volume 6 - práticas religiosas, práticas do sagrado, festas e sabores

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos Universidade Federal do Pará Belém, 15 a 18 de junho de 2015 A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732 Volume 6 Práticas religiosas, práticas do sagrado, festas & sabores PPHIST/Universidade Federal do Pará PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão PPGH/Universidade Federal do Amazonas ISBN 978-85-61586-89-8

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

Universidade Federal do Pará

Belém, 15 a 18 de junho de 2015

A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732

Volume 6

Práticas religiosas, práticas do sagrado, festas & sabores

PPHIST/Universidade Federal do Pará

PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão

PPGH/Universidade Federal do Amazonas

ISBN 978-85-61586-89-8

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Ficha Catalográfica

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos / Práticas religiosas, práticas do sagrado, festas e sabores. Rafael Chambouleyron (Org.). Belém: Editora Açaí, volume 6, 2015.

94 p.

ISBN: 978-85-61586-89-8

1. História – Religião. 2. Práticas religiosas – Práticas do sagrado - Religiosidade. 3. Cultura - Festas – Sabores. 4. História.

CDD. 23. Ed. 348.9978

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Apresentação

Apresentamos os Anais do II Seminário de

História em Estudos Amazônicos, realizado

em Belém, de 15 a 18 de junho de 2015. O

primeiro Seminário foi realizado em São Luís,

em 2013, fruto do esforço conjunto dos

programas de pós-graduação em História da

Universidade Federal do Maranhão e da

Universidade Federal do Pará, aos quais se

junta agora o da Universidade Federal do

Amazonas. Neste ano, o SHEA congregou

docentes e discentes das três instituições,

resultando na apresentação de mais de cem

trabalhos, aqui publicados, organizados em

sete volumes, cada um referente a um

Simpósio Temático. O objetivo é reforçar os

laços entre as pós-graduações de instituições

amazônicas, que historicamente,

compartilham trajetórias comuns.

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Sumário

D. JOSÉ: UM BISPO POLÍTICO A SERVIÇO DA IGREJA CATÓLICA NA AMAZÔNIA Allan Azevedo Andrade ..............................................................................................2 MEMÓRIA, IMAGINÁRIO E PATRIMÔNIO CULTURAL EM COMUNIDADES AMAZÔNICAS Decleoma Lobato Pereira ........................................................................................ 12 O DIABO ESTÁ ENTRE NÓS: O DISCURSO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS ENTRE 1980 A 2002 Isa Prazeres Pestana .................................................................................................. 21 PRIMEIRA ASSEMBLEIA DOS POVOS INDÍGENAS EM RORAIMA: SRUMÚ JANEIRO DE 1977 Jaci Guilherme Vieira ................................................................................................ 31 RITOS RODEADOS DE MORTE: A EVANGELIZAÇÃO NAS MISSÕES JESUÍTICAS DA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SÉCULO XVII) Karl Heinz Arenz ...................................................................................................... 40 FESTAS CATÓLICAS NA CIDADE DE BELÉM: O CASO DO NATAL DE PADRE EUTÍQUIO (1870-1879) Kelly Chaves Tavares ................................................................................................ 56 RELIGIÃO, PODER E SAGRADO: ANÁLISE DAS ELABORAÇÕES DE GÊNERO À LUZ DE POMBAGIRA Lucielma Lobato Silva .............................................................................................. 65 VIEIRA E O ATLÂNTICO EQUATORIAL: A GUERRA CONTRA CASTELA E O PROJETO UNIVERSALISTA VIEIRIANO Nathalia Moreira Lima Pereira ................................................................................ 75 A MÉDIUM ANNA PRADO E AS PRÁTICAS DE CURA: O MUNDO NATURAL E O SOBRENATURAL Sheila Izolete Mendes Evangelista .......................................................................... 85

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D. JOSÉ: UM BISPO POLÍTICO A SERVIÇO DA IGREJA CATÓLICA NA AMAZÔNIA

Allan Azevedo Andrade1

Resumo As relações entre Estado e Igreja foram desgastadas nos embates das visões de mundo no decorrer do século XIX, acarretando a ruptura da aliança trono/altar, com um progressivo aumento da busca pela autonomia da Igreja. Partilhavam os membros da Igreja católica do exercício de gestão do Estado por meio dos pleitos eleitorais e da confirmação nas funções regulares de escrituração pública nos livros de paroquia, quanto na oferta dos serviços pastorais e simbólicos nas paroquias. O presente trabalho visa analisar a intervenção de Dom José Afonso de Moraes Torres, principal nome da hierarquia católica da diocese do Pará, na política antes da intensificação do processo de Romanização na Amazônia; sem, entretanto descuidar-se de implantar na diocese o Ultramontanismo em sintonia com Santa Sé, por via da ampliação da oferta de educação na Amazônia como testemunhou durante seu mandato no parlamento. Palavras-chave: Dom José; Igreja; política; Romanização. Introdução

O estudo em tela objetiva analisar o posicionamento do 9° bispo do Pará,

José Afonso de Moraes Torres, como religioso e parlamentar, sem olvidar sua atuação pastoral – de inclinação ultramontana – dentro da diocese do Pará, no intuito de compreender a inserção da hierarquia católica na política sob o prisma do prelado diocesano durante seu bispado (1844-1857).

O desgaste existente entre Igreja e Estado proveniente da corrosão dos alicerces que sustentavam o antigo regime desde a época da Revolução Francesa, não se fazia implacável no Brasil. Malgrado a sociedade amazônica se deparar com uma série de medidas pautadas nos preceitos romanizadores antes da tão propalada “Questão Religiosa2”, ainda não era um momento de completo

1 Mestrando em História, Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. 2 Em suma, foi em um embate que, embora protagonizado por Dom Vital Oliveira (bispo de Olinda) e Dom Macedo Costa (bispo do Pará), expressava a tensão entre o Ultramontanismo e o regalismo imperial. Isso porque a Igreja católica por meio dos

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antagonismo entre o poder temporal e espiritual, porquanto nos anos 40 e 50 do século XIX a esfera eclesiástica não se via apartada da esfera civil no que diz respeito à realidade da província do Grão-Pará, de modo que os contrassensos mais dissonantes das duas esferas pareciam estar em estado de dormência. No entanto, já se observa nas atitudes do bispo José Afonso, algumas medidas objetivando sintonizar o seu bispado aos ventos da Romanização, se mostrando, em certa medida, em harmonia com as ideias difundidas pelos papas Gregório XVI3 e Pio IX4.

Dom José buscava colocar em prática na Amazônia o plano de reforma da Igreja católica que ganhava cada vez mais espaço dentro da Europa em meados do século XIX. Porém, simultaneamente ao seu bispado, o prelado diocesano se envolve com a política, sendo eleito a cargos políticos de prestígio regional e nacional. Diante disso, procura-se compreender a forma como o referido bispo aliava a atividade política às suas atribuições religiosas, antes da cisão entre Igreja e Estado que se dá em meio a um crescente receio desta pela secularização da sociedade. D. José Afonso entre o parlamento e a Igreja

bispos tomou medidas a fim de coibir a participação de maçons nas irmandades. O Estado acabou intervindo no conflito se colocando a favor das irmandades, gerando um grande mal estar na aliança entre Igreja e Estado. Em razão disso, os bispos se recursaram a aceitar a decisão do governo imperial, e foram presos em 1874. Essa situação causou grande polêmica em todo o Brasil, pois grande parte do clero e dos fieis ficaram ao lado dos bispos presos, e até mesmo o papa Pio IX saiu em defesa de Dom Macedo Costa e Dom vital. Apesar de terem sido anistiados no ano seguinte mediante o decreto n° 5.993 de 17 de Setembro de 1875, a relação entre Igreja e Estado não era das melhores, quando finalmente em 1890, por intermédio do decreto 119-A, foi desfeita a aliança entre a esfera civil e religiosa. Ver: GOMES, E. S. . A Dança Dos Poderes: Uma História Da Separação Estado-Igreja No Brasil. 1. ed. São Paulo: D'escrever, 2009. v. 1. p. 75 - 162. 3 Nascido em Belluno em 1765, assumiu o papado durante os anos de 1831 a 1846, ficando marcando pelo conservadorismo no direcionamento da Santa Sé. Ele expõe a aversão da Igreja ao liberalismo, e convida a comunidade católica a combater a modernidade através da encíclica MIRARI VOS ARBITRAMUS do ano de 1832. 4 Pio IX foi responsável pela intensificação do conservadorismo da Igreja católica no século XIX, acirrando a relação com a esfera civil. O ápice do litígio foi Questão Romana durante a Unificação italiana, no qual o pontífice foi um dos protagonistas quando não aceitou a perda do “Patrimônio de São Pedro” e se declarou prisioneiro do governo italiano. Durante seu papado – entre os anos de 1846 e 1878 – foi proclamado os dogmas como a Imaculada Conceição de Maria em 1854 e a Infalibilidade papal em 1870.

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Quando se analisa a perspectiva política do bispo José Afonso Torres, sem

preterir a tentativa de reforma interna da Igreja católica em meados do século XIX na Amazônia, percebe-se esta intervenção ajustada ao ideário de reforma social e moral. À vista disso, é fundamental examinar o momento de transição pelo qual passava a Igreja, no qual ainda não era tão notório o direcionamento romano no intuito de afastar os prelados do envolvimento com os negócios civis, e consequentemente das disputas eleitorais. Diferente do que vai acontecer mais tarde, onde segundo Hugo Fragoso (1992)5 a Igreja estará concentrada mais na empreitada católica romana do que na questão nacional. Com isso, é necessária a análise do que vem a ser o processo de Romanização – movimento dirigido pela hierarquia eclesiástica que pretendia afastar a Igreja do poder temporal na figura do imperador e aproxima-la das ordens da Santa Sé – e compreender as barreiras que essa doutrina gradualmente passou a criar sobre os presbíteros aspirantes a cargos públicos nos pleitos eleitorais.

Para ajudar a traduzir os significados das mudanças e entender as relações dessa época, é de suma importância salientar o pensamento gramsciniano. De acordo com Antonio Gramsci “a história dos partidos e das tendências políticas não podem ser separada daquela dos grupos e das tendências religiosas”6. Então, a partir da identificação da Igreja como aparelho ideológico7, é possível definir suas relações com a política, na medida em que ambos apresentam uma estreita dependência aventada pela existência de castas de intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos8. A oposição ideológica entre a aristocracia escravista-fundiária (tendo como interposto a Igreja) e a burguesia em via de modernização (por intermédio da franco-maçonaria) mostra a situação do aparecimento de novas castas em conflitos com as forças tradicionais.

5 FRAGOSO, Hugo. A igreja na formação do estado liberal (1840-1875). In: [HOORNAERT, Eduardo (org.)]. História da Igreja no Brasil: Ensaio de interpretação a partir de um povo – segunda época. Tomo II/2. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1992. p. 183. 6 PORTELLI, Hugues. Gramsci e a Questão Religiosa. Ed. Paulinas SP. 1984. p.37. 7 Grosso modo, a Igreja enquanto aparelho ideológico teria a função de manter a hegemonia da classe fundamental sobre os outros grupos sociais. Nesse sentido é importante destacar também sua autonomia relativa do Aparelho de Estado, e dos outros aparelhos ideológicos, como sendo consequência de sua função hegemônica, pois, em nível ideológico manifesta toda sua tradição “de independência”, expressando sua influencia oriunda do passado. 8 No pensamento gramsciniano é identificado dois tipos de intelectuais: o orgânico e o tradicional. O intelectual orgânico é definido como um organizador da produção de um novo modo cultural, enquanto que o intelectual tradicional é caracterizado por fazer referência ao passado no intuito de dar continuidade a sua independência e hegemonia.

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Voltando para a realidade da diocese do Pará, José Afonso Torres percebeu o poder civil ineficaz no fornecimento de meios materiais necessários à Igreja e se empenha na busca pela defesa da dignidade do clero num cenário de subjunção frente ao Estado. Dessa forma, não muito depois da sua chegada à Amazônia, José Afonso foi eleito deputado da Assembleia Legislativa do Pará em 1845, sendo o segundo mais votado dentre os 28 eleitos, tomando posse em 1846:

Achando-se sobre a Mesa o Diploma do Exm.° Snr. D. José Affonso de Moraes Torres, he entregue á Commissão de Poderes para o examinar. Retira-se a Commissão para a Sala respectiva, e dahi a pouco volta com o seguinte parecer: “A Commissão de Constituição, e Poderes, examinando o Diploma do Exm.° e Reverendissimo Snr. D. José Affonso de Moraes Torres, Deputado eleito á esta Assembléa Legislativa Pronvincial do Pará 14 Setembro de 1846. – José Joaquim Pimenta Magalhães – Jose de Napoles Telles de Menezes.”9

A repentina eleição de Dom José Afonso Torres é curiosa quando se

considera o fato dele não possuir um vínculo de nascimento com a província do Pará, todavia entra em cena a ideia de José Murilo de Carvalho10 referindo-se aos padres como lideres populares em potencial, havendo, portanto um vínculo religioso que provavelmente lhe garantiu a elegibilidade. Essa aproximação junto às camadas populares é confirmada quando, entre outros atos, em 1845 Dom José Afonso caracteriza-se por ser um bispo que sai dos muros da igreja e vai ao encontro do seu rebanho espiritual na ocasião das visitas pastorais, a fim de pregar o catolicismo romanizado nos meses antecedentes às eleições para a cadeira de deputado.

A eleição de José Afonso Torres enquanto membro da Igreja no ano de 1845 não foi algo isolado, em razão de outros três sacerdotes – Padre Prudencio José das Merces Tavares, Padre Victorio Procopio Serrão do Espirito Santo e o Chantre Raymundo Severino de Mattos – também terem vencido a batalha eleitoral, mostrando o quanto ainda estava incrustado os acontecimentos políticos na vida dos religiosos paraenses. É importante salientar que Dom José Afonso teve uma participação discreta quando foi deputado pela província do Pará visto que apesar de sua razoável assiduidade nas sessões da assembleia

9TORRES, José Afonso de Moraes. Treze de Maio, Belém, 3 Out. 1846. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=700002&pasta=ano%20185&pesq=Bispo> Acesso em: 20 de Novembro de 2013. 10 CARVALHO, José Murilo de Carvalho. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996. p. 167.

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legislativa provincial, poucos são os registros de sua manifestação durante os debates acalorados a respeito de projetos, requerimentos e indicações; configurando um mandato pouco expressivo, justificado talvez pela pouca experiência administrativa, já que aquele era seu primeiro mandato como parlamentar.

Essa hipótese é reforçada pelo insucesso do bispo diocesano nas candidaturas a deputado provincial do Pará em 1854 e a senador em 1855, sugerindo a pouca aceitação dos eleitores11 a sua campanha política, pois mesmo se mostrando disposto a assumir cargos de gestão pública ao candidatar-se a várias eleições, não obteve o sucesso desejado ao passo que não fora eleito na maioria das cadeiras a que concorreu, alcançando um número de votos pouco expressivo e inferior a dos outros sacerdotes que também concorriam aos mesmos ofícios políticos. Conquanto, antes desses mencionados percalços em sua trajetória parlamentar, D. José conquistou a preferência dos eleitores ao ser escolhido deputado provincial em 1850. O fato de ter sido o 21° dentre 28 deputados eleitos – tendo uma quantia de votos bem abaixo se comparado aos de sua primeira eleição – traduz uma diminuição no prestígio político do bispo. Além disso, o compromisso com a missão espiritual o levou a renunciar o cargo político, a fim de se dedicar as visitas pastorais pelo sertão da Amazônia entre Julho 1850 a Abril de 1851.

Situação diferente ele vivenciou ao ser eleito deputado pela província do Amazonas à Assembleia Nacional em 1851, quando expectava boas possibilidades de lograr recursos capazes de atender as necessidades da Igreja. Nessa legislatura (1849 – 1852) o bispo diocesano não teve uma participação destacada como o experiente padre político Venâncio Henriques de Resende, mas José Afonso Torres chegou a propor alguns artigos aditivos ao orçamento, um exemplo disso foi a solicitação de quantia em dinheiro para reedificação da Matriz de Nossa Senhora do Rio Negro. O bispo político também proferiu discurso chamando atenção para o problema da baixa remuneração (côngruas) oferecida aos membros do clero:

11 Lembrando que os indivíduos com plenos direitos de votos constituíam uma pequena parte da população já que segundo o Art. 92 da constituição de 1824, eram excluídos de votar os: “1º) Os menores de 25 anos, nos quais se não compreendem os casados e oficiais militares que forem maiores de 21 anos, os bacharéis formados e clérigos de ordens sacras. 2º) Os filhos-famílias que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem ofícios públicos.3º) Os criados de servir, em cuja classe não entram os guardas-livros e primeiros caixeiros das casas de comércio, os criados da casa de comércio, os criados da casa imperial que não forem de galão branco e os administradores das fazendas rurais e fábricas.4º) Os religiosos e quaisquer que vivam em comunidade claustral.5º) Os que não tiverem renda líquida anual 100 000 por bens de raiz, indústria, comércio ou empregos.”

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Um cônego, por exemplo, como o do Pará, com uma côngrua de 450$, não sei como possa pagar aluguel de casa, alimentar-se, vestir-se de uma maneira conveniente ao seu estado e hierarquia, sendo obrigado a apresentar-se na Sé duas vezes por dia. Como é possível que um pároco com uma côngrua de 400$ ou de 300$ possa fazer a despesa com seu sustento e vestuário, socorrer à pobreza que lhe bate a porta e que lhe pede esmola como um dever de justiça e não de caridade, devendo além disto ter condução pronta para acudir, de noite e de dia, com os sacramentos ao fieis.12

O cotidiano do parlamento brasileiro mostra uma distinção entre os

objetivos advogados pelos padres e pela hierarquia católica, entretanto, para a eficácia do projeto romanizador do bispo diocesano – cuja reforma interna da Igreja deveria começar pela formação de um clero ajustado com a tese da Santa Sé – era imprescindível seu comprometimento com a causa dos padres, principalmente no tocante a remuneração dos clérigos, apontando o valor da côngrua como o ensejo da dificuldade de sobrevivência dos sacerdotes e consequentemente da pouca eficiência em suas atividades eclesiásticas. Não obstante, o baixo valor pago aos sacerdotes também era usado como pretexto para a dedicação do clero as atividades públicas de natureza temporal, contudo, mesmo com essas dificuldades, não se pode esquecer que nessa época era frequente a entrada de religiosos na estrutura política do Estado.

No momento de transição da regência para o segundo reinado, a posição da Igreja frente à política estava inserida na lógica do Padroado Régio13. Com o tempo, houve um progressivo afastamento dos religiosos na vida política imperial, mormente a após 1840 (CARVALHO, 1996)14. Já entre as legislaturas de 1843 e 1860, a diminuição dos sacerdotes no parlamento se deu apenas de

12 O CLERO NO PARLAMENTO BRASILEIRO. Coordenação de Américo Jacobina Lacombe. Organização de Fernando Bastos de Ávila. Nota preliminar de Mário Teles de Oliveira e Francisco de Assis Barbosa. Co-edição com o IBRADES, Rio de Janeiro; Câmara dos Deputados, Brasília. Vol. 4 Câmara dos Deputados (1843-1862). 1979. p. 450. 13 O monopólio da propagação da fé por parte da Igreja no Estado era garantido pelo Padroado Régio. No Brasil, apesar da carta constitucional de 1824 permitir a existência de outras religiões que não fosse a católica, acabava limitando ao culto doméstico a expressão dessas outras formas religiosas, como se vê no Art. 5°: “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”. 14 Ibidem. p. 91.

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forma sensível15. Por meio das produções de Francisco Iglésias16 e Vera Medeiros17, construímos os parâmetros da problematização e contextualização do período, reconhecendo as linhas de força da modernização do Estado, ampliação da burocracia inerente com esta modernização e os contrapontos da igreja e da incipiente sociedade civil presentes naquela ambiência. Entre elas a questão dos Liberais, que durante o período de 1840 a 1850 procuraram se estabelecer, sobretudo no que tange aos cargos para presidentes das províncias quanto ao número dos seus componentes na Assembleia. Eles se destacaram em 1840, apoiando a articulação da maioridade de Dom Pedro II para assumir o poder, revertendo o predomínio dos conservadores na época da Regência.

Segundo Iglésias, nessa época, ainda estava se construindo o “espírito partidário” no Brasil. Dessa maneira, foi habitual em meados do XIX a alternância partidária de Liberais e Conservadores para a eleição e manutenção dos seus ideais particulares em detrimento a qualquer tipo de fidelidade partidária, sendo fortes as divergências regionalistas dentro de um mesmo partido.

Durante grande parte de sua estada no poder os Liberais não apresentavam unidade de pensamento. Mesmo estes tendo a pretensão se aproximarem do governo imperial, as discordâncias existentes no interior do governo dos Liberais facilitou a reaproximação do Imperador aos Conservadores.

Em virtude disso, as eleições de 1850 serão bastante significativas, já que marcam a queda da maioria liberal, no poder desde 1844 e a ascensão conservadora. Importante salientar que em meio a um momento onde existe mundialmente uma tendência a maior participação dos Liberais na conjuntura política de seus respectivos locais, por aqui a situação é diferente, na medida em que os Conservadores ganham espaço, sendo um paralelo disso a própria eleição de D. José.

Dessa forma, ao verificar a documentação sobre o referido assunto, pude perceber que ao se dedicar a uma melhoria da Igreja a partir da participação no parlamento, Dom José Afonso não mostra sinais de está contaminado pela modernidade18 – até porque nessa época isso não era um tema em pauta – ao

15 O CLERO NO PARLAMENTO BRASILEIRO. Coordenação de Américo Jacobina Lacombe. Organização de Fernando Bastos de Ávila. Nota preliminar de Mário Teles de Oliveira e Francisco de Assis Barbosa. Co-edição com o IBRADES, Rio de Janeiro; Câmara dos Deputados, Brasília. Vol. 4 Câmara dos Deputados (1843-1862). 1979. 16 IGLÉSIAS, Francisco. "A vida política,1848 / 1866". In: HOLANDA Sérgio Buarque de, org. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel,1969. 17 MEDEIROS, Vera B. Alarcón. Incompreensível colosso: A Amazônia no início do Segundo Reinado (1840-1850). 2006. 18 De acordo com Le Goff, o termo modernidade “torna-se pejorativo no século XIX; os chefes da Igreja e os seus elementos tradicionalistas aplicam-no quer à teologia

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expressar inconformismo com tratamento disferido à Igreja, e pela condição de dependência que muitas vezes os padres assumem perante a classe dominante, acarretando, segundo João Santos (1992)19, na corrupção e destruição de toda a vida espiritual do clero.

Não dar-lhe um ordenado suficiente para sua sustentação é aniquilá-lo, é despi-lo de todo prestígio, e até cativá-lo em seu ministério, porque um funcionário público que sê vê na necessidade de mendigar o pão, vê-se também muitas vezes na necessidade de sacrificar sua consciência e seu dever ao interesse e à vontade dos ricos de quem depende.20

Lacombe elucida o discurso de Dom José Afonso como produto do

momento eclesiástico da época, quando bispo denuncia a dependência do padre com respeito aos ricos, propondo a remediação dessa situação doravante o sustento satisfatório dos presbíteros por parte do poder civil, reduzindo assim os riscos dos sacerdotes ficarem a mercê dos poderosos da paróquia. Em face disso, o bispo parece não se incomodar com a dependência do estado no que diz respeito ao fornecimento dos bens materiais.

Por outro lado, também não pode ser desconsiderado o grau de instrução do prelado diocesano. José Torres foi professor de Filosofia e Retórica no Seminário de Caraça21, em Minas Gerais, local onde realizou parte de sua formação. Essa estrutura intelectual lhe permitiu publicar em 1852, o “Compendio De Philosophia Racional”. Nessa obra, é possível perceber a visão de mundo do bispo, dotada de forte caráter doutrinário, moral e religioso. No trecho abaixo, ele expõe seu pensamento sobre a razão:

A rasão por si mesma não leva ninguem ao erro; por quanto a rasão é a faculdade de perceber distinctamente o nexo das verdades, ora quem assim percebe a ligação que há entre as verdades, tira legitimas illações de princípios verdadeiros, não pode por conseguinte errar: todo o erro por tanto nasce não do uso da rasão, mas de seo

nascida da Revolução Francesa e dos movimentos progressistas da Europa do século XIX (o liberalismo e, depois, o socialismo) quer – o que, a seus olhos, é mais grave – aos católicos seduzidos por estas idéias ou apenas as combatam com tibieza (...).” (LE GOFF, 2003, p. 186). 19 SANTOS, João. A romanização da igreja católica na Amazônia (1840-1880). In: História da Igreja na Amazônia. HOORNAERT, Eduardo (org.). Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1992. p. 301. 20 Ibidem. p. 450. 21 Caraça é considerado o reduto da romanização, onde os padres lazaristas contribuíram significativamente para a introdução o Ultramontanismo no Brasil.

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abuso, e por isso, quando dividimos a rasão em recta, e não recta, só queremos com isto significar que se dá abuso da rasão(...)22

Vale lembrar que a razão foi designada pelo liberalismo como instrumento de reflexão sobre condição de submissão absorvida pela sociedade ante o Estado e Igreja. Diante desse contexto, conforme Ivan Manoel (2004)23, já se fazia explicitado nas publicações de Gregório XVI, e de forma mais contundente nos escritos de Pio IX24, a tendência do mundo católico à rejeição ao conjunto teórico e filosófico da modernidade, pois o verdadeiro saber seria aquele que levaria ao entendimento da doutrina cristã, e consequentemente ao conhecimento de Deus. Mas, em seu livro, o bispo não condenava indiscutivelmente a faculdade da razão, desde que ela fosse usada de forma adequada aos olhos da Igreja, vendo na filosofia um dos meios de melhor conhecer os fundamentos da fé, e utilizando-a como arma contra os ataques da impiedade, do cisma, e da heresia. Isto posto, o compêndio tinha o propósito de formar religiosos direcionados numa doutrina pura, aproximando-os das teses da Santa Sé. Consequentemente, mediante forte formação moral e teológica eles estariam preparados para imprimir ao tradicional catolicismo luso-brasileiro as marcas do catolicismo romano.

Nesse sentido, a aplicação da teoria gramisciniana parece adequada no presente trabalho, já que o bispo, enquanto representante da casta de intelectuais tradicionais, busca combater o mau uso da faculdade da “razão”, empregada pelos adeptos da modernidade, que compõe o grupo de intelectuais orgânicos, balizando a igreja como o escudo da tradição contra o secularismo. Considerações finais

Em decorrência dos fatos mencionados, é importante perceber que

concomitantemente ao bispado, no qual o processo romanizador já se iniciará na Amazônia, José Afonso Torres envolveu-se com a política. A documentação até agora revelou uma intensa preocupação do bispo com a formação e

22 TORRES, Afonso de Moraes. Compêndios de Philosophia Racional. 1952.p. 55. 23 MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da História. Tempo e eternidade no pensamento Católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004. p. 45-51. 24 Promulgado por Pio IX em 1864, o Syllabus condenava 80 erros que contrariavam a doutrina católica na época, entre eles a o papa condenava a seguinte visão sobre a razão: “A razão humana, considerada sem relação alguma a Deus, é o único árbitro do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, é a sua própria lei e suficiente, nelas suas forças naturais, para alcançar o bem dos homens e dos povos.”

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orientação dos religiosos no momento em que vão repassar a doutrina católica aos fieis, bem como as fontes de sua vida política passam a imagem de um religioso preocupado com os assuntos da Igreja mesmo nos momentos de execução de cargos políticos, como por exemplo, durante o mandato de deputado pela província do Amazonas na Assembleia Nacional, onde ao invés de manifestar preocupação com os grandes problemas da nova província, Dom José profere seus discursos vislumbrando a melhorias aos negócios eclesiásticos. Devido a isso, José Afonso Torres não parece se encaixar na categoria de padres que se tornaram “servidores do governo e parasitas sociais” durante o Império, apontada por John Lynch (2001)25, visto que, o referido bispo se vale dos instrumentos políticos adquiridos, para auxiliar na promoção da reforma interna da Igreja Católica.

Deste modo, ao analisar a conjuntura política e religiosa da época, surgiram indagações que nos levaram a buscar maior aprofundamento sobre o ingresso do prelado diocesano na política, assim como compreender os limites do bispo ao se submeter às prerrogativas do poder temporal, além de analisar a forma como ele defende a autonomia da Igreja estando a serviço do Estado na qualidade de deputado provincial, demonstrando até que ponto a prática política do bispo serviu para alavancar a plataforma de sua missão católica. Ao que parece, a presença do bispo da diocese do Pará na política não presume o alijamento de sua identidade religiosa, pelo contrario, sua atuação nos espaços oficiais de poder do Estado é entendida como resultado de uma cultura política assinalada fortemente pelos valores religiosos. Assim, ao mesmo tempo em que buscava garantir o monopólio da fé ao catolicismo romanizado, ele também representava o Estado no papel de deputado, contudo, sempre priorizando seu múnus pastoral durante seu bispado. Claro que ainda este é um percurso de uma conclusão provisória, uma vez que a análise da documentação ainda não foi finalizada, porém, o resultado obtido está em consonância com o que a documentação examinada pôde até aqui oferecer.

25 LYNCH, John. A Igreja católica na América Latina, 1830 - 1930. In: História da América Latina. Vol. IV. BETHELL, Leslie (org.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. Ibidem. p. 424.

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MEMÓRIA, IMAGINÁRIO E PATRIMÔNIO CULTURAL EM COMUNIDADES AMAZÔNICAS1

Decleoma Lobato Pereira2

Resumo O presente texto trata da relação estabelecida pelos moradores da comunidade de Mazagão Velho, no estado do Amapá, com seu patrimônio cultural. A relação que as gerações presentes mantêm com esse patrimônio, sobretudo o imaterial das festas religiosas entendidas como herança dos antepassados que precisa ser preservada, se distingue enormemente da forma distanciada como se relacionam com os bens arqueológicos. O objetivo é buscar pensar, junto com as comunidades e com os gestores públicos, a valorização e o incentivo às práticas e manifestações culturais que compõem o patrimônio cultural imaterial e assegurar melhores condições para a conservação dos bens materiais.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Patrimônio Arqueológico, Festas Religiosas, Mazagão, Amapá.

A cultura material é carente de significado por si mesma, e só adquire uma dimensão ativa e ideológica dentro de um sistema cultural determinado3.

Tratando-se do envolvimento do patrimônio cultural tanto material

(arqueológico) quanto imaterial (festas religiosas), esclareço que os conceitos de preservação e conservação embora similares, aqui são empregados de forma ligeiramente distinta. Entendo preservação como salvaguarda, defesa, continuidade, mas sem a expectativa da imutabilidade, portanto se aplica melhor

1 Extraído da monografia “A Mãe de Deus, a Sereia e o Guerreiro: memória, patrimônio arqueológico e identidades étnico-raciais em comunidades amazônicas”, orientada pela Profª. Dra. Dominique Tilkin Gallois, no Curso de Especialização em Patrimônio Arqueológico da Amazônia. UEAP, 2011. *Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará. 3 SENATORE, Maria Ximena & ZARANKIN, Andrés. Leituras da Sociedade Moderna – Cultura Material, Discursos e Práticas. Arqueologia da Sociedade Moderna na América do Sul: cultura material, discursos e práticas. Buenos Aires: Ediciones Del Tridente, 2002: 9.

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ao patrimônio imaterial, muito mais sujeito à dinamicidade da cultura. Conservar é pensado no sentido de manter em bom estado, proteger contra danos. É um conceito que cabe melhor, no meu entendimento, se aplicado ao patrimônio material.

Penso na preservação através do reconhecimento, valorização, dos bens e práticas culturais e de seus fazedores. Conservação é pensada com viés maior de permanência.

O estudo que originou este texto se enquadra no campo da Arqueologia Histórica, sob o ponto de vista pós-processualista com foco na memória social e na relação das comunidades com o patrimônio cultural, com uso de sua metodologia, associada à História Oral e ao trabalho etnográfico, o que permitiu construir uma interpretação a partir da análise das narrativas orais, mitos, da etnografia das festas religiosas e do estudo das condições de conservação das estruturas e artefatos arqueológicos.

Estudei o patrimônio arqueológico (ruínas e ossos retirados de uma igreja antiga, em Mazagão Velho) no intuito de compreender o imaginário construído sobre ele e as condições de armazenamento e cuidados tomados em relação ao mesmo; e as festas religiosas na perspectiva de compreender os diferentes significados e funções que possuem para os grupos envolvidos. A pesquisa revelou que servem para reforçar os laços e as relações sociais, preservam a memória das famílias mantenedoras, sobretudo naquelas comunidades onde a oralidade prepondera na transmissão dos conhecimentos locais.

Neste sentido, as festas podem ser pensadas como “uma fala, uma memória e uma mensagem”,4 que servem para periodicamente relembrar, reforçar as memórias, os mitos, e conseqüentemente asseguram sua continuidade, oferecendo oportunidade para novas lembranças e vínculos se constituírem.

Assim, é na memória, enquanto representações sociais fundamentadas em fatos considerados de relevância pessoal e ou coletiva, que se sustenta o processo de construção da identidade cultural dos moradores de Mazagão Velho, e tem como suporte a oralidade, considerando-se que a escrita, como mecanismo de registro é pouco utilizada. Outros meios como os audiovisuais somente agora começam a fazer parte da realidade de muitos moradores do interior. Portanto, a forma de transmissão da memória coletiva nessa comunidade se processa como transmissão de conhecimentos tradicionais.

Tradição entendida “não como um corpus fechado que persiste no tempo”, mas como processo de transmissão de conhecimentos que diz respeito a uma reprodução social onde a mudança convive com a variação inerente ao ato da

4 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Cultura na rua. Campinas, SP: Papirus, 1989:8.

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repetição5 e na qual importa preservar tanto os elementos característicos em si, quanto àquilo que os distingue e que origina a identidade.

Identidade definida na perspectiva de Stuart Hall como uma “‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente nos sistemas culturais que nos rodeiam; e expressas a partir da posição-do-sujeito ou do lugar que ocupamos”.6 Considero pertinente pensar o conceito no sentido processual como parte da construção de uma identidade “mazaganense” contemporânea.

Pertinente também é o conceito de imaginário como conjunto das imagens e relações de imagens produzidas pelo homem a partir de formas universais e invariantes, formadas em contextos particulares historicamente determináveis.7 No contexto em apreço, as imagens do presente entrelaçam-se com a ideia de um passado cuja continuidade se dá pela preservação das festas religiosas, entendidas como herança dos antepassados, portanto como patrimônio.

Sem esquecer, todavia, que os bens materiais e imateriais que os grupos se apropriam e reconhecem como importantes se constituem de significados diversos que os referenciam. A escolha que se faz do patrimônio é parcial, e definida, em determinados contextos históricos, por grupos ou indivíduos e não pela totalidade da população, e nem sempre o olhar de fora é suficientemente abrangente para perceber que talvez o observador e o observado não partilhem a mesma noção de patrimônio, como alerta Bezerra de Meneses (1994). 8

Patrimônio Imaterial: festas religiosas

Festejar os santos católicos é uma das características principais da

comunidade de Mazagão Velho, que possui um calendário anual de festas que ultrapassam a casa das dezenas e onde se destacam as Festas de São Tiago e de Nossa Senhora da Piedade, as quais acreditam os moradores, teriam sido introduzidas na região pelos mazaganistas transferidos da África para a Amazônia, na segunda metade do século XVIII. Uma lenda de origem da devoção a Nossa Senhora da Piedade faz associação com o encantamento de uma jovem branca, nascida de pais negros, em África, tornada uma entidade espiritual, a sereia, conhecida atualmente entre os afro-religiosos como Iemanjá.

5 COHN, Clarice. Culturas em transformação: os índios e a civilização. São Paulo em Perspectiva. 15 (2) 2001:38. 6 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 7 TEIXEIRA COELHO. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999. 8 BEZERRA DE MENESES, Ulpiano. Identidade Cultural e Arqueologia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nº 20, 1994.

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Assim, na festa da Piedade estão presentes elementos do catolicismo, a devoção à Mãe de Deus, associada a entidades do panteão afro-religioso, além dos instrumentos e ritmos acentuadamente de influência negra. É perceptível também a presença da pajelança cabocla através da referência às entidades encantadas nas letras de algumas músicas de batuque. A festa de São Tiago, por sua vez, tem como ápice os dias 24 e 25 de julho, com a representação de uma grande batalha travada entre mouros e cristãos, no continente africano, no início da Idade Moderna. Trata-se de uma tradição que a memória oral diz ter cerca de 230 anos, trazida do Marrocos pelos colonizadores cristãos. A historiografia menciona ter iniciado, em 1777, como comemoração à coroação da rainha portuguesa Dona Maria I.9

De toda forma, atualmente a festa de São Tiago é uma reafirmação anual dessa memória, imaginada ou não, e mais que isso, da fé e devoção dos mazaganenses aos santos Tiago e Jorge, soldados desconhecidos que teriam lutado ao lado dos cristãos pela expansão do cristianismo.

Logo, as festas religiosas possuem inúmeros sentidos, e a devoção aos santos é um deles, evidentemente, mas também representam momentos de sociabilidade e oportunidade para congregar familiares dispersos. Também propiciam geração de renda com a venda de alimentos, bebidas, e oferta de serviços. Ao mesmo tempo servem para formar, consolidar e preservar muitas formas de interação cultural e relações sociais.

Estudos mostram redes de relações estabelecidas entre comunidades tradicionais no passado, e que não eram sustentadas pela escassez de artigos, como se poderia pensar, mas por outros fatores, além das razões econômicas e utilitárias. Entre os quais a existência de um sistema diferente de valoração dos relacionamentos interpessoais, que está associado às circunstâncias e aos interesses dos envolvidos, como o histórico do relacionamento entre as partes e como mecanismo de estabelecer, firmar parcerias e diversificar alianças. 10

A relação como valor se baseia na reciprocidade. Cada presente ofertado, cada visita realizada, cria a expectativa de que o outro haja de forma semelhante. As festas religiosas exercem também esse papel, o de assegurar as redes de relações mantidas entre as comunidades e reforçam os laços sociais. Um costume adotado por muitos grupos é convidar para suas festas os fazedores

9 Ver: SILVA, Maria Cardeira da; TAVIM, José Alberto R. Silva. Marrocos no Brasil; Mazagão (Velho) do Amapá – a festa de São Tiago. In Actas do Congresso Internacional Espaço Atlãntico de Antigo Regime: poderes e sociedades. 2005; VIDAL, Laurent. Mazagão a cidade que atravessou o Atlântico – Do Marrocos à Amazônia (1769-1783). São Paulo: Martins Fontes, 2008. 10 BARBOSA, Gabriel Coutinho. Das trocas de bens. In GALLOIS, Dominique Tilkin. Rede de relações nas Guianas. São Paulo: Associação Editorial: FAPESP, 2005.

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das festas de outros santos. Isso cria a expectativa de retribuição da visita e favorece a circulação entre as comunidades.

Desta forma, as festas religiosas compreendem redes de troca de saberes, de experiências, de afetividades, onde o que importa é a manutenção dos relacionamentos ocorrida por ocasião dos encontros e reencontros. Também envolvem a preservação da memória dos mortos, mormente das famílias envolvidas em sua realização que, muitas vezes, se juntam somente nos períodos festivos, nessas ocasiões frequentementente, recordam os entes queridos falecidos.

Os moradores de Mazagão Velho conseguem articular história, memória e o imaginário coletivo, através das narrativas de suas próprias origens e da devoção aos santos. Mitos particulares como o da festa de Nossa Senhora da Piedade (relação com as crenças afro-brasileiras) e do cavaleiro desconhecido (São Tiago), nas lutas travadas na África entre cristãos e mouros, são reforçados a cada ano.

Arqueologia, patrimônio arqueológico e conservação

A Arqueologia atenta primordialmente para o estudo dos vestígios materiais

deixados pelas populações do passado objetivando compreender as relações sociais desenvolvidas nos processos mantenedores da vida coletiva. Sujeita às mudanças e transformações que afetam a produção do conhecimento de maneira geral, ela não consegue dar conta definitivamente, em cada momento, da realidade em que a vida do passado se preservou nas coisas materiais. E o que é tomado no presente como o conhecimento de maior profundidade e mais recente, no futuro poderá se tornar obsoleto, suplantado pelas novas descobertas, aperfeiçoamentos e inovações. Daí a importância de assegurar as melhores condições possíveis de conservação das fontes arqueológicas para fins de estudos posteriores, garantindo às gerações futuras a possibilidade de acessar “per si” as informações guardadas dessa forma.

Para a prevenção de danos ao material arqueológico é necessário tomar providências que vão desde o planejamento da retirada, resgate, embalagem, transporte, tempo de permanência na nova condição, até a preparação do ambiente onde será guardado.11 Qualquer falha ou procedimento inadequado nessas etapas poderá comprometer o resultado do trabalho e até mesmo a perda do material.

11 TENREIRO, Yolanda Porto. Medidas urgente de Conservación en Intervenciones Arqueológicas. CAPA 13 Criterios e Convencións en Arqueología da Paisaxe. Laboratório de Arqueoloxia e Formas Culturales, IIT, Universidade de Santiago de Compostela, 2000.

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Entender a questão dessa forma, no entanto, não significa que em todas as situações, Arqueologia e Conservação andam juntas, ou tomem todos os cuidados necessários em relação ao material que recolhem. Há situações em que tanto os arqueólogos quanto os órgãos responsáveis pelo controle e/ ou pela gestão não tomam as providências para garantir a sobrevivência do material para uso e pesquisas futuras. Podemos exemplificar através do que foi feito, em Mazagão Velho, como resultado da escavação das ruínas de uma igreja do século XVIII ou XIX, onde foram encontrados e retirados objetos e ossos humanos.

Atualmente parte desse material, os ossos dos velhos mazaganenses, se encontra armazenado em uma edificação de cerca de cinco metros de comprimento por três metros de largura, na parte da frente, e uma extensão de cerca de cinco metros de largura e dois metros de comprimento, na parte posterior do edifício. Uma porta de ferro separa os dois ambientes. O prédio é construído em alvenaria e o espaço onde ficam guardadas as urnas possui três fileiras de prateleiras ao longo das paredes. São quarenta e três urnas de vidro com aproximadamente cinquenta por quarenta e dois centímetros, algumas com divisões internas. A ventilação do ambiente é feita por duas aberturas nas paredes laterais com cinquenta e seis centímetros de diâmetro.

Já se percebe um esfarelamento dos ossos, causado provavelmente pela inexistência de maiores cuidados com a temperatura (climatização), iluminação adequada e/ou controle da umidade relativa do ar no ambiente onde estão armazenados. E como o lacre de algumas urnas se encontra danificado, possivelmente está ocorrendo proliferação de micro organismos no interior dos recipientes o que acabará por destruir os ossos.

Sobre as ruínas da igreja foram construídas passarelas para que as visitas não afetem as estruturas, no entanto não existe no local nenhuma outra proteção em relação às intempéries climáticas da região com excesso de chuvas no inverno, e umidade do ar causada pela concentração da vegetação no entorno, durante o verão. Não existem estruturas explicativas no local.

Antes da intervenção arqueológica, embora a população soubesse da existência das ruínas da igreja e dos túmulos em seu interior, raramente tinha contato com a área pensada como “espaço meio restrito” às visagens e assombrações.

Compreender o imaginário construído pelas comunidades sobre o patrimônio arqueológico, no meu entendimento, é extremamente importante para os trabalhos que envolvem sua gestão e conservação. No caso de Mazagão Velho mesmo não tendo encontrado uma quantidade substancial de relatos envolvendo as ruínas, os que chegaram a mim mostram que a população havia construído, apesar de pequeno, um imaginário acerca desses bens arqueológicos.

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Alguns relatos fazem menção ao sepultamento de um padre no interior da igreja, cujo corpo teria sido retirado tempos depois por membros de sua congregação e levado para sua terra natal, e que, devido a isso, os moradores costumavam levar flores e acender velas no local, nos dias de finados.

Contam também de um sujeito encontrado mexendo nas ruínas, há muitos anos, e que teria retirado moedas e outros objetos de ouro. Quando a população tomou conhecimento da presença do indivíduo no local e tentou impedir a retirada do material ele conseguiu fugir. Tratava-se de um empresário do ramo dos transportes marítimos. As pessoas acreditam que era dinheiro enterrado e recebido em sonho. Algum tempo depois um barco de propriedade desse cidadão naufragou, num dos maiores acidentes marítimos do Amapá. A relação entre os acontecimentos, caso haja, ninguém sabe explicar.

De toda forma, se percebe que a partir da intervenção arqueológica - que expôs as ruínas e o que havia em seu interior - as imagens de local assombrado deixaram de existir para a população mazaganense. Assim, a Arqueologia realizada desmistificou o local e não construiu novas imagens que pudessem substituir as anteriores e construir novos referenciais aos quais a comunidade pudesse utilizar para maior aproximação com esse patrimônio.

A prospecção arqueológica realizada em Mazagão Velho aconteceu por solicitação da 2ª Superintendência Regional do IPHAN, com o intuito de verificar a correspondência espacial do atual povoado com a antiga Nova Mazagão descrita na documentação histórica, e avaliar o potencial de vestígios arqueológicos da localidade, segundo o responsável pelo trabalho.12 Todavia, é perceptível a partir do depoimento de técnicos e administradores públicos, que foi uma ação imediatista, sem preocupação com a continuidade e com a gestão dos bens encontrados.

Da parte dos profissionais da arqueologia13 havia o entendimento que o trabalho consistiria num grande passo em direção ao conhecimento da história da região e do aproveitamento econômico desses bens em benefício da população. Entretanto, a forma como foi feito não produziu esses resultados.

Segundo o relatório, a prospecção realizada se limitou a uma antiga superfície de ocupação provavelmente do final do século XIX, mas localizou as ruínas de duas paredes de uma igreja que teria cerca de 600m², com traçado semelhante a outras construções atribuídas ao italiano Sambucetti, todavia em local diferente do projetado na planta do povoado construída pelo engenheiro.

12 Relatório do Arqueólogo Marcos Albuquerque, da Universidade Federal de Pernambuco, 2004. 13 Discurso proferido pelo Prof. Dr. Marcos Albuquerque durante solenidade de inauguração do mausoléu, em 23 de janeiro de 2006.

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Quanto à técnica de construção e o material utilizado, descobriu-se que difere do que se conhecia a partir da documentação histórica de que seriam apenas de taipa e madeira. As ruínas mostram que as paredes estruturais da igreja foram construídas de pedra com esteios grossos de madeira lavrada. A coberta era de telhas de barro. Os vestígios encontrados também permitem concluir que o interior da igreja era decorado com pinturas e desenhos coloridos.

Com a descoberta das paredes externas da igreja foram identificadas sobre a linha dos alicerces diversas marcas de cova e fragmentos de ossos humanos. Também identificaram outras sepulturas sobre os alicerces, provavelmente, feitas após os mesmos deixarem de ser visíveis. A localização dos sepultamentos revela que foram realizados após a igreja perder o uso.

Logo, os restos mortais encontrados pertencem a gerações não tão recuadas no tempo, o que torna mais instigante tentar compreender porque os moradores atuais não guardam a memória desses indivíduos, não os consideram como antepassados e não têm por eles o mesmo cuidado que têm em relação ao patrimônio imaterial das festas religiosas, o substrato da memória familiar.

O conhecimento produzido a partir do trabalho arqueológico pouca contribuição ofereceu a comunidade que hoje não tem condição de fornecer muitas informações às pessoas que visitam o local. Não foram repassados os resultados obtidos. Não houve estudos mais aprofundados sobre as ruínas nem sequer para a datação precisa de sua edificação que pudesse contribuir para dirimir as dúvidas colocadas pela historiografia. Em relação aos ossos encontrados não houve estudos químicos ou físicos, de nenhum tipo, que servisse para identificá-los, e os objetos achados junto a eles foram retirados e levados, também sem propiciarem o conhecimento que servisse para identificar as pessoas sepultadas, mesmo que fosse meramente sua condição social.

E o registro do contexto da escavação presente no relatório se fosse tornado público, numa linguagem acessível e estimulante, poderia contribuir com a comunidade, pois favoreceria sua identificação com os bens, principalmente com os restos humanos, atribuindo a eles, se não o caráter de relíquias, pelo menos o entendimento de antepassados, portanto elementos capazes de efetuar a ligação das gerações presentes com as gerações passadas. Não aconteceu em Mazagão Velho. Não se construíram narrativas sobre os bens arqueológicos.

O que realmente se produziu foi uma intensa divulgação tanto na mídia amapaense quanto nacional, sobretudo por ocasião da solenidade realizada para a inauguração do mausoléu que contou com a presença de várias autoridades brasileiras, de Portugal e do Marrocos. Mas, de fato, quem realmente se beneficiou? Quem se promoveu com a divulgação?

Não o patrimônio arqueológico de Mazagão Velho, certamente, que não recebe muita atenção do poder público, da própria comunidade, e menos ainda

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dos pesquisadores que o localizaram, mas que não deram continuidade aos estudos e nem atenção a sua conservação. O trabalho dos arqueólogos falhou pela falta de instrumentalização da comunidade (incluindo neste sentido os gestores públicos) sobre a importância dos bens descobertos. E o que se poderia pensar em termos de aproximação com os moradores consistiu em empregar mão de obra braçal local e algumas poucas palestras que não surtiram um efeito duradouro.

É de se concluir, portanto, que as festas religiosas constituem fator de agregação identitária, diferentemente dos bens arqueológicos, porque são entendidas como herança dos antepassados que precisa ser preservada, e em torno delas se construíram muitas histórias, muitas narrativas. As festas servem para reforçar os laços e as relações mantidas entre os indivíduos e preservar a memória das famílias e das comunidades. Em relação ao patrimônio arqueológico a intervenção rompeu o pequeno laço que havia com a comunidade ao quebrar o imaginário construído e não ofereceu outros referenciais aos quais os moradores pudessem utilizar para maior envolvimento com esses bens e com sua preservação.

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O DIABO ESTÁ ENTRE NÓS: O DISCURSO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS ENTRE 1980 A 2002

Isa Prazeres Pestana1

Resumo

Este trabalho analisa o discurso e as práticas religiosas da Igreja Universal do Reino de Deus, no período de 1980 a 2002, entendidos como representação, dando ênfase à guerra contra o diabo e à apropriação por essa Igreja de símbolos dos cultos afro-brasileiros. O estudo considera ainda a inserção dessa entidade religiosa em São Luís – MA. Palavras-chave: Igreja Universal; Discursos; Diabo; Apropriação; Cultos afro-brasileiros; Representação.

Introdução

Característica marcante do mundo atual são as transformações – políticas,

econômicas, sociais e culturais. Dentre elas se encontra, também, a religião que surge e muda juntamente com a história, mas que carrega um sentido mais duradouro em meio às mudanças mais intensas que ocorrem na vida dos indivíduos e das comunidades.

Se de um lado o indivíduo, por força dessas transformações acaba tendo a sua identidade diluída, a religião lhe possibilita uma referência, a construção ou a reconstrução de uma identidade, disponibilizando posturas sociais, hábitos, preferências alimentares ou estéticas, ou seja, oferece um significado para o mundo. Dessa forma, entender uma religião ou um segmento religioso é compreender a sociedade e a cultura a que ela se insere.

O ponto de partida desse artigo é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) que faz parte de um segmento religioso denominado neopentecostalismo, originado a partir do pentecostalismo brasileiro, no final dos anos 70 do século XX. Diferenciado por sua estrutura empresarial que tem por base a Teologia da Prosperidade, caracterizada pela utilização intensa da mídia, pela tendência à acomodação ao mundo e pela ênfase à guerra contra o diabo dentre outras.

Este segmento religioso aplica-se na busca constante de soluções para os problemas econômicos e sociais do ser humano, utilizando-se de um discurso vinculado às mudanças existentes na sociedade, de forma carismática e objetiva;

1 Mestranda em História pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

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por essa razão, tem sido um fenômeno de expansão a partir da década de 80, rompendo o campo religioso brasileiro se expandindo pelo mundo.

A IURD é a principal representante das igrejas neopentecostais e apresenta um grande crescimento, gerando incomodo em grupos de cristãos históricos e fazendo um combate aberto a elementos das religiões brasileiras de origem africana, já tendo, inclusive, ocorrido invasões de terreiros e perseguição a líderes das religiões afros na Bahia e no Rio de Janeiro (FERRARI, 2007, p. 111)2. Boa parte da notoriedade da IURD se deve aos vários escândalos que esteve envolvida, entre eles acusações frequentes de vilipêndio religioso e agressões a participantes da Umbanda, como também o episódio protagonizado pelo Bispo Sérgio Von Helde, que ficou conhecido como “chute na Santa” 3. Assim, é uma igreja conhecida por reavivar o clima de intolerância no campo religioso brasileiro.

Característica marcante da IURD é a ênfase na guerra contra o diabo, identificado com os cultos afro-brasileiros4. A Universal em São Luís não foge dessa característica. O embate entre a IURD e os cultos afro acontece através de depoimentos de fiéis, bem como dos seus ministros, tendo como palco os templos e os programas de televisão.

2 FERRARI, Odêmio Antonio. Bispo S|A-A Igreja Universal do Reino de Deus e o exercício do poder. SP: Editora Ave-Maria, 2007. 3 O “chute na santa” ocorreu em 12 de outubro de 1995, dia de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil. O Bispo Sérgio Von Helde, em um programa transmitido pela Rede Record, tocava com os pés e os punhos a imagem da santa, ironizando a imagem. Depois desse acontecido ocorreu um alarido de guerra santa, porém esse embate se estabeleceu mais no campo midiático entre a Rede Globo, representando a Igreja Católica e a Rede Record, representando a Igreja Universal. Percebe-se que mesmo depois de mais de 10 anos o assunto ainda é lembrado por alguns segmentos religiosos, servindo de munição para o ataque à IURD. 4 Cultos afro-brasileiros: engloba uma variedade de manifestações religiosas existentes no Brasil, algumas originada há muitos anos de religiões africanas tradicionais, outras organizadas no Brasil há algumas décadas , onde os cultos a entidades espirituais africanas, o transe mediúnico e a integração de elementos do catolicismo são bastante conhecidos. Entre elas podem ser citadas: o Candomblé, surgido na Bahia e hoje encontrado em muitas cidades brasileiras. (FERRETTI, Mundicarmo. As Religiões Afro-Brasileiras no Maranhão. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore de número 22 de 2002).

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Inserção da IURD em São Luís A Igreja Universal foi implantada no nordeste a partir de programas de rádio

ou televisão apresentados por Carlos Magno (ex-líder da IURD no nordeste). Em entrevista ao Jornal da Tarde ele explicou o processo de implantação das Igrejas:

(...) a implantação da igreja é praticamente igual em qualquer lugar. Em João Pessoa, por exemplo, consegui um horário na rádio e comecei a pregar o evangelho. Arranjei um clube e marquei para fazer reuniões aos domingos. Muita gente ia porque ouvia o rádio. Começa assim: um núcleo a partir e um programa de rádio ou televisão e dali nasce à igreja. Só então você aluga um lugar para reunir as pessoas. Foi assim que começou a Universal no Rio, com horário alugado na Rádio Metropolitana, na época um programa de 15 minutos. Em Natal, eu implantei a igreja e consegui um horário na televisão, coloquei na TV Ponta Negra, do senador Carlos Alberto e depois de 15 dias fui lá fazer a reunião. E assim implantei a Universal em todos os Estados do Nordeste, exceto no Ceará5 (MARIANO, 1999, p.69). 6

A Igreja Universal, durante a sua implantação, segue o estilo de uma

empresa comercial, ou seja, faz num primeiro momento propaganda na mídia, através de programas da Igreja, formando um núcleo de espectadores e futuros membros e depois abre suas portas para iniciar seus cultos. Isso é percebido na implantação da IURD no nordeste, através desta entrevista, bem como nos programas de rádio ou televisão quando é aberto um novo templo.

A data precisa da vinda da IURD para São Luís não é determinada, mas iniciou seu trabalho nesta cidade por volta de 1985. Possui cerca de 20 templos7 na capital, em locais estratégicos e de fácil acesso, contribuindo para a sua divulgação. Tem o seu Templo Maior8 localizado na Rua Oswaldo Cruz, número 1600, no centro da cidade, próximo às paradas de ônibus, facilitando a locomoção e a frequência de seus fiéis.

Em São Luís, a IURD seguiu as diretrizes das demais igrejas, de acordo com o centralismo da cúpula que a caracteriza. Os templos da Universal são abertos,

5 Jornal da Tarde (2/4/1991). 6 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo. Loyola, 1999. 7 Segundo endereços encontrados na Listel 2014. 8 O Templo Maior da IURD é a sua Igreja principal (sede) no Estado, local onde acontecem as grandes concentrações de fiéis e onde os principais líderes realizam os cultos.

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em sua maioria, em tempo integral, oferecendo orações para todos que procuram o seu serviço religioso.

O discurso da IURD e a guerra contra o diabo

Uma das características da IURD é a ênfase na guerra contra o diabo,

identificado com os cultos afro-brasileiros. A Universal em São Luís não foge dessa característica. O embate entre a IURD e os cultos afro acontece através de depoimentos de fiéis, bem como dos seus ministros, tendo como palco os templos e os programas de televisão que podem ser encontrados no Jornal Folha Universal9, bem como livro Orixás, caboclos e guias escrito por Edir Macedo, líder da IURD, obra que circula no país desde a década de 80, basilar para a compreensão do discurso iurdiano acerca das questões como o diabo, o mal, o sofrimento e as religiosidades afro-brasileiras. A importância de estudá-la se dá pelo fato de ser paradigmática e polêmica, doutrinária, e matriz das práticas e dos discursos da IURD e também para se perceber as mudanças já ocorridas desde o lançamento do livro até hoje no discurso da IURD.

Para a melhor compreensão do discurso da IURD será trabalhada a noção de representação. Mas, o que envolve a noção de representação?

A representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele. A representação envolve processos de percepção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão (PESAVENTO, 2003, p.40) 10.

As representações podem incluir os modos de pensar e de sentir, inclusive coletivos, mas não se restringem a eles. Segundo Dosse (2003, p.270) 11, “Roger Chartier situa o novo espaço de pesquisa no cruzamento entre uma história das práticas socialmente diferenciadas e uma história das representações que tem como objetivo dar conta das diversas formas de apropriação”.

Duas noções centrais são apontadas acima, apropriação e representação. Para Chartier a apropriação visa uma história social dos usos e das

9 A Folha Universal surgiu em 1992 e tem como slogan “Um jornal a serviço de Deus”. É um jornal semanal que tem mais de um milhão de exemplares de tiragem, demonstrando a sua importância nas atividades da Igreja. Sua temática é bastante diversificada, como: esporte, política, utilidade pública, economia, notícias internacionais, a palavra do Bispo Macedo, medicina e saúde, folha mulher, programação cultural, turismo, casos incríveis (depoimentos de fiéis) e propagandas em geral. O jornal também possui uma versão digitalizada no www.folhauniversal.com.br. 10 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 11 DOSSE, François. O império do sentido: a humanização das ciências humanas. Bauru. SP: EDUSC, 2003.

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interpretações, relacionados à suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os produzem. E a representação designa o modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é construída, pensada e dada a ler por diferentes grupos sociais (DOSSE, 2003).

As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que, construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão.

Em primeiro lugar, é bom lembrar que a visão da IURD sobre as religiões afro-brasileiras é consequência do desenvolvimento do sistema teológico e doutrinário do pentecostalismo, surgido no Brasil no início do século XX, sobretudo a partir das décadas de 1950 e 1960, período que surge o Deuteropentecostalismo12.

O que leva a IURD a associar os cultos afro-brasileiros ao diabo e a atacar esses cultos que segundo o Censo (2010), representam cerca de 0,3 % da população brasileira13?

Em primeiro lugar, é notório que esses valores (0,3%) são subestimados, pois existem muitos indivíduos adeptos tanto das religiões afro quanto do catolicismo. O ataque a essas religiões vai além de uma estratégia proselitista junto às populações de baixo nível socioeconômico; visa antes de tudo monopolizar seus principais bens no mercado religioso, como as mediações mágicas e a experiência do transe religioso, transformando-os em um sistema de significados interno à IURD.

A IURD ao confirmar e identificar a existência de demônios que na sua visão são as entidades das religiões afro-brasileiras e se utilizar dos símbolos dessas religiões está ficando cada vez mais parecida com esses cultos. Mas a diferença entre ambas é que na visão da IURD ela adora a Deus e as religiões afro-brasileiras adoram os demônios. Mas, segundo SILVA (2005)14 o que existe são trocas simbólicas entre essas religiões.

O livro Orixás, caboclos e guias, faz uma análise sobre os demônios e as maneiras com que eles agem na vida das pessoas, fazendo uma denúncia das

12 Pesquisadores, como Ricardo Mariano (1999), começaram a ordenar o pentecostalismo em três categorias, para melhor analisá-los, levando em consideração a dinâmica histórico-institucional e as mudanças ocorridas na mensagem religiosa, o Deuteropentecostalismo é a segunda categoria, tendo como uma de suas principais características a cura divina. Como exemplo, cita-se a Igreja “Deus é Amor” (São Paulo, 1962) e a Igreja “Brasil Para Cristo” (São Paulo, 1955). 13 MARIANO, Ricardo. Mudanças no campo religioso brasileiro no censo 2010.Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 24, p. 119-137, jul./dez. 2013. 14 SILVA, Vagner Gonçalves. Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais: uma análise simbólica. Revista USP, n° 67. setembro/novembro 2005.

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manobras satânicas através do Kardecismo, da Umbanda, do Candomblé. O livro foi escrito tanto para os frequentadores da Igreja Universal quanto para membros de outras denominações religiosas.

A obra analisada é a 15ª edição datada de 2002, contendo em sua capa a imagem do orixá Oxalá (paramentado de branco) sobre um fundo vermelho e preto (cores de Exu), tendo à sua frente a estátua de um caboclo15 e de São Jorge, fios de contas, guias16; ao centro, uma caveira é rodeada por velas acesas em círculo. Tratando-se de uma montagem de peças de vários cultos afro, como o Candomblé17, a Quimbanda18, a Umbanda19, na forma estilizada de um despacho, contendo um poder imagético bastante sugestivo.

A frase escrita na capa do livro que diz: “mais de três milhões de exemplares vendidos” chama a atenção, pois confirma a ideia de que o livro rompe o campo da IURD e se espalha por demais denominações, bem como a utilização ou reapropriação de práticas do mercado para atrair o consumidor (fiel ou não da IURD).

Ainda na capa, uma frase que chama atenção: “Finalmente liberado pela justiça!”. Este livro foi a julgamento no Tribunal Federal da Bahia (1° Região), tendo uma decisão liminar de 1° instância anterior que havia determinado a retirada de circulação, a suspensão de tiragem, venda, revenda e entrega gratuita do livro, o que foi confirmado, também liminarmente, pelo Desembargador Federal do TRF, Sousa Prudente. De acordo com os argumentos do Ministério Público, estaria a lesar, dado o conteúdo do escrito, direito dos adeptos das religiões afro-brasileiras e da sociedade como um todo, transmitindo

15 Caboclo: entidade que representa o índio brasileiro ou as populações mestiças das áreas rurais. (Silva, Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda. Caminhos da devoção brasileira. SP: 1994. editora Ática) 16 Guia: Colar de contas que representa uma entidade. (Silva, Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda. Caminhos da devoção brasileira. SP: 1994. editora Ática) 17 Candomblé: religião de matriz africana, da nação Iorubá. Trazida ao Brasil pelos africanos escravizados na época da colonização brasileira, predomina no estado da Bahia. Tem como principais divindades os orixás. 18 Quimbanda: culto afro-brasileiro desmembrado da macumba, mas fiel a tradição bantu, geralmente confundida com a magia negra por trabalhar principalmente com os exus. 19 Umbanda: a umbanda, como culto organizado segundo os padrões atualmente predominantes, teve sua origem por volta das décadas de 1920 e 1930, quando kardecistas de classe média , no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, passaram a mesclar com suas práticas elementos das tradições religiosas afro-brasileiras, e a professar e defender publicamente essa “mistura”, com o objetivo de torná-la legitimamente aceita, com o status de uma nova religião. (Silva, Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda. Caminhos da devoção brasileira. SP: 1994. editora Ática)

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mensagens preconceituosas, além de estimular a intolerância religiosa dos seguidores da IURD.

O livro, ainda de acordo com a acusação, incitava a discriminação, transmitindo a ideia de que as práticas religiosas de origem africana seriam condenadas pelo texto bíblico e de que seus adeptos somente teriam salvação se mudassem de credo.

No julgamento, entendeu-se que a obra de fato contém expressões e mensagens preconceituosas, mas que deveria prevalecer à liberdade de pensamento aventada pelo artigo 5° da Constituição que diz “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade.” Sendo previsto em parágrafos do supracitado artigo, a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa. O magistrado Leão Aparecido relata que a questão suscitou um descompasso entre os artigos da constituição, enquanto se defende a liberdade de expressão e se proíbem apologias de cunho racial, contudo, o autor do livro tem direito garantido pela Constituição de expressar seu pensamento e, ademais, a obra estaria escrita a um grupo de interessados, ligados àquela Igreja. Porém, nota-se que o livro ultrapassa as barreiras da Igreja Universal, sendo lido por pessoas de outras denominações. A decisão de liberar a circulação do livro se reportou também ao fato de que ele circula desde a década de 80.

No início do livro há uma dedicação especial “a todos os pais-de-santo e mães-de-santo da nossa pátria”, mostrando que a leitura da obra não se reduz ao campo dos membros da IURD.

Em seu prefácio, cujo autor não é identificado, aparece a seguinte declaração:

De parabéns o bispo Macedo e o povo em geral por esta obra de tão grande esclarecimento. Nossos pêsames para o diabo e seus demônios pela grande perda. Ele, que já está derrotado, vai espernear, estrebuchar e se levantar com todas as suas forças contra o bispo e a Igreja, mas, mesmo assim, terá de dedicar muito tempo para contabilizar as suas perdas.

Esta citação mostra um dos objetivos do livro que é o esclarecimento acerca

da figura do diabo e sua legião, bem como a guerra declarada pelo bispo e pela IURD contra o diabo.

Na introdução do livro Macedo faz a seguinte declaração: (...) sempre desejei colocar em um livro toda a verdade sobre os orixás, caboclos e os mais diversos guias, que vivem enganando as pessoas e, fazendo delas ‘cavalos’, ‘burrinhos’ de ‘aparelhos’, sendo que Deus as criou para serem a Sua imagem e semelhança (p.9).

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Esta frase demonstra que Macedo se sente “portador da verdade” sobre as

religiões e suas práticas, tendo como base para esse pensamento uma passagem bíblica, repetida inúmeras vezes no livro, de João 8.32,36 “(...) e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.”.

O livro analisado possui duas ideias centrais: o discurso sobre o demônio que engloba o primeiro capítulo ao décimo quarto capítulo e o discurso da IURD sobre a libertação que engloba o décimo quinto capítulo ao vigésimo capítulo da obra, nesse artigo será analisado somente o discurso sobre o demônio.

Para Macedo, Os exus, os pretos-velhos, os espíritos de crianças, os caboclos ou os ‘santos’, são espíritos malignos sem corpo, ansiando por achar um meio de se expressarem neste mundo, não podendo fazê-lo antes de possuírem um corpo humano, dada a perfeição de funcionamento dos seus sentidos (p.16).

Percebe-se nesta citação um dos pilares doutrinários da Igreja Universal que

é a guerra contra o diabo ou as forças do mal. Se os exus, pretos-velhos, caboclos entidades dos cultos afros são “espíritos malignos”, logo quem os cultua é alvo da guerra espiritual proposta pela IURD.

A teologia da Igreja Universal é dualista, ou seja, divide-se entre o bem, representado por Deus e o mal, representado pelo diabo. Sendo que nesse embate (Deus x Diabo) já está à vitória assegurada a priori para Deus. Para ilustrar, os seguintes trechos do livro de Macedo, “Decepcionaram-se ao constatar que os mais fortes ‘protetores’ com quem contavam, não passavam de demônios que, na igreja, caíam de joelhos e obedeciam às ordens do dirigente da reunião”. (p.17) ou “Impressionaram-se ao ouvir dos próprios orixás e caboclos confessarem diante da multidão que não passam de demônios, cuja missão é enganar, arrasar e destruir os seus ‘cavalos’”. (p.17).

Qual motivo ou motivos que levam a IURD a combater tão fervorosamente os cultos afros e outros cultos mediúnicos? Segundo sua teologia o universo é dividido em dois reinos, o reino material e o reino espiritual, sendo que as forças do reino espiritual (Deus ou o diabo) agem no reino material. Para Macedo, o diabo e seus seguidores agem no reino material por meio dessas religiões, de seus adeptos e de outros meios, para levar os seres humanos à perdição. Daí a premente necessidade de combatê-los.

A guerra proposta pela IURD é uma das suas diferenças teológicas das demais denominações pentecostais:

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Exacerbar a pregação da guerra espiritual, enxergar a presença e a ação do Diabo em todo lugar e em qualquer coisa e até invocar a manifestação de demônios nos cultos são crenças e práticas que distinguem teologicamente, ainda que em termos de ênfase, (...), as igrejas neopentecostais do pentecostalismo clássico e, em menor grau, do deuteropentecostalismo (MARIANO, 1999, p.113).

Macedo, no primeiro capítulo, conceitua o Demônio, “um demônio é uma

personalidade; um espírito desejando se expressar, pois anda errante procurando corpos para possuir para, através deles cumprir sua missão maligna”(p.16). Em um artigo Ele também conceitua o demônio, que seria:

O demônio é um ser que procura afligir toda sorte de doenças, misérias, desgraças, etc. ele personifica o mal e nos é apresentado como espírito sem corpo, sexo ou dimensões. Pelo fato de não possuir corpo, vive tentando apossar-se daqueles que não têm proteção à sua disposição. 20

A noção de Macedo é similar com a de Kolakowski (1977, p.5) 21 que diz,

“O demônio é uma criatura racional, incorpórea, e tem por objetivo, fundamentalmente, a maldade, ou seja, é dominado inteiramente pelo desejo de fazer o mal”.

Segundo Macedo essa entidade (o demônio) por ter vontade própria e também um forte desejo de se expressar no mundo material tende a enganar as pessoas, ele confirma essa ideia no trecho, “Na nossa Igreja, temos centenas de ex-pais-de-santo e ex-mães-de-santo, que foram enganados pelos espíritos malignos durante anos a fio”. (p.17).

Por conseguinte, aparecem, através do livro Orixás, caboclos e guias, deuses ou demônios? Bem como através de artigos publicados na Folha Universal que a IURD, por meio do seu líder (Macedo), tem um discurso, aqui entendido como representação, que condena as religiões afro-brasileiras, por identificá-los com o mal (diabo). Porém, ela se utiliza de práticas dessas mesmas religiões, bem como do espiritismo e do catolicismo, através do sincretismo e da apropriação dessas práticas.

Através dessas fontes, a IURD fornece uma “pedagogia” em que se aproveita de termos dos cultos afro-brasileiros, detratando-os em seu próprio beneficio. Essa “inversão” de significados, que também é uma “versão”, só faz sentido quando se conhece o que se inverte. Porém, ambas (inversão e versão) dependem uma da outra para ampliar seus significados e afirmam suas identidades por contraste.

20 Folha Universal, edição 16, 12/07/1992. 21 KOLAKOWSKI, Leszek. O diabo. Artigo escrito em 1977, é um verbete da Editora de ciências sociais da editora Einaudi, Itália.

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Conclusão

Embora inferências mais diversas e mais aprofundadas vão surgir em

relação a essa temática, visto que a pesquisa encontra-se em construção, esse artigo leva a algumas conclusões, embora não definitivas, quanto à Igreja Universal. E elas podem ser sinteticamente relacionadas da seguinte forma: O discurso da IURD é tão aceito pela sociedade porque fala à linguagem que o povo de tradição católica entende e oferece os bens de que necessitam, ou seja, um discurso que oferece as soluções para os problemas sociais, econômicos, familiares e sentimentais, ou seja, os problemas do cotidiano; A Igreja Universal através do seu discurso consegue, por meio da apropriação das práticas de outras religiões, guardar o antigo e incorporar o novo em suas representações e nas suas práticas religiosas, mantendo dessa forma um vínculo simbólico entre o passado do fiel e seu presente, tornando o seu discurso de fácil entendimento e aceitação; Apesar de a IURD entender os cultos afro-brasileiros como demoníacos e identificá-los com o mal ela se utiliza das suas práticas, bem como dos seus símbolos para criar e legitimar o seu discurso, através de um processo de inversão de significados, criando dessa maneira uma versão compreensível por parte dos seus fiéis ou futuros membros que têm conhecimento desses símbolos.

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PRIMEIRA ASSEMBLEIA DOS POVOS INDÍGENAS E RORAIMA: SRUMÚ JANEIRO DE 1977

Jaci Guilherme Vieira1

Os anos setenta do século passado foi um período de extensa mobilização

para os povos indígenas de Roraima e para o conjunto dos povos indígenas do Brasil. Em janeiro de 1977, os índios de Roraima, juntamente com a diocese realizaram o maior encontro das populações indígenas que se se tem notícia, trata-se da primeira assembleia dos povos indígenas de Roraima que reuniu mais de 150 índios sendo cinquenta deles tuxauas.

Um dos pontos altos do processo de organização dos povos indígenas de Roraima foi o encontro do Surumú, no dia nove e dez de janeiro de 1977 que passou a ser conhecida como a primeira assembleia dos povos indígenas , reunindo pela primeira vez o povo macuxi, os taurepang e os Wapichana num total de 140 índios sendo que cinquenta eram lideranças denominados de tuxauas. Surumú fica distante 160 Km de Boa Vista, muita próxima a fronteira com a Venezuela, cercada por morros onde a Ordem da Consolata manteve, até o ano de 2008 um pequeno hospital uma escola em sistema de internato para atender aos índios da região.

Fotografo não identificado. Primeira Assembleia dos povos indígenas de Roraima 1977, Surumú Missão São José

1 Universidade Federal de Roraima. Departamento de História.

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Essa assembleia acabou por demonstrar um alto grau de envolvimento da

igreja com a pauta de reinvindicações dos povos indígenas, dentro da lógica da primeira assembleia indigenista missionaria ocorrida em Goiânia em junho de 1975, quando foi firmado o apoio aos índios, pelos missionários, ao direito de recuperar e garantir suas terras. A assembleia dos povos indígenas de Roraima contou com a participação efetiva de D. Aldo Mogiano e vários padres e freiras da Consolata, D. Thomas Balduíno, Bispo na época em Goiás e presidente do recém-criado, Conselho Indígena Missionário (CIMI), o padre Egydio Schwade secretário geral da instituição como convidados e por fim a presença de uma liderança indígena do Amazonas, Daniel, índio Pereci. A coordenação do encontro ficou a cargo do padre Bruno e as palestras foram feitas pelos padres Crimella, Luciano e Bindo. Foi um evento de grande porte que contou com uma logística para acomodar, transportar e alimentar muito mais de 140 índios, pois é da cultura dos povos indígenas nunca viajar sozinho e sim com um ou mais parentes.

Essa primeira assembleia não teve a confecção de uma ata, por motivos que falaremos depois. O que sabemos dessa reunião, tão importante, nos chegou por meio de entrevistas, de anotações feitas por um possível religioso e da imprensa escrita. Com um jornalismo já livre da ditadura militar e sem censura, essa reunião foi pauta de vários jornais nacionais e aqui destacamos o Estado de São Paulo, Jornal da Tarde de Brasília, Folha de São Paulo, Jornal de Brasília, que enviaram jornalistas especialmente para fazer a cobertura a convite do CIMI.

O padre Egidio, numa carta endereçada a D. Aldo no dia 17 de dezembro de 1976, confirma então a presença de D. Tomás na assembleia e avisa que levará dois índios do movimento nacional e uma jornalista, que já havia feito diversas coberturas de trabalho missionário, sendo avaliado por Egidio como uma pessoa que estava do lado dos oprimidos. Nessa carta Egidio solicita a D.Al do para que não faça convite a FUNAI para está reunião, principalmente devido as dificuldades de dialogo que estavam ocorrendo entre o CIMI e o órgão do governo dirigido por militares2.

2 Carta do padre Egídio ao Bispo de Roraima, D. Aldo Mogiano, 17.12. 1976. Caixa Assembleia dos tuxauas. Arquivo Diocese de Roraima.

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Fotografo não identificado D. Thomas Balduino, II da esquerda para a direita Presidente do CIMI na assembleia de 1977.

Perguntei numa entrevista para D. Aldo Mogiano, quando já estava se

despedindo de Roraima qual foi objetivo desse encontro. Sentado em frente a matriz, numa manha muito ensolarada de verão, ele afirmou: queríamos que eles falassem:

...naquele dia, 7 de janeiro, ganharam coragem, fizeram um relatório, falaram mais de quarenta lideranças, e sempre contavam a mesma história, era a cidade que reprimia, o fazendeiro, era o policial, era também o garimpeiro, que naquele período era pouco é verdade. Como pude perceber daquelas falas vivíamos aqui uma situação tipicamente colonial. O que o índio fazia ou produzia era somente a favor do branco. O índio tinha que trabalhar para o fazendeiro... Finalmente havíamos encontrado quem eram os oprimidos em Roraima.3

Eliana Lucena, jornalista convidada do Jornal O Estado de São Paulo, parece

ter compreendido bem o sentido dessa assembleia, pois publicou uma matéria onde afirmava, depois e ouvir as falas dos tuxauas, que quase todas as etnias presentes a reunião tiveram suas terras invadidas por fazendeiros que estavam se instalando em Roraima na década de setenta, atraídos pelo pasto natural e a

3Entrevista com D. Aldo Mogiano, Bispo de Roraima, 1997.

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proximidades de imensos igarapés. Das diversas falas dos tuxauas duas chamaram a sua atenção: A fala do tuxaua macuxi Cirilo e outra que a jornalista não identificou.

nos pensávamos que os civilizados fossem nossos irmãos. Nos ajudamos esses homens a crescer, entregando nossa riqueza para eles. Eu quero dizer que nos estamos errados. Pensamos que eles eram bons como nós. Como não conhecemos as leis desses homens, somos sempre enganados. Porque somos um povo atrasado. Os civilizados depois que receberam a nossa ajuda, deram um pontapé na gente e agora estamos sofrendo e somos seus escravos. Nos agora temos que deixar de ajudar os brancos. Eles chamam a gente de preguiçoso, porque não temos mais nada na maloca. Mas acontece que temos trabalhado para eles dentro do nosso próprio terreno e até mesmo nas cidades. Tem muito índio vaqueiro e tem muita moça índia trabalhando para eles por isso não temos gente para trabalhar na roça e cuidar das nossas casas.4

Outra fala deixa muito claro o auto - índice de alcoolismo entre os presentes

na reunião. Um índio que a jornalista não identificou, esclareceu que são os próprios fazendeiros que levam muita cachaça para a gente fazer festa. Minha turma não me quer mais como tuxaua porque não quero que eles bebam. Parece que o fazendeiro quer ver o tuxaua sempre bêbado porque assim ele nos engana melhor5.

Uma das falas nessa assembleia veio do índio Daniel, da etnia dos Pereci, do Amazonas. Índio experiente no movimento já havia participado de quatro assembleias pelo país. Trata-se de uma liderança convidada do CIMI para falar aos índios de Roraima da sua experiência e qual o principal problema dos índios no Brasil. Conhecedor da geografia nacional e afinado com o discurso do movimento nacional indígena que estreava nos anos de 1970, fez uma fala importante na assembleia:

O problema das terras é de todo o índio do Brasil, desde o Rio Grande do Sul até Roraima. Já fizemos quatro assembleias sobre a questão da terra e da organização dos povos indígenas no Brasil. Não queremos o índio na beira da estrada marginalizado. O índio pode ser o maior inimigo do índio. Temos que ter uma só ideia. Somos herdeiros destas terras muito antes que viessem os brancos. Essa caminhada vai ser cheias de lutas e de esperanças. Nos somos pessoas humanas – nos temos uma maneira um pouco diferente de viver e de falar.

4 LUCENA, Eliana. Reunião de caciques deixa quadro crítico. Jornal O estado de São Paulo, 16 de janeiro de 1977. 5 Idem.

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Porque temos vergonha¿ cair na vergonha e querer a nossa destruição. Há branco que diz que índio é mau, ladrão e rude. Somos injustiçados. O primeiro problema que temos que enfrentar é a terra, sem resolver isso não adianta querer resolver outros problemas. E isto que queria desejar aos meus irmãos macuxi e Wapichana, porque isso pode trazer para nos consequências fatais, pois os nossos filhos terão que mendigar a terra ao fazendeiro. A Funai quer afastar todo os missionários das terras indígenas e nenhum índio se levanta. Temos que levantar a voz só com a luta se consegue algum coisa. Nos somos uma força viva.6

Parece que o índio Pareci estava adivinhando alguma coisa. No dia seguinte,

quando os índios já estavam descansando do almoço, aquela que seria a reunião mais importante dos povos indígenas de Roraima, foi interrompida pela chegada, sem convite do delegado da FUNAI em Boa Vista, José Carlos Alves acompanhado pelo sertanista Sebastião Amâncio e um policial da policial da Polícia federal. A missão do delegado da Funai no Surumú era retirar da reunião o presidente do CIMI D. Thomaz Balduíno. Caso D. Balduíno não se retirasse da assembleia a mesma deveria ser interrompida por forças policiais que já haviam ficado de sobreaviso em Boa Vista.

Com a recusa de D. Balduíno de não se retirar da assembleia, afinal de contas estava em uma dependência religiosa, na qual o trânsito de um religioso é livre, o delegado da Funai encerrou a assembleia afirmando que havia recebido essa ordem diretamente do Presidente da Funai em Brasília, general Ismarth de Araujo. Porem antes do termino teve que ouvir do tuxaua Sirino que “Funai nunca tinha feito reunião como aquela e que a situação dos povos indígenas de Roraima estava assim porque fazendeiros tomaram suas terras expulsando os índios cercando os lagos e os rios”.7 Outra jornalista captou também a fala do mesmo tuxaua, “nos temos o maior respeito pelo senhor. Mas queremos dizer que, de agora em diante nos vamos cuidar de não deixar fazendeiro invadir nossas terras. Eu mesmo já procurei o senhor varias vezes em Boa Vista, muitas vezes, o senhor nunca pode receber a gente”.8

Assembleia dos povos indígenas dissolvida pela Ditadura Militar, não houve

tempo suficiente para o término dos trabalhos, daí essa ser a primeira assembleia a não ter uma ata da conclusão dos trabalhos.

6 Notas da Assembleia dos Tuxauas, Surumu 1977.( Sem assinatura). Caixa das Assembleias dos Tuxauas. Arquivo Diocese de Roraima. 7 MOREIRA, MEMÉLIA. Chefes índios são proibidos pela Funai de fazer reunião. Jornal de Brasília, 11 de janeiro de 1977, pag.09. 8 NUNS, Pamela. Funai Recebeu petição. Folha de São Paulo. 12. De janeiro de 1977.

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Em nota publicada no dia 11 de janeiro de 1977 em vários jornais do país, D. Thomas faz um relato dessa assembleia e afirma que a gravidade dos fatos apresentados pelos tuxauas explica a afobação da Funai na tentativa de taparlhes a boca para que os índios não continuem se organizando. Continua D. Thomas na nota “afirmando que a Funai em Roraima e inoperante e serve aos interesses dos fazendeiros pois oferece e dar arame aos brancos para que cerquem áreas indígena”9.

Outra jornalista, Pamela Nunes, presente a assembleia de 1977 parece ter captado essa subserviência da delegacia da Funai, quando publicou uma carta assinada por José Carlos Alves, delegado da Funai dado ao Tuxaua Laureano da maloca do Araí, acusado pelo veterinário José Augusto de ter furtado um boi da sua fazenda. Ao entregar a carta o missivista recomendou que a mesma devesse ser aberta apenas na presença dos índios da comunidade, sem conhecimento prévio do tuxaua.10

Prezados índios: Ficou acertado aqui entre eu, delegado da Funai, o tuxaua Laureano Dr José Augusto e Dr Miguel da polícia Federal, uma ajuda para vocês ai porém o caso do boi deve ser acertado. O tuxaua é elemento representativo de vocês perante a Funai e como tal deve ser ajudado. Hoje ele vai levando pregos para mudar a cobertura da escola, logo que tiver pronta, já combinamos com a secretaria de educação será mandado professora. No fim do mês de agosto e inicio de setembro, vou aí junto com o Dr. José Augusto, vê se a escola está pronta e combinar um término da estrada até a maloca, quando a Funai dará umas ferramentas e o Dr. José Augusto dará uma caça para comer no Trabalho. Com isso, peço a vocês ajudarem para nos pagarmos esse boi do Dr. José Augusto, se reuniam com o tuxaua e combinem como será o serviço e quando eu chegar também combinaremos o dia de começar a trabalhar para pagar o boi. No serviço do Dr. Ele dará comida e autorizara novamente o vaqueiro a deixar os índios do Araí passarem e parar em sua fazenda para dormir ou comerem alguma coisa.

Por ultimo a carta sentencia:

veja bem, se unindo a nos e ao tuxaua, ganharemos mais conceito e consideração. A Funai ajuda e combina mas também pune.

9 O Estado de São Paulo, 11 de Janeiro de 1977. 10 Encontrei essa carta na documentação dos arquivos da Diocese, cuidadosamente autenticada pelo cartório de notas e oficios Deuzedete Coelho, datada de 29 de julho de 1976. José Augusto é medico veterinário, filho de Nenê Macaggi. Grileiro te terras da Fazenda São Marcos onde ele e sua mãe foram funcionários do antigo SPI.

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Importante destacar que essa carta foi lida na presença dos índios da comunidade, sem o conhecimento prévio do tuxaua como forma de desmoralizar o líder da comunidade. Por ultimo essa carta acaba por demonstrar como as instituições do Ex-território de Roraima estavam a serviço do Fazendeiro. Neste caso a Funai que seria a representante legal das populações indígenas em muitos momentos esteve sim a serviço do fazendeiro, ainda mais o Dr. José Augusto, filho de Nenê Macagi que tinha excelente relacionamento com os governos militares na região.

A pergunta que surge nesse momento é porque uma assembleia dos povos indígenas realizada no extremo Norte do país é cancelada por ordens expressas de Brasília¿

A documentação que tivemos acesso nos dá algumas pistas. Em anotações feitas por D. Aldo Mogiano, ele faz um relatório da audiência que teve com o Governador, Coronel do Exercito Ramos Pereira, no dia 10 de janeiro de 1977. Para D. Aldo não resta a menor dúvida que o principal responsável pela dissolução da assembleia partiu dele e que o General Ismarty Araujo, presidente d FUNAI em Brasília acabou aderindo e endossando tal atitude.

Comecei a dizer ao governador que estava muito aborrecido sobre a atuação do Governo em Surumú no último sábado. Deveriam ter perguntado a ele o que estava se passando em Surumú e que eu teria dado todas as informações necessárias. Tinha feito o possível para que o encontro, assessorado pelo CIMI, tivesse um bom êxito sem guerras nos Jornais. Poucas manchetes queríamos apenas fazer um levantamento da realidade e da possibilidade de planejar uma resposta ao desafio da situação do índio de Roraima. A Prelazia tinha feito muito esforço nesse sentido. Foquei bem nessa audiência com o governador que, primeiro, a Prelazia pode sim reunir os índios sem autorização previa da Funai. Segundo que o encontro estava sobre a responsabilidade da prelazia e não do CIMI. Terceiro que a Prelazia estava numa fase de levantamento e que uma ação seria realizada em outra oportunidade.11

A resposta do Governador na audiência foi a seguinte: Fui informado que o Senhor junto com D. Balduíno, o padre Egidio

estiveram no Catrimami, área Yanomai com vários jornalistas. E que dai em diante passaram a ser monitorados. Afirmou que o encontro com os índios só serve para enfraquecer a cabeça dos índios.12

Anos depois numa entrevista com Dom Aldo sobre essa assembleia ele puxou da memoria o encontro com o Governador.

11 Anotações 10.01.1977. D. Aldo Mogiano. Caixa Assembleia dos Tuxauas, 1977-1991. 12 Idem

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Tivemos que interromper aquela Assembleia porque alguém falou ao Governador que o novo bispo estava reunido com os índios, analisando a situação da região. Ele ouviu dizer que nessa reunião os índios se queixavam dos brancos e ficou preocupado que o bispo pudesse ficar com a cabeça virada. Aí eu fui ter com o Governador: - 'Sr. Eu estava na sessão que sua Excelência mandou interromper. Ali sua Excelência, descobrimos um problema muito grave e sério, e penso que não se resolve tapando as bocas e fechando por sua vez os olhos das pessoas.' A resposta foi seca: - 'Ah senhor bispo o senhor então é novo aqui, portanto daqui a pouco o senhor vai mudar de idéia e começará a se acostumar.' A mesma resposta deram todos. O chefe da polícia, o chefe da FUNAI e muitos fazendeiros que encontrei depois na rua.13

Afinal qual o posicionamento do Presidente da Funai depois dessa

lamentável episodio¿ O General Ismarth, Presidente da FUNAI reconhecia para a Imprensa, que

não tomara conhecimento prévio do assunto que estava sendo tratado na Assembleia do Surumú. Porém, como o governo não reconhecia o CIMI como órgão mediador das questões indígenas no país, aquela reunião constituía um ato ilegal; daí ter mandado esvaziá-la, já que o CIMI não havia solicitado autorização para se deslocar até Roraima a fim de realizar reunião com as populações indígenas.

Para o General, os índios que participavam daquele encontro estavam sendo enganados. Já era do seu conhecimento que os índios de Roraima há tempos reuniam-se na Missão do Surumú e nas comunidades das serras para discutir problemas relativos à religião. No entanto, a reunião de 1977, com a presença do CIMI mudava o caráter desse encontro e, consequentemente, seu objetivo principal, que era o de "aprenderem a rezar". Segundo ele, os índios deveriam esperar pela FUNAI, único órgão capaz de resolver os problemas indígenas.14 Essa espera os levaria para a terra prometida, assim como a oposição ao regime militar nos grandes centros urbanos, em sua maioria formada de jovens, era levada para serem torturados e mortos nos presídios, tudo justificado pela ideologia da segurança nacional.

Vivia-se num regime de força e de censura, válido também para as populações indígenas. Com a dissolução da Assembleia de 1977, ficava claro que a FUNAI não permitia reuniões de índios e especialmente o seu deslocamento de suas comunidades, o que já havia sido denunciado, muito antes, por funcionários demitidos da FUNAI. O encerramento sumário da Assembleia, porém, trouxe o reconhecimento oficial do próprio Presidente do órgão de que em Roraima havia,

13 Entrevista com D. Aldo Mogiano, Bispo de Roraima. op. Cit. 14 Manifestação de Tuxauas chega a FUNAI. Jornal A Crítica. Manaus 12/01/1977. PAG. 02.

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sim, um grave problema que sempre tentaram esconder: a invasão das terras que, tradicionalmente pertenciam às etnias indígenas. Por ser contrário à atuação do CIMI, o Presidente advertia que não cabia à Igreja resolver problema das terras indígenas no país e, sim, à própria FUNAI, pois o Conselho Indígena afirmava que não era um órgão executivo.

Mesmo a Assembleia tendo sido dissolvida, fica patente que ela teve seu efeito prático, pois pela primeira vez o problema dos índios de Roraima chamou a atenção das autoridades competentes, em especial do Ministério do Interior e da FUNAI, que anunciou a criação de um Grupo de Trabalho. Esse grupo teve a função de fazer o primeiro reconhecimento e levantamento dos conflitos de terra e de discriminar o que realmente seria terras indígenas, admitindo que, até o momento, pouco a FUNAI tinha feito pelos índios da região. Porém, o General Ismarth fazia uma ressalva, o que demonstrava a quem realmente a FUNAI estava a serviço, e não era das populações indígenas: "Não podemos pensar na criação de uma única reserva para esses índios, senão todo o município de Boa Vista teria que ser transformado em área indígena, pois os grupos ali são muito numerosos e muito dispersos."15

De acordo com o documento da pastoral indígena retirado na segunda assembleias dos povos indígenas de Roraima de 1979 no Surumú, na prática nada de concreto havia acontecido, depois de nomear a comissão e fazer o levantamento nas áreas indígenas, para uma posterior demarcação das terras, alimentando esperanças de libertação das comunidades, os índios continuavam cada vez mais imprensados pelas ocupações das fazendas. Esse mesmo documento dos agentes da pastoral indígena distribuído nas igrejas do ex território em 1979 enfatizava que: Temos certeza, de que não havendo uma imediata demarcação das terras indígenas, estas comunidades estão destinadas a desaparecer, vítimas de um genocídio.16

Havia decididamente terminado a parceria entre missionários e fazendeiros na região do Alto rio Branco, Isso foi percebido com sutileza pela historiadora Elizangela Martins ao analisar com profundidade as diversas construções de prédios, no centro de Boa Vista durante a ditadura em Roraima, percebeu que na inauguração da Catedral em 1972 pelo bispo D. Servilio Contí, houve um certo desapontamento da igreja pela falta de apoio vindo da elite pecuarista local em função da sua pouca colaboração em dinheiro para a construção daquela obra que se erguia acompanhando as diversas obras do Regime Militar em Boa Vista, mesmo que essa não tivesse tido apoio oficial do estado17.

15 Idem 16 Agentes da Pastoral Indígena. Surumú 1979. Caixa Assembleia dos povos indígenas de Roraima. 17 MARTINS, Elijangela. Memória do Regime Militar em Roraima. Universidade Federal do Amazonas. (Dissertação de Mestrado) Manaus, 2010, pag 76.

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RITOS RODEADOS DE MORTE: A EVANGELIZAÇÃO NAS MISSÕES JESUÍTICAS DA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SÉCULO XVII)

Karl Heinz Arenz1

Resumo

O presente texto objetiva analisar os métodos de evangelização empregados nos aldeamentos da Companhia de Jesus na Amazônia portuguesa na segunda metade do século XVII. Em face da onipresença da morte, em decorrência dos frequentes abusos, incursões violentas e, sobretudo, das epidemias, a catequização revelou ser rudimentar e superficial. Mesmo assim, uma pastoral concentrada nas devoções lúdicas – típicas da cultura ibero-barroca (procissões e ladainhas) –, nos sacramentos considerados como indispensáveis para garantir a salvação das almas (batismo e extrema-unção), no controle da conduta tanto individual como social (confissão e casamento) e na caridade junto aos mais vulneráveis (recém-nascidos e enfermos) contribuiu ao surgimento de um imaginário heterodoxo. Este, resultado das constantes ressignificações simbólicas e sociais por parte de ambos os agentes envolvidos (inacianos e índios), marca até hoje a cultura popular da Amazônia.

Palavras-chave: evangelização, jesuítas, Amazônia portuguesa

As distâncias enormes, as selvas impenetráveis, o labirinto confuso de rios e

igarapés, as margens cobertas de aldeias populosas – estas realidades desconhecidas impactaram, desde o final do século XVI, o imaginário dos primeiros europeus que entraram na bacia amazônica. De fato, a região era tida como “um espaço indefinível, incompreensível, flutuante e, sobretudo nebuloso”, pois distante dos códigos culturais europeus de origem medieval2. Enquanto marinheiros, soldados e outros aventureiros deixaram-se rapidamente seduzir pelo mito do Eldorado e por rumores de riquezas imensas, os primeiros missionários acreditaram estar, em face dos inúmeros povos indígenas, no início de uma messe abundante3. No entanto, após poucas décadas, as expectativas iniciais de religiosos e colonos deram lugar a querelas

1 Karl Heinz Arenz é professor de História da Universidade Federal do Pará (UFPA). 2 MALDI, Denise. De confederados a bárbaros: a representação da territorialidade e da fronteira indígenas nos séculos XVIII e XIX. Revista de Antropologia. São Paulo: Edusp, v. 40, fasc. 2, jul.-dez. 1997, p. 189. 3 Ver GODIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994, p. 77-138.

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acirradas acerca da exploração da mão de obra ameríndia. Sobretudo os jesuítas mostraram ser muito vigilantes em tudo que tangesse a seus neófitos e catecúmenos, como o demonstra a rápida expansão da vasta rede de aldeamentos ao longo da extensa calha do rio Amazonas, sob a conduta do padre Antônio Vieira, superior da Missão do Maranhão entre 1653 e 16614.

O espaço autônomo dos aldeamentos favoreceu a justaposição, ou melhor, a fusão inextricável de determinados elementos e práticas culturais. Neste sentido, configurou-se uma economia diversificada que reconciliou o aspecto mercantilista de exportação dos europeus (sobretudo, a das drogas do sertão, isto é, dos produtos provindos do extrativismo vegetal na floresta tropical) e a subsistência em regime comunitário praticado pelos povos indígenas. Também, nasceu uma religiosidade lúdica e pouco ortodoxa que interligava as devoções ibero-barrocas com a cosmovisão do xamanismo ameríndio. Com efeito, o princípio da aculturação, aplicada, entre os séculos XVI e XVIII, a partir de uma primeira leitura missionária das práticas indígenas, permitiu certa tolerância por parte dos inacianos no que diz respeito à organização clânica, à produção e à propriedade em comum ou à permanência de determinadas cerimônias tidas antes como mera diversão do que expressão do sagrado5.

Por isso, convém assinalar que, ante as múltiplas interferências por parte dos padres, os povos indígenas não podem ser considerados como sendo passivos ou condenados a uma submissão total. Desde o início, os índios souberam reagir, seja mediante a despistagem, a dissimulação, a fuga ou, simplesmente, o silêncio, seja por meio da reinterpretação dos novos discursos e elementos trazidos pelos padres. Sobretudo, no interior dos aldeamentos, os indígenas fizeram valer, com astúcia, suas próprias concepções culturais e cultuais, flexibilizando o rigor dos objetivos missionários. Assim, no final do século XVII, o ouvidor geral Miguel da Rosa Pimentel comenta referente aos índios aldeados que

se achão todas as Aldeas sem nenhú [meio de os índios serem governados como vassalos], uzando de seus Ritos gentillicos e como não conhecem outra forma, se

4 Esta rede de missões está na origem de uma verdadeira “geografia jesuítica”. Ver DROULERS, Martine. Brésil: une géohistoire. Paris: Presses Universitaires de France – PUF, 2001, p. 82. 5 Adone Agnolin aponta a “constituição da cultura paralela e, portanto, de um novo imaginário”. Ver AGNOLIN, Adone. O apetite da antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico – alteridade e identidade no caso tupinambá. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 126.

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conciderão ainda nos matos, matandosse e comendosse huńs a outros, sem q. do tal experimentem castigo, o que he muito prejudicial6.

O presente texto visa, pois, analisar os métodos pastorais aplicados pelos

padres inacianos e as reações dos índios a seu respeito na segunda metade do século XVII. Apesar da grande precariedade das circunstâncias – os conflitos com os colonos, a grave crise econômica dos anos 1670, os efeitos das epidemias –, o ensino catequético e os ritos litúrgicos impactaram profundamente o imaginário e o modo de vida dos índios coloniais.

Dentre as fontes utilizadas destacam-se a chamada Visita do padre Antônio Vieira (1608-1697) – um regulamento interno introduzido após uma visitação aos aldeamentos entre 1658 e 1660 – como também a crônica e algumas cartas do padre luxemburguês João Felipe Bettendorff (1625-1698). Fora isso, a História da Companhia de Jesus no Brasil (HCJB) do padre Serafim Leite foi, apesar de sua tendência apologética, de grande utilidade.

O “tripé” da vida cristã: batismo, confissão, casamento

Além da catequese diária, marcada por uma repetição contínua e superficial,

os jesuítas evangelizaram, sobretudo, mediante uma “tríade sacramental”: o batismo, a confissão e o matrimônio7. Como a administração dos sacramentos incumbe exclusivamente aos padres, a função sacerdotal foi enfatizada pelo Concílio de Trento. Os pais conciliares instalaram, segundo Alain Tallon, sem fornecer um aprofundamento teológico maior, um verdadeiro “filtro clerical” entre os leigos e o sagrado, atribuindo ao sacerdote um papel eminente na prática religiosa individual de cada fiel8. Na vastidão do espaço amazônico, esta presença indispensável do missionário-sacerdote junto aos inúmeros catecúmenos e neófitos indígenas exigiu uma organização minuciosa por parte dos jesuítas para garantir a todos os cristãos recém-convertidos o acesso regular aos sacramentos. Diante disso, o padre Vieira fixou na Visita as regras para uma aplicação meticulosa dos ritos católicos obrigatórios nas aldeias catequéticas da

6 Miguel da Rosa Pimentel. Informação do Estado do Maranhão. Lisboa, 04/09/1692. Biblioteca da Ajuda (Lisboa), cód. 50-V-34, n.º 43, fl. 199r. 7 O jesuíta espanhol José de Acosta realça, no seu tratado De procuranda Indorum salute, os sacramentos do batismo (lib. VI, cap. 3), da confissão (lib. VI, cap. 11 e 12) e do matrimônio (lib. VI, cap. 20 a 22), apoiando-se nas decisões do Concílio de Trento. Ver ACOSTA, José de. De Natura Novi Orbis, libri duo, et de promulgatione Evangelii apud barbaros, sive de procuranda Indorum salute, libri VI, authore Josepho Acosta. Salamanca: Impr. G. Foquel, 1588/1589, p. 565-567, 569-574, 601-606 e 619-630. 8 Ver TALLON, Alain. Le Concile de Trente. Paris: Cerf, 2000, p. 63.

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Amazônia9. Por isso, o historiador da Igreja Eduardo Hoornaert assinala que “a seriedade da sacramentalização” constituiu “outra dimensão da missão maranhense e paraense que está quase ausente nas demais experiências de evangelização no Brasil10.”

Assim, ser batizado, receber regularmente a confissão, ser casado conforme o direito canônico, participar da missa dominical e das devoções constituíram os pilares da conduta cristã que valeu também para os catecúmenos e neófitos indígenas. Por isso, sua frequentação regular e assídua dos sacramentos foi estritamente supervisionada e controlada. De fato, da participação sacramental dependeu a salvação dos índios, mas também o sucesso do missionário. Os indígenas reagiram, muitas vezes, com uma atitude de desconfiança ante a preocupação excessiva dos padres no que diz respeito à imprescindibilidade dos sacramentos. Assim, em muitas ocasiões os nativos conceberam o batismo (sobretudo quando ministrado a crianças de colo) e a extrema-unção como ritos diretamente ligados à morte, haja vista que numerosos meninos e enfermos morreram pouco depois de ter recebido o respectivo sacramento11. Bettendorff relata um caso exemplar:

Ora, quando eu estava administrando o batismo a uma criança, a mãe fugiu com seu pequenino dizendo que não queria que seu filho fosse purificado com a água batismal para que não morresse. “De fato, a providência de Deus é tal que muitos dos pequeninos morrem naquele estado de inocência.” Fazendo lembrar esta frase, a mulher não queria que o filho fosse batizado para que não perecesse eventualmente logo depois da cerimônia. Finalmente, nós a convencemos que o contrário era verdade e ela trouxe então o seu filho para ser batizado junto com outros12.

O zelo sacramental dos missionários explica-se, antes de tudo, pelo apego

da Companhia de Jesus à “teologia da graça”, formulada basicamente pelo

9 Ver VIEIRA, Antônio. Visita. In: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil [HCJB]. Vol. 4 (Norte 2: Fundações e entradas – séculos XVII-XVIII). Rio de Janeiro/Lisboa: Instituto Nacional do Livro/Livraria Portugalia, 1943, p. 114-119 (§§ 23-36). 10 HOORNAERT, Eduardo. A evangelização do Brasil durante a primeira época colonial. In: Idem; AZZI, Riolando; GRIJP, Klaus van der Grijp; BROD, Benno. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo – primeira época. 4ª ed. São Paulo/Petrópolis: Paulinas/ Vozes/CEHILA, 1992, p. 85. 11 Ver BETTENDORFF, João Felipe. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão [1698]. Belém, Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves/Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 118-119. 12 João Felipe Bettendorff. Carta ânua ao superior geral Oliva. São Luís, 21/07/1671. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), cód. Bras 9, fl. 263r.

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inaciano espanhol Luís de Molina (1535-1600). Ensinada nos colégios e universidades sob administração jesuítica, esta corrente teológica, que constitui basicamente uma reinterpretação neoescolástica do naturalismo aristotélico-tomista, realça categoricamente a universalidade e a incondicionalidade da misericórdia divina. Por conseguinte, todos os povos não cristãos, mesmo os mais obstinados e ferozes, são tidos como capazes de viver o Evangelho, precisando aceitar para isso a regularidade da doutrina e dos sacramentos13.

Nas entrelinhas da Visita percebe-se que o primeiro sacramento da tríade, o batismo, constituiu um ato basilar tanto de integração à cristandade universal quanto de aceitação em uma comunidade local, o aldeamento. O segundo, a confissão, visou consolidar esta pertença mediante uma interação direta e regular, de caráter ritualizado, entre missionário e índios cristianizados. Por fim, o matrimônio preconizou, de certa forma, o enraizamento da fé no convívio de casais compostos por índios recém-convertidos e canonicamente aptos. Estes formaram a base para a reprodução biológica de uma população indígena doravante católica14.

Desta maneira, os três ritos sacramentais deram forma à estrutura social que os inacianos pretendiam introduzir. Uma medida basilar era a diferenciação nítida entre batizados e catecúmenos (candidatos ao batismo), entre esposos cristãos e pessoas impedidas de contrair matrimônio, entre os aptos à confissão e aqueles temporariamente excluídos (devido a um desvio de conduta). De fato, uma eventual promiscuidade entre cristãos e “pagãos” tinha que ser evitada. Durante uma visitação às missões, Bettendorff mostra-se preocupado que, na longínqua aldeia dos Tupinambaranas, “os que se chamam cristãos se confundiam até com os pagãos, mais do que em outras aldeias. Assim não foi possível instruí-los de maneira satisfatória. Trabalhamos muito por lá durante estes poucos dias15.”

13 Ver QUILLIET, Bernard. L’acharnement théologique: histoire de la grâce en Occident, IIIe-XXIe siècles. Paris: Fayard, 2007, p. 338-341; SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo/Bauru: Companhia das Letras/EDUSC, 2009, p. 210-212. 14 Ver VIEIRA. Visita. Op. cit., p. 114-117 (§§ 24-33). A preocupação com a aplicação rápida e eficaz dos três sacramentos perpassa também a crônica de Bettendorff. Ver CODINA, María Eugenia. La crónica del P. Bettendorf: un misionero del siglo XVII en el Amazonas portugués. In: UN REINO EN LA FRONTERA: LAS MISIONES JESUITAS EN LA AMÉRICA COLONIAL, 1997, Quito. Atas do 49º Congresso Internacional de Americanistas. Quito/Lima: Abya-Yala/Pontifícia Universidad Católica de Lima, 2000, p. 235-238. 15 João Felipe Bettendorff. Carta ânua ao superior geral Oliva. São Luís, 21/07/1671. ARSI, cod. Bras 9, fl. 263v.

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Fiel às diretivas tridentinas, Vieira insiste na Visita para que os sacramentos sejam ministrados e celebrados conforme o Ritual Romano, um livro de rubricas litúrgicas aprovado pela Santa Sé, após o Concílio de Trento, e declarado universalmente válido. O aspecto formal não dá, assim, nenhum espaço a uma improvisação ou adaptação dos ritos às realidades e circunstâncias locais16. Além disso, a Visita fornece outras orientações práticas – também marcadas pelo formalismo – referentes à aplicação da tríade sacramental nos aldeamentos. Primeiramente, relativo ao batismo, Vieira prescreve: que os batistérios, lugares reservados exclusivamente para o rito, sejam ambientes apartados e bem arrumados no interior das igrejas e capelas das missões; que os dados pessoais dos recém-batizados sejam meticulosamente registrados – sobretudo os nomes exatos – para evitar qualquer dúvida posterior; que os índios recém-descidos, ainda não familiarizados a seu estabelecimento fixo no aldeamento e propensos de voltarem logo para o sertão, recebam o batismo somente in extremis, isto é, em perigo de morte. Em seguida, com respeito à confissão: que o missionário faça anualmente uma lista dos confitentes aptos para garantir que todos os habitantes de uma missão recebessem o sacramento uma vez por ano, “porque os Índios são muitos, e os Sacerdotes poucos”. Enfim, referente ao casamento: que as uniões matrimoniais sejam devidamente registradas, com especial atenção aos nomes dos nubentes e das testemunhas; que o missionário seja extremamente cauteloso caso os noivos forem provenientes de aldeamentos diferentes ou se um deles for um escravo legítimo17.

As prescrições minuciosas revelam uma atitude de extrema prudência que almeja reconciliar o valor dado aos sacramentos e a suposta inconstância dos índios, sobretudo, o nomadismo. Nas entrelinhas percebe-se o quanto Vieira teme a reticência dos índios em relação ao estabelecimento pronto e definitivo nas missões e sua tendência de mudar nomes e apelidos – o que poderia tornar caduco o registro dos respectivos indivíduos nos livros eclesiásticos –, além de desconfiar-se da existência aparente de uma rede de relações interpessoais, ou melhor, interclânicas entre diversos aldeamentos.

Devido a estas precariedades, os padres adotaram comumente uma postura minimalista em relação às exigências de admissão aos sacramentos. Assim, em caso de um batismo in extremis entre índios de uma língua tapuia, isto é, não tupi, uma instrução por meio de gestos era tida como sendo suficiente para garantir uma preparação rudimentar antes da aplicação do sacramento18. Nesse contexto, convém assinalar que os jesuítas fizeram atenção para que o batismo

16 Ver VIEIRA. Visita. Op. cit., p. 114 (§ 23). 17 Ver ibid., p. 114-117 (§§ 24-33). 18 Ver ibid., p. 116 (§ 28).

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fosse gratuito – pois não queriam lucrar com o sacramento – e universal, ou seja, acessível a todos, sem distinção de os candidatos serem livres ou escravos, sãos e enfermos, jovens ou velhos, tupis ou tapuias. Além disso, a ansiedade de batizar o maior número possível fez os inacianos se aproximarem dos índios de uma maneira cordial, diferente de outros religiosos que, durante as incursões ao sertão, chegaram, conforme alude Bettendorff, até a pedir escravos em troca do sacramento19.

Apesar da gratuidade e universalidade atribuídas ao batismo, os filhos de Santo Inácio não dispensaram uma instrução anterior. Geralmente, tratava-se de uma minicatequese sobre as virtudes teologais (fé, esperança, caridade) e a recitação do ato de contrição para evitar que o sacramento pudesse ser interpretado como um rito “mecânico” ou mágico. Em concordância com esta preocupação, cada sinal de consentimento por parte de um candidato potencial, mesmo sendo criança, foi levado a sério e interpretado como uma manifestação da vontade pessoal. A conversão de um chefe importante e, mais ainda, de um pajé renomado constituiu para o missionário um sucesso extraordinário20. Um exemplo deste anseio é o sonho – elemento típico da mentalidade barroca – de Bettendorff no qual ele se viu de pé na beira de um rio muito largo “pescando” numerosos meninos parecidos àqueles que batizaria poucos instantes depois21.

O papel dos catequistas indígenas foi, apesar do clericalismo acentuado definido pelo Concílio de Trento, eminente na vastidão do espaço amazônico. A preparação de adultos e jovens ao batismo nos aldeamentos desprovidos de uma residência jesuítica dependia deles, como também o batismo in extremis de “inocentes”, isto é, crianças de colo, e enfermos22. O qualificativo in extremis teve um significado muito grande para os jesuítas, pois às vezes seu único sucesso junto a um grupo indígena consistia em “ter salvado as almas” de alguns moribundos. Seja a concepção teológica de salvação na época, que considerava o batismo como um pré-requisito absoluto, seja a onipresença da morte, em

19 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 118-119. Bettendorff evoca esta prática ao relatar a fundação de uma missão junto aos Tupinambaranas e Aruaquis em 1659-1660. Segundo o cronista, o jesuíta Manuel de Souza soube que “muitos clerigos ecclesiasticos”, isto é, padres não jesuítas que acompanharam as expedições ao sertão, pediram aos índios contatados escravos em troca do batismo. 20 Ver ibid., p. 168-169 (batismo de crianças na região do Tapajós pelos padres Ribeiro e Misch e de um escravo adolescente por Bettendorff, 1661), 261 (batismo de numerosas crianças pelos padres Bettendorff e Consalvi, 1670) e 275-276 (batismo de um pajé famoso e instrução de uma mulher tida como morta antes de ser batizada). 21 Ver ibid., p. 169. O sonho antecede à cerimônia do batismo de numerosas crianças em Gurupatuba. 22 Ver VIEIRA. Visita. Op. cit., p. 113 (§ 19) e 116 (§ 29).

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razão das constantes epidemias, impeliram os missionários a aproveitarem as muitas oportunidades para ministrar o sacramento. Esta ligação evidente entre batismo e morte fez – também por causa do zelo e dos escrúpulos dos próprios padres – para que os índios atribuíssem ao sacramento um efeito ambíguo, como mostra o caso da índia, relatado mais acima, que temeu o falecimento imediato de seu filho após o rito batismal23.

De maneira parecida, os missionários visaram facilitar o acesso à confissão. Por isso, eles se contentaram, no caso dos índios, com o sentimento de atrição (arrependimento de uma falta cometida por medo de uma eventual punição) ao invés da contrição oficialmente exigida (remorso sincero e consciente de um erro e propósito explícito de evitá-lo doravante). Luiz de Alencastro observa a respeito desta diferenciação:

Confitentes deviam se submeter à contrição, à confissão propriamente dita e à compunção pelos pecados cometidos. [...] os confessores podiam recusar ou adiar o sacramento. Contrito caritate perfecta, a norma do Concílio [de Trento] distinguia a contrição perfeita, caracterizada pela hostilidade sincera e desinteressada ao pecado, da atrição, arrependimento apenas motivado pelo temor do castigo divino. Tolerada no batismo de nativos [índios], a simples atrição parecia, a alguns padres, insuficiente para tornar a confissão efetiva. 24.

O emprego de imagens mostrando cenas do inferno e o recurso às

indulgências, práticas já mencionadas mais acima, fizeram parte da pedagogia missionária de provocar o temor como condição mínima para o índio receber a absolvição, sobretudo na proximidade da morte, realidade onipresente na precariedade do quotidiano naquele tempo. Já no caso dos brancos, os padres insistiram geralmente no propósito consciente de melhorar a conduta25.

Seja como for, a confissão constituiu uma prática que aproximava os missionários dos índios. O tratado De procuranda salute Indorum, publicado em 1588/1589, pelo jesuíta espanhol José de Acosta, realça o sacramento da penitência no contexto da conversão dos índios como meio ideal para captar os

23 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 261 (desconfiança da mulher ante o batismo iminente de seu filho) e 168-169 (batismo de um menino à beira da morte). 24 Ver ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 164. 25 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 174. Esta visão diferenciada da confissão em relação aos brancos, se vê na aplicação do sacramento ao alferes João Corrêa, ajudante leigo do padre Bettendorff no ano de 1661.

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seus pensamentos26. A importância que os jesuítas conferiram à confissão provinha da tradição espiritual da ordem e, também, da corrente neoescolástica – conhecida como “teologia da graça” – que impregnou sua formação. Inácio de Loyola recomendou explicitamente a seus confrades, nos Exercícios espirituais, a recepção regular e assídua seja da confissão, seja da comunhão, além da participação nas diversas devoções populares27.

Também em razão destas prescrições internas, a diretiva da Igreja de confessar-se ao menos uma vez por ano, preferivelmente no tempo da Quaresma ou da Páscoa, foi incluída na Visita No entanto, o padre Vieira flexibilizou expressamente o tempo propício do recebimento da confissão, fazendo dependê-lo da presença do padre no aldeamento, independente do período litúrgico28. É muito provável que os missionários na Amazônia tenham conhecido e utilizado o Liber theologiæ moralis, um manual prático de teor casuístico para confessores, da autoria do jesuíta espanhol Antonio Escobar y Mendonza (1589-1669)29. Não obstante, tudo indica que a confissão constituiu, no contexto das missões, uma prática de caráter predominantemente formal, sobretudo em razão da concepção diferente de culpabilidade e pecado nas culturas indígenas que os missionários não conseguiram decifrar na época.

O matrimônio tinha, como já foi elucidado mais acima, uma dimensão social e mesmo política. Decerto, a vida íntima e a reprodução biológica de casais indígenas, cristianizados segundo os princípios morais e dentro de dinâmicas sociais cristãs, constituíram pré-requisitos indispensáveis para a integração dos índios à cristandade e, de modo concreto, às condições de vida num aldeamento. Assim, o Regimento das Missões, de 1686, aponta a importância do consentimento individual e livre de coação dos nubentes, conforme exigem as diretivas do Concílio de Trento que os jesuítas visaram aplicar minuciosamente. Com base nesta característica própria do matrimônio católico, a referida lei pretendia combater um abuso frequente cometido pelos colonos. Estes costumavam persuadir uma pessoa cristianizada do interior das missões

26 Ver ACOSTA. De Natura Novi Orbis. Op. cit., p. 601-604 (lib. VI, cap. 11) e 604-606 (lib. VI, cap. 12). Na medida em que Acosta sublinha a função da confissão como meio de entrar no “mundo” dos índios, ele insiste na adoção de uma postura de paciência e de zelo no aprendizado de suas línguas. Ver ibid., p. 404-407 (lib. IV, cap. 6), 606-608 (lib. VI, cap. 13) e 608-610 (lib. VI, cap. 14). 27 Ver LOYOLA, Ignace de. Exercices spirituels: texte définitif (1548). Paris: Seuil, 2004, p. 149-150. O n.º 354 versa sobre a confissão e comunhão frequentes e o n.º 355 sobre as devoções. 28 Ver VIEIRA. Visita. Op. cit., p. 116 (§ 30). 29 Ver MENDONZA, Antonio de Escobar y. Liber theologiæ viginti et quatuor Societatis Jesu doctoribus reseratus. Lyon: Impr. de J. Gautherin, 1646, 854 p. Este manual destinou-se diretamente aos confessores.

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para casá-la a um(a) escravo(a) indígena a fim de aumentar sua própria mão de obra. O Regimento denuncia esta prática

porque sendo o Matrimonio hum dos Sacramentos da Igreja que se requere [sic] toda a liberdade, & deliberada vontade das pessoas que o hão de contrair, me [o rei] tem chegado noticia que algumas pessoas do dito Estado, com ambição de trazerem mais Indios a seu serviço, induzem, ou persuadem aos das aldeas, para que se cazem com escravos, ou escravas suas, seguindose desta persuação [sic] a injustiça de os tirarem das dias aledas, & trazerem-nos para suas casas, que val[e] o mesmo, que o injusto cativeyro, que as minhas Leys prohibem30.

Fora a condenação explícita desta astúcia, a lei declara livres os escravos

envolvidos em tais uniões enquanto esposos ou crianças legítimas. Destarte, o status canônico e, decorrente disso, oficial dos casais formados por índios cristãos implicava uma intimidade relativamente protegida que beneficiou, sobretudo, as mulheres31.

Ao contrário da importância do matrimônio, a concubinagem foi considerada um pecado tão grave que deveria ser púnico severamente. Os envolvidos, tidos como adúlteros, foram geralmente expulsos da missão ou, não raras vezes, excomungados, haja vista que ameaçaram, por sua mera presença, o novo sistema religioso-social ainda não consolidado. Como não bastasse, qualquer infortúnio que se abatesse sobre um casal “pecador” foi logo interpretado como uma interferência punitiva sobrenatural. A suposta obstinação dos chefes na poligamia, que constituía uma forma de externar seu poder (e não sua luxúria), representou um verdadeiro desafio para os missionários32. Esses adotaram uma postura de absoluta intransigência, pois a poligamia era considerada como um impedimento no esforço de implementar uma sociedade “verdadeiramente” cristã33. Como vimos mais acima, os padres tentaram abordar a questão com prudência, sobretudo, por ocasião dos primeiros contatos. O procedimento comumente aplicado consistia nas seguintes medidas: deixar os principais polígamos escolher a “favorita” entre suas mulheres para ser sua esposa legítima34; sensibilizar outros índios concernidos sobre à necessidade da monogamia mediante uma catequese de

30 Regimento & Leys das Missoens do Estado do Maranham, & Pará. Lisboa, 21/12/1686. Biblioteca Pública, Évora, cod. CXV/2-12, fl. 121v (§ 6). 31 Ver ibid. 32 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 667-669. 33 Ver HAUBERT, Maxime. Índios e jesuítas no tempo das missões: séculos XVII-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 135-136. 34 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 155-156.

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teor indutivo35; por fim, averiguar o grau de parentesco entre os nubentes para evitar uma eventual invalidação das uniões matrimoniais36.

Em comparação à evocação frequente desta tríade sacramental e de sua importância para a incorporação dos índios ao projeto cristão-colonial, a eucaristia é pouco realçada, tanto no regulamento de Vieira como na crônica de Bettendorff. De fato, a celebração do “sacramento do altar” requeria dos índios, antes de tudo, uma atitude inteiramente passiva, pois incumbiu-lhes meramente “ouvir a missa”.

A onipresença da morte: inocentes, enfermos e moribundos

O século XVII esteve profundamente marcado pela onipresença da morte

em decorrência das constantes guerras, fomes e epidemias que se abateram, muitas vezes simultaneamente, sobre as populações, tanto nas Américas como na Europa. Devido a seu impacto nos imaginários populares, também o discurso catequético então em voga não ficou isento da centralidade do definhamento humano. Os catecismos da época, como aquele do jesuíta Nicolas Leyen, conhecido com o nome de Cusanus, de Luxemburgo – terra do padre Bettendorff –, conceberam o recebimento dos principais sacramentos como uma “lenta preparação para a morte”37. Nas suas missões ultramarinas, que ofereceram cenários de constantes e desconhecidos perigos, os jesuítas agiram em conformidade com esta visão negativa38. Além do mais, os grupos mais visados pelo zelo pastoral dos missionários eram geralmente os mais frágeis e vulneráveis: enfermos, moribundos e crianças recém-nascidas, isto é, pessoas ameaçadas por uma morte iminente. Garantir a salvação daqueles que se encontravam próximos da agonia final, significou, pois, tanto uma satisfação pessoal para o missionário como também um sucesso geral para a missão que lhe fora confiada.

Vieira também designou a morte como sendo uma das preocupações primordiais dos missionários nos aldeamentos, pois ela representava “a hora em se colhe o fruto de nossos trabalhos39”. Por isso, a administração da extrema-

35 Ver ibid., p. 171-172. 36 Ver LEITE. HCJB. Vol. 4. Op. cit., p. 252. 37 Ver BIRSENS, Josy. Manuels de catéchisme, missions de campagne et mentalités populaires dans le duché de Luxembourg aux XVIIe-XVIIIe siècles. Luxembourg: Institut Grand-Ducal, 1990, p. 253-261. 38 O padre espanhol José de Acosta, que era missionário no Peru e visitador no México, insiste na importância de acompanhar os moribundos, ministrando-lhes os sacramentos com uma instrução catequética prévia. Ver ACOSTA. De Natura Novi Orbis. Op. cit., p. 511-512 (lib. V, cap. 8). 39 VIEIRA. Visita. Op. cit., p. 117 (§ 34).

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unção e os ritos funerários deveriam ser executados na maior dignidade e solenidade possíveis para, desta forma, mostrar aos índios a importância dos últimos momentos da vida. As manifestações tradicionais de luto dos indígenas foram expressamente proibidas no intuito de marcar claramente a diferença entre as duas concepções – a cristã e a “pagã” – referente à vida post mortem. A Visita previu missas, orações e indulgências para manter viva a memória dos defuntos, reforçando, assim, a fé na imortalidade da alma que, aliás, constituiu também uma noção comumente aceita entre os índios de língua e tradição tupi40.

A doença enquanto uma experiência existencial “de limite” facilitou a conversão de indivíduos que, após uma eventual recuperação, poderiam servir de testemunhas da eficácia dos cuidados espirituais e corporais dispensados pelos missionários41. Bettendorff menciona o caso de uma índia enferma que se sentiu revigorada após o batismo e que, em decorrência disso, resistiu às propostas dos seus de “retornar à selva” 42. Uma das primeiras ações a ser realizada na chegada a uma aldeia indígena no sertão ou a um aldeamento sem residência fixa de religiosos era a visita aos enfermos. A Visita de Vieira a prescreve nos seguintes termos:

em chegando a elas [as aldeias], a primeira coisa que [os padres] farão, é saber se há doentes, acudindo logo aos que estiverem em algum perigo, e para que esta diligência seja efectiva não fiarão dos Principais, nem dos outros oficiais [ajudantes] da Aldeia, mas os mesmos Padres correrão por si mesmos as casas, e não sòmente [sic] procurarão os doentes, que houver nelas, mas também os que estiverem pelas roças, mandando-os logo, tratando do seu remédio espiritual43.

Bettendorff, aplicando esta recomendação de Vieira, fornece um relato de

uma visita semanal às cabanas indígenas na região dos Tapajós em 1661. Parece tratar-se mais de uma inspeção do que uma mera visita pasotral, pois o padre averigua as condições higiênico-sanitárias e, também, a presença eventual de pessoas enfermas. Bettendorff diz ter descoberto, agachado e isolado num canto escuro de uma choupana, um menino doente, provavelmente um “escravo”. Imediatamente, o padre o fez transportar para a residência dos

40 Ver ibid., p. 117-119 (§§ 34-36). Relativo à imoratalidade da alma na tradição tupi, ver CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 224-225. 41 Ver José Ferreira. Carta ânua ao superior geral Thyrso González (escrita pelo padre Miguel Antunes). 1696. ARSI, cod. Bras 9, 426r-431r, fl. 429v-430r. A carta evoca o batismo de um índio idoso, além de numerosas conversões e curas. 42 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 563-564. 43 VIEIRA. Visita. Op. cit., p. 114 (§ 22).

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missionários para cuidar dele. Em seguida, o batizou solenemente, dando-lhe como padrinho um soldado português. Depois, o missionário devolveu o menino são (pois recuperado) e salvo (pois batizado) à família que, segundo o relato, demonstrou sua plena satisfação44. Esta reação imediata de Bettendorff frente à criança doente e abandonado revela a tripla dimensão desta “procura” sistemática por doentes, prescrita por Vieira: primeiro, a aplicação de cuidados médicos (dando uma alimentação mais adequada e remédios); segundo, a administração dos sacramentos (sobretudo, o batismo para as crianças e a confissão e extrema-unção para os adultos); e, finalmente, a reintegração às famílias (em caso de recuperação da saúde) para servirem de testemunhas de sua transformação e conversão entre os seus.

Com efeito, a caridade, isto é, os cuidados corporais, tornou-se uma preocupação prioritária dos missionários. Assim, a Visita previu até a instalação de enfermarias ou hospitais nos aldeamentos maiores, sempre localizados, conforme definiu Vieira, “perto da casa dos Missionários, aonde se curem todos os enfermos da Aldeia com tôda a caridade a quem não têm suas casas por sua extrema miséria, e pouca caridade dos seus45.” Além disso, ele propôs a presença, nesses estabelecimentos, de coadjutores temporais* com experiência em cuidados terapêuticos ou farmacêuticos, como também a formação de alguns índios adultos aptos a trabalhar como enfermeiros ou boticários46.

Certos missionários tinham uma inclinação natural ou, até, uma formação sólida no campo medicinal. Na Missão do Maranhão, Bettendorff aponta para o padre Francisco Gonçalves e o coadjutor temporal Manuel Lopes que ele descreve como caridosos, comunicativos e experientes, três qualidades imprescindíveis para uma interferência frutífera junto aos enfermos47. Ele mesmo também soube prestar primeiros socorros, conforme prova seu relato sobre o tratamento da fratura de um braço de uma índia nheengaíba em 1679:

acudi logo, tratando de curar o braço da pobre india, e como não houvesse quem o soubesse curar, ordenei a seu marido que lh’o encaixasse primeiro e depois o lavasse com vinho e azeite do reino, e feito isso mandei-lhe fazer umas redinhas, duas de casca de mority, uma de um palmo e outra de dois palmos, mas antes disso fiz-lhe

44 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 168-169. 45 VIEIRA. Visita. Op. cit., p. 109 (§ 8). * Na Companhia de Jesus, os coadjutores temporais são os religiosos leigos, portanto sem ordenação presbiteral. Intitulados de “irmãos”, são professos dos três votos simples. A maioria exerceu uma profissão manual. 46 Ver VIEIRA. Visita. Op. cit., p. 109 (§ 8). 47 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 131 e 457.

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untar o braço, com ovos batidos e pôr-lhe pez de resina em riba e cobrir e amarrar tudo muito bem com as redinhas48.

Nas enfermarias dos aldeamentos e nas boticas dos colégios, os missionários

costumaram colecionar, de forma sistemática, produtos farmacêuticos, tanto de origem europeia (basicamente bálsamos e pílulas) como de proveniência ameríndia (especialmente, óleos vegetais e plantas medicinais)49.

Sobretudo durante as frequentes epidemias, a assistência prestada, de forma pronta e concreta, aos infectados deu realce aos padres jesuítas. Assim, referente aos anos de 1662 e 1663, quando a varíola assolou a capitania do Pará, logo após o primeiro levante dos colonos contra a Companhia de Jesus, Bettendorff escreve que “mais mortes haveria se os Padres Missionarios não tivessem acudido não só com os Sacramentos para cura das almas, mas ainda com as meizinhas para saúde dos corpos […]50”. Naquele momento, as fugas dos índios aldeados aumentaram drasticamente. Segundo o relato, os jesuítas instigaram índios e brancos a praticarem determinadas devoções tidas como eficazes, ministraram os sacramentos aos moribundos e ajudaram, com suas próprias mãos, a cuidar dos mais afetados. Bettendorff lembra que, em 1665, quando uma nova epidemia se abateu sobre a região, ele já sentiu de longe, por causa do mau odor de cadáveres em decomposição, os estragos causados pela doença em uma das missões nos arredores de Belém. Os poucos índios que estavam ainda em vida não conseguiram sequer enterrar os mortos. Segundo seu relata, só lhe restava confessar os doentes que já estavam à beira da morte51.

O colégio de Belém foi transformado, em 1695, em hospital para acolher as vítimas de mais um surto de varíola. O reitor mandou realizar uma novena a São Francisco Xavier e uma adoração à hóstia consagrada. Todos os padres disponíveis percorreram, conforme a crônica de Bettendorff, sistematicamente as ruas da cidade para consolar, confessar e transportar os mais atingidos pelo flagelo52. Embora as epidemias afetassem tanto os brancos como os indígenas, “todos os golpes deste fatal flagelo só descarregavão sobre os pobres Indios”,

48 Ibid., p. 337. 49 Ver LEITE. HCJB. Vol. 4. Op. cit., p. 189-190. 50 BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 213. 51 Ver ibid., p. 213-216. O trecho se refere às epidemias de 1662-1663 e 1665. 52 Ver ibid., p. 587-588. O recurso a certas devoções de caráter reparador resultou da crença de que as epidemias construíram punições divinas, cujos efeitos poderiam ser abrandados. Ver DELUMEAU, Jean. A história do medo no Ocidente (1300-1800): uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 154-220.

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como comenta o ex-governador Bernardo Berredo sobre os contágios dos anos 166053.

Porém, os jesuítas, enquanto homens formados para adotar posturas pragmáticas frente a situações adversas, iam além da mera caridade paternalista. Neste sentido, eles propuseram medidas sanitárias preventivas no intuito de promover o bem-estar dos habitantes dos aldeamentos. A potabilidade da água, a drenagem de pântanos ou áreas alagdas e o desmatamento para garantir uma boa e constante ventilação constituem as preocupações permanentes dos missionários54. Assim, Bettendorff recomenda, por ocasião das visitas às missões com núcleos habitacionais espalhados, que os doentes sejam transportados em uma reda até a capela para receberem o viático, em razão do suposto estado insalubre das casas indígenas e dos perigos potenciais vindos da mata55. Tais propsotas preventivas em relação à higiene e a saúde representam, sem dúvida, uma atitude pouco comum no Seiscentos.

Considerações finais

Os índios que viviam sob a tutela dos jesuítas na vasta extensão do vale

amazônico seguiam um rigoroso ritmo de trabalho e doutrina. A vida teve como eixo visível o cruzeiro erigido em meio à praça central de cada missão e como medidor audível do tempo o sino da capela. Na sua ótica barroca, os jesuítas esforçaram-se muito por entremear esta rotina de ensino e labor com as realidades “do céu” mediante os sacramentos que ministraram e as devoções que animaram. Pastoralmente, eles embasaram-se, fieis às decisões do Concílio de Trento, na pratica sacramental como via indispensável para instaurar um modo de vida cristã em suas comunidades inteiramente compostas por catecúmenos e neófitos indígenas.

Neste sentido, o batismo selou a conversão (após uma catequese rudimentar), a confissão garantiu um contato pessoal (mesmo esporádico) entre cada novo cristão e o sacerdote, o matrimônio implementou as regras basilares cristãs (em termos tanto morais quanto sociais) e, finalmente, a extrema-unção validou a salvação dos índios constantemente ameaçados pela morte (em decorrência das epidemias e dos abusos infligidos). No entanto, o formalismo sacramental foi atenuado por um humanismo concreto, tipicamente jesuítico,

53 BERREDO, Bernardo Pereira de. Annaes historicos do Estado do Maranhaõ em que se dá noticia do seu descobrimento e tudo o mais que nelle tem succedido desde o anno, em que foy descuberto até o de 1718. Lisboa: Impr. de F. Luiz Ameno, 1749, p. 522. 54 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 29 (referente ao ar) e 44 (relativo à água); LEITE. HCJB. Vol. 4. Op. cit., p. 190-191. 55 Ver BETTENDORFF. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus. Op. cit., p. 582-583.

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que se evidenciou por meio da preocupação com os enfermos nas choupanas, a confiança nos catequistas nativos e o ensino elementar dispensado a curumins (meninos) e cunhatãs (meninas), além do forte caráter lúdico das devoções barrocas.

A maneira de viver e crer nessas comunidades missionárias planejadas, marcada por um emaranhado de alianças, empatias, incompreensões e ressignificações tanto por parte dos missionários quanto dos índios, revelou ser relativamente durável. Não obstante, a onipresença da morte, que se manifestava pela mortandade elevada em razão das frequentes epidemias e das múltiplas formas de violência e trabalho compulsório, deu à evangelização a têmpera de uma lenta preparação para o fim último. Sobretudo, os índios viram no zelo dos missionários com respeito aos mais vulneráveis e fragilizados entre os seus um intento de açodar a iminência da morte.

Esta complexidade de encontros e desencontros entre missionários e índios, contida nas entrelinhas das fontes, não impediu que até hoje grande parte das comunidades ribeirinhas da Amazônia perpetuem costumes e rituais herdados do “tempo das missões”. As festas anuais dos padroeiros, a iluminação dos túmulos nas segundas-feiras, a encomendação das almas na Semana Santa ou as ladainhas, muitas vezes ainda cantadas em latim pelos foliões, em numerosas comunidades ao longo do Amazonas ou de um de seus afluentes têm sua origem na multifacetada evangelização de cunho barroco do século XVII.

OBS. Partes do presente texto integram um artigo a ser publicado, em 2015, pela Revista Estudos Amazônicos do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém.

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FESTAS CATÓLICAS NA CIDADE DE BELÉM: O CASO DO NATAL DE PADRE EUTÍQUIO (1870-1879)

Kelly Chaves Tavares1

Resumo Este artigo tem como objetivo discutir aspectos sobre as festas religiosas comemoradas na cidade de Belém na década de 1870. Dentre as muitas festas católicas elegemos o Natal e o dia de Reis como as duas que serão trabalhadas neste estudo. As fontes que serão utilizadas são jornais que circularam na cidade de Belém e são elas: o Diário de Belém, O Liberal do Pará e um anuário chamado Almanach do Diário de Belém. Através de uma análise biográfica do padre Eutíquio Pereira da Rocha podemos traçar um panorama de como era comemorado o Natal e o Dia de Reis na cidade, e podemos dizer que as respectivas festas eram comemoradas seguindo uma tradição religiosa do Catolicismo popular sendo permeado de símbolos que também traduziam um pouco da simbologia religiosa da religião na cidade na década de 70. Palavras-chave: biografia; Eutíquio Pereira da Rocha; Catolicismo popular; século XIX.

“O nobre, o rico, o pobre, o plebeo, o artista, todos felizes, como que à porfia, vivião, davão

expansão ao praser, n’essa festa quase universal (...)” Jornal Diário de Belém, 7 de janeiro de 18792.

Nesta passagem do jornal Diário de Belém, o articulista que se escondia sob o pseudônimo Beldustris enunciava sua percepção das festas de natal ocorridas no mês passado com um tom profundamente saudosista. Em seu artigo ele descrevia que o natal fora comemorado na cidade de maneira bastante frenética contando com a presença maciça dos populares que “affluia[m] em ondas para todos os templos”3.

1 Mestranda em História Social da Amazônia na Universidade Federal do Pará e desenvolve como tema de sua dissertação de mestrado construir uma biografia sobre o padre Eutíquio Pereira da Rocha, orientada pela prof.ª Dr.ª Magda Ricci e financiada com bolsa de pesquisa pela CAPES. 2 VARIEDADE. CINCO MINUTOS DE PROSA. Jornal Diário de Belém, Terça Feira, 7 de Janeiro de 1879, Número 5, Ano 12, página 3. 3 Ibidem, página 3.

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Esta ligeira narrativa de Beldustris acerca do Natal de 1878 nos remete a um amplo imaginário religioso em que as festas católicas eram espaço privilegiado para a vivência da experiência religiosa católica em que abarcavam um complexo de crenças e maneiras de experimentar o catolicismo muito diversificadas, em que bispo, cônegos, padres e fiéis católicos tinham sua própria maneira de viver a religião.

Ao longo de minha pesquisa para dissertação de mestrado venho rastreando a trajetória de vida de um sacerdote católico muito influente na comunidade católica da capital, esse padre chamado Eutíquio Pereira da Rocha, era natural da Bahia e veio para o Pará no ano de 1851 e aqui construiu uma sólida carreira no ramo da instrução pública da província seguindo também carreira pública como vereador da Câmara Municipal de Belém. Estes dois aspectos da vida de padre Eutíquio foram abordados em minha dissertação, porém, neste trabalho quero privilegiar uma face da vida de Eutíquio que nunca esteve dissociada de sua atuação enquanto professor e vereador. Aqui quero discutir Eutíquio enquanto sacerdote católico participante e atuante dos festejos religiosos do Natal e Dia de Reis.

Discutiremos antes a importância metodológica da biografia para o estudo da história, e como esta se configura em um importante instrumento para a análise da mudança histórica das grandes estruturas sociais, e no caso da religião como o estudo de uma vida pode nos dizer sobre o complexo de crenças praticadas no século XIX, um século em que o sagrado deixa de estar associado ao mundo terreno, e nesse sentido as consciências já estão imersas na secularidade.

Cabe ressaltar que ao utilizarmos a perspectiva biográfica para construir o presente artigo não pretendemos com isso fazer a “história de uma vida” e sim pensar segundo as argumentações de Jacques Le Goff, que na obra São Luís, biografia enuncia que o personagem biográfico não cumpre um destino, ele altera seu contexto “constrói a si próprio e a sua época, tanto quanto é construído por ela. E essa construção é feita de acasos, hesitações e escolhas” 4. Com isso pretendemos reconstruir a maneira como as festas católicas eram experimentadas pela comunidade católica, neste caso, como um padre vivia esse momento de efervescência religiosa que se configurava nos festejos natalinos.

Giovanni Levi também utiliza esta perspectiva de pensar a presença de um padre dentro da estrutura dos tribunais inquisitoriais na obra A herança imaterial5, e em outro escrito sobre os usos da biografia na escrita da história Levi enuncia

4 LE GOFF, Jacques. Introdução. In: São Luís. Biografia. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 23. 5 LEVI, Giovanni. A Herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 46 – 47.

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que o princípio metodológico que o orienta a pensar a biografia é que “uma vida não pode ser compreendida somente através de seus desvios e singularidades, mas, ao contrário, recolocando cada desvio aparente nas normas, mostrando que ela toma lugar em um contexto histórico que o autoriza” 6. No caso deste trabalho, tentaremos relacionar a presença do padre Eutíquio nas festas do Natal e dia de Reis demonstrando a vivencia destas festas através da ótica de um padre católico e o significado que elas tinham para os “ministros de Jesus Cristo” (como eram assim chamados os sacerdotes nos jornais) e a relação deles com os fiéis. Antes, faremos uma pequena incursão acerca historiografia sobre as festas do catolicismo popular no Império destacando a análises sobre a festa do Divino Espírito Santo no Rio de Janeiro, e o Círio de Nazaré e as festas de São Raimundo no Pará; demonstrando com isso entender o lugar das festas de Natal dentro do calendário religioso e ao mesmo tempo cívico do Império. As festas do Catolicismo no Império

As festas do catolicismo brasileiro eram celebradas segundo Martha Abreu

com grande ênfase para o Rio de Janeiro na festa do Divino Espírito Santo, Abreu destaca que a festa do Divino era a maior faz festas realizadas no Rio de Janeiro tendo sido realizada durante um século7. Através da análise da festa do Divino, a autora pôde acompanhar as transformações de uma determinada prática católica (as festas de santo) juntamente com os seus complementos profanos populares que eram as diversões, as danças e os jogos, ao longo do século XIX o cerceamento da festa através da repressão da Câmara dos Vereadores e do Corpo de Polícia.

No caso específico do Pará temos a tradição das festas do Círio de Nazaré e a Festa de São Raimundo que foi estudado em brilhante estudo de Arthur Vianna denominado Festas populares do Pará. Arthur Vianna argumenta que a festa do Círio de Nazaré8 era uma das mais antigas remontando ao período

6 LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta M. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 176. 7 ABREU, Martha Campos. O Império do Divino. Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro (1830-1900). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, SP, 1996, p. 146-158. 8 VIANNA, Arthur. Festas Populares do Pará. (I) A Festa de Nazareth. In: Annaes da Biblioteca e Archivo Público do Pará, Pará, Brazil: Typographia Alfredo Augusto Silva, 1905, p. 18-78.

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colonial, sendo assim diferente da festa de São Raimundo9 que segundo Vianna se caracterizava como uma das festas populares e religiosas mais novas do Pará. A festa do Divino Espírito Santo é também citada por Vianna como um dos festejos realizados no Pará se caracterizando segundo ele como um “culto simples e folgazão dos rapazitos”.

O Círio de Nazaré é tratado como fruto da influencia da colonização portuguesa se constituindo assim como herança das crenças de além-mar que segundo Vianna foi germinada no solo fértil de crenças da Amazônia, causa principal que favoreceu o nascimento do culto da imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Escrevendo no início do século XX, Arthur Vianna define que naquele contexto a festa do Círio de Nazaré passara por muitas transformações e naquele momento estava “deturpada pelo meio” e decaída do “apogeu em que tempos atingiu”. Cabe lembrar que nas análises de Arthur Vianna o Círio de Nazaré não era uma simples transfiguração das festas portuguesas, pelo contrário, o Círio enquanto festa seguira os próprios rumos que os homens e mulheres da Amazônia lhes deram.

Já a festa de São Raimundo é outra festividade popularizada no século XIX analisada por Arthur Vianna, esta era organizada ao redor de seu principal fundador e personagem folclórico da festividade, o mestre Leopoldino. Seu tipo físico de mestiço em que se fundem o preto e o branco segundo nos conta Arthur Vianna estava intimamente relacionada com o cotidiano da escravidão. Todos os símbolos da festa tinham caráter eminentemente popular a começar por Leopoldino, filho da liberta Monica de propriedade da senhora Constança da Cunha, nascido na Casa da Capelinha na Rua de Santo Antônio. Durante a juventude aprendeu o ofício de pedreiro, mas, não o exerceu por muito tempo devido à fachada de um prédio ter desabado sobre ele deixando-o com os membros quebrados, Leopoldino rumou para outro ofício mais leve tornando-se barbeiro aprendiz do mestre Laurindo, barbeiro da Rua da Trindade. Após aprender o ofício de barbeiro com mestre Laurentino, Leopoldino instalou sua barbearia na Rua de Sant’Anna que devido ao grande número de clientes logo se tornou ponto de encontro nas noites da “rapaziada folgazã”10. Lá Leopoldino realizava também práticas de cura, segundo Arthur Vianna, com grande habilidade ganhando assim notoriedade entre os populares que lhe dedicavam novenas, ladainhas e missas e mais tarde ganhou a devoção das Irmãs de São Raimundo e assim fora construída uma irmandade. Obrando curas na frente nas igrejas de Sant’Anna com a ajuda do mestre André, sineiro da igreja, mestre Leopoldino conquistou a fama entre os populares. Uma noite em viagem para

9 VIANNA, Arthur. Festas Populares do Pará. (III) In: Annaes da Biblioteca e Archivo Público do Pará. Pará, Brazil: Typographia Alfredo Augusto Silva, 1905, p. 373-389. 10 Idem, ibidem, p. 373.

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a Ilha das Onças, mestre Leopoldino teve a ideia de dedicar uma festividade organizada pela irmandade dedicada a São Raimundo, que já era celebrada em pequeno número pelas mulheres devotas devido aos milagres obrados pelo santo especialmente no parto. Essa pequena história é apontada por Vianna como o início da festividade que foi realizada na década de 1870, ao que Arthur Vianna indicou com a permissão para a celebração da irmandade dada pelo cônego Sebastião Borges de Castilho, vigário da igreja de Sant’Anna.

Os festejos natalinos, objeto central deste artigo, também tinham o seu lugar no calendário de festividades no século XIX. Anne Martin-Fugier11 indica que a celebração do Natal era parte dos ritos da vida privada da burguesia. Segundo a autora, o ano se desenrolava segundo as festas litúrgicas indo do Natal ao dia de Todos os Santos, do nascimento de Cristo ao dia de Finados. Essas festas litúrgicas eram passagens obrigatórias do ano que aos poucos foram se transformando em ocasiões de festas familiares, em especial, o Natal assume outro sentido, pois, virá a e dissociar do nascimento de Jesus em Belém para se transformar cada vez mais na festa de crianças. Desse modo, as famílias tomam as festas cristãs para se autocelebrar. Toda uma simbologia do Natal é inventada como os pinheiros de Natal e os presépios. Mais tarde tomaremos um caso específico dos usos dos presépios não na França como bem analisou Anne Martin-Fugier, mas, na cidade distante dos luminosos natais europeus, Belém do Grão-Pará.

Entre cordões de pastorinhas e presépios: os festejos natalinos em Belém

No anuário Almanach feito no ano de 1878 pelos redatores do jornal Diário de Belém aparecem as datas comemorativas celebradas no Império. O mês de dezembro é dedicado a duas efemérides: o aniversário do imperador D. Pedro II. Após isso, se inicia um período que vai o dia 21 ao dia 31 que é essencialmente dedicado aos festejos do Natal12.

Esse período marcado no calendário religioso definia também o ritmo das repartições públicas da província, considerando que as festas do Catolicismo brasileiro eram transformadas em feriados aos quais os exercícios das funções públicas na Câmara Municipal, educandários públicos e outras repartições provinciais. Consideramos isso como uma face da relação de solidariedade ativa entre Estado e Igreja, segundo nos apontou Fernando Freitas Neves, expresso no interesse mútuo que Estado e Igreja tinham de se manter aliados no processo

11 MARTIN- FURGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. In: PERROT, Michelle (org.) História da Vida Privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.176-245. 12 Jornal Almanach do diário de Belém. Ano 1, 1878, Pará, página 43.

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de reprodução da monarquia no caso do Estado, e no Catolicismo, no lado da Igreja.

O mês de dezembro tem especial importância por representar dois momentos cruciais para o estado e para a igreja: o aniversário do imperador D. Pedro II, que segundo os ofícios trocados entre a residência do bispo e a secretaria da presidência da província nos informam era sempre comemorado no dia 2 com um Te Deum, celebrado pelo bispo D. Macedo Costa habitualmente na Igreja da Sé. Isto representa o que há de mais explícito da relação entre igreja e estado, primeiro porque simbolizava a valorização da monarquia que se reproduzia segundo os signos da igreja.

Após o aniversário do imperador, se iniciava a partir do dia 21 oficialmente os festejos do Natal que segundo nos informam os jornais que circulavam em Belém eram realizados os adornamentos das fachadas dos edifícios públicos como o palácio da presidência da província e o edifício da Câmara Municipal, iluminação das matrizes e uma série de ornamentos das ruas principais da cidade. Por outro lado, a população fazia sua própria comemoração organizando seus próprios cordões, bailes e reuniões familiares como temos notícia através do jornal Diário de Belém datado de uma terça-feira, 9 de janeiro de 1877.

Não menos dignos de atenção foram os cordões de pastorinhas que percorreram as ruas (...). Entre os cordões o que mais distinguimos pela boa harmonia dos cânticos e pelo bem ordenado atavio das vestes, foi o dr. José A. de Macedo, a quem cumprimentamos pelo bom gosto que teve, não poupando despesas que satisfizessem os amadores13.

No artigo do Diário de Belém os cordões de pastorinhas são descritos como

componente essencial das festas de natal em Belém, porém, este era um ritual que seguia uma tendência mais ampla ao longo do século XIX. Encontramos em outras províncias do império a presença dos cordões de pastorinhas como ritual integrante dos festejos natalinos. Silvio Romero14 descreve que em Pernambuco organizavam-se as chamadas Lapinhas, que eram nichos que representavam o presépio do nascimento de Jesus. Como parte integrante das lapinhas criavam se cordões de dança e canto entoados por mulheres negras e mulatas muito enfeitadas, em geral “na primeira flor da idade”15 que eram acompanhadas “de um negralhão vestido burlescamente, a tocar pandeiro”.

13 LIGEIRO ESBOÇO SOBRE OS FESTEJOS DE NATAL. Jornal Diário de Belém. Terça Feira 9 de Janeiro de 1877 Ano 10, Número 5, p. 2. 14 ROMERO, Silvio. Folclore brasileiro. Cantos populares do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985. 15 Idem, ibidem, p. 41

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A descrição das lapinhas de Pernambuco tem muitas similaridades com os cordões de pastorinhas realizados em Belém, dentre os pontos a destacar estão o farto repertório de cânticos, o rico apanhamento das vestes e a presença das mulheres. Sob este ultimo aspecto o mesmo jornal descrevia que o comando dos cordões de pastorinhas era feito essencialmente pelas mulheres das classes populares.

Tambem tomarão parte activa nos folguedos as talheiras, camponesas, pastoras, estrelas, bahianas, etc, grupos de mulatas e creoulas do Pará, que trajando todas brancas cambraias com enfeites de valiosas fitas e flores e munidas do tradicional maracá (...)16

Luiz da Câmara Cascudo17 complementa dizendo que ao longo de todo o

século XIX houve o completo “reinado” dessas pastoras, que com pandeiros e maracás cantavam e dançavam em louvor do Menino Jesus. Cascudo observa através da literatura folclórica que este gênero não desaparecera no início do século XX de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Nina Rodrigues18 analisando o cordão de pastorinhas em Belém dividiu este ritual em dois tipos: havia o ‘terno’ que era realizado pelas famílias abastadas, que segundo Rodrigues era “mais sério e aristocrata”19 e outro chamado ‘rancho’ de caráter mais “pandego e democrata”20. No mesmo exemplar do jornal Diário de Belém encontramos dois artigos que versavam sobre experiências diversas do mesmo ritual de cordão de pastorinhas. No primeiro temos uma experiência do ritual perpassado pela harmonia dos cânticos e pela riqueza dos ornamentos que destacavam se, nas palavras do redator, pelo bom gosto do doutor José Macedo antes de tudo um político do Partido Conservador21, que organizou para que seu cordão saísse no natal de 1876 com Reis representando “a África em homenagem ao Messias”22. Podemos entrever que tantos a elite

16 LIGEIRO ESBOÇO SOBRE OS FESTEJOS DE NATAL. Jornal Diário de Belém. Terça Feira 9 de Janeiro de 1877 Ano 10, Número 5, p. 2. 17 CASCUDO, Luís Câmara apud ROMERO, Silvio. Folclore brasileiro. Cantos populares do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985, p. 142. 18 RODRIGUES, Raymundo Nina. Sobrevivências totêmicas: festas populares e folklore. In: Africanos no Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1932, p. 175. 19 Idem, ibidem, p. 142 20 Idem, ibidem, p. 142. 21 O nome do doutor José A. de Macedo constava entre os participantes da chapa comandada pelo cônego Siqueira Mendes nas eleições de 1876 na cidade de Belém conforme referência do jornal O Liberal do Pará de quarta feira 12 de maio de 1876, número 247, ano 7, página 1. 22 Jornal Diário de Belém. Terça Feira 9 de Janeiro de 1877 Ano 10, Número 5, p. 2.

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quanto os populares faziam sua própria leitura do ritual do cordão de pastorinhas e nela introduziam simbologias as mais diversas realizando aquilo que Eric Hobsbawm23 denominou como a invenção das tradições.

A outra experiência do ritual que temos descrito no jornal foi aquele experimentado pelos populares, especialmente as mulheres pobres “de cor” que cabe notar faziam uso dos instrumentos musicais como as maracás (também utilizados nos cordões em províncias) saíam às ruas “na simplicidade de seus hábitos”24 entoando “côros, canções de boas festas e hynnos ao Deos Menino”25. Temos através da descrição do articulista A. R. Couto que essa vivência popular dos festejos de natal não a dissociava de modo algum dos festejos das elites. As ruas são descritas como o espaço em que a vivência dessas duas experiências de festa do natal disputava o mesmo espaço.

A estrada de São José (atual Rua Dezesseis de Novembro) era um dos pontos de encontro dessas diversas maneiras de experimentar os festejos natalinos. Ao longo desta estrada eram erigidos inúmeros presépios que eram visitados pelos cordões de pastorinhas em suas procissões pela cidade. Sobre os presépios, o articulista do Diário de Belém evocava que,

muitos d’elles preparados com gosto e luxo, realçando o do sr. Padre Eutychio, á estrada de S. José26.

Anne Martin-Furgier destaca na França antes 1863 não se fala em presépios,

nem nas igrejas, nem nas casas. O habito de se montar cenas do nascimento de Cristo só aparece anos depois nas igrejas como montagens vivas e falantes que na visão de Larousse são irreverentes misturando o sagrado e o profano para provocar riso nos fiéis. Martin-Furgier só encontra presépios nas casas familiares em 1906, em grande número e vendidos a 20 ou 30 mil francos, e contava com sete ou oito personagens principais. No caso dos presépios de Marselha, além das figuras sacras tradicionais introduziam-se figuras profanas que Martin-Furgier observa como uma insinuação à chegada da modernidade que assumia forma na iluminação pelas velas, formas das casas de quatro a cinco andares e locomotivas a vapor.

No caso do padre Eutíquio seu presépio ricamente adornado construído à frente de sua casa na estrada de São José era o objeto que tinha finalidades

23 HOBSBAWM, Eric. Introdução. A invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997, p. 9-24. 24 NOTÍCIAS DIVERSAS. FESTAS DE REIS. Jornal Diário de Belém. Terça Feira 9 de Janeiro de 1877 Ano 10, Numero 5, p.1 25 Ibidem, página 1. 26 Ibidem, página 1.

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pedagógicas no processo de educação da comunidade católica. Aqui não podemos dissociá-lo de sua carreira enquanto professor dos educandários públicos e particulares da capital. Em uma província em que a educação encontrava grandes entraves ao seu desenvolvimento e com uma grande massa de homens e mulheres pobres que não sabiam ler e escrever a melhor maneira de fazer a educação católica chegar até essa população pobre e analfabeta se dava por meio do imagético, ou seja, através das cenas que representavam as passagens da Bíblia, que no caso do Natal era a época propícia para a representação do nascimento de Cristo. Como um padre, Eutíquio representava em seu presépio o que de mais enraizado ele tinha em sua experiência de padre secular, um religioso formado em uma tradição brasileira, regalista e liberal ‘por natureza’.

Um padre formado “no mundo” tinha a ideia de construir um presépio motivado pelo desejo de promover a rememoração do sagrado, corporificado na cena do nascimento de Jesus Cristo, no mundo terreno. Era essa a função do presépio de padre Eutíquio: trazer do céu para a terra a vivência do Catolicismo que só podia ser experimentado neste mesmo mundo, aqui era o lugar de se aprender sobre a religião, e não essencialmente [unicamente] dentro das matrizes e seminários. Esta visão de um padre secular foi uma das diversas leituras construídas sobre os festejos de natal.

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RELIGIÃO, PODER E SAGRADO: ANÁLISE DAS ELABORAÇÕES DE GÊNERO À LUZ DE POMBAGIRA

Lucielma Lobato Silva1

Resumo

Neste trabalho me proponho investigar as elaborações de gênero criadas acerca da Pombagira na religião de tradição afro-paraense Mina Nagô, pois essas elaborações, nesta tradição religiosa, podem ser responsáveis pela ausência de filhos de santo desta entidade2. Ela que não é propriamente um ser, é uma figura mítica retratada como uma mulher poderosa, liberta, com a qual ninguém pode (PRANDI, 1996). Sendo assim, ela traz outro olhar do ideal de mulher, uma vez que é pública, a outra, a mulher da rua, sem dono, longe dos padrões femininos estabelecidos pela sociedade brasileira (DEL PRIORE, 2011; FREYRE, 1968). Devido essa liberdade e a relação desta com a vida sexual e promiscua, foi considerada pelos cristãos como diabólica. Palavras- Chave: Religião de Matriz africana, Poder e Simbolismo.

Introdução As Pombagiras são entidades apresentadas como sendo destemidas, donas

de seus destinos, diabólicas (esposa de Lúcifer) que conseguem tudo o que querem e por isso, dotadas de poderes malignos (MENEZES, 2007). Dentre os diversos terreiros pelos quais tenho andado, tanto na cidade de Abaetetuba, quanto em Belém ou em Vigia no Pará, homens e mulheres, que são socialmente estigmatizados e vítimas de preconceito, encontram nessas identidades o seu ideal para a sobrevivência. Nesse sentido, ao que percebo em um olhar anterior, os médiuns constroem para si outra identidade que lhe é socialmente pertinente

1 Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará PPGA/UFPA, Mestra em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará, professora de História da educação básica do Estado do Pará. 2 Refiro-me aqui às entidades principais, as quais os médiuns normalmente são preparados. Os médiuns podem até possuir Pombagira no seu carrego de santo, mas nunca são preparados para cultuar Pombagiras. Geralmente os pais de santo decifram o Orixá principal e o caboclo de seu filho de santo, os Exus e Pombagiras também são decifrados, mas eles não são entidades principais como pode ser verificado na Umbanda e no Candomblé, segundo Prandi (1996) médiuns preparados para receber no seu carrego a entidade principal uma Pombagira ou o Exu.

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(HALL, 2002). Por meio dela, segundo muitos médiuns, conseguem ser aceitos e passam a ter prestígio social.

A investigação desse trabalho será na religião Mina Nagô tradição afro-paraense que se estabeleceu no Pará vinda do Estado do Maranhão, e segundo Vergolino (2003, p. 22) possui um conjunto de entidades, pois “tanto se cultua os orixás nagôs (...) quanto os voduns jejês que podem corresponder aos orixás nagôs (...)”. Também se cultua encantados, caboclos e exus e/ou Pombagiras. O recorte espacial da pesquisa será a cidade de Abaetetuba, localizada no nordeste paraense. Dois terreiros foram escolhidos para realizar a pesquisa: o Templo Cristão Afro de Nagô Oxóssi Urucáia e o Centro de Manifestações Mediúnicas Oshalufã. Estas casas foram selecionadas dentre os vários motivos pela forte presença desta entidade.

Essas entidades equivalem ao masculino de Exu ou Exu-mulher (AUGRAS, 1989) e possuem profundas ligações com a magia. Para Monique Augras, Pombagira representa uma espécie de recuperação brasileira de forças e características de divindades africanas que, no Brasil, no contato com o catolicismo, teriam passado por um processo de “cristianização” (AUGRAS, 1989).

Elas, (as Pombagiras), segundo a clássica etnografia de Liana Trindade (1985) Exu e Poder, jogam nos dois times, ou seja, trabalham sem problemas para o bem e para o mal, pois os exus e Pombagiras atuam sempre em condições contraditórias, por isso são totalmente ambivalentes, são “o princípio estruturante do universo”. É perigoso e poderoso, importante e evitado, portanto, atuam em uma condição de liminaridade (TURNER, 2005).

As Pombagiras, também chamadas de exu feminino ou exu-mulher, exercem grande influência nas religiões de matriz africana, porque durante várias conversas informais, mantidas no convívio na Mina em Abaetetuba, como a que tive com Mãe Emília, obtive afirmação de que a Pombagira é uma entidade importante, pois as pessoas que mais a procuram são para resolver “casos de amor”, e esse “problema é ela quem resolve!”.

Diante do exposto acima, são elas, as Pombagiras, quem trazem clientes para as casas de santo, isto é, são elas quem resolvem os problemas mais urgentes da grande maioria do público que procura as casas de santo. Quanto aos filhos de santo da Mina, vários são os casos de pessoas que absorvem a identidade de tais entidades, como no caso de pai Doca, o qual me relatou que antes de se assumir enquanto religioso afro era comumente estigmatizado por seus familiares e vizinhos por ser homossexual, em suas palavras:

Antes de eu ser pai de santo e de cuidar com mais zelo da minha Pomba Gira eu era muito vítima de preconceito o povo daqui da minha casa não me respeitava, na

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rua eles me chamavam de veado, pão com ovo... Agora, eles tem me respeitado, até porque hoje eu sou muito mais ela (Pomba Gira) do que eu mesmo.

Nessa mesma perspectiva, Mãe Maria José pontua:

Quando eu não mexia com ela – Pomba Gira Maria Padilha - meu marido me batia direto, por causa de desentendimento de casal. Agora, ele me leva na palma das mãos, porque ele pensa que eu sou um pouco ela. Eu acho até que ele tem razão, porque ela está sempre perto de mim, às vezes eu me pareço mais com ela do que comigo mesma.

As representações e elaborações corporais , performáticas e ritualísticas

demonstram, em alguns casos, uma forma de resistência das pessoas que participam ativamente da Mina em Abaetetuba, pois apesar de serem apresentadas como demônios, prostitutas, transgressoras e ao mesmo tempo sagradas, as Pombagiras levam para homens e mulheres dessas religiões uma nova forma de se expressar e até de encarar o mundo, não como meros coadjuvantes, estigmatizados, excluídos ou ignorados , mas como atores principais, donos de suas vidas e de seus destinos.

Práticas do sagrado: possessão e identidade

Segundo Birman (2005), a possessão nos terreiros de religiões de matriz

africana traz consigo mediadores na esfera do sobrenatural, mas também gera fortes efeitos socais e políticos, devido à presença das entidades na vida do médium e de seu círculo de relação. A possessão pode gerar modificações, inclusive na pessoa, como no caso de alguns homens que comumente alteram seu papel de gênero, favorecendo assim a homossexualidade, e quando já são homossexuais masculinos, a possessão pode engendrar ativação da virilidade (CARDOSO, 2012).

O que se vê são os polos de dualidade entre humanos e não humanos em que o médium deixa de ser ele na realidade para se tornar um médium através de seus personagens construídos. E assim, alguns se apropriam das representações de suas Pombagiras como espécie de proteção familiar, como descreve Campone (1999).

Os espíritos - principalmente as Pombagiras – viram, então, pivôs de uma reorganização profunda das relações de poder no seio do casal: o aliado invisível outorga sua proteção e seu poder a seu cavalo face a um homem que raramente dispõe das mesmas mediações sobrenaturais (CAMPONE, 1999, p. 181).

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Para Campone (1999) os médiuns se revestem da imagem da Pombagira para tentar solucionar questões como: conflitos amorosos relacionados ao ciúme, rivalidades, vingança, humilhação, violência e poder. Comisso, as entidades orientam ou agem em favor de seus “cavalos” :

Na maior parte dos relatos, a relação entre a mulher e seu espírito protetor, Exu ou Pomba Gira, é sempre vivida como uma aliança que permite às mulheres fazerem face à violência ou à traição dos homens. São, pois, os espíritos que intervêm diretamente, nos momentos mais perigosos da existência de seus cavalos, para o protetor e para punir os culpados (CAMPONE, 1999, p. 182).

Segundo esta autora, na sua pesquisa no candomblé, as mulheres

homossexuais masculinos, são pessoas que comumente pertencem à classe popular e assinalam, quase sempre, a inclusão das Pombagiras em suas relações pessoais e familiares. Essa inclusão é capaz de lhes retirar a posição de uma possível submissão:

A aliança das mulheres com o Exu – e sobretudo com elas com as Pombagiras – inverte as suas posições de submissão na vida cotidiana, para impor, através da palavra dos espíritos, suas vontades aos homens. A autoridade sobrenatural, oposta a autoridade masculina, conduz então a uma redefinição dos papéis no casal (CAMPONE, 1999, p. 182).

Ainda nessa perspectiva, mas na contramão dessa discussão, surge Birman (2005). Em seu artigo intitulado Transas e transes, a autora reflete sobre a não efetivação das promessas feitas pelas Pombagiras às suas filhas, isto é, elas acabam por não resolver as questões sociais de suas filhas e filhos, e, em contrapartida, quem ajuda a solucionar tais problemas são os seus companheiros humanos de quem elas tentam resistir à submissão. Com isso, essa autora coloca em xeque o poder das Pombagiras.

Porém, independente da efetivação das promessas da Pombagira a seus cavalos, a relação que é construída entre os médiuns e a entidade é incomensurável, pois sua presença e sua identidade são absorvidas por eles pelo fato de proporcionarem imenso poder religioso que chega a influenciar diretamente em suas relações com a comunidade que o rodeia.

Sendo assim, surgem perguntas, a saber: Como é possível uma entidade como a Pombagira, considerada por alguns membros das religiões de matriz africana perigosa, influenciar a vida de seus filhos de santo? Quais os ideais de vida retirados das experiências com a Pombagira? Quais as regras sociais que elas rompem e por que isso é visto de forma tão positiva por seus seguidores? A magia em torno da Pombagira é responsável pelo apego pessoal de seus filhos de santo? As representações do feminino contrário podem ser a peça fundamental para seus filhos de santo se espelharem? Ou ainda, a possessão e

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a (in)corporação da Pombagira, é um mero teatro cuja multiplicidade de sujeitos pode ser reduzida a uma só, em outras palavras, essas entidades de fato conseguem solucionar os problemas de seus cavalos ou sua incorporação acaba servindo apenas como importante substrato de total relevância para suas resistências sociais?

Diante disso, Patrícia Birman (1995) e Márcia Contins (1983) analisam essas conjunções entre feminino e magia na figura da Pombagira, o exu-mulher, mas de modo a acentuar a dimensão social dessa identificação. Contins (1983, p. 138), por sua vez, sugere que a Pombagira, enquanto dramatização de uma noção individualista da pessoa feminina, é percebida como perigo por representar uma ameaça às relações de gênero legitimadas no espaço doméstico.

Liminaridade e poder da identidade

Justamente por essa razão são fixadas na esfera liminar (TURNER, 2005),

pois são tanto poderosas quanto perigosas. O antropólogo Peter Fry (1982), bem como Rita Laura Segato (2005; 2008) e Patrícia Birman (1995) apresentam, cada um dentro de sua perspectiva, a categoria mágico-religiosa ao mostrar nas religiões de matriz africana que o status marginal de homossexuais é revestido de poderes mágicos. Nesse sentido, a diferença do sujeito marginal lhe imbui poder mágico, por isso Segato (2005, 2008) demonstra que as entidades têm influências pontuais em possíveis mudanças, inclusive nas orientações sexuais.

Diante dessa categoria mágico-religiosa, Pombagira aparece revelando em alguns filhos sua influência, pois vários são os casos que acontecem corriqueiramente, como o de Pai Léo, pois há treze anos, quando não era pai de santo nem recebia Pombagira em seu carrego, era descrito pelos que lhe conheciam como “boiola” do encanto . Hoje ele possui reconhecimento junto da comunidade civil e religiosa tanto na região do nordeste paraense quanto na região do Marajó. Segundo ele, isso ocorreu especialmente após os assentamentos da Pombagira em sua casa.

Outro caso vislumbrado é o de Pai Paulo de Oxóssi que é sacerdote na Mina em Abaetetuba há 34 anos. Nessa cidade quase todos os moradores lhe conhecem e o reconhecem em sua profissão e autoridade sacerdotal. De acordo com suas explicações, isso aconteceu depois que sua Pombagira Rainha assumiu espiritualmente seu papel de “chamar” espiritualmente cliente para o terreiro. O fluxo grande de pessoas lhe deu a possibilidade de participar de vários eventos acadêmicos, civis ou de títulos , além de sua participação em um filme, junto a outros pais de santo, em que trata da história da Mina na Amazônia, tendo como título: “A Descoberta dos Turcos encantados na Amazônia”.

Além de prestígio social, as pessoas que pertencem à Mina também utilizam são influenciadas pela Pombagira na resolução de questões como a de adultério,

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temos com exemplo o caso de uma mulher filha de Pombagira Cigana que traíra o marido com uma pessoa conhecida, e segundo ela, o esposo “sabia, mas tinha medo de sair de casa, pois pensava que ela ou eu mesma poderia fazer alguma coisa pra ele”. Já Mãe Raimundinha afirmava que depois que começou a receber Pombagira Sete Caveiras, seu marido parou de lhe trair, “porque ela fica sempre ao meu lado e me ensina o que devo fazer”. Há outro fato de um casal recém-casado, informaram-me que Dona Pombagira Maria Padilha sempre sombreava a esposa quando queria dar algum recado para o esposo, e em um dos recados disse: “Ai de você que mije fora do penico!”, querendo se referir a possíveis traições.

Sendo assim, essa polaridade mágico-religiosa tem, em vários casos, revestido os médiuns por um imaginário que protege ou dá relevância a seus papéis sociais, uma vez que eles têm conseguido obter muito mais que prestígio religioso, pelo fato da exequibilidade de seus poderes mágicos, atingindo inclusive suas relações e conflitos pessoais, já que a maioria da sociedade passa a ver-lhes como um ator de relevância social e não como um homossexual estigmatizado ou desempregado. Agora, Paulo Cardos, Pai Léo, Pai Doca, entre tantos outros que possuem poderosas Pombagiras, são reconhecidos como pessoas de destaque social, mesmo que sua religião seja discriminada.

Nesse sentido, as religiões de matriz africana, em especial a Mina, exercem essa influência na vida de seus crentes, seja pelas mudanças de opções sexuais, seja pelas absorções comportamentais, proposta deste trabalho que o reveste de importância social. Sendo assim, ao primeiro olhar, podemos ver Pombagira como uma mulher dona de seu destino, destemida, sexualmente resolvida e decidida, promíscua e santa (BARROS, 2006). Para Menezes (2007) essa postura vivenciada pelas Pombagiras deve-se ao fato de se inserirem em uma religião considerada “marginal”, e no interior deste espaço elas ainda se inserem em locais de transgressão, que para algumas mulheres e homossexuais que a recebem, é um importante veículo para a resistência social diante das discriminações e desigualdades.

Segundo Nancy Pereira (1996), nos espaços de controle da estrutura social, a mulher e os homossexuais constroem seus contra modelos. Em espaços de ambiguidades e expressões religiosas, eles encontram formas para a resistência e até sobrevivência. Por essa razão, a grande questão é investigar as representações da Pombagira para entender as anuências e os interstícios de gênero na Mina do Pará.

Além disso, esta proposta de tese se apresenta com relevância acadêmica devido à raridade de estudo na Amazônia ou mesmo no Pará, sendo assim, ela contribuirá para aprofundar mais as questões referentes a recriação indenitária dos médiuns que socialmente, isto é, fora dos espaços do terreiro, são vítimas de preconceito, mas com a nova identidade (HALL, 2002) tomada de

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empréstimo das Pombagiras, são, em certa medida, aceitos no seio social. Para fora da Amazônia temos um rol vasto nos estudos de gênero e sexualidade que estão ligados, na sua maioria, às representações da Pombagira , onde elas são apresentadas como “santas e puta”, porém são raros os estudos que mostram a relação entre os efeitos da possessão da Pombagira e a sua absorção indenitária, especialmente no que tange as circunstâncias em que há interferências nas relações de gênero, sexuais, familiares, conjugais entre médiuns e sociedade.

Nos estudos da antropologia afro-brasileira acerca das Pombagiras e de sua importância no cerne das religiões de matriz africana, porém nos primeiros estudos as análises não mostravam a separação entre Exu e Pombagira, e sim os apresentavam como equivalentes. Clássicos como Nina Rodrigues (1935), em o Animismo Fetichista, afirma que Exu é um santo. Em outra obra Nina Rodrigues menciona que Pombagira é o feminino de Exu que, por sua vez, representa os caminhos contrários, as encruzilhadas. Além disso, possui um caráter fálico e “pertence, mais particularmente aos prazeres sexuais, a luxúria” (RODRIGUES, 1977, p. 329).

Arthur Ramos (1951), discípulo de Nina Rodrigues, declarou que Exu é palavra derivada de shu que simboliza escuridão, “signo de um orixá que antes de chegar ao Brasil já havia sido assimilado ao diabo pelos missionários católicos”; “poderosa entidade dotada de poderes maléficos especiais” (RAMOS, 1951, p.63).

Nessa mesma perspectiva, Roger Bastide (1945), na obra Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto, demonstra sua análise acerca de exu, em que ele é visto entre os membros do Candomblé como diabo, também por possuir uma imagem fálica, ou seja, pela sua imagem carregada de sexualidade e transgressão. Bastide (1978) também demonstra a importância desta entidade ao afirmar que em todas as casas de candomblé existem pelo menos dois Exus, o homem e a mulher, cada um se encontra “em uma casinhola perto da porta de entrada [do terreiro], vela sobre o candomblé, abre e fecha-lhe as portas, é de certo modo o porteiro do local” (BASTIDE, 1978, p. 71).

Em Candomblés da Bahia, Edson Carneiro (1948) faz a mesma menção quanto a importância de Exu para as casas de Candomblé na Bahia, ao afirmar que todas as casas de santo possuem seus exus de porteira para proteger a casa, e por essa razão ele o denominou de “compadre”, além do que, todo e qualquer ritual tem que primeiro reverenciá-lo para que este leve as intenções do ritual, bem como os pedidos, aos deuses maiores. Sendo assim, os Exus assumem o papel de intermediários.

Na importante etnografia A cidade das mulheres, de Ruth Landes (2002), o Exu apresentado como uma espécie de demônio, especialmente por seu caráter trapaceiro, é comumente envolvido na magia negra. É, segundo a autora, uma entidade indispensável para a prática do culto, pois faz tudo o que as

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sacerdotisas mandam, “ele não tem vaidade”. Todas fêmeas, denominadas de Bombogiras ou Pombagiras , essas são “utilizadas especialmente para arranjar um encontro amoroso, para forçar uma sedução, para desfazer ou mesmo romper um casamento” (LANDES, 2002, p. 336-337, grifo meu).

O Exu possui um equivalente do gênero feminino denominado Pombagira. Esse equivalente feminino de exu é elaborado como sendo a mulher da rua, sem dono, a mulher da vida. Sendo assim, seu perfil é de mulher livre e corajosa, guerreira que conquista o que quer e senhora do seu corpo, que também é a negação de ordem moral, foi em vida uma mulher desregrada, destoante da ordem e dos bons costumes sociais. Ataca os padrões patriarcais.

Sendo assim, podemos observar que a imagem mítica e o mesmo tempo real da Pombagira, está distante do ideal feminino descrito pelo conceito patriarcalista, pois ela é a mulher liberta que transita nos locais propriamente masculinos, por essa razão, na maioria das vezes é considerada demoníaca, porque foge às regras da mulher obediente e submissa, como relata o patriarcalismo cristão. Ela toma conta de sua vida pessoal, econômica e sexual, por meio de seus conselhos pode até influenciar na vida particular das mulheres que a procuram.

Os exus são entidades do panteão da Mina que estão no último lugar na hierarquia (LUCA, 1999, p. 74), são muito importantes, por serem mensageiros entre os deuses e os homens. Suas funções são diversas, sem ele nada se faz dentro de uma casa de santo. É considerado o senhor dos caminhos. Luca (2010) menciona que na maioria das casas de santo o Exu possui forte representação como sendo povo da rua e por tal formado por prostitutas, ladrões, ciganas, malandros (LUCA, 2010), essa representação é na Mina influenciada pela Umbanda. Napoleão Figueiredo, em “Os Caminhos de Exu” (1972), mostra os perfis de Exu que, segundo ele, são: ferros, metais, pedras, pontos riscados. E os ritos são praticados em homenagem a estas entidades, de suas doutrinas e dos desenhos que lhe são devotados. Nesse âmbito, percebe-se a importância de exu na Mina, não como culto isolado, mas como mensageiro que levará as ofertas aos deuses. Por isso, suas indumentárias são facilmente encontradas em loja de umbanda em Belém (VERGOLINO, 2003). E apresentam influencia sobre a vida de seus adeptos.

Gênero e poder

Pombagira é um ser ambíguo poderoso e perigoso, pecaminoso e feiticeiro;

importante e evitado, tão evitado que não possui filhos na Mina Paraense (FIGUEIREDO, 1972). Essa investigação será levantada nas casas de santo da religião Mina Nagô no município de Abaetetuba, onde os filhos de Pombagira são raros ou simplesmente ausentes, pois das 84 casas de santo existentes no

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município não se viu nenhum filho desta entidade (SILVA, 2013). Por Mina Nagô entende-se uma das tradições afro-brasileira tipicamente paraense que segundo Vergolino (2003) cultua orixás, voduns, encantados, caboclos e exus (Pombagiras, consideradas Exu-mulher). Foi interiorizada para Abaetetuba-PA na década de 80 do século passado, segundo Margalho (2004).

Na Mina Nagô tem filhos de santo que são feitos ou preparados para orixás e caboclos, mas nunca para Pombagira (FIGUEIREDO, 1972), a esse respeito Pai Daniel de Oshalufã mencionava:

Na Mina não se tem filho nenhum feito para Pombagira, nenhum! Eu não conheço! Isso é algo que não se pode nem pensar. A Mina Nagô os filhos são preparados pra famílias de caboclos. Essa coisa de filhos de Exu ou de Pombagira é uma mistura que alguns pais de santo fazem com a Umbanda que lá se vê umas casas na qual o pai de santo foi feito para Pombagira. Mas na Mina Nagô, aqui na nossa região isso não existe e nem nunca poderá existir3.

Em outra conversa com Mãe Raimundinha de Oxum a mesma me

informava algo da mesma natureza, pois afirmava que Pombagira é muito importante em sua casa, já que as pessoas que mais a procuram são mulheres para resolver “casos de amor”, e a esse tipo de “problema quem resolve é ela, a Pombagira”. Dessa forma, se vê que essa entidade é essencial para a Casa de mãe Raimundinha, mas quando perguntei qual filho foi ou é preparado ou iniciado para receber esta entidade como santo principal ela disse com veemência:

Nenhum! Nenhum filho pode ser preparado para Pombagira, porque ela é uma entidade sem luz, seca! Sua proximidade com a vida mundana é muito grande. Uma filha que fosse feita para Pombagira poderia se tornar uma prostituta. Ela é uma mulher sem dono, da rua, liberta e uma filha ou mesmo um filho feito para Pombagira poderia influenciar negativamente em sua vida pessoal. Tanto que você nem imagina. Ela só resolve problemas amorosos, como trazer homem de volta ou que tem outra mulher; ou afastar. Essa é sua influencia, sua luz é das travas4.

Sendo assim, é perfeitamente compreensível que Pombagira é referenciada

como uma mulher destemida que rompe as regras e quase sempre remetida a uma forma caricata de prostituta. É também no mesmo sentido, associada a mulher forte independente, feiticeira, livre, sedutora e poderosa que foge aos padrões da mulher formatada como ideal da sociedade patriarcal. Segundo Foucault (2012) o ideal de mulher para as sociedades patriarcais é aquela que

3 Conversa informal com Pai Daniel de Oshalufã no dia 14 de maio de 2013. 4 Conversa informal com Mãe Raimundinha de Oxum no dia 19 de junho de 2013.

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está sujeita aos sistemas jurídicos de poder, pois se tem no homem o ser que vai dominar e representar a mulher. Nesse âmbito, Judith Butler (2003) também afirma que o gênero feminino nas sociedades patriarcais foi veemente relegado a inferioridade.

Sendo assim, podemos observar que a imagem mítica e ao mesmo real de Pombagira, está distante do ideal feminino descrito pelo conceito patriarcalista, pois ela é a mulher liberta que transita nos locais propriamente masculinos, por essa razão, na maioria das vezes é considerada demoníaca, uma vez que foge as regras da mulher obediente e submissa, como relata o patriarcalismo cristão. Uma vez que, ela toma conta de sua vida pessoal, econômica e sexual, por meio de seus conselhos, pode até influenciar na vida particular das mulheres que a procuram.

Dentro desse cenário, Pombagira não pode ser aplicada, pois ela é também simbolizada como a mulher que provem seu sustento financeiro, não dependendo da figura masculina. Ela está envolvida diretamente com a esfera pública, por meio de negociações que a mesma faz com seus clientes. Isso tem feito com que ela seja associada com a mulher sexualmente livre rebelde e perigosa. Dessa forma, a mesma assume um estereotipo de mulher devassa e prostituída. Essa simbolização desta entidade foi vista pela cultura ocidental cristã como uma entidade demoníaca que deveria ser exorcizada, afastada a todo custo.

Sendo assim, a figura mítica de Pombagira na configuração de uma mulher que foge as características patriarcais, por ser uma mulher livre e dona de seu destino, com a qual tem que se tomar cuidado, pois é um perigo. Por isso é considerada demoníaca, e talvez por isso ela seja temida, a ponto de não se fazerem filhos para esta entidade, esse ponto se mostra tão impotente e precisa ser mais bem averiguado, a fim de se entender qual a relação das atribuições de gênero que coloca a mulher no plano do subordinado com a inexpressividade e a falta de filhos de Pombagira na Mina Nagô em Abaetetuba-PA.

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VIEIRA E O ATLÂNTICO EQUATORIAL: A GUERRA CONTRA CASTELA E O PROJETO UNIVERSALISTA VIEIRIANO

Nathalia Moreira Lima Pereira1

Resumo No contexto da Guerra de Restauração (1640-1668), a vasta obra do Padre Antônio Vieira, que incluindo cartas, sermões e documentos políticos, reinventa o tema do universalismo português anunciando a chegada do novo rei, D. João IV, como líder profetizado. Entretanto, seus escritos estão para além do espaço europeu, fixando-se também na América portuguesa e no seu papel na reconstrução do império dos Bragança. O presente estudo justifica-se a partir da análise da conjuntura político-econômica do Portugal restaurado, e dos impactos causados pela guerra na América lusa. Tendo como proposta entender como o universalismo vieiriano associou elementos como a diplomacia bragantina, o Atlântico Equatorial e o Estado do Maranhão em um projeto de conquista e integração dessas regiões Palavras-chave: Restauração, Guerra, Maranhão, Diplomacia. O Maranhão nos desfechos da guerra

A unidade teológica-retórica-política formulada por Alcir Pécora para os

escritos do padre Antônio Vieira unificou as diversas faces do jesuíta que a historiografia considerava de forma desconexa até então. Sabemos que a fortuna crítica vieiriana tem insistido, por vezes, na representação de um Vieira multifacetado, dissociando e confrontando seus aspectos político, religioso e até mesmo diplomático. Exemplo disso, é a clássica História de Antônio Vieira, de João Lúcio de Azevedo, que apresenta o jesuíta fragmentado em seis personagens, o religioso, o político, o missionário, o “vidente”, o “revoltado e o “vencido”.2 Alcir Pécora, por outro lado, em sua hipótese, apresenta um Vieira integrado ao que o autor chama de matriz sacramental, onde a presença

1 Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Alírio Cardoso, Universidade Federal do Maranhão – UFMA. 2 AZEVEDO, João Lúcio de. História de António Vieira. 2ª edição. Lisboa: Livraria Clássica, 1931.

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divina atua nos ouvintes direcionando-os às finalidades cristãs propostas pelo corpus católico das monarquias modernas.3

Dada a relação constante entre Igreja e Estado das Monarquias Ibéricas, o Padre Antônio Vieira desenvolve “maneiras” de compor sua representação política, como conselheiro e diplomata de D. João IV, “decifrada ainda numa chave teológico-jurídica” que o enquadra em um “entendimento católico da política”, fruto da visão de mundo da época, a escolástica barroca do século XVII. 4 Assim, a análise da diplomacia vieiriana, conjuntamente com suas obras profética e missionária, traz a possibilidade de compreensão do papel reservado aos cristãos-novos e ao Estado do Maranhão5 no contexto da Restauração Portuguesa e na guerra luso-castelhana (1641-1668).

A guerra da Restauração portuguesa, após o término de 60 anos de união dinástica entre Espanha e Portugal (1580-1640) se expandiu para além dos limites da Península Ibérica. Tido como um território estratégico para a manutenção desse conflito, o “Atlântico Equatorial”, 6 parte sul da navegação

3 Sobre o tema ver: PÉCORA, Alcir. Para ler Vieira: As 3 Pontas das analogias nos sermões, In: Asas da Palavra – Revista de Letras – Belém: UNAMA, v. 10, n. 23, 2007; e PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Edusp, 1994. 4 A bibliografia sobre o Padre Antonio Vieira é bastante vasta, Utilizamos no decorrer do trabalho a que é considerada de maior importância para a literatura brasileira, a de João Lúcio de Azevedo, publicada em dois volumes, o primeiro em 1918 e o segundo em 1921 e a mais recente publicação biográfica do jesuíta, de Ronaldo Vainfas publicada na coleção Perfis brasileiros. AZEVEDO, João Lúcio. História de Antônio Vieira. Tomo I e II – São Paulo: Alameda, 2008 e VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei – São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 5 O Estado do Maranhão e Grão Pará era independente do Estado do Brasil, abrangendo duas capitanias gerais, a do Pará com sede em Belém, e a de São Luís do Maranhão como capital. Criado em 1621, ainda no domínio espanhol, por Felipe III de Espanha, “correspondia aproximadamente ao território dos atuais Estados do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e partes de Tocantins e do Amazonas”. Ver: HANSEN, João Adolfo, introdução da obra Cartas do Brasil, do Padre Antônio Vieira, São Paulo, Hedra, 2003, p. 63. Ver também: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. “Regiões e Império: Vieira na América portuguesa na segunda metade dos seiscentos”. In: CARDIM, Pedro e SABATINI, Gaetano (Eds). Antônio Vieira, Roma e o universalismo das monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa: Centro de História de Além-mar/Universidade Nova de Lisboa/Universidade dos Açores/Università Degli Studi Roma Tre/Red Columnaria, 2011, pp. 183-184. 6Termo utilizado pelos historiadores Rafael Chambouleyron e Alírio Cardoso. Ver: CHAMBOULEYRON, Rafael. CHAMBOULEYRON, Rafael. “Portuguese Colonization of Amazon Region, 1640-1706”. Cambridge: Tese de Doutorado apresentada à Universidade de Cambridge, 2005. CARDOSO, Alírio. Maranhão na

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norte-atlântica, se configurava como área de entrepostos comerciais e de circulação de mercadores estrangeiros não luso-espanhóis, como franceses e holandeses. Trata-se de uma região que abrange espaços de disputas, concorrências e conquistas em função da extrema facilidade da navegação e pelos empreendimentos ricos e proveitosos do comércio de gêneros locais e, possivelmente, da mineração.

Inserido nessa geografia de conquistas, o Estado do Maranhão se projeta como espaço de interesse nas crônicas de viajantes portugueses e espanhóis durante e após o término da Monarquia Hispânica. As primeiras tentativas de conquista desse território, ainda em meados do século XVI, foram motivadas pelas notícias de riquezas no Peru e Nova Espanha, assim como pela proximidade da região, a partir de sua notória rota fluvial, auxiliando o seu contato com as Índias de Castela.7 Já no século XVII, após a Restauração Portuguesa (1640), o interesse pela região é retomado pelo padre Antônio Vieira que entedia ser o Maranhão uma zona de fronteira estratégica e necessária para a manutenção da guerra. Para o padre, “um dos primeiros e principais intentos desta guerra era [...] tomar ou impedir a frota, e todo o comércio e proveitos que Espanha recebe das Índias”.8

Em função da qualidade de zona de fronteira, entre o Vice-Reinado do Peru e o Estado do Brasil, o Maranhão teria potencialmente uma condição de destaque no contexto da guerra contra Castela e nos rumos da economia global lusa em anos subsequentes. Antes da Restauração, tal condição já se expressava em cartas e documentos luso-hispanos que descreviam, a partir de expedições realizadas pelo rio Amazonas, como a de Pedro Teixeira e a de Cristóbal de Acuña, aberturas de rotas navegáveis por esse rio que ligariam o Maranhão ao Peru.9 Com a independência portuguesa, e consequentemente a guerra contra a Espanha, Portugal, em crise econômica e tendo que conseguir apoio e legitimidade para o novo regime, dá margem a várias propostas, inclusive de

Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca: tese de doutorado (História) apresentada à Universidad de Salamanca, 2012. 7 CARDOSO, Alírio. Guerra Híbrida no Atlântico Equinocial. Índios, portugueses e espanhóis na conquista do Maranhão e Grão-Pará (1614-1616). Hist. R., Goiânia, v. 18, n. 02, p. 143-167, jul./dez. 2013. 8 “Carta XVIII, Ao Marquês de Niza”. 1648 – 20 de janeiro. In: VIERA, Antônio. Cartas do Padre Antônio Vieira – coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, Tomo Primeiro, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, p. 134. 9 CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca: tese de doutorado (História) apresentada à Universidad de Salamanca, 2012, pp. 337-347.

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figuras como o padre Antônio Vieira. Tais propostas inserem o Estado do Maranhão nessa nova configuração política do mundo atlântico.

Como ressalta Alírio Cardoso, Vieira tinha conhecimento da importância dessa região e de suas riquezas naturais antes mesmo do chamado período missionário no Maranhão (1653-1661). Suas cartas diplomáticas trocadas entre 1641-1653 e que tratam de assuntos relevantes para a guerra contra Espanha, e os gastos estendidos para sua realização, são documentos fundamentais para entendermos o papel da própria América Portuguesa e Índias de Castela nesse contexto. Estes territórios seriam estratégicos para a sustentação da economia portuguesa no que tange ao comércio do açúcar, do ouro, da prata e no tráfico intercontinental de escravos indígenas e africanos.10

Várias dessas cartas, enviadas durante sua primeira e segunda missão diplomática em França e Haia (1646-1648), continham propostas que instavam a aliança da monarquia com os principais agentes do comércio internacional, principalmente mercadores judeus e cristãos-novos que iriam apoiar o financiamento de uma Companhia de comércio, a Companhia Geral de Comércio do Brasil, assim fundada em 1649, reativando o tráfico comercial entre o Brasil e a Índia. Além do uso do capital cristão-novo para a criação de Cia. Mercantis, o empréstimo de cartas de crédito para a fabricação de fragatas de guerra e compra de artilharias eram assuntos discutidos em cartas diplomáticas enviadas por Vieira ao Marquês de Niza.11

Vieira alerta sobre a importância da compra dessas embarcações, que seriam custeadas com o auxílio financeiro de dois mercadores cristãos-novos portugueses mas que residiam em Amsterdam, André Henriques e Duarte da Silva. Apontava que a fabricação desses navios era urgente pela necessidade de proteger possessões portuguesas em função dos interesses franceses em conquistar algumas regiões do Brasil como o Rio de Janeiro e o próprio Maranhão, ambos já invadidos pela França em 1555 e 1612 respectivamente. Assim, relatou Vieira em carta ao Marquês de Niza em 20 de janeiro de 1648:

Entre as tentações de França acerca de nossas conquistas, ouvi dizer em Lisboa e aqui, que não deixa de ser uma, e porventura a principal, o Rio de Janeiro, ajudando-se a ambição de uma espécie de justiça, porque antigamente, quando conquistámos aquelas terras, tomámo-las aos índios e a franceses [...]. Ouvi dizer que em França se está fazendo uma companha muito poderosa, para a conquista desse Rio da Prata, sem dúvida por notícias tiradas do nosso reino, e por ventura que as informações do Cardial tirem a este fito. E assim me parecia, quando ele falasse a V. Exa. na matéria, poderia V. Exa. responder-lhe que o Rio da Prata

10 Ibdem, p. 353. 11 VIERA, Antônio. Cartas do Padre Antônio Vieira – coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, Tomo Primeiro, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925.

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não é conquista de consideração, porque não tem prata nem cidades senão de ali a quinhentas léguas de campos desertos, de onde vinham alguns mercadores a comprar os negros de Angola, que ali lhe levávamos antigamente, o que se acabou com a guerra de Castela.12

Quanto às conquistas nas Índias Ocidentais, Vieira acreditava que o melhor

empreendimento era que a guerra começasse pelo Atlântico Norte adentrando as rotas do rio Amazonas, sendo este, “passo para as serras e minas do Peru, em que estão depositados os maiores tesouros das Índias Ocidentais”. Para o jesuíta, o “poder” ou armada enviada às Índias pelos portugueses para efetivar tal manobra deveria “se encaminhar contra os mesmos mares e portos por onde se embarca e conduz a prata, assim do Peru como de Nova Espanha”. O argumento principal aqui é o fato de ser a navegação muito segura, tardando um total de dois meses.13 Segundo ainda o jesuíta:

[...] para a continuação da guerra se podem mandar socorros e mantimentos do Maranhão e do Pará, com grande abundância e brevidade; e, como muitos dos moradores dos portos e cidades das índias, e a maior parte dos pilotos, e muitos dos marinheiros da frota são portugueses, podem-se com eles ter inteligências de grande importância, assim para as notícias como para às empresas.14

Vale lembrar que a presença de portugueses nas Índias de Castela era algo

bastante comum, tendo como foco de atração cidades como Buenos Aires, Potosí, Cartagena de Índias, entre outras. Esse fenômeno migratório de portugueses se justifica pelo simples fato desses territórios manterem uma situação econômica e administrativa favorável à presença estrangeira, principalmente a portuguesa, após consumada a união monárquica. De fato, é bom ter claro que, na prática, mesmo durante a união, portugueses são estrangeiros nos territórios castelhanos. Outro fator que favoreceu a presença de portugueses nesses territórios foi a ação da Inquisição portuguesa contra os cristãos-novos obrigando muitos a emigrar após o edito de expulsão em 1492.15

Um outro projeto de Vieira, que incluía o Maranhão, ocorreu na sua segunda missão diplomática a Paris, em 1648. Enviado novamente ao país pelo rei D.

12 “Carta XVIII, Ao Marquês de Niza”. 1648 – 20 de janeiro. In: VIERA, Antônio. Cartas do Padre Antônio Vieira – coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, Tomo Primeiro, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, pp. 135 e 136. 13 “Carta XVIII, Ao Marquês de Niza”. 1648 – 20 de janeiro. In: Idem, Ibdem, p. 134. 14 “Carta XVIII, Ao Marquês de Niza”. 1648 – 20 de janeiro. In: Idem, Ibdem, p. 135. 15 BARRETO, Gleydi Sullón. Portugueses en el Perú virreinal (1570- 1680): Una aproximación al estado de la cuestión. In: Mercurio Peruano, Revista de Humanidades, Universidad de Piura, nº 523, (2010), pp. 116- 129.

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João IV para tratar do projeto de casamento do príncipe D. Teodósio, Vieira também foi incumbido da proposta de oferecer, caso fosse realizado um novo acordo político-militar com a França, a defesa do reino português ao monarca francês. Nos termos do acordo, D. João IV renunciaria à Coroa em nome de seu filho, ainda em menoridade; retirar-se-ia para os Açores “declarando-se rei de um novo Estado, com Angra por capital, constituído pelo arquipélago e, juntamente, o território do Pará e Maranhão”. Essa proposta já antecipava, com anos de antecedência a transferência de parte da Família Real para o Brasil, onde se estabeleceriam em Salvador ou no Maranhão.16

Lembramos que a condição dessa proposta se passa em um período em que o Estado do Brasil estava sob ameaça holandesa, com Pernambuco totalmente tomada pelos neerlandeses. Na sua primeira missão à Holanda, em Haia, Vieira remete às Províncias Unidas a proposta de se “resgatar por dinheiro” Pernambuco, já que nessa província colonos já se revoltavam tentando incitar uma guerra, que aliás nunca contou com grande auxilio financeiro da Coroa. Os Estados Gerais não aceitaram tal projeto e a nova proposta enviada aos neerlandeses por Vieira foi a contida no seu famoso “Papel Forte”, documento que insistia não mais na compra, mas na entrega de Pernambuco aos holandeses.17

Desse modo, Portugal tentava a qualquer custo evitar a guerra com Holanda na tentativa de não romper o acordo de paz selado entre as nações europeias em Munster (1648).18 De todo modo, a paz entre Portugal e Espanha e Portugal e Holanda não dependia somente do reino luso, mas favorecia tanto castelhanos quantos neerlandeses em uma próspera união contra os portugueses. Sobre o tema, Não era segredo que para muitos conselheiros de D. João IV o mais esperado era “guerra declarada do que paz fingida”.19

16VIERA, Antônio. Cartas do Padre Antônio Vieira – coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, Tomo Primeiro, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, pp. 97 e 98. 17VIEIRA, Antônio. “Papel a favor da entrega de Pernambuco aos Holandeses”. In: Obras Completas, pref. e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade, vol. III, Lisboa, Liv. Sá da Costa, 1951, pp. 29-106. 18Tratados de Munster ou Paz de Vestefália foi uma série de tratados e acordos de paz que os países participantes da Guerra dos Trinta Anos assinaram, colocando fim nesse conflito. 19 VAINFAS, Ronaldo. Guerra declarada e paz fingida na restauração portuguesa. Tempo, vol. 14, nº 27 (2009), pp. 82-100.

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A Guerra contra Castela no projeto Universalista vieiriano A guerra contra Castela, após a aclamação de D. João IV, não poderia ser

uma escolha. Ela era inevitável. Para os espanhóis a separação significou rebeldia, sendo necessária a guerra para a reintegração do reino à Casa dos Habsburgos. Entretanto, mesmo a Espanha sendo superior em tradição bélica, ela se via em volta a outros conflitos, a revolta catalã e a guerra contra a França. A tarefa urgente de D. João IV, se respaldando nessa vantagem, já que Espanha não poderia sustentar dois exércitos, era a criação imediata de um Conselho de Guerra e o início das atividades diplomáticas para apoio e legitimação da nova coroa. 20

A diplomacia vieiriana e a mística da restauração unem-se ao projeto universalista português preconizando simbolicamente o retorno da monarquia, perdida nos campos de batalhas marroquinos, às mãos de um rei português. O projeto do “Quinto Império” proposto por Vieira, integra tanto a sua fase política, quanto a sua fase profética, pois percebe Portugal como nação eleita por Deus para a consumação do seu reino na Terra. Para tanto, Portugal deveria se livrar do jugo espanhol e a guerra contra Castela, assim como a diplomacia política, para Vieira, eram a única saída.

Essa abordagem vem associada ao próprio contexto português da época que em tempos de crise e insatisfação, que se projetaram nesta nação desde o desaparecimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, veio a manifestar uma crença voltada a práticas mágicas e religiosas milenaristas e universalistas. O mito nacional do “Milagre de Ourique”, o sebastianismo e o movimento de Restauração consagraram, para a sociedade lusa do século XVII, uma “cultura política popular”, assim descrita por Ramada Curto em sua obra Cultura Política no tempo dos Filipes (1580-1640), que decorreu da “própria fragilidade do poder ou dos poderes, frente aos quais se organiza uma resistência” em reestabelecer novos projetos, associando a figura de D. João IV como líder profetizado que guiaria Portugal na luta contra Castela.21

Vieira se lançou nas influências dessas crenças, muitas vezes contrárias à Inquisição, e pôde, dessa forma, reinventar o tema do universalismo português. Tal projeto anuncia a chegada do novo rei, D. João IV, como líder profetizado.22

20 COSTA, Fernando Dores. A Guerra de Restauração (1641-1668). Livros Horizonte, Lisboa, 2004, pp. 23-26. 21 Ver: CURTO, Diogo Ramada. A Cultura Política no tempo dos Filipes (1580-1640). Edições 70, LDA, Coimbra, 2011, pp. 29-56. 22 Sobre a questão do universalismo adotado nos escritos do Padre Antônio Vieira ver: CARDIM, Pedro e SABATINI, Gaetano. “Antônio Vieira e o universalismo dos séculos XVI e XVII”. In: CARDIM, Pedro e SABATINI, Gaetano (Eds). Antônio

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Mas o que torna toda essa visão política e religiosa do jesuíta possível, é a compreensão, ou talvez a tentativa desta, de que seus escritos estão para além do espaço europeu, fixando-se também na América portuguesa e no seu papel na reconstrução do império dos Bragança. Pensar territórios distantes, desbravados pela expansão oceânica gerando contatos entre povos e culturas diferentes motivam ideias carregadas de cruzamentos entre o Velho e o Novo Mundo – uma dialética que nos interessa quando, nas palavras de Gruzinski “repomos elementos aparentemente tão díspares”.23

Nas obras proféticas de Vieira, o Maranhão também parece ser tema relevante. Em História do Futuro, iniciada possivelmente em 1649, a palavra “Maranhão” é mencionada algumas vezes pelo jesuíta.24 Ao interpretar as profecias de Isaías, Vieira entende que as terras além da Etiópia eram aquelas descobertas por Portugal, na qual também estavam territórios novos, como o próprio Maranhão.25

As obras proféticas de Vieira, estendidas a uma de suas faces, o Vieira profético, abraça o tema do universalismo português, como também o de um sebastianismo reinventado na figura de D. João IV, assim chamado de

Vieira, Roma e o Universalismo das Monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa: Centro de História de Além-mar/Universidade Nova de Lisboa/Universidade dos Açores/Università Degli Studi Roma Tre/Red Columnaria, 2011, pp. 13-27. MUHANA, Adma. Do Processo de Vieira na Inquisição. In: Asas da Palavra – Revista de Letras – Belém: UNAMA, v. 10, n. 23, 2007, p. 27-37. 23 GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do Mundo: história de uma mundialização. Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago – Belo Horizonte: Editora UFMG: São Paulo: Edusp, 2014, pp. 41-45. 24 Importante salientar que a obra História do Futuro de Vieira possa ter sido iniciada em 1649 e não em 1663 como aponta Adma Muhana, pois alguns autores como Antonio José Saraiva a projetam a partir dessa data por se terem arquivados pela Inquisição escritos de assuntos proféticos e messiânicos desse período e que posteriormente foram compilados e publicados com outros escritos proféticos redigidos por Vieira durante sua defesa no Tribunal da Inquisição. Tais escritos, após a sua publicação por João Lúcio de Azevedo em 1918, receberam o título de História do Futuro. In: SARAIVA, Antônio José. História e Utopia: estudos sobre Vieira. Trad. Maria de Santa Cruz. – Lisboa: Ministério da Educação, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992, p. 99 e MUHANA, Adma. Do Processo de Vieira na Inquisição. In: Asas da Palavra – Revista de Letras – Belém: UNAMA, v. 10, n. 23, 2007, p. 27-37. 25 VIEYRA, Antônio. História do Futuro: livro anteprimeyro prologomeno a toda a história do futuro, em que se declara o fim, & se provão os fundamentos della; matéria, verdade, et utilidade da história do futuro. Belém: SECULT/IOE/PRODEPA, 1998, pp. 298-301.

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Joanismo.26 Como líder maior da Restauração, feito rei pelos seus seguidores, D. João IV aos olhos de Vieira seria D. Sebastião desterrado, reforçando a função profética que fez de Bandarra, revisada e readaptada. Não podemos esquecer que o embate ocorrido entre Vieira e a Inquisição se deve a seus escritos proféticos e messiânicos, e talvez muito da inspiração que recebeu para a escrita da obra História do Futuro tenha relação com sua estadia no Maranhão. Lembremos que a concretização do “Quinto Império” só seria consumada através da conversão universal de judeus, gentios e hereges. Segundo o jesuíta, o território do Maranhão teria sido o último lugar onde chegou as novas do Evangelho:

Porque entre todas as gentes do Brasil os Maranhões foram os últimos a quem chegaram as novas do Evangelho e o conhecimento do verdadeiro Deus, esperando por este bem, que tanto tardou a todos os Americanos, mais que todos eles. No Brasil se começou a pregar a Fé no ano de 1550, em que o descobriu Pedro Álvares Cabral; e no Maranhão no ano de 1615, em que o conquistou Alexandre de Moura, esperando mais que todos os outros Brasis sessenta e cinco anos. Mas hoje estão ainda em pior fortuna, padecendo aquele vae do Profeta: Vae terra: cymbalo alarum; porque o estado da esperança se Lhes tem trocado no de desesperação. E esperam de se salvar os que de tantos danos e danos são causa?27

Considerações finais

As narrativas de aclamação de D. João IV inspiraram práticas políticas

voltadas para crenças e milagres providencialistas que auxiliaram Portugal a enfrentar a grave crise econômica que se instalou no reino, assim como a guerra contra Castela. O poder mudara de mãos, mas os fortes tributos continuaram, principalmente para o financiamento desta guerra. Com a elite financeira ligada a Castela, a diplomacia portuguesa investiu em acordos e alianças, principalmente com judeus e cristãos-novos. Vieira, como conselheiro e diplomata do reino, entendia-se, também, capaz de contribuir, a seu modo, para a reorganização de Portugal, defendendo, como outros portugueses ilustres do período, estratégias variadas para promover seu crescimento econômico.

26 Ver: HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado: A construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 233-246. 27 VIEYRA, Antônio. História do Futuro: livro anteprimeyro prologomeno a toda a história do futuro, em que se declara o fim, & se provão os fundamentos della; matéria, verdade, et utilidade da história do futuro. Belém: SECULT/IOE/PRODEPA, 1998, p. 311.

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Dada a importância dos territórios portugueses na América, no contexto da Restauração, uma análise mais detalhada sobre o papel do Estado do Maranhão e Grão Pará no “plano geral” do jesuíta, representa a herança universalista adotada por Vieira para justificar a adesão desses espaços de fronteiras no contexto da guerra. Entender qual função o universalismo vieiriano desempenhou nessa dinâmica política-administrativa pós-1640 demonstra que a construção de outras formas de messianismo, apropriados e reinventados pelo imaginário da época colaborou para que o jesuíta atrelasse sua obra profética também aos planos político-econômicos do estado monárquico português.

O discurso político e profético de Vieira tornou-se então um difusor de ideias restauracionistas, justificando a guerra e legitimando a força bélica e naval no Atlântico Equatorial como também no Maranhão e rio Amazonas. Com a Restauração, é ainda notória a importância dada a essa região por sua função geopolítica e comercial compartilhada entre os luso-castelhanos. Ainda assim, a vinda de Vieira para o Maranhão ainda é uma incógnita estudada pela historiografia. Teria a vinda do jesuíta para a Amazônia Portuguesa apenas uma função missionária; uma fuga pelo embaraço causado pelo famoso “papel forte”; ou um meio de empreender seu projeto providencialista e universal? Nos escritos de Vieira, isto não contradiz a ação de conversão geral do gentio nas terras americanas, mas reforça um “plano geral” para a Casa dos Bragança baseado nas profecias do “Quinto Império do Mundo”.

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A MÉDIUM ANNA PRADO E AS PRÁTICAS DE CURA: O MUNDO NATURAL E O SOBRENATURAL

Sheila Izolete Mendes Evangelista

Resumo Este artigo analisa o campo de conflitos travados entre a medicina legal defendida pelo corpo médico e o exercício ilegal dos ofícios de curas realizados por espíritas, pajés e curandeiros relacionando-os com o mundo natural e o sobrenatural. Sendo o debate travado a partir de obras de caráter médico, artigos de jornais e obras espíritas. Destacando o papel da médium espírita Anna Prado neste campo conflituoso da medicina no início do século XX, ao realizar três operações de caráter mediúnico, explicitando a procura por tratamentos alternativos à medicina oficial por parte da população em geral.

Palavras-chave: conflitos, espiritismo, práticas de cura.

A Genesis A origem de toda essa discussão que pretendo abordar remonta o ano de

1995, quando em Belém do Pará ocorreu um fenômeno que podemos aparentemente considerar sem explicação racional. Tratou-se da aparição da imagem de um rapaz já falecido, em uma fita de vídeo gravada na Igreja de Nossa Senhora Aparecida1, no bairro da Pedreira, por ocasião de uma missa de ação de graça realizada pela família do rapaz em comemoração ao aniversário de sua avó. Neste vídeo aparece, o vulto desse rapaz acompanhado de outro suposto espírito cuja feição a família não conseguiu identificar, porém não tiveram dúvida em afirmar que a outra imagem pertencia a seu ente querido falecido, que em vida chamava-se Cláudio Ronaldo e que no vídeo simplesmente desaparece após sentar-se em um dos bancos da referida igreja.

A partir da divulgação dessas imagens na mídia local e posteriormente nacional, a cidade foi invadida por um verdadeiro “rebuliço”. Opiniões, comentários, falação de toda a espécie, a maioria da população não ficou indiferente ao acontecido. Diante de tal fato ficou explícito o alcance e o poder representado pela imagem em movimento, não faltaram interessados que tentaram dar uma explicação ao fenômeno, religiosos das mais diversas crenças, pastores, umbandistas, padres, espíritas e até parapsicólogos foram convidados

1 Vídeo disponível em http: https://www.youtube.com/watch?v=cciVM9lKSCA

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por programas locais para tentar explicar de forma plausível o fenômeno acontecido, debatiam entre si acirradamente para fazer valer seu ponto de vista, o vídeo ficou sendo veiculada na mídia aproximadamente por três semanas e os jornais locais e posteriormente alguns programas nacionais não cansavam de repeti-la, se isso acontecia provavelmente era porque de alguma forma seduzia o público e uma das expectadoras que torcia para que novamente as imagens fossem veiculadas era eu, pois a impressão causada na época era no mínimo sedutora.

Foi justamente durante esses debates que tomei conhecimento sobre os fenômenos supostamente produzidos por certa senhora no início do século XX chamada Anna Rebello Prado; pensei e cheguei à seguinte conclusão: se a imagem em vídeo de dois hipotéticos espíritos estavam causando tanto espanto, especulação, crença, descrença e sensacionalismo em pleno final do século XX, com todo o avanço da ciência e do aparato da tecnologia que dispomos, imagine o que teria significado para a sociedade belenense ter tido durante os anos de 1919-1923, uma médium que supostamente realizou vários fenômenos considerados espíritas, dentre eles o mais extraordinário e de difícil realização e demonstração que consiste na materialização de espíritos, sempre no mesmo lugar e com hora marcada, no mínimo deve ter intrigado a sociedade do período, ter alguém que mantinha uma ligação íntima com o mundo dos mortos.

As sessões mediúnicas, realizadas na casa da família Prado, atraíam um considerável número de pessoas que exerciam as mais diversas profissões: médicos, advogados, comerciantes, farmacêuticos, militares, jornalistas, diplomatas etc., alguns que se fizeram presentes pertenciam à elite local como os ex-governadores do estado do Pará Lauro Sodré e João Coelho, o maestro Ettore Bosio, o senador Justo Chermont, o médico legista Renato Chaves entre outras personalidades da época.

A divulgação dos fenômenos pela imprensa local, coube aos jornalistas que se fizeram presentes as sessões mediúnicas, entre eles, João Alfredo de Mendonça um dos mais destacados, secretário do jornal “Folha do Norte”.

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A singularidade de Ana Prado

Anna Rebello Prado era uma senhora casada, mãe de três filhos, esposa de Eurípedes Prado, comerciante muito conhecido na cidade, segundo alguns de seus contemporâneos, Anna Prado seria portadora de extraordinários dotes mediúnicos, possuía a capacidade de produzir uma série de fenômenos de efeitos materiais, entre eles podemos destacar: o transporte de objetos, ruídos, trabalhos em parafina líquida com a produção de esculturas de difícil formato, operações mediúnicas2, além de produzir o mais intrigante e sem dúvida o que atraia mais assistentes que consiste na materialização de espíritos3, um raro aspecto da fenomenologia espírita que transformou Anna Prado em alguém singular na época e em nossos dias, pois segundo a doutrina kardecista “[...] a faculdade de produzir efeitos materiais raramente existe, nos que dispõem dos mais perfeitos meios de comunicação quais a escrita e a palavra [...]” (KARDEC: 1861 p. 196); o que mais impressionava os simpatizantes e adeptos da causa kardecista era o controle que a médium exercia sobre os fenômenos, principalmente os de materialização, pois nas raras vezes em que ocorreram, aconteceram de forma aleatória, onde o médium não conseguia de forma alguma ter controle sobre os fenômenos o que não acontecia com Anna Prado, pois o encontro com os habitantes do “além-túmulo” tinha local, hora e data marcada geralmente com uma relativa antecedência.

Como mencionado as materializações eram uma rotina na casa dos Prado, entre os mais variados espíritos que por lá supostamente se manifestavam destacava-se o do João4, uma espécie de “espírito coordenador” das mais variadas atividades, “João” foi descrito pelos vários assistentes quer nos jornais ou nos depoimentos presentes no livro de Raimundo Nogueira de Faria5, como um espírito teimoso por que quando não conseguia realizar uma tarefa insistia até atingir seu objetivo.

2 Operações realizadas com a interferência de espíritos. 3 Fenômenos de materialização ocorrem quando os espíritos utilizam-se dos fluídos ou energias de pessoas vivas combinadas a seus próprios fluídos, tornando-se visíveis e muitas vezes tangíveis. 4 Recebeu o nome de “João” o espírito que supostamente se manifestava com bastante freqüência nas reuniões mediúnicas, em vida teria sido tio de Ana Prado e atendia pelo nome de Felismino Rebelo, o nome “João” foi dado devido a primeira manifestação datar do dia 24/06/1918, este fato nos permite perceber a influência do calendário católico e a dualidade religiosa presente no Caso Ana Prado. (Faria, 2002). 5 Escritor do documento mais completo sobre o caso Ana Prado intitulado “O Trabalho dos Mortos’.

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[...] hoje em todas palestras, seja no interior confortável dos palácios ou no “deshabillé” bohemio das tavernas, fala-se do João e suas mil proezas [...] (O Estado do Pará, 24.08.1920:01)

O rito espírita engloba três aspectos fundamentais: a prece, o passe e as

manifestações. As reuniões espíritas na casa dos Prado seguiam uma ritualização própria e realizavam-se da seguinte maneira: na sala da casa, Eurípedes Prado reunia os assistentes que iriam presenciar os fenômenos, estes por sua vez sentavam-se em forma de semicírculo enquanto Anna Prado dirigia-se para o outro lado da sala onde se sentava próximo a uma parede coberta por um pano escuro ao fundo, o pano era fundamental para contrastar com as formações fluídicas dos espíritos geralmente esbranquiçadas, posteriormente a médium entrava em transe, este era facilitado pela execução de trechos musicais que a deixavam sensibilizada acelerando seu estado de letargia. Nesse instante apagavam-se as luzes da sala, ficando acesa apenas a luz do corredor, pois os fenômenos de materialização necessitam de meia luz, seguia-se o transporte de objetos e as materializações “[...] dentro de cinco minutos, via-se o primeiro núcleo branco de formação fluídica destacar-se do fundo negro [...]” (FARIA:1943, p.54). Depois de materializado, o espírito produzia uma série de fenômenos, sendo também interrogado pelos assistentes, respondendo as várias perguntas através da médium e por fim os trabalhos em parafina realizados pelos espíritos materializados; esse padrão de procedimentos eram importantíssimos para o sucesso da reunião, sem música, por exemplo, a médium demorava em torno de 20 a 30 minutos para entrar em transe, com a luz elétrica acesa as materializações não ocorriam, e se algum assistente chegasse atrasado às reuniões podia comprometer os trabalhos. Ao término das sessões, Anna Prado era acordada do transe em que se encontrava, muitas vezes pelos próprios espíritos materializados, escutando-se bem, segundo alguns dos assistentes, o barulho das palmadas no rosto da médium, encerrando as atividades mediúnicas. Médicos do além operam em Manaus e Belém

Além da infinidade de fenômenos produzidos pela médium Anna Prado

esta, também realizou sessões de cura através de operações mediúnicas. A primeira que se tem conhecimento foi noticiada pelo Jornal do Comércio, de Manaus, sendo o artigo publicado em Belém pelo diário A Província do Pará. Segundo os jornais os ‘espíritos materializados’ conduziram os trabalhos na cidade de Parintins em junho de 1921, onde a médium e sua família se dirigiram a passeio com objetivo de visitar parentes. Apesar de a família Prado estar longe de seu domicílio, a sessão mediúnica em Parintins seguiu o comportamento

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rotineiro, conquanto em Parintins essa reunião apresentasse um diferencial, pois a médium iria realizar uma sessão de cura, prática incomum nas reuniões espíritas em Belém. O Sr. Alexandre Carvalho Leal, advogado residente em Parintins e a Sra. Nicota Prado, prima da médium, manifestaram o desejo de serem medicados pelos espíritos aproveitando a estada do casal na cidade amazonense. A seguir vou sumariar alguns trechos da extensa reportagem publicada no jornal A Província do Pará:

No dia dezesete deste mês o Sr. Eurípedes Prado realizou em sua casa uma sessão espirita, com o fim demonstrar às pessoas em evidencia na sociedade parintinense que é um facto a revelação dos espíritos e a proficiencia da cura de certas moléstias que affectam a vida da humanidade. (A PROVINCIA DO PARÁ, 10.06.1921, p.01)

O Sr. Alexandre Carvalho Leal há muito sofria com incômodos na garganta

e sem encontrar cura para seu pesar resolveu recorrer à intercessão dos espíritos. A Sra. Nicota Prado, por sua vez, desejava ser operada de um abscesso na boca. Assim, os dois ‘pacientes’ não seriam operados pela médium e sim por espíritos materializados que, por meio de Anna Prado, executariam as práticas de cura. Antes de iniciada a sessão foram selecionados objetos que os ‘doutores materializados’ precisariam no momento das cirurgias, e depois foram colocados em “[...] uma pequena mesa com flores, pastas de algodão, pires, tímpanos e outros apetrechos.” (A Província do Pará, 10.06.1921, p.01). Seguindo os ritos das reuniões espíritas dos Prado, os habitantes do ‘além túmulo’, supostamente, materializavam-se na frente da assistência. Em Parintins, para perplexidade geral, o espírito que se manifestou essa noite, além do espírito do João, identificou-se como médico e logo exerceu seus ‘ofícios profissionais’ a:

[...] “médium” fez um gesto com a mão para o Dr. Leal, que, ato continuo, tomou assento numa cadeira isolada, a três passos da mesa. Nesse momento o espírito, que se dizia de um medico, tirou a pasta de algodão da mesa, aproximou-se do Dr. Leal e o medicou por espaço de alguns minutos dando repetidas fricções no pescoço. (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 10.06.1921, p.01).

Logo após a primeira ‘intervenção cirúrgica’ o espírito do médico continuou

suas atividades naquela noite e dirigiu-se a Sra. Nicota Prado.

[...] Ai no decurso de quarenta e cinco minutos, praticou a operação, ouvindo-se nesse intervalo como que um rumor de pinças a tocar nos dentes da operada. De vez quando. D. Nicota Prado soltava gemidos abafados, mas sempre imóvel a hirta como uma pessoa atacada por catalepsia. (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 10.06.1921, p.01)

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Terminada a sessão, Anna Prado acordou do transe mediúnico. Passaram-

se dias e dizia à missiva que os dois ‘pacientes’ melhoraram sensivelmente. A outra operação mediúnica que se tem conhecimento foi realizada por

Anna Prado em Belém e é relatada pelo nosso interlocutor Raymundo Nogueira de Faria, no livro A Renascença da alma (1924, pp. 107-111), fruto do depoimento de um dos assistentes, o médico José Teixeira Matta Bacellar, que se fez presente a casa da família Prado no dia 7 de outubro de 1922 e lá afirma ter visto o garoto de 11 anos, João Andrade, ser operado por ‘cirurgião do espaço’. João Andrade estava doente, sofria com “[...] um tumor do tamanho de um ovo regular localizado na axila esquerda”. (FARIA: 1924, p.108). Às 9 horas teve início a sessão e dentro de meia hora materializaram-se dois vultos, um logo reconhecido, era o de João, e o outro desconhecido, este fantasma incógnito foi logo examinar o enfermo, aproximou-se do menino que estava sentado em uma cadeira próximo aos assistentes e começou a operá-lo, daí decorridos meia hora deu por terminada a cirurgia, apesar da pouca luz afirma Matta Bacellar puderam os presentes distinguir muito bem os dois habitantes do mundo invisível. Eis o que disse pela boca da médium o ‘cirurgião do espaço’: “[...] que não dilatou mais largamente o tumor para não fazer sofrer o menino, mas que a dilatação feita era o bastante para cura rápida; e que o doente não mais sentiria as dores que o importunavam.” (FARIA, 1924, p. 110).

Após o fim da operação aproximou-se Matta Bacellar do menino e constatou:

[...] com grande admiração, verifiquei que na mão do paciente havia um panno com sangue e puz, ao tempo que os presente se aproximavam e notavam a abertura do tumor por onde escorria puz e sangue! Indaguei o menino se sentira dor forte. E a resposta que me deu foi que: “emquanto estavam furando o tumor sentiu uma dôr, mas não muito forte”, o que esta de accordo com o facto de nenhum dos presentes te-lo ouvido gemer durante essa meia hora. (FARIA,1924, p.111).

Terminada a sessão o ‘cirurgião do espaço’ foi embora depois de ter ‘curado’

o ‘paciente’ João Andrade. No restante do livro não existem relatos sobre o estado de saúde do garoto após a cirurgia, o que ficou claro é que o fantasma operador desta vez não se identificou como médico, pois diferente do que aconteceu em Parintins, simplesmente materializou-se, realizou a intervenção acompanhado de perto pelo fantasma de João e depois esclareceu o procedimento efetivado através da médium, encerrando a sessão.

As três cirurgias de caráter mediúnico, possivelmente realizadas por Anna Prado, deram-se em momento delicado. A ciência médica lutava contra

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curandeiros e espíritas para consolidar sua posição enquanto a única qualificada para curar e avaliar as doenças do corpo. Já durante o século XIX, por todo o país os conflitos entre as práticas de curas não oficiais e a medicina intensificaram-se e no início do século XX:

A medicina, apesar da autoridade que detinha, apresentava baixo poder de resolubilidade. A concorrência com outras práticas de cura, não reconhecidas pela ciência da época, era grande. Por trás da imagem, do lado de fora daquele ambiente, é possível imaginar que médiuns, espíritas, bruxas, curandeiros, herbanários e todos os praticantes de outras formas de cura aguardavam o momento da convocação. (PEREIRA NETO, 2001, pp. 20-1)

Percebi ao longo dos estudos que a médium teve divulgada as supostas

cirurgias que aconteceram Parintins, porém a ocorrida em Belém não foi divulgada na imprensa, sendo conhecida do público só após sua morte. A reunião na capital foi bem mais discreta e contou apenas com 12 assistentes, incluindo a ‘médium’ e seu esposo, possivelmente a família Prado tinha conhecimento que as práticas de cura não oficiais em Belém eram tratadas neste momento como caso de polícia:

A pajelança sempre esteve, até onde as nossas vistas alcançam entre a perseguição policial e dos órgãos governamentais de promoção das políticas sanitárias e a enorme presença e atuação entre os mais diferentes grupos sociais. Nas primeiras décadas do século XX, a perseguição policial foi bastante intensa, com estabelecimento de constantes diligências policiais nas moradas dos pajés e casas de “feitiçaria”, muitas vezes nas regiões centrais da cidade, nas proximidades de respeitosas e civilizadas residências de eminentes políticos e comerciantes enriquecidos nos tempos da borracha. (FIGUEIREDO, 2003, pp. 277-8)

Além das perseguições policiais a lei penal não era branda com quem ousasse

praticar a medicina ilegalmente:

O Código Penal de 1890 [...] condenava a prisão de seis meses até um ano quem “ministrasse ou prescrevesse uma substância de qualquer dos reinos da natureza”. Se a prescrição resultasse em morte do paciente, o curandeiro seria condenado a uma pena que poderia chegar a 24 anos de prisão” (PEREIRA NETO, 2001, p.90)

Após a publicação dos fenômenos na imprensa, a família Prado ficou

exposta a críticas ferrenhas de seus opositores. Os Prado não desejavam uma diligência policial à sua porta sob acusação de exercício ilegal da medicina, o que provavelmente teria motivado a realização de uma sessão mediúnica com práticas de cura em Parintins, uma cidade do interior da Amazônia, bem distante

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do olhar atencioso da capital e outra sessão de cura realizada em Belém de forma bastante restrita e provavelmente sigilosa em Belém, contando com a presença de apenas 12 assistentes, quando a média normal ficava entre 25 a 30 expectadores.

A procura por curandeiros, pajés, sonâmbulos, feiticeiros, homeopatas, benzedeiros, parteiras, barbeiros sangradores e espíritas, no lugar de médicos, era atitude corriqueira entre a população, motivada por vários fatores entre os quais se destacam: a falta de médicos profissionais cujo número era muito reduzido nas capitais e quase inexistentes no interior; o preço cobrado por suas consultas, o que tornava os esculápios inacessíveis a maioria da população; acrescido da tradição popular de procurar outros agentes da cura em um momento em que os procedimentos médicos científicos ainda eram vistos com desconfiança pela maioria da população, os “[...] doutores não tinham muita legitimidade e prestígio junto a muitos pacientes” (SAMPAIO, 2001, p.145); fossem eles de origem humilde ou abastada, sem citar que a maioria dos seus métodos em pouco diferia dos utilizados pelos demais agentes de cura. “Ignorantes ou gente classificada. Pouco importa. Ambos os segmentos sociais recorriam a curandeiros.” (PEREIRA NETO, 2001, p. 89). Podemos citar como exemplo o Dr. Alexandre Carvalho Leal, que mesmo sendo um letrado, pois exercia o ofício de advogado “[...] manifestou o desejo de ser medicado pelos espíritos” (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 10/06/1921, p.01.).

Outro aspecto importante de se perceber é o caráter que se atribui a um possível comportamento natural dos homens mediante determinadas situações, “[...] apontando sua essência imutável e atemporal” (HORTA, 2005, p. 78) que seriam compartilhadas levando-os, por exemplo, a ter curiosidade mediante a realização de uma sessão mediúnica e sua natural propensão em procurar curandeiros diante da demora de um resultado eficaz e rápido por parte dos tratamentos médicos científicos. As terapias utilizadas por facultativos e agentes de cura eram mediadas pelos três reinos da natureza: o animal, o vegetal e o mineral, destacando-se “[...] os processos terapêuticos da alopatia, homeopatia, hidropatia, dosimetria, cada um tendo os seus partidários.” (WEBER, 1999, p.115). Para os médicos “[...] o método curativo teria, assim, obedecido a um teste ou uma prova das leis científicas” (FIGUEIREDO, 2003,p. 282).

As perseguições aos curandeiros, pajés, espíritas e toda a sorte dos que praticavam a ilegalidade médica intensificou-se “[...] quando começaram a se formar os primeiros grupos de médicos nacionais, ainda na primeira metade do século XIX, começaram também as intenções de eliminar a vasta concorrência.” (SAMPAIO, 2001, p. 24). No caso dos pajés, além da receita de remédios “[...] terapêuticos dos nossos vegetais, por eles largamente aplicados” (BEM, 1905, p.147 apud WEBER, 1999, p.114) soma-se, semelhante à Anna Prado, os “[...] contatos que faziam com o desacreditado mundo sobrenatural.”

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

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(FIGUEIREDO, 2003, p. 287). Em se tratando dos pajés havia uma íntima relação com o mundo vegetal, pois os remédios produzidos a partir de plantas constituíam parte integrante de suas estratégias de cura, valorizando os conhecimentos indígenas dos quais se diziam portadores.

As práticas médicas legais e o choque com os curandeiros acabaram expondo dois mundos que se opunham:

O mundo natural, de domínio dos doutores formados nas faculdades de ciências cuja natureza era entendida “[...] como um imperativo moral, ou seja, um ditame, um dever, uma ordem decorrente de uma verdade mais profunda e anterior. Assim falar de algo natural é apresentá-lo como inquestionável, inato, inegociável, fora de discussão e, principalmente positivo.” (DUARTE, 2005, p. 79), em um momento em que a “[...] filosofia positivista influía sobre a prática médica, transformando-a em verdade incontestável.” (PEREIRA NETO, 2001, p. 21). Para os médicos o saber acadêmico era resultado do exame experimental da natureza e o conhecimento proveniente dele, saber incontestável.

E o mundo sobrenatural, invisível, não tangível, habitado por espíritos e entidades espirituais, forças sobrenaturais, que agiam através dos médiuns, fossem eles espíritas, pajés ou pertencentes à outra religião, atuariam no mundo natural com vistas a amenizar o sofrimento dos doentes através de suas intervenções cirúrgicas, como no caso de Anna Prado e de outras práticas de curandeiros, bruxas e feiticeiros que se comunicavam com seres ou entidades espirituais para receitar remédios que viriam amenizar as dores do corpo e do espírito. Segundo Kardec (2003), os médicos não tinham sucesso em seus trabalhos porque tratavam apenas do corpo e não da alma e para o corpo atingir a saúde plena haveria que sebb conjugar esses dois elementos, procedimento que era muito comum entre os agentes da medicina ilegal.

As intervenções cirúrgicas de caráter mediúnico realizadas por Anna Prado em Parintins e Belém consolidaram-se como mais um elemento das práticas de cura a ser combatido pelos médicos, um espírito materializado mostrava a intercepção de dois mundos, o espírito teoricamente agia em nome da cura, transformando sua forma fluídica em algo tangível a ser apreendido pelo mundo natural, sua materialidade o inseria no mundo da natureza afastando-o do mundo sobrenatural do qual ele era originário. Para os espíritas “[...] a existência e a natureza do mundo espiritual, e suas relações com o mundo corporal, ele no-lo mostra, não mais uma coisa sobrenatural, mas ao contrário, como uma das forças vivas e incessantemente ativas da Natureza” (KARDEC, 2003, p. 36). Os kardecistas viam nessas práticas posturas totalmente naturais, pois partilhavam uma relação de familiaridade com o mundo dos espíritos.

Os conflitos entre o exercício médico e outras práticas de cura nos levam a perceber o importante papel que a natureza ocupava nas atividades dos diferentes sujeitos envolvidos. Em algumas situações a natureza era percebida

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como um bem comercial manipulável, que tinha por finalidade a produção de remédios indicados para os mais variados tratamentos terapêuticos.

A utilização da ideia de natureza como legitimadora de diversificadas práticas de cura, também fazia parte do quadro dos conflitos ensejados por médicos e curandeiros. Para os doutores o exercício da medicina estava ligado ao domínio e estudo dos três reinos naturais.

Os curandeiros de uma maneira geral viam na natureza um elemento essencial para realizar seus ofícios, principalmente no que concerne a seus receituários envoltos em ungüentos, chás e beberagens, onde as plantas forneciam os essenciais princípios ativos dos remédios indicados para os mais diversos males. Por fim, os espíritas davam à natureza um caráter sagrado no momento em que entendiam o mundo sobrenatural, onde habitavam os espíritos, como componente do mundo natural, portanto passível de ser utilizado mediante as necessidades de saúde.

As intervenções cirúrgicas, supostamente realizadas por Anna Prado, nos permitiram adentrar nas complexas relações entre médicos e curandeiros, desvendando conflitos, percepções de mundo e os sentidos atribuídos à natureza. Esta era elemento integrante das práticas de cura, formando com elas um hibridismo presente nas atividades de todos os agentes da cura no início do século XX.