outro destino

para as imagens fora dos limites estreitos da m im es e . Mas a manipulacao

eletronica nao chega propriamente a representar uma novidade no uni-

ver 0 das artes visuais, uma vez que 0 que ela faz e simplesmente repetir,

so que agora ern nivel de massa e do automatismo tecnico, 0mesmo pro-

ceo de i con i zacdo da representacao visual ja vivido pela arte moderna a

partir do Impressionismo, do Cubismo e da arte abstrata.

A conclusao provisoria que podernos arriscar extrair dos dados com os

quais podernos contar ho]e e mais ou menos a seguinte: por mais predate-

ria que seja a intervencao da eletronica no terreno da fotografia, ela pro-

duz tambern alguns resultados positivos em medic prazo, que poderiamos

caracterizar como sen do, de um lado, a incrernentacao dos recursos

expres ivos da fotografia e, de outro e principalmente, a demolicao de-

finitiva possivelmente irreversivel do mito da objetividade fotografica,

sobre 0 qual se fundam as teorias ingenuas da fotografia como signo da

verdade ou como reproducao do real. Na verda de, todos os especialistas

qu e atiraram seriamente a tarefa de examinar 0modo de funcionamento

da fotografia como urn sistema de expressao ja deixaram patente as

convencoes do codigo fotogrMico de represcntacao e a arbitrariedade

dos eus varies elementos expressivos, como 0 enquadramento, a

ilurninacao, a disposicao das zonas de tipos de cinza, a determinacao do

ponto de foco, a velocidade de obturacao, a resolucao da perspectiva por

cada tipo de lente, a densidade da emulsao de registro, 0 balanceamento

da core tc. 0 proprio autor deste texto que 0 leitor tern nas maos fez

ditar, em 1984, 0 livro A flus iio E spccula r? no qual fundamentalmente

pr icurou demon trar om a fotografia xprime seus enunciados na

forma de textos imag 'rico q I sao sempre e necessariamente intencionais,

intcrpr tativos e ubjctiv , omo ocorre, alias, em qualquer outro tipo

d ~ t .xto. A ideia csdruxula, difundida nos anos quarenta por Andre

Bazin,' d que aft grafia pertence ao dorninio nao da cultural mas das

ienci naturals. porque ~ a pr6pria "realidade" que se imprime a si

m .sma na p .licula. n- suporta sequ r a mals elementar das v rificacoes.

Pois b m, 0 que faz hojc a eletronica no terrene da fotografia e tornar

nsfv I, ou ate m sm ostensive. aquilo qu todo estudioso da fotografia

todo fat' graf d vid m nte onhecedor do eu meio j a sabiam desde

" orig n da fotografia, ou s ja. qu fotografar signifi a, antes de qual-

quer outra _oi a, on. truir urn enunciado a partir dos meio of· recidos

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A f tografia sub 0 impacto d.l eletror.ica

peio sistema expressivo invocado, e isso nao tem nada que ver com repro-

ducao do real. Se hoje a eletronica amplia 0 leque de ferramentas de que

se pode servir 0 fotograio, se ela lhe da maior poder de controle sobre

suas imagens e lhe possibilita intervir ate mesmo sobre as unidades mais

elementare do quadro para construir suas ideias visuais, tanto melho

para a fotografia, mesmo que essa nova ativiclade nem venha mais a se

chamar fotografia no futuro. Conforme ja observou Fred Ritchin, "0

potencial expressivo da fotografia nao podera ser adeql1adamente fixado

e avaliado enquanto a questao da sua facil conexao com a realidade nao

for superada".' A eletronica forca hoje a fotografia a viver a sua hora da

verdade e a livrar-se das convencoes e das ideias preconcebidas que'

entravam 0 seu pleno desenvolvimento como arte e como meio de co-

municacao. A medida que 0 publico for se acostumando as imagens

digitalmente alteradas, a medida que essas alteracoes se tornarem cada

vez mais visiveis e sensiveis, tambem como uma nova forma estetica, e

que os proprios instrumentos dessas alteracoes estiverem ao alcance de

um numero cada vez maior de pessoas, ate mesmo para a manipulacao

domestica,o mito da objetividade e da veracidade da imagem fotografica

desaparecera da ideologia coletiva e sera substituido pela ideia muito

mais saudavel da imagem como construcao e como discurso visual.

Uma estetica da metamorfose

Uma vez que se encontra sujeita a todas as transforrnacoes, a todas as

distorcoes e anamorfoses, a imagem fotogrMica, sob a egide da eletronica,

converte-se agora no meio por excelencia da me iamor jo s e . Pode-se nela

intervir infinitamente, subverter os seus valores cromaticos ou os seusniveis de luminancia, recortar suas figuras e inseri-las umas dentro das

outras, gerando paisa gens hibridas e exoticas, a meio caminho entre 0

surrealismo e a abstracao. Com os modernos recursos de pos-producao,

obretudo os que permitem a manipulacao digital, podern-se silhuetar as

figuras, Iineariza-las, preenche-las com massas de cores, alonga-las, COI11-

primi-las, terce-las. multiplica-las ao infinito, submete-las a toda sorte de

suplicios, para depois restitui-las novamente e, se for 0 caso, devolve-las

ao estado de realismo especuJar. Diferentemente das imagens fotogra-

fica convencionais, rfgidas e resistentes em sua fatalidade figurativa, a

imagem eletronica resulta muito mais elastica, dilufvel e manipulavelcomo uma massa de moldar.

Det rrninad s algoritmos de computacao grMica es pecificos para a rna-

nipulacao da imagcm fotogrMica perrnitem hoje intervir sobre as figuras

e dist rce-las d to as a forma, em que verdadeirarnenre haja limites

para esse gesto d onstrutivo. Na analise desse fenorneno, 0 crftico Fred

Ritch in" hegou m rno a lancar 0 conceito de hipel fotograf ia , a fotografia

gu e modif ada nao pela acao d paletas graficas, mas pela aplicacao

dir ta de) is da fisi a ou da biologia. Imagine-se a foto de urn predio de

quarcnta andare sa udido por um v nto hipotetico a 600 milhas por

h rat v 1 0 idade d1l3S v Z S sup .rior ao recorde ja verificado na supcr-

fi ie da terra. Apli ando quacoe maternatica e leis fisicas de re isten ia

dos mat r ic j a uma fot c nv n ional de urn. cdificio, pode- e, com 0

uxili d > urn omputador, alt rar a foto original d forma a visualizar Q_

qu pod 'ri a ont r om 0 =>diffio sob a a 50 d tais ventos. Com essa

'I F re d R i tc hi n, Our Own

Im age : the om ing

R eo ol utio n in Pho lDgraphy

(Nova York : Aper tu re ,

190),p.7.

5 toid., p. 13 .

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8/3/2019 X MACHADO Arlindo a Fotografia Sob Impacto Da Eletronica

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3 i G

6 Art Kleiner, "New

Faces", e m Ape r t u r e , n O

106, Nova York,

prim.avera de 1987, p 72.

7 Peter Weibel, "L'Estetica

della Sparizione

n ll'Immagine

Flcttronica". em. Cin e ma

N uo o o , n O S 4_r, ano 37,

Florenca. jul-out. de ]988,

p.44_

Arlindo lv[achado

tecnica, a fotografa norte-americana Nancy Burson produziu urn famoso

retrato do que seria um Big Brother de nosso tempo, misturando os tra,\os

fision.omicos dos presidentes e primeiros-ministros dos paises detentores

de poder nuclear, na exata propon~ao do numero de ogivas de cad a pais.

A rnesma Iotografa conseguiu tambern desenvolver um algoritmo capaz

de "envelhecer" ou "rejuvenescer" im.agens fotograficas, de modo a pos-

sibilitar saber como seremos daqui a vinte anos, ou como ficara uma es-

trela do cinema contemporaneo quando lhe vierern as rugas ou qual deve

ser a face atual de um criminoso nazista foragido." .

Esteticas por excelencia da metamorfose, 0 s til l vid eo e a fotografia pro-

cessada em computador autorizam as manipulacoes mais transgressivas

e as interferencias .mais desarticuladoras sobre 0 registro bruto efetuado

pelas camaras, Nao por acaso, essas suas caracteristicas anamorficas estao

possibilitando a fotografia retomar 0 espirito demolidor e desconstrutivo

das vanguardas historicas do comeco do seculo xx e aprofundar 0 trabalho

de rompimento com os canones pictoricos herdados do Renascimento.

Nao nos esque\amos de que a fotografia, no seculo XIX, representou um

dos baluartes de resistencia das forcas conservadoras contra a arte

rnoderna, sua contemporanea, na medida em que aquela perpetuava um

modelo de representacao que esta ultima se encontrava justamente pondo

em questao. Nesse sentido, pode-se falar hoje, e com uma certa pertinen-

tia, em uma reconciliacao com a pintura, uma vez que a imagem eletro-

nica permite a fotografia recuperar a visualidade da arte conternporanea.

Os trabalhos recentes na area da fotografia eletronica e da manipulacao

digital de fotos e mesmo da modelacao direta por computador apontam

hoje para a possibilidade de uma nova" gramatica" dos meios imageticos,

afinada com a "gramatica" das artes plasticas atuais, e tambem para anecessidade de novos parametres de leitura por parte do sujeito receptor.

o quadro que delimita a imagem (e que pode ser a tela de urn monitor)

torna-se agora urn espa<;o topografico onde os diversos elementos ima-

geticos vern inscrever-se. Do espa<;o i sot6pico da figuracao classica, basea-

do na continuidade e na homogeneidadedos elementos representados,

fundamentados na convergencia de todos os elementos em torno de urn

ponto de fuga, passamos agora ao espa<;o pol i topico? em que os elementos

constitutivos do quadro migram de diferentes contextos espaciais e

temporais e se encaixam, se encavalam, se sobrepoem uns sobre os outros

em configuracoes hibridas. 0 mundo passa a ser visto e representado

como uma trama de relacoes de uma complexidade inextricavel, em que

cada instante esta marcado pela presen\a simultanea de elementos os

mais heterogeneos, e tudo isso ocorre num movimento vertiginoso, que

toma mutantes e escorregadios todos os eventos, todos os contextos, todas

as operacoes.

FIuidas, ruidosas, escorregadias e infinitamente manipulaveis, a imagem

eletronica e a fotografia processada digitalmente nao autorizam mais

um tratamento no nivel da mera referencialidade, no ruvel do registro

documental puro e simples. 0 efeito de real nao se da nelas com a mesma

transparencia e inocencia com que ocorre na fotografia onvencional ouno cinema. Pelas suas proprias caracteristicas. os meios eletronicos se

prestam muito pouco a uma utilizacao naturalista, a uma utilizacao

meramente homologa toria do 1/real". Pelo contra rio, se a "realidade"

"

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A Iotografia sob 0 impaclo da elctronica3 17

comparece em alguma instancia nessas atividades, ela se da como de-

correncia de um trabalho de "escritura ", As anamorfoses e dissolucocs

de figuras, os imbricamentos de imagens, os efeitos de edicao ou de co l l a g e ,

os jogos das metaforas e das metonimias, a sintese direta da imagem no

cornputador nao sao meros artificios de valor decorativo; e1esconstituem,

antes, os elementos de articulacao do quadro fotografico como um sistema

de expressao. Entre todas as imagens figurativas, a imagem eletronica e

a que menos manifesta vocacao para 0 docu.mento ou para 0 "realismo"fotografico, impondo-se. em contrapartida, como intervencao graficai

conceitual ou, se quiserem, "escritural"; ela pressup6e uma arte da

relacao, do sentido, e nao simplesmente do olhar ou da ilusao.

Isso tudo nao implica evidentemente autorizar todo e qualquer trabalho

produzido com recursos eletronicos ou digitais. Boa parte do que se ve

hoje no terreno das novas poeticas fotograficas mostra-se ainda muito

aquem das proprias possibilidades prometidas pelos dispositivos tecnicos,

para nao se falar de uma transgressao. de uma superacao dessas pr6prias

possibilidades, que seria 0mais desejavel. Na atual fase de transicao vivida

pela fotografia, nao e nada surpreendente que muitos dos trabalhosproduzidos com os novos meios nao consigam ainda superar a atitude

do mero deslumbramento com as possibilidades da tecnologia. Nao nos

enganemos, porem, supondo que tudo nao passa de modismo passageiro

OU, pior ainda, que nada disso pode afetar substancialmente a velha e

boa fotografia produzida por uma camara e registrada em pelicula Ioto-

quimica. Os novos meios, os novos procedimentos, a nova estetica, tudo

isso veio para ficar. Eles ampliarao cada vez mais 0 seu leque de in-

fluencias, tomarao boa parte dos espa<;oshoje ocupados pela fotografia

tradicional e poderao mesmo vir-a provocar uma revolucao no conceito

de fotografia, a medida que inteligencias e sensibilidades cada vez maiss6lidas passarem a se ocupar deles em intensidade e profundidade. 0

trabalho recente do fot6grafo brasileiro Carlos Fadon Vicente e a melhordernonstracao disso.