wole soyinka e o ciclo da existência

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Após “Morreste-me”, José Luís Peixoto retoma o tema do luto com sensibilidade e grandeza na construção de imagens em “A Criança em Ruínas” (Dublinense). Tran- sitando da melancolia à beleza do nasci- mento, do saudosismo ao cansaço, aqui estão seus versos: “o último esconderijo da pureza”. É o primeiro livro de poesia do português (que terá autógrafos e me- sa na Feira), a ganhar edição no Brasil. Conforme Reginaldo Pujol Filho na orelha da obra, é no diálogo que “A Criança em Ruínas” traz com “Morreste-me, é que surge a redenção da palavra “ruínas”: ela também é marco, impossibilidade de co- nhecimento e permanência ainda que frágil de uma história, que pode ser de uma comunidade, pessoal ou da família: “enquanto um de nós esti- ver vivo, seremos sempre cinco”. Veja trecho: “na hora de pôr a mesa, éramos cinco: o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu. depois, a minha irmã mais velha casou-se. depois, a minha ir- mã mais nova casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje, na hora de pôr a mesa, somos cinco, menos a minha irmã mais velha que está na casa dela, menos a minha irmã mais nova que está na casa dela, menos o meu pai, menos a minha mãe viúva. cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde como sozinho. mas irão estar sempre aqui. na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco. en- quanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco”. Em “Amor para Corajosos” (Planeta), o filó- sofo Luiz Felipe Pondé conduz o leitor por um passeio sobre o tema. Não se trata de manual para amar melhor ou estudo acadê- mico. Em prosa ao mesmo tempo provoca- tiva e elucidativa, Pondé escreve ensaios que podem ser lidos aleatoriamente ou na ordem sugerida, partindo de uma diferen- ça filosófica entre o que seria um “amor kantiano” — que busca estabilidade e res- peito — e um “amor nietzschiano” — aquele da paixão avassaladora. O foco principal é o amor romântico chamado pelos medie- vais de “doença da alma”. Pondé usa a filo- sofia, as ciências sociais e a cultura para analisar questões eternas e outras mais contemporâneas. O amor pode conviver com rotinas? O amor tem cura? É ético abrir mão do amor em nome de obrigações familiares? Como saber se você é um canalha ou uma vagabunda? É possível con- fiar numa mulher? Como curar a atávica insegurança masculina? E quando o amor morre? Como o título sugere, “Amor para Corajosos – Reflexões proibidas para menores” vai instigar o leitor ao exercício do amor. Afinal, segundo o próprio Pondé, o amor é uma experiência prá- tica, jamais teórica. “Se você nunca entendeu a razão de a literatura estar cheia de exemplos de pessoas que “morrem de amor”, nenhuma teoria do amor vai salvá-lo do vazio que é nunca ter sofrido de amor”. Hebe Camargo começou a vida artística como cantora, primeiro em programas de calouros, aos 13 anos, para ajudar a com- plementar a renda da família humilde, que morava em Taubaté; depois em boa- tes, no rádio e na indústria do disco. Mas foi na televisão brasileira que ela se tor- nou uma grande estrela. Esta e outras histórias e constatações estão no livro “Hebe, a Biografia” (BestSeller), que Artur Xexéo lança na Feira do Livro. A relação de Hebe com a TV começou antes desta ser criada: como integrante do casting das Emissoras Associadas, pertencentes a Assis Chateaubriand, Hebe fez parte da caravana do empresário que levou artistas ao Porto de Santos, em 1950, para receberem os primeiros equipamentos do primeiro canal que Chatô criaria no Brasil, a TV Tupi. Com prosa envolvente, Xexéo convida o leitor a se sentar na poltrona da apresentadora para ou- vir suas histórias de vida. Durante um ano e meio, o jornalista convi- veu com parentes de Hebe, entrevistou amigos e gente que traba- lhou com ela e mergulhou nos arquivos de sua trajetória. Os namo- ros controversos, o casamento, o filho, o aborto que ela confessou publicamente ter feito, medos, cirurgias plásticas, comida favorita, o amor pelo pai, os primeiros passos na carreira, o sucesso, os ressen- timentos, as brigas, as amizades, as viagens, as críticas políticas e outros assuntos compõem este livro mais do que necessário. HEBE, A BIOGRAFIA — ARTUR XEXÉO AMOR PARA CORAJOSOS — LUIZ F. PONDÉ FEIRA DO LIVRO / DIVULGAÇÃO / CP ADRIANO MORAES MIGLIAVACCA* E ste ano, a 63ª Feira do Livro de Porto Alegre te- rá a presença de Wole Soyinka. No Brasil, são ainda poucos os que conhecem esse nome, cuja própria origem pode confundir muitos. Trata-se de um nome de origem iorubá, grupo étnico que habita o oeste da Nigéria, e seu possuidor é um escritor que conta hoje como um dos principais representan- tes no mundo da literatura afri- cana. Dramaturgo, poeta, ensaís- ta, memorialista, romancista, professor e ativista político, pri- meiro africano a ganhar o Prê- mio Nobel de Literatura, em 1986, Soyinka é um exemplo de autor cuja criatividade se reali- za de múltiplas formas, sendo que, de todos os gêneros em que trabalha, o teatro é aquele que exerce mais plenamente. A referência inicial ao seu gru- po étnico não é casual: nigeriano que escreve em inglês, a identifica- ção como iorubá é de extrema im- portância, pois que já certa vez, em uma entrevista, Soyinka se dis- se, acima de tudo, um escritor io- rubá. Os mitos, a cosmovisão, a simbologia e as tradições de seu povo informam grande parte de sua obra, mas tal identificação não impede a Soyinka um alto grau de cosmopolitismo; pelo con- trário, como disse certa vez o críti- co inglês Robert Fraser, para Soyinka, ser iorubá significa estar ligado em solidariedade com toda a humanidade. É essa solidariedade que tem levado Soyinka a vocalizar seu apoio às mais diversas causas hu- manitárias ao redor do mundo. Sim, o autor nigeriano tem se no- tabilizado ao longo dos anos co- mo opositor ferrenho de ditado- res e opressores, o que o levou a ser preso na Nigéria e, em outro momento, exilado de sua terra na- tal. Essa luta é algo que Soyinka traz para sua obra, quando decla- ra que esta se volta contra a bota opressora e a irrelevância da cor do pé que a calça. Na obra de Soyinka, vemos diversas figuras opressoras e conflitos entre mo- dernos ditadores e líderes tradi- cionais, falsificadores, assassinos e oficiais coloniais, apresentando uma realidade africana que sur- preende em sua diversidade e im- previsibilidade. No entanto, é bom lembrar que, para além da realidade mundana, vê-se em sua obra uma outra, sobrenatural, de ex- trema importância, que influen- cia ou até determina os eventos no plano da existência humana. Essa realidade aparece de diver- sas formas, dependendo da obra de que se fala. Na peça “A Dan- ce of the Forests”, ela é repre- sentada de maneira bastante di- reta, com seres de outro mundo surgindo para instigar e ator- mentar os humanos. Já em Dea- th and the King’s Horseman, es- sa realidade não surge concreta- mente, pois que a peça se passa inteiramente no mundo humano, mas sua presença transparece nas crenças e ações dos perso- nagens, que tomam suas princi- pais atitudes com base no mun- do além da vida. Soyinka é enfático em afirmar que a noção dessa realidade além do mundo material, que a metafísica de sua obra, ele a em- presta da cosmovisão iorubá, de seu povo de origem. Tal cosmovisão, afirma Soyinka, pressupõe a existência de três mundos imbricados nos quais transcorre a vida humana, indivi- dual e em sociedade: o mundo dos vivos, o mundo dos mortos e o mundo dos não nascidos. Há ainda, nos diz Soyinka, um quar- to espaço, de transição, entre eles. É objetivo das práticas reli- giosas garantir que o ciclo dos três mundos se mantenha em mo- vimento e não se perca na área de transição, assegurando a con- tinuidade da existência da socie- dade e de cada indivíduo. Esses três mundos estão presentes em diversas obras de Soyinka, como as já citadas aqui. Se a cosmovisão iorubá se en- contra presente na obra de Soyinka, o otimismo frequente- mente atribuído à cultura pare- ce ausente. As peças de Soyinka são cheias de personagens enga- nadores e de atos de corrupção que resultam em mais corrupção. Em “A Dance of the Forests”, por exemplo, a come- moração da recém-conquistada independência de uma nação africana se perde em diversas ações corruptas de vários perso- nagens, incluindo alguns ligados à organização da celebração. Se- res sobrenaturais surgem para expor aos humanos sua verda- deira face. Chega um momento em que a peça recua alguns sé- culos no tempo para mostrar um então portentoso reino afri- cano no qual ocorrem atos cor- ruptos equivalentes aos que ve- mos ocorrerem no presente. Já na peça “Kongi’s Harvest”, o conflito entre um ditador e um rei tradicional mostra as inúme- ras crueldades praticadas pelo primeiro para afirmar sua supe- rioridade sobre o segundo. No entanto, mesmo em meio a todo esse pessimismo, a obra de Soyinka pode oferecer visões positivas, se soubermos reconhecê-las. Sua obra poética é marcada por imagens de ferti- lidade, em que a natureza sur- ge como uma metáfora da capa- cidade regenerativa do próprio ser humano, como neste belo “Estação”: Ferrugem é madureza, fer- rugem, E a pluma murcha do milho; Pólen é tempo de acasala- mento quando as andorinhas Tecem uma dança De setas emplumadas Fiam espigas de milho em feixes De luz alada. E, nós ama- mos ouvir O vento a jungir frases, ou- vir O rascar dos campos, onde folhas de milho Perfuram qual lascas de bambu. Agora, nós, catadores Aguardando a ferrugem em franjas, puxamos Longas sombras do crepús- culo, trançamos Palha seca em fumos de ma- deira. Espigas cheias Levam a queda do germe – esperamos A promessa da ferrugem. Sua poesia nos mostra que, se o tempo é circular, entre suas incontáveis repetições, há, não obstante, espaço para uma do- bra temporal que, ainda que ínfi- ma, pode abrir oportunidades de modificação e regeneração. * Mestre e doutorando em Literatura pela Ufrgs, tradutor e articulista do blog Estado da Arte. ESTANTE — FEIRA DO LIVRO ACRIANÇAEMRUÍNAS—JOSÉLUÍSPEIXOTO 63ª FEIRA DO LIVRO Wole Soyinka e o ciclo da existência Mestre e doutorando em Literatura pela Ufrgs fala do Nobel nigeriano que estará na Feira, no dia 19/11 CADERNO DE SÁBADO Em uma entrevista, Soyinka se disse, acima de tudo, um escritor iorubá. SÁBADO, 28 de outubro de 2017

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Page 1: Wole soyinka e o ciclo da existência

Após “Morreste-me”, José Luís Peixotoretoma o tema do luto com sensibilidadee grandeza na construção de imagens em“A Criança em Ruínas” (Dublinense). Tran-sitando da melancolia à beleza do nasci-mento, do saudosismo ao cansaço, aquiestão seus versos: “o último esconderijoda pureza”. É o primeiro livro de poesiado português (que terá autógrafos e me-sa na Feira), a ganhar edição no Brasil.Conforme Reginaldo Pujol Filho na orelhada obra, é no diálogo que “A Criança emRuínas” traz com “Morreste-me, é quesurge a redenção da palavra “ruínas”: elatambém é marco, impossibilidade de co-nhecimento e permanência — ainda quefrágil — de uma história, que pode ser deuma comunidade, pessoal ou da família: “enquanto um de nós esti-ver vivo, seremos sempre cinco”. Veja trecho: “na hora de pôr amesa, éramos cinco: o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs eeu. depois, a minha irmã mais velha casou-se. depois, a minha ir-mã mais nova casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje, na horade pôr a mesa, somos cinco, menos a minha irmã mais velha queestá na casa dela, menos a minha irmã mais nova que está na casadela, menos o meu pai, menos a minha mãe viúva. cada um delesé um lugar vazio nesta mesa onde como sozinho. mas irão estarsempre aqui. na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco. en-quanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco”.

Em “Amor para Corajosos” (Planeta), o filó-sofo Luiz Felipe Pondé conduz o leitor porum passeio sobre o tema. Não se trata demanual para amar melhor ou estudo acadê-mico. Em prosa ao mesmo tempo provoca-tiva e elucidativa, Pondé escreve ensaiosque podem ser lidos aleatoriamente ou naordem sugerida, partindo de uma diferen-ça filosófica entre o que seria um “amorkantiano” — que busca estabilidade e res-peito — e um “amor nietzschiano” — aqueleda paixão avassaladora. O foco principal éo amor romântico chamado pelos medie-vais de “doença da alma”. Pondé usa a filo-sofia, as ciências sociais e a cultura paraanalisar questões eternas e outras maiscontemporâneas. O amor pode conviver com rotinas? O amor temcura? É ético abrir mão do amor em nome de obrigações familiares?Como saber se você é um canalha ou uma vagabunda? É possível con-fiar numa mulher? Como curar a atávica insegurança masculina? Equando o amor morre? Como o título sugere, “Amor para Corajosos –Reflexões proibidas para menores” vai instigar o leitor ao exercício doamor. Afinal, segundo o próprio Pondé, o amor é uma experiência prá-tica, jamais teórica. “Se você nunca entendeu a razão de a literaturaestar cheia de exemplos de pessoas que “morrem de amor”, nenhumateoria do amor vai salvá-lo do vazio que é nunca ter sofrido de amor”.

Hebe Camargo começou a vida artísticacomo cantora, primeiro em programas decalouros, aos 13 anos, para ajudar a com-plementar a renda da família humilde,que morava em Taubaté; depois em boa-tes, no rádio e na indústria do disco. Masfoi na televisão brasileira que ela se tor-nou uma grande estrela. Esta e outrashistórias e constatações estão no livro“Hebe, a Biografia” (BestSeller), que ArturXexéo lança na Feira do Livro. A relaçãode Hebe com a TV começou antes destaser criada: como integrante do castingdas Emissoras Associadas, pertencentes aAssis Chateaubriand, Hebe fez parte dacaravana do empresário que levou artistas ao Porto de Santos, em1950, para receberem os primeiros equipamentos do primeiro canalque Chatô criaria no Brasil, a TV Tupi. Com prosa envolvente, Xexéoconvida o leitor a se sentar na poltrona da apresentadora para ou-vir suas histórias de vida. Durante um ano e meio, o jornalista convi-veu com parentes de Hebe, entrevistou amigos e gente que traba-lhou com ela e mergulhou nos arquivos de sua trajetória. Os namo-ros controversos, o casamento, o filho, o aborto que ela confessoupublicamente ter feito, medos, cirurgias plásticas, comida favorita, oamor pelo pai, os primeiros passos na carreira, o sucesso, os ressen-timentos, as brigas, as amizades, as viagens, as críticas políticas eoutros assuntos compõem este livro mais do que necessário.

HEBE,ABIOGRAFIA—ARTURXEXÉO AMORPARACORAJOSOS—LUIZF.PONDÉ OSONOEAMORTE-A.J.KAZINSKI

FEIRA DO LIVRO / DIVULGAÇÃO / CP

ADRIANO MORAES MIGLIAVACCA*

Este ano, a 63ª Feira doLivro de Porto Alegre te-rá a presença de WoleSoyinka. No Brasil, são

ainda poucos os que conhecemesse nome, cuja própria origempode confundir muitos. Trata-sede um nome de origem iorubá,grupo étnico que habita o oesteda Nigéria, e seu possuidor éum escritor que conta hoje comoum dos principais representan-tes no mundo da literatura afri-cana. Dramaturgo, poeta, ensaís-ta, memorialista, romancista,professor e ativista político, pri-meiro africano a ganhar o Prê-mio Nobel de Literatura, em1986, Soyinka é um exemplo deautor cuja criatividade se reali-za de múltiplas formas, sendoque, de todos os gêneros em quetrabalha, o teatro é aquele queexerce mais plenamente.

A referência inicial ao seu gru-po étnico não é casual: nigerianoque escreve em inglês, a identifica-ção como iorubá é de extrema im-portância, pois que já certa vez,em uma entrevista, Soyinka se dis-se, acima de tudo, um escritor io-rubá. Os mitos, a cosmovisão, asimbologia e as tradições de seupovo informam grande parte desua obra, mas tal identificaçãonão impede a Soyinka um altograu de cosmopolitismo; pelo con-trário, como disse certa vez o críti-co inglês Robert Fraser, paraSoyinka, ser iorubá significa estarligado em solidariedade com todaa humanidade.

É essa solidariedade que temlevado Soyinka a vocalizar seuapoio às mais diversas causas hu-

manitárias ao redor do mundo.Sim, o autor nigeriano tem se no-tabilizado ao longo dos anos co-mo opositor ferrenho de ditado-res e opressores, o que o levou aser preso na Nigéria e, em outromomento, exilado de sua terra na-tal. Essa luta é algo que Soyinkatraz para sua obra, quando decla-ra que esta se volta contra a botaopressora e a irrelevância da cordo pé que a calça. Na obra deSoyinka, vemos diversas figurasopressoras e conflitos entre mo-dernos ditadores e líderes tradi-cionais, falsificadores, assassinose oficiais coloniais, apresentandouma realidade africana que sur-preende em sua diversidade e im-previsibilidade.

No entanto, é bom lembrarque, para além da realidademundana, vê-se em sua obrauma outra, sobrenatural, de ex-trema importância, que influen-cia ou até determina os eventosno plano da existência humana.Essa realidade aparece de diver-sas formas, dependendo da obrade que se fala. Na peça “A Dan-ce of the Forests”, ela é repre-sentada de maneira bastante di-reta, com seres de outro mundosurgindo para instigar e ator-mentar os humanos. Já em Dea-th and the King’s Horseman, es-sa realidade não surge concreta-mente, pois que a peça se passainteiramente no mundo humano,mas sua presença transparecenas crenças e ações dos perso-nagens, que tomam suas princi-pais atitudes com base no mun-do além da vida.

Soyinka é enfático em afirmarque a noção dessa realidadealém do mundo material, que ametafísica de sua obra, ele a em-presta da cosmovisão iorubá, deseu povo de origem. Talcosmovisão, afirma Soyinka,pressupõe a existência de trêsmundos imbricados nos quaistranscorre a vida humana, indivi-dual e em sociedade: o mundodos vivos, o mundo dos mortos e

o mundo dos não nascidos. Háainda, nos diz Soyinka, um quar-to espaço, de transição, entreeles. É objetivo das práticas reli-giosas garantir que o ciclo dostrês mundos se mantenha em mo-vimento e não se perca na áreade transição, assegurando a con-tinuidade da existência da socie-dade e de cada indivíduo. Essestrês mundos estão presentes emdiversas obras de Soyinka, comoas já citadas aqui.

Se a cosmovisão iorubá se en-contra presente na obra deSoyinka, o otimismo frequente-mente atribuído à cultura pare-ce ausente. As peças de Soyinkasão cheias de personagens enga-

nadores e de atos de corrupçãoq u e r e s u l t a m e m m a i scorrupção. Em “A Dance of theForests”, por exemplo, a come-moração da recém-conquistadaindependência de uma naçãoafricana se perde em diversasações corruptas de vários perso-nagens, incluindo alguns ligadosà organização da celebração. Se-res sobrenaturais surgem paraexpor aos humanos sua verda-deira face. Chega um momentoem que a peça recua alguns sé-culos no tempo para mostrarum então portentoso reino afri-cano no qual ocorrem atos cor-ruptos equivalentes aos que ve-mos ocorrerem no presente. Já

na peça “Kongi’s Harvest”, oconflito entre um ditador e umrei tradicional mostra as inúme-ras crueldades praticadas peloprimeiro para afirmar sua supe-rioridade sobre o segundo.

No entanto, mesmo em meioa todo esse pessimismo, a obrade Soyinka pode oferecer visõesposi t ivas , se soubermosreconhecê-las. Sua obra poéticaé marcada por imagens de ferti-lidade, em que a natureza sur-ge como uma metáfora da capa-cidade regenerativa do próprioser humano, como neste belo“Estação”:

Ferrugem é madureza, fer-rugem,

E a pluma murcha do milho;Pólen é tempo de acasala-

mento quando as andorinhasTecem uma dançaDe setas emplumadasFiam espigas de milho em

feixesDe luz alada. E, nós ama-

mos ouvirO vento a jungir frases, ou-

virO rascar dos campos, onde

folhas de milhoPerfuram qual lascas de

bambu.Agora, nós, catadoresAguardando a ferrugem em

franjas, puxamosLongas sombras do crepús-

culo, trançamosPalha seca em fumos de ma-

deira. Espigas cheiasLevam a queda do germe –

esperamosA promessa da ferrugem.Sua poesia nos mostra que,

se o tempo é circular, entre suasincontáveis repetições, há, nãoobstante, espaço para uma do-bra temporal que, ainda que ínfi-ma, pode abrir oportunidades demodificação e regeneração.

* Mestre e doutorando emLiteratura pela Ufrgs, tradutor

e articulista do blog Estado da Arte.

ESTANTE—FEIRADOLIVRO

ACRIANÇAEMRUÍNAS—JOSÉLUÍSPEIXOTO

63ª FEIRA DO LIVRO

Wole Soyinka e o ciclo da existênciaMestreedoutorandoemLiteraturapelaUfrgs falado Nobelnigeriano queestaránaFeira, no dia19/11

CADERNODESÁBADO

Em uma entrevista, Soyinka se disse, acima de tudo, um escritor iorubá.

SÁBADO,28 de outubro de 2017 CORREIO DO POVO