universidade federal do rio grande do sul …sociologia, do instituto de filosofia e ciências...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
CAMILA DELLAGNESE PRATES
DESESTABILIZANDO CAIXAS-PRETAS: O LICENCIAMENTO DA USINA
HIDRELÉTRICA BELO MONTE EM DISPUTA
Porto Alegre
2016
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CAMILA DELLAGNESE PRATES
DESESTABILIZANDO CAIXAS-PRETAS: O LICENCIAMENTO DA USINA
HIDRELÉTRICA BELO MONTE EM DISPUTA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para obtenção do
título de Doutora em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Jalcione Almeida
Porto Alegre
2016
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AGRADECIMENTOS
Ao longo deste trabalho recebi inúmeras contribuições, sem as quais, o ponto final seria,
certamente, impossível.
O primeiro agradecimento é destinado ao meu orientador, Prof. Jalcione Almeida. Seu
apoio e contribuição tornaram possível a transformação de um projeto em um trabalho
de tese. Sua influência na construção deste trabalho é certamente a mais marcante
porque desde o início incentivou leituras que instigaram outros questionamentos. Por
tudo, obrigada!
Agradeço a todos que me ajudaram e me guiaram durante o trabalho de campo. Nesta
etapa encontrei pessoas solícitas, pacientes, acolhedoras que me receberam em seus
cotidianos e dividiram comigo seu conhecimento, suas angústias e algumas vitórias.
Meus mais sinceros agradecimentos aos indígenas da aldeia Muratu por me receberem
muito bem em sua terra, por dividirem suas histórias, por mostrar que com força e
perseverança as mudanças são possíveis. Vocês são fonte inesgotável de inspiração.
Esse trabalho é dedicado a vocês.
Agradeço ao Instituto Socioambiental e a todos que possibilitaram meu transporte e
permanência na aldeia Muratu. Frequentando essa instituição conheci pessoas engajadas
com a região, preocupadas com o modo de vida dos ribeirinhos, pescadores e indígenas.
Em especial, agradeço a Cris. Sem seu apoio jamais teria vivido essa experiência
incrível. Agradeço também aos pescadores de Altamira que responderam pacientemente
aos meus questionamentos, dividiram comigo um pouco de seu conhecimento e também
seus anseios sobre o futuro. Agradeço por me darem o privilégio de ter escutado suas
histórias. Agradeço Ádrea Canto e sua família por me receberem em Belém e por me
apresentarem a melhor tapioca! Agradeço também ao Atinho, Camila, Adriano e Dulci
por me receberem em Manaus, minha cidade natal, e me apresentarem um pedaço dela.
Sou muito grata a todos vocês.
Agradeço a minha banca de projeto, Profª. Marilis Almeida e Prof. Adriano Premebida,
pelas contribuições e por ajudar a delimitar o direcionamento deste trabalho. Em
especial, agradeço ao Prof. Adriano por me apresentar aos pesquisadores do Instituto
Nacional de Pesquisas Amazônicas, dentre eles, Philip Fearnside, pesquisador
referência nas barragens no Norte do Brasil, o qual não imaginava que conheceria
pessoalmente. Agradeço também aos pesquisadores do INPA pela paciência e ao tempo
doado para a pesquisa. Sou grata por ter interagido com os pesquisadores da UFPA de
Belém e de Altamira e ter podido compreender um pouco de seus universos de pesquisa.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia por possibilitar oportunidades
de estudar com professores inspiradores e por prover os bens materiais e imateriais para
realização deste trabalho. Agradeço a todos os professores que, pelas aulas ministradas,
geravam inquietações essenciais na escrita do trabalho final. Meu agradecimento
também a Regiane, pela dedicação, paciência e por tornar as tarefas burocráticas mais
fáceis de serem realizadas. Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa recebida. Ela
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possibilitou minha permanência em Porto Alegre durante o doutorado e a consequente
realização deste trabalho.
Agradeço aos meus colegas e amigos de TEMAS: Lorena, Márcio, Patrícia, Felipe,
Rodrigo, Yara, Gitana, Adriana, Ana, Cleyton, Amanda, Natan, Anselmo. Vocês
construíram comigo este trabalho nas reuniões periódicas do grupo e também nos
momentos de descontração, em almoços e cafés. Seus questionamentos foram
fundamentais no direcionamento do trabalho final. Agradeço ainda meus colegas e
amigos, ingressantes na turma de 2011, por dividirem comigo a experiência de “estar
doutorando”.
Este trabalho não teria sido possível sem o apoio incondicional dos meus pais Claudia e
Giovani que aceitaram minhas ausências com paciência e me ajudaram a passar pelos
momentos de instabilidade, sempre com atitudes e palavras de otimismo. Agradeço a
minha irmã, Natália, por ser uma companheira preocupada e zelosa em todos os
momentos. Agradeço ao Henrique, meu afilhado, por trazer felicidade à nossa família e
por mostrar que todos os problemas se tornam menores frente à grandeza da vida.
Agradeço também minha dinda Cleusa por fazer uma revisão atenta deste trabalho.
Sou grata pelo apoio incansável recebido da minha família afetiva, meus amigos:
Alessandra, Camila, Manuela, Juliana S., Juliana R, Kalinca, Gisele, Kacerine, Natália,
Leonardo, Israel, Ricardo, André, Carla, Rodrigo, Raphael, Thiago, Rafaela. Vocês me
ajudaram a “dar um jeito” quando as dificuldades pareciam não ter solução. Agradeço
especialmente à Juliana Aires por ser a amiga espontânea e sarcástica que, mesmo
fisicamente ausente, está constantemente no meu coração. Sou grata ainda a Ricardo
Plotzki cujos gestos de companheirismo e amor foram essenciais neste percurso.
A todos, por construírem comigo este trabalho, muito obrigada!
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RESUMO
Esta pesquisa analisa as controvérsias científicas que emergem no processo de
licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHEBM). Neste trabalho,
considera-se teórica e metodologicamente o licenciamento como um Ator-Rede
(LATOUR, 1994; 2000), que conecta diferentes agentes, sendo eles humanos (técnicos,
pesquisadores, ribeirinhos, pescadores, indígenas, procuradores) e não humanos (rio,
peixes, relatórios, entre outros). O licenciamento ambiental adquire uma posição de
destaque neste trabalho porque é considerado o Ponto Obrigatório de Passagem
(CALLON, 1986) para a viabilidade ambiental, análise e mitigação dos impactos
ambientais da referida Usina. Aqui, o licenciamento é considerado uma rede
heterogênea cujas relações que o constituem são fluidas, ou seja, poderiam ser
(re)arranjadas para direcionar seus procedimentos de outra maneira. Os arranjos sobre o
licenciamento de Belo Monte são questionados ao analisar-se o espaço destinado às
controvérsias tecnocientíficas, que emergem ao longo da construção da Usina. A
pesquisa revelou a existência de três controvérsias acionadas durante o trabalho de
campo; elas traduzem para a gramática moderna, distintas cosmopolíticas (STENGERS,
2007) presentes nos conflitos da região. As controvérsias foram polarizadas entre o
programa de construção da usina, formado por pesquisadores-consultores, pelo
empreendedor, por órgãos do governo, e pelo antiprograma de construção da obra,
concebido por pesquisadores “insubordinados” à Norte Energia, como ONG’s,
pescadores, indígenas, procuradores e defensores. Nesta polarização foi possível
constatar uma regularidade: a rede do programa diferencia a questão técnica da questão
científica presente em seus estudos quando estes são expostos a controvérsias. Assim,
para neutralizá-las e limitar suas agências no licenciamento ambiental da UHEBM, a
rede do programa utiliza artifícios exaltando a experiência técnica dos profissionais
selecionados para realizar os estudos oficiais e estudos destituídos de intervenções
políticas para possibilitar a viabilidade ambiental da Usina. Contudo, ao realizar essa
manobra, a rede do programa aumenta as assimetrias no acesso à democratização dos
híbridos no licenciamento ambiental, dificultando a emergência de “outros mundos
possíveis” na tradução do ambiente que está sendo alterado para receber o
empreendimento.
Palavras-Chave: Licenciamento ambiental, Hidrelétrica Belo Monte, Controvérsias
tecnocientíficas.
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ABSTRACT
The present research analyses scientific controversies based on the construction of Belo
Monte’s hydropower plant considering its environmental licensing. This research
considers the licensing as an Actor-Network in a theoretical and methodological sense
(LATOUR, 1994; 2001), which connects several agents, that is, human agents (
technicians, researchers, local people, fishers, Indians, prosecutors) and also non-
humans (the river, fishes, reports and others).
The environmental licensing is acquires an important part of this work because it is
considered a mandatory way point (CALLON, 1986) to the environmental viability
analysis and mitigation of the environmental impacts of Belo Monte`s hydropower
plant. Here, the licensing is considered as a heterogeneous network, that is, the relation
that constitutes the licensing in this hydro-electric power is fluid, it means that it
indicates that these relations could be rearranged in order to direct its procedures in
different method. These arrangements about Belo Monte`s licensing are put into
question when the space dedicated to techno scientific controversies is analyzed. This
research revealed three controversies based on different agents during fieldwork. It
shows different cosmopolitics (STENGERS, 2007) that appears in conflicts in that
region. Controversies were polarized between the construction program from
hydropower plant that were constituted by researchers, entrepreneurs, government and,
on the other hand, by the anti program, accepted by researchers that are not subordinate
to Norte Energia. In this polarization, it was possible to find regularity: the network
from the program differentiates technical issues from scientific issues in its studies
when it is exposed to controversies. In this sense, in order to neutralize and in order to
limit its agencies on the licensing, the network from the program uses artifices that exalt
a technical expertise that works by making the construction of the hydro-power possible.
Nevertheless, when it is put in practice, the program network rises the asymmetry in the
access to the democratization from the hybrid in environmental licensing, enhancing the
difficulty the emergency of “another possible world” from the environment that is being
changed to receive the enterprise.
Key words: Environmental License; Techno scientific Controversies; Hydropower plant
Belo Monte.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Etapas de planejamento para construção de Usinas Hidrelétricas. ................. 31
Figura 2: Planejamento para a construção de Kararaô entre os anos 1987- 2001. ......... 45
Figura 3: Barramento para o complexo Babaquara-Kararaô .......................................... 46
Figura 4: Índia Tuira e o presidente da Eletronorte, José Antonio Muniz Lopes.
Altamira, 1989. ............................................................................................................... 48
Figura 5: Agentes presentes na primeira alteração da UHEBM. .................................... 51
Figura 6: Trajeto do rio Xingu ........................................................................................ 53
Figura 7: Atual configuração da UHEBM. ..................................................................... 54
Figura 8: Agentes presentes na segunda alteração da UHEBM ..................................... 58
Figura 9: Sítio Belo Monte. ............................................................................................ 61
Figura 10: Sítio Pimental- Turbinas tipo Bulbo. ............................................................ 61
Figura 11: Empresas que formam a Norte Energia S. A. ............................................... 64
Figura 12: Vila residencial dos empregados do CCBM e da NESA. ............................. 68
Figura 13: Vila dos "barrageiros" do sítio Belo Monte, ................................................. 68
Figura 14: Agentes que negociam interesses com o empreendimento atual. ................. 71
Figura 15: Sítio Pimental, barramento principal. ......................................................... 101
Figura 16: Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (INPA). ................................ 114
Figura 17: Vertedouros da UHE Santo Antônio. .......................................................... 116
Figura 18: Rede resumo de questões controvérsias que envolvem a construção de
hidrelétricas na Amazônia. ........................................................................................... 122
Figura 19: Rede-resumo de actantes controversos, na visão dos entrevistados. .......... 128
Figura 20: Autorização da liderança para ingresso na aldeia Muratu. ......................... 130
Figura 21: Vista do Sítio Pimental. .............................................................................. 131
Figura 22: Sistema de Transposição Embarcações....................................................... 132
Figura 23: Aldeia Muratu. ............................................................................................ 133
Figura 24: Antiga moradia dos Jurunas da aldeia Muratu. ........................................... 135
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Figura 25: Rede-resumo de actantes controversos que envolvem a UHEBM na visão dos
entrevistados. ................................................................................................................ 138
Figura 26: Volta Grande do Xingu trechos proibidos para a pesca e o tráfego. ........... 140
Figura 27: Mapa com os principais pontos pesqueiros prejudicados com a construção do
sítio Pimental. ............................................................................................................... 141
Figura 28: Rede-resumo, situação pesca entorno do Pimental. .................................... 145
Figura 29: Sistema de Transposição de Peixes (ainda não finalizado) de Belo Monte. 148
Figura 30: Rede-resumo entrevistados NESA. ............................................................. 150
Figura 31: Cartilha explicativa dos impactos sobre o meio físico e socioeconômico
envolvendo a cota 100 delimitada pelo EIA (2009). .................................................... 151
Figura 32: Comparativo dos resultados dos estudos do EIA para a NESA e da UFPA
para o MPF. .................................................................................................................. 152
Figura 33: RN 935-C, encontrado por um funcionário do MPF, em 2012................... 154
Figura 34: Rede-resumo controvérsia cota 100 ............................................................ 157
Figura 35: Rede-resumo controvérsia cota 100. ........................................................... 160
Figura 36: Rede-resumo licenciamento na visão dos técnicos do IBAMA. ................. 164
Figura 37: Rede-resumo licenciamento na visão do técnico da ANEEL. .................... 166
Figura 38: Controvérsias tecnocientíficas na UHEBM. ............................................... 189
Figura 39: Banner presente no Centro de Apoio ao Visitante (CAV), situado no sítio de
obras Belo Monte. ........................................................................................................ 190
Figura 40: A UHEBM vai gerar energia limpa? .......................................................... 192
Figura 41: Pontos de análise do programa “Pesca Sustentável”. ................................. 195
Figura 42: Acordo de Cooperação Técnica. ................................................................. 196
Figura 43: A UHEBM vai gerar energia limpa? Controvérsia dos pontos de pesca. ... 197
Figura 44: A UHEBM vai gerar energia limpa? .......................................................... 203
Figura 45: Canal de derivação, 18 km de extensão. ..................................................... 206
Figura 46: Canal de derivação ...................................................................................... 207
Figura 47: Terra Indígena Paquiçamba, Aldeia Muratu, na época de cheia do Xingu. 209
Figura 48: Rede da Controvérsia sobre o Trecho de Vazão Reduzida. ........................ 214
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Figura 49: Rede da controvérsia da Cota 100............................................................... 218
Figura 50: Reassentamentos Urbanos Coletivos. ......................................................... 229
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Breve histórico do Complexo Babaquara- Kararaô (Primeira fase). ............. 50
Quadro 2: Breve histórico da CHEBM (Segunda fase). ................................................. 57
Quadro 3: Breve histórico do AHEBM (Terceira fase). ................................................. 65
Quadro 4: Quadro-resumo das regras metodológicas segundo Latour......................... 110
Quadro 5: Entrevistados na pesquisa de campo ........................................................... 167
Quadro 6: Hidrogramas que indicam as vazões mensais do rio Xingu. ....................... 205
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AAI - Avaliação Ambiental Integrada
AIA - Avaliação de Impactos Ambientais
ACP - Ação Civil Pública
ANA - Agência Nacional das Águas
AHEBM - Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte
ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD - Banco Internacional para a Reconstrução do Desenvolvimento
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CCBM - Consórcio Construtor Belo Monte
CHEBM - Complexo Hidrelétrico Belo Monte
CIMI - Conselho Indigenista Missionário
CNPE - Conselho Nacional de Política Energética
CNEC - Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores
CONAMA - Conselho Nacional de Meio Ambiente
COPPE - Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia
DRDH - Declaração Reserva de Disponibilidade Hídrica
EIA - Estudo de Impacto Ambiental
EPE - Empresa de Pesquisa Energética
ELTROBRÁS - Centrais Elétricas Brasileiras
ESCT - Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia
FADESP - Fundação de Amparo e Desenvolvimento de Pesquisas
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
FVPP - Fundação Viver, Produzir e Preservar
GEE - Gases de Efeito Estufa
IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
ISA - Instituto Socioambiental
LI - Licença de Instalação
LO - Licença de Operação
LP - Licença Prévia
LPI - Licença Parcial de Instalação
MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens
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MCT - Ministério de Ciência e Tecnologia
MDTX - Movimento Pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu
MME - Ministério de Minas e Energia
MMA - Ministério de Meio Ambiente
MPF - Ministério Público Federal
NEPA - National Environment Policy Act
NESA - Norte Energia Sociedade Anônima
MW - Megawatts
ONG - Organização Não Governamental
ONU - Organização das Nações Unidas
PAC - Programa de Aceleração de Crescimento
PDE - Plano Decenal de Energia
PNMA - Política Nacional do Meio Ambiente
POP - Ponto Obrigatório de Passagem
RN - Referência de Nível
RRNN - Referências de Níveis
RIMA - Relatório de Impacto Ambiental
SEMA - Secretaria Estadual do Meio Ambiente
SIN - Sistema Interligado Nacional
STP - Sistema de Transposição de Peixes
STE - Sistema de Transposição de Embarcações
STJ - Superior Tribunal de Justiça
STF - Superior Tribunal de Justiça
TAR - Teoria do Ator-Rede
TI - Terra Indígena
TR - Termo de Referência
TRF1 - Tribunal Regional Federal da 1ª Região
TVR- Trecho de Vazão Reduzida
UFPA - Universidade Federal do Pará
UHE - Usina Hidrelétrica
UHEBM - Usina Hidrelétrica Belo Monte
XVPS - Xingu Vivo Para Sempre
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 15
1 HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS: DO COMPLEXO HIDRELÉTRICO AO
APROVEITAMENTO HIDRELÉTRICO BELO MONTE .................................... 25
1.1 LICENCIAMENTO AMBIENTAL E PRÁTICAS INSTITUCIONALIZADAS 27
1.2 “HERANÇA” DOS EMPREENDIMENTOS DESENVOLVIMENTISTAS À
ÉPOCA DA DITADURA MILITAR NO SETOR HIDROENERGÉTICO
(BALBINA E TUCURUÍ I) E SEUS “RESPINGOS” EM BELO MONTE ............. 31
1.3 A PRIMEIRA FASE: O COMPLEXO HIDRELÉTRICO NO RIO XINGU,
EMERGÊNCIA DA POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (1981) E A
NOVA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988) ............................................................ 41
1.4 SEGUNDA FASE: O LICENCIAMENTO AMBIENTAL “ÀS AVESSAS” ..... 52
1.5 TERCEIRA FASE: BELO MONTE E A INSERÇÃO NOS PROCEDIMENTOS
DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL E AS CONTROVÉRSIAS SE TORNAM
PÚBLICAS ................................................................................................................. 59
2 AS CONTROVÉRSIAS TECNOCIENTÍFICAS DA USINA HIDRELÉTRICA
BELO MONTE SOB A LENTE DA SOCIOLOGIA DA TRADUÇÃO ................. 72
2.1 ESTUDOS SOCIAIS EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA: AS CONTROVÉRSIAS
TECNOCIENTÍFICAS COMO “ENTRADA” ANALÍTICA PARA A
SOCIOLOGIA ............................................................................................................ 72
2.2 PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES TEÓRICAS AO OBJETO EMPÍRICO DA
PESQUISA ................................................................................................................. 86
2.3 MAPEANDO A ESTABILIZAÇÃO DA ESCOLHA TECNOCIENTÍFICA FIO
D’ÁGUA ..................................................................................................................... 96
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: SEGUINDO A REDE QUE
TRANSLADA A DECISÃO SOCIOTÉCNICA EM CONTROVÉRSIAS
TECNOCIENTÍFICAS .............................................................................................. 103
3.1 DOS PRESSUPOSTOS DA TAR À CARTOGRAFIA DAS CONTROVÉRSIAS
.................................................................................................................................. 105
3.2 A PESQUISA DE CAMPO: APROXIMANDO FRONTEIRAS GEOGRÁFICAS
E ASSOCIANDO CONTROVÉRSIAS ................................................................... 112
3.2.1 O início da pesquisa: Manaus e a “emergência” de algumas controvérsias 113
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3.2.2 Tecendo as primeiras relações: seguindo as controvérsias em Altamira e na
Volta Grande do Xingu .............................................................................................. 129
3.2.3 O retorno a Altamira e a “emergência” os pesquisadores insubordinados à
NESA ........................................................................................................................... 139
3.2.4 Belém e Brasília: seguindo o rastro da judicialização e da institucionalização
das controvérsias ........................................................................................................ 157
4 CONTROVÉRSIAS TECNOCIENTÍFICAS No licenciamento ambiental DA
USINA HIDRELÉTRICA BELO MONTE: DA REDE A COSMOPOLÍTICA . 172
4.1 A REDE DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL BELO MONTE:
NORMATIZAÇÕES E ASSIMETRIAS DE AGENCIAMENTOS ........................ 174
4.2 AS CONTROVÉRSIAS COMO TRADUDORAS DOS COSMOS EM DISPUTA
.................................................................................................................................. 188
4.2.1 A Usina Hidrelétrica Belo Monte vai gerar energia limpa? .......................... 189
4.2.2 A Volta Grande do Xingu manterá sua biodiversidade com o funcionamento
do Hidrograma de Consenso? ..................................................................................... 204
4.2.3 A cota do reservatório vai operar dentro do esperado?................................. 216
4.3 QUAIS AGÊNCIAS EMERGEM DOS COSMOS EM DISPUTA? ................. 220
5 LICENCIAMENTO AMBIENTAL E AS AGÊNCIAS QUE DISPUTAM
ESPAÇO NA BUSCA POR RECONHECIMENTO NA USINA HIDRELÉTRICA
BELO MONTE ........................................................................................................... 226
5.1 O LICENCIAMENTO AMBIENTAL DA USINA HIDRELÉTRICA BELO
MONTE COMO LOCUS DE ENUNCIAÇÃO E DISPUTA DOS IMPACTOS
AMBIENTAIS E DE VIABILIDADE DA OBRA .................................................. 234
5.2 IMBRICAMENTOS ENTRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA, EXPERTISE E
POLÍTICA NAS DISPUTAS POR AGENCIAMENTOS NO LICENCIAMENTO
AMBIENTAL ........................................................................................................... 244
5.3 A AGÊNCIA DO SISTEMA JURÍDICO NAS REDES DO LICENCIAMENTO
AMBIENTAL DE BELO MONTE .......................................................................... 253
5.4 CIÊNCIA E DEMOCRACIA: AS CONTROVÉRSIAS COMO TRADUTORAS
DOS CONFLITOS EM BELO MONTE .................................................................. 258
6 CONCLUSÕES ........................................................................................................ 262
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 271
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INTRODUÇÃO
O valor significante é essa certeza de que aqui eu era feliz. Porque eu
ajudei a construir isso aqui (...). As mãos, a cabeça... O pensamento
está todo aqui. (...) Por isso que é difícil e é doloroso as pessoas serem
arrancadas da sua casa na beira do Xingu. Estão me arrancando daqui,
tentando apagar a memória, a vida. Belo Monte é isso, é arrancar
todas as formas de vida, até que mesmo a memória seja apagada para
sempre, até que não exista nenhuma raiz. (Antônia Melo, Líder Xingu
Vivo Para Sempre, em entrevista publicada no jornal El País em 14 de
setembro de 20151).
A passagem escolhida para introduzir este trabalho elucida um pouco das
situações profundas e complexas vivenciadas pelas pessoas que moram na área de
influência de construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHEBM). A fala de
Antônia Melo reflete a angústia da imposição gerada pelos deslocamentos compulsórios
e traduz experiências2 semelhantes que se estendem Brasil afora.
Em 2010 enquanto pesquisava sobre a qualidade de vida das pessoas que
residiam em reassentamentos coletivos formados em decorrência da construção da
Usina Hidrelétrica Dona Francisca, usina de médio porte, situada no interior do Rio
Grande do Sul, entrevistei um casal de idosos que residia naquele lugar havia 10 anos.
O reassentamento coletivo, à primeira vista, era bem estruturado, separado em lotes de
17 hectares, cada um contendo uma casa de madeira com três quartos, água, luz, sistema
de esgoto e um galpão.
Sentados à mesa da cozinha, as histórias das dificuldades de adaptação foram
divididas e o sentimento saudoso da vida precedente ao reassentamento estava
constantemente na pauta. A entrevista durou apenas uma hora, porém, consigo lembrar
até hoje do depoimento emocionado daquele senhor que, na frente de uma pessoa
completamente estranha, não conseguiu conter sua dor. Depois de passar por essa
experiência, o reassentamento havia tomado outra forma. A casa de madeira do casal,
mesmo bem cuidada (recentemente pintada com jardins ao seu redor) estava
apodrecendo. Naquele lote plantava-se soja, que por estar condicionada à quantidade de
terra disponível, gerava uma renda anual que não contemplava as necessidades do casal
1 Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/14/opinion/1442235958_647873.html. Acesso
em: 15 nov. 2015. 2 No Brasil, ainda é difícil conseguir números oficiais sobre a população remanejada por hidrelétricas, o
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), movimento social que acompanha e luta pelas
demandas dos “atingidos” estima que cerca de “1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras devido
a construção de barragens. Isto corresponde a 300 mil famílias; (...) sendo que a cada 100 famílias
deslocadas, 70 não receberam nenhum tipo de indenização.” (MAB, s/d, p.2).
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/14/opinion/1442235958_647873.html
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(PRATES, 2014). Os lotes do reassentamento estavam na condição de cedidos pelo
governo do Estado, isso significa que aquelas pessoas não possuíam autonomia sobre a
terra, por isso, não havia a possibilidade de vendê-las caso não se adaptassem naquele
local.
Nesses breves relatos é possível perceber que de norte a sul do Brasil os efeitos
sociais e econômicos gerados por empreendimentos hidrelétricos são devastadores para
a população que os recebem. Os atingidos são ouvidos e percebidos -oficialmente - no
processo de diagnóstico dos impactos ambientais (EIA), feitos por empresas de
consultorias e nas audiências públicas, ambos realizados no âmbito dos procedimentos
presentes no licenciamento ambiental. Todavia, esses espaços de participação ainda
possuem inúmeras lacunas as quais serão problematizadas ao longo deste trabalho.
Diferentemente da Usina Dona Francisca (elaborada no início das
normatizações dos estudos de impacto e do licenciamento ambiental), a UHEBM está
sendo construída sob os procedimentos do licenciamento ambiental (25 anos após a
implementação do estudo de impacto enquanto ferramenta de consolidação da Política
Nacional do Meio Ambiente (PNMA)) acompanhados de perto por diversos agentes
(mídia, organizações da sociedade civil, pesquisadores, ministério público e pelos
moradores) que relatam “just in time” os acontecimentos na região.
Mesmo com avanços nos procedimentos do licenciamento, estes, ainda sofrem
inúmeras acusações de superficialidade no diagnóstico da viabilidade ambiental dos
empreendimentos hidrelétricos. Revela-se, portanto, que antigas lacunas ainda estão
presentes tanto na apuração das análises dos impactos como nos espaços de participação
da população.
Com base nessas questões, este trabalho empenha-se em delinear a dinâmica do
licenciamento ambiental de Belo Monte, que culminou na obtenção da LO pelo
empreendedor, mesmo com inúmeras evidências tecnocientíficas opostas sobre a
viabilidade ambiental da obra. O objetivo central deste trabalho consiste em resgatar
como algumas controvérsias tecnocientíficas emergem, “disputam” e conquistam
agenciamentos no licenciamento ambiental da UHEBM para compreender os arranjos
que geraram a viabilidade ambiental da Usina.
Os objetivos específicos são: identificar os agentes mobilizados para o
“fechamento” da UHEBM em uma “caixa-preta3”; ressaltar a importância da reflexão
3 O termo caixa-preta é utilizado, neste trabalho, nos mesmos termos de Latour (1994, 2001). Trata-se de
considerar que após conhecimentos técnicos e científicos serem estabilizados em um artefato ele torna-se
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sociológica a respeito da construção de artefatos tecnocientíficos e seus efeitos no
ambiente; determinar, por meio do mapeamento das controvérsias, os actantes que
geram efeitos nos processos que circundam o licenciamento ambiental, as formas de
interessamento e engajamento que elas promovem; identificar os argumentos políticos,
tecnocientíficos e as cosmopolíticas que disputam a legitimidade para justificar a
UHEBM.
Ao longo de 40 anos, o projeto inicial de construir o complexo Babaquara-
Kararaô sofre inúmeras alterações e transforma-se, em 2005, no que se convencionou
chamar oficialmente de Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte (AHEBM). As
mudanças ocorridas entre os projetos foram (também) estimuladas pela PNMA,
concebida em meados da década de 1980. Por meio dela, importantes limitações
ambientais (licenciamento ambiental, diagnóstico de impactos, planos mitigadores)
foram destinadas aos empreendimentos públicos e privados.
Aplicadas ao projeto inicial de Belo Monte, as normatizações ambientais
geraram mudanças significativas e ousadas. Diminuiu-se a área de alagamento e retirou-
se da lista dos “afogados” as Terras Indígenas e os moradores do trecho de 97 km,
conhecido como Volta Grande do Xingu. Como alternativa, um arranjo complexo de
engenharia composto por estruturas colossais foi projetado, o que incluiu um canal de
derivação (maior que o canal do Panamá) e duas barragens. Com essa alteração, a
captação de energia projetada inicialmente foi significativamente reduzida e tornou-se
estreitamente vinculada ao fluxo natural do rio Xingu. Entretanto, longe de parecer o
fim dos conflitos gerados na região pela construção do complexo, o arranjo atual, gera
outros efeitos, ainda incertos, para a manutenção da vida e da biodiversidade da Volta
Grande do Xingu.
Acompanhando o processo de licenciamento da UHEBM por fontes secundárias,
desde 2011, e com mais proximidade durante a pesquisa de campo, em 2014, foi
possível rastrear conflitos de toda sorte advindos das decisões e dos arranjos
tecnocientíficos realizados por seu empreendedor, a Norte Energia Sociedade Anônima
(NESA).
Dentre os conflitos destacam-se aqueles gerados pelos reassentamentos
compulsórios, engatilhados pelo pagamento de indenizações aquém do esperado pelos
uma caixa-preta, cujos engendramentos são difíceis de resgatar. Assim, Latour (2001) entende que seria
mais interessante observar os agenciamentos, os acordos, as controvérsias enquanto estes ainda estão
sendo negociados. Nesse sentido, quando a LO tornar-se uma caixa-preta seus pormenores, ou seja, as
controvérsias e os acordos que possibilitaram sua existência serão difíceis de perceber.
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proprietários que encontraram dificuldades de comprar terras nas proximidades dos
antigos locais de moradia (devido ao aumento do afluxo populacional e o consequente
sobrepreço da terra); conflitos gerados pela a determinação do local do reassentamento
coletivo destinado aos pescadores e aos indígenas citadinos sem seu consentimento
prévio; embates produzidos pelo atraso de infraestruturas e seu consequente
aparelhamento como escolas, hospitais, creches, estruturas viárias (para atender o afluxo
populacional na região); conflitos relacionados aos impactos da construção sobre o rio
porque atinge a pesca e a manutenção da biodiversidade na Volta Grande do Xingu;
tensões geradas pelo atraso nos planos de compensação firmados com os indígenas da
região, entre muitos outros.
Cada uma dessas situações conflitivas envolvem arranjos e grupos distintos que
possuem dinâmicas próprias. Conflitos e controvérsias possuem a mesma essência
(VENTURINI, 2010). Contudo, no caso das controvérsias tecnocientíficas discutem-se
conhecimentos e práticas não estabilizados pelos grupos em oposição. Para os conflitos
os embates ocorrem em diferentes questões (econômicas, sociais, políticas), porém para
participar das controvérsias, os conflitos (e seus agentes) precisam ser traduzidos para a
gramática tecnocientífica moderna, por meio do agenciamento e interessamento dos
pesquisadores.
As controvérsias, tratadas neste trabalho, estão centralizadas em discussões
tecnocientíficas que serão polarizadas (em cada uma das controvérsias) em programa de
ação (de grupos que trabalham para possibilitar a construção da Usina) e antiprograma
de ação (formado por grupos que se opõe ao programa) (LATOUR, 2011). Na
interpretação de Nunes e Matias (2003) a distinção ontológica entre o programa e
antiprograma revela agendas e demandas opostas, sendo o “antiprograma uma espécie
de revelador das ausências e das exclusões sobre as quais assenta a autoridade
epistêmica e política do programa.” (NUNES; MATIAS, 2003, p. 143).
Destaca-se que essa polarização não reflete distinções engessadas, ao contrário,
os grupos e as associações em oposição variam para cada artefato híbrido (UHEBM,
Hidrograma de Consenso, Cota 100, emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) nos
reservatórios, impactos na pesca) porque resultam de arranjos tecnocientíficos, políticos
e sociais singulares. Logo, as redes ilustram os agenciamentos e interessamentos que
representam mundos distintos. Reforça-se ainda que o foco deste trabalho centra-se nas
controvérsias trabalhadas pelos agentes que se situam nas redes do antiprograma, dado
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que não foi possível observar como a rede do programa articula -internamente- os
agentes e as estratégias para encerrar as controvérsias.
O trabalho ampara-se no tema das controvérsias tecnocientíficas e busca
investigar suas articulações e agenciamentos no decorrer do licenciamento ambiental da
UHEBM. As controvérsias tecnocientíficas trabalhadas são: i) a Emissão de Gás de
Efeito Estufa (GEE) nos reservatórios de usinas hidrelétricas; ii) a altura que o rio
atingirá na cidade de Altamira (Cota 100) e iii) o chamado Hidrograma de Consenso
(acordo realizado entre vários interessados para controlar o fluxo hidrológico do Xingu,
na Volta Grande do Xingu).
A lente latouriana selecionada para analisar o licenciamento ambiental o
considera como um Ator-Rede. Nessa interpretação o licenciamento é considerado uma
extensa rede sociotécnica no qual seus agentes se conectam e podem estabilizar,
direcionar, alterar o curso dos eventos. Destarte, os procedimentos administrativos, a
emissão das licenças ambientais, os impactos e as ações mitigadoras decorrentes da obra
são delimitados pelos agentes que interessam ações no licenciamento. Em suma, o
licenciamento ambiental é considerado um Ponto Obrigatório de Passagem (POP)
(CALLON, 1986) na delimitação da viabilidade ambiental de Belo Monte. Nesse
sentido, durante seu andamento acontecem disputas, controvérsias e agenciamentos de
diversos atores visando o abrandamento dos efeitos nocivos da obra.
Destaca-se que, ao considerar o licenciamento ambiental uma rede mais ampla
de agentes heterogêneos (técnicos, relatórios, planos, licenças e estudos), é possível
mapear aqueles que delimitam os impactos, os que sofrem os impactos e as relações
entre eles (desconexas ou as que possuem “nexo causal”). Em grande medida, as
relações estabelecidas entre os agentes que constituem a rede do licenciamento
dependem pragmaticamente de como o empreendimento é desenhado, como os
impactos são analisados, defendidos e, acima de tudo, aplicados.
Em novembro de 2015, o licenciamento ambiental da UHEBM se direcionou
para a emissão da última e derradeira etapa, a Licença de Operação (LO). Por meio da
emissão desta licença, o rio Xingu terá a permissão para ser barrado. Pressupõe-se,
idealmente, que pelo adiantado da obra (fevereiro, 2016), todas as medidas mitigadoras
estariam igualmente sendo encaminhadas para a conclusão. Entretanto, longe do ideal,
as medidas mitigadoras e os planos ambientais estão em diferentes etapas, alguns em
andamento, outros sequer foram iniciados. Frente a essa situação, as mais variadas
disputas foram geradas entre a população local e a NESA. De um lado, os “atingidos”
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pela Usina lutam por indenizações justas, mitigação dos impactos que vivenciam, sendo
que muitos ainda lutam para se tornarem oficialmente “atingidos” por Belo Monte,
porque mesmo que estejam objetivamente nessa condição, o empreendedor não os
percebe desta forma. De outro, está o empreendedor que busca concretizar a viabilidade
da obra dentro do prazo estipulado pela Agência Nacional de Energia Elétrica
(ANEEL).
Teoriza-se que os problemas sociais na região estão imbricados pelas mais
variadas causas, presentes no licenciamento, que abrangem desde os Estudos de
Impacto Ambiental (EIA), delimitados fragilmente por Termo de Referência (TR),
construídos pelos técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (IBAMA), até estudos tecnocientíficos realizados superficialmente
por empresas de consultoria contratadas pelo empreendedor. Logo, falhas ocorridas
nesses processos iniciais geraria como efeito uma “sucessão de equívocos”, resultando,
por exemplo, em estudos com diagnósticos subdimensionados sobre a população
socioeconomicamente atingida. Este tipo de problema geralmente é denunciado por
movimentos sociais como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e
organizações não governamentais como o Xingu Vivo Para Sempre (XVPS) e o
Instituto Socioambiental (ISA).
O exposto pode ser exemplificado pelo ocorrido em novembro de 2015, quando
o MAB noticiou a exclusão de 400 famílias que moram no bairro Independente II, em
Altamira, da Cota 100 estipulada pela NESA. Essas famílias, além de não estarem
contempladas nos programas de reassentamentos coletivos também foram consideradas
não titulares de direito às indenizações. Em última análise, o empreendedor considerou
que o bairro estava em uma área de risco de inundação, contudo, esse risco poderia ser
controlado pela instalação de bombas que seriam capazes de gerenciar a quantidade de
água no bairro, no período de cheia na região
a única solução apresentada pela empresa para o bairro até o momento
era um projeto de drenagem, o que a presidenta do IBAMA
considerou “arriscado”. “Como engenheira civil, sei da dificuldade
que é para uma prefeitura, especialmente do interior, manter um
sistema como esse, que liga a bomba quando o reservatório enche e
desliga quando esvazia. O IBAMA colocou para a [Agência Nacional
de Águas] (ANA) que não considerava apropriado”, afirmou [a
presidenta do IBAMA, Marilene Ramos]. (Notícia publicada em
05/11/2015 no site do MAB nacional4).
4Disponível em: http://www.mabnacional.org.br/noticia/fam-lias-do-independente2-conquistam-direito-
ao-cadastramento. Acesso em: 15 nov. 2015.
http://www.mabnacional.org.br/noticia/fam-lias-do-independente-2-conquistam-direito-ao-cadastramentohttp://www.mabnacional.org.br/noticia/fam-lias-do-independente-2-conquistam-direito-ao-cadastramento
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É possível perceber que, às vésperas de conquistar a LO (após a primeira
solicitação ter sido negada pelo IBAMA), o empreendedor e o IBAMA ainda
gerenciavam discussões, negociavam os impactos, os respectivos “atingidos” e os
planos mitigatórios para atender suas demandas. Pelo rápido exposto, foi possível
identificar a existência de problemas de cunho normativo, procedimental e
tecnocientífico que proporcionam implicações práticas devastadoras para aqueles que se
encontram na linha de frente deste empreendimento.
Nesse sentido, a justificativa sociopolítica deste trabalho ampara-se na
observância dos arranjos realizados pela rede do antiprograma da Usina, durante o
licenciamento ambiental para tornar “mais visíveis” os sofrimentos impelidos aos
“atingidos” para arcar com os custos da geração energética “limpa” e “sustentável”. Ao
unir o referencial teórico com a empiria, delimitada pelas controvérsias de Belo Monte,
pretende-se ponderar o que está em jogo na disputa pela legitimidade desses
empreendimentos, em um momento em que outras usinas hidrelétricas - de grande porte
- estão em construção, na Amazônia brasileira.
A problemática da tese centra-se em responder: 1) quais agências as
controvérsias tecnocientíficas desempenham no processo de licenciamento ambiental da
UHEBM? 2) quais agenciamentos estão presentes na rede do licenciamento da Usina
que são capazes de provocar alterações significativas nos procedimentos na análise de
viabilidade ambiental de usinas hidrelétricas?
Munida de um recorte bastante específico, me lancei sobre documentos5 e fontes
secundárias de toda sorte para chegar preparada na pesquisa de campo. O resgate dos
eventos foi realizado por meio de documentos, tais como o EIA (2009), o Painel dos
Especialistas (2009), estudos acadêmicos que sustentam as controvérsias e expõem os
impactos na região; reportagens sobre a obra, observação, aplicação de entrevistas,
construção das redes e análise dos dados.
Parte-se de incursões analíticas dos Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia
(ESCT) para problematizar o licenciamento ambiental pela temática das controvérsias
tecnocientíficas. Entende-se que, nesse espaço de pesquisa, há uma possibilidade de
ampliar a participação democrática dos híbridos de natureza e cultura que pode ser
5 Seguir os documentos é parte fundamental da analise das controvérsias. Entende-se que os
pesquisadores podem “"ouvir" e, sobretudo, "dialogar" com os documentos que utilizam em suas
pesquisas, a interlocução é possível se as condições de produção dessas 'vozes' forem tomadas como
objeto de análise — isto é, o fato de os arquivos terem sido constituídos, alimentados e mantidos por
pessoas, grupos sociais e instituições.” (CUNHA, 2004, s/p). A análise de documentos será feita em
conjunto com as entrevistas realizadas durante a pesquisa de campo.
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preenchida pelos questionamentos da socioantropologia da ciência. O licenciamento
ambiental, por sua heterogeneidade de atores, torna-se um campo vasto de pesquisa
podendo ser explorado por inúmeras perspectivas teóricas e metodológicas; e a
UHEBM por sua grandeza e complexidade é delineada pelos pesquisadores como “um
laboratório a céu aberto”, sentença que ouvi algumas vezes durante minha estada em
Altamira.
Para circunscrever associações e práticas imbricadas na justificação do governo
para construir a Usina será preciso seguir o “rastro” dos documentos oficiais e
demonstrar como o projeto foi considerado politicamente aceito. Teoricamente, isto
pressupõe que seja possível identificar os agentes que constroem o conhecimento
objetivado na busca da viabilidade ambiental da Usina, ou seja, como a tecnociência é
utilizada para justificar a importância da UHEBM para a população brasileira.
Certamente este trabalho não preenche todas essas lacunas, até porque o
“campo” empírico não é muito receptivo a “outsiders”, sendo facilitado o fluxo de
informações àqueles que transitam neste mundo composto por técnicos, engenheiros,
pesquisadores-consultores, políticos, entre outros. Por fim, tenta-se demonstrar que ao
fazer emergir contrapontos à construção da obra, sustentados tecnocientificamente, seria
possível pleitear expressões democráticas mais amplas que consigam dar conta de
abranger o “mundo comum” das associações “para expandir a multiplicidade de
mediações” (LATOUR, 2012, p. 369) apropriadas de outras realidades, traduzidas nas
controvérsias levantadas pela rede do antiprograma, ao invés de ignorá-las.
Ao responder problemática do trabalho de tese evidencia-se que as
controvérsias, ao serem ignoradas pelo empreendedor, reforçam as disputas por agência
na região e pressionam o sistema jurídico na busca por alternativas de assistência e
mitigação dos impactos. Nesse sentido, problematiza-se que essas controvérsias não são
capazes de tencionar a relação (já estanque) entre natureza e sociedade arranjadas pela
escolha tecnocientífica (fio d’água). Ademais, a ideia de desenvolvimento sustentável
politicamente aceita pela rede do programa da Usina inviabiliza as agências das
controvérsias frente ao arranjo político de geração energética brasileira, pautada na
dupla sustentação Hidrelétrica e Termelétrica.
Para defender a existência de controvérsias tecnocientíficas e perceber suas
agências no licenciamento ambiental foi preciso estruturar este trabalho de forma que,
em cada capítulo, um objetivo específico fosse contemplado, para ao fim, mobilizar e
sugestionar para o leitor que as disputas existentes em Altamira e região fazem parte dos
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efeitos “sociais” de controvérsias ignoradas pelo empreendedor, e que elas, em grande
parte, seriam atenuadas em uma instância tecnocientífica mais democrática. Assim, este
trabalho está estruturado como segue:
No primeiro capítulo um panorama geral é tecido sobre a história de Belo Monte
buscando resgatar agências importantes para a “transformação” do projeto inicial,
elaborado em plena ditadura militar, de um complexo de usinas para um
Aproveitamento Hidrelétrico. A UHEBM é dividida em três momentos e neles são
resgatados agentes considerados centrais para promover mudanças no andamento da
obra, como a normativa do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), da
Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), a Constituição de 1988, e os direitos
indígenas de consulta em empreendimentos em suas terras. Ao final deste capítulo
denota-se que as controvérsias são acionadas pelos agentes que lutam politicamente, por
meio de estudos tecnocientíficos, para a emergência das controvérsias.
No segundo capítulo o esforço é de apresentar a contribuição teórica para
compreender o que são as controvérsias tecnocientíficas e qual seria o seu lugar na
construção do empreendimento. As controvérsias serão analisadas por meio de um tipo
de sociologia específica (latouriana) que busca problematizar o conhecimento científico
enquanto um saber fluído, construído, situado, dependente de uma rede de sustentação
com elementos heterogêneos. Aqui, problematiza-se a escolha tecnocientífica fio d’água
que tornou possível a construção da UHEBM em moldes “sustentáveis”, gerando um
regime prático de ambiente “fabricado”.
No terceiro capítulo apresenta-se o método utilizado para tratar os dados, os
interlocutores e as questões consideradas por eles relevantes sobre a construção de
barragens amazônicas e, mais especificamente, sobre a UHEBM. Assim sendo, este
capítulo expõe o andamento da pesquisa de campo e os atores que fazem das
controvérsias tecnocientíficas. Três delas ganham centralidade neste trabalho: a
primeira, “a UHEBM vai gerar energia limpa?”; a segunda, “a Volta Grande do Xingu
manterá a biodiversidade com o funcionamento do Hidrograma de Consenso?” e a
terceira, “a cota do reservatório vai operar dentro do esperado?”
No quarto capítulo evidenciam-se as disputas e os arranjos travados entre os
atores engajados na construção da UHEBM, para rebater as controvérsias levantadas
pelos pesquisadores “insubordinados” à NESA e manter legítima a tecnociência
traduzida nos estudos que compõem o licenciamento ambiental da Usina. Aqui, as
cosmopolíticas em confronto são delineadas para cada controvérsia, evidenciando os
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Pontos Obrigatórios de Passagem (POP’s) (CALLON, 1986) para a existência de
assimetrias nas posições contrárias à construção da obra.
O capítulo cinco tem o propósito de responder ao objetivo principal deste
trabalho e demonstrar as agências que as controvérsias mobilizam no licenciamento
ambiental da UHEBM. O eixo analítico é composto pelos efeitos que as controvérsias
geram no licenciamento ambiental. Resulta desta construção que as agências das
controvérsias atuam de forma a proliferar a quantidade de híbridos no licenciamento.
Estes são assistidos na medida em que os técnicos do IBAMA conseguem negociá-los
por meio da inserção de mais condicionantes ambientais à emissão da LO. Reforça-se,
ainda, que as controvérsias, deixadas em suspenso pelo programa de construção da
UHEBM, têm seus objetos de estudo e de crítica “transladados” (LATOUR, 2001) para
os conflitos existentes na região.
Por fim, o capítulo conclusivo deste trabalho pondera sobre as construções para
atingir o fechamento da problemática inicial, tece considerações sobre a escolha do
marco teórico e metodológico e, por fim, aponta possibilidades de novas pesquisas
sobre o tema.
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1 HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS: DO COMPLEXO HIDRELÉTRICO AO
APROVEITAMENTO HIDRELÉTRICO BELO MONTE
Pretende-se neste capítulo fazer emergir fragmentos de histórias contadas sobre
o processo de construção da Usina através de fontes secundárias acessadas em
documentos sobre sua construção, confeccionados pelo setor elétrico e, também, nas
histórias relatadas por Organizações Não Governamentais (ONG’s) da região, como o
Xingu Vivo Para Sempre (XVPS) e o Instituto Socioambiental (ISA). Acessou-se
também obras organizadas por pesquisadores da região como a coletânea de artigos
reunidos em Switkes e Sevá (2005), Magalhães e Hernandez (2009) para chegar a um
ponto essencial deste capítulo: realizar um panorama geral dos eventos históricos, dos
acoplamentos e dos reencaixes que foram arranjados para retirar o Aproveitamento
Hidrelétrico Belo Monte (AHEBM)6 do planejamento e conceber sua construção.
A noção de história empregada aqui é não cumulativa e não linear. Ressalta-se
que é possível analisar o tempo passado por meio das redes por meio dos rastros
deixados por documentos e artefatos7. Aqui, o direito a historicidade é estendido aos
objetos naturais. Uma pedra, um monumento, uma mega construção têm histórias
porque são formados por elementos que foram arranjados em uma trajetória que fizeram
esses objetos existirem. Assim,“cada um dos actantes possui uma assinatura única no
espaço desdobrado por esta trajetória” (LATOUR, 1994, p.85). Assim, a história pode
ser resgatada por elementos estabilizados nas redes dos acontecimentos e como efeito,
esse resgate revela como foram arranjados agentes humanos e não-humanos, e como
eles foram essenciais para a estabilização dos eventos. Portanto, pelo resgate histórico é
possível compreender também como são construídas estratégias para gerar e encerrar as
controvérsias da Usina.
6 Importa diferenciar duas nomenclaturas para descrever o empreendimento Belo Monte. A primeira é a
nomenclatura técnica: Aproveitamento Ambiental Belo Monte (AHEBM) que reforça uma posição
marcada pelo desenvolvimento sustentável, no sentido apreendido pelos empreendedores da obra (esse
ponto será mais bem trabalhado no capítulo 2). A segunda nomenclatura é Usina Hidrelétrica Belo Monte
(UHEBM) e indica o que de fato será o empreendimento (sem os “jargões” da sustentabilidade), ou seja,
uma usina hidrelétrica geradora de efeitos (positivos e negativos) similares em magnitude e incertezas a
outras UHE’s já existentes na região amazônica. Neste trabalho a partir deste momento optou-se por
abandonar a nomenclatura técnica, esta somente será acionada por meio da fala dos agentes durante as
entrevistas quando foi citada. Nesse sentido, para falar de Belo Monte adota-se apenas a nomenclatura
UHEBM. 7 Artefato tecnológico é um conceito utilizado por Latour (2001) para delinear um quase-objeto, um
híbrido de natureza e cultura que é formado por redes sociotécnicas. Quando isento de controvérsias ela
transforma-se em uma caixa preta (LATOUR, 2001). Artefatos técnicos são considerados aqui como a
“linha de frente de uma controvérsia entre programas e antiprogramas.” (LATOUR, 2001, p. 354).
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O resgate histórico permite identificar os mediadores da tradução politicamente
aceita de natureza e sociedade que envolve o processo de viabilidade ambiental da
UHEBM: “não há nenhum outro meio de compor o mundo comum, sabemos bem, do
que o recompondo, do que retomando desde o início o movimento de composição.”
(LATOUR, 2011, s/p). Logo, o movimento de composição da rede da UHEBM será
delineado por documentos advindos de fontes diversas e por meio da fala dos
pesquisados (na medida em que os fatos históricos aparecem). O ponto inicial do
resgate será o ano de 1975, ano que foi produzido o inventário do potencial energético
do rio Xingu. Destarte, será possível acompanhar, ao logo deste capítulo, as
modificações do projeto e da sociedade brasileira atentando para os processos que
culminaram no arranjo tecnocientífico que alterou o projeto de um “complexo
hidrelétrico” para um “aproveitamento hidrelétrico”.
No período que foi realizada a pesquisa de campo um questionamento, dentre
outros, era mais inquietante: como se poderia começar a escrever um trabalho que
mostrasse a complexidade dos acontecimentos que estavam sendo presenciados? Como
contar uma história cheia de detalhes, difícil de organizar em uma linha tempo/espaço e
de situar seus agentes em momentos específicos, conectados aos seus contextos?
Pareceu fundamental situar, então, a Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHEBM) ao
contexto Amazônico, seus personagens, dilemas e lutas frente aos diferentes projetos
desenvolvimentistas, dentre os quais os hidrelétricos inseridos na região, ao longo das
décadas de 1970 a 1990, período em que a UHEBM foi concebida e também alterada.
Assim, este capítulo está organizado de forma a contemplar primeiramente o que
é legalmente aceito nos termos de licenciamento ambiental. Essa apresentação serve de
base para contestar a agência dos artefatos que são considerados “resquícios da ditadura
militar” nos projetos desenvolvidos na Amazônia, como a suspensão de segurança e a
forma de relacionar ambiente e “desenvolvimento”, com a supressão do primeiro em
relação ao segundo, na justificativa de construir usinas hidrelétricas. Após, abrevia-se a
história da UHEBM em três fases distintas8 e complementares para facilitar a
apresentação do planejamento do setor elétrico e das mudanças legais, sociais, políticas,
8 Switkes e Sevá (2005) rememoram a historiografia da Usina e consideram que o projeto foi vencido
duas vezes. A primeira fez que a obra fosse barrada pela forte oposição dos povos indígenas de
ambientalistas e movimentos sociais, culminando no “Encontro dos Povos Indígenas em Altamira” em
fevereiro de 1989. A segunda tentativa “fracassada” do setor elétrico se deu pelo embargo do Estudo de
Impacto Ambiental da obra, em 2002 (SWITKES; SEVÁ, 2005). A terceira fase figura o momento atual
da Usina, foco deste trabalho. Nesse sentido, a separou-se didaticamente a apresentação da Usina em três
fases, sendo essa metodologia amparada nessa primeira distinção espaço/temporal realizada pelos autores
supracitados.
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ambientais, bem como as alterações no planejamento do empreendimento. Esse resgate
é essencial para avançar na leitura deste trabalho, dado que nos próximos capítulos
serão apresentadas as controvérsias que estão imbricadas ao processo histórico.
1.1 LICENCIAMENTO AMBIENTAL E PRÁTICAS INSTITUCIONALIZADAS
O licenciamento ambiental, juntamente com o EIA/RIMA, são instrumentos9
que constituem a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Essa, por sua vez, foi
instituída pela Lei Federal n° 6.938, de 31 de agosto de 1981, e de acordo com o artigo
2º tem como objetivo:
preservação, melhoria e recuperação a qualidade ambiental propícia
à vida, visando assegurar, no país, condições ao desenvolvimento
sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e a proteção da
dignidade da vida humana. (Grifos acrescidos).
As palavras em destaque evidenciam que o tripé formado: proteção ambiental,
desenvolvimento econômico e desenvolvimento social materializam a noção de
desenvolvimento sustentável10
tal qual proposta pela Comissão Brundtland. Esta, por
sua vez, apresenta em 1987 um relatório intitulado “Nosso Futuro Comum”, -
encomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nele é postulado que: “A
humanidade é capaz de tornar o desenvolvimento sustentável - de garantir que ele
9 Os instrumentos da PNMA estão delineadas no Art. 9º da lei nº 6.938 de 31 de Agosto de 1981: “I - o
estabelecimento de padrões de qualidade ambiental; II - o zoneamento ambiental; (regulamento); III - a
avaliação de impactos ambientais; IV - o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou
potencialmente poluidoras; V - os incentivos à produção e instalação de equipamentos e a criação ou
absorção de tecnologia, voltados para a melhoria da qualidade ambiental; VI - a criação de espaços
territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público federal, estadual e municipal, tais como áreas de
proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e RESERVAS extrativistas (redação realizada pela
Lei nº 7.804, de 1989); VII - o sistema nacional de informações sobre o meio ambiente; VIII - o Cadastro
Técnico Federal de Atividades e Instrumento de Defesa Ambiental; IX - as penalidades disciplinares ou
compensatórias ao não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção da degradação
ambiental; X - a instituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente, a ser divulgado anualmente
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA; (incluído pela Lei
nº 7.804, de 1989); XI - a garantia da prestação de informações relativas ao Meio Ambiente, obrigando-se
o Poder Público a produzi-las, quando inexistentes; (Incluído pela Lei nº 7.804, de 1989); XII - o
Cadastro Técnico Federal de atividades potencialmente poluidoras e/ou utilizadoras dos recursos
ambientais. (incluído pela Lei nº 7.804, de 1989); XIII - instrumentos econômicos, como concessão
florestal, servidão ambiental, seguro ambiental e outros. (incluído pela Lei nº 11.284, de 2006)”. 10
A ideia de desenvolvimento sustentável inicialmente foi trabalhada na conferência de Estocolmo como
o conceito de "ecodesenvolvimento" por Maurice Strong (MONTIBELLER-FILHO 1993). Esse conceito
critica de forma macro estrutural, o reducionismo econômico das análises sociais e naturais e essa
característica é reforçada nas incursões teóricas da sociologia ambiental de Ignacy Sachs (1994; 2007).
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atenda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras
atenderem também às suas.” (BRUNDLANDT, 1991, p. 9).
A noção da sustentabilidade apresentada foi enriquecida por meio de acordos
internacionais iniciados na década de 1970, como Estocolmo (1972), Cúpula da Terra
(1992), Rio +20 (2012), abrangendo temas amplos que envolvem as mudanças
climáticas em encontros como a Conferência das Partes (COP), iniciadas em 1995.
Esses encontros movimentam pesquisadores de toda sorte para promover debates e
buscar saídas para os efeitos do crescimento econômico no ambiente por meio da
normatização de indicadores, programas de ações, incentivos financeiros e tecnológicos.
Importa ressaltar que esses encontros internacionais forneceram a materialização da
sustentabilidade nas associações e ações práticas, ou seja, em normatizações legais ao
redor do mundo11
(SÁNCHEZ, 2013). No Brasil, os preceitos da sustentabilidade estão
presentes nos pressupostos da PNMA, nas normatizações posteriores e complementares,
como as resoluções do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e também
na Carta Constitucional brasileira de 1988 (FIORILLO, 2013).
Contudo, antes das normatizações ambientais no Brasil serem firmadas, acordos
financeiros com bancos internacionais (Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) e o Banco Internacional para a Reconstrução do Desenvolvimento (BIRD))
limitavam timidamente os excessos aos danos ambientais exigindo estudos de impacto
para realizar empréstimos financeiros (CÂMARA, 2013). Essas limitações são
consideradas as precursoras das avaliações de impactos ambientais no Brasil (BASSO;
VERDUM, 2002). Essa prática era comum12
na época em que a PNMA não estava
instituída e unificada nacionalmente (SÁNCHEZ, 2013), o que só veio a acontecer em
1986, por meio do reforço político e econômico presente em suas estruturas13
.
11
Diversos países na década de 1970 começam a normatizar o uso de seus recursos naturais, como:
Estados Unidos, 1970; Colômbia em 1974; Filipinas, 1978; China, 1979; Brasil, 1981; México, 1982; ver
lista completa em (SÀNCHEZ, 2013, p. 60) 12
Para exemplificar essa questão tem-se o caso da Usina Hidrelétrica de Balbina que teve seu projeto
inicial alterado pela negativa da transposição do rio Umbu pelo financiador externo pela existência de
uma área de conflito que a hidrelétrica instaurava com os indígenas da região. 13 O artigo 6º da PNMA instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA). O primeiro órgão na hierarquia é o Conselho de Governo, cuja função é a de assessorar o Presidente da República nas
diretrizes e políticas de governo no que tange aos recursos ambientais; o segundo é o Conselho Nacional
do Meio Ambiente (CONAMA), o órgão consultivo e deliberativo responsável por formular as diretrizes
para aplicação da Lei. Após, seguem os órgãos executivos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais e Renováveis (IBAMA) e também o Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, com a finalidade de executar e fazer executar a política e as
diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente. Compõem esse quadro também os órgãos
seccionais (estaduais) e os órgãos municipais (Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente).
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As resoluções do CONAMA, como a 001/86, normatizam a noção de impacto e
as etapas necessárias para a construção dos EIA’s/RIMA’s. Em consonância com essa
resolução, há também a de número 006/87 do mesmo órgão que prevê, em seu artigo 4º,
obrigatoriedade de licenciamento ambiental na instalação de usinas hidrelétricas, na
forma de etapas de Licença Prévia (LP), a Licença de Instalação (LI), e a Licença de
Operação (LO).
Na hipótese dos empreendimentos de aproveitamento hidroelétrico,
respeitadas as peculiaridades de cada caso, a Licença Prévia (LP)
deverá ser requerida no início do estudo de viabilidade da usina; a
Licença de Instalação (LI) deverá ser obtida antes da realização da
Licitação para construção do empreendimento e a Licença de
Operação (LO) deverá ser obtida antes do fechamento da barragem.
Mais tarde, em 1997, a resolução CONAMA nº 237/97 regulamenta aspectos do
licenciamento ambiental enquanto um instrumento de gestão ambiental voltado ao
“desenvolvimento sustentável e melhoria contínua” de consolidação do licenciamento
nacionalmente integrado, delegando as competências municipais, estaduais e nacionais
na regulação das licenças ambientais. Nessa regulamentação, o IBAMA é o órgão
executor da PNMA e o responsável por analisar a viabilidade ambiental de
empreendimentos em esfera federal14
, por meio do licenciamento ambiental.
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é uma ferramenta da PNMA (Lei Federal
n° 6.938 de 31 de agosto de 198115
) e está inserido em um processo mais amplo de
Avaliação de Impactos Ambientais (AIA). Mundialmente, a institucionalização de
medidas ambientais e a adoção de categorias e indicadores para analisar
sistematicamente os impactos ambientais ocorreram através da lei federal denominada:
National Environment Policy Act (NEPA), promulgada no dia 1º de janeiro de 1970,
nos Estados Unidos. Esse dispositivo, segundo Corrêa (2006), exigiu que os
empreendimentos geradores de impactos sobre o ambiente fossem estudados,
previamente identificados, para que medidas compensatórias fossem tomadas para
atenuar os impactos negativos dos mesmos.
Sob a influência do NEPA, organismos internacionais como a Organização das
Nações Unidas (ONU), o BID e o BIRD, passaram a exigir em seus programas de
cooperação econômica o cumprimento dos estudos de avaliação de impacto ambiental,
14
Pela existência desta regulação foi possível barrar a primeira tentativa de licenciar Belo Monte, iniciado
erroneamente pelo órgão estadual do Pará, a SEMA, fato que foi objeto da primeira ACP mobilizada pelo
MPF e única julgada em favor do MPF e que gerou a extinção de um EIA/RIMA em vias de construção.
15 Esta lei foi alterada pela Lei nº 7804 de 18 de julho de 1989.
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estes, por sua vez, eram baseados nos emergentes paradigmas da sustentabilidade
(SACHS, 2007) e do princípio da precaução, amparados na declaração de Wingspread
(1998)16
.
Os processos burocráticos que envolvem o licenciamento ambiental são
pautados em procedimentos normatizados pela PNMA. Essa política busca
compatibilizar o desenvolvimento social e econômico com a preservação da qualidade
do ambiente regulando e mediando as atividades empresariais públicas e privadas que
geram impactos no lugar que será instalado. O artigo 6º da PNMA (Lei nº 6.938/81)
formula o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) brasileiro que é
constituído pelo Conselho Superior do Meio Ambiente (CSMA), o órgão superior da
política ambiental; pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), o órgão
consultivo deliberativo; o Instituto Brasileiro do Meio ambiente e dos Recursos Naturais
e Renováveis (IBAMA), que é o órgão executivo central; órgãos seccionais (estaduais),
e municipais (secretarias).
Contudo, ressalta-se que algumas etapas fundamentais para a construção de
usinas hidrelétricas são antecedentes às do licenciamento ambiental. Elas são formadas
pelo setor elétrico, que possui normatizações próprias para figurar os conteúdos dos
documentos que normatiza17
. Logo, para cumprir todas as etapas estipuladas pela
legislação, a usina já deve estar inventariada, ou seja, planejada pelo setor energético.
Isso não é feito aleatoriamente, como indica o atlas de energia elétrica do Brasil:
As principais variáveis utilizadas na classificação de uma usina hidrelétrica
são: altura da queda d’água, vazão, capacidade ou potência instalada, tipo de
turbina empregada, localização, tipo de barragem e reservatório. Todos são
fatores interdependentes. Assim, a altura da queda d’água e a vazão
dependem do local de construção e determinarão qual será a capacidade
instalada - que, por sua vez, determina o tipo de turbina, barragem e
reservatório. (ANAEEL, 2008, p.53).
Os fatores interdependentes, como o tipo de projeto e o local escolhido, estão
postos desde o período do inventariado que é feito dos rios brasileiros. Nesse sentido, as
obrigatoriedades de cuidado com o manejo ambiental estão fadadas à negociação
perante o projeto estabelecido a priori.
16
O princípio da Precaução baseia-se na ineficácia das ações governamentais, corporações, comunidades,
cientistas na prevenção dos danos ambientais causados pela ação humana. Nesse sentido, as medidas de
precaução devem ser tomadas mesmo se a ciência ainda não consegue estabelecer vinculo de causa e
efeito sobre o evento e os danos declaração sobre o Princípio da Precaução (1998). A questão central
desses paradigmas é manter o país crescendo economicamente, mas protegendo os recursos naturais
(água, solo, ar) para as gerações futuras do planeta. 17
Para mais detalhes sobre as etapas essenciais para construção de hidrelétricas ver FACURI, M. F. A,
2004.
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Assim, na Figura 1, percebe-se que há uma gama de procedimentos que
ultrapassam as competências concernentes apenas ao licenciamento ambiental, expostas
na terceira linha, como a realização dos estudos de inventário de bacias, estudos de
viabilidade hídrica, o projeto executivo (expostos na segunda linha) que são de
competências do setor elétrico (MME), de competência, portanto, Agência Nacional de
Energia Elétrica (ANEEL), Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
Figura 1: Etapas de planejamento para construção de Usinas Hidrelétricas. Fonte: ELETROBRÁS, 2010, s/p.
Reforça-se pelo exposto que o licenciamento ambiental possui interdependências
com documentos provenientes de outras autarquias governamentais presentes no MMA
e MME. Portanto, o diálogo interministerial é estritamente importante para o andamento
do licenciamento exatamente porque diversos órgãos governamentais (ANA, ANEEL,
EPE, FUNAI, IPHAN) afetam diretamente a fluidez dos procedimentos porque
possuem o papel de traduzir acontecimentos na região. Ao longo deste trabalho as
conexões entre o IBAMA e as demais autarquias governamentais serão ressaltadas e
problematizadas juntamente com o andamento dos procedimentos que permitem a
viabilidade ambiental da Usina.
1.2 “HERANÇA” DOS EMPREENDIMENTOS DESENVOLVIMENTISTAS À
ÉPOCA DA DITADURA MILITAR NO SETOR HIDROENERGÉTICO (BALBINA
E TUCURUÍ I) E SEUS “RESPINGOS” EM BELO MONTE
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Antes de mapearmos a história da Usina é preciso expor a relação entre o
desenvolvimentismo preconizado na década de 1970, bem como seus mecanismos para
relacionar sociedade, economia e natureza. O objetivo é perceber as formas de pensar e
materializar empreendimentos e dispositivos legais na época da ditadura militar. Essa
questão foi percebida durante a pesquisa de campo, dado que algumas ferramentas
legais preconizadas nesta época, como a suspensão de segurança, estão sendo acionadas
com frequência para manter a obra em construção. Há ainda resquícios conservadores
no que tange o imbricamento entre a concepção de ambiente e seu papel na geração de
energia durante as disputas entorno da construção da UHEBM.
Quando cheguei a Altamira, comecei a pesquisar sobre as mudanças que a
UHEBM estava produzindo na cidade. Saltou aos olhos a quantidade de ônibus
(segundo dados do IBGE em 2010 a frota era de 61 ônibus e em 2014, 57018
) do
Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM) que trafegavam várias vezes por dia e em
alta velocidade, a quantidade de obras de infraestrutura ainda em construção (hospital,
postos de saúde, prédios novos no campus da UFPA, e as de saneamento), de
“barrageiros” - trabalhadores que seguem as oportunidades de trabalho ofertadas para
atuar na construção de uma barragem -, de carros (4 x 4) com os mais diferentes
logotipos de empresas de consultoria vindas de todo o canto do Brasil.
O estudo oficial estimou que, até 2019, cerca de 20 mil trabalhadores serão
atraídos para Altamira e região (ELETROBRÁS, 2009). A estimativa do IBGE é de que
atualmente 108.38219
pessoas residam em Altamira. Contudo, as obras que fazem parte
das condicionantes ambientais da UHEBM estavam (em março de 2014) ainda em vias
de construção. Em 2015, ainda havia diversas denúncias, que foram compiladas e
expostas em um dossiê “Belo Monte não há condições para a Licença de Operação”
(ISA, 2015). Nesta compilação indica-se que as infraestruturas da região carecem de
mais reforços para suportar as alterações e que as condicionantes ambientais, quando
não estão descumpridas, encontram-se atrasadas. De modo geral, com base no discurso
da empresa empreendedora Norte Energia Sociedade Anônima (NESA), o
desenvolvimento na região, está relacionado, hoje, com a geração de emprego (durante
a fase de construção da usina), renda (por meio dos royalties destinados aos municípios
18
Houve um aumento na frota geral de veículos: em 2010, início das obras a frota era de 23.985, em 2014
esse número dobrou 49.022 (IBGE, 2014). Dados disponíveis no site do IBGE:
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=150060&idtema=139&search=para|altamira|f
rota-2014. Acesso em: 26 set. 2015. 19
Em 2010, o número de residentes era de 99.075.
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=150060&idtema=139&search=para|altamira|frota-2014http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=150060&idtema=139&search=para|altamira|frota-2014
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afetados pela obra) e pelo fortalecimento das infraestruturas sociais com a finalização da
construção de hospitais, escolas, estruturas viárias, sistema de esgoto, entre outros.
Altamira foi, na década de 1970, considerada o maior município em extensão
territorial do mundo, cuja biodiversidade, exuberâncias Amazônicas, somadas à
dificuldade do IBAMA mapear e fiscalizar todo o território (devido ao
acompanhamento tardio de imagens por satélite, pouca disponibilidade de profissionais
para dar conta de inspecionar as mudanças no desmatamento da região) gerou toda sorte
de “abusos” ambientais. Logo, a região possui forte presença de madeireiros,
garimpeiros e sofre também com a especulação de barrageiros que exploram o ambiente
promovendo o desmatamento - dentre outros impactos - porque atraem pessoas para a
região, sendo que o afluxo populacional tem sido “fortemente associado ao crescimento
da área desmatada na Amazônia” (BARRETO et al., 2011, p. 13).
O primeiro ousado acesso viário da região foi a rodovia Transamazônica,
planejada para viabilizar o alcance terrestre a áreas antes inacessíveis. Ela foi iniciada
no governo militar sob o mandato do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974),
em 1970 e apenas 40 anos depois, no ano de 2013, ela começa a ser asfaltada no trecho
que abrange a região entre Marabá e Altamira para facilitar o escoamento das máquinas
para a construção da usina (OXINGU, 201320
).
20
Disponível em: http://www.oxingu.com/noticia/1646/especial-transamazonica-asfalto-deixa-de-ser-
sonho.html. Acesso em: 10 dez. 2015.
http://www.oxingu.com/noticia/1646/especial-transamazonica-asfalto-deixa-de-ser-sonho.htmlhttp://www.oxingu.com/noticia/1646/especial-transamazonica-asfalto-deixa-de-ser-sonho.html
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Figura 2: Altamira e a Transamazônica
Fonte: Mano (2013). Disponível em: http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=31717 Acesso em: 10 jul. 2014.
A Figura 2, retratada em 1970, captura a cena da solenidade de “inauguração”
das obras da Transamazônica em que uma castanheira, de proporções Amazônicas, foi
derrubada para marcar o início do evento. Uma placa foi fixada no que restou da árvore,
com os dizeres: "Nesta margem do rio Xingu, em plena selva amazônica, o Sr.
Presidente da República deu início à construção da Transamazônica, numa arrancada
histórica pela conquista e colonização deste gigantesco mundo verde” (MANO, 2013).
Os desafios da época de sua construção se mantêm atuais.
As tentativas de finalização da Transamazônica são recorrentes, o asfalto,
quando existe, em partes da rodovia, sofre avarias com as chuvas, buracos gerando
atoleiros. Os impactos e externalidades deixados pela Transamazônica, arquitetados e
consolidados na ditadura militar brasileira21
, são similares aos impactos dos
empreendimentos hidrelétricos de Tucuruí I (PA), que ainda carrega o titulo de maior
usina hidrelétrica inteiramente situada no território brasileiro, e de Balbina (AM).
21
Ao falar de ditadura militar me refiro aos acontecimentos no período histórico de 1964-1985. No
entanto, entende-se a ditadura militar como uma sucessão de eventos que culminaram nos fatos que dela
recorreram, como a limitação da participação democrática e de liberdade de expressão , a geração de
desenvolvimento econômico sem considerar as limitações sociais e ambientais. Vamos tomar esses fatos
e esse período histórico como “caixas-pretas” (LATOUR, 2001), pois não há tempo hábil, neste trabalho,
para reabri-los e explicá-los em suas nuances.
http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=31717
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Como indica a citação acima, nessa época, os projetos desenvolvimentistas
estavam conectados com o desmatamento na região Amazônica porque esta, na visão da
política do governo, precisava ceder espaço às atividades econômicas como a
exploração de minérios, extração de floresta para monoculturas de soja e para a criação
de gado. Este o processo de exploração econômica, cultura, política, da Amazônia
brasileira é considerada como a “colonização” dos espaços ociosos na região
(BARRETO et al., 2011).
As usinas de Balbina e Tucuruí I são até hoje consideradas “maus exemplos” de
barragens brasileiras e são citadas como empreendimentos “desastrosos” do ponto de
vista ambiental e social. Balbina é reconhecidamente promotora do maior desastre
ambiental gerado e projetado pelo nosso setor energético. Para formar seu reservatório
foi necessário inundar uma área de 2.360 km². Essa área é um pouco menor que a
alagada para formar o reservatório da usina Tucuruí I (2.430 km²). O problema é que
Balbina gera apenas 250 MW, muito menos que os 4.000 MW dessa última
(FEARNSIDE, 2015). Ambas as usinas foram finalizadas na década de 1980, antes da
obrigatoriedade de analisar e mitigar os impactos ambientais, e em comum, elas
compartilham os excessos cometidos sobre o ambiente em que se instalaram.
Sobre o imbricamento entre projetos hidrelétricos e o “desenvolvimento” pela
geração de infraestruturas (sistema de esgoto, hospitais, escolas) torna-se elucidativa a
experiência dividida por um dos engenheiros do Consórcio Construtor Belo Monte
(CCBM) que havia acompanhado a construção da Usina de Balbina, durante uma
entrevista que aconteceu no período que estive em campo (e será apresentada no
capítulo 3). A Usina Balbina e sua relação com o rio Alalaú (AM) ocuparam uma parte
importante da entrevista e trago esse caso por d