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“VIVENDO E APRENDENDO”. OS SIGNIFICADOS DA CRONICIDADE DA
LEUCEMIA MIELOIDE CRÔNICA NA EXPERIÊNCIA DE PACIENTES.
Autor (as): Yeimi A. Alzate L.* e Leny A. B. Trad*
* Antropóloga, doutoranda do programa de pós-graduação em Saúde
Coletiva. Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Bahia.
* Psicóloga, PHD em antropologia, pesquisadora e professora associada II,
Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Bahia
Introdução
O câncer e todas as doenças que pertencem a esta categoria caracterizam-se por possuir
uma dimensão simbólica (e real) que as representa como doenças malignas associadas à
morte e sofrimento. Essas representações baseiam-se nas diferentes dimensões da
construção histórica e sociocultural da doença, as metáforas e os significados que são
compartilhados entre leigos e não leigos (Kleinman, 1988, Sontag, 1996, Mukherjee,
2012).
De acordo com Canesqui (2007), a cronicidade pode ser entendida de duas maneiras,
em primeiro lugar como um dispositivo conceptual biomédico e, especialmente clínico
referido à impotência de curar a doença, na orientação da prática médica. A outra
concepção refere-se à cronicidade como um conceito na sociedade ocidental, criado na
interação com o sistema de saúde mental (citando Heurtin-Roberts, 1993). Isso se refere
às condições de saúde que podem ser gerenciadas, mas não curadas, com sintomas
contínuos ou periódicos, que de certo modo, pode interferir com vários aspectos da vida
do paciente e de sua família (p. 9).
Seguindo este raciocínio, as múltiplas doenças que cobre a categoria “câncer” que
compartilham a categoria “crônica” atribuída à temporalidade do seu desenvolvimento,
seu gerenciamento e, na maioria dos casos, pela sua não cura, elas representam
primordialmente uma “ameaça à vida”. No caso especifico da Leucemia Mieloide
Crônica (LMC) o conhecimento da sua patogênese (mas não da sua etiologia) e os
desenvolvimentos tecnológicos recentes em tratamentos, tem levado a uma reconstrução
do discurso científico biomédico mudando a forma de conota-la, denota-la, explica-la e
trata-la como uma forma diferenciada de outros tipos de leucemia e de câncer.
A fase crônica da LMC há pouco mais de uma década tinha uma duração estimada de
três a seis anos, seguida pela transformação para as fases acelerada e blástica de curta
duração, estimada entre 3 a 6 meses (Kantarjian, et.al. 1993, 2002) colocando um
panorama de mortalidade alcançada em pouco tempo. Devido ao desenvolvimento de
medicamentos conhecidos como Inibidores de Tirosino Quinase (ITK), substância
importante na progressão da célula leucêmica, a LMC é reconhecida na atualidade como
uma “mudança de paradigma” no tratamento da Leucemia e do câncer (Goldman &
Melo, 2003; Stephen et.al., 2003, Souza e Pagnano, 2004, Rüdiger, et.al, 2007).
Estes medicamentos têm alcançado o controle e remissões da doença douradoras na fase
crônica, que só tinham sido alcançados através do Transplante de Medula Óssea (TMO)
(Schiffer et.al. 2007, Jabbour, et.al. 2007, Lopes et.al. 2009). Este panorama tem
redefinido os protocolos de tratamento colocando o TMO (e considerando suas taxas de
mortalidade) como tratamento de segunda ou terceira linha em caso de resistência aos
ITK, mas continua sendo considerada a única terapia de cura da LMC (Rüdiger, et.al,
2007, Aranha, 2008). Alguns estudos recentes apontam para a possibilidade de “cura” a
partir do tratamento continuado com os ITK, porém a suspensão do tratamento só é
recomendado sob certa condições e com um monitoramento e controle citogenético e
molecular constante (Branford, 2012; Jabbour, et.al, 2013)
Esse contexto nos permite evidenciar uma reconstrução constante do discurso (e
práticas) biomédico e clínico da doença, a partir de novas descobertas cientificas e
tecnológicas, que de alguma forma permanecem dentro do âmbito do mundo médico,
com uma linguagem propriamente cientifica, que de alguma forma coloca as margens os
envolvidos, neste caso aqueles que a vivem, assim como sua rede social gerando velhas
e novas incertezas, ambiguidades e significados da “cronicidade da LMC”.
O objetivo deste trabalho é analisar o processo de significação e de resignificação
construídos intersubjetivamente por pessoas com LMC, interpretando o processo onde
discursos e metáforas que permanecem nos imaginários até hoje, se misturam, se
recriam, se reelaboram e se fundem na situação biográfica e contexto de cada pessoa.
Para isto, recorremos a um referencial teórico socioantropológico baseado no conceito
de experiência de enfermidade e de significado (Bury, 1982, 1991; Kleinamn, 1988;
Good, 1994, Gadamer, 2002, Alves, 1993, 2006; Alves e Rabelo, 1999; Mercado, 1998;
Castro, 2000; Canesqui, 2007; Schutz, 2012).
Entendemos a experiência de enfermidade a partir do conceito de enfermidade (Illness)
colocado por Kleinman (1988). Segundo ele, a enfermidade é a “experiência dos
sintomas e do sofrimento”, “a experiência vivida do monitoramento dos processos
corporais”, incluindo a “categorização e a explicação, em sentidos do senso comum
acessíveis a todas as pessoas leigas, das formas de angústia causadas pelos processos
fisiopatológicos” (pag. 3 – 30).
A enfermidade aparece como experiência significativa (Schutz, 2012) no sentido que ela
representa uma interrupção no fluxo dos acontecimentos, e requer de um ato reflexivo
de atenção para o corpo, a vida e as relações sociais adquirindo um significado
particular na medida em que é interpretada. Nesse sentido, a experiência de viver com
LMC é mais do que suma de muitos eventos particulares que ocorrem em uma carreira
de enfermidade, ela consiste em uma relação recíproca entre as situações particulares e
o curso da “cronicidade”.
Alves e Rabelo (1999) entendem a experiência de enfermidade, como a forma pela qual
os indivíduos situam-se frente à doença, conferindo-lhe significados e desenvolvendo
modos rotineiros de lidar com ela. Segundo os autores, a doença constitui um evento
que exige das pessoas envolvidas, que deem início a ações que permitam reconduzir a
vida cotidiana dentro dos pressupostos aceitos.
Por seu lado, Canesqui (2007) aponta que abordar a dimensão sociocultural das
enfermidades de longa duração significa olhar para o sujeito convivendo com uma
condição que o acompanha a todos os lugares e cuja forma de entendê-la, explicá-la,
representá-la e lidar com ela decorre de um constante movimento em que interpretação
e ação se realimentam reciprocamente, balizadas pelo contexto sociocultural imediato e
mais amplo no que se inserem.
Concordando com estes pressupostos e focalizando para a construção e reconstrução
intersubjetiva dos significados da LMC, analisamos as narrativas dos pacientes a partir
principalmente da noção de intersubjetividade (Schutz, 2012, p. 42) que pressupõe a
existência de quadros de referencia graças aos quais é construído o significado da
experiência, e os quais são internalizados pelos sujeitos a través de processos concretos
de interação social. As noções de enfrentamento (coping) e normalização também foram
relevantes para nossa interpretação sobre o processo de significação. Segundo Bury
(1982, 1991), a primeira faz referencia ao processo cognitivo através do qual os sujeitos
aprendem como tolerar ou se colocar frente aos efeitos da doença. O termo encontra-se
relacionado aos sentimentos de valor pessoal, a um “senso de coerência” e significados
da vida positivos apesar dos sintomas e os seus efeitos. Por seu lado, a normalização,
como uma forma de enfrentamento, envolve o processo de “colocar entre parêntese” o
impacto da doença, fazendo com que os seus efeitos permaneçam mais “leves” para a
identidade da pessoa, assim como tratar a doença e seus tratamentos como “normais” 1.
Dois desdobramentos destes pressupostos são fundamentais na constituição teórica da
problemática de estudo. O primeiro trata como a compreensão da enfermidade e os
significados que se geram são continuamente reconstruídos e confrontados por
diferentes diagnósticos construídos por familiares, amigos, vizinhos e terapeutas, mas
também por significados culturais implícitos da doença que influenciam suas próprias
experiências. O segundo chama atenção para os diferentes recursos de cuidado que os
sujeitos podem acionar (ou não) para cuidar da sua doença, que se colocam nesse
quadro de sistemas plurais de compreensão e cuidado.
Dessa forma, para compreender o que significa viver e conviver com a LMC e como os
sujeitos se apropriam de todo um conjunto de ideias, crenças e praticas sobre a doença e
seus cuidados, mas também como criam, explicam e resignificam sua própria
experiência, faz-se necessário a compreensão dos processos intersubjetivos e o contexto
em que os significados são adotados ou criados.
A trilha metodológica
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, centrada na análise de narrativas. A escolha por
este método levou em conta a pretensão de apreender os sentidos atribuídos ao
adoecimento, bem como, o processo reconstrução das experiências e a realidade das
vidas cotidianas dos sujeitos portadores de uma doença crônica (Alves e Rabelo, 1999).
1 Tradução das autoras
O interesse na compreensão das experiências através da narrativa baseia-se nos
pressupostos de que as experiências podem ser netamente pessoais, no entanto, são
expressas de uma forma cultural específica. Como apontado por Minayo (1998, p. 269)
as narrativas são entendidas como capazes de incorporar a questão do significado e da
intencionalidade como inerentes aos atos, as relações, as estruturas sociais, tomadas
estas últimas tanto em sua origem como em sua transformação, como construções
humanas significativas.
Seguindo estes aportes mergulhamos nas experiências dos participantes, a partir do
contato realizado em encontros informais, mas também durante as entrevistas para
depois nos deparar com as suas narrativas, gravadas, transcritas, sistematizadas e depois
analisadas e interpretadas apontando para o processo de significação.
Foram analisadas dez narrativas de dez pacientes com diagnostico de LMC cuja
identificação é realizada no quadro 1. Procurou-se incluir pacientes com diferentes
idades, tempo de diagnostico, em fase crônica da doença, usuários do SUS e de plano de
saúde. Oito dos participantes, usuários do SUS foram selecionados entre pacientes
atendidos no Hospital Universitário Edgard Santos (HUPES) da cidade de Salvador –
Bahia – Centro de referência em atenção hematológica na cidade de Salvador – BA e do
Estado. Dois deles, usuários de plano de saúde, foram recrutados em instituições
privadas, uma delas no Centro de Hematologia e Oncologia – CEHON e outro no
Núcleo de Oncologia da Bahia – NOB.
Quadro 1: Identificação dos participantes
Nome
(Fictício)
Idade Escolaridade Ocupação Data de
diagnostico
Procedência
Elena 23 anos Superior Técnica em
administração
(empresa de
refeições)
2007 Área
Metropolitana de
Salvador
Taira 24 anos Médio incompleto Desempregada 2007 Interior da Bahia
André 29 anos Segundo grau
completo
Autônomo 2007 Interior da Bahia
Dilia 30 anos Segundo grau
completo.
Operaria de
maquina injetoras
(Fabrica de
brinquedos)
2008 Área
Metropolitana de
Salvador
Eduardo 34 anos Superior Administrador de
empresas
2009 Salvador
Marcelo 43 anos Médio completo Comerciante 1997 Salvador
Gabriela 45 anos Médio completo Técnica em
enfermagem
2008 Salvador
Clara 58 anos Superior Médica pediatra 1999 Salvador
Jefferson 62 anos Terceiro ano
primário
Motorista de
caminhão
2008 Salvador
Esperança 74 anos Primeiro grau
completo
Autônoma 2009 Interior da Bahia
Seis dos participantes fizeram parte da pesquisa de mestrado da primeira autora
(concluído em 2010), alguns dos quais continuaram na pesquisa de doutorado (em
andamento) motivo pelo qual, contamos com a valiosa oportunidade de acompanhar a
construção narrativa ao longo do tempo de alguns deles.
É importante contextualizar que os pacientes que receberam o diagnóstico entre 1997 e
2009 passaram pelos protocolos médicos de controle antes de iniciar com a primeira
linha dos ITK dentre os quais destaca-se o Mensilato de Imatinibe (MI), mais conhecido
pelos pacientes como Glivec e que foi introduzido na rede pública SUS no ano de 2011.
Na rede privada a dispensa do medicamento fica ao critério do plano.
Dos pacientes com diagnóstico mais antigo (1997 – 1999) um deles passou por
transplante de medula óssea, esteve em remissão por mais de sete anos e teve uma
recidiva da doença em 2007, iniciando tratamento com (MI) até hoje. A outra procurou
realizar o procedimento, mas não foi indicada por falta de familiar compatível assim que
realizou o tratamento de controle e iniciou com MI no ano de 2004. As diferenças de
tempo do diagnóstico permitiram uma melhor apreensão da vivencia da cronicidade da
LMC e a atribuição de significados.
A coleta dos dados foi realizada entre os anos 2009 e 2012. O primeiro contato com os
pacientes foi realizado nas Unidades de atenção. As entrevistas foram realizadas em
geral nos domicílios dos participantes, três delas foram realizadas nas unidades e uma
no Instituto de Saúde Coletiva. As entrevistas de enfoque narrativo foram estruturadas
por fases seguindo a proposta de Jovechelovitch e Bauer (2002). A primeira, conhecida
como fase de preparação, introduz os dados de identificação dos entrevistados. Na
segunda, chamada de iniciação, formulou-se um tópico inicial da narração, onde se
perguntou pelos sintomas iniciais e sobre como “apareceu” a doença. A fase de narração
central - fase 3 -, não precisou de pergunta guia pois a partir da iniciação, os
participantes continuavam contando sua experiência, as vezes chegando até o que
parece “o final” e retornando depois, para aspectos anteriores. A solicitação de
aprofundar esses aspectos, só se realizou na fase quatro, das perguntas.
Como pergunta inicial, pediu-se para as pessoas contar uma história, a história de como
adoeceu e o que significou em sua vida, tendo em mente o exercício de contar para
alguém que não sabe de nada. A média de gravação foi de duas horas com cada
participante, além dos encontros informais no hospital ou nas unidades e das anotações
escritas no diário de campo.
O processo de analise de dados baseou-se na proposta de Schutz (1979, apud
Jovechelovitch e Bauer). Após audição e leitura exaustiva das entrevistas, foram-se
identificando as principais noções e categorias empíricas e se indexou o texto. A
indexação se realizou identificado primeiro, as trajetórias, segundo como narradas pelos
participantes e segundo, tudo o que compõe como coloca Schutz (2012), a “sabedoria de
vida”, isto é, os significados, valores e avaliações realizados pelos participantes.
A vinculação dos elementos indexados permitiu observar esse movimento sincrônico e
diacrônico da experiência, que não consiste só em “recordar” eventos passados, mas
também representações presentes e futuras. Foram identificadas três categorias
principais de analise: A LMC como ameaça a vida; os sentidos do TMO, do controle e
de uma vida “normal” que inclui o sentido da incerteza, limitações e restrições na vida
diária e o “viver e aprender” a cronicidade da LMC.
Por último, cabe ressaltar que ambos os projetos do estudo foram aprovados pelo
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade
Federal da Bahia, nos pareceres No. 017 – 09 / CEP ISC e No. 023-12 / CEP ISC e
contaram com a aprovação dos comitês de ética das diferentes instituições.
Resultados e discussão
“Doutor: eu vou morrer é?” A LMC como ameaça a vida.
Um primeiro aspecto que encontramos em todas as narrativas dos participantes foi à
associação da LMC e dos tratamentos com a morte e sofrimento. Ao receber o
diagnostico as informações sobre a doença oferecidas por parte dos hematologistas,
especialmente as possibilidades de tratamento, pareciam apresentar para eles certo
contexto diferenciado de cuidado e tratamento quando comparado com outros cânceres.
Porém, desde muito antes da doença receber o nome técnico, desde a descoberta da
alteração dos leucócitos, da “anormalidade” no sangue, encontramos nos relatos
sentimentos de “susto”, “desespero” e de “medo”.
“Ai um susto, primeiro por que não sabia nada sobre a doença, na minha família era
muito (...) era todo muito novo e quando a gente associa ao câncer, todo mundo ficou
meio desesperado percebeu? Até porque o primeiro médico me falou, ele foi muito bom
comigo, ele me explicou, mais o menos como seria o tratamento. Só que na época
sempre se colocava: ah é quimioterapia, fica magra, vai perder cabelo, então todas
essas coisas que a gente traz de histórico, do que a gente conhece, ai eu fiquei
imaginando que era tudo isso né?” (Elena, 23 anos)
O “não saber nada sobre a doença” a encontramos na maioria das narrativas, mas esse
desconhecimento contrapõe-se com o “histórico” que todos compartilham, isto é, as
imagens do câncer como doença grave, mortal, que traz sofrimento para o paciente e sua
família (Sontag, 1996, Mukherje, 2012, Diaz, 2012). Kleinman (1988) coloca como o
câncer é uma das doenças marcadas culturalmente, em diferentes épocas e sociedades
por ser considerada como altamente maligna, por ocorrer de forma aleatória, por ser
vista como um problema incontrolável e como uma ameaça direta a vida.
Com respeito á visão especifica da leucemia, identificamos como a fatalidade da morte
se apresenta mais acentuada naqueles casos em que a pessoa ou algum integrante da
família tinham algum conhecimento ou referencia da doença (mesmo sem ter clareza do
tipo), de alguma pessoa próxima ou conhecida que morreu ou dos referenciais da
leucemia encontrados em novelas ou filmes.
A incerteza a encontramos nos diferentes “medos” apontados nas perguntas: vou
morrer? O que vai acontecer a partir de agora? Quais serão os efeitos dos
medicamentos? Isso dura até quando? Esses questionamentos colocam-se não só como
procura de informações frente a profissionais de saúde, mas como já apontando por
Kleinman (1988), como significados em si mesmos que se constituem em incertezas
sentidas.
“(...) foi uma virada na vida de ponta a cabeça, porque a sensação que você tem é que
realmente você tá com os dias contados, né? e foi muito difícil, né? a fase de informar
pras filhas, eu tenho três filhas e foi assim muito angustiante a sensação de não vê-las
atingir a idade, assim a maturidade,(tosse) casamento, filho, se formar, essa coisa toda
(tosse), foi realmente mais difícil né?” (Clara, 58 anos).
Nos relatos, o medo adquire varias dimensões: as mudanças (corporais e na sua vida
cotidiana), as perdas (de tempo de vida e de capacidades físicas) e as rupturas na visão
de si e das relações sociais. Nesse processo, não só a doença, mas os tratamentos
adquirem sentidos que, associados às visões das quimioterapias convencionais
fundamentaram os medos de “ficar carecas”, “ficar magros”, colocando a
preocupação de que as pessoas ao seu redor mudassem a forma de “vê-los” significando
como negativos os “olhares de pena” ou as visões de “coitados”.
Os significados nesta etapa aparecem mais potenciais do que reais, caracterizados pelas
expectativas das visões de quimioterapias convencionais, sendo construídos nas
experiências do dia a dia ao enfrentar alguns efeitos colaterais de medicamentos e em
alguns casos, mudanças corporais importantes. Alguns autores apontam que os impactos
da chegada de uma doença crônica, leva aos sujeitos a experimentar uma ruptura
biográfica (Bury, 1982).
Nesse processo, as estruturas da vida cotidiana, os significados e o que é “tido como
suposto” sofrem rupturas, e exige dos sujeitos estratégias para lidar com a situação e
como veremos repensar sua biografia e as relações sociais (Charmaz, 1983; Mathieson e
Stam, 1995; Ramajaram, 1997). No caso do câncer este processo também é concebido
como um processo de liminaridade (Little, 1988) onde os pacientes experimentam um
período de passagem que começa com as primeiras manifestações da malignidade, ou
seja, com a alteração e o diagnostico e que é chamada como uma fase aguda inicial
marcada pela desorientação, pelos sentimentos de perda do controle, e uma sensação de
incerteza. Essa fase é sustentada pelo significado social da doença que de alguma forma
afeta o próprio senso de si.
A ruptura baseada no significado que a doença adquire, mas também a partir da
utilização de figuras de linguagem como metáforas e algumas estratégias para enfrentar
as situações foi claramente expresso nas falas dos participantes do estudo. Ao descrever
a LMC como uma “bomba”, como uma “reviravolta” da vida, como aquilo que
desestrutura o mundo, se coloca a forma e peso da experiência vivida (Bury, 1982)
criada entre a dialética do significado cultural do câncer, por um lado, e o material bruto
dos processos da doença (Kleinman, 1988).
No estudo de Mathieson e Stam (1995) com pacientes que sofreram de diferente tipos
de câncer em Alberta Canadá os autores encontraram como o “viver com câncer”
constitui uma alteração da identidade, as pessoas não se sentem as mesmas, pois os
antigos significados da vida e da saúde não estão mais disponíveis para elas. Isto remete
para a importância da compreensão crescente do significado da doença no mundo
social, que, em certa medida, determina as opções disponíveis para a pessoa que tenta
retomar a sua vida.
Nossos participantes colocam como a LMC traz uma “mudança” de muitos aspectos da
vida apresenta as estratégias para enfrentarem cada situação. Em todos os casos,
optaram por “se afastar” das atividades diárias e de certos círculos sociais por um
tempo, para “se preservar”, dos possíveis efeitos dos medicamentos que poderiam fazê-
los “passar mal na rua”, mas principalmente das visões negativas dos outros sobre si e
os possíveis preconceitos e estigmas.
“Teve gente que chegou pra me perguntar, amigos meus, é contagioso, pega? Não
queriam falar comigo, não queria conversar, assim, com medo de pegar. Ai eu
expliquei, não, não é uma doença assim, é, é uma doença que vem do sangue, que tem
tratamento, né? Me perguntavam se eu ia morrer, me perguntavam quando é que eu ia
voltar a trabalhar, e quando eu voltei lá, ficaram me olhando diferente, com pena,sabe,
aquela coisa que agente nunca queria, era que as pessoas olhassem pra você com pena,
como coitada, e infelizmente os olhares eram esses” (Dilia, 30 anos)
Encontramos nos relatos, como um estilo de enfrentamento - Coping (Bury, 1991) o
gerenciamento do segredo sobre a nova condição, necessário para manter o sentido de si
e da integridade pessoal (Kagawa-Singer, 1993) frente aos efeitos das crenças sociais e
culturais sobre o câncer. Junto a isto, veremos que tanto o “manter” as capacidades
físicas, a possibilidade de continuar desempenhando as funções sociais e o negociar os
“olhares dos outros” sobre si mesmos são dimensões fundamentais no processo de
resignificação da LMC.
“Minhas taxas estão zeradas”: os sentidos do TMO e de uma vida normal.
O significado da cronicidade da doença vai começando a ser construído a partir da visão
do transplante de medula óssea (TMO) que em termos clínicos seria a única opção de
cura, mas que é apresentado pelos profissionais de saúde para os pacientes
principalmente como “terapia” no caso da falha dos ITK. Nos relatos dos participantes o
sentido do TMO a encontramos como opção “só se na tiver outro jeito”.
“(...) transplante para mim é a minha opção só se não tiver outro jeito entendeu? ai eu
farei o transplante, mas enquanto tiver outros meios e eu continuando do jeito que eu to
bem, me tratando eu não procuro transplante” (André, 29 anos).
De alguma forma isto aponta para uma adaptação interpretativa da visão biomédica, que
no contexto das novas opções de tratamento, mas também das altas taxas de mortalidade
tem levado a colocar o TMO como terceira linha de tratamento para a LMC.
O transplante, em todos os casos é considerado como “um as embaixo da manga”. Em
alguns casos, foram-lhes realizados os exames de compatibilidade aos irmãos, mas isto
só foi tomado como uma ação preventiva, não considerada como um tratamento a seguir
ou como uma esperança de cura. Em alguns casos, o transplante, ou seja, a “cura” a
través do TMO adquire um significado que aponta para o “risco”, de piorar ou morrer.
Nos casos em que tiveram irmãos compatíveis, eles são considerados como os
“responsáveis pela sua vida” atribuindo a essa possibilidade de “doar” para seu irmão /
irmã um significado de dávida, isto é, a troca entre doador e receptor como um presente
(do Ó Catão, 2008).
Nos dois casos com diagnostico mais antigo, antes da aprovação dos ITK foi possível
identificarmos uma resignificação do TMO nas suas narrativas. Dependendo da idade e
das condições da pessoa, o TMO era a opção de tratamento e de cura para os pacientes,
o que nesses dois casos nos levou a perceber como nos relatos se coloca a incerteza pelo
fato de não ter familiares compatíveis. Mas em ambas as trajetórias, quando depois de
uns anos iniciaram o tratamento com os ITK a visão do TMO se coloca no mesmo lugar
de “mais uma opção” de tratamento, não de cura.
Dessa forma, se o TMO é visto só como uma opção distante de tratamento e “cura”, o
caminho que se coloca é o medicamentoso onde a cronicidade ganha significados
associados ao “controle”, ao “tempo de vida” e a possibilidade de levar uma “vida
normal”. Se a construção de significados baseia-se firmemente nas mudanças e
experiências do corpo que abriga tanto a doença e suas consequências, assim como o
self (Bury, 1982, Williams, 1984) identificamos que elementos como os poucos ou
mínimos efeitos colaterais dos medicamentos, os seus resultados no “controle” da
alteração dos leucócitos, e as possibilidades de retomar as atividades da vida diária vão
se contrapondo as visões iniciais de ameaça e de morte.
Em todos os casos o significado da “normalização” encontra-se associado a duas
dimensões: por um lado, ao “controle” que significa o conseguir que as “taxas estejam
zeradas”, ou seja, que os níveis de leucócitos e as respostas citogenéticas se encontrem
dentro dos limites normais, significando o “estar bem”. Por outro lado, a “vida
normal” encontra-se associada à possibilidade de “manter” as funções sociais, e apesar
de alguns sintomas, manter as capacidades físicas para realizá-las.
Sobre o primeiro aspecto, constatou-se que o “controle das taxas” encontra-se ligado
aos resultados com o Glivec que mesmo recebendo alguns sentidos de “forte”,
“enjoado” e “chato” por causa dos seus efeitos secundários é colocado como aquele
que “possibilita o retorno para a vida normal” fazendo, em alguns casos, desaparecer a
alteração e recuperar certa “confiança” no corpo e na vida.
Os participantes narraram que a pesar de ter que realizar algumas mudanças na
alimentação e nas estratégias de tomar o medicamento por causa do enjoo
principalmente, depois de algum tempo, este apresentou efeitos inversos daqueles
esperados inicialmente, quando esperavam ficar “magros” e “carecas”. Assim, alguns
aumentaram de peso, e em todos os casos apontaram alguns efeitos mais comuns como
câimbras e cansaço, que não os encontramos descritos como limitantes das atividades
diárias, mas apontando para um sentido de restrição.
O “controle” também traz consigo o elemento da dependência ao medicamento onde
“tomar remédio para o resto da vida” vai ganhando sentido, em alguns momentos,
como a possibilidade de “viver mais tempo”, isto baseado nas remissões alcançadas
num tempo curto e nos poucos efeitos colaterais. Em alguns casos, foi importado o
recurso utilizado pelos hematologistas da comparar a LMC com outras doenças como a
diabetes ou hipertensão, apontando para o sentido de ser uma doença que tem
tratamento e que pode ser controlada.
A “vida normal” também aponta para o sentido das “limitações” e “restrições” que a
doença, as rotinas e os medicamentos colocam na vida cotidiana dos sujeitos. Em todos
os casos encontra-se explicita ou implícita uma visão do corpo e da vida como era
“antes” e como é “hoje” significando que, mesmo continuando com as funções sociais,
as capacidades físicas não são as mesmas e se vive com algumas restrições.
Mesmo não tendo indicação por parte dos hematologistas de mudança na alimentação
nem de outros hábitos de vida, comprovamos uma relevância a manter hábitos
saudáveis: “comer saudável”, realizar alguma atividade física, mesmo que no momento
das entrevistas para muitos isto se aponta mais como um propósito e não como um fato.
Isto tudo baseado na visão de “contribuir com a saúde”. Com respeito ao lazer, aponta-
se uma virada no significado de “curtir” onde se passa a uma diversão “mais saudável”
onde, por exemplo, práticas como “perder noite” passa-se para o “aproveitamento do
dia” ou realizar atividades mais caseiras.
Reforça-se assim a importância de desenvolver hábitos saudáveis como forma de
prevenir o surgimento ou a recidiva do câncer, apontando para a manutenção de uma
elevada qualidade de vida que favoreceriam melhores resultados nos tratamentos
(Tavares e Trad, 2005). Uma restrição colocada pelos profissionais para os pacientes é
a de consumo de bebidas alcoólicas. Só em poucos casos essa restrição negocia-se na
vida cotidiana contrapondo a extrapolação de beber uma “tacinha de vinho” ou um
“copo de cerveja” em momentos especiais, mas na maioria eles adotam o não beber
para não “prejudicar” mais a saúde:
“(...) parei de fumar, parei de beber, tomava as minhas cervejinhas, e parei tudo por
quê? para me beneficiar a mim mesmo né? porque não é bom né?, porque a saúde
prejudica, mesmo para quem tem saúde e para quem não tem, não é verdade?”
(Jefferson, 62 anos).
Esta questão coloca outra dimensão do “controle” para além das taxas de leucócitos.
Controlar alguns comportamentos ou hábitos de “antes” da LMC é considerado como
formas contribuir com a saúde, de evitar novos problemas e são questões que se
colocam como uma forma de “risco”. Dentro dessa categoria, também encontramos o
trabalho. O retorno ao trabalho ou as atividades diárias foi apontado como um
indicativo de “retorno ao normal”, porém, se de alguma forma ele é um dos elementos
fundamentais como fonte de sustento, para manter o senso de si e para sentir que a “a
vida continua” ele também desafia o sentido do cuidado.
Parte dos informantes mudou totalmente de trabalho, alguns continuaram, mas
mudaram de setor e outros ainda tentam fazer essa mudança para evitar os riscos que o
próprio trabalho pode trazer para sua saúde. “(...) meu trabalho é de risco, trabalho com
produto químico, então não me dá aquela segurança total pra eu possa trabalhar,
paciente com tuberculose, paciente com HIV positivo, então pra mim é arriscar ainda
mais a minha saúde. Comuniquei pra coordenação de enfermagem, comuniquei pra
coordenação do hospital, porque, para eles ver se poderia me modificar de setor, diz
que é desvio de função, que não pode então eu fiquei com medo. Então eu conversei
com o médico da medicina do trabalho e ele falou: você tá doente, eu não posso ter
você aqui doente, eu vou lhe encaminhar pro INSS e ai eu fui pra lá e fiz os exames. Só
que os médicos que fazem o meu acompanhamento diz que eu estou boa, que estou com
tudo controlado, que posso trabalhar. Mas de poder eu posso, mas a minha função, no
setor que eu me encontro, é que eu não posso”. (Gabriela, 45 anos)
Nas narrativas apareceu de forma explicita ou implícita a necessidade / vontade de
trabalhar, de não “ficar em casa a mercê da doença”, mas por outro lado, ao enfrentar
situações que são consideradas de “risco” para a saúde o trabalho se resignifica como
um fator de estresse ou preocupação, significa lidar com a ambiguidade de “ter uma
doença séria”, mas que não impede trabalhar. O “ter LMC e não parecer” apresenta
um contexto onde é necessária a negociação dos significados e que requer da validação
ou não dos outros.
“(...) hoje quando as pessoas me vêm na rua bem, brincando, dançando e tal, dizem:
porra! essa menina não tava doente? é mentira, ela não ta doente, por que olha o jeito
que ela ta. Por que tem pessoas assim, que quando uma pessoa ta doente, quer ver ela
acima de uma cama para ir lá e fazer visita ta entendendo? E como eu nunca cheguei a
esse ponto, nunca fiquei acima da cama esperando a visita, todo mundo acha que é
mentira que eu não to doente” (Taira, 24 anos).
Assim, as “limitações”, “ambiguidades” e “incertezas” aparecem correlacionadas frente
ao trabalho, à previdência social, as visões dos outros e outras dimensões como a
resposta a medicamentos e outros processos como a gravidez. O seguimento do controle
das alterações, quando os pacientes apresentam resultados duradouros com os
medicamentos colocam como na vida cotidiana conseguem se “esquecer da doença”, e
isto resignifica o sentido inicial ameaçador da LMC e coloca a tentativa de manter uma
imagem positiva de si. Porém resignifica o medo unido à incerteza, em situações
específicas como no caso da falta de resposta aos medicamentos e a gravidez.
A literatura cientifica sobre os ITK aponta o caráter teratogênico dos medicamentos2
(Kantarjian, et.al. 1993; Ault e Kantarjian, et.al. 2006; Hehlmann, et.al. 2007), mas para
além das possíveis malformações dos bebes, se coloca a questão do risco de ter que
suspender a medicação. Nas narrativas esse processo encontra, tanto para homens
quanto para mulheres um significado de risco e incerteza, tanto no caso da Taira que
descobriu a doença já estando grávida e sua filha nasceu com deficiência, como para
Elena, Dilia e Alberto que estando casados desejam ter filhos, mas sentem medo de
“arriscar”.
2 O termo teratogenicidade significa a capacidade de produzir malformações congênitas no feto.
“(...) O grande problema que aconteceu com a gente é que a doutora pediu pra
guardar o sêmen assim que ele descobriu a doença. Só que ele tava tomando hydreia
[medicamento] e tinha parado só uma semana para colher o sêmen. Aí a médica da
Gênese, que é da clinica de fertilização, ela disse que tava contaminada, que tem que
ser pelo menos noventa dias (...) aí a gente decidiu arriscar, parar o glivec durante esse
tempo, correr esse risco de parar pelo menos 90 dias para poder limpar o organismo
dele, aí guardou lá, a gente tentou engravidar naturalmente e não conseguiu, mesmo
devido a tensão dele ficar doente né?, porque tava sem medicação, então realmente não
deu certo, foi uma tentativa meio frustrada” (Shirley, esposa do Eduardo)
O sentido do “risco” de “arriscar” encontra-se assim ligado não só comportamentos,
mas a algumas questões que são condicionantes como o ter que trabalhar / não poder
mudar de setor, o ter filhos / arriscar a saúde e que coloca os limites de até aonde podem
ir ou fazer as coisas. Alguns deles narraram ter tido conhecimento de casos em que
algumas pacientes ficaram grávidas, tiveram seus filhos normais e não pioraram, assim
como de casos em pioraram por causa da gravidez, outros que tiveram abortos, o que
coloca um sentido de “desafio”, da vida frente às ambiguidades que a LMC coloca nas
suas vidas.
Os aspectos referidos apontam para as imbricações entre o significado da doença e as
suas implicações no senso de integridade dos sujeitos Goffman (1985) e apontam para o
processo de normalização (Bury, 1982, Kagawa-Singer, 1993). Assim como o
gerenciamento do segredo, a normalização se apresenta em nossos casos como uma
forma de enfrentamento. Segundo Bury (1982, 1991) esta envolve um processo de
“colocar entre parêntese” o impacto da doença, de modo que seus efeitos sobre a
identidade da pessoa permanecem relativamente “leves” 3
De fato, o processo de atribuição de sentido a LMC entre morte e sofrimento até uma
vida “normal” passa pelos bons resultados dos tratamentos no controle de taxas, de
associar o Glivec com um retorno à normalidade e fazer todo o que os médicos
3 Tradução das autoras
“mandam”. Passa também pelo retorno as atividades diárias que, mesmo sofrendo
mudanças ou ganhando o sentido de “risco” permitem manter o senso de integridade.
No estudo realizado por Kagawa-Singer (1993) com pacientes anglo norte-americanos e
japoneses nascidos nos Estados Unidos que sofreram de diferente tipos de câncer, a
autora identificou como os sujeitos aceitaram o diagnostico e criaram uma habilidade de
atuar “como se” com o fim de restabelecer o ritmo das suas vidas a pesar de incerteza da
sua situação.
De alguma forma, nossos participantes evitam e consideram a visão de “coitados” ou
de fazer de “vitima” e se desafiam ao realizar o trabalho mesmo sendo pesado ou
quando decidem deixar de tomar o medicamento para tentar engravidar.
“Vivendo, aprendendo” a cronicidade da LMC
Em todas as narrativas constatamos o significado da doença como “aprendizado” que
vai se adquirindo no dia a dia a partir de lidar com a doença, os efeitos dos
medicamentos, a negociação das incertezas e na visão da LMC como um veículo que
permite a valorização de muitos aspectos da vida.
As “mudanças” que a LMC traz são relatadas na maioria dos casos como parte da
“transformação” que a doença realiza ganhando um sentido positivo: alguns a apontam
por trazer “benefícios”, outros por “trazer coisas boas”. A LMC de alguma forma
permite ter uma vida “melhor” onde se valorizam as pessoas que estão do lado, a
família, pai, mãe, irmãos, se diferenciam os “amigos da farra” dos “amigos de
verdade” que são poucos. Aprende-se a “viver o presente” e especialmente a valorizar
a saúde, os “verdadeiros amigos” e a priorização dos filhos e dos esposos / esposas ou
namorado /a, que é sua fonte de apoio.
Essa significação positiva e em alguns casos negativa da doença a encontramos
relacionada com as explicações sobre as causas da doença e que influencia o sentido de
“ser” ou “estar doente”. Alguns estudos colocam que, frente à questão da etiologia, na
leucemia os pacientes são categorizados como vitimas da radiação ou de outras causas
(Comaroff, 1981; Diaz, 2012). Mas de igual forma apresenta-se uma responsabilização
do paciente pelos “bons” resultados dos medicamentos baseada na sua aderência aos
tratamentos principalmente e aos seus hábitos saudáveis (Branford, 2012).
As explicações dos informantes para as causas da doença revelam uma combinação de
elementos que vão desde uma real exposição a algum elemento como químicos usados
no trabalho, devido a um desequilíbrio psicológico ou das relações sociais, assim como
uma interpretação trazida da biomedicina que coloca a causa num “disturbio”, uma
“mutação” ou a “mudança” nas células.
“(...) eu fiquei o tempo todo com a ideia de que não era meu o bebe na cabeça. Não era
meu, não era meu. Tanto que ela ficou toda a gestação e eu duvidei dela toda a
gestação. Um conflito interno que era incrível (...) foi um período em que tive muita
instabilidade emocionalmente, totalmente instabilizada. Eu acho que foi nesse período
justamente que se desenvolveu a doença. A meu ver, desde o meu ponto de vista, eu
acho que o que aconteceu foi justamente isso”. (Marcelo, 42 anos)
Vários autores (Kleinman, 1988; Minayo, 1988; Kagawa-Singer, 1993; Tavares e Trad,
2005; Canesqui e Aparecida, 2006) têm apontado para as diversas fontes explicativas
das causas das doenças e que concordam com os nossos resultados. Nos casos em que
os participantes se sentiram “responsáveis” pelo desenvolvimento da doença, sua visão
da mesma aponta para esse significado positivo, como um “chamado à mudança”, para
ser “melhores pessoas”. Nos casos em que as causas são atribuídas a causas externas, a
aceitação da chegada da doença se coloca como um processo muito mais difícil. Nesses
casos constatamos problemas de aderência aos tratamentos.
Foi relevante para nós perceber que uma incerteza inicial, tanto dos usuários do SUS
quanto dos planos de saúde, de conseguir “ser atendidos” ou ter acesso à atenção e aos
medicamentos se encontra narrada como ter sido um processo “relativamente rápido”
que precisou da intervenção de alguém da rede social ou dos próprios profissionais de
saúde para conseguir.
Isto deverá ser aprofundado em outros trabalhos, mas é importante colocar que nesse
contexto o “tomar remédio para vida toda” vai se significando no dia a dia, fazendo
relevante o poder ter acesso a medicamentos “muito caros”, negociando os horários da
sua tomada, adquirindo alguns hábitos para lidar com alguns efeitos colaterais (nem em
todos os casos são os mesmos, em alguns são mais permanentes do que em outros, e só
em um caso apresentou-se a sensação de não melhorar). Dos dez casos, quatro
apresentaram resistência ao Glivec o que significa que o “controle” deixou de ser
alcançado com esse medicamento e tiveram que passar para a segunda linha de ITK,
conhecido como Dasatinibe.
Embora, a frequência de consultas e de exames com o passar do tempo vai aumentando,
passando de 15 em 15 dias na fase inicial, para de três em três meses quando alcançada
uma estabilidade no controle, a experiência ensina que esse quadro pode mudar em
algum momento, quando não se toma o “remédio certinho” ou mesmo sem causa
aparente por uma “falha na resposta”.
O “aprendizado de viver com LMC” requer de uma percepção de certa relatividade
apontada na sua visão de que “cada caso é um caso”. Encontramos esta questão nas
narrativas individuais, mas também reforçada a partir das observações na sala de espera
das unidades, onde na troca de experiências entre pacientes se coloca este
posicionamento, frente aos desfechos ou resultados de pacientes que seguem trajetórias
diferentes quando comparadas com as suas próprias.
Muitos relataram a sua vocação de dividir sua experiência com outras pessoas que
precisam, que acabam se receber o diagnostico e se sentem “perdidas”. Alguns
colocaram como importante se informar e informar aos outros, no sentido de ser “um
exemplo”, um “espelho” e fazer compreender que, mesmo sendo percebida como uma
doença grave, ela não é “um bicho de sete cabeças, não é o fim do mundo”, isto é, que
ela não significa necessariamente a “morte”, ressaltando as possibilidades de
tratamentos.
Esta é uma estratégia que ajuda o paciente e sua família a domesticar a besta selvagem
da doença (Kleinman,1988). Dessa forma, o sentido da “luta” contra a doença, frente
aos sintomas, limitações e preconceitos, encontra neste momento, o correlato do
“vencer”, a morte, os medos, as ambiguidades, os desafios e equacionar as incertezas
do dia a dia.
Considerações finais
Os resultados do estudo destacados neste capítulo corroboram a tese de que a
experiência de enfrentamento da doença crônica pode avançar de uma fase, na qual
prevalecem os sentidos de morte, sofrimento, desconstrução e rupturas (das relações
sociais, do cotidiano etc.), para outra, quando vai se processando a normalização (Bury,
1982). Esta última, Little (1995) define como liminaridade suspensa, na qual as pessoas
vivem, aprendem e resignificam suas experiências, requer de um movimento onde se da
uma inversão da construção intersubjetiva do significado.
Se na fase inicial, o significado sociocultural do câncer se impõe e parece enquadrar as
suas experiências pelo compartilhamento da visão da doença e das quimioterapias
convencionais, que fundamenta os medos e as incertezas e um enfrentamento a
mortalidade, no processo encontramos como os sujeitos vão se convertendo em
“educadores” da sua rede social próxima e para outras pessoas, ensinando para eles com
a sua experiência e cuja validação se da a partir da sua própria existência.
Como colocado por Del Vecchio Good et.al (1994) os desdobramentos temporais e o
sequenciamento dão sentido à narrativa. A “retrospectiva necessária” para a narrativa, a
sensação de que “o fim pode, determinar o significado” (p.855) nos permite
compreender as viradas de sentido nas experiências de pessoas que passam de
compreender a doença como fim, como morte, para ser um aprendizado.
Nas experiências, os efeitos de tratamentos, o alcance de uma remissão que não
significa cura, mais “controle”, e remete a um sentido de “vida normal” com restrições
e limitações, colocam em jogo as diferentes dimensões da vida cotidiana e enfrentam as
ambiguidades considerando o contexto clínico atual da LMC. Como apresentamos, as
possibilidades de tratamento com os ITK que são considerados uma “revolução” para a
leucemia e o câncer, por oferecer resultados que aumentam a sobrevida e qualidade dos
pacientes, contrastam com as visões de morte e sofrimento que o câncer representa na
sociedade.
As narrativas apontaram para um “desconhecimento geral” sobre a LMC e a leucemia
como tal, colocando a questão levantada por Comaroff e Maguire (1981) sobre as
implicações sociais dos avanços tecnológicos para o tratamento da leucemia que ficam
no terreno do conhecimento científico e médico. Isto enfrenta aos pacientes e seus
familiares às ambiguidades e incertezas apontados nos sentidos do “controle” de
“risco” e de “cuidado”.
Acreditamos que a compreensão dos profissionais de saúde da LMC como Illness
(enfermidade), como doença sentida e vivida pelos pacientes, com seus significados e
implicações nas suas vidas cotidianas, e não só como disease (patologia), permite como
apontado por muitos outros autores, uma interação que resolveria questões que
preocupam os profissionais de saúde como a aderência aos tratamentos.
Por último, nos atrevemos a argumentar que o sentido de “aprendizado” não
corresponde só à visão dos pacientes, suas famílias e redes sociais, mas também para os
profissionais de saúde e pesquisadores que nos deparamos no dia a dia com os novos
significados científicos da LMC, considerando as novas informações e
desenvolvimentos tecnológicos para o tratamento, controle e ultimamente, uma
perspectiva de cura da doença. (Brandfor, 2012; Jabbour et.al, 2013).
Os medicamentos orais que continuarão mudando os discursos da LMC ganham
também seu sentido nas experiências dos pacientes e pelas possibilidades que podem
oferecer nas suas trajetórias, para os profissionais que os consideram uma “esperança de
vida” e para a política e o impacto econômico do que significa viver cada vez mais anos
dependendo de medicamentos cada vez mais caros. Isto será tema de estudos
posteriores.
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