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UNIVERSIDADE TIRADENTESDIREITO
PAULA JOANE ARGOLO MOTA
MEDIDAS DESPENALIZADORAS DA LEI DE INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO À LUZ DA LEI Nº 9.099/95
Aracaju/Se
Junho - 2009
PAULA JOANE ARGOLO MOTA
MEDIDAS DESPENALIZADORAS DA LEI DE INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO À LUZ DA LEI Nº 9.099/95
Monografia apresentada ao Curso de Direito da
Universidade Tiradentes – UNIT, como requisito para
obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientador: Priscila Formigheri Feldens
Aracaju/Se
Junho – 2009
PAULA JOANE ARGOLO MOTA
MEDIDAS DESPENALIZADORAS DA LEI DE INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO À LUZ DA LEI Nº 9.099/95
Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Tiradentes – UNIT,
como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito.
Aprovada em _______/_______/_______
BANCA EXAMINADORA
Orientador:
Nome
Nome
Dedico esta monografia a todos que amo.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pois sem o mesmo nada é possível.
A Universidade Tiradentes, todos os professores e funcionários.
A minha orientadora desta monografia e professora Priscila Formigheri
Feldens, pela dedicação.
Aos meus pais e namorado, por todo o apoio e renúncia das horas de
lazer que deixamos de compartilhar, em prol do êxito do projeto que ora finalizo.
Aos meus familiares que muito me incentivaram a persistir nesta
caminhada.
.
Todos os que batalham por uma opinião,
podem averbar de erro a contrária;
porque ninguém luta sinceramente por
uma idéia, senão acreditando que está
com a verdade.
Rui Barbosa
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................
I – ASPECTOS SOCIOLÓGICOS RELACIONADOS AO CRIME E A APLICAÇÃO DA PENA......................................................................................
1.1 Compreendendo e Criminologia...................................................
1.2 Valores Coletivos e Significados Morais.......................................
1.3 O Crime e o Direito Penal.............................................................
II – A DESLEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL................................................
III – CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DAS MEDIDAS DESPENALIZADORAS.......................................................................................
3.1 A Lei 9.099/1995 e a Proposição de um Direito Mínimo..............
3.2 Visão Garantista...........................................................................
3.3 O Abolicionismo Penal..................................................................
3.4 A Ineficiência do Modelo Punitivo.................................................
3.5 A Intervenção Mínima como Alternativa à Proposta
Abolicionista........................................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................
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RESUMO
O estudo em questão busca compreender os principais aspectos das medidas
despenalizadoras em relação à Lei nº 9.099/95 - crimes de menor potencial ofensivo.
Para atingir seus objetivos, ou seja, a descrição das mais diversas condutas e
posicionamentos doutrinários acerca da tese das medidas despenalizadoras e de
um sistema orientado pela intervenção mínima, optou-se por uma ampla revisão da
literatura. No primeiro capítulo discutiram-se os aspectos sociológicos relacionados
ao crime e à aplicação das penas, principalmente tópicos relativos à criminologia,
aos valores coletivos e seus significados morais, e ao próprio crime sob ótica do
Direito Penal. No segundo capítulo abordou-se a questão da deslegitimação do
Direito Penal, no que diz respeito à eficácia das penas previstas e aplicadas. O
terceiro capítulo foi dedicado à exploração do tema em destaque, ou seja, as
próprias medidas despenalizadoras analisadas a partir do contexto da intervenção
mínima e do abolicionismo penal. Como conclusão, é possível observar que,
concebido pela visão liberal do Direito, o Estado Liberal enfatiza a proteção dos
diretos individuais, numa intervenção estatal mínima e legalmente definida no
estabelecimento de um claro elenco de garantias do cidadão frente ao Estado; já a
orientação do Direito intervencionista, próprio do Estado Social, estará voltada mais
à garantia dos interesses coletivos estatais e ao emprego de sanções de cunho
preventivo-especial e de tratamento do criminoso, praticamente extinguindo
quaisquer diferenças essenciais entre penas e medidas de segurança.
Palavras-chave: crime; Direito Penal; Estado; intervenção mínima; medidas despenalizadoras.
ABSTRACT
The study in question search’s to understand the main aspects of the anti-punitive
measures in relation to the Law 9.099/95 - crimes of offensive potential minor. To
reach its objectives, that is, the description of the most diverse behaviors and
doctrinal positioning concerning the thesis of the despenalizadoras measures and a
system guided for the minimum intervention was opted to an ample revision of
literature. In the first chapter the related sociological aspects to the crime and the
application of the penalties, mainly topical relative to the criminology, the collective
values and its moral meanings had been argued, and to the proper crime under
optics of the Criminal law. In as the chapter it was approached question of the
deslegitimação of the Criminal law, in what it says respect to the effectiveness of the
foreseen and applied penalties. The third chapter was dedicated to the exploration of
the subject in prominence, that is, the proper analyzed despenalizadoras measures
from the context of the minimum intervention and the criminal abolitionism. As
conclusion, it is possible to observe that, conceived for the liberal vision of the Right,
the Liberal State emphasizes the protection of the individual right-handers, in a
minimum state intervention and legally defined in the establishment of clearly a cast
of guarantees of the citizen front to the State; already the orientation of the
interventionist, proper Right of the Social State, will be come back more to the
guarantee of the state collective interests and to the job of sanctions of preventive-
special matrix and treatment of the criminal, practically extinguishing any essential
differences between penalty and measures of security.
Word-key: anti-punitive measures; crime; criminal law; minimum intervention; State.
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INTRODUÇÃO
A natureza humana pode ser compreendida a partir de dois vieses
distintos: um que tem princípio no próprio surgimento do ser enquanto espécie, e
outro que condiciona tal natureza à racionalidade. Obviamente, aqui interessa o
aspecto racional. O sistema penal, como exercício preventivo em relação ao crime,
ou como metodologia na ressocialização do criminoso, não encontrou sucesso na
maior parte dos países. A legitimidade das doutrinas penais dominantes
permaneceu intacta até o surgimento do ponto de vista minimalista, e por extensão,
abolicionista.
Para um melhor entendimento do que propõe o estudo em pauta -
compreender os meandros das medidas despenalizadoras à luz da Lei nº 9.099/95 -
é necessário antes entender-se a própria penalização, que por sua vez, requer a
exata apreensão conceitual de “crime” (grifo nosso). Não há como aferir o valor
conceitual de uma pena sem que se tenha evidente o potencial do delito cometido.
Como colocado, o sistema penal vigora soberano até que a formulação de
alternativas diametralmente opostas (como o abolicionismo) se ofereçam buscando
validação junto à legislação. A Lei nº 9.099/95 que julga infrações de menor
potencial ofensivo, não parece resolver à questão colocada, pois o Direito Penal
Mínimo não está preocupado com infrações potencialmente menos ofensivas, mas
com todo o corpo de delitos previstos e que, por ingerência de um sistema arcaico,
colaboram com uma situação cada vez mais caótica do judiciário e, por conseguinte,
da situação de penúria que vive o sistema prisional do país.
O presente estudo justifica-se, portanto, pela propositura de um debate
em torno das questões criminalidade e punição, não no sentido usual e estrito da
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conceituação, mas na condição de buscar um pensamento que de fato intervenha
junto aos processos que pautam os sistemas penais. Em termos acadêmicos, tal
discussão é basicamente introdutória daquilo que se pretende, num futuro
profissional próximo, ser designativo da conduta desta autora, haja vista o fato de
que, resta comprovado a ineficiência dos modelos até então praticados.
Como objetivo principal tem o apontamento das mais diversas condutas e
posicionamentos doutrinários acerca da tese das medidas despenalizadoras e de
um sistema pautado pela intervenção mínima.
Por óbvio que pareça, cumpre frisar que um sistema ideal (ou idealizado
historicamente) deve não apenas considerar, mas empreender uma profunda
revisão conceitual sobre os ditames que hoje pautam a educação e a formação
social dos indivíduos. Não há a menor possibilidade de intervenção mínima sobre
uma sociedade sem princípios.
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I ASPECTOS SOCIOLÓGICOS RELACIONADOS AO CRIME E A
APLICAÇÃO DE PENAS
1.1 Compreendendo a Criminologia
A moderna criminologia científica busca explicações para o
comportamento criminoso utilizando-se basicamente de três grupos de modelos
teóricos, a saber: modelos de cunho biológico (biologicista), modelos de cunho
psicológicos (psicologicistas) e, por último, modelos de cunho sociológico (sociologia
criminal). Até que se chegasse a tais modelos, crime e punição passaram por um
processo evolutivo que vem desde o célebre "olho por olho, dente por dente" (Lei de
Talião), até o momento em que o Estado passa a ser o ente responsável pela
punição daquele que comete um crime (SÁ, 1996).
O crime sempre se constituiu como fenômeno extremamente relevante
em toda a sociedade, de modo que inúmeras foram as ciências e teóricos que se
ocuparam de seu estudo. A sociologia constitui-se como um dos campos do saber
onde o desvio permitiu a elaboração de teorias para a sua conceituação, evolução e
conformação atual.
Nesse sentido, para a sociologia o que define um ato como criminoso é a
reação manifestada pela sociedade. A característica central do crime é externa tanto
ao ator como à sua conduta, na medida em que o rompimento com as regras
comunitárias não é algo fatídico imposto ao indivíduo. No momento em que se
estabelece que atos desviantes e regras morais façam parte do mundo social real
que existe externamente aos membros da coletividade, o interacionismo simbólico
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compartilha a visão fenomenológica da realidade constituída de forma externa ao
indivíduo (PAIXÃO, 1983).
As modernas teorias funcionalistas, que tanto influenciaram o Direito
Penal e a Sociologia, colocam o crime como o resultante das contingências e
decisões cotidianas informadas por tipificações do senso comum, às quais os
cidadãos são submetidos diariamente. Assim, as taxas de criminalidade não refletem
nenhuma realidade objetiva, na medida em que apenas expõem os processos de
negociação entre os diferentes protagonistas sociais (SÁ, 1996).
Para a teoria do intercâmbio, conformidade e desvio são respostas
comportamentais a avaliações individuais dos benefícios e custos envolvidos em
atividades normativamente definidas. Conforme Sá (1996, p. 86) “a ação é norteada
pela recompensa que ela pode conceder a seu ator e não pela internalização de
valores coletivos”.
Sendo assim, aventar-se a possibilidade de que os crimes se avolumam e
intensificam, configurando o que se convencionou (e legislou) chamar de hediondo,
seria uma resposta marginal à impunidade, ou seja, se um crime menor (ou não tão
medonho) não é suficientemente punido, provoca uma inversão de valores que, no
senso comum irá funcionar como uma autorização para o crescimento das espécies
de crime e na quantidade de eventos deflagrados por tais espécies.
13
1.2 Valores Coletivos e Significados Morais
Não há como falar na conformação da sociedade atual, a qual estabelece
regras de conduta entre os indivíduos, sem antes elaborar algumas considerações
acerca do contrato social, cujo grande expositor foi Hobbes.
Hobbes desencadeava sua explicação da necessidade de elaboração do
contrato social do "estado de natureza", onde os homens não possuem nenhum tipo
de limitação para o uso dos meios e da força para o alcance dos interesses
particulares. Nesse estágio, trava-se uma luta sem limites pelo poder, já que todos
os atores sociais são igualmente racionais em suas ações (BITENCOURT, 2004).
Segundo o autor acima citado, a solução de Hobbes para essa verdadeira
guerra social é a emergência de um contrato social entre os indivíduos, os quais,
pela ameaça da coerção, realizarão os comportamentos indispensáveis a
manutenção da ordem coletiva. Para que isso fosse possível, o monopólio do uso da
força legítima deveria se concentrar nas mãos de uma só pessoa, que ele
denominou como Leviatã ou, modernamente, Estado, o que ocorreria através da
delegação de parte da soberania individual para esse que se consubstanciaria
enquanto soberano.
No momento em que Hobbes coloca a ameaça da coerção legítima aos
indivíduos que agirem em desacordo com o postulado pelo Leviatã para a
manutenção da ordem social, ele se conforma enquanto um dos primeiros teóricos
do sistema penal. Para ele, o criminoso é aquele que rompe o contrato social sendo
por isso uma ameaça a continuidade da coletividade. Dessa forma, é necessário
punir o infrator como exemplo aos demais de maneira que todos venham a seguir as
regras e a lei.
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Para efetivar esse ideal de coerção, Hobbes prevê a instituição do
sistema de justiça criminal, o qual se materializaria no crime, no processo criminal,
juiz e na punição final. O crime encontra-se intimamente ligado a relação que o
indivíduo estabelece com a sociedade, ou seja, como o membro social se sujeita a
disciplina necessária à manutenção da coletividade.
Nesse sentido, para Hobbes, o criminoso deveria ser julgado pelos seus
semelhantes na medida em que apenas eles saberiam o quanto os interesses
egoístas lesaram a manutenção do contrato social e punido da maneira mais
exemplar possível, seja com o banimento para as galés ou a execução em praça
pública. Com isso, esperava-se que os demais membros sociais fossem acometidos
de um temor tão violento que viesse a agir apenas como postula a lei, formulada a
partir do contrato social realizado pelos indivíduos.
Ademais, o crime enquanto fenômeno natural da sociedade e os rituais de
punição enquanto meio de reforçar os laços de solidariedade que mantém a
coletividade coesa, serão abordados pelo viés proposto por Durkheim. Essa
construção teórica parte da presunção de existência de um contrato social anterior
que definiria as regras constitucionais do jogo social no qual os indivíduos
procederiam ao cálculo racional dos benefícios derivados da solidariedade entre os
membros da coletividade (DURKHEIM, 1999a).
Durkheim percebia a sociedade como algo decorrente da interação
cotidiana entre os indivíduos, bem como suas crenças e ações e, por isso,
conformava-se com características distintas da mera soma de seus componentes. A
partir do momento em que os membros sociais se relacionam é possível a formação
de uma consciência coletiva apta a determinar quais seriam as ações contrárias a
moral preponderante.
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A sociedade é, na visão de Durkheim, um fato social, visto que se
constitui enquanto algo externo e maior que os indivíduos que a compõem, o que a
dota de um poder imperativo e coercitivo. Isso porque nas hipóteses da ausência
total de constrangimentos o indivíduo irá nortear suas ações de maneira egoísta, o
que levará a desordem social.
Dessa forma, a sociedade é uma autoridade moral dotada de
solidariedade pré-contratual que permite a formação de redes de confiança que
culminam no contrato social materializado pelas leis e pelo próprio Estado. Uma das
suas principais características é a consciência coletiva, que pode ser traduzida como
a obrigação moral que liga o indivíduo à sociedade através das normas gerais.
Esses elementos sãos os meios utilizados pela ordem social para a conformação de
um poder coercitivo. O crime, dentro dessa perspectiva, é algo disfuncional a
integração na medida em que representa o desvio de comportamento de um
indivíduo em relação ao coletivamente postulado. Por isso, os rituais de punição
conformam-se como a dramatização das crenças coletivas que permite reforçar as
crenças e a solidariedade social (DURKHEIM, 1999a).
A primeira conotação que o crime poderia assumir, segundo Durkheim,
era a de patologia e nesse sentido, ele se constituiria como negação da
solidariedade social, razão pela qual deveria ser erradicado. Dessa forma, a ação
criminosa é como um câncer que se não eliminado pode contaminar toda a
sociedade. O próprio Durkheim observa que essa visão é essencialmente limitada e
por isso mesmo, aplicável apenas às pequenas sociedades onde os papéis
exercidos por cada um são rigidamente fixados e assim, qualquer transgressão
ameaçaria a continuidade do coletivo. Entretanto, a modernidade colocou ao homem
a possibilidade dele exercer diversos papéis dentre de um mesmo núcleo social.
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Essa complexidade estrutural leva a percepção de que o criminoso não é
um corpo doente, mas um indivíduo que não internalizou completamente as normas
dominantes e, por isso, realizou uma conduta desviante. Dessa forma, sua punição
não deve ser a exclusão da sociedade e sim sua readaptação, já que ele é um
membro da coletividade como qualquer outro. Modernamente o que se pune não é o
indivíduo, mas a violação que ele realizou aos sentimentos e valores instituídos no
seio social.
Nesse sentido, o crime é uma conduta que nega o caráter coletivo dos
sentimentos e por isso, quem deve punir o criminoso é a coletividade, já que apenas
ela pode sentir a dor e os prejuízos da ação egoísta. Os rituais de punição agregam
a consciência coletiva e elevam a solidariedade do grupo que reprime o
transgressor. A pena não tem pretensões preventivas de coibir o desvio no seio
social, mas apenas garante o respeito à lei e assim, à coesão social, já que, em
caso contrário, os atores seguiriam apenas os seus anseios particulares
(DURKHEIM, 1999a).
Durkheim avança ao colocar o crime como indispensável à moral e ao
direito. Isso porque o acontecimento criminoso leva a coletividade a se reunir para
punir o transgressor, reforçando os valores e crenças positivas vigentes. Entretanto,
é importante destacar que a evolução da sociedade coloca uma nova conformação
de valores que refletem exatamente o que será considerado como crime em cada
momento.
Em certa medida, a mudança da tipificação criminológica tem relação
direta com o poder criativo dos indivíduos em realizar novas condutas até então não
previstas. Assim, deve existir certa flexibilidade na determinação dos delitos de
maneira a estabelecer uma correspondência à realidade social. Portanto, para
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Durkheim, o crime é algo natural, não possuindo nenhuma ligação com a patologia,
ligando-se estruturalmente às concepções sociais.
Em contraposição surgiu a Teoria da Anomia, elaborada por Merton.
Merton coloca que a anomia se refere à ausência de regulamentação entre o que é
imposto normativamente e o que é verificado na prática. Assim, há um corpo de leis
que não se materializa na medida em que a coletividade não for capaz de
desenvolver laços de solidariedade suficientemente fortes que levem o indivíduo a
distinguir o que é ou não transgressão (PAIXÃO, 1983).
Dessa forma, para que o desvio não ocorra naturalmente, faz-se
necessário o estabelecimento de laços de solidariedade suficientemente fortes de tal
maneira que o indivíduo seja conduzido ao caminho que se espera que ele realize e
não ao crime, o qual significa a transgressão aos valores preponderantes. A teoria
de Merton será importante para explicar o senso comum de que a classe baixa tem
maior propensão a delinqüir, o que leva o sistema prisional a se conformar como um
lócus de reprodução da miséria.
A anomia busca, conforme Paixão (1983, p. 85), “[...] descobrir como
algumas estruturas sociais exercem uma pressão definida sobre certas pessoas da
sociedade para que sigam uma conduta não-conformista (desviante) em detrimento
de uma conformista”. Dessa forma, o ponto basilar da formulação teórica em análise
é o fato das instituições sociais serem sustentadas por um sistema de valor que
define as metas culturais de cada indivíduo. Nesse sentido, segundo Paixão
(ibidem), a anomia decorre da "disjunção entre objetivos culturalmente prescritos e
meios institucionalmente legítimos de realização das aspirações".
As classes mais baixas são aquelas que submetidas simultaneamente a
uma forte pressão de internalização dos valores culturais preponderantes e a
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limitação institucional aos meios que permitam a realização desses propósitos. Com
a penetração da ideologia da igualdade nesse estrato social, a impossibilidade de
alcançá-la por meios legítimos coloca o crime como um artifício de sucesso na
transposição de barreiras e ascensão social. Com isso, essas pessoas, que até
então se situavam a margem do mercado, podem consumir bens e serviços
desejados independente da licitude do dinheiro que elas empregam nessas
transações.
Lemert, por sua vez (citado por BARATTA, 2002), coloca que com a
introdução do pluralismo cultural, a relação entre estrutura e desvio passa a ser
insuficiente para explicar a criminalidade, a qual é verificada, inclusive, em estratos
sociais que possuem meios materiais para o alcance de seus objetivos. Além disso,
os atores sociais podem definir sucesso como algo mais profundo que a simples
acumulação de riqueza. Portanto, a teoria da anomia passa a ser descartada como
fator único de explicação da causalidade do crime, na medida em que não atenta
para a influência que a diversidade cultural e de poder, bem como a implementação
da lei e da ordem podem ter sob a conformação da conduta criminosa.
Os crimes considerados como tradicionais, se inscrevem no interior do
estereótipo da criminalidade do “senso comum”, e dominam as campanhas
alarmistas sobre eles. A opinião pública e os meios de
comunicação/informação/formação de massas representam geralmente estes delitos
adotando um esquema de repartição dos papéis da vítima e do agressor que
corresponde normalmente, em grande medida, à relação entre grupos sociais
privilegiados e “respeitáveis” de uma parte, e grupos marginais e “perigosos” da
outra (estrangeiros, jovens, tóxico-dependentes, pobres, sem família,
desempregados ou sem qualificação profissional) (BARATTA, 2002, p. 31).
19
Segundo Baratta (ibidem) a ordem societária, ou a compreensão desta
ordem, decorre do entendimento comum entre os membros coletivos acerca dos
fatos sociais. Tais ocorrem rotineiramente na vida dos indivíduos e assim, passíveis
de serem previstos por cada um deles. No momento em que os atores se deparam
com uma ação não familiar, ou seja, que não tenha respaldo em seu background
cultural tem-se a ocorrência do crime. Essa formulação teórica é o que se denomina
micro-sociologia segundo a qual a conduta dos atores é determinada pela
interpretação que eles fazem de seu papel e não como resultante de uma interação
orientada por um sistema de valores. Assim, a ação social resulta do processo de
interpretar o comportamento dos outros e suas aspirações, sendo essa leitura a
determinante da ação adotada por cada um.
Dessa forma, ela rejeita a idéia de que a sociedade é resultante da
articulação dos indivíduos que a conformam através do estabelecimento de laços de
solidariedade afetiva. Para a micro-sociologia, a ordem social não é resultante de
uma força coletiva, mas de unidades autônomas que agem em relação a uma
situação e não em conformidade com uma cultura comunitária.
A atividade criminosa conforma-se exatamente como aquela que provoca
a quebra do curso normal das negociações, na medida em que representa um ato
até então imprevisível pela leitura dos demais comportamentos, forçando a reação
coletiva para o restabelecimento da ordem e das barganhas anteriormente vigentes.
O ator social transgressor terá sua conduta interpretada pelos demais membros
societários, o que poderá imputá-lo determinados rótulos e uma nova identidade,
diversa da que ele anteriormente exercia.
Segundo a Teoria dos Rótulos, o delinquente é alguém a quem aquele
rótulo foi aplicado com sucesso. Assim, o criminoso é decorrente da imposição do
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senso comum coletivo, materializado na reação comunitária ao desvio por ele
realizado.
Lemert (citado por BARATTA, 2002, p. 33) distingue duas formas de
desvio: (1) primário: são os comportamentos que, apesar de transgressores a ordem
dada, não foram detectados publicamente e assim, o ator não foi rotulado como
criminoso; (2) secundário: é a conduta alvo de defesa, ataque ou adaptação pela
ordem social. Nesse momento, o indivíduo é rotulado como criminoso na medida em
que sua transgressão é publicamente conhecida e combatida.
Após a categorização das classes de desvios, a teoria dos rótulos avança
para a descrição dos processos através dos quais os indivíduos se tornam
criminosos. Nesse sentido, a teoria coloca que a conformação do status de
transgressor observa os seguintes estágios:
[...] (1) motivação do ator social para a execução de um ato contrário a moral predominante na sociedade; (2) desenvolvimento de interesses desviantes em detrimento dos conformistas com a ordem e procedimentos vigentes; (3) transformação da identidade do ator social, na medida em que ele modifica sua natureza essencial de valores e os anseios que pretende materializar. Nesse momento, através da ação do aparato de justiça criminal, o transgressor passa a ser excluído do grupo social a que ele anteriormente pertencia; (4) o último estágio é decorrência do anterior, já que no momento em que o indivíduo é excluído do grupo a que anteriormente pertencia, ele é forçado a participar de uma subcultura desviante e organizada (LEMERT citado por BARATTA, 2002, P. 35-36).
A partir da interação com os membros mais experientes desse novo
grupo, o criminoso é socializado em seus novos valores, principalmente, no que
Paixão (1983, p. 87) denominou de "mecanismos de mercado marginal e estratégias
de evitar apreensão".
A partir do desenvolvimento de atividades organizadas em carreiras, o
criminoso passa a ter a possibilidade de mobilidade social dentro da estratificação
que o crime coloca o que nem sempre corresponde a divisão de classes
preponderante na sociedade. Isso ocorre porque as carreiras criminosas são
estratificadas conforme a capacidade de mobilizar recursos, alianças com lideranças
políticas e organizações de controle. Isso porque são exatamente esses
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instrumentos que garantem a impunidade do ator desviante e o sucesso do
fenômeno transgressor.
Outro importante fator que determina a estratificação das classes de
criminosos é o fato da estrutura do mercado de crime impor barreiras a entrada de
novos criminosos no sistema. Algumas áreas criminosas operam sob o regime de
monopólio dadas as exigências de profissionalização dos atores e, em alguns casos,
as próprias limitações territoriais. Portanto, o indivíduo transgressor adere cada vez
mais a sua classe inicial de maneira que sua ocupação desviante seja rotulada de
maneira extrema de forma que torne difícil a exclusão do ator social transgressor a
esse novo grupo que ele acaba de integrar.
1.3 O Crime e o Direito Penal
A sanção penal, durante todo o curso da história da humanidade, foi
elemento de constante inquietação do espírito humano, em face da sua
peculiaridade de impor pena ao semelhante pela prática de fato, que em
determinado momento histórico, constitui ilícito penal.
Em 1764, Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, já vislumbrava
certamente influenciado pelos ideais iluministas de sua época, a necessidade de que
as normas proibitivas fossem descrições precisas e pormenorizadas das condutas
tidas como ilícitas, no intento de impedir a submissão do povo ao despotismo de um
Estado opressor.
De fato, tal preocupação adquire, na época contemporânea, importância
sempre presente, mormente diante do que se convencionou chamar de “Direito
Penal de Garantia”, que se preocupa, em síntese, com a defesa do status de
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aparente liberdade do jurisdicionado, na tentativa do controle dos mecanismos de
coerção estatal.
Neste contexto, devemos entender o tipo penal como opção de um povo
em vedar determinada conduta considerada nociva aos bens comuns, devendo
possuir, sempre que possível, a mais límpida redação, a fim de impedir a
ambigüidade e a multiplicidade de interpretações que, decerto, poderiam ser usadas
contra este próprio povo. Surge aqui uma das mais importantes funções da norma
incriminadora, qual seja, a função de garantia, expressa na possibilidade que todo
cidadão tem de saber previamente qual conduta sua, e de que modo, pode vir a ser
alvo da sanção estatal. Ainda como expressão do garantismo, a atual ordem
constitucional traz em seu art. 5°, XXXIX, o Princípio da Legalidade que, aplicado à
disciplina penal, institui que todo tipo penal deve, necessariamente decorrer de lei
em sentido formal, ou seja, fruto de deliberação legislativa. A esse respeito, Tavares
(2003, p. 158) observa que:
[...] o princípio da legalidade, inserido no art. 5°, XXXIX, da Constituição da República, pelo qual se exige uma exata descrição da conduta criminosa, tem por escopo evitar possa o direito penal transformar-se em instrumento arbitrário, orientado pela conduta de vida ou pelo ânimo.
Ademais, isso só não basta, é necessário que a lei seja clara, sob pena
de violação do princípio da taxatividade. Tal princípio, na visão de Prado (2002, p.
75):
[...] significa que o legislador deve redigir a disposição legal de modo suficientemente determinado para uma mais perfeita descrição do fato típico (lex certa). [...] assim, uma função garantista, pois o vínculo do Juiz a uma lei taxativa o bastante constitui uma autolimitação do poder punitivo-judiciário e uma garantia de igualdade.
Portanto, a estrita definição das condutas criminosas é dever de um
Estado Democrático de Direito justo e que queira atender os mais lídimos anseios de
segurança jurídica.
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Para Ferrajoli (2002, p. 311) a história das penas é, sem dúvida, “mais
horrenda e infamante para humanidade do que a própria história dos delitos”.
Segundo o autor, as penas são, historicamente, mais cruéis do que as violências
produzidas pelos delitos, isso em razão de que, enquanto o delito costuma ser uma
violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio
da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um.
Frente à artificial função de defesa social, é possível afirmar que o
conjunto das penas cominadas na história tem produzido ao gênero humano um
custo de sangue, de vidas e de padecimentos incomparavelmente superior ao
produzidos pela soma de todos os delitos. A preocupação com a pena é antiga,
apesar da omissão do pensamento jurídico até o Iluminismo, tendo-se, neste
período, buscado reduzir substancialmente o arbítrio do julgador que poderia aplicar
a punição que quisesse ao seu talante, e que atendesse ao comando Divino (Idade
Média).
Como forma de combater o arbítrio absoluto, passou-se a um sistema de
definição precisa de delito e pena fixa, como bem asseverou Bitencourt (2000, p.
512):
[...] a primeira reação do Direito Penal moderno ao arbítrio judicial dos tempos medievais foi a adoção da pena fixa, representando o mal justo na exata medida do “mal injusto” praticado pelo delinqüente. Assim, a um sistema largamente aberto na dosagem da pena sucedeu um sistema de pena rigorosamente determinada [...] Por esse sistema, a função do juiz limitava-se à aplicação mecânica do texto legal.
Ainda segundo Bitencourt (ibidem), com o passar do tempo, verificou-se
que tal sistema rígido de delitos e de penas também não atendia os anseios de
justiça da sociedade. Havia no conteúdo da penalidade ou uma imprecisão absoluta
ou o arbítrio do julgador, de modo a abrir-se a possibilidade para a atual fase na qual
o legislador fixa os parâmetros mínimos e máximos da pena dentro dos quais o juiz
24
deverá dosar a pena. Conforme o autor “essa concepção foi o ponto de partida para
as legislações modernas, fixando os limites dentre os quais o juiz deve - pelo
princípio do livre convencimento - estabelecer fundamentadamente a pena aplicável
ao caso concreto”.
A possibilidade de o magistrado - dentro dos parâmetros legais - dosar a
pena a ser imposta ao autor da infração penal tornou-se conhecida como a
individualização da pena. Esta ocorre em três momentos distintos: a individualização
legislativa, a individualização judicial e a individualização executória. A primeira
ocorre quando da elaboração de normas penais, com a definição dos fatos que
atentem contra os bens jurídicos tutelados pelo Estado. Conforme Bitencourt (1996,
p. 54) “cabe à lei, preliminarmente, determinar – qualitativa e quantitativamente –
penas proporcionais à magnitude do bem jurídico protegido em cada tipo penal e
prever diretrizes precisas que possibilitem ao magistrado a fixação da pena
definitiva”.
A segunda ocorre quando da prolação da sentença pelo magistrado,
seguindo as balizas fixadas na lei e à luz das garantias constitucionais, aplica a
sanção, de forma fundamentada, ao autor do fato delituoso. A individualização na
fase executória é o cumprimento da reprimenda fixado na sentença penal
condenatória com trânsito em julgado.
No ordenamento jurídico brasileiro, a individualização da pena é uma
garantia Constitucional (art.5º, inciso XLVI). Individualizar é tornar peculiar, é
especializar, particularizar. É a atividade do Magistrado, no caso concreto, que
aplica a sanção penal ajustada aos fatos sob julgamento de forma especial, peculiar
e particular, tendo por escopo a justa resposta da sociedade, suficiente e
necessária, em face daquele que praticou fato delituoso, de modo que a reprimenda
25
imposta seja proporcional, adequada (pena justa), cumprindo, assim, os fins a que
se destina.
Segundo ensina Toledo (2006):
[...] a pena justa será somente a pena necessária e não mais, dentro de um retributivismo kantiano superado, a pena da compensação do mal pelo mal à luz de um pensamento que não esconde o velho princípio do talião. Ora, o conceito de pena necessária envolve não só a questão do tipo de pena como o modo de sua execução. Assim, dentro de um rol de penas previstas, se uma certa pena apresentar-se como apta aos fins da prevenção e da preparação do infrator para o retorno ao convívio pacífico na comunidade de homens livres, não estará justificada a aplicação de outra pena mais grave, que resulte em maiores ônus para o condenado e para a sociedade. O mesmo se diga em relação à execução da pena.
Ao fazer recair a sanção estatal contra aquele que praticou fato
penalmente proibido, deve-se ter sempre em vista o princípio da dignidade da
pessoa humana, não se podendo aplicar sanções, mesmo previstas em lei, que
atentem contra este princípio. Isto se dá em função de que tal princípio seja o
mesmo que orienta o núcleo substancial do ordenamento jurídico e da legitimidade
da atuação estatal. A individualização da pena deve seguir uma aplicação de pena
num modelo garantista, conforme colocado por Carvalho (1999, p. 121):
A teoria do garantismo penal, antes de tudo, propõe-se a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a “defesa social” acima dos direitos e garantias individuais. Os direitos fundamentais adquirem, pois, status de intangibilidade, estabelecendo o que Elias Dias e Ferrajoli denominam de esfera do não-decidível, núcleo sobre o qual sequer a totalidade pode decidir. Em realidade, conforma uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do “bem comum”. Os direitos fundamentais – direitos humanos constitucionalizados – adquirem, portanto, a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas.
26
II – A DESLEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL
Uma primeira contribuição em relação à discussão proposta - medidas
despenalizadoras previstas ou contidas na Lei nº 9.099/1995 – deve buscar a exata
compreensão do conceito despenalizador, além de inteirar-se por completo do
sentido doutrinário atribuído à deslegitimação do Direito Penal.
Conforme Bitencourt (2004) tenha-se por deslegitimação o fato tornado
ilegítimo, ou por um acréscimo legal, devidamente pautado pela ordem racional, ou
por um esvaziamento de critérios e argumentos em contrário, o que por si só não
bastaria para deslegitimar coisa alguma. Contudo, a prática muitas vezes provém do
senso comum. O poder social outorga legitimidade ao sistema penal por sua
racionalidade, mas pode desampará-lo pela mesma razão.
O sistema punitivo foi deslegitimado pelo senso comum não porque se
acredite ardorosamente que a despenalização promova a redução da criminalidade,
mas justamente em razão de as penalidades não atingirem os seus objetivos,
especialmente, a recuperação do indivíduo (BITENCOURT, 2004).
As penalidades, vistas então, como instrumento imediato do direito penal
como contenção do desviante (função preventiva especial), capazes de dissuadir os
indivíduos (função preventiva geral) do cometimento de infrações/crimes, também se
auto-atribuem outras funções como a retributiva e a própria deslegitimação. Assim, é
possível afirmar que cada teoria tenta explicar e legitimar as penalidades,
convertendo-se em uma teoria do direito penal, de forma que o discurso jurídico-
penal paute suas decisões a partir desta teoria (ZAFFARONI, 1993).
A sociedade, de um modo geral, depende das circunstâncias históricas
para poder formalizar sua disposição penal. Do mesmo modo, o delito também se
27
transforma ou, em razão de ser um “fenômeno social”, muda de aspecto, e ainda, a
seu respeito se tem novas impressões. Observe-se:
[...] junto a formas determinadas de vida socioeconômicas, políticas e culturais surgidas em cada época, apareceu um tipo de delinquência característica desse período que, do mesmo modo que essas formas de vida foram cedendo à mudança dos tempos e da cultura [...]. A criminalidade moderna, de modo geral, caracteriza-se pela urbanização, caráter anônimo das relações humanas, falta de transparência das situações, fracasso dos controles sociais e informais e pelas grandes concentrações de poder político e econômico, especialização profissional, domínio tecnológico e estratégia global (característica inerente ao delito organizado) (CERVINI, 1995, p. 193).
Dadas tais colocações, é possível depreender que as penalizações
modernas são frutos “dessas novas realidades derivadas dos últimos
desenvolvimentos sociais, econômicos e tecnológicos” (além, é claro, dos ajustes
culturais promovidos pela intensa troca de informações).
Em verdade, não há deslegitimação de um sistema - no caso, o Direito
Penal – mas sim das estruturas que o edificaram. É sabido que o desenvolvimento
do Estado está relacionado ao da pena e que à concepção desta, por sua vez,
corresponde a uma idéia de culpabilidade prévia (o que descaracteriza o princípio da
presunção da inocência). É justamente este o motivo que levou Von Liszt a ponderar
que “[...] pelo aperfeiçoamento da teoria da culpabilidade mede-se o progresso do
Direito Penal” (BITENCOURT, 2004, p. 227).
Em que pese todo o avanço nessa área, o sistema de culpabilidade,
baseado na exigibilidade de conduta diversa, acaba por banalizar o indivíduo,
transformando-o em objeto do processo. Nessa transformação, sua condição
humana e tudo que demandaria daí são negadas, atribuindo-lhe uma ética (ou a sua
falta completa) incompatível com o Direito. Este por sua reprova o ato, o que
significa dizer que a reprovação incide diretamente sobre as escolhas do indivíduo.
São estas escolhas que têm de estar em harmonia com os ditames praticados, o
28
que as deslegitimam como escolhas, ou, nas palavras de Hans-Heinrich Jescheck
(apud BITENCOURT, 2004, p. 298), a “culpabilidade é a reprovabilidade da
formação da vontade”.
As escolhas são geradas em meio a conflitos, e tais conflitos são a
matéria-prima do desenvolvimento intelectual. Assim colocado, convém atentar-se
ao disposto na doutrina:
[...] o conflito humano é um processo gerido pela sociedade segundo um elenco de soluções que se presta ao exame tipológico, desde o acordo negociado até o julgado coercivo. Mas, para além de qualquer consideração formal, o próprio estatuto do conflito constitui um ponto problemático: pode ser considerado tanto o fracasso do direito como sua fonte mais universal e mais dinâmica (ASSIER-ANDRIEU apud NASSIF, 2006, p. 27).
Como bem se observa a doutrina considera o conflito de um ponto de
vista posterior ao fato, pois incapaz de apurar as razões anteriores, daí asseverar
com a possibilidade de um fracasso disciplinar.
Nassif (2006, p. 29) adverte que a evolução do Direito deve registrar
informações que identifiquem, com clareza, “o processo evolutivo da comunidade
pela transformação [...]”, ou seja, é necessário que o Direito avance em atendimento
às exigências e anseios sociais. Neste sentido:
[...] os interesses que emergem da sociedade surgem de suas próprias contradições internas, entre as forças produtivas e as relações destas com o modo de produção, onde não sendo a consciência social homogênea, cria-se. A fermentação do conflito de classes, gerando um pluralismo cultural/contracultura, e o Direito surgindo como um instrumento de libertação [...] O Direito aparece, como uma produção do grupo social, conquista da coletividade resultando da luta concreta pelo espaço de poder, condicionada pelas determinantes históricas e sociais de cada tempo (FARIAS apud NASSIF, 2006, p. 29).
Em suma, trata-se de um Direito legitimado, capaz de ancorar-se à estrita
realidade social, pois originado dos seus próprios conflitos.
29
III – CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DAS MEDIDAS
DESPENALIZADORAS
3.1 A Lei 9.099/1995 e a Proposição de um Direito Penal Mínimo
Tudo, sem exceção, tem uma origem, um motivo pelo qual se irradia e
produz efeitos. Acerca da origem da prestação de serviços à comunidade como
meio alternativo à penalidade, Ponte (1995) citado por Prates (2001, p. 73) alude à
legislação marítima sueca que em 1777 teria substituído a pena pelo trabalho. Ainda
conforme Ponte (idem), uma fonte apontaria a “Lei de 28/09/1791, Côde Forestier,
que previa suas sanções com base em penas diárias de trabalho para punir os
delitos rurais [...]”.
Nota-se muito claramente, que em origem, à prestação de serviços à
comunidade restringia-se a um determinado circulo de ação, ou meio cultural, uma
vez que, legislação marítima e delitos rurais, configuram realidades bem delimitadas.
Com o passar dos tempos, há de se observar que o raio de ação da prestação de
serviços à comunidade vai aumentando. Assim:
[...] o “Código de Zannardeli” (Código italiano), datado de 1889, que abrangia, dentre suas penalidades, a prestação de obra a serviço do Estado, e o “Código Penal Soviético”, de 1926, que tratava com maiores cuidados a prestação de serviços à comunidade, em seus artigos 20 e 30 [...] (PONTE citado PRATES, 2001, p.73).
Notadamente, vê-se que as legislações citadas não delimitam um meio
cultural ou social à prática da prestação de serviços, de modo a propugnar-se com
mais facilidade sobre todos os segmentos sociais. A legislação evoluiu muito e isso
pode ser observado em diferentes países, conforme apontado por Prates:
Na Inglaterra, o trabalho em benefício da comunidade surgiu com a lei denominada “Community Service Order”, que ingressou no sistema penal britânico através do “Criminal Justice Act”, de 1972 [...] Na Alemanha [...] a
30
prestação de serviços à comunidade está prevista no Código Penal de 1975. Na Polônia [...] a medida é prevista desde 1969, podendo vir a ser aplicada em um período de três meses a dois anos, sendo que os trabalhos poderão variar entre vinte e cinqüenta horas semanais [...] em Portugal, o Código Penal, at. 60, incs. I e II consagraram o instituto da prestação de serviços para os delitos correspondentes às penas de prisão não superiores há três meses, ou até o mesmo limite, quando se tratar de penas somente de multa [...] (PRATES, 2001, p.73-74).
Note-se que a prestação de serviços à comunidade, em nenhuma das
legislações citadas, tinha como foco o adolescente infrator, em nenhum momento os
textos legais referidos viam na prestação de serviços uma medida diferenciada de
assistência a este indivíduo, e não porque houvesse negligência; simplesmente os
atos infracionais entre tal segmento não se avolumavam a ponto de preocupar o
legislador.
Conforme leciona Cervini (1998), em solo brasileiro, as primeiras
movimentações no sentido de implementar o instituto da prestação de serviços à
comunidade, ocorreriam no I Encontro Nacional de Secretários de Justiça e
Presidentes de Conselhos Penitenciários, realizado em 1971.
No citado encontro, porém, nada ficou encaminhado, o que aconteceria
anos mais tarde, em 1977, com o advento da Lei nº 6.416/77 que então alterava o
Código de Processo Penal – CPP – no teor do seu artigo 698, incluindo a prestação
de serviços à comunidade como condição do sursis. Só em 1984, com a reforma
penal, é que a prestação de serviços à comunidade seria efetivada como pena
autônoma, devidamente substitutiva da pena privativa de liberdade, “além de
aparecer como condição do sursis, do livramento condicional e do regime aberto”
(PRATES, 2001, p.75).
A Lei nº 9.099/95, na sua parte criminal, foi elaborada com base no
paradigma de que o exagero na prática de penas restritivas não daria
encaminhamento devido aos anseios da sociedade. As medidas despenalizadoras
31
são evidências dessa opção ideológica: mínima intervenção, máxima garantia. O
direito penal científico caracteriza-se pela mínima intervenção penal (subsidiariedade
e fragmentariedade), com a máxima garantia dos direitos fundamentais do cidadão
(garantismo), com a missão de defender os direitos humanos, positivados na
Constituição Federal brasileira e direito internacional, sobretudo, na Declaração
Universal dos Direitos do Homem e Pacto de San José de Costa Rica (CERVINI,
1998).
Na perspectiva da aplicação imediata da pena é possível transacionar a
persecução penal. Antes de iniciada a ação penal, antes mesmo de qualquer
investigação prévia, o suposto autor do suposto fato e o Ministério Público podem
evitar o processo penal, mediante acordo em audiência pública presidida por juiz de
direito. Com efeito, nesse novo modelo, o objetivo não é a efetivação do castigo para
dar credibilidade à coação psicológica da pena cominada, mas a reparação dos
danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade
(GRINOVER, 1995).
A transação penal ancora-se na idéia de que o direito penal/prisão
somente deve ser aplicado às situações de reconhecida necessidade de segregação
do indivíduo, no sentido de evitar-s danos maiores à sociedade. Nesse novo modelo,
na aplicação imediata da pena não existe acusação e, consequentemente, não há
processo penal. A denúncia somente será oferecida se não ocorrer o acordo penal.
Neste caso, observa Cervini (1998, p. 75) que o “termo circunstanciado é enviado ao
Juizado sem qualquer investigação prévia e a eventual necessidade de diligências
imprescindíveis somente ocorre na fase da denúncia”.
Logo, não sendo sentença condenatória, inaplicável a execução penal
prevista para aquela. Vale dizer, a sentença homologatória de transação penal não
32
pode ser executada na forma dos artigos 84-86 da Lei nº 9.099/95 ou do Código
Penal ou da Lei de Execução Penal (LEP) porque não há identificação das
situações, sequer similitude entre elas (BITENCOURT, 1996).
Grinover (1995) explica que no modelo garantista não é possível uma
sentença penal condenatória sem o devido processo legal (igualdade das partes,
contraditório, ampla defesa), tornando certa a autoria e a materialidade do fato
imputado. Já a sentença penal homologatória é fruto de consenso, de acordo entre
Ministério Público e autuado, antes da propositura da ação penal, sem julgamento
do fato que originou o termo circunstanciado. Nem mesmo por analogia é possível a
execução da pena aplicada mediante acordo com suporte naqueles dispositivos
legais.
A Lei no 9.099/95 apresenta-se como um novo modelo de justiça criminal,
cuja pedra basilar é o consenso. A possibilidade de transação nas infrações de
menor potencial ofensivo e a suspensão do processo nos crimes médios constituem
duas importantes vias despenalizadoras, há muito desejo de uma moderna
criminologia. A referida lei ainda se pauta pela conduta de conciliadores leigos e, a
depender das leis estaduais, se valem ainda da intervenção de juízes leigos,
procedimento também inovador proposto e praticado pelos Juizados Especiais.
Ademais, frise-se o rito sumaríssimo que prestigia a verdadeira oralidade, com todos
os seus conteúdos e disposições (GOMES, 2001).
No que se refere à transação penal, Costa e Fonseca (2000, p. 29)
observa que a legislação brasileira “ainda está distante de dispositivos tais como o
“plea bargaining”” mecanismo que permite um acordo bastante amplo entre
acusador e acusado acerca dos fatos que levaram a pendenga judicial. Neste
sentido, prossegue a autora “o Ministério Público, nos termos do artigo 76, continua
33
vinculado ao princípio da legalidade processual (obrigatoriedade), mas sua proposta,
presentes os requisitos legais, somente pode versar sobre uma pena alternativa
(restritiva de direitos ou multa), nunca sobre a privativa de liberdade”. Como se
percebe, ele dispõe sobre a sanção penal original, mas não pode deixar de agir
dentro dos parâmetros alternativos. A isso se dá o nome de princípio da
discricionariedade regulada ou regrada.
A suspensão do processo, por sua vez, tem por base o princípio da
discricionariedade, sendo sua finalidade suprema evitar a estigmatização decorrente
da sentença condenatória. No mais, trata-se de um instituto cuja aplicabilidade é
imediata, não exigindo uma nova estrutura permitindo, deste modo, que a Justiça
Criminal se dedique, de fato, à criminalidade grave (SILVA, 1997).
Não há de se entender, porquanto, nenhuma tendência da Lei nº
9.099/1995 no sentido de propor ou evidenciar um processo de descriminalização.
Conforme Silva (ibidem, p.17) a lei em questão vem disciplinar um repertório de
medidas despenalizadoras, mantendo o condão criminal de forma equilibrada e
sensata, sobre as infrações de menor potencial ofensivo (art. 74); sobre as
composições civis ou ações penais públicas (art. 76); sobre as lesões corporais
culposas ou leves, que passam a requerer representação (art. 88); sobre os crimes
cuja pena mínima não seja superior a um ano, de modo a se permitir a suspensão
condicional do processo (art. 89).
34
3.2 Uma Visão Garantista
A estrutura garantista firma-se pela conquista histórica de um modelo
capaz de racionalizar as práticas políticas do Estado, limitando o alcance destas,
com base no reconhecimento de direitos inerentes à pessoa humana. Esta guinada
antropocêntrica do direito foi resultado do Movimento Iluminista que influenciou a
intelectualidade européia, entre os séculos XVII e XVIII, e empreendeu uma séria
oposição às teorias absolutas do poder, substituindo o discurso inerente à
objetividade valorativa, por outro, mais democrático e razoável do subjetivismo
valorativo, atingindo seu ponto culminante com a Revolução Francesa e a
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789 (BOBBIO,
1992).
Esta revisão dos fundamentos políticos do Estado permitiu a construção
da idéia do homem enquanto sujeito de direitos, num plano de igualdade com os
demais, e capaz de preservar e defender tais direitos frente aos outros homens e ao
Estado. A concepção de direitos indeléveis da pessoa humana reserva um espaço
de atuação do homem intangível pelo poder do Estado e, portanto, princípio
delineador de uma posição negativa do poder político diante da necessidade de
preservação deste espaço libertário (FERNANDES, 2003).
A estrutura garantista aparece em função das reservas impostas à
intervenção do Estado, logo após o reconhecimento político da intangibilidade de um
espaço de atuação humana. Tais reservas, reconhecidas pela Ordem Política,
recebem a denominação de garantias. O modelo garantista leva em conta todo o
conjunto de garantias existentes que limitam o poder do Estado. O princípio da
legalidade enquanto manifestação do poder político do povo e a positivação legal
das garantias, principalmente, num discurso voltado para idéia de supremacia da lei,
35
próprio do Estado de Direito, reforçou a preservação dos bens tutelados em favor da
pessoa humana enquanto sujeito de direitos. E, neste caso, a lei fundamental,
aquela que constitui a estrutura política de um Estado, contendo, na sua formulação,
uma carta de reservas dirigidas ao poder que lhe é derivado, proclamando a
proteção do objeto e argumento de origem da Carta de Direitos: a pessoa humana
(PALAZZO, 1989).
No campo penal, as garantias traduzem uma limitação ao poder de punir
do Estado. Conforme disposto na Constituição Federal da República Federativa do
Brasil de 1988, art. 5º, incisos XLVII; XLVIII e XLIX são diversas as garantias penais,
desde o fundamento maior da legalidade, até outros princípios correlatos como o
due process off law, que contém a necessidade de fundamentação legal dos atos
praticados pelos juízes e a vedação das provas obtidas por meios ilícitos, bem
como, na idéia central da culpabilidade, que importa em novos critérios de fixação da
proporcionalidade retributiva da pena, na individualização da pena e na necessidade
da prova da culpa para condenação penal. O fundamento pedagógico obtido pela
pena, por sua vez, propõe a humanização da execução penal, impedindo a
aplicação de penas desumanas. A teoria do garantismo penal é construída com
base em dois conceitos que estão distribuídos em duas esferas de atuação do poder
do Estado: o convencionalismo penal, no âmbito do legislativo e o cognitivismo, no
âmbito do judiciário (FERRAJOLI, 2002).
Produto do direito penal liberal, o convencionalismo exige a previsão legal
do fato e a anterioridade da lei à prática do fato. O convencionalismo representa um
limite de atuação do Estado, fixando o critério da previsão legal do fato enquanto
motivador primário da pena. Retira-se do campo da discricionariedade dos agentes
do poder Estatal a seleção dos fatos passíveis da pena, pertencendo esta análise
36
abstrata ao legislador que transmite a idéia de representação popular. Obviamente,
a neutralidade objetiva, contida na mera descrição legal abstrata do fato, impede
uma antecipação da análise de reprovabilidade do autor do fato, que somente será
possível quando do conhecimento das circunstâncias envolvidas no fato
concretamente praticado (FERRAJOLI, ibidem).
Conforme aponta Foucault (2008), todas estas idéias, principalmente, a
concepção de sujeito de direitos inerente à pessoa humana, importaram numa
humanização do sistema penal punitivo. A abolição dos suplícios e sua substituição
por formas moderadas de penas, tão reclamadas por Beccaria (1999) dão origem a
uma nova tecnologia punitiva: a prisão.
A pena privativa de liberdade, denominação concedida ao
encarceramento do autor de crime para efeitos de execução penal, apareceu
enquanto principal modelo punitivo na história recente do mundo ocidental. Muitos
fatores implicam na adoção da pena privativa de liberdade como forma de punição.
Primeiramente, a idéia de que é a liberdade pública o principal bem jurídico de uma
pessoa humana, logicamente após a própria vida, devendo tornar eficiente o símbolo
da prisão enquanto pena. Em segundo lugar, a idéia de que, em razão da
racionalidade que inerente, inclinaria o indivíduo a acreditar ser perfeitamente
capacitado ao entendimento de que esta privação de liberdade deu-se como medida
corretiva da ofensa praticada, guardando a pena, certa graduação em relação ao
crime cometido. Por último, a idéia de que é possível, re-ensinar os indivíduos
submetidos à privação da liberdade a novamente conviverem no meio social,
termina completando o tríplice argumento da pena de prisão: dissuadir; punir e
ressocializar. Ao paradigma ressocializador integra-se um fundamento de educação
intensiva dada pela instituição prisional, responsável pela aquisição de valores
37
socialmente aceitos por parte de seu público alvo: os delinqüentes (BECCARIA,
1999).
O funcionamento da prisão deveria corresponder a uma idéia semelhante
que também foi colocada através do aparecimento do hospital enquanto instituição
voltada ao tratamento intensivo do doente e capaz de lhe restaurar a saúde. A
criação de estruturas orgânicas de saberem capazes de orientar rapidamente as
informações para alcançar seus objetivos tais como a escola, a caserna e o hospital.
Entretanto, tão imediato como sua adoção enquanto forma básica de punição foi a
verificação de seus inconvenientes.
A pena privativa de liberdade, como elemento dissuasório da prática de
delitos, não conseguiu conter as ondas crescentes de criminalidade. O lapso
temporal gasto no cumprimento da pena privativa de liberdade não suscitou uma
reflexão acerca da prática de uma ofensa contra a sociedade, mas, pelo contrário,
revolta e insatisfação (BECCARIA, 1999).
3.3 O Abolicionismo Penal
As doutrinas abolicionistas impugnam como ilegítimo o direito penal - não
admitindo moralmente nenhum possível fim como justificador dos sofrimentos que
ocasiona - e consideram vantajosa a abolição da forma jurídico-penal da sanção
punitiva para dar lugar às medidas pedagógicas e outros meios informais de controle
social.
Conforme assevera Mathiesen (2003, p. 83) “o crime não possui realidade
ontológica”, logo, os conflitos sociais só podem ser solucionados a partir do
envolvimento de todas as partes. Segundo o autor, o abolicionismo nega validez e
legitimidade a todos os princípios sobre os quais tradicionalmente se assenta a
38
teoria do delito, propondo não apenas a extinção da pena, ou do direito penal, mas a
abolição de todo o sistema de justiça penal. Tal pensamento conceitua o sistema
penal como um mal social que cria mais problemas do que resolve, devendo ser
abolido para dar vida às comunidades, às instituições e aos homens.
Cumpre observar que, segundo Nilo Batista (apud Mathiesen, 2003, p.
86), “o sistema penal pode ser compreendido como um grupo de instituições
encarregadas, segundo regras jurídicas pertinentes, de realizar o Direito Penal, tal
como a instituição policial, o Ministério Público, a instituição judiciária e a instituição
penitenciária”. Em sua abordagem, Nilo Batista esclarece que:
[...] deslegitimando o direito penal desde um ponto de vista radicalmente externo e denunciando sua arbitrariedade, assim como os castigos e sofrimentos que inflige, os abolicionistas impõem ao direito penal uma grande "carga de justificação", exigindo réplicas moralmente satisfatórias e logicamente pertinentes ao raciocínio pelo qual se conclui que a soma dos sacrifícios que requer é superior às vantagens que proporciona (apud MATHIESEN, 2003, p. 86-87).
As propostas abolicionistas variam de acordo com os métodos e
pressupostos filosóficos de seus defensores, cada qual usando uma tática diferente
para a consecução do mesmo fim. Neste sentido, assinalam Zaffaroni e Pierangeli
(1997) a preferência marxista de Thomas Mathiesen, a fenomenológica de Louk
Hulsman, a estruturalista de Michel Foucault e a fenomenológico-historicista de Nils
Christie.
A proposta abolicionista, de um modo geral, procura satisfazer diversas
expectativas sociais durante a solução do problema criminal, tais como a conciliação
entre os envolvidos, a reparação do dano causado tanto à vítima como à
comunidade e, principalmente, a pacificação das relações sociais. Tal modelo prevê
considerável flexibilidade quanto aos procedimentos adotados para a consecução do
objetivo almejado, sempre através de vias alternativas ao sistema legal, admitindo
39
soluções informais, desinstitucionalizadas e comunitárias. Parte-se, pois, como
observa García-Pablos (apud ZAFFARONI E PIERANGELI, ibidem), da convicção
de que o crime é um conflito interpessoal e que sua solução efetiva, pacificadora,
deve ser encontrada pelos próprios implicados em lugar de ser imposta pelo sistema
legal com critérios formalistas e elevado custo social.
No pensamento abolicionista, prosseguem os autores, conciliação,
mediação e reparação passam a um primeiro plano como mecanismos substitutivos
e alternativos, mesmo que transitórios, à intervenção do Direito Penal clássico e do
sistema legal. Com efeito, a "devolução" do conflito às pessoas diretamente
implicadas no mesmo e sua solução com recursos extra-oficiais não-punitivos são
duas propostas-chave em um ideário que proclama a complexidade e diversidade
dos conflitos da realidade social cotidiana, reivindicando um tratamento civilizado do
delito (à margem do sistema legal) com critérios não-repressivos, senão
reparatórios. Pretende-se substituir o sistema penal por instâncias intermediárias ou
individualizadas de solução de conflitos que atendam às necessidades reais das
pessoas envolvidas, redefinindo as categorias de "crime" e "criminalidade", que
passariam a ser entendidas como "situações problemáticas" para possibilitar o ajuste
efetivo entre elas (ZAFFARONI e PIERANGELI, 1997 p. 121-122).
O modelo abolicionista, diversamente do modelo punitivo, cuja aplicação
exclui qualquer outra solução, pode ser aplicado isolada ou cumulativamente, não
sendo necessariamente excludente. Como se percebe, o movimento abolicionista
não se refere a sanções alternativas, mas em alternativas para o processo de justiça
criminal. Oliveira (1997, p. 84), a respeito, pondera:
[...] enquanto o sistema penal proclama os benefícios do ‘efeito dissuasivo da punição’, subscrevendo-se sob a política soberana do medo, o abolicionismo investe na prática analítica da persuasão que privilegia o acordo generoso baseado na argumentação, que não se reduz à
40
instrumentalidade técnica, mas amplia a possibilidade de discussão no cotidiano, entendido como prática do próprio pensamento criativo, que não prescreve limite para si mesmo ou para a convivência com o risco.
A maioria das alternativas para a justiça penal é de natureza não-legal,
aplicadas pelos próprios indivíduos envolvidos direta ou indiretamente nos eventos
problemáticos, tal como ocorre atualmente com os delitos que integram a "cifra
negra" da criminalidade. As alternativas devem ser flexíveis para permitir que cada
situação problemática seja resolvida a seu modo pelos protagonistas, pois cada
evento tem seus contornos próprios. A resposta dada em uma alternativa à justiça
criminal é, portanto, uma resposta a uma situação que tem uma compleição
diferente e diferentes dinâmicas em relação aos fatos como eles aparecem num
contexto da justiça criminal (ZAFFARONI e PIERANGELI, 1997).
Sobre história da pena, Silva (1998, p. 72) aponta o final da Segunda
Guerra Mundial como o nascimento do movimento abolicionista preconizado por
Filippo Gramatica:
À fase tecnicista sucedeu, logo após a terminação da Segunda Guerra Mundial, uma forte reação humanista e humanitária. O direito penal retomava ao seu leito natural, no caminho que vem trilhando desde Beccaria. Não surgiu propriamente uma nova escola penal, mas um movimento, sumamente criativo, que vem influindo de modo intenso na reforma penal e penitenciária da segunda metade do século XX. Foi seu idealizador o advogado e professor italiano Filippo Gramatica, que fundou em Gênova, em 1945, um Centro de Estudos de Defesa Social, o qual realizou, dois anos depois, em 1947, em San Remo, o 1º Congresso Internacional de Defesa Social. Gramatica adotava uma posição radical. Para ele a Defesa Social consistia na ação do Estado destinada a garantir a ordem social, mediante meios que importassem a própria abolição do direito penal e dos sistemas penitenciários vigentes.
O movimento iniciado por Gramatica, após receber inúmeras adesões,
acabou sendo cerceado por alguns de seus seguidores, com destaque para Marc
Ancel, que em seu livro "A nova defesa social" propôs a adoção de penas
alternativas em substituição à pena de prisão, que seria utilizada somente em casos
extremos, como verdadeira medida de segurança contra delinquentes perigosos.
Embora tenha acatado a proposta da corrente majoritária, em favor do princípio da
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intervenção mínima, Gramatica deixou ressalvado que não abdicava de suas
convicções pessoais acerca do abolicionismo, preservando o movimento que passou
a se mostrar pluralista (ZAFFARONI e PIERANGELI, 1997, p. 125).
Outros autores consideram o abolicionismo penal uma vertente do que se
convencionou chamar de “nova criminologia” ou “criminologia crítica” (grifos da
autora), surgida nos Estados Unidos por volta das décadas de 1960 e 1970, a qual,
rompendo com a criminologia positiva e sob a inspiração de teorias sociológicas das
mais diversas tendências, substituiu o padrão etiológico utilizado pela criminologia
positiva pelo padrão do controle social.
Não obstante ao mérito com que a teoria abolicionista foi distinguida,
principalmente em face das fundamentadas e profundas críticas formuladas ao
sistema penal, não durou muito para que entrasse em processo de crise. Alberto
Silva Franco (apud ZAFFARONI e PIERANGELI, 1997, p. 128), observa que:
A proposta da abolição do controle social penal foi posta em xeque não apenas pelos movimentos, feminista e ecológico, mas principalmente pelos criminólogos que constituíram o grupo denominado ‘novos realistas’ ou ‘realistas de esquerda’. Eram exatamente os fracos, os débeis do sistema social, diziam, que sofriam as consequências das ações delitivas, de forma que a supressão do mecanismo penal servia para atingi-los em primeiro lugar. Era preciso, portanto, lutar contra o crime e para este combate deveria ser empregado o próprio instrumento repressivo submetido, no entanto, a um controle menos seletivo.
Em que pesem as objeções contemporâneas, que veremos adiante, a
doutrina abolicionista está longe de ser definitivamente suplantada. Ao contrário,
vem conquistando, paulatinamente, novos adeptos e retornando ao centro das
discussões.
Desse modo, é possível afirmar que todos os valores ou princípios, que
costumam fundamentar a intervenção do sistema penal – a igualdade perante a lei,
a segurança, a punição do criminoso como realização da justiça – desmoronam,
diante desta sua aplicação excepcional, e, portanto, injusta, a um reduzido número
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de selecionados violadores da lei penal. Por sua vez, os crimes não atingidos pelo
sistema penal são de algum modo, resolvidos pelas partes envolvidas, sendo
necessário reconhecer que a proposta abolicionista é tacitamente admitida ou
tolerada, pois não se pode admitir tamanha ingenuidade em relação ao
desconhecimento de tais eventos por parte das autoridades responsáveis pelo
funcionamento do sistema. Em outras palavras, a supressão do sistema penal iria
unificar a solução adotada diante de um fato definido como crime, estendendo à
parcela minoritária que é alcançada pelo sistema o tratamento não penal que, na
prática, resolve os conflitos da maioria das pessoas envolvidas em eventos
criminalizáveis.
3.4 Ineficácia do Modelo Punitivo
Como resultado do alargamento do campo de atuação do sistema penal,
aumenta-se o arbítrio seletivo de seus agentes, que atuam mediante uma pré-
seleção, sem qualquer respaldo legal, atingindo basicamente as pessoas mais
vulneráveis do meio social. Na expressão de Zaffaroni e Pierangeli (1997, p. 133),
"os órgãos executivos têm ‘espaço legal’ para exercer o poder repressivo sobre
qualquer habitante, mas operam quando e contra quem decidem".
O sistema penal encontra como uma das principais justificativas para a
sua existência o que se convencionou chamar de "prevenção". Segundo este
argumento, prevendo-se a punição em razão da prática de determinados atos, todos
ficariam intimidados e, por isso, não agiriam da forma considerada reprovável. Os
abolicionistas entendem que este princípio é equivocado porque busca educar
através do medo, pretendendo impor um padrão de conduta ao invés de privilegiar o
diálogo, o convencimento, a argumentação. Revelando sua incapacidade de
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persuadir pelo argumento, o direito penal, como instância formal de regulação de
conflitos, impõe a violência e exibe sua fraqueza, mostrando-se incapaz de prevenir
a prática de novos delitos (BATISTA, 2004).
Com efeito, apesar da tipificação legal, o homicídio, o aborto, o roubo, o
tráfico de entorpecentes e outros delitos são praticados com relativa regularidade, tal
como ocorreria se não houvesse qualquer proibição. Isso implica dizer que as
pessoas não deixam de praticar as condutas definidas como crime por temor à
sanção prevista no preceito secundário da norma, mas por força dos valores
adquiridos em toda sua existência, tais como o relacionamento familiar, a escola, a
igreja, a sociedade, etc. (BATISTA, 2004).
Na opinião de Leal (1998, p. 55), é pacífico o entendimento de que a pena
de prisão não intimida, pois os cárceres estão abarrotados de pessoas que não se
amedrontam diante da pena, e adverte que "fosse eficaz a função intimidativa, a
criminalidade seria obviamente menor onde a pena de morte se aplica em nível
oficial, o que não sucede de modo algum". Além de rejeitar o sistema penal como
inibidor da criminalidade, os abolicionistas entendem que, por apresentar resposta
violenta e pública, ele acaba por estimular a própria violência em outros campos,
principalmente nos presídios, considerado por muitos como verdadeira "escola do
crime".
O sistema penal pressupõe que todos os envolvidos - réus e vítimas -
tenham as mesmas reações e necessidades, desconsiderando a singularidade de
cada um. Dessa maneira, na grande maioria dos casos, mesmo a opinião do
ofendido não possui qualquer relevância para o desfecho do processo criminal,
cabendo unicamente ao Estado a persecução e aplicação da pena. A proposta
abolicionista, de promover um encontro entre as partes envolvidas, valorando
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especialmente a expectativa do ofendido, proporcionaria maior possibilidade de
composição do conflito.
Para Ferrajoli (2002) o direito penal mínimo é uma alternativa progressista
frente à proposta abolicionista, uma vez que, atuando após o fato-crime, atinge
apenas o agente que espontaneamente optou por realizar a conduta proibida por lei,
realizando o controle social sem atingir a liberdade dos demais cidadãos. Com a
abolição do sistema penal, ao contrário, o controle social exigiria tamanha
intervenção disciplinar que restringiria a liberdade e a privacidade de todos, além
favorecer a execução de vinganças por mãos individuais ou estatais.
Na verdade, segundo Mathiesen (2003), as enormes dificuldades
impostas pela atual estrutura de poder à proposta abolicionista, provocam temores
em relação a uma supressão do sistema penal. O controle social seja regido por
técnicas mais repressivas e irracionais, como o controle psiquiátrico, administrativo e
outros. Ou seja, se a proposta abolicionista falhar haverá um inevitável retrocesso
com a perda de importantes conquistas obtidas duramente ao longo dos anos, como
o princípio da legalidade e do devido processo legal.
Nesse aspecto, é necessário considerar que o sistema penal não satisfaz
plenamente os anseios daqueles que sofrem a violência. Primeiro, porque o
agressor pode ser absolvido, aumentando a dor daqueles que suportaram as
consequências do crime e, em segundo lugar, porque a pena eventualmente
aplicada, diante do mal praticado, pode ser apenas simbólica, insignificante
(MATHIESEN, 2003).
Nas hipóteses arroladas - absolvição do réu e condenação simbólica -,
bastante frequentes no Direito Penal, não há uma de vingança privada, o que de
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certa forma contraria o argumento dos adversários do abolicionismo. Sobre tal
aspecto, Zaffaroni e Pierangeli (1997, p. 154) observam:
No plano real ou social, a experiência já demonstra suficientemente que é desnecessário o exercício do poder do sistema penal para evitar-se a generalização da vingança, porque o sistema penal só atua sobre um número reduzidíssimo de casos e, mesmo assim, a imensa maioria das ocorrências impunes não generaliza vinganças ilimitadas [...]. A regra invariável da inoperância geral do sistema penal diante dos conflitos mais graves e massivos apenas excepcionalmente dá lugar a vinganças; o que acontece é que os casos muito isolados de vinganças são altamente alardeados, instigando a imitação e inventando-se uma realidade que contribui para fortalecer e reforçar a justificativa do exercício do poder do sistema penal.
Destaque-se, finalmente, que as objeções ao movimento abolicionista em
nenhum momento desmerecem as críticas por ele formuladas, que apontam para a
total perda de legitimidade do sistema penal.
3.5 A Intervenção Mínima como Alternativa à Proposta Abolicionista
O abolicionismo surgiu a partir da percepção de que o sistema penal, que
havia significado um enorme avanço da humanidade contra a mácula das torturas e
contra a pena de morte, perdeu sua legitimidade como instrumento de controle
social. O movimento abolicionista, no entanto, ao denunciar essa perda de
legitimidade, não se articula o suficiente na propositura de um método seguro para
possibilitar a abolição imediata do sistema penal. Diante de tal impasse, o princípio
da intervenção mínima configura-se como proposta plausível e que encontra ampla
adesão da maioria da doutrina.
De fato, a opção pela construção de sociedades melhores, mais justas e
mais racionais, impõe a reafirmação da necessidade imediata de redução do
sistema penal enquanto não se alcança sua abolição, de forma a manter as
garantias conquistadas em favor do cidadão e, ao mesmo tempo, abrir espaço para
a progressiva aplicação de mecanismos não penais de controle, além de privilegiar
46
medidas preventivas de atuação sobre as causas e as origens estruturais de
conflitos e situações socialmente negativas. Callegari (1998) afirma que um acordo
entre os mais diversos setores da doutrina em proclamar o princípio da intervenção
mínima do Direito Penal produziria:
Isso enlaçaria com a tradição liberal que arranca de Beccaria e que postula a humanização do Direito Penal: parte-se da idéia que a intervenção penal supõe uma intromissão do Estado na esfera da liberdade do cidadão, que somente resulta tolerável quando é estritamente necessária – inevitável – para a proteção desse mesmo cidadão. Depois disso se encontra a convicção de que é preciso defender ao cidadão do poder coativo do Estado (CALLEGARI, 1998, p. 70).
O minimalismo penal, a exemplo do abolicionismo, nega legitimidade ao
sistema, mas ao invés de postular sua abolição e a solução de conflitos por
instâncias ou mecanismos informais, propõe sua aplicação mínima como mal menor
necessário. Por princípio da intervenção mínima, pois, se deve entender que o
Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens
jurídicos mais importantes, deixando para os outros ramos do Direito ou instâncias
não formais de solução de conflitos as perturbações mais leves de tais bens
(MATHIESEN, 2003).
Oliveira (1997) adverte que há no mundo uma variedade de situações
políticas, econômicas, sociais e culturais que precisam ser atendidas em suas
especificações e anseios. O problema reside, pois, na identificação de argumentos
que articulem esta diversidade de elementos. Segundo o autor:
[...] as Regras de Tóquio constituem um significativo progresso para aumentar a eficácia da sociedade frente ao delito. As sanções e medidas não privativas da liberdade têm grande importância na Justiça Penal de muitas culturas e sistemas jurídicos diferentes [...] um dos objetivos das Regras de Tóquio é destacar a importância das sanções e medidas não privativas da liberdade, como meio de tratamento dos delinquentes com o devido proveito [...] As Regras de Tóquio foram formuladas para ser aplicadas em uma grade diversidade de sistemas jurídicos e para auxiliá-los a fomentar a utilização justa de sanções ou medidas que possam ser cumpridas na comunidade [...] (OLIVEIRA, 1997, p. 228-229).
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Ou seja, as medidas não privativas de liberdade – como aquelas
dispostas nas Regras de Tóquio1 - não podem ser irresponsáveis, ao contrário,
devem avaliar cada caso e cada indivíduo, de modo a não produzir uma situação
ainda mais insustentável.
Na mesma seara, Greco (2001) observa que o Direito Penal deve
interferir o menos possível na vida em sociedade, somente devendo ser solicitado
quando os demais ramos do Direito, comprovadamente, não forem capazes de
proteger aqueles bens considerados da maior importância. No mesmo sentido:
O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanções ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade (BITENCOURT, 2004, p. 84).
A condição subsidiária do Direito Penal, no entanto, não é percebida tão
somente no confronto entre a proteção penal e a proteção genérica do ordenamento
jurídico aos bens jurídicos dos cidadãos e da sociedade, mas também no confronto
entre as condutas penalmente relevantes, ofensivas a valores ético-sociais tutelados
pelo Direito Penal, passíveis de sanção privativa de liberdade ou penas alternativas.
A idéia da intervenção mínima do Direito Penal não se encontra apenas no aspecto
de ser ele a última instância formal protetora de bens jurídicos, ocupando-se dos
1 No 8° Congresso da ONU, realizado em 14 de dezembro de 1990, orientou-se o estabelecimento de regras mínimas sobre as medidas não-privativas de liberdade. Essas regras, amplamente conhecidas como Regras de Tóquio, têm por especial fundamento o disposto em seus dispositivos 1.1 e 1.2, in verbis: “As presentes Regras Mínimas enunciam um conjunto de princípios básicos para promover o emprego de medidas não privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas da prisão; as presentes regras têm por objetivo promover uma maior participação da comunidade na administração da Justiça Penal e, muito especialmente, no tratamento do delinqüente, bem como estimular entre os delinqüentes o senso de responsabilidade em relação à sociedade.”
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conflitos mais graves, nos quais os interesses dos implicados no embate se
encontram mais intensamente ameaçados, como igualmente na visão de que a
punição estatal deve ser regida pelo princípio da proporcionalidade, pelo qual as
penas privativas de liberdade somente serão aplicadas quando necessárias para a
prevenção geral e especial positiva, prescindindo-se de tal rigor e cominando-se
alternativas penais para os demais casos, em que a interferência penal se justifica
com menos severidade (GRECO, 2001; CAPEZ, 2007).
A Lei n.º 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais, e a
Lei n.º 9.714/98, modificadora do tratamento dispensado às penas restritivas de
direitos, são exemplos de um desejo ainda contido, mas sinalizador de uma
legislação mais ampla.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo delineamento aqui proposto, foi possível constatar que concepção do
Direito e da sanção penal do Estado Liberal imprime ênfase na proteção de Diretos
individuais, numa intervenção estatal mínima e legalmente definida no
estabelecimento de um claro elenco de garantias do cidadão frente ao Estado; já a
orientação do Direito intervencionista, próprio do Estado Social, estará voltada mais
à garantia dos interesses coletivos estatais e ao emprego de sanções de cunho
preventivo-especial e de tratamento do criminoso, praticamente extinguindo
quaisquer diferenças essenciais entre penas e medidas de segurança.
Finalmente, a concepção do Estado Democrático de Direito, enquanto
idéia sintetizadora do Estado liberal e do Estado social, reconhece legitimidade ao
Direito Penal, enquanto se mostre este estritamente necessário para a tutela dos
interesses primordiais dos cidadãos, isto é, dos bens jurídicos, como tais entendidos
todas aquelas condições asseguradoras da efetiva participação das pessoas na vida
social.
Essa idéia supõe uma democratização do Direito Penal, manifestada no
desenvolvimento da interferência dos cidadãos na configuração desse ramo do
ordenamento jurídico; na democratização da escolha de tipos penais; na criação de
novos paradigmas definidores de crimes concernentes a condutas lesivas a
interesses, novos ou permanentes, de amplos setores da população; na
descriminação de condutas não perturbadoras de bens jurídicos; na cominação e
fixação de sanções em harmonia com as concepções sociais majoritárias; na
execução das penas atendendo tanto às necessidades sociais como as do
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condenado, possibilitando-se a participação efetiva destes e das instituições
representativas do interesse social na execução.
Uma visão democrática do Direito não estará restrita apenas aos
interesses da maioria, cabendo-lhe, também, atender e respeitar as expectativas
legítimas das minorias e de todos os cidadãos, na medida em que seja isto
compatível com a paz social. Papel do Direito Penal não é apenas o de defender as
maiorias da ação criminosa, mas, também o de garantir o respeito à dignidade do
homem processado e condenado, oferecendo-lhe alternativas para o seu
comportamento desviado. Uma concepção democrática da execução das penas
haverá de basear-se na participação ativa do condenado em todas as etapas desse
processo e não visará nunca à imposição coercitiva ao condenado de um
determinado sistema de valores, restringindo-se ao propósito de ampliar as
possibilidades de escolha valorativa daquele sobre quem recaiu o castigo estatal, ou
até simplesmente orientando-o no sentido de continuar expressando, porém em
forma não incompatível com a paz social, sua inconformidade e sua convicção
axiológica particular.
Os próprios juizados informais constituem um elemento de conciliação
indispensável à dinâmica dos tempos modernos; além de conter o avanço
improdutivo dos processos – e não que desprezíveis, mas, na maioria das vezes,
potencialmente negociáveis, democratizam as instâncias de poder.
Deste modo, a noção de culpabilidade ou de uma fixação do valor da
pena segundo critério limitador de reprovação do fato não se extingue, ao contrário,
mantém-se como medida de balizamento da pena, que não pode ser ultrapassada
em função de convir ou servir a este ou aquele pensamento. A Lei no 9.099/95 inova
o ordenamento jurídico-penal, justamente pela previsão da despenalização, mesmo
51
que não se constitua uma revolução jurídica, é uma transformação intelectual que
admite e opera as condicionantes necessárias para a flexibilização do princípio da
obrigatoriedade da ação penal.
52
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