vidalcir ortigara - educacao fisica e a determinacao ontologica do ser social
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VIDALCIR ORTIGARA
AUSNCIA SENTIDA NOS ESTUDOS EM EDUCAO FSICA:A DETERMINAO ONTOLGICA DO SER SOCIAL
FLORIANPOLIS2002
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VIDALCIR ORTIGARA
AUSNCIA SENTIDA NOS ESTUDOS EM EDUCAO FSICA:A DETERMINAO ONTOLGICA DO SER SOCIAL
Tese apresentada ao Curso de Ps-Graduaoem Educao, Centro de Cincias daEducao, Universidade Federal de SantaCatarina, como requisito parcial obteno dottulo de Doutor em Educao.
Orientadora: Prof.a Dr.a Maria CliaMarcondes de Moraes
FLORIANPOLIS
2002
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Aos meus pais, Anna e David,
e ao meu filho, Guilherme.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a meus familiares. Aos meus pais, David e Anna Tochetto
Ortigara, mais que agradecer, dedico esta conquista. Aos meus irmos, Neli, Luiz,Claudino, Paulo e Lauri. Em particular ao Artmio, pelo estmulo e apoio neste
percurso.
Ao Jairo, parceiro dos primeiros passos na busca de realizar a sonhada
ps-graduao.
Ao Claudemir Radesky, pela prestimosa acolhida em sua casa.
Uma lembrana muito carinhosa aos amigos do Campeche: Maristela,
Miriam, Jose, Marlon, Herman, Bruna, Lus, Silvia e Ana. Dnis, a amiga desempre. E Palmira.
Um carinho especial Rosangela.
De forma muito carinhosa Astrid, pelo estmulo com seu exemplo de
perseverana.
Aos parceiros do Grupo de Trabalhos Ampliados em Educao Fsica
GTA.
Aos amigos de Roma: Ncia, Cristina, Mimmo, Diana, Donattela, Andrea,
Marta e Helena.
Aos funcionrios do ProjetoImmaginare LEuropa.
Ao Professor Dr. Girogio Barata, pela acolhida em Roma.
Aos colegas do mestrado: Maurcio, Neli, Leonir, Clsio, Helena e,
particularmente, Liliane. Aos colegas do doutorado: Arsnio, Magda, Ingrid,
Celso, Benoni, Domingos, Armnio e Rose.
Maurlia, Lus Fernando e Snia, sempre solcitos s minhas demandas.
Ao corpo docente da Ps-Graduao em Educao, especialmente ao
Professor Elenor Kunz, pelo incentivo.
Aos Professores Mrio Duayer e Paulo Srgio Tumolo, pelas observaes
e contribuies por ocasio da qualificao.
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Aos membros da banca examinadora, professores Celi Nelza Zulke
Taffarel, Joo dos Reis Silva Jnior, Mrio Duayer e Paulo Srgio Tumolo
Professora Maria Clia, orientadora, pela presena incentivadora e
desafiadora. Ademais, por ter-me aberto o caminho para a surpreendente descoberta
do novo.
ngela! Pelo constante incentivo, pelos inmeros momentos em que
dividiu comigo as angstias e as reflexes.
Agradeo a todos os que, a seu modo, contriburam para que alcanasse
este objetivo.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
CNPq, e Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CAPES, pelo decisivo fomento financeiro, sem o qual no seria possvel a realizao
desses estudos. Igualmente Fundao Universidade do ContestadoUnC.
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De fato, aquilo que ocorre com o ser natural da pedra,o qual totalmente heterogneo com relao ao seu
uso como faca ou machado e pode sofrer estatransformao s quando o homem pe as cadeias
causais corretamente conhecidas, ocorre tambm noprprio homem com seus movimentos, etc., em
origem biolgico-instintivos. O homem deve pensarseus movimentos adequadamente para aquele
determinado trabalho e execut-los em luta constantecontra aquilo que h nele de meramente instintivo,
contra si mesmo.
Gyorgy Lukcs
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SUMRIO
SUM RIO ................................................................................................................... vi
RESUMO .................................................................................................................. viii
INTRODUO ............................................................................................................ 1
CAPTULO I
1 AUSNCIA SENTIDA ............................................................................................. 6
1.1NO CONTEXTO DA EDUCAO FSICA ........................................................ 121.1.1 As Proposies Pedaggicas da Educao Fsica ............................................... 151.1.2 Reflexes acerca da expectativa e da perspectiva de corpo ................................ 20
1.2 UMA POSSIBILIDADE ONTOLGICA ............................................................ 29
CAPTULO II
2 A REALIDADE GRITA OU A DETERMINAO ONTOLGICA .......... 35
2.1 A ONTOLOGIA .................................................................................................... 352.1.1 Realidade: questo de gnosiologia ou de ontologia?........................................... 50
2.2 COMO TUDO SE INTEGRA SEARLE ......................................................... 522.2.1 Pressupostos bsicos ........................................................................................... 52
2.2.3 Conscincia: fenmeno biolgico? ..................................................................... 622.3 REALISMO TRANSCENDENTAL ..................................................................... 692.3.1 A concepo relacional do objeto da sociologia .................................................. 79
CAPTULO III
3 ESPECIFICIDADE E ESTRUTURA DO SER SOCIAL ................................... 93
3.1 AUTOCRIAR-SE DO HUMANOO TRABALHO COMO FUNDANTE ....... 963.1.1 Pr teleolgico e causalidade natural: gnese de nova objetividade ................. 100
CAPTULO IV4 O PREDOMNIO DO SOCIAL E SUA REPRODUO ................................ 142
4.1 REPRODUO SOCIAL: UM PROCESSO IRREDUTVEL E
INDISSOCIVEL DA TOTALIDADE SOCIAL E DO BIOLGICO ............. 143
4.2 CONTINUIDADE DO SOCIAL NO PROCESSO DE REPRODUO:
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A CONSCINCIA COMOMEDIUM................................................................ 150
4.3 A LINGUAGEM: UM COMPLEXO DO COMPLEXO SER SOCIAL ............ 154
4.4. A REPRODUO NA INTER-RELAO INDIVDUO-SOCIEDADE .... .... 1614.4.1 A tendncia do ser-em-si para o ser-para-si no ser social ................................. 171
4.5 O PROCESSO DE PREDOMNIO DAS CATEGORIAS SOCIAIS:O COMPLEXO DE COMPLEXOS .................................................................... 177
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 205
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................... 215
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RESUMO
Esta tese aponta para o fato de uma ausncia. A ausncia de uma abordagemontolgica no campo da Educao Fsica que viesse a fundamentar a real
determinao do movimento humanoo caminhar, o correr, o saltar, o pular, isto, sua especfica condio humana. Com vistas a demonstrar a importncia de talabordagem organizamos a exposio da seguinte forma: em primeiro lugar,descrevemos a retomada da ontologia no sculo XX, com Heidegger, Hartmann eLukcs, e sua crtica ao predomnio da gnosiologia na tradio ocidental. Na medidaem que a questo ontolgica articula-se profundamente ao atual debate acerca danegao da razo, bem como da negao da existncia do real independentemente damente humana ou das formas de sua apreenso pelo conhecimento, apresentamos,em seqncia, dois pensadores contemporneos que, de modo distinto, afirmam orealismo: Searle e Bhaskar. Retomamos, ento, a ontologia do sculo XX, e damos
nfase s idias desenvolvidas por Lukcs, em particular as desenvolvidas em PerLOntologia dellEssere Sociale, nos captulos sobre o trabalho e a reproduo. Noprimeiro caso, acompanhamos de que modo Lukcs apresenta o trabalho comofundante do ser social, a transformao das causalidades naturais em causalidades
postas mediante o por teleolgico, e o surgimento das categorias especficas do sersocial. No segundo, seguimos a argumentao do filsofo em sua discusso sobre o
processo de reproduo do ser social, que ocorre sobre a insuprimvel basebiolgica, em que cada vez mais as categorias sociais predominam sobre as naturais.Um processo dinmico onde a continuidade do ser mediada pela conscincia e pelalinguagem, como complexos singulares do complexo ser social. Conclumos
assinalando que a abordagem ontolgica, sobretudo a apresentada por Lukcs,revela, em suas reais dimenses, as categorias determinantes do ser social,particularmente no que concerne ao complexo educativo, no interior do qual situa-sea Educao Fsica.
PALAVRAS-CHAVE: Ontologia, ser social, trabalho, atividade humana, educao.
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ABSTRACT
The thesis points out the fact of an absence. The absence of ontological approach inthe field of Physical Education which could underpin the real determination of
human motion walk, run, jump, hop , in other words, its specific humancondition. In order to demonstrate the importance of this approach the thesisexposition is organized as follows: in a first moment we describe the revival of theontological thought on the Twentieth Century with Heidegger, Hartmann andLukcs, by the eye of a criticism towards the gnosiological priority in the Westernthought. As the ontological issue is deeply related to the debate concerning anexistence of a real world independent from the human mind or from itsapprehension forms through knowledge, we present two contemporary authors`,who in different ways try to affirm the realism: Searle and Bhaskar. We retake then,the twentieth centurys ontology, and emphasize the ideas developed by Lukcs, in
particular those explored inPer Lontologia DellEssere Sociale, during the chaptersabout work and reproduction. In the first case, we follow the way Lukcs presentsthe work as the social beings founder, the posed natural causalitys transformations
by the teleological pose, and the arise of the socialbeings specific categories. In thesecond, we follow philosophers reasoning in his discussion on the social beingsreproduction process, which occurs over the insuppressible biological base, in whichmore and more the social categories prevail over the natural ones. A dynamicalprocess, where the beings continuity is mediated by the languages conscience andby language itself, as complex singulars of the complicate social being. We concludemarking that the ontological approach, specially that presented by Lukcs, reveals in
its real dimensions the determinant categories of the social being, particularly inwhat concerns the educative complex, in whichs core Physical Education iscontained.
KEYWORDS: Ontology, Social being, work, human activities, education.
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INTRODUO
A epgrafe deste trabalho antecipa o seu sentido. A questo inicial que nos
levou a esta temtica era: como homens e mulheres apropriam-se do conhecimentoe, particularmente, como compreender os temas abordados pela Educao Fsica o
andar, o correr, o saltar, o pular, o jogarde forma a explicitar uma especificidade
que os diferenciasse dos movimentos similares realizados pelos demais animais?
Percebamos desde ento que essa indagao implicava questionar a especificidade
do ser humano.
No interior da Educao Fsica, a ausncia de uma abordagem ontolgica
do ser social fez com que tal problemtica no recebesse a devida ateno no tratodas atividades-temas de sua interveno pedaggica. Por um lado, essa ausncia
conduziu a explicaes naturalistas do ser humano de forma que as significativas
diferenas entre o andar, o correr, o saltar, etc., realizado por homens e mulheres e o
realizado por outros animais no so questionadas ou, muitas vezes, simplesmente
negadas. Por outro, mesmo quando se considera a historicidade do desenvolvimento
de homens e mulheres e essas diferenas so ponderadas, ou no se aprofunda
suficientemente o seu significado na real determinao da especificidade do
humano, como ser social, ou a determinao subsumida cultura.
A tese tem como objetivo denunciar a ausncia, nos estudos em Educao
Fsica, de uma abordagem que leve em considerao a determinao ontolgica do
ser social e afirme sua necessidade para que se vislumbre uma explicitao realista e
crtica do processo de produo e reproduo de homens e mulheres. Mais ainda,
que possibilite compreender a especificidade ontolgica do andar, do correr, do
saltar, do pular, etc., como especficos da atividade humana. Diretamente articulada
essa questo est a relao entre estruturas naturais e estruturas sociais
determinantes do ser social , que s pode vir luz no interior do complexo
processo de sua formao.
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Nossa primeira tentativa de compreender o desenvolvimento do ser social
foi pela psicologia histrico-cultural sovitica, atrados pela nfase atribuda
mediao ser humano e natureza, e o papel de destaque atribudo linguagem. Logo
percebemos que sem compreendermos sua verdadeira fundamentao terico-
filosfica, ou seja, seus fundamentos histrico-materialistas, acabaramos por
realizar interpretaes mecanicistas em relao aos temas pelos quais nos
interessvamos. Ademais, percebemos que a linguagem no pode ser considerada
um a priori, ou mesmo fundante da realidade social como propem certos ps-
estruturalistasposto que se constitui no interior do prprio processo de produo e
reproduo do ser social.
O aprofundamento necessrio para compreendermos o ser social nos foipossibilitado pela obra de Gyorgy Lukcs, principalmente Per LOntologia
dellEssere Sociale, destacadamente o captulo que discute a categoria trabalho, em
que o autor o apresenta como fundante do ser social. Tal categoria, articulada ao
processo da reproduo do ser social, constitui-se em uma possibilidade real de
compreender a determinao da especificidade de homens e mulheres, fundada
ontologicamente no trabalho, na atividade que realizam para assegurar sua
existncia, sua produo e reproduo como seres. Somente questionando adeterminao ontolgica do ser social poderemos fundamentar teoricamente o andar,
o correr, o saltar, o pular, etc., como especficos da atividade humana.
A indagao pelo ser. Questo que acompanha a filosofia desde o seu
surgimento na Grcia. Ao longo do tempo, no entanto, foi perdendo a centralidade.
Na Idade Mdia, foi suplantada pela ontologia teolgica, no Renascimento, com o
avano das descobertas cientficas, e a fora da questo do conhecimento,
subjugada pela questo gnosiolgica, principalmente com Descartes e Kant. Este,
talvez o mais influente filsofo desse perodo, afirmava que s o fenmeno pode ser
conhecido, pode ser objeto da cincia. O existente alm do fenmeno, o noumeno,
pode apenas ser pensado. ontologia sobrepe-se a gnosiologia.
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Nesse perodo o sujeito do conhecimento adquire autonomia em relao ao
mundo, tornando-se o fundamento do que existe; a sociedade e a cultura passam a
ser compreendidas como obra humana (MORAES, 1985). O existente o que se
coloca como objeto para o sujeito. Decorrncia, quase que natural o surgimento,
no sculo XIX, de uma corrente idealista no pensamento positivista que exclui toda
ontologia do campo do conhecimento, com o argumento de que, sob essa suposta
neutralidade, possvel um conhecimento cientfico puro.
Ainda no sculo XIX, na contracorrente dessa tendncia, a questo
ontolgica recebe uma correta abordagem com a concepo marxiana de que o que
conhecemos so os fundamentos gerais do ser. As categorias de anlise do real so
formas de ser determinadas pelo real, que se constitui como sntese de mltiplasrelaes.
A hegemonia da gnosiologia encontrou forte questionamento no sculo
XX, quando da retomada da ontologia como questo central na filosofia nas obras de
Heidegger, Hartmann e Lukcs. A partir da metade do sculo XX, principalmente
com as correntes ps-modernas e ps-estruturalistas, essa discusso se articula a
uma outra, que a da negao da existncia do real independente das aes humanas
ou das formas de sua apreenso.Dos trs pensadores, LUKCS (1976, 1981) quem desenvolve a reflexo
sobre a determinao ontolgica do ser social, seguindo a orientao marxiana, com
base nas categorias gerais do ser que fundamentam o novo ser. No novo ser surgem
novas categorias que operam sobre as categorias gerais em uma relao de
superao-continuidade, isto , ao mesmo tempo em que o ser social supera os
limites postos pelos seres inferiores, superando-os, no elimina as suas
determinaes, processo a que MARX refere-se como recuo das barreiras naturais.
Estruturamos a exposio da tese em quatro captulos, com vistas a
explicitarmos a tese de que somente considerando as reais determinaes do ser
social poderemos ter a possibilidade de compreender e fundamentar teoricamente as
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categorias especficas do ser social e, nesse processo, o seu complexo de formao
no qual esto implicadas a Educao e a Educao Fsica.
No primeiro captulo descrevemos como nos aproximamos da questo da
ontologia no desenvolvimento de nossas reflexes acerca do movimento humano.
Realizamos um relato conciso das proposies pedaggicas apresentadas a partir dos
anos de 1980, expondo as que obtiveram maior destaque: a Crtico Emancipatria e
a Crtico Superadora. Abordamos, tambm, as discusses na rea de Educao
Fsica que tematizam as possibilidades de um saber que se tem ou se produz do
corpo humano e de seu movimento. Ao final desse captulo apontamos a obra de
LUKCS, especialmente Per LOntologia dellEssere Sociale, como uma
possibilidade de superar a lacuna de estudos ontolgicos relativos especificidadedo ser social.
Para situar a ontologia na discusso intelectual contempornea, no segundo
captulo apontamos o processo de retomada da centralidade da questo ontolgica na
filosofia intentada por Heidegger, Hartmann e Lukcs, conferindo destaque ao
ltimo. Discutir ontologia remete-nos questo de negar ou afirmar a existncia ou
no do real independentemente das formas de sua apreenso. Reconhecemos, no
entanto, que mesmo entre os que afirmam sua existncia no h homogeneidade.Apresentamos as reflexes de dois autores atuais com o intuito de dar visibilidade a
essa diversidade: SEARLE e BHASKAR. Consideramos a apresentao relevante
por localizar, no debate, a linha de argumentos utilizada como base central nesse
trabalho: a ontologia lukacsiana.
Afirmando a prioridade da ontologia, no captulo III apresentamos a
discusso lukacsiana sobre a categoria trabalho como fundante do ser social.
Procuramos demonstrar de que modo, no processo histrico de constituio do ser
social, o trabalho apresenta-se como sua base ontolgica, em que produz e reproduz
as condies de sua existncia adquirindo complexidade crescente.
A complexidade de sua reproduo, individual e social, discutida no
quarto captulo. Dentre os vrios complexos imbricados nesse processo destacamos
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a conscincia e a linguagem, centrais no processo de formao do ser social e de sua
continuidade no mutvel processo de reproduo. Segundo SILVA JNIOR e
GONZLEZ (2001, p. 97), na leitura da categoria da reproduo que se pode
entender o objetivo central da ontologia lukacsiana do ser social. ...somente o ser
humano possui o trao caracterstico de ao reproduzir-se tornar-se a si e
objetividade cada vez mais social.
Por fim apontamos algumas aproximaes com as discusses apresentadas
no primeiro captulo, indicando principalmente a prioridade ontolgica do trabalho
na formao de homens e mulheres, sugerindo que qualquer discusso com vistas a
tomar as reais categorias do ser social, em especial nesse caso, do complexo
educativo, necessita ter presente essa condio ontolgica originria. Do contrrio,abrem-se as possibilidades para uma pluralidade dispersa de entendimentos, que
possibilita inferir que a realidade do ser social determinada por relaes culturais
ou polticas.
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CAPTULO I
1 A AUSNCIA SENTIDA
O imprevisto uma espcie de Deus avulso,Ao que preciso dar algumas aes de graas;
Pode ter voto decisivo naAssemblia dos acontecimentos.
Machado de Assis
Toda discusso, seja ela filosfica, religiosa, artstica, cultural, etc., tem
como pressuposto um determinado contexto real, o qual determina as condies e aposio inicial dos debatedores diante da problemtica que se apresenta. Esta pesquisa
no foge regra. Seu objetivo o de estudar a possibilidade de cognoscibilidade do
movimento como atividade especfica do humano, constitudo nas relaes postas pela
realidade social. Embora a temtica tenha surgido com referncia nas diversas
manifestaes das atividades presentes na prtica pedaggica da Educao Fsica
esporte, dana, ginstica, jogos, brincadeiras, entre outras o enfoque aqui
estabelecido busca ampli-la. O foco o agir humano no complexo de relaes que o
institui e constitui. A abordagem a da perspectiva ontolgica histrico-materialista.
Primeiramente procuramos contextualizar parte da trajetria que nos
conduziu problemtica da tese para, em seguida, mostrarmos como as abordagens
crticas sobre movimento e corpo na rea de Educao Fsica carecem de uma reflexo
ontolgica sobre o tema, causando, a nosso ver, limites no alcance de tal crtica.
Apontamos, ento, os estudos lukacsianos da ontologia do ser social como uma daspossibilidades de avano na compreenso da especificidade do agir humano
manifestos nos temas da Educao Fsica.
A especificidade do movimento humano chamou-nos ateno ao mesmo
tempo em que buscvamos apreender a condio especfica do humano definida, em
primeiro lugar, por ser eminentemente social, e que necessita apropriar-se da produo
histrica para assegurar a satisfao de suas necessidades de sobrevivncia. Essa idia,
porm, parecia-nos muito confusa, pois no havamos captado o real significado de tal
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condio. Em um primeiro momento, procuramos compreender o modo e as formas do
processo de desenvolvimento humano e, em particular, do processo de apropriao do
conhecimento, ou seja, como homens e mulheres, no processo de sua constituio
social, relacionam-se com e conhecem o mundo, os outros seres humanos e a si
mesmos, constituem a especificidade que lhes prpria e os diferencia dos demais
organismos vivos. O esclarecimento dessa problemtica, presumamos, seria
necessrio para compreendermos qual o sentido e o significado que o movimento
humano, como objeto de estudo e atuao da Educao Fsica escolar, poderia ter no
processo de formao humana. Nossa ateno voltou-se para o prprio sentido da
existncia humana e, nessas circunstncias, para o como se constri o significado domovimento que lhe prprio, mais especificamente no processo de formao
desenvolvido na atividade escolar.
Se por um lado as indagaes que nos fazamos eram muito gerais, pois
questionavam o significado do ser humano, por outro revelavam-se bastante restritas,
uma vez que enfocavam a especificidade de seu movimento a partir das reflexes da
prtica pedaggica. As dificuldades para aprofundar a reflexo que pretendamos
desenvolver logo foram percebidas, principalmente no contexto das discusses no
campo da Educao Fsica. Compreender o ser humano implica apreender sua
formao como genericidade, isto , o carter que o distingue dos outros animais, o
seu ser social. S assim possvel apreender tambm seu movimento, uma vez que
esse se especifica na prpria constituio do ser social.
Essa interrogao tornou-se mais explcita quando, na busca por maiores
esclarecimentos sobre o tema, entramos em contato com a psicologia histrico-
cultural. Nesse momento, idos de 1993, a psicologia histrico-cultural era debatida e
apresentada como uma expresso do assim dito construtivismo. Haviae cremos que
possvel dizer, ainda h uma grande miscelnea de tendncias e sentidos
apresentados como similares, complementares, auxiliares, para a explicao do
processo de desenvolvimento humano e sua relao com o processo de ensino-
aprendizagem. At onde pudemos perceber, muitas embaralham as duas tendncias
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mais em evidncia, quais sejam: a psicogentica piagetiana e a histrico-cultural
vygotskijiana.
DUARTE (2000) tematiza a apropriao do pensamento do psiclogo
sovitico Liev Seminovitch VYGOTSKIJ1 sob o prisma do lema aprender a
aprender e assinala como esse processo ocorreu, no s no Brasil, mas nos muitos
pases ocidentais que se propuseram a estud-lo. Os problemas desse processo de
apropriao vo desde a traduo e/ou supresso de parte dos textos, at re-
elaboraes com claras implicaes ideolgicas, conduzindo a graves questes de
interpretao das obras vygotskijianas. MECACCI (1998), na introduo da edio
italiana do livro de Vygotskij, Pensiero e Linguaggio, por ele traduzido dosmanuscritos do autor, alerta para as mesmas distores.
A partir dos primeiros contatos com a obra de VYGOTSKIJ,2 percebemos
que as discusses ento desenvolvidas no condiziam com o que acabvamos de ler.
No nos era possvel entender que as apresentaes da teoria piagetiana, com suas
etapas de desenvolvimento, fossem ou pudessem ser vistas como uma
complementao das explicaes do processo de desenvolvimento expostas por
VYGOTSKIJ, pois ele o explica como complexos processos contnuos, histricos e
sociais. A sensao inicial, confirmada a seguir, era a de que PIAGET, ao contrrio,
considerava o sujeito singular como ponto de partida para a sua relao com o mundo
e com os outros. VYGOTSKIJ percorre caminho inverso. Apresenta o sujeito
articulado e imerso em um contexto histrico-social e, a partir dessa condio, explica
como ocorre o processo de adaptao ativa do ser social na constituio de sua
individualidade. Nesse contexto, a linguagem representa um importante papel de
mediao.
Passamos a refletir, ento, sobre o processo do movimento humano, na
tentativa de compreend-lo como linguagem e perceber sua relao com o processo de
1 O nome deste autor aparece com enorme variedade de tradues. Neste trabalho seguirei aopo de Mecacci (1998) e adotarei, como escolha, Vygotskij, por consider-lo o mais prximo do
original russo.2 Ainda que mediante as obras ento disponveis em portugus, que so vtimas dosproblemas acima aludidos.
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desenvolvimento e aprendizagem, sobretudo no perodo escolar, seguindo a concepo
da psicologia histrico-cultural e das proposies pedaggicas da Educao Fsica
brasileira. O projeto de estudo para o mestrado,3 com uma viso ainda limitada da
complexidade deste processo, apontava, inicialmente, para a possibilidade de
compreenso do movimento como linguagem expressivo-comunicativa. Porm, um
estudo cuidadoso e uma familiaridade crescente com os princpios filosfico-histricos
revelaram que tambm essa abordagem era insuficiente. Primeiro, porque a linguagem
no se caracteriza por ser um a priori do processo de desenvolvimento e
aprendizagem. Ao contrrio, desenvolve-se no processo histrico de constituio do
ser social. Segundo, porque tal abordagem tem como pressuposto uma concepo delinguagem que lhe atribui um papel fundante, acepo que falseia o processo de
constituio da especificidade do ser social, pois o desvia dos concretos complexos
histrico-sociais mediadores de suas relaes.
Aos poucos esclarecia-se para ns o sentido de formulaes como o processo
histrico de constituio do ser social. Sobre esse processo, LEONTIEV4 (apud
SHUARE, 1990, p. 22) afirma que Cada homem aprende a s-lo. Para viver na
sociedade no suficiente o que a natureza lhe d ao nascer. Ele deve dominar,
ademais, o que tem sido logrado no desenvolvimento histrico da sociedade humana.
Reconhecer a determinao do processo de efetivao de homens e mulheres como
social por excelncia no significa consider-los objetos passivos da influncia social.
O homem nunca s objeto; , ao mesmo tempo, o sujeito das relaes sociais; sendo
o produto da sociedade, tambm quem a produz (SHUARE, 1990, p. 22). Nesse
mesmo sentido, BHASKAR (2000, p. 9) afirma que homens e mulheres so
condicionados pelas estruturas sociais em que esto inseridos, ao mesmo tempo em
que so os produtores dessas mesmas estruturas. importante salientar que a
reproduo e/ou transformao da sociedade, embora na maioria dos casos seja
3
Submetido e aprovado no processo de up grade para o doutorado, em outubro de 1998.4 Psiclogo russo (1903-1979), trabalhou com VYGOTSKIJ, tendo desenvolvido estudosrelevantes na psicologia histrico-cultural.
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inconscientemente alcanada , no obstante e ainda, umfeito, uma realizao hbil de
sujeitos ativos, e no uma conseqncia mecnica de condies antecedentes.
LEONTIEV ([198-]), na obra O Desenvolvimento do Psiquismo, ao discutir o
que diferencia a formao do indivduo como processo de apropriao ativa e
adaptao ao meio a ontognese animal , estabelece a distino entre espcie
humana e gnero humano. Espcie humana refere-se formao determinada pelo
biolgico, hominizao, enquanto o gnero humano ao processo de humanizao
em que o ser humano, para se constituir como ser, necessita apropriar-se de aptides e
funes humanas engendradas pelo conjunto das relaes sociais.
VYGOTSKIJ (1994, p. 74), para explicitar esse processo ativo deapropriao, utiliza o conceito de internalizao, referindo-se ...reconstruo
interna de uma operao externa. Tal conceito interessou-nos de perto, pois, quer nos
parecer, contribui e ilumina a questo do movimento. Para VYGOTSKIJ o processo de
internalizao constitui-se em uma srie de transformaes: a) uma operao que
inicialmente representa uma atividade externa, produzida socialmente, reconstruda e
comea a ocorrer internamente; b) um processo interpessoal transformado em um
processo intrapessoal; c) a transformao de um processo interpessoal em um processo
intrapessoal resultado de uma longa srie de eventos ocorridos ao longo do
desenvolvimento. Isso se torna mais claro ao analisarmos o exemplo utilizado pelo
autor, no qual explicita o desenvolvimento do gesto de apontar.
A criana, por volta dos sete ou oito meses de idade, tenta pegar um objeto
colocado alm de seu alcance com as mos esticadas em sua direo, com movimento
dos dedos que lembra o pegar. Sua tentativa malsucedida de pegar engendra uma
reao; no do objeto, mas de uma outra pessoa.
Consequentemente, o significado primrio daquele movimento malsucedido de pegar estabelecido por outros. Somente mais tarde, quando a criana pode associar o seumovimento situao objetiva como um todo, que ela, de fato, comea acompreender esse movimento como gesto de apontar. Nesse momento, ocorre umamudana naquela funo do movimento: de um movimento orientado pelo objeto,torna-se um movimento dirigido para uma outra pessoa, um meio de estabelecerrelaes. O movimento de pegar transforma-se no ato de apontar[grifo no original].(VYGOTSKY, 1994, p. 74 )
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VYGOTSKIJ expressa, com esse exemplo, como o desenvolvimento scio-
histrico no s do movimento, mas do prprio ser social, necessita produzir e se
reproduzir mediante sua prpria atividade. SHUARE (1990, p. 21), ao discutir o
conceito de atividade na psicologia histrico-cultural sovitica, afirma que quando se
considera a atividade uma unidade orgnica das formas sensorial-prtica e terica do
ser humano, supera-se a ruptura entre teoria e prtica e afirma-se, a, na atividade, a
essncia genrica de homens e mulheres. O carter integral da atividade se sintetiza
no conceito de prtica que inclui as mltiplas formas da atividade humana e pe o
trabalho em sua base, como forma superior de manifestao. A atividade no s
determina a essncia do homem, seno que, sendo a verdadeira substncia da culturado mundo humano, cria o homem mesmo.
Com essa discusso aproximamo-nos do ponto central de nossa pesquisa.
Questionvamos as proposies pedaggicas da Educao Fsica brasileira e as
dificuldades que encontram em expor as diferenas existentes entre o andar, o correr, o
saltar, o pular de homens e mulheres e o de outros animais. 5 Qual o sentido e o
significado do movimento humano como elemento constitutivo da atividade humana,
vale dizer, qual sua especificidade, se que ele a possui? Admitindo-se que a
realizao do movimento por homens e mulheres, desde os primeiros perodos de suas
vidas, diferencia-se intensiva e extensivamente da realizao do movimento dos
animais, possvel levantarmos algumas interrogaes: essa diferenciao ocorre
naturalmente, unicamente por fora da natureza, um constructo cultural, ou seria
necessria outra possibilidade de entendimento? Como explicar a relao entre o
cultural e o natural? No contexto da sociabilidade capitalista, como orientar as
reflexes relacionadas s prticas pedaggicas da Educao Fsica escolar? A ao que
a rea exerce poderia levar emancipao (KUNZ, 1991, 1994) ou seria uma das
5
Muito embora parte da produo terica da Educao Fsica brasileira nem mesmo secoloca essa questo, considerando o andar, o correr, o saltar, o pular como atividade natural dehomens e mulheres, igualando-os aos animais.
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foras auxiliares na superao (COLETIVO DE AUTORES,6 1992) do modelo
social vigente?7
Essas questes, entre outras,8 assinalam as preocupaes que nortearam
nossas reflexes para estabelecer a problemtica deste trabalho. As abordagens crticas
da Educao Fsica brasileira avanam significativamente em suas discusses do
movimento humano, porm h problemas de compresso de sua especificidade e do
prprio corpo humano como locus da manifestao de sua atividade, advindos da
ausncia de reflexo sobre a real constituio ontolgica de homens e mulheres como
seres sociais. Tal ausncia deixa muitas das questes elencadas sem respostas
satisfatrias. Um resgate do processo de constituio dessas abordagens, ainda quesucinto, torna possvel identificar essa conjectura. Vejamos.
1.1NO CONTEXTO DA EDUCAO FSICARealizamos aqui uma breve reviso de literatura para indicar as principais
discusses que tm orientado as reflexes tericas no interior da rea de Educao
Fsica no Brasil, sem a pretenso de abordar todos os seus temas. Nesse sentido,
escolhemos as perspectivas que obtiveram maior repercusso no interior da rea nos
ltimos anos, procurando demonstrar a ausncia de abordagens ontolgicas em suas
reflexes.
At os anos de 1980, a Educao Fsica brasileira constitui-se basicamente
pela prtica de atividades fsicas fundadas em mtodos ginstico e desportivo que
visam a manuteno da sadeentendida somente em seus aspectos biofisiolgicos ou a educao psicomotora, com uma concepo pedaggica de cunho tecnicista.9
6 corrente na rea de Educao Fsica referenciar a obra dessa forma. O livro foi escritopor: Carmem Lcia Soares, Celi Nelza Zlke Taffarel, Lino Castellani Filho, Maria Elizabeth MedicisPinto Varjal, Micheli Ortega Escobar e Valter Bracht.
7 Estas so as indicaes das duas principais tendncias terico-pedaggicas do campocrtico, contra hegemnico (GRAMSCI, apud AVILA, 2000), da Educao Fsica brasileira: acrtico-emancipatria e a crtico-superadora.
8 Por exemplo: qual o trabalho a ser realizado para que se tematize a questo de gnero
masculino e feminino no espao escolar? Como deve ser a formao dos professores de EducaoFsica?9 Para uma crtica desse perodo ver os estudos de GHIRALDELLI, (1987), MEDINA,
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Nesse perodo iniciam-se as reflexes a respeito da prtica pedaggica e da prpria
identidade da rea. Aqui vale observar um aspecto importante, ainda que pouco
debatido no interior das discusses da rea. Enquanto outras reas, como a Educao e
a Psicologia, por exemplo, passam a receber influncia de teorias sociais crticas,
como a gramsciana e a foucaultiana, na Educao Fsica a influncia maior ainda a
da teoria psicomotora, sobretudo as correntes das escolas francesa e norte-americana.10
Somente mais tarde tais teorias passam a ter influncia na Educao Fsica, inseridas
no contexto das discusses da atuao pedaggica da rea.
As reflexes ocorridas a partir dos anos de 1980 podem ser apresentadas em
duas perspectivas: a que pretende estabelecer um estatuto epistemolgico para rea e aque a v como prtica social que tematiza a cultura corporal.
A primeira reclama um estatuto cientfico prprio para a rea da Educao
Fsica, com vistas a defini-la como cincia autnoma, buscando estabelecer seu campo
terico especfico. Para LIMA (1997), em estudo das tendncias epistemolgicas
acerca do movimento humano, com base nas principais tendncias da epistemologia
contempornea,11 as discusses da Educao Fsica ocorrem sob o predomnio de
quatro tendncias: a) a Cincia da Motricidade Humana, proposta pelo autor portugus
Manuel SRGIO,12 em que seria a Cincia da compreenso e da explicao das
condutas motoras, visando o estudo e constantes tendncias da motricidade humana
(LIMA, 1997, p. 1530), fundamentada na fenomenologia e na hermenutica. Seu ramo
pedaggico seria formado pela educao motora; b) a Cincia do Movimento
Humano,13tendo como foco de estudo o movimento humano, pretende ultrapassar a
dependncia total das cincias mes, ampliar o campo de ampliao deste foco de
estudo (movimento humano) nas suas diversas reas de aplicao (Ibidem, p. 1531),
(1987), CASTELLANI FILHO, (1988), BRACHT (1992).10 Principalmente nos franceses LE BOULCH; LAPIERRE, e na americana HARROW.11 Apoiado em BONBASSARO, Lus A.As fronteiras da Epistemologia: como se produz o
conhecimento. 2 ed. Petrpolis: Vozes, 1992.12 Nas obras Para Uma Epistemologia da Motricidade Humana. Lisboa: Compendium,
1994, e Motricidade Humana Contribuies para um paradigma emergente Lisboa: ColeoEpistemologia e Sociedade, [198-].
13
Representada por CANFILD, J. T. A Cincia do Movimento Humano como rea deconcentrao de um programa de ps-graduao. Revista Brasileira de Cincias do Esporte14(3):146-149, 1993.
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porm sem clareza de quais sejam seus pressupostos epistemolgicos; c) as Cincias
do Esporte,14 que no se arvoram o estatuto de cincia, mas um espao capaz de
albergar toda e qualquer disciplina cientfica que, de alguma forma, trate questes
referentes ao desporto (Ibidem, p. 1532), onde estariam reas como a pedagogia
do desporto, a fisiologia, a biometria, a biomecnica, o treinamento desportivo, a
psicologia do esporte, a sociologia do esporte, etc.; d) a Tendncia Pedaggica, que
tenta delimitar um campo acadmico que teorize a prtica pedaggica tematizando a
cultura corporal de movimento na instituio educacional. Segundo LIMA (1997, p.
1533), essa tendncia rene um grupo de autores15 que, apesar das diferenas de
concepes e de objetivos da Educao Fsica, bem como de pressupostos filosficos,poltico-ideolgicos, apresentam convergncias em relao a pelo menos trs
aspectos:
1) a Educao Fsica como sendo fundamentalmente (antes de tudo) uma prticapedaggica, a expressa em termos de disciplina acadmica e/ou disciplina curricularque deve, portanto, afirmar-se no campo pedaggico.2) Crtica ao cientificismo das Cincias do Esporte (...)3) nfase na necessidade de construo de uma Teoria da Educao Fsica. (LIMA,
1997, p. 1533)
Parece-nos vlida a anlise do autor em relao s trs primeiras tendncias.
Porm, caracterizar a ltima tendncia, a Pedaggica, como uma perspectiva
epistemolgica parece contradizer o que o prprio autor afirma. Tal tendncia
prope-se a ser uma crtica ao cientificismo, afirmando ser impossvel requerer um
estatuto de cientificidade para a rea, portanto no postula uma discusso
epistemolgica. Ao contrrio, busca caracterizar a Educao Fsica como uma prtica
pedaggica em que se tematiza a cultura corporal. Ademais, a referida tendncia
abriga uma diversidade de abordagens, representadas por diversos autores cujas
reflexes sustentam-se em matrizes epistemolgicas diferentes. Na tentativa de
14 Os autores citados so: GAYA, A. As Cincias do Desporte nos pases de lnguaportuguesa. Porto: Universidade do Porto, 1994; BENTO, J. O. O outro lado do desporto: vivncias ereflexes pedaggicas. Porto: Campo das Letras, 1995.
15
Os autores citados so: BRACHT (1992), TAFFAREL (1994), COLETIVO DEAUTORES (1992), SANTIN (1992), KUNZ (1994), GAYA (1994 ver nota 15). E aindaGHIRALDELLI, P. A volta ao que parece simples?Revista Movimento, Porto Alegre, v. 2, jun., 1995.
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aproxim-las reside o problema maior de seu entendimento. Por essas questes,
caracterizamos tais abordagens como a segunda perspectiva da Educao Fsica, que a
considera uma interveno pedaggica, que ganha fora principalmente a partir do
final dos anos de 1980.
As proposies da Educao Fsica como interveno pedaggica procuram
fundament-la teoricamente de forma condizente com algumas das expectativas
educacionais postas nesse perodo, isto , uma educao que contribusse a que o
educando viesse a compreender os verdadeiros determinantes de sua condio social
poltica, econmica, religiosa, cultural. Como os vrios autores possuem
entendimentos distintos da atual condio social, seu contedo estabelecido deformas diferenciadas, com evidentes implicaes nas proposies pedaggicas ou nas
reflexes sobre o corpo. Dentre essas proposies pedaggicas destaco a crtico-
emancipatria, proposta por KUNZ (1991, 1994), que estabelece como contedo da
Educao Fsica a cultura de movimento, e a crtico-superadora, proposta pelo
COLETIVO DE AUTORES16 (1992), que prope como contedo a cultura corporal.
Apresentaremos brevemente essas duas proposies, uma vez que so as que
obtiveram maior repercusso na rea.
1.1.1 As proposies pedaggicas da Educao Fsica
A tendncia Crtico-Emancipatria tematiza os contedos da Educao Fsica
como o ensino do Movimento Humano, em especial, os esportes (KUNZ, 1994, p.
13). A Pedagogia crtico-emancipatria e didtico-comunicativa foi formulada porElenor KUNZ, nas obras Educao Fsica: Ensino & Mudana (1991) e
Transformao didtico-pedaggica do Esporte (1994). Seus fundamentos terico-
filosficos sustentam-se na Escola de Frankfurt, principalmente nas obras de
Habermas. BRACHT (1999), em anlise da constituio das teorias pedaggicas da
16 Essa obra representativa do pensamento de um grupo de autores (anteriormente citados,
conforme nota 7) no perodo especfico de sua elaborao. Atualmente cada um deles possui suaproduo independente, chegando, alguns, a um considervel distanciamento dessa matrizepistemolgica.
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Educao Fsica brasileira, assinala que essa tendncia tem suas reflexes apoiadas,
tambm, nas anlises fenomenolgicas do movimento humano tomadas de Merleau-
Ponty e apoiadas em estudiosos holandeses como Gordjin e Tamboer.
KUNZ parte de uma concepo de movimento denominada dialgica, para o
qual o se movimentar humano entendido como forma de comunicao com o mundo.
Suas proposies didtico-pedaggicas levam em considerao um sujeito capaz de
crtica e de atuao autnoma. Aponta para a tematizao dos elementos da cultura de
movimento de maneira a desenvolver a capacidade de agir criticamente baseada na
competncia do agir comunicativo. A prtica da Educao Fsica deve ser capaz de
levar o aluno a compreender o fenmeno social do esporte em sua dimensopolissmica, com vistas ao desenvolvimento do aluno em relao a determinadas
competncias imprescindveis na formao de sujeitos livres e emancipados (KUNZ,
1994, p. 28). As competncias a que se refere o autor so a autonomia, a interao
social e a objetiva. A competncia da autonomia desenvolvida em direta ligao com
a competncia comunicativa, entendendo o sujeito como auto-determinativo; a
comunicao deve fundamentar a funo do esclarecimento e da prevalncia racional
de todo agir educacional. uma reflexo fundamentada na teoria do agir comunicativo
de Habermas. Junto com o da racionalidade, a capacidade comunicativa desenvolve o
atributo que destaca o ser humano do mundo dos animais, ou nas palavras de
HABERMAS17(apud KUNZ, 1994, p. 30), o que nos eleva acima da natureza a
nica coisa que podemos conhecer de acordo com a prpria natureza: a linguagem.
Atravs de sua estrutura coloca-se para ns a maioridade.
KUNZ apresenta a maioridade a partir da compreenso kantiana do conceito
Aufklrung, ou esclarecimento, em que a sada da condio de submisso, da
definio da condio de vida de cada indivduo, depende de sua prpria vontade em
fazer uso de sua capacidade de agir racionalmente. Portanto, pretendo aqui, chamar
deEmancipao este processo de libertar o jovem das condies que limitam o uso da
razo crtica e com isto todo o seu agir social, cultural e esportivo, que se desenvolve
pela educao (KUNZ, 1994, p. 31).
17 HABERMAS, J. Theorie des kommunikative handelns. Bd. 1. Frankfurt am Main:Suhrkamp, 1981. p. 65.
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A grande questo, qual KUNZ pretende lanar algumas perspectivas de
viabilidade, como alcanar o esclarecimento e a conseqente libertao de uma falsa
conscincia, bem como superar a coero auto-imposta. Ao que surgem as questes de
como agir ou como se deve agir. A seu ver, Habermas lana uma sada, ainda que
dbil, pelo conceito de auto-reflexo. Buscando amparo na psicanlise, como tambm
Marcuse e especialmente Adorno e Horkheimer, este prev que uma emancipao s
seria possvel quando os agentes sociais, pelo esclarecimento, reconhecerem a origem
e os determinantes da dominao e da alienao. Os agentes sociais so levados assim,
a auto-reflexo. (Ibidem, p. 33)
KUNZ considera o esporte uma instituio repressora, em que os valoresveiculados so o da sobrepujana e das comparaes objetivas. Sendo assim, uma
pedagogia crtico-emancipatria deve ser capaz de, alm de ensinar a capacidade
objetiva de saber praticar o esporte, levar o aluno a compreender seus mltiplos
sentidos e significados para nele agir com liberdade e autonomia, que exige a
capacidade da interao social e comunicativa.
Em lugar de ensinar os esportes na Educao Fsica Escolar pelo simplesdesenvolvimento de habilidades e tcnicas do esporte, numa concepo crtico-emancipatria, dever ser includo contedos de carter terico-prtico que, alm detornar o fenmeno esportivo mais transparente, permite aos alunos melhor organizar asua realidade de esporte, movimentos e jogos de acordo com as suas possibilidades enecessidades. (KUNZ, 1994, p. 34-35)
Cabe problematizar essa compreenso do fenmeno esportivo. A perspectiva
epistemolgica que a sustenta leva a crer que o fenmeno esporte, sendo produzido
socialmente, no careceria de investigao de seus determinantes; seria visto eassumido como dado. Seriam os valores apontados pela concepo de sobrepujana e
comparaes objetivas imanentes ao esporte? Sendo o esporte produto da sociedade
no sofreria as determinaes dessa mesma sociedade? E, dado que a sociedade
regida pelo modo de produo capitalista, no seria o esporte contemporneo
carregado de suas determinaes? Se o for, possvel um agir emancipado e autnomo
do indivduo no esporte?
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A outra tendncia pedaggica que destacamos aqui a Crtico-Superadora,
que estabelece como contedo temtico da Educao Fsica a Cultura Corporal em
suas diversas expresses como os jogos, o esporte, a ginstica, a dana, as lutas. Essa
tendncia, como assinalamos, foi desenvolvida por COLETIVO DE AUTORES
(1992). Embora com diferenas na compreenso dos desdobramentos de algumas das
questes, os autores teceram uma primeira sistematizao de sua proposta na obra
Metodologia do Ensino de Educao Fsica, partindo do pressuposto que a Educao
Fsica uma prtica de interveno pedaggica. A obra voltada aos professores e aos
futuros docentes, isto , Uma teoria da prtica pedaggica denominada Educao
Fsica vai, necessariamente, ocupar-se da tenso entre o que vem sendo e o que deveriaser, ou seja, da dialtica entre o velho e o novo (COLETIVO DE AUTORES, 1992,
p. 50). Ainda na introduo, os autores deixam claro seu entendimento de Educao
Fsica e qual o seu contedo. Este livro expe e discute questes terico-
metodolgicas da Educao Fsica, tomando-a como matria escolar que trata,
pedagogicamente, temas da cultura corporal, ou seja, os jogos, a ginstica, as lutas, as
acrobacias, a mmica, o esporte e outros. Este o conhecimento que constitui o
contedo da Educao Fsica. (Ibidem, p. 18)
Considerando o contexto social de luta de classes sob a ordem capitalista,
apresentam duas perspectivas de Educao Fsica escolar. A primeira a que possui
hegemonia nas relaes pedaggicas e tem no desenvolvimento da aptido fsica o seu
objeto de estudo, vinculando-se ao projeto histrico de manuteno da estrutura social
capitalista. Os autores contrapem-se a ela argumentando que a Educao Fsica
necessita refletir sobre a cultura corporal, alargar sua concepo de currculo,
ampliando as referncias das formas da expresso corporal como linguagem sob a
lgica materialista e histrica. Os alunos, para os autores, devem apropriar-se do saber
cientificamente elaborado, contribuindo para a construo da conscincia de classe e
para a atuao deliberada na transformao estrutural da sociedade, respondendo aos
interesses da classe trabalhadora.
Uma vez que o conhecimento deva ser tratado de forma historicizada, de
modo a ser apreendido em seus movimentos contraditrios, o trabalho pedaggico
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deve orientar-se, tambm, por uma concepo de currculo escolar vinculada a um
projeto poltico-pedaggico. Um projeto poltico-pedaggico representa uma
inteno, ao deliberada, estratgia. poltico porque expressa uma interveno em
determinada direo e pedaggico porque realiza uma reflexo sobre a ao dos
homens na realidade explicando suas determinaes (COLETIVO DE AUTORES,
1992, p. 25).
Embora os autores no aprofundem a reflexo sobre os fundamentos tericos
com que trabalham, a proposta, segundo BRACHT (1999, p. 79),18 baseia-se
fundamentalmente na pedagogia histrico-crtica desenvolvida por Dermeval Saviani e
colaboradores. Ademais, ainda segundo BRACHT (1999), busca demonstrar que asformas dominantes da cultura do corpo reproduzem os valores e os princpios da
sociedade capitalista industrial moderna, representados paradigmaticamente pelo
esporte de rendimento. Os procedimentos didtico-pedaggicos sugeridos, nesse
sentido, procuram propiciar um esclarecimento crtico, desvelando suas vinculaes
com os elementos da ordem vigente e desenvolvendo as competncias, com base na
lgica dialtica, para agir autnoma e criticamente na esfera da cultura corporal e de
forma transformadora como cidados polticos.
Ainda que os prprios autores apontem para a necessidade de ampliao e
aprofundamento da nova concepo apresentada (COLETIVO DE AUTORES, 1992,
p. 20) e mesmo concordando com FERREIRA (1995, p. 216), que considera essa
proposta como um marco, porque rompe radicalmente com entendimentos
hegemnicos do currculo de EF, e busca explicitamente o desenvolvimento de uma
teoria da EF, numa sntese das expectativas que a rodeiam, algumas indagaes se
colocam. FERREIRA (1995), em estudo das teorias das bases epistemolgicas das
propostas pedaggicas da Educao Fsica, aponta algumas lacunas na proposta do
COLETIVO DE AUTORES. Por exemplo: de que forma ocorreria a historicizao dos
contedos, os ciclos de escolarizao propostos em relao estrutura curricular e a
relao entre a categoria atividade e as proposies pedaggicas? Os principais
questionamentos comumente feitos a essa proposta referem-se ao conceito de Cultura
18 Vale lembrar que o autor participou da elaborao da obra.
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Corporal e expresso corporal como linguagem. Se a abordagem da Cultura
Corporal, seria esta complementada pela Cultura Intelectual? Uma leitura crtica da
realidade a partir de reflexes sobre a cultura corporal, seria um aprendizado crtico do
movimento capaz de ir alm de um discurso crtico sobre o mesmo? (FERREIRA,
1995, p. 217). O que significa o conceito de Cultura Corporal e qual a sua
determinao?
No foi nossa inteno, com esse breve esboo, esgotar as discusses em
torno das propostas pedaggicas para a Educao Fsica, mas apenas apontar os
caminhos, a nosso ver insuficientes, na busca de uma definio mais precisa do
movimento, pela ausncia de um estudo ontolgico do movimento como especfico daatividade humana.
1.1.2 Reflexes acerca da expectativa e da perspectiva de corpo
Recentemente ganham salincia na rea de Educao Fsica as discusses
acerca do corpo humano sem, no entanto, apresentarem proposies especficas para a
prtica pedaggica. Tais reflexes tm como tema a instrumentalizao do corpo ou as
perspectivas e expectativas de corpo humano na contemporaneidade.
Abordar essa linha de reflexes importante para situar a procura por
respostas s inquietaes quanto ao movimento humano, seu sentido e significado,
cada vez mais fortes no interior da rea. A resposta questo requer, necessariamente,
uma compreenso da corporalidade de homens e mulheres e sua manifestao na
sociedade. H muitos trabalhos em Educao Fsica sobre o tema congregando vriosautores, entre eles, SANTIN (1992), SILVA (1999, 2001), SOARES (1994, 1998),
VAZ (1999), que apesar de partirem de preceitos epistemolgicos diferentes, possuem
em comum a crtica instrumentalizao do corpo pela assim chamada racionalidade
ocidental. Cresce atualmente, dentro dessa proposta, uma linha de pensamento que
discute as possibilidades de um saber que se tem ou se produz do corpo humano e de
seu movimento. Daremos ateno a essa ltima, uma vez que tem exercido forte
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influncia sobre os debates diretamente relacionados temtica no interior da rea. 19
Tomaremos SILVA (2001) como uma das expresses dessa tendncia, escolha que se
deve ao seu entendimento acerca da expectativa e da perspectiva de corpo
contemporneas, que tem grande repercusso no interior da rea, principalmente na
obra Corpo, Cincia e Mercado: reflexes acerca da gestao de um novo arqutipo
da felicidade. Os apontamentos no pretendem ser um estudo da obra, mas indicar os
pontos que consideramos expressivos dessa linha de pensamento. Como as reflexes
no possuem a preocupao de investigar os determinantes ontolgicos, as anlises
pautam-se mais pela manifestao fenomnica dos objetos de estudo, o que conduz a
uma perspectiva de que a determinao ltima da realidade em questo dada porrelaes de cultura, que determinam a instrumentalizao da razo e,
conseqentemente, do corpo humano. As possibilidades de transformao dessa
realidade so indicadas pela perspectiva de mudana da cultura, pela produo de uma
nova cultura. Vejamos a obra da autora.
SILVA (2001, p. 1) prope-se uma reflexo acerca da expectativa de corpo
que se tem na sociedade hodierna e sua inter-relao com a construo de uma nova
cultura, na qual uma outra perspectiva ecolgica pudesse se dar. Segundo a autora, o
prprio ttulo da obra Corpo, cincia e mercado indica o objetivo de analisar a
expectativa de corpo que se tornou hegemnica na atualidade, especialmente, a partir
da tecnocincia e da racionalidade restrita que lhe fundamenta, alm do fenmeno da
globalizao da economia e dos meios de comunicao de massa (Ibidem, p. 1). Essa
reflexo tem como objetivo principal contribuir com a construo de uma nova
cultura, com um novo eixo para a humanidade (Ibidem, p. 6). Essa uma postura que
expressa, de certa forma, a viso romntico-ecolgica seguida pela autora.
No desenvolvimento de seu estudo a autora referencia-se em vrios autores, de
Canguilhem a Marx passando por Foucault, Adorno e Gramsci, que contribuem para
estabelecer sua ecltica posio.
19
Basta ver os Anais do dcimo (Florianpolis, 1999) e dcimo primeiro (Caxambu, 2001)Congressos Brasileiros de Cincias do Esporte, promovidos pelo Colgio Brasileiro de Cincias doEsporte, entidade que congrega os professores e pesquisadores da rea de Educao Fsica e esportes.
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Outro aspecto a assinalar para esclarecer as posies terico-filosficas da
autora a indicao metodolgica apresentada na introduo da obra. Ali afirma no
ser possvel estabelecer respostas objetivas no enfrentamento do tema devido sua
complexidade, e assume a incerteza como mtodo e resultado do trabalho.
O enfrentamento desse tema, considerando sua complexidade, dado o imbricamentodos fatores constituintes da situao, exige abrir mo das respostas objetivas, clarase distintas e superar o tratamento das coisas em pedaos que levam a umconhecimento mutilado20 (...), e assumir a incerteza como mtodo e como resultadodo trabalho. A partir de tal entendimento as concluses vo sendo explicitadas aolongo de todo o texto, na medida em que se entende a importncia de se assumir umaatitude tica no trabalho intelectual. (SILVA, 2001, p. 6)
Esse pargrafo bastante elucidativo do posicionamento metodolgico do
estudo em que a incerteza parece assumir um certo tom relativista, e em que no so
possveis respostas objetivas, dado que a realidade a ser investigada imbricada de
fatores em constante flutuao, impedindo a objetividade de suas respostas. Uma
posio no mnimo problemtica.
A autora considera fundamental para entender a gestao do indivduo
moderno a separao, surgida na Modernidade, entre seres humanos e Natureza. Suaateno volta-se para a expectativa de corpo21 que se formou ao final do sculo XX e o
tipo de racionalidade a ela correspondente. As preocupaes com o corpo e, em
especial, com as aparncias, parecem caracterizar um novo indivduo nessa fase
contempornea, com implicaes importantes no seu projeto de vida e nas interaes
que estabelece em sociedade e com a natureza (Ibidem, p. 4). O culto ao corpo, de
natureza narcisista, afirma a autora, evidenciado por trs indicativos: a) a situao
paradoxal entre o culto ao corpo e a situao, vivenciada pela maioria da populao, de
no possuir condies mnimas de sustentao do corpo; b) o sectarismo da vida
privada expresso em preconceitos raciais, de credo, de gnero, etc.; c) e a falta de
20As citaes so de DEL PRIORI, Mary L. M. Dossi: a histria do corpo. In: Anaisdo Museu Paulista: histria e cultura material. So Paulo, vol. 3, jan./dez. 1985.
21 A autora descreve o significativo aumento das cirurgias plsticas com vistas obtenoda beleza padro. Ao mesmo tempo, o modelo ocidental torna-se a referncia s mulheres japonesas,
manifestado pela busca de cirurgias plsticas de plpebra com o intuito de tornarem-se semelhantes socidentais, ao que a autora denomina de processo de ocidentalizao do rosto daquelas mulheres. NoBrasil dissemina-se a expectativa de corpo baseada na esttica da magreza (SILVA, 2001).
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percepo da totalidade que leva a uma desconsiderao ecolgica. Em tal perspectiva,
os interesses humanos buscam permanentemente tornar-se hegemnicos, prevalecendo
o domnio humano ilimitado na relao com a Natureza, e a separao da cincia e da
tcnica da reflexo tica. (SILVA, 2001, p. 4-5)
A autora analisa a relao cultura e natureza como dois plos em interao.
Tendo como referncia Canguilhem, afirma:
A cultura fundamento de todos os fenmenos do corpo humano, tal qual seufundamento biolgico. Ao se criarem modos de vida diferentes, criam-se tambmmodos de funcionamento orgnico diferentes, que apesar de se mostrarem comoconstantes fisiolgicas, so equilbrios instveis ante as diferentes necessidades que se
apresentam no cotidiano, como diria o autor acima citado.22
O meio ambiente, oentorno humano , ele prprio, inseparavelmente Natureza e Sociedade, assim como oser humano o . (SILVA, 2001, p. 36)
Na seqncia a autora cita Marx, nas obras A Ideologia Alem e
Contribuio para a crtica da economia poltica, afirmando que pelo corpo que o
ser humano relaciona-se com o restante da natureza e, nessa relao, constitui sua
subjetividade. O trabalho entendido em sua forma genrica que realiza a mediao
entre essas duas dimenses da Naturezainterna e externa ou orgnica e inorgnica onde se constitui o prprio ser humano em toda sua objetividade e subjetividade.
(Ibidem, p. 37). SILVA afirma, tambm, que Marx apresenta uma conceituao de
Natureza socializada segunda natureza que possui um trabalho humano pretrito.
Nessa perspectiva, Natureza e sociedade se constituiriam, cada vez mais, por uma
interconexo de ambos os termos, o que no se poderia deixar de considerar na
produo do conhecimento, tanto de uma como de outra. (SILVA, 2001, p. 37)
A autora realiza interessante debate sobre a transformao do corpo em
mercadoria. Assinala que a ateno ao corpo, antes valorizado em funo da moral do
trabalho, hoje, precisa incorporar as caractersticas da tecnologia para subsistir; sua
valorizao d-se, muito mais pela sua incluso na esfera da circulao e ao paralelo
22Parte da citao referenciada diz: s verdade que o corpo humano , em certo sentido,
produto da atividade social, no absurdo supor que a constncia de certos traos revelados por umamdia, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas de vida (CANGUILHEM,apud SILVA, 2001, p. 36).
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afastamento da esfera de produo; a moral do consumo que o valoriza. (Ibidem, p.
79)
A nova moralidade, resultante da fase atual do liberalismo econmico e do
individualismo: a garantia de cidadania pela propriedade, a crena na autonomia e na
independncia do indivduo, a livre concorrncia (Ibidem, p. 81), torna o outro um
obstculo ou objeto para a satisfao do indivduo moderno pela necessria adaptao
sociedade tecnolgica, que o obriga a desenvolver o sentimento de autopreservao
em relao aos outros indivduos. O outro representa, de qualquer forma, a
instrumentalizao daquele que deveria ser o prximo (Ibidem). O consumo,
incentivado principalmente pela mdia, constitudo por vrios elementos, entre osquais a busca pelo status social, incentivo seduo e necessidade de fazer parte de
uma tribo.
Todos esses elementos submetem o indivduo a um modelo que se afasta de suaautonomia, que irrealizvel, j que dependente de mltiplos fatores externos vontade do indivduo. (...) A racionalidade que se expande no meio cientfico amesma que est em todos os meios de comunicao de massa. A cultura popular nope nenhum freio a essa desmedida nsia de conhecimento e poder, pelo contrrio,
est convencida de que se pode fazer tudo, de que a tecnocincia resolver todos osproblemas e derrubar todos os obstculos, inclusive aqueles que se encontram entre ocorpo que se tem e o corpo que se quer; e o corpo que se quer no esse que presente da Natureza, mas sim aquele que corresponde reconstruo e aoremodelamento que o mercado prega e a cincia processa; aquele que fruto daracionalidade instrumental que, por seu empenho, lhe d sentido e valor; aquele quecorresponde expectativa de corpo moderno. (SILVA, 2001, p. 87-89)
SILVA aponta que, em razo da fase atual de globalizao da racionalidade
marcada por profundas e incessantes intervenes sobre a Natureza e sobre a prprianatureza humana, necessria a construo de uma outra cultura para que se possa ter
outra expectativa de corpo, que no a do corpo que torna-se vitrine para a sua
apresentao pblica enquanto mercadoria. Em suas palavras:
...a cultura ocidental se caracterizaria pelo desprezo ao mundo, paralelamente suaposio de senhorio sobre esse mundo. Os elementos caractersticos dessa cultura
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civilizaram todo planeta, generalizando seu modo de vida, seus valores, suaracionalidade e sua expectativa de corpo; vive-se hoje, sob esse aspecto, a crise daocidentalizao do mundo. A partir de tal contexto, trata-se de indicar aqui anecessidade de construo de uma outra cultura, de outro eixo civilizatrio, inclusivepara que se possa ter uma outra expectativa de corpo. (SILVA, 2001, p. 94)
A realizao de outra cultura pode ocorrer, indica a autora, a partir da
explicitao dos paradoxos em que se enraiza a expectativa de corpo, a partir da crtica
de molde foucaultiano.23 O primeiro paradoxo, aponta, o de que ao mesmo tempo em
que se vive um perodo de alto nvel de produo de riqueza mundial, o cotidiano de
bilhes de pessoas constitui-se pela falta de condies bsicas de subsistncia, e seu
maior problema permanece sendo a fome. Sua expectativa de corpo fundada na lutapela sobrevivncia. Esse seria um dos paradoxos mais profundos da Modernidade: o
da irracionalidade como contraface da razo formalizada. (Ibidem, p. 95) O
predomnio da ordem instrumental racional exerce presso para a atuao da
tecnocincia desligada das normas tradicionais e da tica, assim como do resultado da
presso que a civilizao exerce sobre os indivduos. (Ibidem, p. 95) O investimento
prioritrio, no desenrolar do eixo civilizatrio, permanece sendo a tecnocincia com a
promessa de soluo desse paradoxo na medida em que as solues devem ser cada
vez mais tcnicas e menos ticas e polticas.
O ser humano assim dominado por sua criatura, num processo de autonomizao node quem a fez, mas daquilo que foi feito, em relao a quem a fez; tal fato aponta paraa irracionalidade que est, em germe, no seio da racionalidade formalizada einstrumental, responsvel pela tecnocincia que se expande e que se transformou nocentro da crise ecolgica atual. Nesse sentido, a dominao da Natureza que opressuposto dessa civilizao, implica tambm, em sua inverso: a dominao doprprio ser humano. (SILVA, 2001, p. 96)24
Face ao que considera um paradoxo, a autora visualiza dois caminhos
possveis. Um deles seria a adequao tal lgica e luta pela incluso em suas
23 A referncia : FOUCAULT, M. Illuminismo e critica. Roma: Donzelli Editori, 1997.Em que a crtica deve ser utilizada como instrumento, meio para um futuro ou verdade que noconhecer e que no ser; ela um olhar sobre o campo em que busca por ordem sem poder ditar lei(FOUCAULT, apud SILVA, 2001:6).
24
A autora desenvolve esta reflexo apoiada principalmente em: ADORNO, T.Educao eEmancipao. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1995, e HEIDEGGER, M. A questo da tcnica.Cadernos de Traduo. So Paulo: Editora da USP, 1997.
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benesses. O sucesso seria apenas questo de tempo, uma vez que a tcnica promete
no haver limites nos recursos, nem materiais, nem naturais, nem da existncia,
corroborados pelos investimentos na tecnocincia para reorganizar o corpo a partir de
uma perspectiva que se prope neutra ou eticamente livre.
Outro caminho possvel seria o da resistncia essa lgica com o
enfrentamento da devida questo tica, desabsolutizando a tcnica e submetendo-a
finalidade de criar condies dignas de vida para toda a humanidade.
Dado que todas as atitudes humanas e suas teorizaes com relao Natureza socarregadas de subjetividade em sua percepo25 e em seus interesses, um certo
antropocentrismo parece ser inevitvel, mesmo naquelas atitudes que explicitamente onegam. A defesa de direitos da Natureza sempre defesa humana, a partir de suaperspectiva histrica. Construir uma sociedade justa, onde a tcnica beneficiasse atoda humanidade, possibilitaria uma perspectiva mais ampla dos direitos naturais,porque baseada em relaes sociais mais justas. (SILVA, 2001, p. 98)
Alm disso, necessrio, segundo a autora, ultrapassar o preceito moderno
da moral burguesa segundo o qual quem no trabalha no tem o direito de comer, e
retomar o preceito pr-aristotlico de justia distributiva com respeito s diferenas de
condies e de capacidades para o trabalho. Proposta, afirma, que reaparece com forae radicalidade na obra de Marx, como uma das bandeiras da nova sociedade, onde cada
um produz segundo suas capacidades e recebe segundo suas necessidades. As demais
necessidades que possam surgir fora da coero do consumo, s podero ser
conhecidas e resolvidas quando a sociedade puder ultrapassar a economia de mercado,
ou seja, autonomizao e a naturalizao do capital. (Ibidem, p. 99)
A autora observa que a questo tica, em primeiro lugar, sempre do tempo
presente e, desta forma, no se pode apostar na tcnica como soluo dos problemas
no futuro para justificar atitudes no-ticas no presente. ...trata-se de constituir um
presente tico para que o futuro tambm possa ser; (...) possvel que a humanidade
esteja ante uma nova aposta, com profundas implicaes para a continuidade de
25Neste ponto a autora insere a seguinte nota: Maturana (1997, p. 53) que faz seus estudosa partir de uma nova posio paradigmtica, refora a perspectiva antropocntrica ao demonstrar em
suas pesquisas no campo da biologia que tudo dito por um observador, e que a realidade umaconstruo ontolgica. A obra referenciada : MATURANA, H. A ontologia da realidade. BeloHorizonte: Editora da UFMG, 1997.
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existncia da espcie. (SILVA, 2001, p. 100) Citando SERRES,26 afirma que
preciso apostar na falibilidade da tcnica, que necessita ser desabsolutizada e
secundarizada em favor de outros interesses, tendo-se, ento, a possibilidade de
ganhar por no perder a vida e pela oportunidade de ganhar a liberdade, junto com o
amor pelo Outro. (Ibidem, p. 100) Alerta, assim, que o fato de propor uma aposta
indica a tica que a humanidade construiu, ou seja, a utilitarista. O que caracteriza o
Liberalismo e suas verses contemporneas a tica utilitarista baseada nos interesses
de um sujeito pensado como livre, a-social e neutro. Dessa forma, a tica utilitarista
permite a instrumentalizao do Outro para atingir seus objetivos ou, pelo menos,
permite uma indiferena em relao ao Outro, seja ele humano ou no-humano; isso,porque, o utilitarismo considera toda avaliao moral como subordinada ao bem-estar
individual... (Ibidem, p. 100).
Recorrendo a autores como ECO27 e GHIRALDELLI Jr28, a autora avalia
poder ocorrer uma mudana tica em relao atividade humana tomando o corpo
como referncia, como o locus privilegiado da questo, pela visibilidade que a
instncia corporal oferece. Aqui estaria implicada a questo esttica, do corpo
mercadoria, na economia de mercado que atribui importncia ao valor simblico da
mercadoria, igualando-o a qualquer outro objeto. Dado que a Natureza sofre do mesmo
enquadramento, h necessidade de uma mudana da relao entre corpo e Natureza.
Esta mudana posta pela autora como uma possibilidade humana:
Uma relao esttica com a Natureza deve ser por princpio, intil, destituda de valorporque no submissa s racionalizaes humanas que levam ao seu enquadramento apartir dos objetivos de uma tica utilitarista. necessrio, por isso, uma outra culturaque reconhea e respeite o princpio das diferenas que est no fundamento de talrelao: a reconciliao com a Natureza condio para uma relao esttica.(SILVA, 2001, p. 104)
26 SERRES, Michel. O contrato Natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.27 ECO, Umberto. Entrevista. Folha de So Paulo, So Paulo, 14 de maio de 1995.
Caderno Mais.28 GHIRALDELLI Jr. Paulo. O corpo de Ulisses: modernidade e materialismo em Adornoe Horkheimer. So Paulo: Editora Escuta, 1996.
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A reconciliao com a Natureza pressupe, de acordo com a autora, o
reconhecimento do pertencer a ela; um desenvolvimento em parceria com a Natureza
pode localizar um novo foco de resistncia em relao ao corpo. A superao do
tratamento utilitarista, fundado no direito de propriedade, sofrido tanto pelo corpo
como pela Natureza, pode ocorrer estabelecendo um contrato eqitativo, onde
haveria simetria e justia na troca entre ambos, em que o direito de simbiose
definido pela reciprocidade prevaleceria sobre o direito de propriedade. ...tanto a
natureza d ao homem, outro tanto este deve devolver quela, convertida em sujeito
de direito (SERRES,29 apud SILVA, 2001, p. 105). A Natureza poderia, assim, ser
includa no interior do domnio da tica, a partir de uma justificao racional que, decerta maneira, aparece em alguns sistemas filosficos desde Plato e Aristteles.
Embora afirme a irredutibilidade da Natureza histria (SILVA, 2001, p. 104), aautora parece indicar que o problema maior estaria na condio social do corpo, comoente social, quando afirma que a razo precisa ser crtica, assim como a realidade, emsua concretude social, precisa ser negada; apenas com tal condio possvel teresperana. (Ibidem, p. 105)
Aqui poderamos comentar e questionar alguns aspectos relevantes. Nocontexto da modernidade seria possvel separar o corpo natural, presente da
Natureza, do corpo que corresponde reconstruo e ao remodelamento que o
mercado prega e a cincia processa? Ou ainda, seriam s estes dois os condicionantes
que determinam o corpo? O processo de autonomizao do produto do trabalho
humanodaquilo que foi feito, em relao a quem a fez (Ibidem, p. 96) seria um
fator de irracionalidade da racionalidade formalizada e instrumental ou o processo de
autonomia da mercadoria no modo de produo capitalista, portanto de dominao de
alguns seres humanos (os proprietrios privados dos meios de produo) sobre os
outros (os proprietrios da fora de trabalho)? Seria a tcnica autnoma ou um dos
aspectos histricos do desenvolvimento do ser social no domnio das legalidades
naturais para garantir a sua produo e reproduo como indicado por MARX e
ENGELS (1998) emA Ideologia Alem, citados pela prpria autora? Os direitos do ser
29 SERRES, Michel. O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
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social seriam naturais ou realizaes sociais no processo de realizao tica? Seria a
tica natural?
SILVA (2001) aponta para outras questes relativas ao enfrentamento tico
em discusso. Entretanto o aqui exposto torna clara a posio defendida e,
salvaguardadas as diferenas que em alguns casos podem ser antagnicas ,
representa a tendncia que tem influenciado fortemente as discusses na rea de
Educao Fsica hoje em dia.
Os enfoques sobre o corpo e o movimento humano que a Educao Fsica
tem privilegiado no buscam explanar sua real constituio como especficos do ser
social. A explicitao dessa realidade exige a compreenso da condio originria dehomens e mulheres como seres que produzem e reproduzem as suas prprias
condies de existncia. Nessa atividade produzem a si mesmos e, no interior desse
processo, produzem e reproduzem sua corporalidade e seu movimento. Sob essa
exigncia, afirmamos a necessidade de um enfoque que considere a sua existncia
concreta, isto , a abordagem ontolgica do ser social.
1.2 UMA POSSIBILIDADE ONTOLGICA
Para estabelecer esse novo enfoque necessrio avanar no entendimento do
processo de constituio do ser social, no processo ontolgico da determinao do
humano de homens e mulheres, possibilitado pelo estudo da obra do filsofo hngaro
Gyrgy LUKCS (1981) Per LOntologia dellEssere Sociale, a qual se constitui no
principal aporte terico deste trabalho.LUKCS nasceu em Budapest no dia 13 de abril de 1885 e morreu na
mesma cidade em 04 de junho de 1971. Foi um dos principais filsofos do sculo XX,
com uma trajetria to longa e to acidentada (KONDER, 1980, p. 15) que se torna
impossvel, dado o carter deste estudo, caracteriz-la detalhadamente.
Alguns estudiosos estabelecem seu pensamento em trs grandes fases.30 A
primeira compreenderia os seus primeiros anos de elaborao, quando ainda
30 Outros autores estabelecem duas fases, como OLDRINI (1989): a primeira iria at a
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participava do grupo junto a Weber e Simmel. A segunda fase seria basicamente
caracterizada pela obra Histria e conscincia de classe, de 1923, em que teria
realizado uma interpretao hegeliana do marxismo, como alis o prprio LUKCS
reconhece em Pensiero Vissuto: Autobiografia in forma di dialogo (1983). A terceira
iniciar-se-ia na dcada de 30, quando por ocasio de seu exlio em Moscou teve a
oportunidade de ler osManuscritos Econmico-filosficos de MARX (1993), at ento
inditos,31 encetando a crtica ortodoxia dos conceitos marxistas, relacionada
diretamente com as exigncias concretas que se faziam prementes na Hungria e em
todo o Leste Europeu sob o domnio do stalinismo.
Produziu uma extensa obra sobre a Esttica e, posteriormente, passou apreocupar-se com as questes da tica que, segundo TERTULIAN (1990), j faziam
parte de suas intenes ainda quando escrevia sobre a esttica.32 Todavia, no
concretizou seu desejo, vindo a falecer antes disso. Escreveu, no entanto, uma
introduo de quase duas mil pginas obra que pretendia realizar, publicada
postumamente com o ttulo de Ontologia do Ser social. No contente com a forma
tomada pelos manuscritos, onde os temas so apresentados em captulos, redigiu
Prolegmenos Ontologia do Ser Social, que passou a ser considerada como parte da
obra da Ontologia. Na Ontologia do Ser Social retoma a questo ontolgica
escrevendo captulos sobre neopositivismo e existencialismo, Hartmann, Hegel e
Marx, na primeira parte, e sobre as principais categorias ou os complexos
problemticos mais importantes do ser social: o trabalho, a reproduo social, a
ideologia e o estranhamento, na segunda. Nas palavras de TERTULIAN (1996, f. 1):
Em uma carta datada de 10 de maio de 1960, Georg Lukcs anunciava a seu amigoErnst Fischer, a concluso de A Esttica (efetivamente, a primeira parte de umconjunto que deveria comportar trs) e a sua inteno de comear sem demora aelaborao de A tica.(...) Nos meses que se seguiram a esta carta, meses de intensa
dcada de 20 com seu auge na obraHistria e Conscincia de Classe e a segunda iniciaria no ano de1930, quando, por ocasio de sua ida a Moscou, entra em contato com os Cadernos Filosficos deLENIN e osManuscritos de MARX.
31 OsManuscritos Econmico-filosficos de Marx foram publicados pela primeira vez em1932, em Moscou.
32
TERTULIAN (1996) explica que na realidade Lukcs s concluiu a primeira parte, detrs previstas, da obraEsttica, passando redao do texto que serviria de introduo tica, ou seja,a Ontologia.
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reflexo, ele chega concluso de que A tica devia ser precedida de uma introduo,onde seriam examinados os componentes fundamentais e a estrutura da vida social.
Neste trabalho daremos ateno principalmente ltima obra, incluindo osProlegmenos. Interessa-nos, mais especificamente, a discusso que o autor realiza
acerca do gnero humano e da categoria trabalho como fundante, como medium no
salto da genericidade muda, isto , o gnero orgnico - o ser da natureza - para a
genericidade humana, o gnero humano - o ser social. LUKCS busca explicitar uma
teoria dos nveis do ser. Como assinala TERTULIAN (1996, f. 5), Lukcs se prope a
esboar na sua Ontologia do Ser Social uma teoria dos nveis do ser, da sua
estratificao progressiva (natureza inorgnica, natureza biolgica, ser social), com oobjetivo principal de fixar as categorias constitutivas do ser social na sua
especificidade irredutvel. Com uma viso ontolgica profunda, apresenta o trabalho
como medium do salto do ser orgnico (natural) ao ser social (humano) no processo
de constituio da genericidade especificamente humana.
LUKCS (1981), ao discutir a especificidade do ser social, afirma que
existem trs grandes espcies de ser: o ser inorgnico, o ser orgnico e o ser social.
Chama a ateno para o fato de que no se pode descuidar dos problemas gerais do ser
isto , a conexo e a diversidade entre as grandes espcies de serpara se estar em
condies de compreender, mesmo que aproximativamente, a essncia e a
especificidade do ser social. Sem esta conexo, sem compreender sua dinmica, no
se consegue formular corretamente nenhuma das questes ontolgicas autnticas do
ser social, e menos ainda se consegue conduzi-las depois em direo a uma soluo
que corresponda constituio deste ser. (LUKCS, 1990, p. 4) Nessa dinmica se explicita o processo de formao humana como ser ativo.
Vale dizer: no h um ser humano simplesmente passivo diante dos acontecimentos
histrico-culturais com os quais se articula e se relaciona. Pode-se mesmo afirmar que
inconcebvel um ser humano totalmente passivo, pois a atividade teleolgica
positora33 transforma a realidade, como a base ontolgica de toda prxis humana lhe
constitutiva.
33 Categoria lukacsiana que ser explicitada no captulo III.
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Em linha de raciocnio semelhante, os estudos de LEONTIEV ([198-])
apontam a compreenso do processo de formao do ser humano em sua
especificidade como fundamental para que se possa orientar claramente a ao
pedaggica. LUKCS (1978) afirma que o processo social nele includo a educao
to complexo a ponto de ser impossvel sua total apreenso, mas que, no campo
das possibilidades, pode-se estabelecer uma inter-relao na formao humana, desde
que se realize uma aproximao o mais correta possvel da realidade concreta.
Destacamos esse aspecto por entender que o complexo educativo um
processo eminentemente social, produto das relaes constitutivas do ser humano, uma
de suas especificidades mais significativas. Nesse processo encontra-se o movimentohumano, que estabelece uma relao dialticana mediao orgnico e socialcom o
mundo. Mas importante compreendermos que o movimento constitutivo do ser
humano ao manter sua base orgnica a supera, medida que no se limita a
comportamentos constantes como ocorre com os animais, seno que, em relao aos
seres humanos,
...o essencial consiste em torn-los aptos a reagir adequadamente a eventos e situaesimprevisveis, novas, que se apresentaro mais tarde nas suas vidas. Isto significa duascoisas: em primeiro lugar, que a educao do homem no sentido mais lato emverdade no jamais totalmente concluda. A sua vida, se se d o caso, pode terminarnuma sociedade de carter totalmente distinto, com exigncia que so completamentediversas daquelas para as quais a educao em sentido estrito o havia preparado.(...) Toda sociedade reclama dos prprios membros uma dada massa deconhecimentos, habilidades, comportamentos, etc.; contedo, mtodo, durao etc. daeducao em sentido estrito so conseqncias das necessidades sociais assimsurgidas. (LUKCS, 1981, p. 152-153)
A incompreenso da ontolgica constituio do ser social conduz a um
descolamento e, conseqentemente, a um achatamento do real complexo de formao
e educao de homens e mulheres, do corpo e de seu movimento, interesse particular
dessa tese. O enfoque ontolgico sobre o corpo torna-se, assim, indispensvel, pois
medida que negligenciado, o entendimento da corporalidade de homens e mulheres
padece da mesma deficincia presente em certa compreenso da psicologia histrico-
cultural que, ao no apreender seus fundamentos o