universidade presbiteriana mackenzielivros01.livrosgratis.com.br/cp031077.pdf · as metamorfoses de...

115
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE DIVA DE OLIVEIRA OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES: A ESTILIZAÇÃO DO MITO NA OBRA LOBATIANA SÃO PAULO 2006

Upload: doquynh

Post on 10-Nov-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

DIVA DE OLIVEIRA

OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES: A ESTILIZAÇÃO DO MITO NA OBRA LOBATIANA

SÃO PAULO 2006

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

DIVA DE OLIVEIRA

OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES: A ESTILIZAÇÃO DO MITO NA OBRA LOBATIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profª.Drª. Maria Luiza Guarnieri Atik

São Paulo 2006

DIVA DE OLIVEIRA

OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES: A ESTILIZAÇÃO DO MITO NA OBRA LOBATIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre.

Aprovada em _____/_____ / 2006.

BANCA EXAMINADORA

Profª.Drª. Maria Luisa Guarnieri Atik Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profª.Drª. Elaine Cristina Prado dos Santos Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profª. Drª. Ana Maria Domingues de Oliveira Universidade Estadual Paulista

Aos meus dois (grandes) amores: Karen, minha querida filha e ao meu marido José, pela paciência, torcida e apoio.

AGRADECIMENTOS

A Deus, por fortalecer a minha fé e a crença de que tudo vale a pena.

Aos meus pais, Anastácio e Aparecida, por repetir sempre “o importante é não desistir, pois

você vai conseguir”.

À minha estimada amiga Márcia Breguês, pelas constantes discussões teóricas, filosóficas,

enriquecedoras, que muito ampliaram o meu conhecimento. Por ter muita paciência comigo e

me apoiar com suas idéias tão precisas nas horas mais complicadas. Que nossa amizade

continue sempre e que se fortaleça cada vez mais.

Aos colegas Valter Barcala e Fábio Fazilari por terem sido tão pacientes em todos os

momentos, pelo grupo de estudo e apoio nas horas mais complicadas.

À Universidade Presbiteriana Mackenzie que possibilitou meu crescimento acadêmico.

Á minha orientadora Profª Drª Maria Luiza Guarnieri Atik, a quem devo imensa gratidão pelo

apoio teórico e pela paciência nos momentos mais difíceis.

Aos meus amigos da escola Cícero Barcala, que torceram para que tudo desse certo.

Ao Governo do Estado de São Paulo, pela bolsa de estudos.

Ao Fundo Mackenzie de pesquisa, pela ajuda de custo concedida.

Se se quiser falar ao coração dos homens, há que se contar uma história. Dessas onde não faltem animais, ou deuses e muita fantasia. Porque é assim – suave e docemente que se despertam as consciências

(Jean de La Fontaine)

RESUMO

O objetivo deste trabalho é uma abordagem intertextual entre os textos-base Héracles de

Eurípedes, As metamorfoses de Ovídio e Os doze Trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato.

inicialmente, analisar-se- á como o mito do herói grego Hércules foi estilizado por Monteiro

Lobato, através de um levantamento das marcas inseridas na variante intertextual, apontando

as semelhanças e as dessemelhanças em relação aos textos-base. Para tanto , promover-se-á o

encontro dos conceitos sobre dialogismo de Mikhail Bakhtin e a teoria sobre intertextualidade

desenvolvida por Julia Kristeva. Pretende-se ainda demonstrar de que maneira o escritor de

Taubaté contribuiu para a formação da Literatura Infantil brasileira e as inovações por ele

idealizadas nas mais diversas áreas de atuação.

Palavras-chaves: Mitologia. Intertextualidade. Literatura infantil.

ABSTRACT

The aim of this work is a dialogism approach between the basis-text, Héracles de Eurípedes,

As metamorfoses de Ovídio and Os Doze de Trabalhos de Hércules by Monteiro Lobato.

Firstly, it will be researched how Hercules, the Greek mith was stylised by Monteiro Lobato,

throughout the gathering of signs inserted in the dialogical variety text pointing to the likeness

and the difference concerning to the basis-texts. It will prosecuted, hence, the meeting

between the theory about Mikhail Bakhtin’s dialogism and the development about Julia

Kristeva’ s theory related to the Bakhtin’s proposals - The intertextuality. It will be still

intended to demonstrate how the Taubaté’s writer contributed to the formation of the

Brazilian childish literature and the improvements idealized by him in several performance

fields.

Keywords: Mith. Dialogism. Childish Literature, intertextualy

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 9

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................... 12

3 UM PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL...................................................... 16

3.1 A LITERATURA INFANTIL NA EUROPA ............................................................. 16

3.2 LITERATURA INFANTIL NO BRASIL: MONTEIRO LOBATO ........................ 19

3.3 LOBATO: A PLURALIDADE DE DOIS MUNDOS: REAL E IMAGINÁRIO .... 26

3.4 PERSONAGENS LOBATIANAS................................................................................ 35

4 O MITO GREGO NA VISÃO DAS PERSONAGENS DO SÍTIO ............................. 43

4.1 AS PROEZAS DE HÉRCULES SOB A ÓTICA DE MONTEIRO LOBATO ....... 43

4.2 SEMELHANÇAS E DESSEMELHANÇAS ENTRE OS TEXTOS-BASE E A

VARIANTE INTERTEXTUAL .......................................................................................... 51

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 106

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 109

9

1 INTRODUÇÃO

Para Lobato aprende-se lendo, ouvindo histórias, viajando, vivendo.

(Sueli Tomazini Barros Cassal)

Este trabalho visa a uma abordagem intertextual entre o mito grego de Héracles e a

variante Os doze trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato, comparando-se as semelhanças e

dessemelhanças da obra lobatiana em relação ao universo mítico. Almeja-se, ainda, destacar a

contribuição do escritor de Taubaté para a formação da Literatura Infantil Brasileira.

Lobato foi um escritor inovador e com a audácia de suas idéias, modificou o

pensamento de diversas gerações de brasileiros. Seu objetivo maior, o de que a criança tivesse

um espaço particular onde lhe fosse permitido sonhar, foi alcançado plenamente. Ele ensinou

as crianças de várias gerações, a gostar de ler e pensar nos problemas brasileiros de forma

leve e lúdica, sem o peso dos livros escolares. Conseguiu perpetuar na memória da família

brasileira suas histórias mágicas.

Paralelamente, exerceu forte presença no campo literário de sua época como escritor,

editor e empresário. Como editor abriu espaço para a publicação de obras de autores

nacionais pouco conhecidos pelo público leitor. Como empresário, estava ciente da

necessidade de divulgação das obras no processo de comercialização. Para ele, o livro era

uma mercadoria como outra qualquer, conforme especifica no trecho a seguir:

O nosso sistema é esperar que o leitor venha; vamos onde está o comprador. Perseguimos a caça. Fazemos o livro cair do nariz de todos os possíveis leitores desta terra. Não às capitais, como os velhos editores. Afundamos por quanto biboca existe (LOBATO, 1946, p.239).

Para realizar seu intento, ele utilizou-se do sistema de consignação; conseguiu que a

divulgação e a comercialização dos livros de sua editora fossem feitos em diferentes postos

de vendas. Os livros, até então, eram meras traduções de autores estrangeiros ou publicações

10

esporádicas, pois não existiam parques gráficos no Brasil e poucas editoras se aventuravam

por aqui, pois achavam que não havia público leitor significativo.

Segundo Coelho, crítica literária renomada e autora de diversos livros sobre literatura

infantil, Lobato tornou-se um marco divisório entre passado e futuro com a criação de uma

nova forma de fazer literatura:

(...) coube a Monteiro Lobato a fortuna de ser na área da literatura infantil e juvenil, o divisor de águas que separa o Brasil de ontem do Brasil de hoje. Foi ele, sem sombra de dúvida que, fazendo a herança do passado submergir no presente, encontrou o caminho criador que a literatura infantil estava necessitando. Rompe, pela raiz, com o racionalismo tradicional e abre as portas para a criatividade que precisava ser liberada [...] (COELHO, 1981, p.354).

Lobato estava sempre à frente de seu tempo, tornando-se assim um importante difusor

da literatura para crianças. Aquelas que tinham o prazer de tomar contato com seus livros

saíam modificadas. No processo de construção de uma literatura para o público infantil,

Lobato estabeleceu contínuo diálogo com a realidade brasileira, ao mesmo tempo em que

propôs uma nova possibilidade de leitura do mundo a partir da criação de um universo

totalmente mágico. O Sítio do Pica-pau Amarelo, lugar em que real e maravilhoso se inter-

relacionam, permite aos pequenos leitores a descoberta de outros povos e outras culturas. As

personagens do sítio, por sua vez, contam com a ajuda de dois elementos mágicos para se

deslocarem no tempo e no espaço: o pó de pirlimpimpim e o recurso do faz-de-conta.

Ao trabalhar com a fantasia, com o faz-de-conta, Lobato ensina as crianças a pensarem

e agirem criticamente, não se deixando enganar tão facilmente. Ele respeita, pois, a criança

como um ser pensante, capaz de observar, criticar, comparar e tirar suas próprias conclusões.

Foi, sobretudo, a preocupação com a formação moral e intelectual das crianças

brasileiras das duas primeiras décadas do século XX, que o levou a construir um espaço

totalmente dedicado aos pequenos, um local mágico onde tudo podia acontecer. Este recanto

aprazível e cheio de aventuras podia ser visitado a qualquer momento, por qualquer criança,

bastando para tal apenas um gesto: abrir o livro e a partir daí viajar através da imaginação

11

por lugares nunca dantes viajados. Lobato pretendia transformar a tristeza em alegria, pois

desejava fazer uma geléia bem doce com as amoras espinhentas das traduções, para que

os pequenos leitores pudessem ler por prazer.

Todos os empreendimentos de Lobato foram feitos com paixão e polêmica, uma vez

que acreditava que o país tinha jeito e que o povo brasileiro necessitava de muito mais

benefícios que aqueles oferecidos. Sabe-se que neste período, não existiam muitos livros

voltados especialmente para diversão das crianças, isso não significava que os escritores do

período não se preocupassem em fazer uma literatura voltada especialmente para elas, só que

a linha de trabalho seguida era nos moldes europeus, voltados para a pedagogia, que pregava

apenas o individualismo e a obediência às idéias e padrões consagrados.

A literatura infantil de Lobato colaborou significativamente para a diversão, a

ampliação de conhecimentos de mundo e conseqüentemente na formação moral e intelectual

das crianças. Propondo uma literatura inovadora, com estilo próprio, seus livros não só

encantavam as crianças, como também permitiam o acesso a diversas áreas do conhecimento

como história, geografia, mitologia, folclore, gramática, culinária, aritmética, política,

petróleo, saúde etc.

Após a exposição do objetivo desta pesquisa, o passo seguinte é esboçar como será

estruturado o trabalho. No primeiro capítulo, será apresentada a fundamentação teórica que

sustentará a análise. O segundo capítulo, subdividido em quatro subtítulos, tem como focos o

surgimento da literatura infantil na Europa e no Brasil e a especificidade da obra lobatiana,

com a criação do Sítio do Picapau Amarelo e de seus habitantes.

No terceiro capítulo, será analisada a releitura do mito de Héracles na variante

intertextual Os doze trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato. Para o cotejo da obra

lobatiana com as fontes básicas de referência na literatura greco-latina sobre as proezas de

Hércules, elegeram-se dois textos-base: As Metamorfoses de Ovídio e Héracles de Eurípides.

12

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A intertextualidade fala uma língua cujo vocabulário é a soma dos textos existentes.

(Laurent Jenny)

Após estas breves considerações sobre o objetivo do trabalho, aponta-se as razões que

se levaram a escolher Os doze trabalhos de Hércules, de Lobato, como corpus de desse

estudo. Essa escolha é decorrente da busca de um tema que possibilitasse a abordagem da

literatura infantil lobatiana sob a ótica da intertextualidade. Como enuncia o próprio título da

obra, o mito de Hércules, incorporado à construção da tessitura do discurso narrativo, permite

uma leitura comparativa entre duas visões de mundo: a do universo mitológico e a do

universo infantil.

Nessa abordagem comparativa entre o mito grego e Os doze trabalhos de Hércules

pretende-se detectar ainda semelhanças e dessemelhanças, verificando como os textos. As

Metamorfoses de Ovídio e Héracles de Eurípides foram resgatados, assimilados e

transformados.

Para embasar este estudo, serão utilizados os estudos de Mikhail Bakhtin1 a respeito

do dialogismo e do conceito de intertextualidade proposto por Julia Kristeva2.

Para uma melhor compreensão da noção de intertextualidade, é necessário num

primeiro momento considerar a noção de dialogismo proposta por Bakhtin na obra Problemas

da poética de Dostoievski, na qual o teórico russo percebe a ocorrência simultânea de uma

multiplicidade de vozes que dialogam entre si, sem que uma subjugue a outra. Isso significa

que, desse processo interativo, decorre a multiplicidade de pontos de vista acerca de um

mesmo assunto. Para ele, o dialogismo não se refere exclusivamente à interação oral

estabelecida entre os interlocutores, mas também a uma interação entre os mais variados tipos

de discursos, pressupondo uma troca de conhecimentos também no âmbito da literatura.

1 Teórico russo que desenvolveu estudos diversos sobre a teoria da linguagem, entre eles o de dialogismo. 2 Estudiosa francesa que, na esteira de Bakhtin, trabalhou com a noção de intertextualidade a partir de 1969.

13

Bakhtin considera o dialogismo como o princípio constitutivo da linguagem e da

condição do discurso. “O discurso não é individual porque se constrói entre pelo menos dois

interlocutores, que por sua vez são seres sociais; não é individual porque se constrói como um

diálogo entre discursos, ou seja, porque mantém relação com outros discursos” (BARROS,

1997, p.33).

Observa-se, então, que para a ocorrência do discurso são necessários dois

interlocutores ou autores que, ao interagirem, constroem um novo sentido para o discurso.

Outro aspecto do dialogismo a ser considerado é o diálogo que se instala no interior de cada

texto e o define.

Para Bakhtin a “vida é dialógica por natureza” e cada texto está muito além de uma

possível unidade fechada, estática e homogênea de significação, que o aprisiona em um único

discurso. Na circularidade infinita das linguagens, o texto-base fragmenta-se, apagando suas

marcas, disseminadas pelas variantes intertextuais que dele vão surgindo.

A estudiosa francesa Kristeva, ao propor a substituição do conceito de dialogismo pelo

da intertextualidade, considera o seguinte fato: assim como a palavra ou enunciado, produzido

durante a interação verbal oral entre interlocutores ganha uma nova significação, o mesmo

pode ocorrer com o texto literário elaborado por um escritor, que ganha pleno sentido quando

atualizado e compartilhado pelo leitor, ainda mais quando tal texto dialoga com textos alheios

que lhe são anteriores ou contemporâneos.

Quando ocorre essa interação, entre os autores do texto literário ou mesmo entre os

próprios textos, presume-se sempre um contexto sócio-histórico e cultural também anterior ou

contemporâneo. O escritor assimila outros textos e ao produzir reflete essas influências.

Para Kristeva, a intertextualidade encontra-se na conexão entre um texto e todos os

outros já produzidos ou a produzir, no qual, qualquer texto se constrói como “um mosaico de

14

citações (KRISTEVA13, 1974 apud Jenny, 1989, p. 13)”. Ela ressalta ainda que (...) a

intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho

de transformação e assimilação de vários textos. (1989, p. 14).

Segundo Discini:

As semelhanças constituem o pré-requisito indispensável à transformação do sentido. A transformação, por sua vez, desencadeia e define as variantes intertextuais, na medida em que lhes dá a especificidade da paródia, da polêmica, da estilização ou da paráfrase. Sobre a semelhança, constroem-se diferenças, construindo-se, assim o sentido na intertextualidade (2004, p. 30).

Conforme a citação acima, verifica-se que um texto sempre remete a outro texto, por

suas semelhanças ou diferenças. Para Kristeva, “todo texto é absorção e transformação de

um outro texto. Em lugar de intersubjetividade instala-se a de intertextualidade e a

linguagem poética lê-se pelo menos dupla”. ( 1974, p. 63-64).

A escrita literária, desde que bem observadas, não é mais do que uma releitura do

corpus já existente. Cada escritor seria um atualizador da memória literária, donde se supõe

que nenhuma obra literária seria absolutamente original, encerrada nela mesma.

Laurent Jenny constata que todos os processos intertextuais requerem um trabalho de

assimilação e transformação. A característica básica da intertextualidade seria um olhar crítico

sobre os outros textos, por meio de paródias, apropriações, citações, plágios, montagens, etc.

A citação é a forma de intertextualidade mais visível e consiste numa reprodução

parcial de um texto de outro autor. Além de transcrição do texto, tem-se a indicação da obra e

do autor. Em muitos casos, a citação é tão breve que se torna em mera referência,

transformando-se, então, em alusão. Há diversos tipos de citação: intratextual, quando aparece

no corpo do texto; extratextual, na forma de epígrafe e está num lugar destacado; pode

também servir de mote, ou estar inserida em nota de rodapé. Segundo Genette, a citação é a

indicação explícita de um texto. O texto citado é tomado como o hipotexto; o texto absorvente

3 KRISTEVA...

15

como o hipertexto. A citação é um tipo de intertextualidade explícita, ao contrário da alusão,

que é menos clara e exige a competência do leitor.

A estilização também é uma forma de intertextualidade e ocorre quando “há uma

captação do texto base; captação fundamental, narrativa e discursiva e (...) usar o discurso de

um outro como o discurso de um outro é captar-lhe as estruturas” (DISCINI, 2004, p.66).

Na estilização tem-se a transfiguração do texto-base. É a transformação das figuras que

preenchem os mesmos percursos temáticos do texto-base, acrescentando-lhes outros. Essa

transfiguração seria uma recriação.

Na estilização existe uma captação da seqüência narrativa do enunciado do texto-base,

porém alteradas, pois a sintaxe não fica livre das modificações semânticas. Na variante

intertextual, os acréscimos se transformam em figuras ao serem incluídos novos percursos

temáticos e acaba sendo construído um novo plano de expressão diferente daquele do texto-

base. Segundo Discini, “a estilização mantém, com o texto-base, portanto, mais uma relação

de conformidade que de confronto; confirma o texto base, liga-se a ele na mesma dêixis,

legitima-se ao legitimá-lo” (2004, p.67).

Os alicerces teóricos aqui apresentados serão utilizados quando for analisado o mito de

Hércules na trama narrativa de sua variante intertextual Os doze trabalhos de Hércules de

Lobato.

Diante dessas considerações, deseja-se que os objetivos acima propostos, sejam

devidamente alcançados e, principalmente, que contribuam de alguma forma para a

ampliação dos estudos baseados no diálogo existente entre os textos.

16

3 UM PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL

A educação sempre foi o alvo de Lobato. Quando resolve abandonar a carreira de contista pela de contador de histórias infantis, volta-se basicamente para a pedagogia. Lê-se Lobato para aprender.

(Sueli Tomazini Barros Cassal)

3.1 A LITERATURA INFANTIL NA EUROPA

Para melhor entender a literatura infantil proposta por Monteiro Lobato serão

engendradas algumas considerações sobre a origem e o desenvolvimento da literatura

infantil na Europa. O conceito de literatura infantil surgiu na Europa no final do século

XVII, com Fenélon (1651-1715), justamente com a função de educar moralmente as

crianças. Antes disso não existiam livros específicos para crianças, uma vez que não se

falava em infância. As crianças participavam da vida em sociedade sem cuidados especiais

às suas necessidades. Não havia uma preocupação efetiva com o mundo infantil ou uma

visão especial da infância. A falta de afetividade pelo recém-nascido era de certa forma

uma auto proteção contra a dor da perda, já que metade dos nascidos morria antes de

completar sete anos. Como os recém-nascidos eram seres transitórios, que viviam tão

pouco, não valia a pena dedicar-lhes sentimentos mais profundos e duradouros. A alta taxa

de mortalidade infantil determinava, portanto, a falta de afetividade dos pais para com os

filhos, principalmente daqueles de proles numerosas.

Os filhos das famílias mais abastadas eram deixados para serem criados por serventes,

amas-secas, até que pudessem ter certa autonomia para o convívio com os adultos. Os filhos

da classe proletária sofriam muito e desde a mais tenra idade já trabalhavam para ajudar os

pais a manter a família. Como bem explícita Richter:

Na sociedade antiga, não havia infância: nenhum espaço separado do mundo. As crianças trabalhavam e viviam junto com os adultos, testemunhavam os processos naturais da existência (nascimento, doença, morte), participavam junto deles da vida pública (política), nas festas, guerras, audiências, execuções, etc. Tendo assim seu

17

lugar assegurado nas tradições comuns: na narração de histórias, nos cantos, nos jogos (2003, p. 36).

Ao se falar em sociedade antiga deve-se entender o período compreendido durante a

Idade Média, na qual o poder estava centralizado nas mãos do chefe da família e vigoravam as

amplas relações de parentesco. O casamento era, sobretudo, por interesses financeiros,

desprezando-se os laços afetivos. O objetivo era manter ou ampliar o patrimônio familiar.

Essa visão só mudará com a ascensão da burguesia ao poder. O Estado Moderno

percebe que o núcleo familiar lhe dará sustentação mais efetiva. O fortalecimento da

burguesia possibilita o estreitamento dos laços familiares. Os pais não aceitam mais a

interferência dos parentes na educação de seus rebentos. Como bem assinala Zilberman:

[...] a concepção de uma faixa etária diferenciada, com interesses próprios e necessitando de uma formação específica, só acontece em meio a Idade Moderna. Esta mudança se deveu a outro acontecimento da época: a emergência de uma nova noção de família, centrada não mais em amplas relações de parentesco, mas num núcleo unicelular, preocupado em manter sua privacidade (impedindo a intervenção de parentes em seus negócios internos) e estimular o afeto entre seus membros [...] (1985, p. 15).

Para as crianças, as perspectivas de melhorias são muitas, pois ocorre o seu

reconhecimento como seres com necessidades especiais, que precisam de carinho e

atenção, não sendo mais relegadas ao descaso.

São estabelecidos dois canais básicos de intercâmbio do adulto com a criança. O

primeiro relacionado à criação de escolas urbanas, não monásticas para que seus filhos

dominassem as técnicas da leitura, da escrita e da aritmética, habilitando-se à condição de

adultos dirigentes. O segundo, a percepção de que as crianças pobres e os filhos bastardos

poderiam ser utilizados como mão de obra barata. Desenvolvem-se, ainda, os cuidados

básicos em relação à primeira infância visando à diminuição da taxa de mortalidade.

18

Além disso, ocorre a expansão das instituições de caridade que amparavam os filhos

indesejados; os que conseguiam sobreviver e alcançar a maioridade eram encaminhados às

escolas de ofícios. Com essa visão objetiva, o espaço social da infância começa a ser definido.

O próximo passo foi instrumentalizar essa infância, agora ampliada para todas as

classes sociais através da criação e expansão da escola. A escola criada pela elite burguesa,

contribuiu para a formação de uma cultura elitizada. A ideologia era sempre da classe

dominante. As crianças passaram a estudar em instituições onde ficavam internas. Eram

educadas para a vida adulta. A criança era considerada frágil, desprotegida e dependente.

Antes da Revolução Industrial, ocorrida durante o século XVIII, a criança era tratada

com descaso pelos adultos. Posteriormente recebe um novo tratamento, pois se percebe o seu

valor enquanto geração de braços para a indústria e cabeças para o comando. Viver a infância

passa a ser um período de preparação para a vida adulta. É nesse momento, que se reconhece

a necessidade de educar a criança, rica ou pobre, nos moldes da cultura burguesa. Ocorre a

abertura de um campo de produtos culturais.

Dentre eles, o livro e a literatura passam a ter relevante interesse. É, então, que surge a

literatura infantil, como produto estreitamente relacionado ao fenômeno da revolução

burguesa industrial. Para instruir e ser consumida, a literatura infantil passa a ser produzida

em grande escala.

Observa-se que na escola a literatura tem um caráter educativo e é utilizada para

atender às necessidades da criança. Todo o material circulante é elaborado por professores e

pedagogos, que não têm o intuito de despertar a imaginação ou a criatividade das crianças.

Assim, na literatura infantil do século XIX predominava o cunho moralista, as normas

rígidas e um forte caráter educativo, os quais, na verdade, funcionavam como uma forma de

dominação intelectual, ditando regras e valores pré-estabelecidos e consagrados pelos adultos.

19

Logo, as crianças não tinham liberdade para questionar os fatos que ocorriam ao seu redor e o

adulto usava este expediente como uma forma de protegê-las do mundo exterior.

3.2 LITERATURA INFANTIL NO BRASIL: MONTEIRO LOBATO

No Brasil, a literatura infantil começa a aparecer nos livros didáticos, no século XIX.

Antes deste período só circulavam traduções. Esse fato se dá com o florescimento do

Romantismo, que valoriza o conhecimento intelectual como forma de ascensão social.

Apesar de ter como modelo a literatura européia, os escritores brasileiros ostentavam

um sentimento nativista, que se sobrepondo aos modos europeus ganhou, uma face brasileira,

estabelecendo diferenças que caracterizavam uma nova cultura nos trópicos – a cultura

brasileira.

Conseqüentemente, o Romantismo brasileiro assumiu uma tonalidade própria,

valorizando as peculiaridades do meio, com a criação de uma literatura nacional. Sua eclosão

coincidiu com o alvorecer da nacionalidade, ajustando-se à alma do povo brasileiro. A noção

de identidade cultural para o Brasil teve, no período romântico e com alguns escritores

marcadamente nacionalistas, o ponto alto da formação de uma consciência nacional capaz de

produzir uma literatura voltada para as raízes nacionais.

A literatura romântica foi também uma poderosa arma de ação social e política que,

repudiando a opressão política e a exploração econômica da metrópole, contribuiu para a

grandeza da nação brasileira.

No Brasil, como assinala Coutinho (1955, p. 120), “o nacionalismo romântico

assumiu um caráter muito próprio”, “sob a forma do indianismo”, o qual se constitui

o ponto de partida, cheio de sugestão de todas as tentativas posteriores de encontrar materiais peculiarmente brasileiros para dar expressão literária à consciência nacional. É daí que resulta o culto do sertão e do sertanejo, o caipirismo, o caboclismo, e, acima de tudo, o regionalismo, que foi afinal, a feição mais alta que ainda gerou esse brasileirismo (1955, p. 170).

21

de todo tipo de artifício, a clareza e a simplicidade está no cerne de suas preocupações, que

tem como objetivo a criação de uma linguagem brasileira na literatura. Linguagem que

lhe permitiria atingir um público maior de leitores brasileiros, dando-lhes subsídios para

questionar e compreender melhor a realidade.

Por outro lado, a preocupação com a formação das crianças, tanto moral quanto

intelectualmente, também é uma constante na obra lobatiana. Rompendo com o modelo

tradicional de literatura infantil, sua obra, ora de caráter informativo, ora de cunho ficcional,

permite aos pequenos leitores ampliarem seus conhecimentos, com visão crítica e livre de

condicionamentos pré-determinados.

As escolas do século XIX e do início do século XX não propiciavam aos alunos um

conhecimento mais profundo da realidade. Os autores de obras infantis mostravam um

mundo idealizado, tentando poupar as crianças das mazelas que assolavam a sociedade.

Apesar de tantos percalços, as obras infantis daquele período foram instrumentos eficazes

para a formação da consciência nacional, mesmo não havendo, por parte dos autores, uma

preocupação específica com o entretenimento da criança.

Com a valorização da escola e da instrução, o saber passa a determinar o novo

modelo social. Por outro lado, a carência de material próprio para a formação das crianças

brasileiras dificulta que o hábito da leitura ganhe, de imediato, uma maior amplitude.

Com relação a essa produção de livros para crianças, será feito um breve histórico, a

fim de que essa pesquisa esteja melhor situada. A partir de 1880 começam a circular no

Brasil traduções e adaptações de obras estrangeiras para crianças, realizadas por Carlos

Jansen, como Contos seletos das mil e uma noites (1882), Robinson Crusoé (1885), As

aventuras do celebérrimo Barão Münchhausen (1891), Contos para filhos e netos (1894) e

D. Quixote de la Mancha (1901). Os clássicos de Grimm, Perrault e Andersen são

divulgados nos Contos da Carochinha (1894), nas Histórias da Avozinha (1896) e nas

22

Histórias da Baratinha (1896), de Figueiredo Pimentel e publicados pela Editora Quaresma.

Tem-se, ainda, em 1891, a tradução do livro italiano Cuore (Coração), realizada por João

Ribeiro, que merece ser mencionado, pois mostra o cotidiano de um garoto ao longo do ano

letivo, em que se sucedem lições de patriotismo, amor e respeito à família, aos mais velhos,

dedicação aos mestres na escola, e piedade aos mais fracos e pobres.

Tendo como vetor o nacionalismo, Bilac e Coelho Neto publicam o livro Contos

Pátrios (1907) no qual apregoam o amor à pátria, à missão educativa, à identidade cultural.

Júlia Lopes de Almeida publica a obra Histórias de nossa terra (1907), na qual há lições de

moralidade com relação ao trabalho, ao estudo, à obediência, à disciplina, à caridade e

honestidade.

Em 1910, Olavo Bilac e Manuel Bonfim lançam Através do Brasil, inspirado no livro

Le tour de la France par deux garçons. Nessa longa narrativa, que exalta o patriotismo e o

civismo, dois irmãos cruzam o Brasil de Norte a Sul e se deparam com as mais variadas

paisagens e pessoas. A viagem lhes permite ainda conhecer a economia do país, fatos

históricos e culturas diversificadas. O objetivo dos autores era que as crianças se

identificassem com os temas e seguissem as lições ali expostas.

Em 1919, Tales de Andrade lança o romance Saudade, no qual faz apologia à riqueza

e à felicidade adquiridas através da agricultura, com o objetivo de levar as crianças a se

identificarem com os conceitos de cultura e conceitos ali contidos. Com esse romance,

praticamente se encerra o primeiro período da literatura infantil brasileira, iniciado em 1880.

Respirando ventos já modernistas, o Brasil conhece uma literatura realmente

preocupada com a infância brasileira: A menina do narizinho arrebitado (1921), com apenas

quarenta e três páginas. Lobato alcança muito sucesso e logo se anima em preparar uma nova

versão da obra, acrescida de histórias inéditas, para ser utilizada nas escolas públicas. Em

carta a Godofredo Rangel de 07/10/34 ele comenta as mudanças da nova edição:

24

utilizava como instrumento de divulgação os seus artigos, os quais abordavam os problemas

da nação.

Dedicou-se à carreira de Direito por imposição de seu avô, exercendo-a

concomitantemente à produção de artigos e obras. Com a morte do avô herdou a Fazenda

Buquira, dedicando-se à mesma por algum tempo; período em que teve contato com os

problemas da terra e que o levou a redigir uma série de artigos que se tornariam mais tarde

parte integrante de seu livro Urupês, publicado em 1918. Essa obra lhe trouxe sucesso

imediato e indicou aos novos escritores brasileiros qual o caminho a seguir: editar livros no

Brasil.

Priorizando cada vez mais a atividade cultural, Lobato passa a direcionar a literatura

existente para criança; literatura considerada por ele pobre e árida, constituindo-se

basicamente de traduções e da produção de poucos autores nacionais. Crítico literário,

escritor e editor renomado no Brasil, ele escrevia para jornais, revistas, sendo muito

respeitado também no mundo literário, apesar de sua crítica ser bastante sincera e às vezes

deixar alguns artistas ressentidos.

Ao escrever um artigo sobre a exposição de pintura realizada pela pintora Anita

Malfatti, foi contestado pelo grupo modernista, com o qual teve sérios atritos. Para os

modernistas, Lobato foi muito severo com a pintora. No artigo “Paranóia ou mistificação”,

Lobato compara a arte de Malfatti com a de grandes pintores de outros períodos artísticos e

conclui que sua pintura é uma deformação. Ele quer uma arte totalmente nacional, voltada

para o produto genuinamente brasileiro e talvez tenha sido por essa razão que seu artigo

tenha causado tantos mal-entendidos.

A maior contribuição da arte inovadora lobatiana recai sobre a genialidade de seus

neologismos e metáforas; por meio deles soube captar o raciocínio do homem do campo,

25

peculiar em suas superstições religiosas. Sua literatura utiliza como tema as diferenças

sociais de um Brasil não oficial, que não era reconhecido pelo poder público.

Os escritores daquele período, até então, não se permitiam transcrever em obra de

literatura séria o português oral, pois temiam que suas obras fossem confundidas com as de

escritores regionalistas ou caboclistas, que eram consideradas inferiores, sem valor literário.

Para Lobato não se tratava do uso de regionalismos, mas sim do uso de recursos

como a oralidade, os brasileirismos e os coloquialismos, que apareciam através das figuras

de linguagem, como metáforas sempre à brasileira, que estavam “disponíveis aos escritores

com preocupação nacionalista” e que queriam ter um contato mais efetivo com seu público

leitor, como bem esclarece Landers:

A sua mente pragmática via à diferenciação entre a língua escrita e falada, (ou entre a língua da cidade e a do campo) (...), como um dos grandes problemas de comunicação entre escritor e leitor. Para ele era uma anomalia o fato do escritor brasileiro não poder ser lido pela maioria de seus conterrâneos. E sabia, ao mesmo tempo, do por que da falta de leitores: O público não os lê porque não lhes entende nem as idéias nem a língua (1988, p. 76).

Lobato percebeu que muitos brasileiros estavam isolados no campo, devido à falta de

instrução e como tinha um senso político apurado, tentou minimizar esse isolamento, através

da leitura. Para ele, a tarefa do escritor de um determinado país era levantar um monumento

que refletisse as coisas e a mentalidade daquele país por meio da língua falada.

A preocupação inicial de Lobato era a inserção de seus filhos no mundo das letras.

Em documento de 08-09-1916, Lobato escreve para Godofredo Rangel4, posicionando-se

sobre essa questão:

Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me, diante da atenção curiosa com que os meus pequenos ouvem fábulas que Purezinha lhes conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos – sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no subconsciente para ir se revelando mais tarde mais tarde, à medida que progredimos em compreensão. Ora, o fabulário nosso, com bichos daqui em vez de exóticos, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa. As

4 Seu amigo dos tempos de Faculdade, com o qual se correspondeu durante quarenta anos, com essas cartas escreveu o livro a Barca de Gleyre, publicado em dois volumes pela Editora Brasiliense.

26

fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis. Que é que as nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta. Como tenho jeito para impingir gato por lebre, isto é, habilidade por talento, ando com a idéia de iniciar a coisa. É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação dos nossos filhos (LOBATO: 1946, p. 104).

Se como objetivo inicial, Lobato pretendia a inserção literária dos seus filhos, é

igualmente relevante destacar que tal projeto alcançou esferas além do círculo familiar e, por

conseguinte, alçou amplos vôos sobre outros lares brasileiros.

Ao trabalhar com adaptações ele tem em mente dois objetivos: levar às crianças o

conhecimento da tradição, o conhecimento do acervo herdado, propiciando-lhes, ao mesmo

tempo, uma visão crítica, que lhes permita aceitar ou não a ideologia vigente, com suas

verdades, conceitos e valores cristalizados pelo tempo.

3.3 LOBATO: A PLURALIDADE DE DOIS MUNDOS: REAL E IMAGINÁRIO

O grande objetivo de Lobato era agradar às crianças, conforme já mencionado, a

partir de um projeto sério que lhes desvendaria o gosto pelo saber. Cria, assim, um rico e

vasto universo paralelo. Ao ideal de uma literatura nacional voltada para o público infantil,

somam-se o seu respeito e o seu carinho pelas crianças. Lobato sabia que apenas a Literatura

Infantil poderia ser a matéria-prima para a organização do mundo mágico das crianças, o

qual serviria de base para a construção de seus desejos.

Percebe-se, na obra lobatiana, a presença da intertextualidade, quando ele trabalha

com o processo de incorporação de um texto em outro, transformando o texto fonte em suas

narrativas ficcionais. Esse processo ocorre também quando ele recria o mito de Hércules

através de uma variante intertextual, cujos acréscimos ou supressões têm como finalidade

tornar o mito acessível ao universo infantil.

27

Para que isso ocorra, Lobato mistura fantasia, fábulas e mitologias às realidades

históricas do Brasil e do exterior, transmitindo novos saberes de forma mais amena. Saberes

reavaliados a partir de muitos olhares e de muitas vozes que trazem a marca dos lugares de

onde falam. Tudo o que se diz no espaço do texto lobatiano é enriquecido por essa

pluralidade; o que se vê presente é a interação de dois mundos, um real e outro imaginário,

mas que estão de tal forma fundidos na realidade do Sítio do Pica-Pau Amarelo, que se

tornam uma espécie de espaço intermediário. Nesse espaço sem fronteiras entre a realidade e

a fantasia, as crianças do Sítio vivem “as realidades” de um mundo mágico em ambiente de

natureza tropical.

Sempre atento à realidade brasileira, Lobato preocupa-se assim como os modernistas,

com a construção de uma identidade nacional, ao mesmo tempo em que incentiva o

brasileiro a lutar por condições dignas de trabalho, educação, saúde e a pertencer ao Brasil

de corpo e alma, não ficar à margem como sua personagem Jeca Tatu, consumida pelas

doenças. Antevendo de certa forma o futuro, destacava, já naquele tempo, quais riquezas

nacionais deveriam ser exploradas (ferro, petróleo), para melhorar a vida do trabalhador e

dar-lhe dignidade e identidade. À idéia de brasilidade estava vinculado o pensamento de que

a criança era a humanidade de amanhã, devendo, por essa razão, ser muito bem cuidada.

Ao inserir temas nacionais em sua obra infantil, Lobato inaugura uma nova fase em

sua produção literária, com uma linguagem acessível às crianças. Ele trabalha com a

linguagem de uma maneira diferenciada, trazendo a oralidade e o estilo coloquial para dentro

de sua obra, como é o caso de seu inquérito sobre o saci, personagem do folclore nacional,

que graças ao escritor tornou-se uma figura conhecida em todo Brasil. Com relação ao estilo

coloquial, Lobato preocupa-se muito em se fazer entender pelas crianças, tanto é que todas

as adaptações das obras clássicas são feitas por de D. Benta, que as recria para torná-las mais

acessíveis ao público infantil.

28

A forma natural de recontar histórias da narradora D. Benta estabelece uma ponte

entre o texto de origem e o cotidiano de seus ouvintes, ou seja, as personagens do Sítio. E

sejam quais forem os textos narrados, as marcas de oralidade permeiam sempre o discurso

narrativo.

Passa-se, pois, às considerações de alguns críticos a respeito da linguagem presente na

obra infantil lobatiana. Segundo César,

ao publicar, [...] A menina do Narizinho Arrebitado, capta de maneira diferente a linguagem de suas personagens; instila no diálogo, para não dizer no conjunto da criação, tons mais brasileiros. A literatura infantil reeducou-o. Vale dizer, o esforço que naturalmente fez para chegar à compreensão imediata dos meninos, a necessidade de ser simples, levam-no assim ao oposto do lusitanismo que lhe marcara as primeiras obras, por contaminação conseqüente à leitura saturada dos autores de Portugal (apud ZILBERMAN, 1982, p.39).

Entretanto, para alcançar essa aparente simplicidade que Lobato exibe na composição

de A menina do Narizinho Arrebitado é preciso saber trabalhar com diferentes possibilidades

da linguagem.

Bosi, renomado crítico de literatura brasileira, ao comparar a linguagem dos contos de

Urupês com a linguagem dos textos infantis lobatianos diz:

A linguagem contínua pura, vernácula, mas absolutamente simples, chegando àquele modo de comunicação que consegue comover as crianças, o que eu acho genial: chegar, falar às crianças e ser entendido por elas (1982, p.30).

Ao apresentar histórias de uma maneira simples e clara, a linguagem lobatiana atinge o

seu alvo: captar a estrutura e o pensamento infantil. Lobato não somente apresenta suas idéias

por meio das narrativas, mas utiliza o diálogo como canal de comunicação para a exposição

das mesmas, com direito a contestações, caso não estivessem de acordo com a audiência do

Sítio.

Lajolo e Zilberman apontam também a importância da incorporação da oralidade no

texto ficcional.

29

[...] aproveitando bem a lição modernista, autores como Lobato, Graciliano Ramos [...] romperam os laços de dependência à norma escrita e ao padrão culto, procurando incorporar a oralidade sem infantilidade, tanto na fala das personagens, como no discurso do narrador. Representar essa oralidade não significou apenas desrespeitar regras relativas à colocação de pronomes ou ajustar a ortografia à pronúncia brasileira. Tratou-se principalmente de reproduzir a circunstância fundamental de transmissão de mensagens: o prazer de se comunicar e de ouvir histórias, a troca de idéias, a naturalidade da narração em serões domésticos. Essa situação, concretizada por Lobato e Graciliano, é imitada por muitos (1999, p. 83).

Lobato fala às crianças de maneira direta, fazendo com que o entendam e sintam

prazer em adquirir novos conhecimentos. Ocorre efetivamente uma inovação da linguagem no

texto lobatiano; a linguagem assume um caráter lúdico e o coloquialismo, como uma ponte,

permite que a criança entre sem susto no mundo da leitura.

Assim como Sherazade, D. Benta, com seus livros, e tia Nastácia, com seus contos

populares, assumem a função de narradoras na literatura infantil lobatiana. É também por

meio delas que Lobato se apropria de outros textos narrativos, recriando-os de forma ímpar,

com as intervenções constantes de Emília, as explicações históricas do Visconde e os pedidos

de Pedrinho para que a avó pulasse as passagens chatas e fosse direto à ação.

As narrativas clássicas inseridas na série infantil do Sítio do Picapau Amarelo

representam os melhores exemplos da recriação lobatiana. São belos momentos de

recuperação e valorização da tradição oral brasileira, bem como são instigantes os diálogos da

narrativa lobatiana com os textos clássicos e com seus autores, graças às intermediações das

personagens narradoras (D. Benta e tia Nastácia) e de seus ouvintes (Emília, Pedrinho,

Narizinho, Visconde).

O saber ocupa um espaço ímpar na obra lobatiana, e está engajado em seu projeto de

valorização da leitura. Segundo Marisa Lajolo, no seu ensaio sobre Dom Quixote das

Crianças,

30

A relação de Dona Benta com a cultura é, assumidamente, uma relação mais complexa, mais aprofundada, mais antiga, e que assim se proclama sem falsos escrúpulos de um igualitarismo enganoso. O que parece sugerir que entre um iniciador de leitura e os iniciados (ou entre um professor e seus alunos) não se deve estabelecer nenhum nivelamento por baixo. Dona Benta, como todo e qualquer leitor competente, aliás, como todo e qualquer usuário competente da língua escrita e oral, é poliglota, isto é, transita com facilidade do estilo clássico de Castilho para o estilo coloquial de sua platéia. Mas tem plena consciência de que ambas as modalidades são diferentes, e que sua responsabilidade, como iniciadora de jovens na prática de leitura, é levá-los até o classicismo de Castilho (2002, p. 102-103).

Como afirma Lajolo, D. Benta era uma poliglota dentro da língua portuguesa,

transitando do estilo de Castilho, para o estilo coloquial de sua platéia. Assim, muitas vezes,

interrompia a história para abrir uma espécie de debate com as personagens a respeito da

linguagem empregada ou do próprio enredo.

Freqüentemente, D. Benta, como narradora, precisava explicar uma passagem usando um

estilo com os netos, outro com tia Nastácia e um terceiro com a danada da Emília, sempre a

exigir que as histórias fizessem sentido pela sua lógica de boneca. De certa maneira, o estilo

lobatiano poderia ser entendido como uma espécie de tradução simultânea para diferentes

públicos.

Assim como sua personagem D. Benta, Lobato declarava amor às belezas da forma

literária rica em perfeições e sutilezas, mas nem por isso se intimidava na hora de se apropriar

das histórias alheias para transformá-las em narrativas novas, construídas à sua moda e bem

ao gosto do momento.

No artigo “Lobato, um Dom Quixote no caminho da leitura”, Lajolo ressalta:

Dona Benta, leitora madura e competente, faz-se à iniciadora de seus ouvintes na leitura: à sua maneira, ela também os arma cavaleiros, isto é, arma-os leitores. À medida que a história do cavaleiro da Mancha se desenrola por muitos serões noturnos, o leitor de Lobato assiste ao envolvimento progressivo da platéia pela leitura. Percurso da ida e volta entre texto e vida, sugestivo de que só a partir da evocação de experiências vividas pelos leitores o texto encontra seu sentido (ibidem, p.99).

Para Lajolo, esta obra de Lobato é “projeto de leitura, tradução e adaptação” e o

objetivo do escritor ao reescrevê-lo, era torná-lo legível para o entendimento das crianças,

31

pois ao abolir palavras ou expressões que impedissem a sua leitura. Lobato cria uma nova

história, com a participação de todo pessoal do Sítio, que no decorrer da narrativa socializa as

informações, ampliando dessa maneira seu conhecimento de mundo.

Ao escrever suas histórias, Lobato trabalha com a intertextualidade, acrescentando o

seu toque pessoal genuinamente nacional; inclui em suas histórias o folclore, como forma de

ampliar o conhecimento, pois achava que as crianças brasileiras tinham o direito de conhecer

o que era produto nacional. Mais do que o entusiasmo pelo Brasil ou exaltação dos valores da

terra, o escritor pretendia incorporar as culturas indígena, africana e européia na formação de

uma nova cultura realmente nacional. Por essa razão, sua obra infantil reúne o folclore dessas

três culturas, para formar um lastro brasílico capaz de estender suas raízes tanto na literatura

quanto na mentalidade dos brasileiros, propondo ao mesmo tempo uma nova maneira de estar

no mundo: a brasileira.

Segundo Laura Sandroni, estudiosa de Lobato:

Como o folclore é uma manifestação popular e está presente no cotidiano das pessoas, ele procurou resgatar diversos elementos folclóricos em suas obras como um meio de iluminar a realidade ao criar personagens totalmente nacionais, tendo como fonte nosso folclore; ele se preocupou também com uma nova maneira de trabalhar com a ilustração, com figuras vistosas e chamativas para prender a atenção dos pequenos leitores; linguagem renovada em que a oralidade estava presente como forma de aproximação com as crianças (1987, p. 33).

Lobato, devido a sua forte consciência nacionalista, quer que os brasileiros

tomem contato com as suas riquezas culturais. Como o folclore é uma fonte inesgotável de

inspiração, ele prioriza sua divulgação. Em seus livros, há uma fascinante mistura do folclore

brasileiro com o de outros povos. Graças aos personagens do Sítio, os leitores conhecem não

só as curiosas criaturas que habitam as florestas brasileiras, mas também personagens da

mitologia grega, como Hércules e outros. No faz-de-conta, as personagens do Sítio transitam

por todas as áreas do saber de maneira descontraída, longe da formalidade dos livros

escolares. O que era uma novidade para sua época.

32

Lobato inaugurou também, no Brasil, uma nova forma de encarar a imaginação da

criança. A imaginação infantil não deveria ser vista como uma enfermidade a ser reprimida,

ou uma manifestação a ser tolerada, mas uma chave para um novo mundo. Seu objetivo

principal era tornar mais rica e sonhadora a infância da criança brasileira. Ao mesmo tempo,

acreditava que por intermédio da leitura as crianças ficariam vacinadas em relação à

adulação e à hipocrisia. Lobato acreditava na inteligência da criança, na sua capacidade de

compreensão e natural curiosidade intelectual.

Com Lobato, a literatura infantil brasileira perde uma de suas principais

características a de ser um instrumento de dominação do adulto e da classe dominante,

tornando-se fonte de reflexão, questionamento e crítica. A obra lobatiana é rica, abrangente e

original e extrapola os esquemas convencionais de literatura infantil por sua amplitude e

envolvência, escapando, pois, ao lugar-comum tradicional imposto ao universo infantil.

Além disso, o escritor proporciona as crianças brasileiras uma viagem ao reino da

fantasia, a um mundo mágico, onde tudo poderia acontecer, desde que utilizassem o recurso

do faz-de-conta. Sua criação é ao mesmo tempo tão real que alguns leitores, que com ele se

correspondiam, queriam ir ao Sítio para conhecer os seus habitantes e lá participarem das

aventuras. Segundo Afrânio Coutinho:

quando um autor consegue que seus personagens ultrapassem as páginas do livro para viver livremente, sendo sempre recriados na imaginação de cada pessoa, realizou o supremo milagre da criação. Lobato sabia contar e inserir com grande habilidade o maravilhoso no real (2004, p. 212).

E como um grande contador de estórias, Lobato possibilitou que as crianças

ingressassem nesse reino maravilhoso, do qual não desejavam sair. A fantasia as

transportava para mundo em que o adulto não tinha o papel de agente controlador. Lobato

realizou uma obra em que a criança desinibida e autêntica era livre para viver o seu

momento. Ele não falava mentiras, mas questionava problemas brasileiros como petróleo,

política, nacionalismo.

33

A obra infantil de Lobato engloba uma diversidade temática, a qual envolve tanto as

personagens do Sítio como as de outras nacionalidades. Personagens que promovem ações

distintas e que participam de inúmeras aventuras, cujas dessemelhanças temporal e espacial

são substituídas pelo jogo do faz-de-conta. Jogo que ao mesmo tempo em que incentiva a

curiosidade pelo saber científico, propõe atividades lúdicas para as crianças. Em síntese, a

proposta de Lobato para a formação cultural do povo brasileiro é a de brincar aprendendo e

aprender brincando.

Dentro desse esquema, a obra lobatiana caracteriza-se por um constante sistema

binário, e é nessa dicotomia que repousa toda a sua estrutura. A princípio, ela pode ser

dividida em dois planos: o plano da realidade, do cotidiano, que é o Sítio, ou seja, suporte e

ponto de partida de toda a fantasia e ao mesmo tempo o porto, o refúgio seguro; e o plano da

fantasia, do faz-de-conta, em que se realizam as mais diversas aventuras, com o auxílio de

um meio mágico: o pó de pirlimpimpim. O Sítio é um verdadeiro paraíso, onde as crianças

podem brincar, criar e recriar, não importando sua classe social. Para entrar no Sítio é

preciso apenas adentrar a imaginação infantil.

Num primeiro momento, realidade e fantasia destacam-se como as duas grandes

dimensões da obra infantil lobatiana, mas percebe-se que outros planos coexistem e mantêm

suas especificidades, há um jogo constante entre a objetividade e o lúdico.

No Sítio do Picapau Amarelo, o leitor é sempre surpreendido. O Sítio não é um lugar

semelhante a tantos outros sítios conhecidos normalmente pelo leitor. Aventuras e surpresas

desafiam a sua compreensão imediata e rompem com suas expectativas. O Sítio é, sobretudo,

um espaço para a reflexão.

Quando Lobato inicia sua produção, o Sítio apresentava características típicas das

fazendas paulistas, mas com a evolução de suas obras, este vai assumindo um caráter

metafórico. O cenário do Sítio desempenha o papel de metáfora política do Brasil:

34

democrático, sem opressão, governado pela sabedoria humanista de D. Benta, pelo bom senso

de Tia Nastácia, pelo conhecimento científico do Visconde, pela esperteza de Emília e pela

força de Quindim. O encontro de saberes e de poderes permite que todos vivam em harmonia

neste universo maravilhoso, o qual se torna também objeto de desejo das personagens do

mundo da fantasia.

Ao idealizar o Sítio, Lobato propõe um novo processo de aprendizagem que se

contrapõe, em certa medida, ao ensino tradicional vigente. A cartilha, a gramática e a

aritmética, consideradas por ele instrumentos de tortura, são retomadas muitas vezes de forma

lúdica em suas narrativas. Religião, família e escola não são temas privilegiados em seus

textos, porém estão inseridos no núcleo de muitas histórias do Sítio com uma nova roupagem.

É sempre para o Sítio que converge o seu olhar, ou melhor, para as múltiplas aberturas que

esse espaço propicia na construção do saber. Todos os habitantes do Sítio têm uma função

específica e sabem tirar proveito das situações ou aventuras vivenciadas.

Lobato utiliza os recursos mágicos do faz-de-conta e do pó de pirlimpimpim para dar

voz a seres inanimados como uma boneca de pano (Emília). Naquela época, a boneca era o

brinquedo favorito de todas as meninas, sendo confeccionada de tecidos variados e retalhos

coloridos. Todas as meninas deviam aprender os rudimentos da costura, assim como

cozinhar e cuidar de uma casa. Um sabugo de milho, personificado na figura do Visconde,

era o brinquedo dos meninos, além de outros, criados com materiais vindos da natureza.

Lobato faz com que suas personagens evoluam, Emília em especial, a ponto de se

tornar cada vez mais humana e participar ativamente de todas as aventuras com as crianças

do Sítio, dando sua valiosa contribuição em muitas situações para a resolução de difíceis

problemas. A boneca sempre encontra uma solução, para os momentos em que as crianças

estão em perigo. Sua esperteza e sua criatividade surpreendem a todos. Em Os doze

trabalhos de Hércules, corpus deste estudo, pode-se constatar diversos exemplos, pois todas

35

as tarefas realizadas pelo herói contam com a ajuda providencial de Emília. Enfim, a

produção literária infantil de Lobato constitui uma verdadeira saga para os pequenos leitores.

Ao captar a lógica e a estrutura de pensamento infantil, ele fala com e pelos pequenos. O

autor tem fé nas crianças e nas possibilidades da educação. Exalta a inteligência, a cultura, a

bondade, a liberdade e a sinceridade. Sendo que um de seus objetivos mais importantes é a

valorização da cultura.

3.4 PERSONAGENS LOBATIANAS

Os acontecimentos se desenrolam a partir da ação das personagens. No enredo,

perpassam mensagens explicitas ou implícitas que refletem uma parcela psicológica do autor

e também sua visão crítica do mundo.

As personagens presentes nas obras de Lobato reconstroem os elementos da mitologia

universal, inclusive da mitologia grega. Pode-se notar que o autor é hábil na arte mágica de

entrelaçar personagens, que povoam o universo das lendas e mitos do imaginário popular da

sociedade brasileira das décadas de vinte e trinta.

O livre-arbítrio das personagens é uma de suas marcas principais da obra lobatiana.

São as próprias personagens que formulam os problemas e buscam soluções práticas, assim

como os objetivos a serem alcançados. Cada uma realiza o que é possível. Os heróis buscam o

ser, satisfazer seus desejos e não o ter, comprometido com o consumismo. A única oposição

aos heróis é o desconhecido, ou melhor, o desafio de compreendê-lo.

Existem dois tipos de personagens na obra infantil de Lobato: as personagens

permanentes, que vivem ou passam longas temporadas no Sítio do Picapau Amarelo,

propiciando a unidade da obra e as personagens que aparecem no Sítio, em determinados

36

momentos, para participarem das aventuras ao lado das permanentes. Todas são fundamentais

e importantes para a criação desse universo infantil.

As personagens permanentes apresentam três aspectos: representativo, simbólico ou

alegórico e mágico. As personagens representativas têm como objetivo principal projetar o

autor e representar aspectos de sua personalidade, no caso das personagens do Sítio, cada uma

delas representa uma de suas facetas. Dentre elas, destacam-se Pedrinho, Narizinho, D. Benta,

Tia Nastácia, Tio Barnabé.

Pedrinho representa o reencontro do autor com sua própria infância, com os valores

morais, com a generosidade e a valentia: “E Pedrinho? Um excelente rapaz. É bem valente...

Só que ficou um pouco prosa demais depois da surra que deu no Popeye”. Tem uma

personalidade voluntariosa e não gosta de mentiras (LOBATO, 2004, p. 146).

Narizinho, sua prima, cujo apelido tem origem em uma característica física, o nariz

arrebitado, “tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns

biscoitos de polvilho bem gostosos” (2004, p.7). É o retrato das meninas da época.

Constantemente apaziguando Pedrinho e Emília em suas inúmeras discussões, está sempre

pronta a participar das brincadeiras, mas muitas vezes é impedida por Pedrinho, que lhe pede

para tomar conta ou fazer companhia a D. Benta.

D. Benta, a avó sonhada por todos, "expõe invariavelmente os fatos com absoluta

clareza e sempre na ordem direta". Apesar de ser a autoridade máxima no Sítio, é tolerante,

culta, persuasiva, boa, racional, sociável e, em ocasiões diferentes, aponta para as crianças as

injustiças e tudo o que não é verdadeiro. A respeito de sua sabedoria Alfredo Bosi diz:

A figura masculina adulta está omitida. E a figura que domina tolerantemente tudo aquilo é uma sábia [...] É uma figura feminina, uma filósofa iluminista liberal, extremamente tolerante e que não exerce sua autoridade. Ela apenas exerce o dom de ensinar. Então, todo poder é substituído pelo saber. Na verdade, quem manda no sítio é quem sabe mais (1982, p.30).

37

Tia Nastácia representa uma outra face do povo brasileiro, cujo saber “mágico” é

fruto do conhecimento empírico, do conhecimento da vida pelo seu exercício cotidiano.

Condimentos da culinária, remédios caseiros, ervas medicinais, lendas e crenças fazem parte

de seu universo do saber. Figura folclórica que se assusta sempre diante do desconhecido.

Tio Barnabé complementa junto com tia Nastácia o saber popular. Seu conhecimento é

repassado a Pedrinho, que o ouve com atenção e respeito.

As personagens simbólicas ou alegóricas, por sua vez, revelam idéias sociais ou

políticas do autor e seus pontos de vista diante dos fatos se configuram, muitas vezes, numa

crítica velada à ideologia vigente. Dentre elas, destacam-se Visconde de Sabugosa.

Rinoceronte e Burro-Falante.

Uma criação de Pedrinho, a partir de um sabugo de milho. Seu pavor são as galinhas,

por ter tomado umas bicadelas nos botões da casaca. É o representante da ciência e da

técnica, uma espécie de caricatura do saber, colocada a serviço do Sítio. Após ter ficado

muito tempo esquecido na biblioteca, longe dos problemas do cotidiano, adquiriu um vasto

conhecimento enciclopédico e não se cansa de aprender sempre mais e mais. É, contudo,

comandado por Emília, a quem obedece servilmente. A bonequinha não respeita sua

sabedoria e nobreza, sobrecarregando-o dos mais diversos afazeres.

Ao participar das aventuras com Pedrinho, Narizinho e Emília, Visconde estava

sempre fazendo novas descobertas em todos os campos do saber. Morreu após ficar

embolorado. Emília guardou o sabugo entre seus pertences e Tia Nastácia fez outro novinho.

Visconde de Sabugosa é uma representação da crítica ao adulto culto e professoral.

Uma espiga de milho com toda a sua carga simbólica estimula a fantasia infantil, pois

pode ser utilizada de maneiras diversas nas brincadeiras, diferentemente do brinquedo

industrial, que proporciona pouco ou nenhum espaço para a complementação criativa da

38

criança. Brinquedos ou bonecos se forem completos e acabados, mesmo sendo chamativos,

empobrecem a relação da criança com o imaginário.

O Rinoceronte, devido ao seu tamanho, representa a força na narrativa lobatiana,

sendo responsável pela segurança e pela ordem no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Pode também

ser considerada uma figura alegórica dos gramáticos tradicionais, os quais não aceitavam as

mudanças, arrastando-se pesadamente entre as crianças, com seus livros enfadonhos.

Burro-Falante, por sua simplicidade e modéstia, não tem nem mesmo um nome

próprio, e sempre leva as maiores surras, porque não sabe como se defender. Na figura do

Burro-Falante, Lobato insere nas entrelinhas da narrativa uma severa crítica à sociedade, que

inflige maus-tratos às pessoas humildes, ao mesmo tempo em que mostra as crianças que no

mundo da fantasia podem ocorrer fatos similares ao da vida real.

Emília representa a personagem mágica e protagoniza a grande maioria das obras

infantis de Lobato. Ela possui a incessante capacidade de incendiar a imaginação de todos os

seus leitores, adultos e crianças. Lobato faz sua apresentação:

“[...] uma boneca de pano bastante desajeitada, Emília foi feita por tia Nastácia, com seus olhos de retrós preto e as sobrancelhas tão lá em cima que é como ver uma cara de bruxa. Apesar disso, Narizinho gosta muito dela; não almoço nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha armada entre os dois pés de cadeira”. (2004, p. 07).

Mesmo sendo descrita como uma criatura muito feia, “com cara de bruxa”, Emília é a

grande companheira de Narizinho, que não realiza nada sem a presença da boneca. Emília,

por sua vez, ganha a cada dia mais autonomia em suas ações, acabando por participar de

inúmeras aventuras sem a companhia de Narizinho, como ocorre em Os doze trabalhos de

Hércules, quando viaja para Grécia com Pedrinho e Visconde.

Lobato utiliza-se de um primoroso recurso intertextual, a paródia, para mostrar toda a

autonomia de Emília quando faz a seguinte afirmativa: “Sou a Independência ou Morte” dessa

forma o autor por intervenção da boneca mostra-se irreverente com o símbolo nacional, pois

39

ironiza de modo atrevido o famoso grito do Ipiranga. Com essa afirmação, Emília mesmo

sendo uma boneca tornou-se independente.

Ao iniciar seu livro Memórias, Emília narra sua “fabricação”:

Bem, nasci, fui enchida de macela que todos entendem e fiquei no mundo feito uma boba, de olhos parados, como qualquer boneca. E feia. Dizem que fui feia que nem uma bruxa. Meus olhos tia Nastácia os fez de linha preta (1994, p. 10).

Emília nasceu de uma saia velha, tendo os olhos de retrós e começou a falar graças a

uma pílula falante do Dr. Caramujo. O evento em que ocorre a conquista da fala é

fundamental em sua biografia e no decorrente deslumbramento que Emília exerce sobre nós.

É pelo exercício da palavra falada ou pela aquisição da linguagem, que a boneca atinge um

grau elevado, transformando-se de simples brinquedo de pano na admirável e desembaraçada

criatura a encantar e desconcertar aos leitores com suas estripulias geniais. Em sua trajetória

de aventuras, verificam-se alterações significativas.

Devido a sua lógica apurada Emília ultrapassa as limitações de um ser humano comum

e realiza as mais variadas interpretações da realidade. Em Memórias da Emília encontra-se

um bom exemplo de sua lógica singular, quando conversa com um anjo de asa quebrada que

foi levado ao Sítio. Emília ao notar as limitações do anjo, se dispôs a dar-lhe algumas

explicações: “Árvore é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé no mesmo ponto; que

em vez de braços tem galhos; que em vez de unhas tem folhas; que em vez de andar falando

da vida alheia e se implicando com a gente dá flores e frutas” (1994, p. 12).

Sempre inconveniente e franca, Emília, uma boneca de pano, que se torna gente no

decorrer das narrativas, diz sempre a verdade, "pois nunca viveu em sociedade e ainda não

sabe mentir". Individualista ao extremo, Emília pretende dominar a tudo e a todos. É

obstinada em relação à realização de seus desejos, não mudando de opinião ou ponto de vista.

O espírito de liderança e a aguçada curiosidade aparecem em todos os momentos. Por ser

40

boneca e não gente pode apresentar todos os pecados infantis: mal-criação, egoísmo infantil,

rebeldia, birra, teimosia, interesse e certa maldade ingênua.

Emília é fundamental para o universo infantil. Representa a materialização da fantasia

maravilhosa e onipotente de toda criança de dar vida, animar qualquer objeto. Por meio da

animação, ou seja, doar alma ao ser inanimado, a criança supera a sua dependência

terrificante.

Após a ingestão da pílula que lhe dá a capacidade de falar, Emília desenvolve uma

terrível capacidade crítica e questionadora. Sua fala possui uma lógica implacável, que

convence a todos. É pela fala que Emília impõe seus pontos de vista, tornando-se o ponto de

partida das principais aventuras narradas por Lobato.

Atenta a toda literatura oral que D. Benta traz aos netos a cada noite de serão, a boneca

passa a ter um cabedal cultural acumulado, que lhe dará apoio em diferentes situações. Essa

consciência expandida propiciará a sua independência moral e intelectual. Tornando-se uma

criatura permanentemente crítica, passa a por em xeque as formas tradicionais de dominação

dos adultos.

Por falar demais, Emília é apontada ao longo de toda a obra de Lobato, como

torneirinha de asneiras. Mas será essa sua capacidade de falar, quem fará com a boneca

desempenhe uma das funções mais importante em todas as aventuras do Sítio. Esta energia

contida na torneirinha de asneiras que Emília representa, é que confere e acrescenta vida e

magia ao cenário já consagrado do Sítio. Todos os recantos do Sítio foram invadidos pelas

marcas de Emília.

Emília jamais finge saber. Ela não tem medo: de perguntar, de dizer bobagem, de

querer aprender mais. Com apenas esta sua característica, daria para escrever todo um tratado

educacional. Muitas vezes, o processo educacional e a forma pela qual é manipulado pelos

adultos impõem barreiras no processo de ensino-aprendizagem. A criança tem medo ou

42

Esses meios mágicos podem ser utilizados em três situações: o pó de pirlimpimpim

para transportar as personagens do Sítio para qualquer lugar, vencendo os limites espaciais; o

pó número dois para transportar para um outro tempo, permitindo as personagens vencerem

os limites temporais; e o superpó para chegar a qualquer lugar, desde que este seja o objeto

de desejo da personagem. Graças a esses meios mágicos as crianças viajam para regiões

fantásticas e realizam seus sonhos. Tudo se torna possível e real. Como bem assinala Carlos

Appel:

O famoso pó de pirlimpimpim é a vontade, a força ou o destino de querer romper com o mundo da inércia, dos horizontes limitados e idéias medíocres. Essa vontade e esse espírito irreverente é que tornam Lobato sempre jovem. Esse é o seu lado essencial e isso as crianças entendem e por isso continuarão amando seus personagens tempo a fora. (Apud ZILBERMAN, 1982, p. 31).

As crianças do Sítio não têm papéis sociais fixos, ao contrário, subvertem a lógica

estabelecida sem culpa: ora são crianças num sítio, ora são príncipes e princesas em outros

reinos. Em determinados momentos, aprendem com a fala madura dos adultos, em outros os

levam a refletir sobre aquilo que estes já julgavam entendido.

Na obra de Lobato, fantasia e realidade caminham juntas. Assim, no Sítio do Pica-

Pau Amarelo, tanto as crianças quanto os bonecos humanizados não são tratados como

simples objetos, mas têm voz própria, com todos os direitos estabelecidos.

43

4 O MITO GREGO NA VISÃO DAS PERSONAGENS DO SÍTIO

O drama da pessoa heróica, que tem coragem para vencer todas as adversidades e medos, apesar dos perigos, para penetrar em esferas até então desconhecidas e ganhar novos conhecimentos, fascinou os homens de todas as culturas e de todas as épocas como nenhum outro tema. (Lutz Muller)

4.1 AS PROEZAS DE HÉRCULES SOB A ÓTICA DE MONTEIRO LOBATO

Neste capítulo será analisada a releitura do mito de Héracles na obra Os doze

trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato. Publicada em 1944, é a última obra infanto-

juvenil de Monteiro Lobato para as crianças brasileiras. Neste livro, os jovens leitores, de

forma lúdica, são envolvidos totalmente pela cultura grega.

Para o cotejo da obra lobatiana com as fontes básicas de referência na literatura

greco-latina sobre as proezas de Hércules, elege-se dois textos-base: As Metamorfoses de

Ovídio e Héracles de Eurípides. A partir dos textos eleitos como fontes primárias pretende-

se demonstrar semelhanças e dessemelhanças presentes na variante intertextual, e como o

processo de releitura, ao absorver o mito, modifica-o, tornando-se independente.

Analisar-se-á na variante intertextual alguns mecanismos lingüísticos como citações,

alusões, acréscimos e supressões de que se vale o autor no processo de releitura do mito e,

ainda, como dialogam no texto lobatiano dois universos distintos: o mitológico e o infantil.

É importante salientar que a reconstrução do mito cumpre na obra lobatiana duas

funções concomitantes: o de resgate do conhecimento histórico e o de entretenimento.

Inicialmente o herói grego, Héracles, era conhecido na Grécia como Alcides, uma

derivação do nome do seu avô Alceu, que em grego remete a idéia de força física, um de

seus atributos. Só recebe este nome após cumprir todas as provas impostas pela deusa Hera,

que significa a glória de Hera. Ao serem transportados para a Mitologia Latina, os deuses e

44

heróis gregos receberam novos nomes. Héracles passa a ser conhecido então como Hércules.

Nessa pesquisa será utilizado o nome latino, pois o mesmo é o mais conhecido.

Para melhor entender o mito de Hércules é importante recorrer a algumas definições

de mito e interpretações de figuras míticas feitas por estudiosos da mitologia grega.

As figuras míticas, na interpretação ético-psicológica de Paul Diel, “representam,

cada uma, uma função da psique e as relações entre elas exprimem a vida psíquica dos

homens, dividida entre as tendências opostas que vão da sublimação à perversão” (Chevalier,

1999, p. 611).

Para alguns intérpretes, como assinala Chevalier, os mitos podem ser considerados

como “uma representação da vida passada dos povos, sua história, com seus heróis e suas

façanhas, sendo de alguma maneira reapresentada simbolicamente ao nível dos deuses e de

suas aventuras: o mito seria uma dramaturgia da vida social ou da história poetizada” (1999,

p. 611).

Os mitos representam um teor inconsciente, presentes em todos os tempos e culturas,

que falam na linguagem dos símbolos. Como não são exclusividades de povos primitivos,

nem de civilizações nascentes, atuam como componentes para os humanos compreenderem a

realidade. Sua linguagem traduz os princípios e “a origem de uma instituição, de um hábito,

a lógica de uma gesta, a economia de um encontro” (BRANDÃO, 1989, p. 38).

Para Jesualdo Sosa, “os mitos são produto de sadia e sábia criação popular.

Sintetizam a experiência de trabalho das sociedades primitivas, ou traduzem sua

incompreensão e seu terror às causas físicas desconhecidas” (1978, p. 100). Nessas

sociedades, o mito exerce uma função mu/TTegB

45

Como bem explicita Sosa, os mitos têm sentido de universalidade no seu anonimato e

um caráter realista em sua concepção e são úteis à nossa função interna psíquica, pois atuam

como reativos ou hormônios psíquicos.

Para Mircea Eliade, estudioso do assunto:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra, como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição (2004, p. 11).

Junito Brandão, por sua vez, ao conceituar o mito faz uma importante distinção entre o

mito e outras formas narrativas:

É necessário deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar mito, que o mesmo não tem aqui a mesma conotação usada para fábula, lenda, invenção, ficção, mas a acepção que lhe atribuíam sociedades arcaicas, as impropriamente denominadas culturas primitivas, onde mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais (1989, p. 35).

O mito é uma representação coletiva, transmitida de geração a geração. O mito é “a

parole, a palavra revelada, o dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir ao nível da

linguagem, ele é, antes de tudo, um vocábulo que circunscreve e fixa um acontecimento”

(BRANDÃO, 1989, p. 36). Ao tentar explicar o mundo e o homem, o mito “abre-se como

uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois,

decifrar-se” (ibidem, p. 36).

Entretanto, mesmo aberto a inúmeras interpretações, o mito, segundo Pierre Brunel:

É aceito como sendo uma história verdadeira, tornando-se, pois, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. O mito é a objetivação de todos os fenômenos que é dado perceberem. (2000, p. 731).

Os mitos narram o que ocorreu, o que se manifestou plenamente num tempo

primordial. Revelam que o mundo, o homem e a vida têm uma origem e uma história

sobrenaturais. E pelo fato dos entes sobrenaturais intervirem “é que o homem é o que é hoje,

46

um ser mortal, sexuado e cultural” (ELIADE, 2004, p.11).E qual seria a função simbólica do

herói no universo mítico? O herói, como mostra Chevalier é:

[...] produto do conúbio de um deus ou de uma deusa com um ser humano [...] simboliza a união das forças celestes e terrestres. Mas não goza naturalmente da imortalidade divina, se bem que conserve até a morte um poder sobrenatural: deus decaído ou homem divinizado. Os heróis podem, no entanto, adquirir a imortalidade, como Pólux e Héracles. (1999, p. 488).

O herói é, normalmente, caracterizado como um ser dotado de força física, de

extraordinária destreza e de uma coragem a toda prova. É comum encontrá-lo em todas as

sociedades, em qualquer estágio de civilização e cultura, em todas as épocas históricas. Existe

em todas as mitologias, variando em alguns detalhes. Segundo Lutz Muller:

O herói nos fascina tanto porque pura e simplesmente ele personifica o desejo e a figura ideal do ser humano. Ele defende a nossa causa e por isso nos identificamos com ele. Reencontramo-nos nos seus medos e sofrimentos, nos seus combates, vitórias e derrotas, na sua luta pela sobrevivência (1987, p. 15-16).

Por outro lado, como mostra Lutz Muller, todo herói perfaz sempre certo percurso.

Nasce de maneira um tanto quanto milagrosa. Enquanto criança mostra grande força moral e

física. Na adolescência e na juventude, em geral, passa por uma tragédia, decorrente do

embate entre o bem e o mal, entre o divino e o humano, ou entre o material e o espiritual. Às

vezes acaba vítima dos mortais que o invejam ou mesmo dos deuses, que por alguma razão

querem puni-lo. Sua morte é sempre um sacrifício.

Para Muller, um dado muito importante, que deve ser observado na trajetória do

herói, é o surgimento de forças protetoras, que o ajudam a realizar as penosas tarefas e a

cumprir o seu destino. Essas forças superiores, que protegem o herói, podem ser entendidas

como a própria alma humana, que aprova ou reprova, incentiva ou desestimula, ajuda ou

desampara o comportamento do indivíduo.

Alguns heróis míticos são frutos da união entre deuses e mortais. Hércules, como já foi

apontado anteriormente, é filho de Zeus, pai dos deuses e de Alcmena, mortal, princesa de

Tebas. Hera, esposa de Zeus, o persegue duramente. Ela não aceita as infidelidades de seu

47

marido e para puni-lo, atormenta as suas amantes e os filhos que nascem dessas aventuras,

razão pela qual Hércules se torna alvo do seu ódio e de suas armadilhas. Hera tortura Hércules

com vários acessos de fúria, fazendo-o matar e destruir tudo que está a sua volta e levando-o a

arrepender-se amargamente depois. Foi por imposição da deusa que ele se viu obrigado a

realizar os doze trabalhos. Embora tenha alcançado grandes vitórias, Hércules amargou

também várias derrotas. Ele não tinha medo de encarar desafios, pois estes ao invés de

imobilizá-lo, funcionavam como uma alavanca para ação e superação dos obstáculos.

Hércules conta com a ajuda de Zeus que está sempre no local exato para incentivá-lo

ou salvá-lo. A purificação de Hércules, contudo, tem um preço alto e trágico: a sua morte. Na

peça de Eurípides Héracles, o herói não morre, mas sai de Tebas muito abatido por ter

cometido tão hediondo crime.

Ovídio, em sua obra As metamorfoses, narra a morte de Hércules. Dejanira, sua

esposa, acreditando estar sendo traída por Hércules, nutre mil planos para se vingar de sua

rival. “Acima de todos, preferiu a túnica impregnada do sangue de Néssus”, morto pelo herói,

acreditando no seu poder de reanimar um amor decadente.

Com palavras blandiciosas, a desventurada encarrega o escravo de levar o presente ao marido. O herói, inconsciente do perigo, o recebe e põe sobre os ombros o veneno da hidra de Lerna. Ele começava o sacrifício, queimando o incenso nas chamas e dirigindo suas preces, e, com a pátera, derramava o vinho nas aras de mármore. Aquecido, o veneno tomou força e, dissolvido pela chama, espalhou-se até as extremidades dos membros de Hércules. [...] Esforça-se logo para arrancar a túnica fatal e, onde a arranca, arranca a pele [...]. O próprio sangue, como acontece com uma chapa de metal muito aquecido que se atira à água fria, endurece-se ao fogo do veneno, com um chiado estridente. Não há pausa, chamas ávidas devoram as entranhas, [...] a medula se derrete, tornando-se um líquido desconhecido (Ovídio, 1983, p. 168).

As chamas destruíram-no e sua aparência ficou irreconhecível, mas Zeus, “o pai

onipotente”, não abandona o filho, envolvendo-o numa nuvem, “e, em seu carro tirado por

quatro cavalos, levou-o para o meio dos astros radiantes” (OVÍDIO, 1983, p. 170). Ocorre,

então, a metamorfose de Hércules, de simples mortal em deus.

48

O Hino de Homero a Héracles, por sua vez, celebra em apenas oito versos, o destino

completo do herói, desde o seu nascimento até a sua apoteose:

É a Héracles, filho de Zeus, que vou cantar, ele que é de longe o maior dentre os que habitam a terra. Aquele a quem Alcmena, na Tebas de belos coros, Deu a luz, após unir-se ao Crônida de sombrias nuvens. Errou e sofreu, primeiro sobre a terra e no mar imensos; Em seguida triunfou, graças à sua bravura, E, sozinho, executou tarefas audaciosas e inimitáveis. Agora, habita feliz a bela mansão do Olimpo nevoso e tem por esposa a Hebe de lindos tornozelos. (Apud Brandão, 1997, p.91)

Por outro lado, como explicita Brandão, “é extremamente difícil tentar expor [...] o

vasto mitologema de Héracles”, pois “os mitos que lhe compõem a figura” (1997, p.90-91)

evoluíram muito e a única maneira de entender a sua estória é dividi-la em ciclos, para que se

possa ter uma idéia das partes e se possível do todo. Segundo Pierre Grimal, os mitógrafos

antigos já haviam percebido as dificuldades para fazer essa divisão. Ele adota uma

classificação, que apesar de ser bastante artificial, permite-lhe distinguir:

[...] três grandes categorias de lendas herácleas: 1- O ciclo dos Doze Trabalhos; 2- As façanhas independentes do ciclo precedente, e que incluem as expedições levadas a cabo pelo herói à frente de exércitos (ao passo que os Trabalhos são cumpridos, geralmente, sozinho ou com seu sobrinho Iolau); 3- As aventuras secundárias que lhe aconteceram no decorrer do cumprimento dos Trabalhos (1997, p. 205).

No estudo, como já foi anteriormente assinalado, será enfocada apenas uma das

categorias de lendas herácleas, a do ciclo dos Doze Trabalhos, tomando como textos-fonte

Héracles de Eurípides e As Metamorfoses de Ovídio.

Franciscato, na Introdução da peça Héracles de Eurípides diz que:

O tema da peça encontra-se na grandiosidade de Héracles, para quem a grandeza excessiva foi causa de sua ruína. A rápida reviravolta da Sorte, que o levou do mais completo poder para a mais profunda demência, não seria tão dramática se sua grandeza não fosse reiteradamente ressaltada [...](2003, p. 24).

Para a estudiosa, o maior herói grego, foi castigado por Hera não apenas por capricho,

ciumenta dos amores de Zeus. Sua justificativa para a queda de Hércules é que ele estava se

49

equiparando aos deuses. O fato de Hércules ser filho de uma união ilegítima de Zeus dá-lhe

qualidades excepcionais e grandeza extraordinária, esses fatores são tomados como uma

afronta para a deusa, pois extrapola os limites dos seres humanos. Além de agredir o que Hera

mais prezava: a honra.

Segundo Brandão, Hércules é superior aos outros heróis em importância, como

também o mais popular e célebre da mitologia clássica. Sua figura aparece em inúmeras

lendas, desde a época pré-helênica. Todos os feitos em que ele está presente constituem um

ciclo completo e demonstram sem exceção, a força descomunal, os sentimentos desmedidos,

que são superiores à capacidade humana.

Destacando-se como guerreiro, Hércules era a idealização do homem grego, sendo

muitas as estórias de seus feitos em diferentes expedições, de suas lutas sobre-humanas com

monstros fabulosos. Hércules é um exemplo a ser seguido por sua coragem e poder de

superação diante dos obstáculos. Apesar de irritadiço, era uma figura eminentemente

admirada e suas múltiplas aventuras amorosas iniciaram várias genealogias.

Quanto à submissão de Hércules ao seu primo Euristeu, existem inúmeras variantes,

como mostra Brandão.

[...] uma delas relata que Héracles, desejando retornar a Argos, dirigiu-se ao primo e este concordou, mas desde que aquele libertasse primeiro o Peloponeso e o mundo de determinados monstros. Uma outra, retomada pelo poeta da época Alexandrina, Diotimo, apresenta Héracles como amante de Euristeu. Teria sido por mera complacência amorosa que o herói se submetera aos caprichos do amado, o que aparece, aliás, uma ressonância tardia do discurso de Fedro no Banquete de Platão, 179. As variantes apontadas [...] provêm simplesmente da reflexão do pensamento grego sobre o mito: a necessidade de justificar tantas provações por parte de um herói idealizado como o justo por excelência. Para as religiões de mistérios, na Hélade, os sofrimentos de Héracles configuram as provas por que tem passar a psique, que se libera paulatina, mas progressivamente dos liames do cárcere do corpo (1997, p.97).

No que diz respeito à iconografia, a forma de representação mais comum do herói é

aquela em que ele aparece portando nas costas ou em uma das mãos a pele do leão que matara

50

no monte Citerão. Animal, cuja ferocidade, causava a morte de muitos animais dos rebanhos

de Anfitrião e do rei Téspio.

Hércules, em outra representação, aparece segurando uma clava, que consistia numa

pesada haste de madeira mais grossa em uma das extremidades. A clava, utilizada como arma,

foi confeccionada pelo herói com o tronco de uma oliveira selvagem, árvore que representava

na Grécia o conhecimento, a força espiritual, a fertilidade, a força vital e a vitória. A clava foi-

lhe de grande ajuda nos momentos de perigo, tornando-se o símbolo da destruição dos

monstros que atormentavam o herói.

Hércules com a pele de leão as costas

Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Desde cedo, Hércules já demonstrava sua força extraordinária, pois estrangulou, ainda no

berço, duas serpentes mandadas por Hera para matá-lo. Com dezessete anos abateu o leão do

monte Citerão com uma só mão. Para realizar os Doze Trabalhos que lhe foram impostos,

Hércules enfrentou obstáculos que ora requeriam força, ora inteligência.

51

4.2 SEMELHANÇAS E DESSEMELHANÇAS ENTRE OS TEXTOS-BASE E A

VARIANTE INTERTEXTUAL

Pretende-se estabelecer através desta análise a intertextualidade entre os textos - base e

a variante intertextual, considerando que eles podem ter pontos semelhantes ou

dessemelhantes, sem que se incorra no equívoco de que um texto supera o outro, mas que

cada um deles, à sua maneira, serve e serviu ao momento histórico em que foi produzido.

Neste estudo, aplicar-se-á a teoria de intertextualidade mediante o diálogo textual entre

as personagens de outros textos e as personagens lobatianas cujas narrativas ocorrem sob a

forma de brincadeira de crianças – a reinação. Lobato, ao compor suas narrativas, apropria-se

do mito grego, modificando sua história segundo critérios e objetivos específicos. Será

considerado o termo intertextualidade em seu sentido mais amplo, isto é, como o concebe

Bakhtin, analisando qualquer tipo de relação entre dois ou mais textos.

Com base nas considerações dos teóricos elencados neste estudo, constata-se que todo

texto é um intertexto, e que, outros mais estão presentes nele. Muitas vezes, essas marcas

intertextuais estão claras no texto. Em outros momentos, nem sempre seu reconhecimento se

dá de forma tão evidente. Sendo assim, no desenrolar deste estudo, pretende-se verificar de

que forma tal recurso literário processa-se na obra lobatiana. Tanto um texto quanto o outro,

terão a mesma relevância nessa análise, evidentemente por seus aspectos dialógicos, os quais

possibilitam uma complementação entre as narrativas, enriquecendo, destarte, o conhecimento

de possíveis leitores.

Em Héracles de Eurípides, oito façanhas do herói são retomadas do mito original:

Leão da Némea5, Corça de cornos de ouro6, Éguas de Diomedes7, Maçãs do jardim das

5 O leão da Némea causava devastações no vale de Némea. Era considerado invulnerável, mas Héracles conseguiu vencê-lo, estrangulando-o com suas próprias mãos. Com a própria garra do leão rasgou-lhe a pele, retirando-a e envolveu-se, posteriormente, com ela. Essa couraça é um dos atributos que mais o caracteriza. Simbolicamente, ao colocá-la, incorpora os atributos da fera vencida (EURIPEDES, 2003: 166).

52

Hespérides8, Vitória sobre as Amazonas9, Hidra de Lerna10, Derrota de Gerión11, Busca de

Cérbero12. Em As Metamorfoses de Ovídio, encontram-se condensados três outros trabalhos

de Hércules: o Javali de Erimanto13, Aves do lago Estínfalo14 e Touro de Creta15. Quanto ao

décimo segundo trabalho, “a limpeza dos estábulos de Augias” 15 recorre-se- á ao Dicionário

da Mitologia Grega e Romana de Pierre Grimal como fonte de referência, uma vez que este

não aparece nos textos primários, anteriormente, escolhidos.

6 A corça era uma das cinco corças de cornos de ouro encontrada por Ártemis e que foi solta para fazer parte dos Trabalhos, a pedido de Hera. O animal era consagrado a essa deusa. Para realizar este trabalho Héracles consumiu um ano, devido a velocidade da corça. Eurípedes a retrata como saqueadora, mas é o único que faz isso, talvez o objetivo seja reforçar o valor de Héracles como herói civilizador (IDEM, 2003:167). 7 Diomedes, rei da Trácia possuía quatro éguas que se alimentavam se carne humana. Elas foram pacificadas por Héracles, não com freios, mas alimentando-as com o próprio rei. (IBIDEM, 2003: 168). 8 As Hespérides são filhas da Noite, que vigiam as maçãs de ouro. O jardim das Hespérides localiza-se nas costas do norte da África. As maçãs foram dadas por Gaia como presente para Hera quando se casou com Zeus. Além das Hespérides, tem uma serpente guardando o jardim (IBIDEM, 2003: 168). 9 A tarefa de Héracles era trazer para o rei Euristeu o cinturão de Hipólita, a rainha das amazonas. As amazonas constituíam uma nação de mulheres guerreiras e tinham o costume de criar apenas as crianças do sexo feminino. Os meninos eram mortos ou enviados para países vizinhos (IBIDEM, 2003: 169). 10 Filha de Tífon e Equidna, a hidra era uma espécie de serpente de nove cabeças, sendo a do meio imortal e que vivia em Lerna. Sempre que Hércules decepava uma cabeça, duas cresciam em seu lugar, e, como se isso não fosse um problema suficiente, Hera enviou um caranguejo gigante para morder o pé do herói. Este truque desleal foi demais para o herói, que decidiu pedir ajuda a Iolau; enquanto Hércules cortava as cabeças, Iolau cauterizava os locais com uma tocha flamejante, de modo que novas cabeças não pudessem crescer. A cabeça imortal, Hércules a enterrou sob um enorme rochedo. Por fim, Hércules embebeu a ponta de suas flechas no sangue da Hidra, tornando-as venenosas (IBIDEM, 2003: 170,171). 11 Gerión era filho o Gigante Crisaor. Hércules foi incumbido de levar a Euristeu os bois de Gerião, monstro de três cabeças que vivia na ilha de Erítia, situada no Extremo Ocidente. Depois de atravessar o oceano e vários países, Hercules teve que lutar com o pastor Euritião e seu cão de duas cabeças, Ortro. No seu regresso, enfrentou outros desafios ou provações (IBIDEM, 2003: 171). 12 Cérbero é o tricorpóreo cão, filho de Tífon e Equidna, que guarda a entrada do Hades. A tarefa de Hércules era trazê-lo do mundo dos mortos para a terra, sem se valer de qualquer tipo de arma, conduzindo-o a presença de Euristeu e, posteriormente, o levando de volta (IBIDEM, 2003: 25). 13 Esse terrível animal assolava a região de Erimanto e Héracles recebeu a ordem de trazê-lo para Euristeu. Héracles com seus gritos, forçou a animal a abandonar o seu chiqueiro, empurrou-o pelo meio de uma neve que cobria a região, fatigou-o de tal forma que acabou por capturá-lo. Em seu caminho, foi hospedado pelo centauro Folo, e acabou se envolvendo numa luta contra outros centauros (GRIMAL, 1997: 209). 14 As aves, que viviam em uma densa floresta às margens do lago Estínfalo, devoravam tudo que encontravam a sua frente, causando a destruição entre homens e rebanhos. Héracles utilizou-se de castanholas fabricadas por Hefesto, a pedido de Atena. Com o barulho ensurdecedor desses objetos, as aves, assustadas, abandonaram a florestas e foram mortas com flechas envenenadas com o sangue da Hidra de Lerna (IDEM, 1997: 210). 15 Minos, rei de Creta, prometeu a Posídon que tudo de especial que saísse do mar seria sacrificado em sua honra, mas ao ver surgir das ondas um belo touro branco, guardou-o para si. Ofereceu em sacrifício ao deus um outro animal. Posídon, como forma de punição, fez com que o touro enfurecido causasse uma grande destruição na ilha de Creta. O herói então foi chamado por Euristeu para dominar a fera. Ele realizou mais este feito e regressou à Grécia, a nado com o touro capturado nos ombros (1997: 210). 15 Por ordem de Euristeu, e como forma de humilhação, é imposto a Hércules um trabalho servil, o de limpar as cavalariças do rei Augias. Entretanto, antes de realizar o trabalho, Hércules estabeleceu um acordo com Augias. Quando este descobriu que Hércules realizara o trabalho por ordem de Euristeu, recusou-se a cumprir o que fora combinado: uma parte do reino ou uma parte dos seus rebanhos (1997: 210).

53

Os doze trabalhos de Hércules, sob a perspectiva lobatiana, apresentam como

personagens Hércules, o protagonista e os co-heróis do Sítio do Picapau Amarelo. O mito e

sua variante intertextual possuem pontos afins: os seis primeiros trabalhos acontecem no

Peloponeso e os últimos levaram Hércules a vários lugares: Creta, Trácia, Cítia, no país das

Amazonas, no país dos Hiperbóreos e no Hades. Entretanto, os trabalhos hercúleos realizam-

se de diferentes maneiras conforme se demonstrará em posterior análise.

Como a ordem dos trabalhos realizados por Hércules é variável, nesta pesquisa

seguir-se á a ordem de Os Doze trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato. São eles: O leão

da Neméia, A Hidra de Lerna, A corça de pés de bronze, O javali de Erimanto, As

cavalariças de Augias, As aves do Lago Estinfale, O touro de Creta, Os cavalos de

Diomedes, O cinto de Hipólita, Os bois de Gerião, O pomo das Hespérides e, por Hércules e

Cérbero.

Como no texto-base, Héracles, Eurípides faz apenas menções aos Trabalhos, será

utilizado também para esta pesquisa o Dicionário de Mitologia Grega e Romana, acima

citado. Segundo Pierre Grimal, os seis primeiros trabalhos ocorrem no Peloponeso, e os

últimos levaram Hércules a vários lugares:

[...] Os seis primeiros tiveram o Peloponeso como palco; os outros seis repartiram-se pelo resto do mundo: em Creta, na Trácia, na Cítia, no Extremo Ocidente, no país das Hespérides e nos Infernos. [...] (GRIMAL, 1997, p. 208).

No texto lobatiano, ocorre uma estilização do texto-base, conforme se pode constatar

no trecho abaixo:

[...] Instantes depois Pedrinho, o Visconde e Emília acordavam na Grécia Heróica, nas proximidades da Neméia. Era para onde haviam calculado o pó; pois a primeira façanha de Hércules ia ser a luta do herói contra o leão da lua que havia caído lá. (2004 vol 01, p. 11).

Desta maneira, verifica-se que, na variante intertextual, os seis primeiros trabalhos

acontecem também no Peloponeso. Entretanto, os trabalhos hercúleos realizam-se de

54

diferentes maneiras conforme se demonstrará em posterior análise. Percebe-se, no extrato, que

as personagens lobatianas são inseridas no mesmo percurso temático do texto-base. A

estilização mantém, com o texto primário, uma relação mais de consonância que de

confrontação. Assim, em vez de um abalroamento de temas, obtêm-se o acréscimo de

situações e personagens os quais são circunstanciados à realidade brasileira.

A obra de Lobato, Os doze trabalhos de Hércules, inicia-se com a narrativa da vida de

Hércules, o maior herói da Grécia:

Na Grécia Antiga o grande herói nacional foi Héracles, ou Hércules, como se chamou depois. Era o maior de todos – e ser o maior de todos na Grécia daquele tempo equivale a ser o maior do mundo. Pôr isso até hoje vive Hércules em nossa imaginação. A cada momento, na conversa comum a ele nos referimos, a sua imensa força ou às suas façanhas lendárias. Dele nasceu uma palavra muito popular em todas as línguas, o adjetivo “hercúleo”, com significação de extraordinariamente forte (2004, vol.01, p. 07).

A caracterização de Hércules ganha novos contornos por meio da voz de D. Benta,

no momento em que relata como o herói foi gerado por Zeus, o pai dos deuses. Utilizando-se

de uma linguagem bem simples, a narradora possibilita também, aos seus jovens ouvintes,

compreender as constantes disputas entre os deuses do Olimpo, e, desta maneira, D. Benta

aproxima a narrativa clássica do linguajar brasileiro de então, construindo, assim, um

discurso natural e, conseqüentemente, acessível ao público infantil.

Ah! Minha filha, que maravilhoso herói foi esse massa bruta! Era filho de Zeus, o grande deus lá dos gregos, e de Alcmena, a mulher mais bela da época, grande como uma estátua, forte, imponente. Mas Zeus era casado com a deusa Hera, a qual, enciumadíssima com aquele filho de seu esposo na terra, jurou persegui-lo sem cessar. E assim foi. A vida do pobre Hércules tornou-se puro tormento, tais e tais armadilhas lhe armava a deusa. Mas era defendido por Zeus. Hera armava as armadilhas e Zeus as desarmava [...] (2004, vol. 01, p. 09).

Na peça Héracles de Eurípides quem narra o nascimento de Hércules é Anfitrião,

esposo de Alcmena: Que mortal não conhece aquele que partilhou o leito com Zeus .O

argivo Anfitrião, que Alceu, filho de Perseu,outrora gerou, este pai de Héracles? (2003, p.

25).

55

Eurípides, em apenas três versos, resgata como o herói foi concebido, revelando a

artimanha de Zeus que se travestiu de Anfitrião para se deitar com Alcmena, bem como toda

a genealogia do herói pelo lado materno: bisneto de Perseu e neto de Alceu. Ao resgatar o

mito, Lobato não faz menção a Anfitrião, nem a artimanha usada por Zeus para conceber

Hércules.

Ao analisar-se a obra lobatiana, percebe-se o seu forte caráter intertextual. Logo no

início da sua narrativa, o escritor faz uma citação de Anatole France, com o intento de

descrever o herói da sua história: Disse Anatole France: “Havia em Hércules uma doçura

singular. Depois em seus acessos de cólera golpear culpados e inocentes, fortes e fracos,

Hércules caía em si e chorava. E talvez até tivesse dó dos monstros que andou destruindo por

amor aos homens.[...] ( 1994, p. 07). Esta citação foi utilizado por Lobato a fim de reforçar ,

no imaginário infantil, o contraste que existia na figura de Hércules.

Na versão lobatiana, os doze trabalhos foram penitências impostas ao herói pelo

Oráculo de Delfos, como uma forma de purificação do morticínio involuntário. Ele fora

consultar o Oráculo, pois num acesso de loucura, causada por Hera, matou todos os filhos de

seu casamento com Mégara. Durante a realização dos trabalhos, Hércules foi perseguido

pelo ódio da deusa Hera, que tinha ciúmes dos filhos de Zeus com outras mulheres. A deusa

Palas Atena, por outro lado, era uma defensora entusiasta de Hércules; ele também desfrutou

da companhia e ajuda ocasional de seu sobrinho, Iolau.

Na peça Héracles de Eurípides, já se tem uma outra versão da imposição dos

trabalhos ao herói e do motivo da sua submissão ao primo Euristeu, rei de Argos: “Euristeu,

ao término dos trabalhos, permitiria o retorno do herói e de sua família à pátria” (2003: 21),

pois todos estavam exilados em Tebas. Na versão de Eurípides, o herói comete os

assassinatos de seus filhos e da esposa, somente após a realização dos trabalhos, quando

Hera envia Lissa, que personifica a loucura, para atormentar o herói:

56

[...] Nem mar bramindo em vagas é tão violento, nem terremoto ou raio dardejando dores, quantas corridas que moverei no peito de Héracles. Romperei o teto e derruirei o palácio, após aniquilar as crianças. Ele, ao matar os filhos, não saberá que destruí aqueles que gerou até livrar-se de meu furor(2003, p. 121).

Na obra de Lobato, Hércules é caracterizado como um herói consagrado e a sua

história é narrada, paulatinamente, pelo narrador, por D. Benta ou pelo próprio herói. Em

conversa com o pessoal do Sítio, Hércules conta que se casara com Mégara e que tivera oito

filhos, e revela também a razão porque que se submeteu ao rei Euristeu para a realização dos

doze trabalhos:

Eu estava nessa ocasião em Tebas, donde saí para realizar uma aventura. Deixei Mégara e meus filhos entregues aos cuidados de Anfitrião. Minha aventura era liquidar uma série de monstros e gigantes malvados. E andava lidando nesse trabalho, quando um tal Licos se apoderou de Tebas e matou muita gente – ia também matar Mégara e meus filhos. E já estava com a espada erguida sobre a cabeça de minha esposa, quando concluí o meu trabalho e voltei para Tebas. Ah! Foi a conta! Dei tamanha mocada em Licos que o achatei como esta folhinha aqui – Hércules exemplificou com uma folhinha seca apanhada do chão. Logo em seguida tratei de oferecer aos deuses um sacrifício de agradecimento – e então Hera me enlouqueceu. E, louco furioso, matei não só meus filhos como também a pobre e querida Mégara, minha esposa ... (2004 vol. 01, p. 18-19).

Neste momento, de conversa informal com os heróis do Sítio, Hércules desvela sua

emotividade, expondo todas as mágoas que o atormentam, entre elas, ter assassinado seus

próprios filhos. Emília aproveita a ocasião para compará-lo a D. Quixote que também havia

sido acometido de loucura. Observa-se que Lobato através da fala de Emilia remete o leitor

ao texto de Cervantes, mostrando que a loucura é comum aos heróis. Com esse recurso

Lobato confronta dois textos clássicos da literatura e instiga o leitor juvenil a esta leitura

para o seu enriquecimento cultural.

Ao se apropriar do mito, Lobato desmistifica o herói grego, pois enviando Emília,

Pedrinho e Visconde para auxiliarem-no, mostra que mesmo o maior herói de todos os

tempos necessita da ajuda de outrem para a realização de seus doze trabalhos, neste caso, os

picapauzinhos oferecem suporte ao herói, como se fossem seus escudeiros. Esse diálogo

57

intertextual permite a recriação ou reinterpretação do mito de Hércules em novas aventuras

ao lado das personagens do Sítio.

Na obra lobatiana, o evento mais importante se dá com a chegada de Pedrinho,

Emília e Visconde, vindos diretamente do Sítio para ajudar Hércules a realizar seus doze

trabalhos. Mas isso só ocorre graças ao recurso mágico do pó de pirlimpimpim.

Ao transportar o pessoal do Sítio para a Grécia, Lobato trabalha com dois mundos: o

real e o imaginário que se entrecruzam. Para Marisa Lajolo quando um escritor se utiliza

desse recurso tem-se uma “[...] retomada da tradição, passando-a a limpo, fecundando sua

significação pela irreverência em relação a seu contexto tradicional [...]” (1982, p.48).

Lobato, ao retomar a tradição, estiliza o mito de Hércules, dando-lhe uma nova roupagem.

Assim, logo no início da narrativa, toma-se conhecimento dos preparativos para

viagem de Pedrinho, Emília e Visconde pelos tempos heróicos da Grécia Antiga, tempos

que já tinham vivenciado anteriormente em uma outra expedição à Grécia.

Pedrinho pede a Visconde que prepare o pó de pirlimpimpim para a viagem, e por ser

uma longa viagem exigia uma quantidade razoável: “um canudo bem cheio” (2004, vol. 01,

p. 8). O pó de pirlimpimpim acondicionado num canudinho de taquara-do-reino devia ficar

bem atado à cintura. Pedrinho tomava todas as precauções para não perder o precioso

canudo, pois, do contrário, não poderia voltar nunca mais (2004 vol. 01, p. 8-9). Visconde

sugeriu que levassem três canudos, cada um seria responsável pelo seu.

Emilia, como nas viagens anteriores, pediu que tia Nastácia confeccionasse uma

canastrinha, para que ela pudesse trazer para o Sítio muitas lembranças da Grécia, pois ela

como um bom turista sempre trazia uma lembrancinha dos lugares visitados Essa pedido da

ex-boneca pode ser visto como uma forma de reter os conhecimentos, pois cada vez que ela

olhasse para o objeto recordaria alguma lição importante. Emília, que tem ânsia de conhecer

e aprender, acaba sempre com a canastrinha cheia.

58

No terceiro dia pela manhã já tudo estava pronto para partida. Pedrinho deu uma pitada de pó e cada um contou: Um... dois e.... TRÊS! Na voz de Três, todos levaram ao nariz as pitadinhas e aspiram-nas a um tempo. Sobreveio o fiun e pronto. Instante depois Pedrinho, o Visconde e Emília acordaram na Grécia Heróica, nas proximidades da Neméia. [...] (2004, vol. 01, p. 11)

Em Os Doze trabalhos de Hércules, o herói grego é caracterizado pela sua força

bruta e pela pouca capacidade de compreensão. Nas palavras de Pedrinho, “além de burrão

de nascença, como todos os grandes atletas, não podia entender aquela história de ‘vir dum

século futuro” (2004 vol. 01, p. 16-17). É por essa razão que o herói, seguindo uma sugestão

da Emília, logo adota as personagens do Sítio, para ajudá-lo a realizar os Doze Trabalhos:

Podemos fazer o seguinte. O Visconde fica sendo o seu escudeiro, como aquele Sancho que acompanhava D. Quixote. Sempre há servir para alguma coisa. Eu forneço as idéias. Pedrinho dá um excelente oficial de gabinete, ou ajudante de ordens. O senhor fica sendo o muque do bando; Pedrinho, o órgão de ligação; eu, o cérebro, e o Visconde, a escudagem científica... (2004, vol. 01, p. 17)

Lobato faz uma alusão a Idade Média, período em que os cavaleiros eram sempre

acompanhados por ajudantes, para realizarem suas façanhas, Visconde será o escudeiro,

Pedrinho, o assistente e Emília, conselheira ou “dadeira de idéias”, não sendo mais

considerada a “asneirenta” dos livros anteriores. E assim, em companhia dessas brilhantes

personagens, Hércules consegue cumprir com sucesso os trabalhos e ainda aprender muito

com as crianças.

Em Héracles, de Eurípides, o herói grego realiza seus trabalhos contando apenas com

a ajuda dos deuses: Zeus, seu pai; Atena, sua protetora; Hefaísto, que lhe faz o címbalo. Com

relação à morte dos filhos, as duas narrativas são semelhantes. Por outro lado, na versão de

Lobato, são oito os filhos de Hércules; na de Eurípides, apenas três.

A peça Héracles, foi representada em Atenas entre os anos 420-415 a.C. A ação se

passa em Tebas. Enquanto o herói está realizando o décimo segundo trabalho, o de trazer

Cérbero do Hades, sua família sofre nas mãos de Lico, um tirano usurpador, que matara

Creonte, pai de Mégara, para tomar o poder. Este rei quer assassinar os filhos de Héracles,

59

para que não ocorram vinganças posteriores. Ao mesmo tempo em que são narradas as

proezas do herói grego, têm-se conhecimento que Mégara e Anfitrião, respectivamente

esposa e pai de Hércules, estão refugiados no altar de Zeus, aguardando ansiosamente a sua

volta para salvá-los do ditador cruel e sanguinário.

As personagens do Sítio podem ser consideradas forças protetoras que ajudam o

herói mítico a realizar suas tarefas, orientando-o e incentivando-o. Elas tornam-se

coadjuvantes de Hércules. Elas realizam o sonho de qualquer ser humano: viver a grandeza

dos deuses e participar das proezas dos heróis da Grécia.

Para as crianças do sítio a viagem à Grécia, contribui para a formação de sua

personalidade. Voltam de lá crescidas e fortalecidas. Um exemplo é Emília que já tratada por

Lobato como “ex-boneca”, no decorrer das aventuras, sofre uma metamorfose, evoluindo a

ser humano:

Sim, as coisas são mais simples para os seres que não comem. O terrível da vida é o eterno problema da comida. “A gente come e não adianta nada” – costumava dizer a ex-boneca – “porque por mais que comamos, temos de comer no dia seguinte”. Ai que saudades do tempo em que eu não comia!... (2004, vol. 01, p. 15).

Emília sente as mesmas necessidades dos seres humanos, pois sua metamorfose é

completa. Assim como os humanos, sente medo diante da evidência da morte. Tem medo,

por exemplo, de ser fulminada pela deusa Hera, que só não concretiza suas ameaças a

pedido de Palas. Emília está um pouco mais educada que nos livros anteriores, apesar de

continuar a egoísta de sempre, típico de uma criança em sua idade, mas que no momento

real de perigo acaba socorrendo os amigos.

Visconde é outra personagem que ao longo das aventuras vai sofrendo sérias

transformações. Ao cair e ser esquecido dentro de um livro na biblioteca torna-se muito sábio.

Em Os Doze trabalhos de Hércules se apaixona por uma garota grega, aflorando uma emoção

bastante humana, apesar de não ser ainda qualificado como gente.

61

despedaçam. Abandone o arco e pense em outra coisa” (2004, vol.01, p. 15). Neste

momento Hércules não tinha conhecimento da presença do pessoal do Sítio, e executa a

tarefa com precisão e agilidade, certo de estar contando com a interferência dos deuses,

especialmente de Palas Atena, sua protetora.

.

Hércules e o Leão da Neméia Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Ao realizar esta façanha, o herói simbolicamente assume a força leonina, e isso se

expressa claramente, quando ele transforma a pele do leão numa capa protetora que além de

invulnerabilidade, possuía como toda pele de determinados animais um mana, uma enérgeia

muito forte, simbolizando, desse modo a “insígnia da combatividade vitoriosa” (1998 vol. III,

p. 99). O leão é muito admirado devido à força, aparência majestosa, olhar. Ao combatê-lo,

Hércules ensina que a luta pelo aperfeiçoamento começa dentro de cada ser humano.

Após a morte do leão, Pedrinho utiliza seu canivete para abrir a barriga do animal,

ajudando Hércules retirar a sua pele. O pessoal do Sítio leva a pele do leão para ser curtida

pelo pastorzinho grego que os acolhera na chegada. Depois de alguns dias, eles mandam o

62

Visconde à casa do pastor para buscar a pele curtida. O pequeno sábio obedece e retorna

usando o pó mágico de pirlimpimpim.

O uso do canivete é o artifício utilizado por Lobato para aproximar o mundo clássico

do mundo moderno. Nesse episódio, os leitores, assim como o pessoal do Sítio, conhecem o

modo de vida do povo grego. Em contrapartida, Hércules se surpreende com as invenções do

século XX:

Já sei o que procura amigo Hércules, Faca, não é? Faca não tenho comigo. Vovó nunca me deixou andar com faca de ponta, aquela boba. Mas tenho um bom canivete Rodger - e sacou do bolso um canivete Rodger de cabo de osso queimado e lâmina afiadíssima. Hércules achou graça naquele instrumento, pois não havia canivetes naquele tempo (2004, vol. 01, p. 20).

O herói que não tinha noção do perigo da lâmina afiadíssima do canivete acaba

cortando a mão, sendo socorrido por Emília, que faz um curativo utilizando-se de

esparadrapo, que também lhe era desconhecido.

Por outro lado, a alusão ao texto de Cervantes, por meio da voz de Emília, permite

estabelecer um confronto entre o herói grego e o herói desacralizado dos “séculos futuros”:

Ah, Senhor Hércules, nem queira saber! D. Quixote é um famoso cavaleiro andante dos séculos futuros, um tremendíssimo herói da Espanha - mas com diferenças: em vez de vencer nas aventuras como os heróis daqui ele sai sempre apanhando, com as costelas quebradas, mais moído de pau no lombo do que massa de pão bem amassada – e foi pôr aí além. Contou as principais façanhas de D. Quixote, todas terminadas com uma pancadaria no lombo do herói ( 2004, vol.01 , p. 17).

Observa-se que Lobato utiliza-se de muitos recursos intertextuais para reescrever o

mito de Hércules. Ao longo da narrativa, os pequenos heróis explicam a Hércules diversos

fatos importantes para sociedade moderna como o do nascimento de uma nova era:

Pedrinho teve de explicar a cronologia, isto é, a marcação do tempo antes e depois de Cristo. [...] vocês estão no século 7º antes de Cristo. Quer dizer que Cristo vai nascer daqui a sete séculos. E nós vivemos no século 20, depois do nascimento de Cristo. [...] (2004, vol. 01, p. 22).

63

Pedrinho, assumindo a voz narrativa, revela, ainda, a Hércules fatos relacionados aos

deuses gregos: “todos estes deuses da Grécia de hoje, inclusive Zeus, que é hoje o supremo,

tudo isso vai desaparecer” (2004 vol.01, p. 22). Para Hércules era impossível que “deuses

eternos e únicos” pudessem desaparecer. O herói apenas finge compreender as explicações

de Pedrinho e do Visconde, que teve de tomar parte na discussão, mas estes fatos para ele

jamais aconteceriam.

Como bem assinala Eliana Yunes:

[...] a fantasia dos picapauenses, além da prática da liberdade de ação, significa a possibilidade do exercício crítico, desvelado quer pelas situações, quer pelos diálogos, quer pelas reflexões estabelecidas no contato com outros mundos – a intertextualidade serve de contraponto para o enriquecimento do texto lobatiano. (1982, p.53)

Por essas declarações de Yunes, recupera-se a asserção de que não existe

superioridade entre o texto primário e sua variante intertextual, pois cada um deles, a seu

tempo e com suas especificidades, transmitem conteúdos que podem ser reorganizados de

acordo com o intuito a que se destinam. Ao inserir no mundo de Hércules conceitos da

realidade de século XX, Lobato possibilita que tais conceitos sejam relidos e reaproveitados

pelo leitor que, num constante processo de aprendizagem com efeitos lúdicos, reinterpreta e

reformula seus conceitos de vida. Ainda neste primeiro trabalho, o leitor toma

conhecimento de como se processa a fabricação da azeitona: “[...] As azeitonas só se tornam

comestíveis depois de várias semanas de maceração em água de sal. Ficam então deliciosas.

Mas sem isto, nem macaco come!” (2004, vol. 01: 11).

O texto de Lobato também se utiliza da metalinguagem. Segundo Jakobson

“podemos observar dois níveis de linguagem: linguagem-objeto – que fala de objetos

estranhos à linguagem; e a metalinguagem que fala da linguagem como tal”(CHALHUB,

2001, p. 52). São, portanto, definições e explicações que elucidam o significado de termos

64

pouco conhecidos pelo jovem público leitor. No decorrer deste trabalho serão citados

diversos exemplos. É o caso da palavra querência, explicada sabiamente por Visconde:

Querência! – exclamou – Gosto muito dessa palavra. É como lá onde moro os campeiros denominam os lugares onde os animais nascem e passam os primeiros anos. Ficam querendo bem a esses lugares, e se um campeiro os leva para longe e os solta, eles vêm correndo para ali. É uma palavra que vem do verbo querer[...] (2004, vol. 01, p. 28).

Um outro exemplo de metalinguagem pode ser apreendido na passagem em que as

personagens do Sítio chegam à Grécia à procura do herói. Um pastor dá-lhes as informações

sobre o leão da Neméia dizendo que o animal era invulnerável. Emília não conhece a palavra

e pede socorro ao Visconde:

- Que quer dizer invulnerável, Visconde? Responda bem baixo.

O Visconde compreendeu e ajudou-a.

- Invulnerável é o que não pode ser ferido por arma nenhuma, uma espécie de “corpo fechado.” – Emília ainda perguntou: - “E que tem a palavra “invulnerável” com ferida”? O Visconde explicou que em latim “ferida” era “vulnera.” (2004, vol. 01, p. 12)

Dessa forma, Lobato instrui as crianças sem que elas percebam, sobre os mais

variados assuntos, seja sobre cultura grega, mitologia ou mesmo informações sobre o mundo

moderno.

No segundo trabalho de Hércules não há a participação das personagens do Sítio que

já haviam assistido ao combate do herói contra a Hidra de Lerna em outra ocasião16. Eles

preferem passear pela Grécia e brincar com Meioameio.

Quando saem da Neméia, a caminho de Micenas, eles domam e domesticam um

pequeno centauro, para servir de montaria a Pedrinho que não conseguia acompanhar o herói.

Ele recebe o nome de Meioameio, devido à sua constituição física, metade gente, metade

cavalo. O narrador mostra que Hércules fica maravilhado com a técnica utilizada por

16 Lobato relata este episódio no livro O minotauro.

65

Pedrinho para domar o pequeno centauro, pois esta não era utilizada na Grécia. Pequenas

bolas, objetos rijos do tamanho de laranjas, deveriam estar presas a correias de certo

comprimento, que quando giradas no ar atingiriam as pernas traseiras dos animais, fazendo-os

cair.

O Visconde filosofou que o laço de laçar animais, as bolas de embolá-los, as armadilhas de apanhá-los vivos, tudo são produtos da inteligência em sua luta contra a força bronca. A força não tem esperteza, é burríssima, e por isso acaba sempre vencida pela esperteza da inteligência (2004, vol. 01, p. 29).

Visconde, neste extrato, simbolicamente, pretende mostrar para Hércules, que no

futuro, a humanidade prezará mais a inteligência do que a força. Assim, na trama narrativa

lobatiana, a intertextualidade implica uma perspectiva histórica. Em seus textos, descobre-se

uma maneira de ler a história: passado, presente e futuro são intercalados na trama, de forma

didática, permitindo aos leitores, o conhecimento da história através da ficção. Vale ressaltar

aqui a importância da recuperação e da atualização do mito de Hércules, pois esse trabalho de

resgate registra e repassa a cultura, deixando a humanidade mais rica e fortalecida.

Outra questão levantada por Lobato na variante intertextual diz respeito ao patrimônio

alheio: Hércules não pagava pela comida que consumia dos outros habitantes da Grécia. Era

comum entre os heróis, não se preocuparem com esses detalhes ínfimos: “-Ah, ah, ah,...

Comigo é assim. Quando quero, pego. Isso de comprar as coisas com dinheiro e para os que

não podem pegá-las” (2004, vol. 01, p. 40). Pedrinho e Emília ensinam didaticamente, que o

herói grego deve pagar por aquilo que pega, pois eles têm consciência de que a subtração,

para si ou para outrem, de coisa alheia se caracteriza como furto. Hércules sente certo

constrangimento em relação às suas atitudes, como pode ser comprovado no extrato abaixo:

E sentiu que aquele menino já era um produto da educação que a ele, Hércules, faltava. A idéia da educação que momentos antes havia concebido estava a aperfeiçoar-se em seus cérebro. [...] bonito esse sistema de respeitar o que é dos outros [...] se fosse criança como você, era o caminho que ia seguir. (2004, vol. 01, p. 41).

66

Percebe-se então que a educação sempre foi a meta primordial de Lobato, sua

narrativa está impregnada de elementos pedagógicos. O escritor mostra-se consciente de que

nem só de entretenimento eram feitos os livros. Assim, seu texto veicula condutas éticas,

valores sociais e padrões de comportamento. Por intermédio da sua ficção, o desenvolvimento

moral penetra na alma infantil, de maneira leve e descontraída. O maravilhoso é uma espécie

de “dulçor” para o “fel” das regras sociais.

Observa-se que a questão da educação não formal é abordada por Lobato em inúmeras

ocasiões. Para ele, as crianças poderiam aprender de formas diversas, especialmente por meio

das aventuras narradas nos livros. Hércules, por exemplo, conclui que Meioameio, depois de

ter sido domado, tornou-se mais polido e educado. Ao mesmo tempo se arrepende de ter

matado tantos companheiros do pequeno centauro, fato que ocorreu quando realizava o seu

quarto trabalho.

Retomando o estudo, encontra-se Hércules no embate com seu segundo trabalho, a

Hidra de Lerna, que segundo Brandão:

[...] é um monstro gerado pela deusa Hera, para “provar” o grande Héracles. Criada sobre um pântano, junto da fonte Amimone, perto do pântano de Lerna, na Argólida, a Hidra é figurada como uma serpente descomunal, de muitas cabeças, variando estas, segundo os autores, de cinco ou seis, até cem, e cujo hálito pestilento a tudo destruía: homens, colheitas e rebanhos. (1989, p. 243).

Com relação ao monstro, Lobato descreve o seguinte:

A Hidra de Lerna tinha fama de possuir muitas cabeças – mas quantas? As opiniões variavam de sete a cem. E o número certo só ficou perfeitamente estabelecido depois da façanha de Hércules. Só então a Grécia soube que a hidra tinha nove cabeças, oito mortais e uma imortal.(2004, vol. 01 , p. 47).

Observa-se que Brandão descreve a Hidra com maior tecnicidade, enquanto Lobato

faz um relato mais leve, sem carregar nas cores e nem polemizar, satisfazendo objetivamente

a natural curiosidade das crianças. Após a Hidra ter sido caçada pelo herói, todos ficam

sabendo, com certeza, a quantidade real de cabeças que o monstro realmente possuía.

67

Hercules realiza este trabalho com a ajuda de seu sobrinho Iolau, pois as personagens do sítio

não quiseram participar desta façanha, uma vez que já a conheciam da outra viagem à Grécia,

relatada na obra O Minotauro.

Hércules e a Hidra de Lerna

Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Hércules, conforme já descrito antes, é o semideus que terá que se purificar de todos

os males que cometeu em seu momento de insanidade. Concomitantemente ao ato de

purificação, o herói age como exemplar representante da boa índole do ser humano.

Carregando em suas costas o ideário da perfeita ética humana que será constantemente

ameaçada pela manifestação alegórica de estranhos seres, símbolos dos mais variados vícios

humanos. Como exemplo, observa-se Hidra, a qual representa não somente um monstro que

atemoriza os gregos pelo tamanho ou pela força física, mas principalmente pela sua quase-

imortalidade passível de extinção mais pela força moral do que física, ou como melhor

descreve Diel:

[...] a Hidra simboliza os vícios múltiplos, tanto sob forma de aspiração exaltada, como de ambição banalmente ativa. Vivendo no pântano, a Hidra é mais especificamente caracterizada como símbolo dos vícios banais. Enquanto o monstro vive, enquanto a vaidade não é dominada, as cabeças, configuração dos vícios, renascem, mesmo que, por uma vitória passageira, se consiga cortar uma a uma. Para vencer o monstro, Hércules usa a espada, arma de combate espiritual, conjugada ao archote, que cauteriza as feridas, a fim de que, uma vez cortadas, as cabeças não mais possam renascer. O archote simboliza a purificação sublime (1998, p. 99).

68

Como se explicita na citação acima a Hidra de Lerna deve ser subjugada por

representar os vícios que igualmente precisam ser combatidos e exterminados, não apenas

cortados. E os instrumentos para o total extermínio do monstro consubstanciam-se em espada

e archote. O primeiro símbolo das lutas espirituais é embainhado por Hércules, ao qual

associa um segundo instrumento, o archote que com o fogo purifica e cauteriza a vulnera

aberta nos peitos dos homens, purificando-os, então.

Após a realização de seu trabalho e vencer a Hidra de Lerna, Hércules reencontra os

picapauenses. Apresenta-os a Iolau, tecendo inúmeros elogios. Com eles, enfatiza o herói,

se aprende sempre uma nova lição. Pedrinho:

[...] É um companheirinho, um auxiliar. Menino excelente, tão educado que às vezes até me envergonha. Parece incrível, mas tenho aprendido muita coisa moral com esse menino. E até coisas técnicas. Ensinou-me um meio excelente de derrubar centauros na corrida. ( 2004, vol 01, p. 48).

Sobre Emília, o herói faz a seguinte observação:

Fique sabendo, Iolau, que dessa cabecinha brotam mais idéias do que de vespas duma vespeira e algumas excelentes! A idéia de matar o leão da lua por estrangulamento veio dela. Foi quando os conheci. Estavam trepados a uma árvore, e eu, já sem flechas em meu carcás e com uma clava estilhaçada, não sabia o que fazer, quando uma vozinha alambicada soou: Senhor Hércules, agarre-o pelo pescoço e afogue-o e foi o que fiz... (2004, vol. 01, p. 48).

Hércules respeita a sabedoria do Visconde, e faz-lhe o maior dos elogios. Para o herói,

o sábio “Fala com a competência dos grandes mestres de Atenas” (2004, vol. 01: 48).

O terceiro trabalho do herói grego é a captura da corça dos pés de bronze.

Uma corça lá num templo de Ártemis no Monte Cirineu, mas não uma corça comum. Além de protegidíssima da deusa, tem chifres de ouro e os pés de bronze. Quer dizer que não gasta os cascos por mais que corra – e tem fama decorrer tão rápida como um corisco. Este Trabalho vai me dar mais trabalho que os outros. Que vale a minha força contra a velocidade. (2004, vol. 01, p. 51)

Assim como os outros trabalhos, a caçada a corça se realiza com a ajuda dos

picapauenses. A caçada exige muita habilidade, pois a corça deve ser capturada viva. Ela é

extremamente veloz, tem chifres de ouro e pés de bronze e pertence à Ártemis, deusa da caça

69

que vivia no Monte Cirineu. A primeira tentativa fracassa, pois a corça consegue escapar ao

cerco montado por Hércules e seus adjuvantes. Eles se reúnem para estudar uma nova

estratégia de captura. Para saber onde a corça está escondida, consultam o Oráculo de Delfos

e descobrem que ela está muito longe.

Hércules e a Corça de pés de bronze Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Para a efetiva realização desta tarefa, as crianças do Sítio utilizam o recurso do faz-de-

conta. O faz-de-conta das personagens lobatianas é aquela palavra mágica capaz de mudar

totalmente os fatos, sendo o último e melhor expediente para resolver uma ocorrência “sem

solução”:

Pedrinho cocou a cabeça. Cinco mil quilômetros! Que pena haver tantos quilômetros no mundo... Depois calculou a velocidade da carreira da corça, achando 200 quilômetros por hora. Mesmo assim ela levaria 52 horas para ir e voltar. Não era muito. Podiam esperar ali. Mas apesar de haver feito pouco caso no faz-de-conta da Emília, Pedrinho resolveu recorrer a ele para encurtar o prazo. [...] Faz-de-conta que a corça volta depois de amanhã. [...] e correu a dizer aos outros que com base em seus estudos e nos do Visconde, a corça estaria e novo ali depois de amanhã à tarde (2004, vol. 01, p. 63).

70

O pó mágico foi usado neste Trabalho para diminuir o tempo que o animal levaria para

dar a volta ao mundo, pois Pedrinho não tinha paciência para esperar o tempo regulamentar.

Para conseguir capturar a corça, o herói grego aprende com as crianças do Sítio a

tecer uma rede para pegar o animal e uma corda para prendê-lo. Lobato com esse expediente

aproveita o momento para ensinar também aos seus leitores como é possível transformar

matéria-prima em novos materiais.

Emilia é a primeira a enxergar a corça:

[...] - Estou vendo um pulo a grande distância. Pedrinho explicou a Hércules que os olhos de Emília sempre foram famosos. Certa vez chegou a enxergar uma pulga no dragão de S. Jorge, lá na Lua. E se ela estava vendo pulos, então era mesmo a corça que vinha vindo (2004, vol. 01, p. 66).

Como a visão de Emília é extremamente aguçada, apesar dos olhos de retrós, todos lhe

dão crédito. A visão privilegiada de Emília torna-se, também, um instrumento para o autor

enfatizar a importância dos cinco sentidos no processo de aprendizagem das crianças e que os

adultos também deveriam notar mais o olhar das crianças, cuja acuidade pode revelar fatos,

por vezes, encobertos.

Nesse episódio, as funções referencial e metalingüística da linguagem permeiam

novamente os discursos do Visconde e de Pedrinho. Um bom exemplo pode ser destacado no

trecho abaixo transcrito, quando Pedrinho explica para Hércules a tática que pretende usar

para capturar a corça dos pés de bronze.

- É paca, Hércules, a gente caça de um modo diferente: esperando que ela volte para a toca...

- Mas a corça não tem toca!

- Não há ser vivo que não tenha a sua toca. [...] Chamo toca ao lugar certo em que o animal, quando se cansa de correr mundo, vem para descansar. Podemos primeiramente fazer uma tentativa de pegar a corça na corrida [...]. Se falhar, então recorremos ao método da “espera na boca da toca” (2004, vol. 01, p.51-52).

72

povo grego para agradecer aos deuses, oferecia em sacrifício pessoas, mas com o passar dos

tempos começaram a oferecer animais.

Outro aspecto que merece destaque é a presença do coro nas tragédias gregas. O coro

trágico não participa propriamente da ação, limita-se apenas a comentá-la, expressando

compaixão ou outros sentimentos pelas personagens. O coro simboliza o grupo social, cuja

sorte está ligada às personagens. Na peça de Eurípides, o coro é formado pelo grupo dos

anciões, que atua como adjuvante de Héracles. No texto de Lobato, o personagem Minervino

realiza a função do coro, ajuda e incentiva o herói nos momentos de grande necessidade.

Minervino, nome dado ao personagem por Emília, é outro acréscimo significativo,

pois este atua como intermediário entre o divino e o terreno. Na verdade é Palas a grande

protetora do herói, quem sempre o defende das armadilhas de Hera e que agora ajuda

também as personagens do Sítio. Minerva é, por sua vez, o nome atribuído a Palas pelos

romanos. Assim, tem-se a impressão de que é a própria Palas, disfarçada na figura de

Minervino, que intervém a favor do seu protegido, somente no final dos Trabalhos é que

sua verdadeira identidade e revelada: Minervino era Belerofonte, herói que domou

Pégaso o cavalo alado, e que já visitara o Sítio durante uma aventura17.

Como ficariam algum tempo na Grécia, os picapauenses resolvem construir uma casa.

A idéia de se construir uma casa é decorrente do episódio dos “Meninos Perdidos” da história

de Peter Pan. A sugestão veio de Pedrinho: “[...] em vez de reconstruir essa miserável

choupana de palha, não havemos de fazer uma casinha como a que os Meninos Perdidos

construíram para Wendy?” (2004, vol. 01, p. 67).

A casa, assim como o Sítio, seria o refúgio seguro para onde poderiam retornar após

cada aventura. Resolveram construí-la no campo, próximo ao palácio de Euristeu em

Micenas. O material para a construção podia, em parte, ser retirado da floresta. Emília,

17 O Picapau Amarelo

73

contudo, utiliza-se do recurso do faz-de-conta para conseguir outros materiais necessários à

construção. O “armazém faz-de-conta que a Emilia abriu à beira da estrada” (2003, vol. 01, p.

67) facilitou a aquisição dos materiais.

Vou mandar uma dúzia lá do meu depósito – e foi com as colunas faz-de-conta do Armazém de Emilia que o arquiteto Pedrinho ergueu a fachada da construção. Emilia exigiu ainda, sobre a as colunas, um frontão ao tipo do de todos os templos gregos, com esculturas (2004, vol. 01, p. 67).

A nova moradia, um templo for fora e uma casa por dentro, foi dedicada à D. Benta e

recebeu o nome de Templo de Avia.

Ao longo da narrativa lobatiana, o herói grego passa por processo de transformação.

Aos poucos adere às brincadeiras das crianças e se diverte muito. Lobato, nas entrelinhas da

narrativa, faz uma apologia a sua própria teoria: a de brincar aprendendo e aprender

brincando, sem nenhum constrangimento.

Por outro lado, parece que o objetivo de Lobato é também reabilitar a imagem de

Hércules por meio das crianças, minimizando o episódio em que num acesso de loucura

matou os próprios filhos.

Hércules não largava dos meninos e babava-se de gosto ao vê-los brincar. Na sua vida de herói, sempre em luta com toda sorte de monstros e guerreiros, nunca tivera tempo de prestar atenção nesses bichinhos interessantes chamados “crianças”. E das crianças o que mais interessava era o “tal de brinquedo”. Parece que a única preocupação do bicho criança é brincar e brincar e brincar. E no brinquedo usam muito aquela maravilha do faz-de-conta. A gente grande não sabe o que isso, por isso a gente grande é tão infeliz. Hércules começou a compreender que a maior maravilha do mundo é realmente o faz-de-conta – isto é, a Imaginação. (2004, vol. 01, p. 67)

O quarto trabalho de Hércules ocorre na região da Arcádia e a ordem é capturar o

monstruoso javali que habitava o Monte Erimanto. No texto-base, As metamorfoses, o autor

se pronuncia da seguinte maneira a respeito deste Trabalho “não foi contra mim que se

mostraram incapazes de resistir os centauros e o javali que devastava a Arcádia?” (1983, p.

169). O herói faz um apelo à deusa Hera, pois estava sendo consumindo por dores

lancinantes, ao usar a túnica enviada por Dejanira.

74

Já na variante intertextual é por intermédio de um mensageiro que chega a ordem para

a realização deste Trabalho:

Sua Majestade o Rei Euristeu, de Micenas e Tirinto, ordena ao seu súdito Héracles que siga imediatamente para Erimanto, na Psófida, a fim de descobrir o monstruoso javali que anda a assolar aquelas paragens. E como assim quer, assim manda. EUMOLPO, Primeiro Ministro de Sua Majestade Altíssima. (2004, vol.1, p. 69).

Hércules recebe o pergaminho, mas como era analfabeto, pede a Pedrinho que faça

leitura, relevando-se, portanto, a cultura desde cedo, pois conforme já citado anteriormente

Lobato trabalha em prol da valorização da cultura letrada.

O narrador explica que a Arcádia era “a região mais atrasada de toda Grécia, por ser

muito montanhosa e por isso pouco povoada”. Ali viviam apenas alguns pastores. “E com o

passar do tempo a Arcádia ficou para o resto da Grécia como o símbolo do bucolismo, da vida

simples e rústica” (2004, vol. 1, p. 70).

Visconde, influenciado pelos os ares pastoris, discorre sobre a idealização da mulher,

dizendo que “poetas são mágicos: tomam as sujas pastoras da realidade e as transformam em

mimos de criatura, com açafates de flores ao braço, pezinhos bem calçados, saia rodada e o

clássico chapéu de palha preso ao queixo por uma barbela de fita” (2004, vol.1, p. 70); mas o

sábio fala também das pastoras reais que são rudes, grosseiras por falta de educação e que

trabalham duramente. Imagem bem distante daquela idealizada pelos poetas.

A região da Arcádia será valorizada pelos poetas do século XVII e XVII, que

“decidiram imitar os gregos da Antigüidade e criaram associações denominadas Academias

ou Arcádias. A primeira foi a Arcádia Romana fundada na Itália em 1690. [...]. A fundação da

Arcádia Lusitana, em 1756, marcou o início do Arcadismo em Portugal. No Brasil, o

Arcadismo iniciou-se com a publicação das Obras, de Cláudio Manoel da Costa, em 1768”

(PEREIRA, 2000, p.128-129). Os poetas árcades valorizavam o modo de vida simples, o

ambiente bucólico e encontravam na natureza a inspiração para seus poemas. Além disso,

propunha a simplicidade das formas e dos temas.

75

Analisar-se-á, em seguida, o quarto trabalho de Hércules que se realiza na região da

Arcádia,

Nessa parte da Grécia ficava o Monte Erimanto, que vinha sendo assolado por um gigantesco javali. Cada vez que o monstro descia para os vales era para fazer estragos horrorosos. Daí o pavor dos seus moradores e o pedido de socorro que endereçaram ao Rei Euristeu: “majestade, haja por bem dar jeito nesta fera, pois do contrário estamos perdidos.” E com esperança de que Hércules perdesse a luta, Euristeu mandou-o combater o feroz javali”. (2004, vol. 01, p. 70).

As personagens do Sítio, novamente, auxiliam o herói na captura ao javali, graças à

armadilha montada por Pedrinho e também dão suporte para que o animal chegue vivo ao

reino de Euristeu. Emília utiliza o recurso do faz-de-conta para resolver o problema mais

importante: o de concretizar a caçada ao monstro que vivia no Monte Erimanto, na região da

Arcádia.

Hércules e o Javali de Erimanto

Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Enquanto tentava capturar o terrível javali que assolava a região de Erimanto,

Hércules ficou hospedado na morada do centauro Folo, que certo dia resolve abrir um tonel de

vinho. Os outros centauros sentiram-lhe o cheiro e também queriam prová-lo. Enfurecidos,

deram início a uma grande luta. Hércules mata muitos centauros, inclusive Folo,

acidentalmente. Hércules é censurado por Emília que faz referência a um dos dez

mandamentos: “Não matarás”. (Êxodo 20,13), lembrando que não se trata apenas de

76

religiosidade, porém de valorização da vida não importando a espécie e de valores morais

dignos, que são muito apreciados pelos habitantes do sítio, estas são as razões porque a ex-

boneca admoesta Hércules.

O herói toma consciência de seu ato tão vil e, envergonhado de seu feito, promete não

mais realizar uma maldade daquele tamanho. Emília, depois da morte dos centauros, resolve

humanizar as flechas do herói, isto é, tirar todas as pontas envenenadas, para que ninguém

mais fosse ferido mortalmente.

No texto-base Héracles, Eurípides somente relata como o herói dizima os centauros:

“A raça montesa de ferozes centauros outrora abateu com cruento arco, matando-os com

aladas flechas” (2003, p. 89). Sem fazer alusão ao conflito surgido por causa da bebida, como

ocorre na variante.

Na obra de Lobato tem-se a narrativa do nascimento dos centauros sendo feita de

forma bem humorada pelo Visconde que conta aos picapauenses que Ixíon ficara exilado no

Olimpo por ter matado seu sogro, mas como era do chifre furado enamorou-se de Hera. Zeus

para fazendo uma brincadeira mandou que uma nuvem tomasse a forma da deusa e

correspondesse ao namoro. Dessa união nasceram os centauros. Nascendo daí a expressão

“Ele tomou a nuvem por Juno”(2004, vol. 01, p. 71).

Retomando-se o momento do abate do javali de Erimanto na cidade de Micenas,

Hércules observa que suas flechas não conseguem matar o animal, uma vez que não tinham

mais pontas. Emília atua, então, como adjuvante; utilizando-se do recurso do faz-de-conta,

consegue com que as flechas possam ser utilizadas para o fim a que se destinam. A caça é

satisfatória. O javali é abatido. “Súbito, um boato entrou a circular: que Hércules andava

associado a uma pequenina feiticeira dotada de forças maravilhosas”. “[...] Aqueles rumores

não tardaram a chegar aos ouvidos do rei, o qual, furioso deu ordem aos guardas para que

77

prendessem Emília”. (2004, vol.01, p. 90). Mas o pessoal do Sítio conseguiu fugir para o

Templo de Avia, montado no Meioameio.

Segundo Diel: “O simbolismo do javali está diretamente relacionado com a tradição

hiperbórea, com aquele nostálgico paraíso perdido, onde se localizaria a Ilha dos Bem-

Aventurados. [...] o javali configuraria o poder espiritual [...]” (1998, p.100).

O quinto trabalho realizado por Hércules sob o comando de Euristeu é o de limpar as

cavalariças de Augias. Segundo Pierre Grimal:

Augias era um rei de Élide, no Peloponeso. [...] Tinha a seu cuidado numerosos rebanhos de seu pai - o Sol. Porém, desleixava-se com o estrume que se acumulava nos estábulos, privando assim a terra de adubo e votando o país a esterilidade. Por ordem de Euristeu, que pretendia humilhar o herói impondo-lhe um trabalho servil, Héracles teve de se ocupar destes estábulos. Mas antes de o fazer, acordou um salário com Augias. [...] o rei comprometia-se, caso ele conseguisse limpá-los num dia, ele ter-lhe-á prometido, [...] a décima parte dos seus rebanhos. Héracles ganhou a aposta desviando para o pátio do estábulo a corrente de dois rios, o Alfeu e o Peneu. Mas Augias recusou o salário estipulado. Foi mesmo ao ponto de banir Héracles de seu reino. (1997, p. 210).

Tanto no mito quanto na variante o trabalho é o mesmo: limpeza das cavalariças, mas

ver-se-á mais adiante que alguns aspectos diferem.

Hércules e as cavalariças de Augias Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

78

Na obra de Lobato, os pequenos heróis, fazem uma reunião para deliberar a melhor

maneira de realizar esta tarefa. Sua principal preocupação é em relação à quantidade de

esterco acumulada e o cheiro que emana das cavalariças, mas a questão é prontamente

resolvida por Visconde e Pedrinho:

Ele (Visconde) havia apenas resolvido um problema – o terrível problema que o preocupava desde a véspera: Por que razão havia Euristeu dado aquele trabalho a Hércules? Sim, porque isso de limpar uma cavalariça, mesmo enorme como a de Augias, não era um trabalho na altura de Hércules, já que só exigia força física e paciência.

Sim o cheiro!... Sim, o mau cheiro daquilo!... Deve ser um cheiro venenoso e mortal, uma espécie de gás asfixiante!... Euristeu lembrou de encarregar meu amo desse Trabalho não porque seja um Trabalho acima das forças de qualquer homem comum, mas porque as venenosas emanações do esterco revolvido vão destruir o meu amo... (2004, vol. 01, p. 91)

O sabuguinho expôs sua teoria dos gases venenosos, que fatalmente escapariam dos

estábulos quando tamanha massa de esterco fosse removida - e Hércules arregalou os olhos.

Achou muito propósito naquilo.

Novamente, o texto lobatiano remete ao texto de Cervantes, estabelecendo-se um

cotejo entre Visconde e Sancho em sua condição de escudeiros de seus amos, alertando-os

com um olhar mais atento a respeito dos riscos de suas empreitadas: “O Visconde, como bom

escudeiro, só tratava Hércules de “amo”, tal qual Sancho com D. Quixote.” (2004,vol. 01, p.

91).

E identicamente a Visconde, age o menino, Pedrinho que, procura resolver, por meio

de seus conhecimentos acumulados, os problemas enfrentados por Hércules. Observe-se:

[...] Pedrinho também estava com medo das emanações mefíticas do esterco e andava a pensar num modo de remover de longe aquele guano. Assim se evitaria a aspiração dos gases (2004, vol. 01, p. 94).

A solução para o problema vem de Pedrinho: “Desviar o curso desse rio, de modo que

ele jorre para dentro dos estábulos, e leve para longe a estercaria toda...” (2004, vol.01, p. 95).

79

O rei Augias, assim como no mito, compromete-se a pagar em espécie pelo trabalho

de Hércules, mas não honra seu compromisso, deixando o herói muito bravo.

Hercules, novamente, conta com a ajuda de seus amigos do Sítio. O Visconde utiliza

seus conhecimentos de engenharia e faz a medição do terreno e por meio de cálculos

geométricos e trigonométricos, chega à conclusão que os estábulos ficam três metros abaixo

do nível dos rios, mas para que a limpeza seja completa nos estábulos, é necessário, segundo

seus cálculos, que Hércules junte a água dos dois rios.

No mito, Hércules realiza seu trabalho sem ajuda, pois o herói mítico utiliza sua

inteligência e desvia os rios realizando a limpeza. Na contraposição dos dois textos, observa-

se que no texto primário, Hércules reúne diversas qualidades inerentes a um herói: força,

coragem e inteligência. Enquanto que na variante intertextual, Lobato representa Hércules

com quase os mesmos aspectos, excetuando-se pela astúcia que encontra nos personagens do

sítio, seus mentores.

Observa-se, ainda, que na variante, as terras do rei eram férteis, diferente do mito em

que as terras eram estéreis, por isso não há razão para guardar tanto esterco.

Hércules segue as idéias de seu ajudante de ordem e realiza mais esta façanha. Nesse

episódio, as questões matemáticas, os cálculos geométricos e trigonométricos servem para

aguçar a imaginação infantil e desvendar-lhes sua importância para as soluções de difíceis

problemas.

Por outro lado, Hércules adoece por ter inalado os gases tóxicos. Visconde trata o

herói com medicamentos naturais. “[...] Os sintomas são de envenenamento. Meu amo

envenenou-se com os gases mefíticos das cavalariças de Augias. Até eu senti dor de cabeça

naquele dia” (2004, vol. 01, p. 98). Após alguns dias o herói se restabelece.

O que o sábio mais temia aconteceu justamente com ele, pois é acometido de loucura,

após cheirar, sem querer, o gás venenoso das cavalariças de Augias.

80

Não havia dúvida: o pobre Visconde de Sabugosa enlouquecera! Já algum tempo vinha mostrando certos sinais de perturbação dos miolos, mas com intervalos de perfeita lucidez. Agora, porém, a incoerência de suas idéias já não deixava nenhuma dúvida. Louco... Louquíssimo. (2003, p. 100).

Este episódio da loucura do Visconde faz lembrar que Hércules também enlouquece

assim como D. Quixote. Lobato está elevando Visconde a categoria de herói também, apesar

de louco.

Emília, não tem piedade, fica furiosa. Pedrinho e Hércules comovem-se até as

lágrimas, mostrando que mesmo os heróis podem chorar, e que não é feio, como as

convenções sociais determinam. Ao mostrar a loucura do Visconde Lobato ironiza os sábios.

Para a ex-boneca Visconde ficou louco intencionalmente, somente para equiparar-se aos

grandes heróis, mostrando ainda seu lado egoísta e infantil.

Hércules fica muito comovido com a loucura de seu escudeiro e procura ajuda de

Esculápio, mestre na arte de curar, mas ele havia sido transformado em constelação por Zeus,

por ter aperfeiçoado a arte de salvar vidas. No texto-base, Héracles, é curado por Palas: “Palas

brandindo a hasta e pedra atirou ao peito de Héracles, que do insano cruor o conteve e ao sono

lançou-o”. (2003, p. 129), observa-se que os textos diferem quanto a maneira como o herói foi

salvo da loucura, na variante sua cura veio através da feiticeira Medéia e no texto-base pela

deusa.

O recurso do faz-de-conta de Emília chegou aos ouvidos da feiticeira Medéia, que

pede, então, a Hércules que lhe dê a boneca como forma de pagamento pela cura do Visconde.

O herói não aceita a proposta e nem fala para Emília, pois com certeza, ela “havia de querer

ficar no palácio da grande feiticeira para picar gente e ferver no caldeirão mágico. Só

divertimentos assim encantavam realmente a diabinha” (2004, vol.1, p.104). Neste trecho da

narrativa observa-se que o escritor de Taubaté está tão a vontade em trabalhar com o mito e o

maravilhoso, que até coloca a personagem mítica que tem muitos poderes cobiçando os de

Emília.

81

No texto de Eurípides, Hércules é curado da loucura por Palas: “Palas brandindo a

hasta e pedra atirou ao peito de Héracles, que do insano cruor o conteve e ao sono lançou -o.

(2003, p. 129).

Segundo Brandão, Euristeu incumbiu Hércules de limpar as cavalariças como forma

de humilhação. Já para Diel:

[...] os estábulos do rei Augias configuram o inconsciente. A estrumeira representa a deformação banal. O herói faz passar as águas do Alfeu e Peneu através dos estábulos imundos, o que simboliza a purificação. Sendo o rio a imagem da vida que se escoa, seus acidentes sinuosos refletem os acontecimentos da vida “corrente”[..]. irrigar o estábulo com as águas de um rio significa purificar a alma, o inconsciente da estagnação banal, graças a uma atividade vivificante e sensata. (1998, p. 103).

Por outro lado, a realização da quinta tarefa de Hércules abre espaço para que o leitor

de Lobato conheça um pouco mais sobre os deuses gregos e seus sentimentos de ódio, raiva,

compaixão, afeição, amor.

A participação de Pedrinho, Emília e Visconde como adjuvantes de Hércules chega ao

Olimpo. Os deuses reagem de forma diversa. Os heróis contam, por um lado, com a proteção

de Palas, por outro, com a perseguição de Hera, que está muito incomodada com a ajuda

recebida pelo herói:

[...] Hera já sabe de tudo e está danada com o auxílio que vocês vêm dando a Hércules. A verdadeira razão do herói já ter realizado cinco trabalhos sem que nada de mal lhe acontecesse, está unicamente numa coisa: na ajuda que vocês lhe têm dado. O caso do Javali de Erimanto, por exemplo, deixou Hera impressionadíssima; e com meus próprios ouvidos pilhei-a dizendo a Hermes: “É aquela feiticeirinha que me está estragando o jogo”. Possui um talismã mágico, o tal “faz-de-conta, com o qual já salvou Hércules de várias situações perigosíssimas.” Disse e encarregou Hermes de roubar da Emília esse talismã (2004, vol. 01, p. 107).

Hermes, também conhecido por Mercúrio, “era o deus do comércio, da luta e de outros

exercícios ginásticos e até mesmo da ladroeira; em suma, de tudo quanto requeresse destreza e

habilidade” (BULFINCH, 1965, p.12). Porém, o que Hera não sabia era que o talismã não

poderia ser roubado, pois o poder do faz-de-conta dependia da vontade de Emília.

82

Em seu sexto trabalho Hércules deve caçar as aves do Lago Estinfale. Segundo

Minervino, as aves

possuem penas de bronze, penas enormes, pesadíssimas e cortantes como facas. Essas aves só se alimentam de carne humana, dos passantes que transitam por perto do lago. De grande distância arremessam tais penas com pontaria segura – e ai do viandante por elas alcançado!... Na minha opinião, este Trabalho é muitíssimo mais difícil e perigoso que os outros (2004, vol 01, p. 108).

Para Minervino, o mensageiro de Palas, esta é a façanha mais complicada que o herói

deverá superar, pois os inimigos são muitos. Ele pede ao herói que não se aproxime do lago, e

diz-lhe que vai consultar Palas e pedir a sua ajuda.

Enquanto aguarda o retorno de Minervino, Hércules dialoga com o pessoal do Sítio.

- E então, Hércules? Que resolveu? – perguntou o menino. O herói emitiu um suspiro. - Nada ainda. Verifiquei um ponto bem aborrecido: minhas setas não varam as penas de bronze dos tais avejões. Batem nelas, arrancam um som de sino e ricocheteiam. E como também nada posso fazer com a clava, não sei... - Bem disse o mensageiro que era um Trabalho muito difícil! – lembrou Emília. – Agora o que Lelé tem a fazer é esperar pela volta de Minervino (2004, vol. 01, p. 111).

Minervino e Palas conversam e ela encontra a solução:

[...] sem a minha ajuda Hércules nada conseguirá. Aquelas aves de bronze são um estratagema de Hera, que as pôs naquele pântano justamente como armadilha para Hércules. Mas ando cá com uma idéia. Sou dona daqueles címbalos com que Hefaístos me presenteou. O som do bronze desses címbalos é tão terrível que não há ouvidos que o suportem. Vou mandar meus címbalos para Hércules. Ele que se aproxime do lago e vibre-os com toda a força. As aves, atordoadas, fugirão para longe, porque nem sequer as aves de penas de bronze suportam a vibração dos címbalos de Hefaístos (2004, vol. 01, p. 113).

Assim, a ajuda providencial de Palas vem em forma de címbalos fabricados por

Hefaístos, deus dos metais, que a deusa envia ao herói por intermédio de Minervino. Hércules

vai, então, ao lago e toca os címbalos, que afugentam as aves para longe. Enquanto isso as

personagens do Sítio colocam musgo no ouvido para não ficarem surdas.

Afugentar as aves do lago, cujas águas estavam paradas, pode ser entendido como uma

renovação, pois, segundo a variante intertextual, a vida voltou àquele lugar e as pessoas da

cidade recuperaram a tranqüilidade. Para o herói que procurava a expiação de sua culpa, esta

tarefa propiciou-lhe um crescimento interior.

83

Hércules e as aves do Lago Estinfalo Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

No texto-base As metamorfoses, tem-se apenas uma referência sobre este trabalho [...]

as águas do Estínfalo [...] (1983, p. 169) quando o herói está em agonia, a beira da morte, faz

um lamento para Hera rememorando todos os trabalhos realizados.

Segundo Brandão:

Com suas flechas certeiras, símbolo da espiritualização, Héracles liquidou as Aves do Lago de Estínfalo, cujo vôo obscurecia o sol. [...] o lago reflete a estagnação. As aves que dele levantam vôo simbolizam o impulso de desejos múltiplos e perversos. Saídos do inconsciente, onde se haviam estagnado, põem-se a esvoaçar e sua afetividade perversa acaba por ofuscar o espírito. A vitória do filho de Alcmena é mais um triunfo sobre as “trevas” (1998, vol. 03, p. 102).

Um acréscimo significativo que aparece em Os doze trabalhos é Climene uma garota

grega que mora na região da Neméia, por quem o Visconde se apaixona. Quem faz a grande

descoberta é Emília:

-Está me parecendo uma coisa: o Visconde está amando!... -Que? - Amando, sim. Cada vez que aparece por aqui aquela graciosa pastorinha de nome Climene, ele fica todo atrapalhado, como quem sente uma coisa que não sabe o que é. Para mim trata-se de amor... - Impossível Emília! Nunca houve milho que amasse... - Também nunca milho que falasse e soubesse ciência, e o Visconde fala e sabe ciência. Ele “mudou”, exatamente como eu mudei. Mudou por efeito da fervura da Medéia (2004, vol. 01, p. 112).

84

Neste diálogo entre Pedrinho e Emília, o leitor tem uma idéia da metamorfose que

sofreram Emilia e Visconde. Ela através do conhecimento e ele da magia de Medéia.

Observa-se que o narrador enfatiza a humanização destas personagens que foram criadas por

tia Nastácia e Pedrinho. Emilia através do conhecimento adquirido pelas leituras de D. Benta,

sua natural curiosidade em sempre perguntar e Visconde que ferveu no caldeirão de Medéia a

ponto de ficar nas nuvens, sentir emoções próprias das pessoas, como sua paixão em relação

à pastora grega - Climene.

Entre um trabalho e outro, Visconde fala da infância e da adolescência de Hércules e

conta outras façanhas por ele realizadas, aumentando o conhecimento dos jovens leitores

sobre o mundo grego, levando-os a almejar continuamente adquirir mais conhecimento sobre

esta cultura tão rica.

Em outros momentos, Visconde assume a voz narrativa para falar do mundo moderno

e das invenções humanas, como a pólvora, querosene, bala de arma de fogo, lata, fósforo,

cigarro, canhões, aviões de bombardeios e etc. Muitas invenções são usadas para a destruição

do próprio homem. Lobato que já passara por duas guerras mundiais, inclusive quando da

publicação deste livro, sabia o horror que era uma guerra, em que as pessoas eram destruídas

por conta do egoísmo de uns poucos governantes. O pequeno herói fala de seu desejo de

viver na Grécia dos Heróis. Observa-se que Lobato trabalha com o presente e o passado

mostrando tanto as criações que ajudam a humanidade, quanto aquelas que a prejudicam.

Pedrinho explica ao herói a maneira como a humanidade quase se destruirá em

diversas batalhas no século XX, as armas que serão utilizadas, as mais diversas táticas para a

destruição. Aproveita o momento para discorrer também sobre as frutas que existem no Sítio

de D. Benta. Na entrelinhas do discurso apreende-se o discurso de cunho nacionalista do

autor, que tinha como meta principal a identidade nacional, especialmente das crianças, que

segundo sua crença eram o futuro do Brasil.

85

Em Os doze trabalhos o encontro entre Hércules e Atlas ocorre após o sexto trabalho.

Assim como no texto-base, Hércules sustenta o céu nos ombros enquanto o gigante Atlas pega

os pomos. Na variante intertextual, quando Atlas se recusa a sustentar o céu novamente,

Emília engana-o dizendo que Hércules só desejava descansar um pouco. A ex-boneca ainda

ironiza, afirmando que o gigante fora um tolo em acreditar que o herói ficaria apenas

descansando por um minuto. O pomo que Atlas entrega ao herói não é aquele dos trabalhos,

pois estes serão colhidos posteriormente. Emília com sua esperteza, discretamente apanha o

pomo que cai das mãos do gigante e guarda-o em sua canastrinha.

Pedrinho como toda criança que gosta de aventuras fica maravilhado com a aventura

do gigante Atlas, externando seus pensamentos observa:

- Acontecem por aqui coisas que lá no nosso mundo ninguém acredita – nem pode acreditar. A aventura do gigante Atlas, por exemplo. Quem lá em nosso mundo vai acreditar numa coisa assim? Começa que lá Atlas não é gigante nenhum, e sim um livrão com uma série de mapas – Europa, Ásia, África, América e Oceania...(2003, vol 01, p. 127).

Neste trecho toma-se contato com uma nova informação através de Pedrinho que

além de se mostrar deslumbrado com a mitologia grega ainda mostra que as palavras com a

passar dos tempos sofrem mudanças em sua etimologia como é o caso da palavra atlas que

naquele momento era o nome do gigante que segurava os céus e que nos tempos modernos

simboliza coleção de mapas do mundo.

O sétimo trabalho do herói é capturar vivo o touro de Creta, um animal furioso que

está solto pelas ruas de Creta. Hércules deverá levar o touro vivo até Micenas, para o rei

Euristeu, como sempre. A partir deste, todos os trabalhos do herói serão fora da Hélade.

86

Hércules e o touro de Creta

Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Sobre a ilha de Creta quem nos dá informações importantes é Emília ao relembrar a

viagem que fizeram para lá: - Creta? A ilha do Minotauro? Que amor!... Eu já estava com

saudades dessa ilha onde passamos dias tão interessantes – e contou a Hércules toda a história

de tia Nastácia quando esteve detida no labirinto do Minotauro.(2004, vol 01, p. 128-129).

Neste trecho tem-se uma referência a outra aventura vivida pelos heróis do Sítio quando

visitam a ilha de Creta pela primeira vez e deparam com o Minotauro que havia apreciado

sobremaneira os dotes culinários de tia Nastácia, especialmente seus famosos bolinhos.

Hércules tem maiores informações referentes ao seu trabalho, quando tem mais uma

conferência com seu primo Euristeu: - Quero que vá à Ilha de Creta e me traga vivo o Touro

Louco. Só.(2003, vol. 01, p. 128). Logo após o autor nós dá uma pista da origem do touro: “O

caso do touro de Creta foi conseqüência da briga entre um deus e um rei [...] (2003, vol. 02, p.

07).

87

No texto de Ovídio, tem-se apenas uma referência a este Trabalho, quando o herói

reclama por estar sofrendo dores lancinantes, por conta da túnica envenenada : Não fostes

vós, ó minhas mãos, que apertastes o pescoço do robusto touro? ( 1983, p. 169).

Neste Trabalho, Visconde que continua apaixonado pela jovem Climene, escreve-lhe

uma pequena carta, mas como é um sábio e não tem muito que dizer, aproveita para

acrescentar mais informações aos seus leitores utilizando mais uma vez a função

metalingüística, que neste exemplo aparece sob forma de informações de verbetes de

dicionário:

Hidrófobo quer dizer louco, isto é, louco propriamente dito não, porque “hidro” você bem sabe que é “água” no lindo idioma grego; e “phobos” é também outra linda palavra grega com significação de “horror”. Hidrófobo: que tem horror à água. Mas lá no nosso mundo o povo ignorante chama “louco” ao que é “hidrófobo” (2004, vol. 02, p. 08).

Observa-se que Lobato neste momento aproveita para retomar o conceito de que a

língua não é morta, mas que está sempre mudando e de que as palavras com o passar dos

tempos vão adquirindo novos sentidos.

Outro exemplo de metalinguagem é a palavra metamorfose que surge quando

Minervino conta o mito de Europa e Zeus, que metamorfoseado em touro rapta a bela Europa

e a leva para ilha de Creta, dessa união nasce Minos. Para que Hércules entenda melhor a

significado da palavra Emília explica: que “metamorfosear” é o mesmo que “virar” e citou um

caso: Eu, por exemplo, me metamorfoseei, de boneca de pano que era na gentinha que

sou.”(2003, p.14), a humanização de Emília é reiterada novamente, pelo escritor.

Neste episódio Visconde inventa um novo emprego para o pó mágico de

pirlimpimpim: enviar cartas. Emilia fica muito emocionada com a idéia de Visconde e tenta

explicar para Hércules:

O pirlimpimpim age pelo nariz. A gente aspira o pó e pronto. O Visconde teve a idéia de esfregar uma isca de pirlimpimpim no nariz da carta. Se produzir efeito, se a carta fizer fiun e sumir no espaço e chegar direitinho ao endereço, então, então, então... - e Emília não pode concluir, de tão comovida que estava.

88

Então que? – indagou Hércules, com toda a sua burrice de herói nacional. Emília encarou-o com ar de dó. -Que crasso você é, Lelé... Pois não percebe que se isso acontecer estará descoberto um meio maravilhoso para o transporte das coisas? Se a carta for direitinha e chegar às mãos de Climene, e se a resposta de Climene também nos vier direitinha... - e Emília nem pode concluir. Pôs- se a chorar. Choro de emoção. Choro de Madame Curie quando viu brilhar no escuro a primeira partícula de radium(2003, vol 02, p. 10)

Neste trecho Lobato mostra um novo emprego para o pó de pirlimpimpim o

transporte de objetos, Emília ficou interessada, uma vez que poderia enviar toda a sua coleção

para o Sítio, pois sua preocupação maior é a preservação de seu tesouro. A carta é enviada

para a pequena grega e após muita ansiedade recebem a resposta. Este fato é muito

importante, porque mostra que Lobato era um visionário, que já estava antecipando as

descobertas tecnológicas que surgiriam nos próximos séculos.

Tem-se ainda uma alusão, pois Lobato compara o choro de Emília ao de Madame

Curie, física francesa que junto com seu marido Pierre Curie conseguiu isolar o polônio e o

radio, contribuindo muito para o estudo da radioatividade. Segundo Lobato, Madame Curie

ficou tão contente que chorou com sua descoberta, o mesmo ocorre com Emília ao descobrir

um novo emprego para o pó mágico. Com esta alusão o escritor atualiza seus leitores com

mais uma informação importante no campo científico, pois a física francesa havia feito esta

descoberta alguns anos antes da escritura desta obra.

Nesta primeira aventura para fora da Grécia, todos viajam para Creta “à pó”, invenção

de Lobato trabalhando com a analogia da expressão “à pé”. Mas o herói fica muito tempo

desmaiado, razão pelo qual Palas manda Minervino para acordá-lo com um filtro divino e

proíbe o herói usá-lo novamente.

Pedrinho ensina todos a trançar um laço, ou uma corda de couro, para a captura do

touro. O menino amola a perna de tesoura que Emília empresta para servir de faca. O herói

fica olhando a desenvoltura do pequeno herói cheio de satisfação. O herói tem um carinho

89

especial por seu oficial de gabinete: “Eu queria ter um filho como você, Pedrinho! - e beijou-

o”(2003, vol. 02, p. 16). Lobato apresenta um herói paternal, que sente saudades dos filhos.

Chega à hora da luta com o touro furioso, mas Hércules tentas usar o laço conforme

fora instruído pelo menino, mas erra a pontaria e não consegue capturar o touro. Pedrinho

então salva a situação laçando o animal. Esta etapa do trabalho é realizada por Pedrinho, que

tem mais experiência agropecuária que Hércules, pois naquele tempo herói não laçava

animais, mas abatia-os.

A deusa vingativa arquiteta mais uma maldade, durante a noite um ratinho é enviado

para roer a corda de couro e o touro escapa, deixando os heróis furiosos. Pedrinho devido a

sua experiência de mateiro, segue o seu rastro. Eles acabam indo parar na porta do labirinto

de Creta. Lá encontram Teseu que lá estava para dizimar o Minotauro. O herói é ajudado por

Emília que lhe oferece um carretel de linha para entrar e sair do labirinto sem perder-se.

Lobato coloca as personagens do Sítio auxiliando outro herói.

No texto-base Teseu ajuda Hércules após o herói ter assassinado toda sua família. Não

permitindo que o filho de Zeus tire sua vida. Eles se encontram em Tebas, local da tragédia.

Eles entram no labirinto atrás do touro, seguindo as instruções de Emília que desenrola

a linha para que consigam retornar a saída, a ex-boneca pode ser considerada aquela de

desmancha os nós dos problemas. Sendo “muito previdente” (2004, vol. 02, p.: 19). Lobato

faz uma alusão a Prometeu, titã que desafiou os deuses roubando o fogo para ajudar os

homens, que era chamado de previdente.

Novamente, Hércules fica maravilhado diante da solução encontrada por Pedrinho,

quando acaba a linha do carretel: o menino acende uma fogueira e utiliza o carvão para fazer

uma marca na parede por onde eles caminham. A cada aventura o herói se convence cada vez

mais de que a educação é tudo, pois é o ponto de partida para a ampliação do conhecimento

conforme já citado anteriormente.

90

Lá dentro encontram Dédalo, seu construtor, que lá vivia preso devido a um atrito que

tivera com o rei Minos. Ele fica preso em sua própria armadilha.

Lobato através do Visconde faz uma alusão:

[...] o caso do Doutor Guillotin, aquele francês que inventou a guilhotina e acabou guilhotinado; e também veio o célebre caso do touro de bronze de Perilo. Esse Perilo meteu-se um dia a mau, e concebeu a idéia de um novo suplício: um touro de bronze oco. Punha-se lá dentro a vítima e acendia-se um grande fogo embaixo. Ao ser queimado vivo, o supliciado rompia em urros – e a assistência tinha a impressão de que era o touro que estava urrando (2004, vol. 02, p. 19-20).

Neste trecho da narrativa tem-se exemplos de alguns casos em que as pessoas

utilizando o poder que lhes foi conferido, abusavam dos mais fracos. O escritor mostra que as

pessoas não devem fazer com outras, o que não gostariam que fosse feito com elas, pois todos

os aludidos fizeram algo para prejudicar outras pessoas e eles acabaram sofrendo o mesmo

castigo. Lobato mostra ocorrências tanto da mitologia quanto da história, pois esta prática é

bem antiga e que perdura até os tempos modernos.

Hércules com todo ser humano, passível de emoções fica enciumado porque Emília

acha Teseu mais bonito que ele, mas acaba reconhecendo que os deuses o fizeram

“musculoso” “excessivo”, “invencível”, mas que a beleza pertencia mesmo a Teseu. No texto-

base não é feita nenhuma referência a respeito da aparência física dos heróis.

Pedrinho continua rastreando o touro, para tal utiliza sua experiência, mas descobrem

que ele não entrara no labirinto. Acham o seu rastro fora do labirinto e Pedrinho é quem

comanda o herói, dando-lhe as coordenadas para a captura do touro, que finalmente se realiza.

É com alegria que o herói elogia seu ajudante de ordens, ocorre neste trabalho uma inversão

de valores, pois é a criança quem orienta o adulto.

Para que Hera não use novamente suas artimanhas, no caso os roedores, Visconde tem

a idéia de esfregar suco de erva-de-rato no laço do touro.

Lobato novamente trabalha com a metalinguagem, quando o sabuguinho científico

explica:

91

- As chamadas ervas-de-rato são muitas, todas da família Palicurea. Há a Palicurea strepens, de flores amarelas em cacho; há Palicurea Noxia, que é rubiácea. Há a Palicurea nitotianoefolia, outra rubiácea classificada por Martius. E há a Palicurea rígida, também chamada “Douradinha- do- campo...”. Emília quase deu nele. - Estupor!... Em vez de tanta exibição de ciência, melhor que vá correndo ao bosque ver se encontra qualquer dessas Palicureas. O Visconde foi e encontrou um pezinho de Palicurea Officinalis, tão boa como qualquer outra para envenenar os ratinhos de Juno. Amassou aquela folhas entre duas pedras chatas, fez um mingau deu-o a Pedrinho(2004, vol. 02, p. 24-25).

Para conseguir matar o ratinho enviado por Hera os adjuvantes de Hércules utilizam-se

de um recurso natural: um veneno chamado erva- de- rato. Mais uma vez o trabalho é

realizado, pois o ratinho morre ao roer o laço.

O herói grego nada os cem quilômetros que separa a ilha da praia, com o animal a

tiracolo e consegue leva-lo até Micenas, uma vez que ele não podia usar o pó mágico, por

recomendações expressas de Palas Atena.

A viagem com o touro é semelhante ao mito, pois nele o herói também atravessa o mar

nadando e segurando o touro pelo chifre. A chegada do herói deixou o rei extremamente

furioso, a ponto de soltar o touro para espalhar o terror pela cidade, mais uma vez Lobato

salienta o abuso de poder por parte das pessoas poderosas.

O herói em seu oitavo trabalho deverá domar os cavalos antropófagos de Diomedes, os

heróis partem para a Trácia, que é o país em que reside o tirano:

Sim, era para a Trácia que se iam encaminhando Hércules e seu bando, acompanhados do precioso Minervino. E Hércules ia para a Trácia porque era lá que ficava o Reno dos bistônios, então governado pôr um rei de nome Diomedes, dono de tais cavalos que comiam gente.[...] (2004, vol. 02, p. 29).

Mas na realidade descobriram que eram éguas e que os animais tornaram-se

carnívoros, graças ao seu dono que as acostumou a comer carne humana dos estrangeiros que

naufragavam nas costas do país, conforme explica Minervino:

92

- Eles não haviam nascidos antropófagos. Mas como Diomedes, em vez de capim ou aveia, só lhes dava carne humana, foram mudando de gênio, tornando-se ferozes e por fim viraram uns horríveis monstros. Diomedes os alimenta com os náufragos que dão à praia – os náufragos estrangeiros; aos nacionais ele perdoa. (2004, vol. 02, p. 29).

Ao saber que o rei toma essa atitude, Emília indigna-se com tirania dos reis, que

subjugam seus súditos sem piedade, comparando-os aos deuses do Olimpo que eram

vingativos, sempre maltratando os homens.

Tem-se novamente a metalinguagem, pois Minervino aproveita para explicar o que era

a antropofagia, isto é, o ato de comer carne humana, como o cavalo é o símbolo da

impetuosidade, os cavalos comedores gente representam a perversidade que devora o homem,

a banalização, causa da morte da alma (1991, p. 198).

Hércules e os cavalos de Diomedes Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

No texto-base Eurípedes relata que Herácles para realizar este trabalho, enfrentou os

animais antropófagos com sua força e coragem:

Subiu em quadriga E com freios domou as éguas de Diomedes, que em cruentas estrebarias infrentes trituravam com a mandíbulas sangrento alimento rudes convivas em prazeres antropófagos! Para além do argênteo fluxo das altas orlas do hebro atravessou em trabalhos para o micênico tirano. (2003, p. 89-90)

93

O herói pacificou os animais dando-lhes a carne de Diomedes como alimento. Na

variante intertextual o rei também é o banquete. Mas ocorre uma diferença, pois após a

refeição as éguas foram levadas para Euristeu que as mandou soltar. Zeus revoltado com o

procedimento daquele rei enviou lobos olímpicos para devorar os animais, senão eles

matariam todos que encontrassem pela frente.

Neste trabalho tem-se mais um acréscimo significativo: Hera quer que Zeus destrua

Emília, pois aquele pelotinho de gente estava estragando todos os seus planos para a

destruição de Hércules, mas Palas conversa com Zeus para que não faça isso, pois Emília a

está ajudando muito na proteção de Hércules e o pai dos deuses a atende pois ela era sua

filha cabeça, isto é, que saíra de sua cabeça. Observa-se que ocorre a dessacralização dos

deuses olímpicos, pois Lobato coloca suas personagens no meio de uma disputa entre Hera e

Palas Atena como se fizessem parte do mito. Enquanto Palas Atena defende o herói e o ajuda

a realizar seus trabalhos, Hera quer a sua ruína e conseqüentemente de seus adjuvantes.

Neste trabalho, o herói grego entra em conflito com seu meio- irmão o deus Apolo,

pois Hércules havia matado um miceniano no momento que este fazia um sacrifício a Apolo.

Então ele resolveu consultar o Oráculo de Delfos para resolver este caso, mas a Pítia não quis

atendê-lo. Hercules então impetuosamente pegou o trípode e saiu do templo. Os seus amigos

ficaram preocupados pois seu ato era uma grande ofensa ao deus. Eles resolveram procurar o

herói e o encontram bem no momento que os dois irmãos se defrontavam, prontos para o

ataque. Mas Zeus acaba com a briga lançando um raio entre eles como advertência. Palas

intervem e conversa com o herói, que se acalma e consegue conversar com ponderação. Tudo

resolvido descobrem que era mais um truque de Hera, para que Hércules sucumbisse. Este

episódio é acrescentado pelo escritor na variante intertextual, não aparecendo no texto-base.

Emília como não tem papas na língua, freqüentemente difama Hera, mas a deusa se

vinga, deixando-a muda. Nada do que façam seus amigos faz com que sua fala retorne.

94

Hércules fica comovido com aquela situação e resolve levá-la até Medéia para ser fervida e

curada. A ex-boneca está morta de medo e através de bilhetes, sua nova forma de

comunicação, revela seu medo de ser picada e fervida. Mesmo assim eles a levam até a

feiticeira, eles não sabem o que fazer para resolver os problemas sem Emília que é alma do

bando. Sem Emília ninguém se arrumava – além do que só ela possuía o segredo mágico do

faz-de-conta, esse supremo recurso das ocasiões de grande perigo (2004, vol. 02, p. 44).

Como Emília estava com medo começa a falar antes de cair no caldeirão de Medéia

para a fervura. O herói demora algum tempo para perceber que sua “dadeira de idéias” já

estava falando. Isso ocorre graças a Minervino que vendo toda aquela aflição intercedeu junto

a Palas, para que ajudasse. A deusa discretamente socorreu-se com Zeus, que atendeu de

imediato ao pedido. Observa-se que a ex-boneca que adquirira a fala graças a pílula do Dr.

Caramujo, e que ampliara seu conhecimento através das histórias de D.Benta, perde sua

alocução devido a sua imprudência, mas graças a Zeus consegue recuperá-la.

Restituída a fala de Emília é hora do pagamento, pois o Visconde havia sido curado e

Medéia não fora recompensada, pois o herói não aceitara seus termos: deixar Emilia em seu

palácio, porém agora não havia jeito. Após uma boa conversa resolvem pagar a feiticeira com

o pomo de ouro que Emília havia guardado, quando Hércules se encontrara com Atlas.

Entretanto Emília reclamou, pois um pomo era muito para pagar somente a cura de Visconde.

Medéia então deu-lhe uma varinha de condão.

A ex-boneca realiza um sonho antigo brincar de virar as coisas. Emília transforma-

se então em uma pequena fada, virando e desvirando tudo o que via pela frente, mas a varinha

só poderia ser usada apenas cem vezes deixando-a frustrada com a descoberta.

Novamente, Lobato utiliza a metalinguagem para explicar o sentido de condão:

Que é “condão” Visconde? Ás vezes a gente leva usando uma palavra toda a vida sem saber certo o que é. O sabuguinho explicou que apalavra “condão” vinha da palavra persa “condo”, que queria dizer “sábio ou adivinhador”. De modo que na língua portuguesa condão significava “prerrogativa”, privilégio”, “graça”, “dom”. E vara de adivinhar.

95

- Mas a minha vara não adivinha - objetou Emília, vira, só. - Adivinha, sim – respondeu o Visconde. – quando você diz “Vira que vira virade”, ela adivinha o que você quer e executa a ordem. (2004. vol. 02, p. 51)

Neste trecho além do leitor ficar sabendo o significado da palavra condão, Visconde

ainda fala a respeito de “vira que vira, virade”, expressão inventada por Lobato que é

expressão mágica usada para a realização dos desejos, assim como abracadabra que é uma

palavra mística usada como encantamento, considerada a palavra mais pronunciada no mundo

inteiro, observa-se ainda, que a mesma não tem tradução.

O nono Trabalho de Hércules é ir até o país das Amazonas, para trazer o cinto de

Hipólita. Esta incumbência o herói recebe de Euristeu: “Hipólita, a rainha das Amazonas,

possui aquele cinto maravilhoso com que Ares a presenteou. Minha filha Admeta faz questão

de ser dona desse cinto. É só” (2004, vol. 02, p. 43). Segundo Grimal:

Foi a pedido de Admete, filha de Euristeu que Héracles partiu para o reino das Amazonas, à conquista do cinto de sua rainha, Hipólita. Este cinto, dizem, era o do próprio Ares, que o dera a Hipólita para simbolizar o poder que ela possuía sobre seu povo (1997, p. 211).

No mito, Hércules conta com a ajuda de alguns amigos mas não são nomeados, já na

variante intertextual, o herói executa a mesma tarefa, mas na variante ele conta com a ajuda

de seus inseparáveis amigos e de alguns heróis mitológicos como Peleu, Teseu, Telamon.

[...]. Héracles embarcou com alguns voluntários[...] chegou ao porto de Temiscira o do país das Amazonas. Aí, Hipólita acedeu de boa mente a dar-lhe o cinto, mas Hera, disfarçada de amazona, suscitou uma discussão entre os seguidores de Héracles e as Amazonas. Segui-se um combate entre os dois exércitos; Héracles pensa que foi traído e mata Hipólita.(1997, p.211).

Tanto no mito quanto na variante intertextual, Hera com sua intrigas faz com que

ocorra a guerra entre os heróis e as amazonas, resultando na morte de Hipólita.

96

Hércules e o cinto de Hipólita

Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Em Héracles, Eurípedes descreve este Trabalho da seguinte maneira:

A eqüestre hoste das amazonas, próxima ao multiflumíneo meotis, Foi por inóspita onda do mar – e que grupo de amigos da Hélade não reuniu? Para tomar o butim mortal o auriornado cinturão dos peplos da jovem de Ares A Hélade recebeu o ilustre espólio da jovem bárbara que Está guardado em Micenas. (2003, p.92-93).

No texto-base, Eurípedes retrata as amazonas com “eqüestre hoste de amazonas”,

esta expressão designa as mulheres que andavam a cavalo e eram guerreiras. O autor descreve

o cinturão como butim mortal por ser uma recompensa pela batalha, o herói conseguiu

escapar com a cinta, mas após duros combates e muitas mortes.

Segundo Brandão a simbologia do cinto de Hipólita está ligado aos verbos

ligar e religar, símbolo de humildade e submissão, símbolo do poder e justiça, mas igualmente do “poder castrador”, símbolo da continência, que passou do poder do castrador, para o poder da continência: deixou de ser usado por uma Amazona, para guarnecer os rins de Admeta, sacerdotisa de Hera (1998, p. 108).

Este trabalho, segundo Diel, se reporta à vida da alma, a Amazona assassina da alma,

é, indubitavelmente, a mulher que se opõe, de maneira doentia, histérica a qualidade essencial

97

a única que interessa ao mito: o impulso espiritual. Esse antagonismo embota a força

essencial, própria da mulher, a qualidade de amante e de mãe, o calor da alma [...] (1998, p.

106).

Na variante intertextual, Pedrinho torna-se o mensageiro, levando um recado para as

amazonas, mas quando ocorre a batalha entre os heróis e as amazonas as personagens do Sítio

assistem do navio. Eles não se aproximam da batalha. Lobato deixa as personagens bem longe

da contenda.

Trazer os bois de Gerião é o décimo trabalho do herói. Hércules conversa com seus

adjuvantes a respeito de seu novo trabalho, contando qual é a exigência de Euristeu desta vez.

Ele ordena ao herói que :

[...] traga para Micenas os bois selvagens do mais horrendo gigante que há nesta Hélade – um de várias cabeças ... Gerião.Já sei – disse Pedrinho – Ele quer esses bois para ter o gosto de soltá-los. Euristeu é o maior soltador de monstros. Só preciosidades como o cinto de Hipólita é que ele não solta. Espertinho... E onde fica esse tal Gerião?

-Muito longe daqui, na Ilha de Erítia, no Mar Jônio. Mar, mar .. e Hércules fez cara de vítima – estava se lembrando dos enjôos...(2004, vol. 02, p. 68)

Para a realização deste trabalho os heróis precisam viajar até a ilha de Erítia e

Hércules que não está acostumado com o balanço do navio, passa mal durante a viagem. Este

é mais um recurso que Lobato utiliza para acentuar a dessacralização do mito de Hércules,

pois o coloca com problemas de saúde como qualquer ser humano normal. Para Emília que

gosta muito de brincar com as situações, Hércules foi descadeirado por “um gigante chamado

Mar”, que seria o único a vencê-lo. Quando o herói chega em terra firme é socorrido por

Pedrinho.

Para levar os bois até Micenas, Hércules mata o pastor Euritião, seu cão Ortro e o

gigante Gerião. Este gigante era um famoso ladrão de gado e com sua morte todos os vizinhos

vieram buscar o que lhes pertencia. Lobato novamente trabalha com a idéia de valores,

98

mostrando aos jovens leitores que só devem ficar com aquilo que lhes pertence. No mito,

Hércules faz sua viagem até o local em que realizará seu Trabalho, usando o disco do sol,

após o herói ter forçado o mesmo a emprestar-lhe o veículo, sob pena de desferir-lhe umas

flechadas.

Hércules e os bois de Gerión Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Segundo Grimal, no Dicionário de mitologia grega e latina:

Gerión, filho de Crisaor, possuía enormes rebanhos de bois, à guarda do seu pastor Eurítion, na ilha de Eritéia, Eríton era assistido pelo cão monstruoso Ortro, nascido de Tífon e Equidna. A ilha de Eritéia situava-se no extremo Ocidente. Foi para lá que Euristeu ordenou a Héracles que se dirigisse e trouxesse de volta os preciosos rebanhos. A primeira dificuldade era, à partida, atravessar o Oceano. Para resolver, Héracles obteve, a título de empréstimo, a taça do Sol.(1997, p. 211).

Na variante intertextual Lobato faz uma crítica aos que estando estão no poder não

agem como pessoas, mas como animais irracionais, pois não auxiliam o povo em suas

necessidadades principais. O autor aproveita o momento e através de Emília faz uma dura

crítica aos políticos, que sempre o atrapalhavam quando tentava realizar seus projetos de

melhorias para o Brasil.

Hércules conta aos picapauenses sobre o mito do pomo de ouro, que Éris trouxera para

o casamento de Peleu e Tétis para entregar a mais bela deusa que estava presente. Convidam

então Paris para julgar quem era a mais bela e ele deu o pomo a Vênus. Como Hera e Atena

99

não gostaram da idéia surgiu a guerra de Tróia. Emília como sempre quer resolver a situação,

dando sua opinião. Nessa ocoasão a ex-boneca cita Salomão, juiz bíblico que era muito justo e

que segundo ela agradaria a todas as deusas.

Lobato nesta passagem típica explica para seus leitores a importância do saber

através do peso de Visconde:

[...] Emília era um peso-pluma. Quanto pesaria na balança? Uns oito quilos,se tanto. E o Visconde? Ah, esse não chegava nem a um quilo. Mas como, então, podia servir d e contrapeso a uma canastrinha cheia de coisas, onde havia até pena de bronze? A explicação é que o Visconde pesava pouco, mas sua ciência pesava muito. ( 2004, vol. 02, p.70).

Visconde como já foi anteriormente citado, é uma personagem que também evolui

com o passar das narrativas e o conhecimento adquirido através das diversas leituras pesava

muito, Nos Doze trabalhos de Hércules ele está um sábio que não precisa mais consultar os

livros, diferente de quando foi criado e esquecido na biblioteca, todo conhecimento de que as

crianças necessitam, para os esclarecimentos a respeito de qualquer assunto estão com ele

armazenados. Visconde parece personificar todo o conhecimento humano, leve em estrutura,

mas pesado para a tomada das decisões.

O décimo primeiro Trabalho de Hércules é trazer os pomos do jardim das Hespérides,

mas tanto no mito quanto na variante o herói não sabe qual a localização do jardim. Segundo

Grimal: “[...] O Jardim das Hespérides situa-se ora a ocidente da Líbia, ora junto do monte

Atlas, ora ainda nos país dos Hiperbóreos”(1997, p. 213).

100

Hércules e o jardim das Hespérides Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Neste trabalho o herói conta mais uma vez com a ajuda providencial das personagens

do Sítio. Visconde, para descobrir qual era realmente a direção a seguir, pois nenhum mortal

tinha a menor idéia da localização do jardim. Emilia com suas sugestões para que o deus

Nereu fale durante o sonho sobre a localização do jardim e com seu faz-de-conta para

chegarem realmente lá.

Quando chegam ao jardim eles precisam passar pelo dragão de cem cabeças, mas

Emília providencialmente surge com a solução: narcotizar o bicho com ópio, que ela fabrica

usando sua varinha de condão, a ex-boneca utiliza seus recursos de fada. Ao penetrarem no

jardim são bem recebidas pelas Hespérides que lhes oferecem os pomos, que para surpresa de

Emília nada mais são que laranjas.

A decepção foi grande. Laranja, laranja... Por que então aquele empenho pela posse duma fruta que abundava em todos os países do Mediterrâneo? Héstia explicou que abundava agora: antes só havia ali aquele pé. As “laranjeiras” dos países do Mediterrâneo eram produtos das sementes que Juno jogara lá de cima. A laranjeira inicial, a primeira aparecida no mundo, era daquele jardim. (2004, vol. 02, p. 104)

101

Emília não se conforma e reclama muito, pois ela pensa que as frutas são de

realmente de ouro, como é uma ciganinha interesseira, resmunga o tempo todo, sentindo-se

lograda.

Segundo Brandão:

[...] maça como símbolo ou meio de conhecimento, mas que pode ser tanto o fruto da Árvore da Vida quanto o fruto da árvore da Ciência do bem e do mal: conhecimento intuitivo, que confere a imortalidade, ou conhecimento distintivo, que provoca a queda (1998, p. 116).

Para descrever o deus Nereu, Lobato utiliza o recurso semântico da redundância,

neste trecho :

Dias depois chegaram ao velhíssimo palácio do velho Nereu. Velho, velho, velho. Não podia haver maior velhice. De tão velho, estava já todo coberto de musgos e algas, ostras e mariscos. Parecia menos um deus do que um casco de navio encalhado O seu palácio era uma gruta de velhíssimos e carcomidos rochedos à beira-mar. As ondas entravam e saiam, e entravam novamente –e assim já séculos e séculos – sécula seculórum.(2004, vol.02, p. 96).

O escritor utiliza as repetições como mecanismo de coesão, recurso retórico e para

obter efeitos semânticos. As repetições do termo velho podem ser auferidas como uma

prolongação do tempo e são utilizadas por Lobato para que os leitores tenham essa idéia de

que o tempo é eterno.

O décimo segundo trabalho do herói é descer ao Hades e trazer Cérbero vivo sem usar

suas armas e com seu consentimento. Na variante intertextual, o narrador diz que:

Hércules já realizara, onze grandes Trabalhos, saindo plenamente vitorioso. Estava agora incumbido do último e o mais difícil. Tinha de descer ao sombrio reino de Hades, e trazer de lá o famoso Cérbero.

Que é esse reino? – quis saber Pedrinho; e o mensageiro de Palas explicou:

- É o reino subterrâneo para onde vão as sombras dos mortos. Á entrada está Cérbero, o horrível mastim de três cabeças e cauda de dragão – três cabeças diferentes. A missão de Cérbero é impedir que os heróis penetrem nos domínios de Hades (2004, vol 02, p. 110).

102

No texto-base, Herácles, o herói está realizando este trabalho quando a peça inicia-se.

Quando de seu retorno do Hades é que descobre que sua família é refém de Licos, mata-o

para libertá-la, mas é acometido pela loucura e dizima a todos.

Hércules e Cérbero

Fonte: www.greciantiga.org/hp.asp

Nos dois textos de estudo o herói antes de ir ao Hades inicia-se nos “mistérios de

Elêusis purificando-se, para descer ao Inferno.

Na variante intertextual, somente acompanham o herói Emília, Visconde e Minervino,

pois Pedrinho não tivera vontade de visitar o inferno, apenas as criaturas fabricadas e

posteriomente humanizadas, pois Lobato não quis que a criança, mesmo sendo um herói

entrasse em lugar tão sombrio.

Emília utiliza o seu faz-de-conta mais uma vez para que eles se transformem em

sombras, pois Caronte o barqueiro infernal não fazia a passagem de vivos para o reino das

sombras. O herói grego conversa com Hades que permitiu a retirada de Cérbero desde que o

herói não usasse nenhuma de suas armas. Hercules vai ao encontro do cão e após luta renhida,

o herói mata uma de suas cabeças e consegue levar o monstro para Euristeu.

Pedrinho arrepende-se amargamente de sua não participação neste trabalho e apenas

leva o cão pela coleira para entregá-lo ao rei. Mas na hora das despedidas o menino é

reabilitado pelo herói que diz: [...] Por que não desceu conosco aos infernos? Por prudência -

103

e hoje eu percebo que a prudência deve ser um das mais belas qualidades do que vocês

chamam “herói moderno”.(2004, vol. 02, p. 126)

Emília quer conversar com o rei e sugere a Hércules, que não tem como recusar, que

todos visitem-no, para entregar a sua encomenda. Como era muito fraco ao ver o grande cão

infernal, Euristeu desmaiou de medo. A ex-boneca aproveita a ocasião e comunica ao rei

medroso que o ciclo de Trabalhos de Hércules estão encerrados, com sua habitual petulância.

Segundo Pierre Grimal:

O décimo primeiro trabalho imposto por Euristeu a Héracles foi dirigir-se aos Infernos e trazer de lá o cão Cérbero. Nunca Héracles teria conseguido executar esta tarefa, apesar de todo o seu valor, se não tivesse sido ajudado, por ordem de Zeus, pelos deuses Hermes e Atena.[...] Por fim, Héracles chegou diante de Hades e pediu-lhe para levar Cérbero. O deus consentiu, na condição de que ele dominasse o animal sem recorrer às suas armas habituais, apenas revestido da sua couraça e da sua pele de leão. De facto, o herói ataca Cérbero, agarra-lhe o pescoço com as mãos e, ainda que a cauda do cão , que terminava em forma de dardo, como o escorpião, lhe tenha dado várias picadas, não soltou a presa antes de Cérbero (1997, p. 211-212).

Comparando estes dois textos referentes ao décimo segundo trabalho de Hércules,

observa-se que Grimal diz que o herói só conseguiu realizar seu trabalho graças a ajuda de

Hermes e Atena que foram enviados por Zeus para esta importante tarefa. Outra informação

que difere um texto do outro: Hércules não mata nenhuma das cabeças dos mastim infernal,

somente o leva para Micenas, onde Euristeu ficou com tanto medo que escondeu-se dentro de

seu vaso habitual. Hércules leva o cão para o Inferno novamente. Nos Doze trabalhos de

Hércules, Cérbero é levado para o Sítio junto com o centaurinho Meioameio.

Segundo Brandão:

A respeito da descida de Héracles ao Hades, sabe-se que esta configura o supremo rito iniciático: a catábase, a morte simbólica, é a condição indispensável para uma anábase, uma subida, uma escalada definitiva na busca da anagnórisis, do autoconhecimento, da transformação do que resta do homem velho no homem novo( 1998, vol 03, p. 114).

104

Neste citação de Brandão tem-se a conclusão dos Trabalhos de Hércules, o maior dos

heróis gregos, que realizou com louvor doze trabalhos para sua purificação, após ter cometido

um crime hediondo, matar os filhos e a esposa, ao ser acometido de loucura enviada pela

deusa Hera. Com sua descida as regiões infernais, Hércules tornou-se um homem renovado,

transformado.

Na variante intertextual ao término dos trabalhos todos fazem o discurso de despedida.

Todas as personagens se engasgam e choram, inclusive Emília que mostra toda sua

humanidade dizendo ao herói que ele é o maior de todos. O herói retoma o conceito sobre

educação, que para ele “é o que transforma as criaturas”(2004, vol. 02, p. 126). Hércules diz

ainda que viu em “Pedrinho modelo de herói dum novo tipo”(2004,vol. 02, p. 126). Sobre

Emília o herói diz sua presença de espírito enlevou -o sobremaneira e que o seu faz-de-conta,

apesar de não ter entendido como funcionava ajudou-o inúmeras vezes. A respeito de

Visconde o herói disse ser um “herói resignado”, “modesto”, “humilde”, “que executava as

incumbências mais perigosas sem um prostesto”.(2004, vol. 02, p. 127).

Neste episódio observa-se que Lobato aproveita para fechar seu conceito sobre a

educação, através da fala do herói que diz “ a educação é que transforma esse terreno- em que

só há mato -em canteiro de cultura das artes e ciências úteis, belas (2004, vol. 02, p. 126).

Lobato aproveita a estada da turma do Sítio na Grécia para recontar diversos mitos

gregos. Eles são resgatados pelo Visconde ou por Minervino, no decorrer dos Trabalhos os

mitos gregos são inseridos. Será feita apenas uma citação dos mitos que são recontados nesta

obra lobatiana: o minotauro, o velo de ouro, os argonautas, o centauro, o eco, o deus Pã, Frixo

e Hele, Eros, Medéia, Esculápio, Odisséia, Teseu, Hefaístos, Dionisos, Atlas, Hero e Leandro,

Prometeu, Apolo, Posseidon, Ícaro, Ares etc.

Em Os doze trabalhos de Hércules, observa-se que todas as tarefas são realizadas com

mais rapidez que no mito grego, pois as personagens do Sítio como são crianças não tem

105

muita paciência para esperar o tempo passar. Para que isso ocorra, elas utilizam o recurso do

faz- de- conta e do pó mágico de pirlimpimpim. Mais uma vez a questão educacional é

retomada, pois sabe-se que o maior objetivo de Lobato era que as crianças aproveitassem as

histórias para absorver maior conhecimento sobre mitologia grega e que esse aprendizado

fosse de maneira lúdica e agradável.

106

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho foi possível detectar a contribuição mais relevante de Lobato: a criação

da Literatura Infantil Brasileira, ocorrida nas primeiras décadas do século XX. Além de tão

importante contribuição, Lobato ainda fez um relevante trabalho no campo editorial brasileiro

neste período e ainda introduziu as crianças brasileiras em um mundo novo, em que real e

fantasia, mediante o recurso do faz-de-conta, caminham juntos sem fronteiras definidas e o

pó de pirlimpimpim podia ser usado pelas crianças sem medo.

Com este trabalho foi possível a percepção de que o escritor fez grande uso de

recursos intertextuais em suas obras, explorando ao máximo todas as potencialidades da

língua, refletindo sobre os fatos mais diversos do cotidiano, de maneira lúdica, sempre

pensando em diferentes maneiras de agradar a seus pequenos leitores.

Nesse estudo observou-se que as personagens do Sítio ao utilizarem o pó de

pirlimpimpim realizaram sua viagem mágica à Grécia Heróica, abriram uma passagem para

um mundo maravilhoso e ao terminarem as aventuras com Hércules saíram de lá crescidas e

fortalecidas e com muitas informações importantes para serem usadas no futuro, razão pela

qual expandiram os limites do seu universo.

Foi observado ainda, que o lado fundamentalmente educativo de Lobato se fez sentir

ao entrar em jogo com experiências arriscadas, brincadeiras e "reinações", sendo que foi

através desse conjunto que o valor mais importante para a formação intelectual se instalou.

Para o escritor novos conhecimentos podiam ser acrescentados através das brincadeiras, sendo

somente desta maneira que a imaginação alcançaria os mais altos vôos, seu lema era

“aprender brincando”.

Percebeu-se, ainda nesse estudo que é Emília a personagem mais significativa de

Lobato. E é através dela que o do escritor trabalha para que suas idéias sejam independentes,

107

para a realização de uma análise crítica sobre o mundo, pois queria que as crianças de seu

tempo fossem críticas e conscientes, tanto que ‘nasceu’ boneca e por meio do conhecimento

ocorreu sua metamorfose, em pelotinho de gente.

Ao se comparar os textos-base: Héracles de Eurípides e As Metamorfoses de Ovídio

com a variante intertextual Os doze trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato, foi possível

explicar a intertextualidade existente entre os textos, pois é por intermédio deste recurso que

Lobato estiliza o mito inserindo personagens, nesse processo o escritor muda seu enredo, de

forma a adaptá-lo ao contexto das personagens do Sítio do Picapau Amarelo. No caso de Os

doze trabalhos de Hércules, o escritor de Taubaté retomou explicitamente o mito do herói

grego reescrevendo-o de forma consciente com uma nova roupagem. Nesta reescritura Lobato

dessacraliza o herói, pois ele necessita da ajuda das personagens do Sítio do Picapau amarelo

para realizar seus doze trabalhos. Essa foi a maneira que o escritor encontrou para tornar a

história mais acessível às crianças brasileiras. Com esse processo ocorre a identificação do

leitor com o mito do herói.

Observou-se ainda que por meio de Hércules, Lobato explica sua teoria educacional,

pois segundo o herói grego, as pessoas e as criaturas somente se tornavam menos violentas se

tomassem contato com a educação, ele até elogia muito Pedrinho, que diz ser um produto

desta tão elogiada educação.

Lobato faz diversos acréscimos através de alusões, metalinguagens e citações de

diversos termos e mitos gregos, que não fazem parte do universo dos leitores, ajudando assim

a ampliar o seu conhecimento de mundo, pois ao utilizar esses recursos em sua técnica

intertextual traz para o universo ficcional, inúmeras referências tanto da cultura brasileira,

quanto da grega. Tarefa esta, que é realizada com muita eficiência, pois o escritor aproveita as

conversas informais e perguntas, especialmente de Emília, para dissipar todas as dúvidas que

por ventura algum leitor possa vir a ter.

108

Na obra de Lobato são utilizados diversos recursos intertextuais para esclarecer a

significação de palavras, imagens e acontecimentos, traduzindo ensinamentos em linguagem

acessível a seu público, para que ele obtenha, assim, mais êxito em sua leitura.

Tentou-se ainda levantar as diferenças entre o original e a estilização, mostrando que

mediate as mudanças sofridas, os fatos relatados no mito grego tornam-se mais interessantes

para o leitor brasileiro. Desse modo, foi possível observar a liberdade com que o narrador

trabalhou com os elementos do texto, direcionando a história de acordo com o interesse de

seus leitores. Ao se comparar os textos-base e a variante intertextual pode-se explicar a função

da intertextualidade, que vê autor e leitor, atuando em conjunto, ligados intimamente com o

texto, engendrados em uma totalidade de sentidos, para dinamizar a proposta de diálogo no

mundo do intertexto.

Os doze trabalhos de Hércules é a última obra infantil de Lobato e pode-se afirmar

que o escritor realizou seu projeto de criar uma literatura infantil brasileira, apesar de todos os

percalços enfrentados ao longo de sua vida.

Chega-se ao fim deste trabalho cientes da dificuldade em apresentar estudo original

sobre Lobato, escritor renomado, que a muitos incomodou durante o tempo em que exerceu

seu ofício: escrever para crianças criando-lhe um mundo maravilhoso, em que elas aprendiam

brincando.

Diante de todas essas considerações, deseja-se que os objetivos propostos tenham sido

alcançados e que este trabalho de pesquisa contribua para o desenvolvimento de outros que

tenham como objeto de estudo a análise intertextual, pois a pretensão estabelecida na

elaboração do presente foi ampliar o conhecimento referente a um escritor que é ao mesmo

tempo tão amado e tão incompreendido ao mesmo tempo, e que contribuiu significativamente

para a Literatura Infantil do Brasil.

109

REFERÊNCIAS

ABDALA JR, Benjamim e MOTA Lourenço D. (org). Personae: grandes personagens da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Senac, 2001.

ARROYO, Leonardo. Literatura Infantil Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1990. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense –

Universitária, 1981. _________ Questões de literatura e de estética: a teoria do romance São Paulo:

Hucitec: 1988 BARBOSA, Alaor. O ficcionista Monteiro Lobato. São Paulo: Brasiliense, 1996. BARROS, D.L.P de et al. (org.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 1999. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1978. BULFINCH, Thomas. O livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Fábula). História de

deuses e heróis. Tradução de David Jardim Júnior. São Paulo: Ediouro, 1965. BRAIT, Beth. Bakhtin, Dialogismo e construção do sentido. Campinas: UNICAMP, 1997. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Rio de Janeiro: Vozes, 1989 vol. 01,03. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 4. ed. São

Paulo: Martins, 1971. 2 v. CASSAL, Sueli Tomazini Barros. Amigos escritos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado,

2002. CHALHUB, Samira. Funções da linguagem. São Paulo: Ática, 2001 CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1999. COELHO, Nelly N. A Literatura Infantil. São Paulo/Brasília: Quíron 1981. _____________. Panorama Histórico da Literatura Infantil-Juvenil. São Paulo: Ática,

1991. ______________. Dicionário crítico da literatura infantil-/juvenil brasileira. São Paulo:

Edusp, 1995. COSTA, Lígia Militz. dos REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia. Estrutura &

História. São Paulo: Ática, 1988.

110

COUTINHO, Afrânio (org). A literatura no Brasil: era romântica. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Niterói: UFF, 1986. DANTAS, Paulo. Vozes do tempo de Lobato: depoimento de diversos autores. São Paulo:

Traço, 1982. DIEL, Paul. O simbolismo na Mitologia Grega. São Paulo: Attar, 1991. DISCINI, Norma. Intertextualidade e Conto maravilhoso. São Paulo: Humanitas, 2004. DOWDEN, Ken. Os usos da Mitologia grega. Campinas: Papirus, 1994. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva. 2004. EURIPEDES. Héracles.São Paulo: Palas Athena, 2003 FILIPOUSKI, Ana Mariza R. “Monteiro Lobato e a literatura infantil brasileira

contemporânea”. In: Atualidade de Monteiro Lobato. Uma revisão crítica. Org. Regina Zilberman. Porto Alegre: mercado Aberto, 1983.

GILBERT, John. Mitos e Lendas da Roma antiga. São Paulo: Melhoramentos, 1976. GUERRIERO, Silas. Antropos e Psique, o outro e sua subjetividade. São Paulo: Olho

dágua, 2004. GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 1997 JENNY, Laurent, “Intertextualidades”. In: Poétique, 27, Almedina, Coimbra, 1979. LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira, histórias e

histórias. São Paulo: Ática, 1988. ____________ Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna, 2000. LANDERS, Vasda Bonafini. De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o Modernismo.

Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1988. LAROUSSE, Grande Enciclopédia Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998. LEITE, Marli Quadros. Metalinguagem e discurso – a configuração do purismo

brasileiro. São Paulo: Humanitas, 1999. LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944. __________________ Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1976. __________________ Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 2004.

111

__________________ Os doze trabalhos de Hércules. Vol. 01 e 02 São Paulo: Brasiliense, 2004.

LOPES, Eliane Marta Teixeira. Lendo e escrevendo Lobato. Belo Horizonte: Autêntica,

1999. MULLER, Lutz. O herói. São Paulo: Cultrix, 1997. OVÍDIO. As Metamorfoses. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1983. PEREIRA, Helena Bonito. Literatura: toda a literatura portuguesa e brasileira. São

Paulo: FTD, 2000. PINSENT, John. Mitos e Lendas da Grécia antiga 2a ed. São Paulo: Melhoramentos,

1978. SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga. Rio de Janeiro: Agir, 1987. ZACHARAKIS, Georges E. Mitologia Grega: Genealogia de suas dinastias. Campinas:

Papirus, 1995. ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global. 1982. 2º ed. (a). _______________ (org.) Atualidade de Monteiro Lobato: uma revisão crítica. Porto

Alegre: Mercado Aberto, 1983. Sites na Internet (imagens) www.greciantiga.org/hp.asp

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo