valadares em família: experiências etnográficas e família
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Livro sobre a migração a partir de Governador ValadaresTRANSCRIPT
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Valadares em famlia:
experincias etnogrficas
e deslocamentos
Igor Jos de ren Machado (org.)
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2www.abant.org.br
Universidade de Braslia. campus Universitrio darcy ribeiro - asa norte. prdio multiuso ii (instituto de cincias sociais) trreo - sala Bt-61/8.
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COMISSO DE PROJETO EDITORIAL
Coordenador
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Coordenador da coleo de e-books
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Tesoureira Geral
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Diretor
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Diagramao e produo de e-book
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Revisopaula sayuri Yanagiwara
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3Valadares em famlia:experincias etnogrficas e deslocamentos Igor Jos de ren Machado (org.)
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M1491v
Machado, Igor Jos de RenIgor Jos de Ren Machado (Org.). Valadares em famlia: experincias etnogrficas e deslocamentos; Braslia - DF: ABA, 2014.
1 MB ; pdf
ISBN 978-85-87942-31-9
1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Migrao. 4. Governador Valadares. I. Ttulo.
CDU 304CDD 300
M1491v
Machado, Igor Jos de RenIgor Jos de Ren Machado (Org.). Valadares em famlia: experincias etnogrficas e deslocamentos; Braslia - DF: ABA, 2014.
1 MB ; epub
ISBN 978-85-87942-31-9
1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Migrao. 4. Governador Valadares. I. Ttulo.
CDU 304CDD 300
M1491v
Machado, Igor Jos de RenIgor Jos de Ren Machado (Org.). Valadares em famlia: experincias etnogrficas e deslocamentos; Braslia - DF: ABA, 2014.
2 MB ; mobi
ISBN 978-85-87942-31-9
1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Migrao. 4. Governador Valadares. I. Ttulo.
CDU 304CDD 300
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5sumrioprefcio ................................................................................7
Carmen Rial
apresentao .....................................................................10
Igor Jos de Ren Machado
Breve explicao sobre a migrao em Valadares ............... 14
Igor Jos de Ren Machado, Ellem Saraiva Reis,
Roberta Morais Mazer, Flora Guimares Serra,
Alexandra C. Gomes Almeida, Tassiana Barreto, Fbio Stabelini,
Amanda Fernandes Guerreiro
captulo 1 reordenaes da casa no contexto migratrio de governador Valadares, Brasil ....................... 30
Igor Jos de Ren Machado
captulo 2 interao das fronteiras e o ponto de vista etnogrfico: dinmicas migratrias recentes em governador Valadares ...................................................72
Igor Jos de Ren Machado
captulo 3 a migrao para quem fica: perspectivas das famlias de emigrantes internacionais valadarenses (Brasil) ......................................................... 92
Igor Jos de Ren Machado, Alexandra C. Gomes Almeida,
Ellem Saraiva Reis
captulo 4 os filhos da migrao transnacional ............. 132
Amanda Fernandes Guerreiro, Alexandra C. Gomes Almeida,
Igor Jos de Ren Machado
captulo 5 a sade e a emigrao em Valadares: a viso das instituies e dos emigrantes e familiares ....................................................................... 194
Flora Guimares Serra, Tassiana Barreto,
Roberta Morais Mazer, Igor Jos de Ren Machado
concluso a miopia do parentesco: o ponto de vista nativo e os poderes formais ............................................. 244
Igor Jos de Ren Machado
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7prefcioCarmen Rial
mais um livro sobre migraes? se fosse somente o caso,
j seria muito importante, pois a literatura nas cincias hu-
manas e sociais no Brasil ainda se ressente de livros que deem
conta desse fenmeno que, se no novidade no pas, cresceu
consideravelmente e teve o sentido da mobilidade alterado a
partir dos anos 1980 e por isso carece de mais reflexes.
afinal, a mobilidade (UrrY, 2007; cressWell, 2009), as redes
(castells, 1996), os fluxos (appadUrai, 2000) so bem mais
do que palavras-chave frequentes em artigos de antropolo-
gia: so conceitos centrais para entendermos as condies
do capitalismo global atual. alguns desses conceitos (e seus
autores) enfatizam lugares de trnsito tecnologias virtuais,
estradas (clifford, 2000) , outros, seus pontos de sada e
chegada (sassen, 1991). o livro que igor machado nos apre-
senta se inclui neste segundo caso, abordando mais precisa-
mente uma cidade: Valadares.
Valadares era quase desconhecida dos brasileiros fora
de minas antes dos anos 1980. entrou no mapa mundial por
conta de um motivo bem particular: o grande nmero de seus
habitantes que partiam para os estados-Unidos, geralmente
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8para a regio de Boston, para fazer a amrica, como diziam.
por que Valadares se tornou esse polo exportador de pessoas?
os autores explicam-nos as origens da relao com a am-
rica j nas primeiras pginas, mostrando que a presena
de norte-americanos no interior de minas antiga, embora
desconhecida de muitos. ela poderia parecer inusitada se no
soubssemos que local e global se relacionaram em tramas
que muitas vezes escapam s grandes narrativas nacionais.
por conta da emigrao, Valadares tornou-se a cidade-
-smbolo de um Brasil que estava mudando, deixando de ser
um pas de acolhida para se tornar um pas que tambm en-
viava migrantes ao exterior. eram essas sadas prova de um
fracasso econmico? sim e no. mesmo que a crise econ-
mica estivesse na origem das primeiras emigraes, os tex-
tos a seguir mostram-nos que o fluxo permanece para alm
dessas crises. de fato, as emigraes motivadas pela busca de
melhores condies de trabalho so presenas importantes
no total de migraes, mas esto longe de serem as nicas.
sabe-se que os deslocamentos provocados por catstrofes
naturais ou por conflitos armados superam numericamen-
te os economicamente motivados. e h muitas outras razes
para as migraes, as quais esto presentes tambm em
pases com economias bem-sucedidas, como a alemanha,
que conta com mais de trs milhes de expatriados em 2014.
migraes, deslocamentos, mobilidades so caractersticas
centrais do sistema-mundo atual.
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9as cidades, por seu lado, tornam-se conhecidas, por dife-
rentes razes, as mais comuns ligadas ao seu protagonismo
econmico, poltico ou cultural. Valadares ficou famosa como
lugar de sada de brasileiros inicialmente para os estados
Unidos, mais recentemente, o livro nos mostra, para portugal.
ela foi o laboratrio dos textos a seguir. o livro organizado por
igor machado apresenta-nos como novidade o fato de tra-
tar o fenmeno dessa emigrao particular no s a partir do
ponto de vista dos que saem, mas tambm dos que ficam, e
o faz com foco bem-delineado no parentesco (nas conectivi-
dades/relatedness). Boa leitura.
carmen rial
REfERNCIAS
appadUrai, a. Modernity at large. minneapolis: minnesota University press,
2000.
castells, m. The rise of the network society. oxford: Blackwell, 1996.
clifford, J. Culturas viajantes: o espao da diferena. campinas: papirus,
2000.
cressWell, t. seis temas na produo das mobilidades. in: carmo, r. et al.
A produo das Mobilidades. lisboa: ics, 2009. p. 25-40.
sassen, s. The Global City: new York, london, tokyo. princeton: princeton Uni-
versity press, 1991.
UrrY, J. Mobilities. oxford: polity, 2007.
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apresentaoIgor Jos de Ren Machado
entre 2004 e 2011 coordenei um grande projeto sobre a
emigrao valadarense, voltado especialmente s famlias
que permanecem no Brasil enquanto alguns de seus mem-
bros partem para a aventura migratria. esse projeto, que
contou com financiamentos do cnpq e da fapesp, gerou ini-
ciaes cientficas e dissertaes de mestrado, alm de vrios
artigos publicados em peridicos nacionais e internacionais.
com o encerramento do projeto, consideramos fundamen-
tal a reunio de suas principais concluses neste livro que
apresentamos, pois, entre republicaes de artigos e apre-
sentao de dados inditos, seria importante compartilhar o
panorama do conjunto de questes que nos preocuparam ao
longo desses sete anos.
Valadares foi nosso laboratrio de pesquisa e de forma-
o de pesquisadores, e, como tal, este um livro coletivo. as
pesquisas que geraram os textos, apresentados aqui em cap-
tulos, foram feitas por alunos e jovens pesquisadores, sempre
referenciados como coautores dos trabalhos, os quais muitas
vezes se originaram de relatrios de iniciao cientfica.
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muito j se escreveu sobre a migrao valadarense,1 em v-
rios aspectos, em bibliografia facilmente disponvel. dada a di-
menso conhecida da migrao valadarense em seus aspectos
macrossociolgicos e mesmo etnogrficos, decidimos traba-
lhar sobre uma dimenso menos explorada, focando no pa-
rentesco, nas relaes com portugal, nas crianas e na sa-
de das mulheres. a partir desses temas, esperamos contribuir
com novos dados e reflexes para um fenmeno vastamente
conhecido, mas ainda com muito a ser explorado.
as questes que tomamos giram em torno da pergunta
sobre como aqueles que no partiram vivem a migrao. Vi-
mos que todo o fenmeno migratrio se construiu em torno
de projetos familiares, que aqui investigamos sob a tica do
parentesco, e, como tal, as pessoas que ficam tm tanta im-
portncia como as pessoas que partem. tratamos de projetos
de migrao que so familiares, que pressupem pessoas que
partem e pessoas que ficam, visando uma futura reunio em
melhores condies de vida. nem sempre isso acontece, o
que nos levou a considerar a migrao como um risco pr-
pria famlia. essas relaes entre parentesco e migrao em
Valadares ocupam os primeiros trs captulos.
investigando as famlias em Valadares, procuramos dar
conta de uma movimentao que se dirigia a portugal, que
aparecia, poca da pesquisa, como alternativa aos peri-
1 Ver, por exemplo, os trabalhos de glucia assis, suely siqueira,
Wilson fusco, Valria scudeler, entre muitos outros.
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gos da migrao clandestina para os eUa. o nosso interesse
voltou-se para explicar como o parentesco em Valadares de
alguma forma moldava a produo de diferencialidades (ma-
cHado, 2010) brasileiras imigrantes em portugal. ou seja, a
forma de organizar a vida em portugal s poderia ser enten-
dida a partir de uma reflexo sobre os projetos familiares que
produziram essa movimentao. o terceiro captulo se pre-
ocupa em dar conta dessa relao entre portugal, migrao
valadarense e produo de diferencialidades.2
por fim, no ltimo captulo, apresentamos uma discusso
sobre dois temas muito importantes para aqueles que parti-
cipam dos projetos migratrios e permanecem em Valada-
res: a questo das crianas e a questo da sade. as crianas,
os filhos que se veem longe de um ou dos dois pais, exigem
uma ateno especial da nossa reflexo, por serem uma es-
pcie de ponto de inflexo do projeto migratrio: para eles
constitudo um projeto de melhoria de vida, mas sobre eles
recai grande carga emocional, dada pelos longos perodos de
separao. a questo da sade a outra ponta do problema
2 as diferencialidades so formas alternativas de pensar a produo
de diferenas. evitamos o uso da categoria identidade, que acaba
sempre remetendo a uma imaginao reificada de um grupo social. o
conceito de diferencialidades prope a multiplicidade das experincias
vividas em conjunto como o motor de produo de cdigos e
moralidades em comum, sempre sujeitas aos imponderveis da vida
social. as diferencialidades so emaranhados de experincias, que
acabam sendo autorreferentes, de alguma maneira.
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migratrio, j que tratamos principalmente da sade das mu-
lheres (esposas cujos maridos migraram). constantemente
tida como um problema do ponto de vista das estruturas de
poder local, tentaremos aqui acrescentar o ponto de vista das
famlias sobre esse cenrio.
os textos foram reescritos por mim, a partir de determi-
nadas perspectivas que ficaro claras ao longo do texto. o li-
vro aparece, portanto, como o resultado efetivo de uma troca
entre as experincias de campo e inquietaes dos pesquisa-
dores e as minhas perspectivas como orientador de todas as
pesquisas, olhando para o conjunto dos textos numa posio
privilegiada. apresentamos, assim, um conjunto de descri-
es que pode ajudar a pensar o perodo da emigrao brasi-
leira que vai de meados dos anos 1980 at a primeira dcada
dos anos 2000.
RefeRncias
macHado, i. J. r. reordenaes da casa no contexto migratrio de governador
Valadares, Brasil. Etnogrfica, lisboa, v. 14, p. 5-26, 2010.
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Breve explicao sobre a migrao em ValadaresIgor Jos de Ren Machado, Ellem Saraiva Reis,
Roberta Morais Mazer, Flora Guimares Serra,
Alexandra C. Gomes Almeida, Tassiana Barreto, Fbio Stabelini,
Amanda Fernandes Guerreiro
a cidade mineira de governador Valadares possui aproxi-
madamente 260.396 habitantes.3 localiza-se a 320 km da
capital do estado, Belo Horizonte, na mesorregio do Vale
do rio doce. governador Valadares formada, desde sua
fundao em janeiro de 1938, por pessoas de diversos lugares
do pas e do mundo. essas pessoas foram cidade impulsio-
nadas, principalmente, pela extrao de pedras e minrios
que a regio oferecia. essa extrao atraiu no apenas brasi-
leiros de diversas regies, mas tambm pessoas de diferentes
pases do globo. assim se teceram os primeiros contatos en-
tre valadarenses e gringos.
seu passado de atrao de grandes empresas norte-
-americanas e indstrias extrativistas (florestais e mine-
rais) possibilitou populao valadarense um contato com
o exterior e a circulao de dlares na cidade, dinamizando a
3 fonte: iBge. dados de 2007.
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economia local e, assim, criando um imaginrio social sobre
esse estrangeiro e a terra de origem desse fluxo de pessoas
e dinheiro. nos anos 1940, durante o pice da extrao de
mica, a cidade contava com mais ou menos 25 mil habitan-
tes (assis, 1999).
a cidade esteve, assim, em contato com diversos lugares
do mundo, principalmente com os eUa. seus primeiros habi-
tantes compuseram um todo heterogneo, que ali chegavam
em busca de uma prosperidade impulsionada pela possibi-
lidade de extrao de diversos minrios e pedras preciosas.
segundo o historiador Haruf salmen espindola (1998), muitos
estrangeiros saram de pases como Japo, eUa e alemanha e
vieram para a cidade com o intuito de explorar a mica, minrio
utilizado na indstria blica da poca. com a ii guerra mun-
dial, os alemes e japoneses foram embora uma vez que o
Brasil tambm entrou no conflito e declarou guerra aos dois
pases , mas os norte-americanos ficaram. e continuaram
chegando em maiores nmeros, principalmente com a cons-
truo da estrada de ferro da Vale do rio doce realizada por
uma empresa de Boston, fortalecendo, a cada dia, a relao
entre a cidade e a amrica, como dizem os valadarenses.
em 1940 foi fundado o rotary club pelo engenheiro-chefe
da obra, mr. simpson , e, com isso, deram-se as primeiras
emigraes de valadarenses com destino aos eUa, influencia-
dos pelo programa de intercmbios culturais realizado pela
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instituio.4 assim, sabe-se que as primeiras levas de emi-
grantes foram constitudas por representantes da elite local
e, mais frente, nos anos 1970 e 1980, o fenmeno passou a
atingir a classe mdia, e na dcada de 1990, com o advento
dos coiotes,5 que as classes mais baixas da populao vala-
darense comearam a emigrar.
nos anos 1980 e 1990 acontece o chamado boom migra-
trio, impulsionado pela crise econmica que se iniciou ainda
no fim do regime militar e se radicalizou com o plano collor em
1991. os chamados exilados da crise (assis, 1999) so, em
grande nmero, valadarenses no por acaso: a rede de co-
nexo governador Valadares-estados Unidos comeara a ser
tecida ainda em meados das dcadas de 1940 e 1950. as re-
des que conectam Valadares a outros lugares do mundo se
estabeleceram a princpio entre a cidade e os eUa; no entan-
to, esse boom migratrio de brasileiros (e outros habitantes
de pases perifricos, como mxico, pases do caribe e da fri-
ca, etc.) foi combatido pelo governo norte-americano com o
endurecimento das regras de imigrao os valadarenses,
ento, criaram novas estratgias de emigrao, que vo des-
de o advento das travessias pelo deserto na fronteira entre
4 para mais informaes sobre o incio da migrao valadarense, ver
assis e siqueira (2009).
5 coiotes so profissionais que auxiliam os emigrantes na travessia
entre mxico e eUa. so atravessadores e guias que auxiliam nas
travessias. (macHado; reis, 2007).
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mxico e eUa, facilitadas pelos coiotes, at o desenvolvi-
mento de novas rotas migratrias, que incluem outros pases,
sobretudo portugal (macHado; reis, 2007).
com os primeiros valadarenses j em solo americano, reali-
zando o sonho que se caracterizava como um fazer a amrica,
ou seja, ganhar dlares e, consequentemente, melhorar de vida,
uma espcie de rede de contatos foi-se formando. essas redes,
juntamente com os relatos de sucesso que os familiares dos pri-
meiros imigrantes traziam cidade, auxiliaram na ida de outros
valadarenses, marcando o que assis (1999) identificou como o
terceiro e definitivo contato e estabelecimento de laos entre
Valadares e eUa. as redes sociais de valadarenses no exterior os
fortaleciam frente sociedade americana e transmitiam aos
futuros imigrantes mais segurana e conforto. finalmente, em
meados dos anos 1980, a cidade ficou conhecida como o polo
brasileiro exportador de mo de obra. em propores maiores, o
Brasil tambm passava da condio de receptor de mo de obra
para se tornar um pas de emigrao (feldman-Bianco, 2001).
destinos
emigrar um verbo comum aos valadarenses, seja qual
das condies pontuadas por Weber soares6 a experin-
6 Weber soares (1999) pontua quatro condies definidas pelos
prprios emigrantes valadarenses. so elas: definitivos, pendulares
(que vivem em contnuo deslocamento Valadares-eUa, sempre
indo e vindo), temporrios e retornados.
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cia migratria assuma. um acontecimento que permeia toda
a sociedade valadarense. ao longo de sua histria e das inmeras
emigraes, sobretudo para os eUa, a migrao tornou-se mais
que uma possibilidade de sucesso financeiro; tornou-se
um mito que povoa seu imaginrio popular. assis (1999) re-
toma uma afirmao jocosa que foi comum ouvir durante
o trabalho de campo: todo valadarense tem duas bicicletas e
um amigo ou parente nos eUa, discorrendo sobre a realidade
da cidade, que plana, e tem uma ampla rede de ciclovias e
15% de sua populao fora do pas. alm disso, as pessoas
referem-se aos eUa, ou ainda portugal, como l: fulano foi
para l, por exemplo.
no entanto, devido s dificuldades atuais de imigraes
em solo estadunidense as polticas migratrias desse pas e
o controle da fronteira mxico-estados Unidos , novos luga-
res tambm se transformaram em destinos para essas pes-
soas. assim, na busca por maiores facilidades de imigrao
e por melhores oportunidades de vida, portugal passou a ser
visto tambm como um local atrativo mo de obra valada-
rense, pelos reduzidos custos da viagem, pela facilidade da
lngua e pela no necessidade de visto.
e, embora haja relatos de valadarenses na inglaterra, na su-
a, na espanha e em outros pases, deve-se observar que esse
imaginrio popular no mitifica apenas o ato de emigrar, mas,
principalmente, os eUa em si pas que inaugura a tradio
emigratria valadarense. esse fato bem exemplificado pela
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19
fala de r., uma de nossas entrevistadas:7 ela foi para portugal
simplesmente por questes logsticas, sua vontade era ir para
os eUa, e o que a impulsionou a emigrar no foram questes
puramente econmicas:
assim... eu queria ir para os estados Unidos. a minha vontade era ir para os estados Unidos mesmo. s que o pes-soal [seus familiares] falou que era melhor eu ir para Portugal porque se eu no me desse bem eu voltaria mais rpido. [...] eu fui, para ser bem sincera com voc, porque eu estava com vontade, assim, de sair um pouco do Brasil. Ir ver l fora como que era. [...] Todo mundo aqui vai, a pensei, eu tambm vou! [...] eu fui l mesmo porque eu queria ir (relato de r.).
esse mito se reproduz em Valadares atravs de diversos
relatos, quase dirios, que se tm sobre os conterrneos que
esto no exterior; a todo momento se ouvem histrias de su-
cesso e fracasso em experincias migratrias. sobre isso, assis
afirma que discursos sobre a prosperidade da vida na amrica
que perfazem toda a histria da cidade serviram como mola
propulsora do avano das emigraes de valadarenses:
esses relatos so significativos para evidenciar a constru-o de um imaginrio que naturaliza a presena americana em Valadares, da mesma forma que recria certo mito da iden-tidade valadarense internacionalizada. a presena americana na cidade, portanto, embora temporria, deixa na lembrana
7 ao longo de sete anos de pesquisas, coletamos mais de 100 entre-
vistas, que sero referidas sempre de forma a preservar o entrevis-
tado ou entrevistada. no especificaremos idade, data da entrevista
nem qualquer informao que possa identificar o entrevistado.
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dos moradores a ideia de modernidade, de progresso (assIs, 1999, p. 129).
a viso dos eUa como terra de oportunidades, como o me-
lhor lugar para se viver bem financeiramente e com direitos
garantidos, mostrava-se constantemente durante os traba-
lhos de campo, sobretudo nas falas de pessoas mais antigas
da cidade, que emigraram ainda nos anos 1980 e que viveram
o pice desse fenmeno. Quando conversamos com uma se-
nhora que mora nos eUa h 20 anos, percebemos muito bem
isso: ela sempre ressaltava a possibilidade de adquirir o carro
do ano e as caractersticas imponentes das casas de seus
filhos (diversos quartos, salas de jogos, etc.).
a amrica foi, ento, idealizada como um local de pro-
gresso e modernidade (assis, 1999) dessa forma, quando, na
dcada de 1980, ocorreu a estagnao econmica brasilei-
ra, e a regio tornou-se, nas palavras de Weber soares, um
dos bolses evidentes de pobreza e tenso social (soares,
1999, p. 169), grande parte de sua populao passou a ver na
emigrao uma forma de obter recursos financeiros para a
sada da situao brasileira de misria.
a partir desse contexto que governador Valadares se
torna o polo brasileiro exportador de mo de obra. assim,
durante esses quase 30 anos, diversas pessoas deixaram suas
famlias em solo brasileiro, aventurando-se em terras es-
trangeiras em busca de recursos financeiros para o sustento
familiar. muitos, aps conseguirem tais recursos, retornaram
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ao Brasil e, aqui, construram casas, adquiriram bens e in-
centivaram, com seu sucesso, outras pessoas a tambm mi-
grarem; outros nunca mais retornaram, mas suas histrias,
tambm de sucesso, chegaram cidade mineira e contribu-
ram para fortalecer a ideia de prosperidade da imigrao nos
estados Unidos. muitos, porm, no tiveram a mesma sorte,
como veremos neste livro.
como demonstra reis (2006), o mito inicial de pro-
gresso, modernidade e facilidade no estrangeiro o que
impulsionava as emigraes, por criar um imaginrio popu-
lar que as estimulam atravs de histrias sobre emigrantes
bem-sucedidos, ou seja, com sucesso financeiro. no entan-
to, atravs dos estudos j produzidos, podemos afirmar que a
experincia prtica atual dos emigrantes demonstra que
estes passaram por grandes dificuldades no exterior, como
precariedade do trabalho, ilegalidade, solido, e poucos re-
tornaram bem de vida.
antes da crise econmica mundial de 2008, mesmo com
os relatos frequentes de fracasso, a populao continuava
a emigrar, submetendo-se a diversos perigos como na
passagem da fronteira do mxico com os estados Unidos,
onde no h nenhuma garantia de segurana ou ainda
possibilidade de perder o dinheiro investido, em caso de
ser preso pela sua situao irregular. a populao valada-
rense continuava se expondo a tais incertezas e se privando
da convivncia com sua famlia e amigos para melhorar de
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vida. aps a crise, nossas pesquisas indicaram uma dimi-
nuio gradual da migrao e um aumento tambm gradual
do retorno, evidenciando uma reverso do fluxo migratrio
em Valadares. pessoas continuavam a partir para o exterior,
mas agora o nmero parece ser bem menor.8
a recente crise econmica mundial que pudemos obser-
var causou mudanas na cidade mineira, e no apenas nela.
no primeiro trimestre de 2009, o volume de dinheiro enviado
dos trabalhadores no exterior teve a maior queda da histria:
31,5% em relao ao primeiro trimestre de 2008.9 logo no
primeiro trimestre de 2008, cerca de 3 mil pessoas voltaram
do exterior10 para Valadares. em pesquisa em julho de 2009,
muitas pessoas comentaram que como a crise est muito
ruim, ir para l no est compensando... e que agora com
essa crise est difcil conseguir emprego, mas continuavam
a deixar o pas como sempre fizeram.
8 devido ao carter essencialmente qualitativo de nossas pesqui-
sas, falamos aqui apenas de impresses, a serem corroboradas
ainda por pesquisas de cunho quantitativo. para outras informa-
es sobre o retorno, ver siqueira, assis e dias (2010).
9 informaes obtidas em: . acesso em: 22 maio
2009.
10 informaes obtidas em: . acesso em:
13 fev. 2009.
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23
cotidiano
apesar de as crises nacionais terem impulsionado o pro-
cesso emigratrio, na cidade de governador Valadares esse
um processo que se estendeu para alm delas. a emigra-
o continuava sendo vista como uma chance de se ganhar
dinheiro e ascender socialmente, uma chance de procurar
futuro, como disse uma das entrevistadas.
com isso, podemos perceber que o projeto de emigrar um
projeto familiar: ele envolve aquele que parte para um outro
pas em busca de um projeto, mas tambm envolve aqueles
que ficam para trs cuidando da famlia e da possvel admi-
nistrao dos bens e do dinheiro enviados. a maior parte da-
queles que partem o faz com o objetivo de comprar uma casa
independente do restante da famlia, carro, moto ou, ainda,
abrir um negcio. alguns ou todos esses objetivos podem ser
atingidos ou se mostram como um motivo para que as pessoas
emigrem mais de uma vez, por no saberem administrar o di-
nheiro ou por serem lesados por algum; outras vezes esses
objetivos sofrem mudanas pelo prprio processo migratrio,
e, em alguns desses casos, a famlia passa a morar no exterior.
se h, de fato, uma realidade transnacional que construda
diariamente pelos transmigrantes, ela est muito bem exempli-
ficada em governador Valadares: em todos os lugares, no centro,
nos bairros, nos restaurantes, possvel encontrar seus indcios.
as experincias migratrias valadarenses so, em sua grande
-
24
maioria, de carter no documentado,11 e, talvez por isso, essa
condio j dada a priori pelos entrevistados: ningum diz que
foi ilegalmente, pois essa informao j est subentendida.
no caso de governador Valadares, as famlias da cidade se
conectam e tecem suas reestruturaes atravs dos pases
de destino dos emigrantes (portugal e eUa, em sua maioria):
em grande parte dos casos, o pai quem se ausenta do lcus
das relaes familiares que compreende a casa; em outros,
so ambos os pais que partem para o exterior, podendo os
filhos ficar com os avs (na maioria das vezes), tios, amigos
dos pais e at, em poucos casos, terceiros contratados para
cuid-los, ou ficam sozinhos, quando j tm idade para isso;
por fim, existem os casos em que somente a me parte, e
os filhos ficam morando com o pai, que conta com a ajuda
de suas mes ou at de babs para ajud-los na criao dos
filhos.12 essas reestruturaes familiares so recorrentes e
11 as pessoas saem de Valadares, vo at o mxico, de onde atra-
vessam a fronteira pelo deserto, ajudadas por atravessadores, os
conhecidos coiotes; quando chegam aos eUa, passam anos em
situao irregular, so os chamados imigrantes indocumentados.
12 evidentemente, h solteiros e casais sem filhos que emigram. no
caso dos primeiros, muitos o fazem para conseguir recursos para o
casamento; no caso dos segundos, a migrao um esforo con-
junto para minimizar o tempo no exterior, a fim de constituir a fa-
mlia (e ter filhos) no Brasil. os migrantes solteiros so os mais su-
jeitos a se desligarem das redes valadarenses, o que acontece com
frequncia, mas tambm comum que procurem seus parceiros
amorosos na cidade de Valadares ou entre valadarenses no exterior.
-
25
vistas como um lugar comum nas experincias migratrias
da populao valadarense, salvo em casos em que os filhos
ficam com babs ou sozinhos o que raro e muito malvisto
pela populao local, pois, segundo diversos informantes, tal
fato facilitaria o desvio desses filhos, que podem adentrar o
mundo das drogas e da prostituio. H, ainda, jovens que
emigram para encontrar seus parentes ou amigos no exterior.
talvez haja um consenso geral na cidade de que a emi-
grao do pai (o chefe da famlia nuclear) acontece para o
bem comum da famlia, pois garante ascenso financeira,
compra da casa prpria, abertura de um negcio qualquer e
outros bens diversos, sendo a busca pela casa prpria algo
visto como uma justificativa legtima e bastante evocada nas
histrias das emigraes valadarenses. neste contexto, para
machado (2010), a posse da casa viabiliza a centralizao das
relaes da famlia e uma independncia frente s famlias de
outrem (pais, sogros, tios, etc.); assim, mesmo que a deciso
de emigrar force os migrantes a abdicar do convvio presen-
cial, cossubstancial, da famlia por um tempo determinado,
tambm possibilita a aquisio da casa e a posterior reunio
familiar. esses migrantes aceitam os riscos de toda reestru-
turao da famlia, ocasionada pela ausncia de familiares
especficos e inseridos no nus dessa empreitada, apoiados
no objetivo legtimo de consolidar sua casa.
H na cidade uma estrutura social que facilita a emigrao
atravs de obteno de recursos financeiros, vistos falsos,
-
26
locomoo, entre outros. alm dessa facilidade econmica,
h tambm recursos sociais que permitem a mobilidade de
um pas para o outro, como a existncia de parentes e/ou
amigos, nesses pases, que se dispem a receber os novatos
e ajud-los assim que chegarem. em geral, antes de sarem
do Brasil, os emigrantes j possuem a garantia de um lu-
gar para se estabelecer mesmo que temporariamente e
contatos para conseguir emprego.
em uma entrevista com er., que viveu por quatro anos
nos eUa, foi relatado que s foi possvel sua emigrao atra-
vs de um emprstimo conseguido com um vizinho e pela
existncia de um irmo que j vivia l por dois anos, o que
garantiu uma estabilidade assim que ela chegou no pas es-
tranho.
eu j queria ir antes mesmo do meu irmo, mas na poca no tive como. a, quando deu mesmo para ir, estava com muita vontade e pude contar com ele, sabe? encontramo-nos e ele me ajudou muito, mas no fiquei muito tempo para-da, logo me arranjei. Quem quer trabalhar consegue! Por um tempo fiquei com dois, trs trabalhos de uma vez, um de dia, outro noite, e outro nos dias de folga. Fazia assim para es-quecer as saudades da minha menina (relato de er).
a migrao tem uma importncia econmica latente na
cidade, que pode ser organizada em dois pontos principais:
(a) com recursos atravs das remessas de dinheiro e o in-
vestimento do montante na cidade e (b) pela circulao de
dinheiro atravs de estruturas legais e ilegais que permitem
-
27
a migrao. essa estrutura social que facilita a migrao per-
meia toda a cidade e cotidiana; h grupos sociais que sobre-
vivem atravs dessas atividades. essa importncia econmi-
ca evidencia-se no discurso oficial que reconhece os custos
sociais da emigrao, os quais discutiremos melhor mais
adiante, e ainda assim cria polticas pblicas para melhor
usufruto das condies materiais propiciadas pela emigrao.
importante destacar que a emigrao que ocorre atual-
mente na cidade realizada por pessoas das camadas popu-
lares de governador Valadares, ou seja, pertencentes classe
mdia baixa e classe baixa. alm disso, apesar de poder ser
considerada um ato pessoal, a emigrao no caso estudado
deve ser entendida como um projeto no individual, que en-
volve no s aquele que emigra, mas tambm outras pessoas
prximas principalmente familiares , um projeto que a bi-
bliografia especializada intitula como familiar.
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-
30
captulo 1 reordenaes da
casa no contexto migratrio de
governador Valadares, Brasil13
Igor Jos de Ren Machado
recentemente, Janet carsten (2004) resumiu os ca-
minhos alternativos para a reflexo sobre o parentesco,
construdos aps a crtica feroz de schneider (1984). con-
siderando as perspectivas reunidas por carsten, este cap-
tulo procura explorar esses caminhos alternativos em torno
da noo de relatedness,14 termo escolhido para substituir
parentesco, e sua relao com contextos migratrios.
schneider criticou duramente os estudos de parentesco,
por serem etnocntricos e baseados em noes ocidentais
de consanguinidade, talvez impossveis de serem transpos-
tas para outras sociedades. carsten demonstra o impacto
13 Uma verso inicial e simplificada deste texto foi apresentada na
25 reunio da aBa (associao Brasileira de antropologia), em
goinia, no ano de 2006, sendo posteriormente publicado como
machado (2010).
14 fonseca (2007) traduz o termo por conectividades. manterei
aqui o termo original.
-
31
da crtica e como a noo de relatedness foi desenvolvida
para dar conta de universos de prtica e significao simila-
res aos que na nossa sociedade chamamos de parentesco.
essa noo foi inspirada nos trabalhos de m. strathern e tem
como alvo das investidas tericas a produo de relaes
entre pessoas. a avenida aberta por esses trabalhos leva a
uma mo dupla inesperada: encontramos em sociedades
ocidentais15 universos de relatedness relacionveis aos de
sociedades no ocidentais, que acabam por expandir a nos-
sa prpria noo de parentesco. assim que a autora lida
com o caso de filhos adotados e a relao com as famlias
consanguneas, por exemplo.
o universo que pretendo explorar nesse contexto o das
migraes transnacionais, justamente por forar uma re-
ordenao das noes nativas de parentesco/relatedness,
incluindo perspectivas mais amplas. o processo migratrio
constitui tipos peculiares de famlia,16 muitas delas divididas
entre espaos amplos, entre estatutos de legalidade e ilegali-
dade, entre saudades e preconceitos. assim, analiso algumas
15 ocidente uma categoria usada pela autora, assim como eu-
ro-americano uma categoria usada por strathern. ambas so
amplamente vagas e questionveis. elas parecem se referir eu-
ropa (menos a do sul) e aos eUa. sempre resta a dvida, de um
ponto de vista sul-americano, se os pases da europa do sul e suas
ex-colnias fazem ou no parte desse macrocontexto.
16 a noo de famlia usada no sentido nativo, que veremos incluir
tanto um modelo ideal como um modelo transitrio.
-
32
novas formas de relao e de construo de projetos fami-
liares num contexto de contnua ausncia fsica. o emigrante
parte e deixa, em geral, famlias que dependero, em alguma
medida, do seu trabalho. como se estrutura a continuidade
da relao, as formas de expressar os sentimentos, as conse-
quncias da ausncia prolongada de um familiar, os proces-
sos sociais disparados pela existncia de famlias constante-
mente incompletas? estas so algumas das questes que
interessam analisar nesse contexto migratrio.
partindo do pressuposto de que as pessoas remodelam
suas formas de relao, que os sentimentos so intensos,
que os projetos de imigrao envolvem o desejo contradi-
trio de consolidao de ncleos familiares, pretendemos
investigar os novos padres de relatedness construdos no
contexto migratrio. o lugar escolhido para tal empreen-
dimento a regio brasileira de governador Valadares, re-
conhecido centro de emigrao internacional. Valadares,
cidade situada no leste do estado de minas gerais, o prin-
cipal polo de emigrao internacional no Brasil. a cidade
mais importante do leste e nordeste de minas gerais e ba-
nhada pelo rio doce, situando-se a 324 km da capital do
estado, Belo Horizonte. desde meados do sculo passado,
teve incio uma lenta montagem de redes migratrias que,
na dcada de 1980, transformaram a cidade no mais intenso
corredor de sada do pas. as redes eram e so direciona-
das principalmente aos eUa, embora os destinos tenham se
-
33
diversificado ao longo da dcada de 1990. H vasta litera-
tura sobre Valadares. Ver, entre outros, assis (1999), soares
(1999), fusco (2001) e machado e reis (2007).
figura 1 - localizao do municpio de governador Valadares.17
a escolha no aleatria e segue de interesses anterio-
res de pesquisa: desde 2004 venho desenvolvendo e coor-
denando pesquisas sobre a migrao de valadarenses para
portugal, e, nesse contexto, temos nos deparado com formas
alternativas de vida familiar e de relatedness. interessa en-
17 imagem feita por raphael lorenzeto de abreu, disponvel na
Wikipedia em: .
acesso em: 05 set. 2014.
-
34
tender como se reconstroem as relaes durante a ausncia
dos migrantes atravs de trs eixos fundamentais: 1) o projeto
de produo da Casa, o envio de remessas e a constituio de
outras formas de cossubstancialidade; 2) o cuidado com os
filhos que permanecem no Brasil e a circulao de crianas
no espao transnacional; e, por fim, 3) a relao com as/os
companheiras/os permeada pela distncia.
soBre famlia e migrao
os estudos de migrao internacional sempre lidaram
com a questo da organizao da famlia migrante. mas o fi-
zeram seguindo as suas duas linhas gerais de anlise. nos es-
tudos focados no processo de assimilao, a famlia migrante
era uma organizao fadada a assumir as feies das famlias
dos pases para onde se migrou, e isso em questo de poucas
geraes (ver, por exemplo, park (1922); para uma anlise da
escola de chicago, ver Valladares (2005)). J os estudos foca-
dos na manuteno das fronteiras tnicas indicavam a per-
sistncia da famlia migrante como possibilidade, embora no
estivessem de fato preocupados com os contedos da dife-
rena. o foco esteve sempre na existncia contnua de gru-
pos tnicos independentemente de como estes constituam
suas prticas culturais (glaZer; moYniHan, 1963). ou como
artefato em extino ou como dado sem muita importncia
para a manuteno dos grupos tnicos, as distintas formas de
organizao das famlias migrantes ficaram fora de evidncia.
-
35
os estudos transnacionais (glicK-scHiller; BascH;
Blanc-sZanton, 1992) trouxeram a necessidade de se pen-
sar a famlia como um dos elementos estruturantes da trans-
nacionalidade. como perceberam as autoras (glicK-scHil-
ler; BascH; Blanc-sZanton, 1995), a globalizao altera a
dinmica entre espao e tempo, devido aos avanos tecnol-
gicos em meios de transporte e nas comunicaes. isso afe-
tou a experincia da migrao, pois muitos migrantes, longe
de se incorporarem sociedade receptora escolhida, criavam
laos extensos, no apenas com algumas instncias da socie-
dade para a qual migraram, como tambm com a sociedade
de origem, nos fazendo pensar, portanto, em transmigran-
tes: transmigrantes so migrantes cujas vidas cotidianas
dependem de mltiplas e constantes interconexes que cru-
zam fronteiras internacionais e cujas identidades pblicas so
configuradas em relacionamento com mais de um estado-
-nao (glicK-scHiller; BascH; Blanc-sZanton, 1995,
p. 48)18 ou seja, criam vnculos culturais, sociais, polticos e
at mesmo econmicos tanto com a nao receptora quanto
com a nao de origem.
apesar de o transnacionalismo primar pela anlise das
implicaes sociais, polticas e culturais dos movimentos mi-
gratrios e do surgimento de inmeros choques culturais,
essa perspectiva ampla das migraes ainda no seria capaz,
18 traduo livre do original em ingls. o mesmo vlido para as
demais referncias em ingls citadas aqui em portugus.
-
36
na viso de vrios autores, de dar conta da famlia transna-
cional, grupos familiares distendidos em vrios pontos do
globo e que no necessariamente perdem os vnculos fami-
liares quando colocados em novos contextos sociais. so as
famlias que organizam, planejam e executam o fluxo entre
dois ou mais lugares. porm, mesmo esses estudos no en-
caram a produo da famlia de um ponto de vista antropol-
gico, mas como uma espcie de dado natural.
para Bryceson e Vuorela (2002) as famlias transnacionais
so definidas como famlias cujos membros vivem em parte
ou na maior parte do tempo separados uns dos outros, po-
rm mantidos juntos por criarem algum tipo de sentimento
de bem-estar coletivo e unidade, mesmo quando atravessam
fronteiras nacionais (BrYceson; VUorela, 2002, p. 3), pos-
suindo a capacidade de elaborar e reelaborar vrios sensos de
identificao que no so inteiramente apreendidas nos estu-
dos transnacionais ou de migrao tpicos. se no ocidente a
ideia de famlia pode estar atrelada casa, ao ambiente familiar
(BrYceson; VUorela, 2002, p. 28), ou seja, o viver em fam-
lia cotidianamente, como entender o sentimento de unidade
dessas famlias cujos membros so, em boa parte do tempo,
ausentes, famlias em que os pais, filhos ou outros parentes
migram para garantir a renda familiar em outro pas?
percebe-se, portanto, a necessidade de nos voltarmos
para estudos das micropolticas e prticas sociais (YeoH;
HUang; lam, 2005, p. 307), agora no mbito da casa e da
-
37
famlia, para compreender os processos de reproduo social
que, embora influenciados pelos processos macrossociolgi-
cos, polticos e econmicos da globalizao, no so total-
mente perceptveis no que concerne organizao familiar
e sua vida cotidiana. desse modo, possvel identificar uma
morfologia social19 e sua reproduo dentro do transnacio-
nalismo atravs da famlia transnacional at ento no per-
cebidas. morfologia, porm, mutvel e que pode adquirir as
mais variadas formas de acordo com outras variveis, como o
envio de remessas, estratgias especficas, etc.
como apontam chamberlain e leydesdorff (2004, p. 228),
os migrantes [...] so feitos por suas memrias do seu local de
nascimento, sua terra natal, aqueles deixados para trs inter-
rupes em suas narrativas de vida que requerem ressequen-
ciamento, remodelagem e reinterpretao, na medida em que
encaram o processo migratrio. Vemos, dessa forma, o esfor-
o de criao e recriao de subjetividades especficas desses
transmigrantes relacionadas ao seu deslocamento entre fron-
teiras nacionais que criam sentimentos de pertencimento e de
unidade da famlia transnacional. como percebem Yeoh, Hang
e lam (2005), Bryceson e Vuorela (2002) e Baldassar (2007),
esses processos hoje so muito influenciados pelas novas tec-
nologias de comunicao e transportes, que permitem famlia
transnacional estar interligada graas internet, aos e-mails,
19 o termo usado pelos autores.
-
38
telefonemas, faxes, visitas peridicas aos parentes em reunies
familiares, mecanismos que de acordo com Baldassar (2007, p.
400) permitem o contato e o suporte emocional entre mem-
bros distantes, garantindo assim o fazer famlia mesmo dentro
desses fluxos migratrios transnacionais.
como observa canales (2005), o envio de remessas est
fortemente atrelado aos fluxos migratrios: as pessoas migram
e reorganizam as suas vidas e famlias muitas vezes com base
na busca de melhores condies econmico-financeiras, so-
ciais e polticas, deixando para trs vrios membros familiares
e muitas vezes mantendo o seu vnculo com a famlia agora
transnacional atravs do envio de remessas. o vnculo que
mantm essas pessoas unidas em uma famlia e comunidade
transnacional se d, alm das questes econmicas, por uma
srie de smbolos culturais que so trocados no contato entre
as duas naes, voltados prpria reproduo familiar, como
os valores de reciprocidade, solidariedade e responsabilida-
de desses membros que partem para outro pas sem se des-
prenderem da famlia, enviando remessas nessa confluncia
de ordem econmica e simblica: com o envio de remessas
no apenas dinheiro e mercadorias circulam como tambm se
permite a reproduo de relaes culturais, identidades sim-
blicas e coletivas (canales, 2005, p. 21).
proponho aqui uma anlise da famlia imigrante trans-
nacional a partir das atuais discusses sobre relatedness,
ou seja, a partir da ideia de que a produo das relaes e
-
39
noes de pertencimento so complexas, dinmicas e distin-
tas. pretende-se um olhar sobre a produo do parentesco
como uma prtica nativa qualquer, buscando o ponto de
vista dos sujeitos na prpria montagem que fazem de suas
relaes e no a partir de modelos preestabelecidos.20
o parentesco e a CASA HoJe
Janet carsten (2004, p. 7) afirma que alguns fenmenos
da vida moderna, como os tratamentos de fertilidade, os tes-
tes genticos, concepo pstuma, clonagem, o mapeamen-
to do genoma humano, carregam consigo a possibilidade de
colocar em xeque alguns pressupostos fundamentais sobre a
construo das famlias no ocidente. esses fenmenos co-
locam em questo o mundo privado das famlias, evidencian-
do as relaes com o estado, o aparato legislativo, os projetos
de nao e levantam questes sobre a construo da pessoa,
gnero e substncias corporais.
esses questionamentos levam a reflexes sobre a natureza
do parentesco. a tradicional distino entre o que natural e
o que cultural no parentesco est em risco, e esses fenme-
nos tendem a embaralhar as percepes tradicionais. nesse
ambiente, nossas concepes mais familiares de parentesco
esto mudando, pois prticas antes no investigadas como
20 parte da discusso apresentada nesta sesso foi retirada de ma-
chado, silva e Kebbe (2008).
-
40
parte dos estudos tradicionais do parentesco comearam a
ser analisadas com ateno. Uma nova preocupao com a
experincia cotidiana levou a um novo projeto para os es-
tudos de parentesco, agora vistos como referentes a uma
rea da vida na qual as pessoas investem suas emoes, sua
energia criativa e suas novas imaginaes. essa perspectiva
ope-se viso tradicional dos estudos de parentesco que
indicam que este tem um papel menor na organizao social
ocidental. Vrias so as dimenses para esses novos estudos
de parentesco: a casa, gnero, personalidade, substncia e
tcnicas reprodutivas.
no que tange a este captulo, o estudo da Casa como
elemento central na constituio das relaes de parentes-
co e o estudo das consideraes locais sobre o que produz
a cossubstancialidade dos parentes so fundamentais, pois
esses fenmenos se entrelaam com os projetos migratrios
de formas inesperadas: as pessoas imigram para construir
suas casas e constituir novas centralidades nas suas rela-
es; estando longe, o que produz a cossubstancialidade no
mais a convivncia e o sangue, mas o envio de remessas.
perceberemos que um tipo de organizao da vida familiar
em estado de migrao mais flexvel do que aquela que se
vive normalmente em Valadares, bastante centrada na con-
vivncia e sangue. de certa forma, essa organizao flexvel
vista como uma forma permissvel enquanto se d a migrao
e como uma forma de se chegar, aps a migrao, quela vida
-
41
que se v como mais correta. assim, temos novas perspec-
tivas de anlise no cruzamento das migraes internacionais
e as novas possibilidades da teoria do parentesco.
em 1984, lvi-strauss promovia uma reflexo sobre as
sociedades de casa (socit a maison), indicando parale-
los entre a valorizao do cognatismo em seu interior, uma
desvalorizao do idioma do parentesco e um fortaleci-
mento das esferas polticas e econmicas. a casa aparece
como uma pessoa moral, no seio da qual se desenvolvem os
principais aspectos da vida social. autores contemporneos,
como a mesma carsten (carsten; HUgH-Jones, 1995),
tm caminhado para uma ampliao das ideias de lvi-
-strauss, levando essas consideraes para uma revigora-
o dos estudos de parentesco. no que se refere a essa au-
tora, vemos que o interesse recai no sobre a ideia da casa
como uma pessoa moral (ideia da qual ela se afasta), mas
sobre a casa como um universo de construo das relaes
mais fundamentais da vida de pessoas ao redor do globo.
apoiada nos trabalhos de strathern, que enfatizam como
sujeitos so frutos de relaes que constroem e descons-
troem ao longo da vida, carsten elabora anlises sobre as
relaes que se constroem no interior da casa, preocupada
basicamente com a noo complexa de substncia. segun-
do a autora, a comensalidade se relacionaria cossubstan-
cialidade, estimulando relaes variadas (desde proibies
de incesto at regras de etiqueta).
-
42
ao reelaborar uma anlise sobre a Casa, carsten recorre
a noes como corpo, pessoa, gnero, substncia e paren-
tesco. analisar essas dimenses do vivido na Casa obser-
var outras relaes de parentesco, que no so consan-
guneas, mas so construdas atravs da moradia em co-
mum. Habitar com outros insere os sujeitos em sistemas de
trocas que relacionam e/ou criam parentes. para a autora,
adotar essa perspectiva sobre a Casa permite escapar s
formas para lidar com substncias, permitindo uma postura
processual. assim, podemos perceber, em diferentes con-
textos etnogrficos, o modo como o parentesco feito em
oposio a um parentesco dado. a casa aparece como a
produtora do parentesco, visto como conjunto de relaes,
livres do imprio do cdigo versus o imprio da nature-
za, na concepo de schneider (1968).21 como afirmei no
comeo do texto, importa aqui trazer algumas dessas re-
flexes para dentro da sociedade onde a regra da natureza
(a hereditariedade, a inevitabilidade dos laos sanguneos,
etc.) supostamente impera.
21 note-se que essa perspectiva de carsten muito influenciada pela
crtica de schneider, de 1984, em livro que ele pouco cita lvi-
-strauss. e quando cita para trat-lo como um funcionalista,
em consonncia a crticas que ele conduzira em 1974, junto com
James Boon (scHneider; Boon, 1974). autores mais cuidadosos
com o trabalho de lvi-strauss poderiam argumentar que a teoria
da aliana s pode ser sobre a fabricao do parentesco, em oposi-
o ao parentesco como um dado a priori.
-
43
a perspectiva desenvolvida por carsten sobre a casa ob-
viamente devedora da discusso corrente sobre famlia no me-
diterrneo, desenvolvida pela antropologia europeia desde os
anos 1960. o captulo que se refere especificamente ao tema,
no livro de 2004 da autora, por exemplo, parte principalmente
da etnografia de pina-cabral (1986). nesse sentido, percebe-
-se a pertinncia do tema ao tratar da emigrao valadarense,
onde, no fim das contas, estamos em um terreno de influncia
portuguesa. assim, as discusses sobre a composio e fun-
cionamento da famlia no alto minho ou no porto, desenvolvi-
das pelo autor (pina-caBral, 1991), so amplamente compa-
rveis s relaes que descreverei mais adiante.
o tema da casa tambm tem sido elaborado de forma sis-
temtica em etnografias desenvolvidas no Brasil, como as de
Viegas (2007), entre os tupinamb do sul da Bahia, ou marcelin
(1999), sobre os negros do recncavo baiano. curiosamente,
o tema da casa mais explorado no terreno das alteridades
tnicas (como populaes indgenas e negras) do que nas al-
teridades de classe. os estudos brasileiros clssicos sobre as
classes trabalhadoras/grupos populares de luiz fernando dias
duarte (1986), cynthia sarti (1996), cludia fonseca (2004),
simoni guedes e michelle lima (2006), por exemplo, no lidam
com essa perspectiva. o mesmo se pode dizer dos estudos de
gilberto Velho (1986, 2001) sobre as famlias de classe mdia.
se o parentesco nas sociedades ocidentais era pensado
como marcado por uma forte separao entre a ordem da natu-
reza e a ordem da lei, o parentesco no ocidental foi geralmen-
te considerado, em contraste, como uma mistura da natureza
-
44
e cultura ou como uma transformao de um em outro. estu-
dos como os de strathern (1992), Weismantel (1995) e carsten
(2004) indicam que em contextos ocidentais essas distines
no so to claras. claramente o caso das migraes interna-
cionais, em que os processos de produo da Casa e de cossubs-
tancialidade esto deslocados do eixo natureza, indicando novas
e promissoras anlises sobre a constituio desses fenmenos.
a CASA em Valadares
passemos agora analise dos dados, primeiramente tra-
tando da importncia, relevncia e necessidade imperiosa da
Casa (prpria) entre as famlias transnacionais de governador
Valadares.22 tentarei demonstrar, atravs do relato recorren-
te, como a Casa um valor moral, mais que um desejo mate-
rial. no decorrer do captulo tecerei interpretaes sobre esse
valor, com base nos dados.
***
22 os dados referem-se a dois trabalhos de campos: o primeiro rea-
lizado em julho de 2005, por ellem saraiva reis e lara rezende, e
o segundo realizado em fevereiro de 2006, por ellem saraiva reis
e alexandra c. gomes almeida, a quem agradeo pela dedicao e
competncia. foram realizadas cerca de 50 entrevistas semiestru-
turadas nesses dois momentos. os entrevistados so moradores de
bairros pobres da cidade, marcados pela grande emigrao inter-
nacional. os relatos aqui aparecem, constantemente, em terceira
pessoa: o/a entrevistado/a conta histrias de parentes, conhecidos,
amigos ou de ouvir falar. evidentemente, no interessa a veracida-
de dessas histrias, mas a sua verossimilhana para os sujeitos que
a contam. os entrevistados so indicados por nomes fictcios, sem
referncia idade ou qualquer informao que os possa identificar.
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corrente em Valadares a constatao da importncia da
casa.23 Um entrevistado, funcionrio da polcia federal, afir-
mava: o mercado em governador Valadares est inflaciona-
do porque o emigrante paga por uma casa mais do que o seu
real valor. a importncia da casa manifesta nas situaes
mais variadas de migrao: casos de migrao para pagar d-
vidas com agiotas, feitas para comprar a casa prpria, mi-
graes com o objetivo especfico de comprar uma casa. Um
dos entrevistados, Val, tambm est convencido de que as
pessoas migram para ter uma casa e um carro, mesmo que
isso signifique ficar distante dos filhos. ele cita o caso de seu
primo, que foi em busca desse sonho.
todos os entrevistados tm uma histria que relaciona
emigrao e casa. Vejamos uma sucesso de rpidos exem-
plos retirados das narrativas dos entrevistados. J tinha o so-
nho de construir uma casa e, por isso, foi-se a portugal. Um
dos filhos de outra entrevistada, fia, foi para portugal, ficou
quatro anos e depois seguiu para os eUa. ele quer voltar para
o Brasil, mas apenas quando construir uma casa. o noivo de
tatiana foi trabalhar em portugal para adquirir um carro e a
sonhada casa, e, quando voltar, eles se casaro. a irm de
rosa est h dois anos em portugal e foi apenas para termi-
23 entendo casa (em minsculas) como a habitao que d suporte a
uma casa, entendida como uma entidade centralizadora de rela-
es de um casal. uma apropriao do conceito de lvi-strauss
e ser discutida ao longo do texto.
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nar de pagar a casa que havia comprado. o marido de car-
mem tambm foi em busca da casa prpria, e, enquanto ele
est fora, sua esposa e filhos moram na casa de um irmo do
marido, localizada no terreno dos sogros, que tambm emi-
grou, mas com a esposa. roslia tambm tem o marido em
portugal, em busca da casa prpria. enquanto ele persegue o
objetivo, ela mora numa casinha no quintal do sogro.
o caso nos bairros pobres de Valadares, de onde saem os
migrantes na sua maioria, indica a centralidade do casal na
estruturao das relaes de parentesco, mas o antagonismo
que a composio de novas Casas implica ainda mais acen-
tuado, pois no h inteno de se manter a subordinao s
famlias originais. esse aspecto, entretanto, no significa falta
de continuidade das Casas, mas apenas em hierarquizao
sucessiva e contnua entre Casas. Um mesmo conjunto de
pessoas que se ligam por parentesco convive com vrias Ca-
sas com nveis distintos de capacidade de aglomerar relaes
e pessoas. trata-se, por assim dizer, de uma segmentao
rpida.24
cada Casa, na prtica, dura apenas a vida do casal. morar
numa habitao no terreno dos pais ainda participar da Casa
dos pais, subordinadamente. temos uma casa lvi-strauss
em grande medida, pela sua centralidade na organizao da
estrutura social local, por sua relevncia na organizao do
24 esse argumento foi sugerido por marcos lanna, em comunicao
pessoal.
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parentesco e da posse territorial e, claro, por dar impulso mi-
grao internacional, como um atalho rpido para a centralida-
de.25 essa ideia da Casa valadarense (das camadas pobres da
populao) depende de uma perspectiva dinmica a respeito da
montagem e desmontagem de relaes: uma espcie de Casa
relacional, mais ligada a cada casal como centro de si mesmo.
aqui, portanto, convm distinguir a casa (habitao) da
Casa (centralidade de relaes do casal), pois a segunda am-
para a estrutura social e influencia a movimentao interna-
cional. J a primeira uma necessidade para a existncia da
segunda, com a condio de ser descolada da casa (habita-
o) dos pais. os emigrantes partem para construir Casas e,
para isso, precisam de recursos para construir uma casa (ha-
bitao) que d condies e sustentabilidade para aquelas.
tambm devemos matizar esse descolamento da Casa dos
pais, j que no se trata, necessariamente, de pais biolgicos:
a Casa com a qual se rompe para formar a prpria pode ser
capitaneada por pais, tios e at no parentes. rompe-se com
a Casa na qual se inseria anteriormente. em alguns casos de
desamparo social, nem preciso romper: no se estava re-
lacionado a nenhuma Casa, e a migrao uma tentativa de
superar esse dilema com uma nova Casa prpria. em Valada-
res, a Casa no chega a durar nem uma gerao, tamanha a
dissoluo promovida pelo atalho da migrao.
25 para uma discusso sobre o conceito de centralidade aplicado
s relaes sociais, ver machado (2003).
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entre os nossos entrevistados, podemos destacar o caso
de Joo. ele mora numa casa de seu pai, e isso foi o suficiente
para que ele buscasse a prpria Casa, num exemplo de como
a importncia da Casa muito maior do que seu espao e
segurana: uma questo de autonomia em relao a ou-
trem, s relaes de outrem. mesmo tendo um teto asse-
gurado, Joo preferiu buscar um teto distante do terreno de
seu pai (mas no conseguiu). recorrentemente, nas entre-
vistas, percebemos a mesma situao de Joo: relativamente
bem instalados em casas dos prprios pais ou sogros, dentro
do terreno da Casa destes, os entrevistados no se sentiam
donos de uma Casa. estar dentro da Casa dos pais significa
tambm estar, de certa forma, preso s relaes dos pais (ou
equivalentes), serem subordinados a essas relaes. o desejo
da Casa prpria, num terreno diferente do dos pais, significa
um desejo de se desprender das relaes que os pais cons-
tituram para construir a prpria Casa, centralizadas no novo
casal e filhos.
a famlia de irani tambm ilustra o processo de busca da
Casa e de descolamento das relaes e bens dos prprios
pais: sua irm mora numa casa conjugada Casa dos pais
dela. a prpria irani viu seu marido partir para os eUa e fi-
car l por quatro anos, a fim de comprar a casa prpria para
que eles pudessem sair da Casa onde moravam, situada sob
a casa dos pais, no andar de baixo de um sobrado. o caso de
isabel tambm exemplar: de famlia de classe mdia alta,
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casou-se com um homem de classe mdia baixa. moravam
numa casa que ficava no mesmo terreno da Casa dos pais
dela, e, por conta disso, ela o incentivou a emigrar para tentar
uma vida melhor e comprar uma casa prpria. o desfecho foi
desastroso para a famlia, resultou na separao e, segundo
ela, na instabilidade emocional de suas filhas. a importncia
da Casa nos planos emigratrios tanta que a associao de
parentes de emigrantes da regio leste de minas gerais (em
processo de formao) tem como objetivo principal auxiliar
as famlias no desenvolvimento de projetos de construo de
casas, para evitar o superfaturamento na compra dos mate-
riais de construo.
contraditoriamente, um dos entrevistados, ciro, destacou
que vrias pessoas vendem ou hipotecam suas casas para reali-
zar suas viagens. mas esse ato sempre o dos outros, nenhum
de nossos entrevistados vendeu ou hipotecou a prpria casa
para financiar a viagem. a nica exceo o de conceio, pois
ela e o marido venderam a casa em que moravam para o ma-
rido emigrar e juntar dinheiro para comprar uma casa melhor.
diga-se que a casa onde moravam era muito pequena e no
comportava a famlia (nem a constituio de uma Casa). H
casos de viagens de pessoas que j tm casa prpria, e nesses
casos, em geral, apenas um membro da famlia nuclear est
ausente, e o resto da famlia mora na casa j possuda.
mas h um discurso moral, entre os entrevistados, que clara-
mente condena esses casos. Ksia, uma das nossas entrevista-
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das, conclui que quem tem casa prpria e um carro no deveria
tentar a vida fora do pas, pois o risco e o prejuzo para a famlia
podem ser grandes. carmem, outra entrevistada, tambm emite
julgamentos morais sobre a emigrao: no considera correto
uma pessoa que j possui casa e carro emigrar, devido ao risco
que isso coloca manuteno da estrutura familiar. seja como
desejo principal, ou como crtica aberta a quem ameaa a fa-
mlia com a migrao, apesar de j possuir a Casa, os entrevis-
tados estabelecem uma relao entre a Casa, a emigrao e o
perigo que esta impe ao projeto familiar.
a contradio desse processo que, durante a ausncia
de um ou de ambos os membros, a casa (habitao ainda
no prpria), nas quais as suas relaes vinham sendo cons-
trudas, resulta incompleta: um marido ausente significa a
ausncia da produo cotidiana do parentesco, da cossubs-
tancialidade, das relaes. contra essa incompletude paira o
risco constante de esfacelamento e dessubstancializao, e o
elemento crucial desse risco o smen alheio (como veremos
na parte que discute a fofoca) ou a hiperproduo de subs-
tncia (filhos fora do casamento).
esse risco no novidade, nem inconsciente: todos que
se arriscam na aventura migratria tm plena conscincia
desse perigo. todos sabem que as relaes sero colocadas
em risco. isso apenas atesta o valor que a Casa prpria, como
um lugar de reconstruo de centralidades nas relaes, tem
para os sujeitos. importa estar livre das relaes dos prprios
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pais: sair da Casa dos pais, s vezes da casa que pertence aos
pais. esse desrelacionamento a nica possibilidade de as-
sumir um lugar central nas relaes que se pretende estabe-
lecer, principalmente em relao aos prprios filhos. Basica-
mente, os aventureiros do projeto migratrio familiar querem
reproduzir a centralidade de relaes que seus pais parecem
ter, isso em relao aos prprios filhos.
filHos26
os filhos so para seus pais um grande dilema, fruto de
angstias e sofrimentos. o fato que muitos pais e mes tm
que conviver com a ausncia de seus filhos, quando partem
para o exterior. e os filhos convivem com a ausncia de um ou
ambos os pais durante longos perodos de tempo, e s vezes a
separao definitiva. organizar a vida dos filhos na ausncia
dos pais ou de um deles um problema muito srio. Quem
tomar conta dos filhos? eles sero bem tratados? Haver re-
cursos para enviar e sustentar as crianas? devem-se levar
os filhos? devem-se levar todos os filhos?
narrarei alguns casos relativos a essas escolhas, a ttulo
de exemplo. Uma amiga da entrevistada Joelma voltar aos
26 trato aqui apenas de famlias no comeo do ciclo familiar, como
define fortes (1974), e de emigrao de casados, solteiros com fi-
lhos ou divorciados com filhos. H, obviamente, muitos que emi-
gram solteiros, para os quais esta anlise que proponho deve ser
reavaliada e ponderada.
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eUa levando apenas uma das filhas, enquanto a outra ficar
com a av materna, que mora no mesmo bairro. H um cer-
to conformismo gradual com a distncia, e, como nos disse
Joelma, os filhos j no sentem tanto a falta. cludio, por sua
vez, em entrevista nos contou de seu pequeno primo, cujo
pai est em portugal: o menino no conhecia o pai e sempre
perguntava por ele, s o via pelas fotos. outra entrevistada,
lucimar, tem um filho do primeiro casamento, que mora com
a av paterna: a criana foi criada pela av e visitava a me
em alguns finais de semana. o atual marido, este em portugal
havia trs anos, planejava migrar definitivamente para por-
tugal e pretendia levar o enteado. segundo lucimar, isso era
muito bom, pois lugar de filho junto ao pai.
so mais comuns os casos em que o pai est ausente no
exterior, seguido do caso no qual ambos os pais esto fora. os
casos de me ausente so mais raros, e nessa situao pre-
ponderam os casos em que a separao do casal aconteceu
anteriormente migrao. H uma lgica, portanto, na orga-
nizao do parentesco que dita o abandono mais ou menos
temporrio dos filhos: a ausncia do marido a mais tolera-
da, seguida da ausncia do casal e da ausncia da me, mas
apenas quando ela j est separada. em nossas entrevistas,
encontramos apenas uma histria sobre me ausente com
marido e filhos no Brasil. assim, h uma determinao do lu-
gar da me que muito forte, pois ela em geral substituda
por uma me segunda (no caso, alguma das avs) quando da
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migrao do casal. mas a essa importncia do lugar da me
est relacionada uma discriminao latente em relao
mulher do marido ausente: passam a ser tratadas como es-
pcies de vivas de maridos vivos e, portanto, potencial-
mente perigosas. o lugar de viva de marido vivo uma
ameaa s demais mulheres casadas e honra do marido
ausente. elas so submetidas intensa vigilncia, portanto.
os casos em que os filhos no ficam com os avs pare-
cem inspirar pena nos entrevistados, como uma alterao
da ordem natural das coisas e como uma situao de poten-
cial desajuste. mas h outros vrios ajustes, em relao aos
filhos. Um exemplo o caso da tia da entrevistada sabrina:
ela e o marido migraram, e os trs filhos ficaram no Brasil,
morando sozinhos (j tinham mais idade). esses arranjos so
temerrios, do ponto de vista dos entrevistados, e acabam
sempre em problemas de comportamento dos filhos, vistos
como abandonados. Um dos primos de sabrina, filho dessa
tia, comeou a se envolver com drogas, e o casal decidiu
levar os filhos para portugal: primeiro o mais novo, depois os
dois mais velhos.
as histrias que se contam desses arranjos alternativos em
geral tm um tom trgico: outra amiga de sabrina, j me de
uma filha adolescente, casou-se novamente e teve outra filha.
depois se separou e decidiu migrar para portugal, deixando a
segunda filha com o pai e a primeira morando sozinha. o des-
fecho tambm foi preocupante: mediante os comentrios de
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que a menina se envolvia com prostituio, a amiga de sabrina
voltou para busc-la. esses dois exemplos indicam histrias
moralizantes, que so quase pedaggicas, pois tendem a de-
sestimular arranjos alternativos para deixar os filhos. deixar fi-
lhos sozinhos um problema que levar ao envolvimento des-
tes com ambientes recriminveis. os pais devero, no fim das
contas, necessariamente resgat-los e estabelecer a ordem
moral de que o lugar dos filhos junto aos pais.
outro arranjo alternativo foi o de marilia, que, por conta
das fofocas de que estaria traindo o marido, decidiu segui-lo na
emigrao, tendo que deixar os filhos. primeiramente, deixou-
-os aos cuidados de uma moa, que foi paga para isso, mas
os filhos teriam sido muito maltratados. depois foram mo-
rar com a av materna, e tambm no deu certo, por motivos
que a entrevistada no quis esclarecer. agora, marilia prepara
os filhos para morar com uma sua amiga, de quem os filhos,
duas meninas e um menino, gostam muito. marilia resigna-
-se ao fato de ficar longe dos filhos, pois acredita que estes
j se acostumaram distncia. o caso de marilia tambm
exemplar por demonstrar um pouco da dinmica da fofoca e
do lugar da viva de marido vivo, que a esposa do migrante
ausente. sob estrita vigilncia, partiu para a migrao com o
marido, para no ver o casamento acabar. mas deixou os filhos
em situaes consideradas arriscadas para fazer isso.
seu Joaquim, por sua vez, ilustra dois casos em relao
s crianas e migrao. seu filho emigrou aps se separar
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e deixou no Brasil uma filha, que sofreu muito no princpio,
ficando nervosa. mas agora, acostumada, j no sente mais
falta. Uma ex-namorada de seu Joaquim tambm migrou,
deixando com a me trs filhos. o fato contado em tom
de desaprovao, mas a ressalva que ela nunca deixou de
mandar o dinheiro para sustentar as crianas, o que signi-
fica que ela tem tido o cuidado de manter ativos os laos e
as relaes com os filhos e com a sua me, que toma conta
dos pequenos. tambm esse exemplo ilustra outra dinmica
comum: quando a me (ou o casal) pensa em levar os filhos,
em geral no pode levar todos, se tem mais de um. a esco-
lha, ento, recai geralmente no mais novo, aquele que vis-
to como o mais vulnervel dentre os filhos. por isso que a
ex-namorada de seu Joaquim voltar logo, para levar a filha
mais nova (ento com sete anos) para portugal.
Quando as famlias, de antemo, esto estruturadas de for-
mas distintas daquela considerada moralmente adequada pelos
nossos entrevistados, a migrao aparece como uma opo pe-
rigosa. o caso de tatiana, que embora queira muito emigrar,
no o pretende fazer. separada e com uma filha pequena, no
teria como lev-la. teria que deix-la com a prpria me, av da
menina. mas isso abriria ao ex-marido a possibilidade de pedir
a guarda da criana, o que tatiana teme muito. assim, para no
correr o risco, decidiu no emigrar e ficar perto da filha.
mas mesmo o arranjo dos filhos que ficam com avs pa-
ternos ou maternos no to bem recebido assim. Um dos
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assistentes sociais, integrante do conselho tutelar da cidade,
disse-nos que, quando os avs tm idade avanada, estes
no conseguem controlar e educar os netos, podendo oca-
sionar situaes de prostituio e consumo de drogas, os
dois cenrios mais temidos. o caso da sobrinha de sebas-
tiana, que migrou para portugal e deixou sua filha com a me
(av materna). mas a irm de sebastiana (a av materna da
menina) no deu conta de cuidar da menina, que estava
dando muito trabalho. a me, ento, decidiu levar a filha
para portugal tambm. por outro lado, o caso contrrio pode
acontecer: uma amiga de paulo foi para portugal e deixou o
filho com a sua me. em portugal teve outro filho com um
portugus e no pensa em voltar ao Brasil ou em levar o pri-
meiro filho para portugal: de toda maneira, segundo paulo, a
av no permitiria, pois o menino como se fosse filho dela
e estava com a av desde pequenino. aqui temos o caso em
que a migrao levou a rupturas definitivas nas relaes: a
av passou me, e a me aceitou o fato.
os casos que chegam ao conselho tutelar relacionados
imigrao so muitos e, em geral, tratam de denncias de
maus tratos s crianas de pais ausentes, ou de mes que
no cuidam direito dos filhos enquanto o marido est au-
sente. muitas vezes as denncias so feitas pelos prprios
pais que esto no exterior. o processo da migrao, segundo
esse assistente social, acarreta tambm muitas disputas pela
posse das crianas. Quando o conselho tutelar, por exemplo,
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constata que determinadas crianas so bem criadas tanto
pelos avs maternos quanto pelos avs paternos, a dispu-
ta pela guarda chega justia. H tambm o caso de pessoas
que disputam a posse das crianas apenas pelos recursos que
so enviados pelos pais para o seu sustento. em geral, isso
acontece quando se trata de pessoas mais distantes, como
babs, amigos ou parentes distantes. com avs, mais fre-
quentemente, isso no acontece.
aqui temos a evidncia de uma lgica relacional no tra-
to com as crianas: elas esto bem se se mantiverem dentro
daquelas relaes originais das quais os pais pretendem au-
tonomia com a Casa nova (aquela dos avs). mas essas rela-
es so vistas como as que naturalmente acolhero bem as
crianas, mesmo com o risco de que, com a idade avanada,
os avs no consigam educar os netos. mas os outros arranjos
que fogem a essa lgica so condenados nas duas dimenses:
podem levar os filhos para os dois caminhos mais temidos (a
droga e a prostituio) e tambm sujeitam os filhos gann-
cia e aos maus tratos de quem foi pago para cuidar deles. a
constatao que podemos fazer que cuidar dos filhos no
algo que deve ser pago, ou seja, as relaes prescrevem
um dever de cuidar dessas crianas. o dinheiro enviado
no para pagar quem cuida, mas para sustentar os filhos e
manter a relao. o dinheiro entra como fluxo de substn-
cia a distncia, produzindo o bem-estar material dos filhos
(alimentao, roupas, escola, brinquedos, etc.) e amarrando
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as relaes na ausncia fsica dos pais, que se fazem sempre
presentes atravs do dinheiro.
a contradio desse processo de emigrar para constituir
a prpria centralidade do casal na migrao que, para fazer
isso, muitos acabam por acentuar a centralidade daquelas re-
laes que pretendem abolir: o caso dos casais que migram
e deixam os filhos sob a guarda de uma das avs. so muitos
os exemplos em que a migrao feita em dupla, simultanea-
mente ou no (em geral o marido migra primeiro e depois leva
a mulher). Quando isso acontece, via de regra, os filhos do ca-
sal (quando existem) so criados pela av. como demonstrou
fonseca (2004), a prpria ideia de criao uma fabricao
de parentesco por vias no necessariamente consangune-
as. no caso das avs, alm das formas de criao, ou seja,
a convivialidade cotidiana, a comensalidade e o cuidado, as
relaes so intensificadas pelos laos consanguneos. nesse
caso, os filhos do casal ficam mais e mais ligados s relaes
dos avs, aquelas das quais os pais pretendem se distanciar
para constituir a prpria centralidade. ou seja, o projeto dos
pais, de construir a Casa, pode submeter a prpria famlia a uma
acentuao daquelas relaes das quais pretendiam se afastar.
a vontade do casal que migra junto, em geral, acentuar
a capacidade de obter recursos e voltar antes, alm de pre-
servar a prpria relao dos riscos da separao (o marido ou
esposa ausente). nesses planos no cabem os filhos, num pri-
meiro momento. isso os leva a uma dependncia em relao
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queles que vo cuidar dos filhos na ausncia do casal. o des-
fecho dessas situaes um retorno que pode se prolongar,
e, nesse caso, os filhos vo passando cada vez mais para os
avs: ou seja, a cossubstancialidade amplia-se num grau que
j se torna quase irreversvel. mesmo quando o casal volta e
constri a Casa, h casos em que os filhos continuam mo-
rando com os avs. ou acontece tudo conforme o planejado,
e os pais voltam logo, com os planos realizados e conseguem
conquistar a Casa prpria, to almejada. outra sada tambm
frequente a constatao de que os planos no sero facil-
mente atingidos ou que, enfim, a vida no exterior pode ser
melhor que a vida em Valadares: nesses casos, os planos da
Casa prpria so transferidos para o exterior, como novo lu-
gar de construo das relaes centralizadas to importantes
s pessoas. nessas situaes, a primeira atitude dos casais
levar os filhos para o exterior, processo que vai alimentar
um mercado paralelo de transportadores de crianas, que
podem ser desde parentes at pessoas pagas para realizar tal
travessia. H, claro, solues intermedirias e casos variados:
famlias que se estruturam permanentemente a distncia,
casais que levam apenas alguns dos filhos para o exterior, etc.
fofoca
Uma questo importante relaciona-se ausncia dos
maridos no cotidiano de suas esposas que permaneceram
no Brasil: as entrevistas demonstram como h uma suspei-
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o permanente sobre as mulheres, em geral capitaneada
pela famlia do marido ausente. o mesmo no se pode dizer
quando o marido quem fica, pois tivemos acesso a apenas
uma histria com esse teor. Quando o casal que muda, ob-
viamente, no acontece nada disso, embora muitas vezes a
mulher emigre posteriormente, para juntar-se ao marido,
justamente para se livrar das fofocas que essa situao gera.
a Casa como centro das relaes de um ncleo familiar s
funciona se for, na percepo dos entrevistados, completa,
isto , tem que ter o marido, seno vista como suspeita,
ameaadora, e, assim, os arranjos alternativos que ocorrem
durante a migrao so tambm vistos como perigosos. as
mulheres nessa situao tm como alternativa uma reorde-
nao da moradia: trazem as prprias mes para morar com
elas. de certa forma, a me substitui a figura do marido, dan-
do confiabilidade quela casa. a entrevistada Joelma nos
conta, por exemplo, como algum, que ela imagina ser da
famlia do marido, denunciou-a ao conselho tutelar, porque
no cuidaria bem dos filhos. a visita do conselho nada pde
provar, mas ela ficou em alerta redobrado contra as fofocas
que a sua situao de viva de marido vivo desperta.
a maior fonte de fofoca, como se pode imaginar, o com-
portamento sexual da esposa do migrante ausente: suspeitas
de traio podem acabar com o relacionamento, fim que
consumado com a interrupo das remessas de dinheiro. r-
nio conta-nos que a respeito de sua mulher nunca surgiram
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comentrios, pois ela preferiu morar com a prpria me, evi-
tando ficar sozinha com os filhos. aconteceu com rnio o
contrrio, tambm muito frequente: as fofocas diziam que ele
havia arrumado outra famlia em portugal. aqui temos, ape-
nas na aparncia, uma situao similar e inversa traio fe-
minina: a traio masculina no ameaa tanto o casamento,
contanto que o dinheiro da remessa continue fluindo. ou seja,
a capacidade de produzir substncia que alimente e construa
as relaes eminentemente masculina, no cabendo mu-
lher muito que fazer quando recebe denncias. ela no pode
ter certeza, e enquanto o marido envia o dinheiro h a evi-
dncia de que o casamento e os planos originais continuam
a existir. o desnvel das relaes entre homem e mulher fica
evidente no peso da traio de cada um: se a mulher trai, o
casamento tem grandes chances de acabar; se o homem trai,
o casamento no acaba necessariamente. e, acima de tudo,
o fim das remessas que sinaliza o fim das relaes, que fica,
portanto, por conta da iniciativa do homem.
em outro caso, a mulher do tio de gildsio trouxe a irm
para morar com ela quando o marido emigrou: ficar s em
uma casa com os filhos parece altamente reprovvel numa
lgica moral nativa. s vezes, mesmo morando com outras
pessoas, a fofoca ameaa casamentos: foi o caso do irmo
mais velho de sabrina, cuja esposa foi morar com a me,
mas mesmo assim foi alvo de suspeitas. marilia lembra que,
quando seu marido foi para portugal, colocaram at homem
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62
na minha cama. o sentimento de falta de proteo foi to
grande que ela preferiu emigrar e deixar os filhos, para salvar
o casamento. a vigilncia tambm implica em discriminaes
s amizades das esposas. Joelma conta-nos que teve de abrir
mo de uma amizade com uma mulher cujo marido estava
no exterior, j que ela tinha fama de tra-lo, e a famlia do
esposo de Joelma no via com bons olhos essa amizade, que
poderia, de certa forma, contamin-la. creuza contou-nos
sobre seu casamento, que ruiu devido fofoca de vizinhos,
atingindo a honra do marido. embora jurasse inocncia, o ma-
rido no aceitou suas argumentaes, e o casamento acabou.
Waldeci tambm nos relatou sobre o enorme preconceito
que atinge as mulheres