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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
A polêmica historiográfica como um espaço de embate teórico e político: o caso de Jacob
Gorender, Sidney Chalhoub e Sílvia Lara
Carlos Fernando de Quadros
Porto Alegre
2011
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
A polêmica historiográfica como um espaço de embate teórico e político: o caso de
Jacob Gorender, Sidney Chalhoub e Sílvia Lara
Carlos Fernando de Quadros
Monografia apresentada junto ao curso de Graduação em
História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para a obtenção do título de
Licenciado em História.
Orientadora: Profª. Drª. Sílvia Regina Ferraz Petersen.
Porto Alegre
2011
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Carlos Fernando de Quadros
A polêmica historiográfica como um espaço de embate teórico e político: o caso de
Jacob Gorender, Sidney Chalhoub e Sílvia Lara
Monografia apresentada ao curso de Graduação em
História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Licenciado em História.
Orientadora: Profª. Drª. Sílvia Regina Ferraz Petersen.
COMISSÃO EXAMINADORA
___________________________________________________
Sílvia Regina Ferraz Petersen – (Orientadora) – UFRGS
___________________________________________________
Benito Bisso Schmidt – UFRGS
___________________________________________________
Regina Célia de Lima Xavier – UFRGS
Porto Alegre, 2011.
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço, antes de tudo, aos meus pais. Sem seus esforços e apoio (de todo o
tipo), certamente não estaria aqui agora.
À professora Sílvia Petersen, minha orientadora tanto neste TCC quanto na
minha bolsa de iniciação científica. Aprendi com ela a importância do rigor e dedicação
nos estudos, bem como da necessidade que o historiador tem de romper com a visão
aparente. Suas indicações bibliográficas, orientação cuidadosa e sua justa cobrança –
bem como as suas dicas de formatação de textos – em muito me enriqueceram,
mostrando-me o exemplo de profissional em História que um dia almejo ser. Meu muito
obrigado!
Aos membros da banca: o professor Benito Schmidt, que com seu rigor,
seriedade e cobrança muito contribuiu na execução deste trabalho, quando fui seu aluno.
À professora Regina Xavier, de quem não fui aluno (infelizmente), mas que gentilmente
ajudou com importantes dados que me ajudaram a pensar e produzir esta pesquisa.
Aos meus colegas de curso, com quem “muitas experiências partilhei”, das aulas
e deveres acadêmicos aos momentos de festividade, recreação e lazer resultantes de tal
relação. Citarei nominalmente dois que muito contribuíram na minha trajetória: Marcelo
Kochenborger Scarparo, dos primeiros colegas com quem conversei, entre as
divergências teóricas (já não tão existentes quanto antes) e as convergências musicais,
tenho a certeza de que muito aprendi em seu convívio, no qual pude desfrutar de debates
sempre produtivos; Eduardo Holderle Peruzzo, dos últimos colegas de que me
aproximei e criei forte amizade, entre as convergências teóricas e as divergências
musicais, percebi um legítimo combatente pela História, companheiro para discussões
de nível sempre elevado, orientado intelectualmente pelo que de melhor há no
conhecimento histórico, sempre apto a defender nossa amada (e importante) ciência de
toda sorte de ataques e descasos.
À Graziele Corso, que sempre foi ótima companhia para momentos de diversão
e bastante paciente com todas as peculiaridades pessoais minhas decorrentes da
conclusão de uma graduação.
Àqueles e aquelas que não foram citados (porém não esquecidos, apenas vítimas
da “economia de espaço”), e certamente ajudaram na execução deste TCC e na
formação deste historiador.
4
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................................5
1. O acontecido e seu conhecimento: algumas questões sobre as mediações que
ocorrem na produção do conhecimento histórico.......................................................10
1.1 A mediação do historiador na produção do conhecimento histórico........................11
1.2 Condicionantes sócio-político-culturais, vontades e escolhas dos historiadores: as
mudanças temáticas e teóricas do conhecimento histórico como fenômenos sociais.....14
2. Os historiadores, o contexto sócio-político e os enfoques teóricos mediadores da
produção do conhecimento: a polêmica interpretativa sobre a escravidão brasileira
envolvendo Jacob Gorender, Sidney Chalhoub e Silvia
Lara.......................................................................................................................... .......20
2.1 Os sujeitos que escrevem a história: Jacob Gorender, Silvia Lara e Sidney
Chalhoub..........................................................................................................................20
2.2. Lugares de combate: os debates no Partido Comunista e as vivências no ambiente
acadêmico........................................................................................................................34
2.3 Tempos de combate: o Centenário da Abolição........................................................43
2.4 A polêmica em seu contexto histórico e teórico: confronto nas páginas da Folha de
São Paulo.........................................................................................................................48
2.5 Alguns comentaristas do debate................................................................................56
Considerações Finais.......................................................................................................60
Bibliografia......................................................................................................................66
Anexo A...........................................................................................................................71
Anexo B….......................................................................................................................73
Anexo C...........................................................................................................................74
5
INTRODUÇÃO
Hoje, quando falamos de conhecimento histórico, quase automaticamente fica
entendido que este é construído e deve estar baseado em evidências, que está em
permanente transformação, pois que entre o acontecido e seu conhecimento coloca-se a
mediação do historiador, suas perguntas, suas escolhas.
Dentro dessa premissa geral, também é necessário pensar que os historiadores
têm a peculiar característica de ter por objeto a própria sociedade de que fazem parte.
Assim, a história dos historiadores é um elemento fundamental para entendermos o
conhecimento que produzem. Eles se movem em um contexto espacial e temporal
concreto, com condicionantes sócio-políticos, culturais, ideológicos e disputas por
poder, ao mesmo tempo em que possuem vontade, fazem escolhas, assumem posições e
produzem juízos de valor. A inserção do historiador em sua sociedade implica
considerar uma serie de desdobramentos, como os possíveis usos políticos deste
conhecimento e a própria questão do engajamento, tomada de partido e ideologia do
historiador. Da mesma forma, nos alerta para lembrar que as mudanças da problemática
histórica e a transição de um espaço teórico a outro são fenômenos da órbita do
processo social e não abstrações de um pensamento autônomo, apartado da sociedade
em que se desenvolve; dos lugares que seu autor ocupa e dos mecanismos de
disseminação e apropriação desse conhecimento.
Os eixos acima destacados estão na base do Trabalho de Conclusão de Curso que
a seguir será apresentado.
Para este trabalho, que tem por objetivo examinar alguns aspectos referentes às
transformações na produção do conhecimento histórico, tomamos como objeto um caso
que consideramos poder exemplificar as questões acima colocadas: um debate referente
à escravidão no Brasil, surgido dentro dos quadros da produção historiográfica
brasileira. Este debate que adquiriu grandes proporções e, por vezes versado em
linguagem violenta, tornou-se até mesmo uma polêmica travada nas páginas de um
jornal de São Paulo e deixou marcas significativas no conhecimento histórico posterior.
Referimo-nos à divergência interpretativa entre o jornalista e historiador
autodidata Jacob Gorender, de um lado, e os historiadores professores e pesquisadores
da UNICAMP Sidney Chalhoub e Sílvia Hunold Lara de outro, a qual, dizendo
resumidamente, tratava do caráter violento ou não da escravidão no Brasil.
6
A ideia de um “exercício de pesquisa” que possui o TCC e as próprias
limitações de um pesquisador iniciante para desenvolver uma proposta como esta
também justificam os recortes e delimitações (inclusive quanto aos três autores centrais)
que foram efetuados nesta problemática, que possui tantos desdobramentos teóricos e
empíricos. Sempre que parecer necessário, o texto trará alguma explicação ao leitor
nesse sentido, especialmente indicando recortes que foram assumidos.
O que justifica estudar tal tema? Por que o recorte nos três autores citados? Qual
a sua importância? Argumentaremos sobre a relevância do tema que foi matéria da
divergência que constituiu nosso estudo de caso, o trabalho escravo no Brasil.
O regime de trabalho escravista foi chave na economia e sociedade brasileira por
um período de mais de três séculos e são destacáveis as consequências políticas,
econômicas, sociais e culturais ainda presentes do mesmo. Dada a importância e
complexidade de tal temática, o interesse que a historiografia nacional - e internacional
também (bons exemplos disso são os historiadores brasilianistas que estudam tal tema,
com nomes como Robert Slenes e Stuart Schwartz) - dedicou à escravidão tem sido
ímpar1. Sendo um tema que tanto interesse suscita na historiografia sobre o Brasil, não é
de causar surpresa a um leitor atento o surgimento de debates acalorados em seu redor.
Partindo do pressuposto de que nenhum conhecimento está livre da influência de
sua época e das demandas particulares desta, são destacáveis as disputas de poder
implícitas no combate sobre a interpretação “correta” do trabalho escravo brasileiro.
Assim, a questão que sintetiza o conteúdo da polêmica, ou seja, se há ou não um caráter
violento no “escravismo colonial”, aparentemente neutra, carrega variados sentidos se
interpretada no contexto em que foi formulada, os quais, sinteticamente, enunciaríamos
assim (cientes da complexidade da questão): em nível nacional, um quadro de mudanças
na política, cultura e sociedade, com o fim da ditadura que desde 1964 se impusera
sobre o país, bem como a data das “comemorações” do Centenário da Abolição, em
1988; no âmbito internacional, o colapso soviético e a necessidade das esquerdas
repensarem suas interpretações sobre as perspectivas políticas para o Brasil.
De acordo com a própria Sílvia Lara, os trabalhos clássicos sobre escravidão –
dentre os quais citamos a produção da chamada Escola Sociológica da USP -
1 Destacamos aqui os mais conhecidos estudos dos autores citados: SCHWARTZ, Stuart B. Segredos
internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras,
1988; SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
7
influenciaram muito a produção acadêmica nas Ciências Humanas, bem como a
formação de militantes negros, em forte atividade nas proximidades do centésimo treze
de maio.
Emblemático de tal época também é o artigo de Francis Fukuyama, de nome “O
fim da História”, lançado em 1989 (tornado livro depois, no ano de 1992), grande sinal
de um avanço neoconservador, junto de um retrocesso das esquerdas.
A desconformidade de Jacob Gorender com as conclusões dos novos estudos
sobre a escravidão no Brasil, que rompiam com os trabalhos de perspectiva totalizante,
de grandes recortes espaciais e temporais e baseados em explicações da ordem das
determinações estruturais explica-se, em grande parte, em tal contexto de “ameaça às
utopias”, o que é também matéria de publicações de vários autores marxistas da época,
críticos do “assalto pós-moderno”2.
Não é uma controvérsia inocente essa sobre a qual propomos o estudo, sendo um
testemunho importante sobre a época em que foi produzida, bem como exercendo
influência no que se produziu depois, justificando assim uma análise mais detida desta
matéria.
Por outro lado, também justifica a escolha desse tema a importância que tem
para o trabalho do historiador a compreensão das questões da produção do
conhecimento histórico e, neste caso, as transformações que ele experimenta ao longo
do tempo e à luz das circunstâncias históricas do momento em que é produzido e da
mediação do próprio historiador.
A escolha de uma polêmica como tema pode, através das situações que ela
confronta, colocar com mais visibilidade e ajudar a entender os mecanismos que estão
presentes nas transformações que a historiografia experimenta ao longo do tempo.
E precisamos insistir, portanto, que essa monografia não tem a menor pretensão
de adentrar na historiografia sobre a escravidão no Brasil, o que estaria muito além de
nossas possibilidades, mas mais modestamente, fazer um exercício de análise sobre
questões que se colocam entre o historiador e o conhecimento que ele produz, tomando
esta polêmica como um objeto que permite tal análise.
Da mesma forma, as controvérsias historiográficas como a que será aqui
examinada, também colocam em pauta a permanente questão do valor de verdade das
2 Por exemplo, CARDOSO, Ciro. Ensaios racionalistas: filosofia, ciências naturais e história. Rio de
Janeiro: Campus, 1988 e ZAIDAN FILHO. Michel. A crise da razão histórica. Campinas, Papirus,
1989.
8
diferentes versões do conhecimento histórico, embora tão pouco pretenda abordar aqui
esta questão e sim as referidas mediações da produção do conhecimento.
Quanto à sua estrutura expositiva, o texto contemplará dois capítulos, agora
detalhados.
No primeiro capítulo nossa análise se deterá nas mediações que ocorrem na
produção do conhecimento histórico, como o papel exercido pelo historiador e,
principalmente, a sua inserção social e relação com variadas demandas, o que possui
uma influência considerável no que pesquisa e escreve.
No segundo capítulo o foco é no debate, e posterior polêmica, entre Jacob
Gorender, Sidney Chalhoub e Sílvia Lara. Estudaremos alguns aspectos do contexto em
que os três autores pesquisaram e escreveram, examinando que forma a História que
produzem se relaciona com as instituições em que se inserem, com as demandas sociais
relativas à matéria histórica, refletindo assim sobre como os historiadores (e as
modificações no pensamento histórico) relacionam-se com a totalidade social de que
fazem parte.
* * * * *
Este trabalho, como seu tema e problema indicam, utilizará exclusivamente
fontes bibliográficas, indicadas no decorrer da exposição e na seção da Bibliografia,
tanto aquelas que discutem as questões teóricas que são referências de análise, como
algumas obras dos historiadores acima citados além de matérias jornalísticas da Folha
de São Paulo que divulgam a polêmica e algumas obras referentes ao que já se produziu
sobre esta divergência historiográfica, mais ampla que os limites das matérias
jornalisticas que são aqui nosso objeto de análise.
Adiantamos para o leitor algumas das obras que orientaram o desenvolvimento
desta pesquisa. No primeiro capítulo, utilizamos principalmente textos como os de
Edward Thompson “La miseria de la teoria”, Eric Hobsbawm “Sobre História” e
Edward Carr “Que é história?”. Nos livros citados podemos encontrar algumas férteis
contribuições para pensar as relações entre o conhecimento produzido e as várias
mediações que ocorrem nesse processo, bem como apontar algumas as questões
decorrentes disto.
Já no segundo capítulo deste trabalho são recorrentes algumas obras dos autores
9
polemistas aqui em foco: Jacob Gorender (“O escravismo colonial” e “A escravidão
reabilitada”), Sidney Chalhoub (“Trabalho, lar e botequim” e “Visões da liberdade”) e
Sílvia Lara (“Campos da violência”). Através destes escritos foi possível delinear as
linhas centrais do debate referente ao caráter da escravidão brasileira, bem como obter
indícios das condições que marcaram a emergência de mudanças na forma de pesquisar,
pensar e escrever a História.
Também foram utilizados livros, artigos e entrevistas que nos ajudaram a
contextualizar os autores em pauta tais como: Mario Maestri, O escravismo colonial: a
revolução copernicana de Jacob Gorender. IN: Cadernos IHU Unisinos; José Vinci de
Moraes e José Marcio Rego. Conversas com historiadores brasileiros;. Uma vida de
teoria e práxis (uma entrevista com Jacob Gorender). IN: Revista Arrabaldes entre
outros que serão mencionados no texto. Agradecemos à Profª. Regina Xavier ter
oferecido o acesso à entrevista fílmica com Silvia Lara, inédita, que lhe foi cedida
durante o 5º Encontro Liberdade e Escravidão no Brasil Meridional (P. Alegre, 12 de
maio de 2011).
10
CAPITULO I
O ACONTECIDO E SEU CONHECIMENTO: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE
AS MEDIAÇÕES QUE OCORREM NA PRODUÇÂO DO CONHECIMENTO
HISTÓRICO
O que fabrica o historiador quando escreve a História? Esta questão foi
enunciada pelo pensador francês Michel de Certeau no seu livro “A escrita da História”,
publicado em 19753. A partir da mesma, podemos pensar o objeto deste estudo, qual
seja, a polêmica interpretativa entre Jacob Gorender, Sílvia Lara e Sidney Chalhoub.
Ambos os autores dedicam-se a escrever sobre o mesmo aspecto do passado: o
fenômeno do trabalho escravo no Brasil. Porém, os resultados impressos em suas
narrativas são bastante divergentes. O que pode explicar isto?
Como indicamos na Introdução, a escolha de uma controvérsia historiográfica
como objeto deste TCC decorre de que, através das situações que ela confronta, o
estudo pode contribuir para o entendimento de algumas das circunstâncias em que se
produz o conhecimento histórico e das transformações que a historiografia experimenta
ao longo do tempo.
Assim, neste capítulo pretendemos examinar duas destas circunstâncias, que em
todo o caso estão interligadas: o fato de que o conhecimento histórico é produzido com
a mediação de um historiador (embora outros sujeitos possas produzi-lo, não é esse o
caso que nos interessa) e que este é um sujeito histórico, ou seja, está envolvido e às
vezes de forma muito ativa, pelas questões da sociedade em que vive. Assim, o
conhecimento histórico é sempre provisório e incompleto e as mudanças da
problemática histórica e de suas teorias tem que ser entendidas como fatos sociais.
Vamos a seguir examinar este tema, pois a ele estão ligadas transformações e
diferentes versões que o conhecimento histórico experimenta e que sempre produzem
interrogações sobre seu valor de verdade.
3 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1975.
11
1.1 O CONHECIMENTO HISTÓRICO É PRODUZIDO ATRAVÉS DA MEDIAÇÃO
DE UM HISTORIADOR
Daniel Aarão Reis Filho propõe um interessante questionamento para iniciarmos
esta reflexão referente à mediação do historiador:
O senso comum, ainda hoje, acredita que a história é a procura da
verdade objetiva, única. Mas o que fazer quando aparecem diferentes
versões, como se a verdade tivesse não um rosto, mas uma sucessão de
máscaras, alternadas, alternativas?4
No mesmo sentido, interroga Adam Schaff:
Se apesar dos métodos e das técnicas de investigação aperfeiçoadas, os
historiadores não só julgam e interpretam as mesmas questões e os
mesmos acontecimentos em termos diferentes, mas ainda selecionam e
até mesmo percebem e apresentam diferentemente os fatos, será possível
que esses historiadores façam simplesmente uma propaganda camuflada
em lugar de praticar a ciência? […] Se, por outro lado, o elemento
subjetivo no conhecimento histórico é atualmente tão evidente que só
podem negá-lo os guardiões do museu positivista, no momento em que o
reconhecem os historiadores que atingiram o nível da ciência moderna,
isto não invalidará o postulado da objetividade do conhecimento
científico e, por conseguinte, o caráter científico da história?5
Na conhecida fórmula de Ranke de que ao historiador cabe apenas descrever as
coisas “tal como aconteceram” ou de Heródoto, de que ele deve “contar o que
aconteceu”, o historiador é visto como um receptor passivo, alguém que se apaga diante
dos acontecimentos. Mas desde muito tempo o reconhecimento do papel ativo do
historiador na construção do conhecimento relegou a concepção de Heródoto e de
Ranke ao campo das concepções precursoras da nossa disciplina.
A seguinte citação de Edward Carr expressa, com uma metáfora, esta concepção:
Não, na verdade os fatos não se assemelham aos peixes expostos na
banca do comerciante. Assemelham-se aos peixes que nadam no oceano
imenso e às vezes inacessíveis; o que o historiador apanhará depende em
4 REIS FILHO, Daniel Aarão e outros. Versões e ficções: o sequestro da História. S.Paulo: Editora
Perseu Abramo, 1997. p. 101 . 5 SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
12
parte do acaso, mas sobretudo da região do oceano que tiver escolhido
para sua pesca e da isca que se serve. Estes três fatores são,
evidentemente determinados pelo tipo de peixe que propõe apanhar Em
geral, o historiador obterá o tipo de fatos que deseja encontrar.6
Enfim, hoje a maioria dos historiadores admite que o fato histórico é uma
construção do historiador e este, como um ser humano, está imerso em
condicionamentos sociais, culturais, políticos, ideológicos, psicológicos, todos eles
localizados em um tempo e um espaço concretos.
Acreditamos que as palavras de Antoine Prost servem como boa síntese: “Não
existem fatos, nem história, sem um questionamento; neste caso, na construção da
história, as questões ocupam uma posição decisiva”7. É em função do problema
proposto que se constrói o objeto de estudo, pois, para a sua resposta que é feito um
recorte em um campo ilimitado de fontes possíveis.
As próprias fontes históricas, bastante caras aos historiadores, existem em
função das questões colocadas por estes. É através das perguntas colocadas que um
vestígio qualquer é dotado do estatuto de documento ou fonte. Apenas pela mediação do
historiador que o vivido torna-se conhecimento.
Se aceitamos a clássica sugestão de Jacques Le Goff de que devemos tratar
nossos documentos como monumentos8, um caminho fundamental para o estudioso da
historiografia é pôr em debate o papel que a subjetividade do historiador exerce nos seus
textos.
José Amado Mendes, historiador português, em artigo com o título “Produtor e
produção histórica: a inevitável cumplicidade” propõe um problema que se relaciona
fortemente com a reflexão que empreendemos neste capítulo. Citamos:
[...] tendo-se chegado à conclusão – hoje geralmente aceita – de que o
6 CARR, Edward H. Que é história. São Paulo: Paz e Terra, 1978. p. 24. 7 PROST, Antoine. As questões do historiador. IN: Doze lições sobre a história. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008. p. 75. 8 Le Goff em seu texto “Documento/monumento”, publicado na Enciclopédia Einaudi e posteriormente
no seu livro “História e memória”, comenta os sentidos que adquirem as expressões monumento,
como algo produzido com alguma intencionalidade, e documento, este neutro, livre de pré
concepções. O autor, contudo, discorda de tal definição de documento, atentando para as intenções
presentes na produção do mesmo, ou seja, foi algo produzido com algum intento, legar ao futuro uma
imagem construída socialmente. Sua sugestão para os historiadores é a de tratar seus documentos
como monumentos, ou seja, estudá-los tendo em vista as condições em que surgiram (foram
produzidos) e por que surgiram de tal modo. Cf: LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. IN:
História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. pp. 525-541.
13
historiador é um elemento fulcral, não só do fazer História como da
própria obra historiográfica, justificar-se-á que aquele continue a ser, em
certa medida, um “desconhecido”, não só para o público em geral como
para os próprios investigadores? 9
Somos sensíveis à provocação de Mendes: sendo reconhecida a inevitável
presença subjetiva na produção do conhecimento, torna-se necessário para o
pesquisador conhecer quem produz as fontes que são seu objeto de estudo, neste caso,
Jacob Gorender, Sidney Chalhoub e Silvia Hunold Lara, que serão matéria do capítulo
seguinte.
Estudar os historiadores é algo que, segundo Amado Mendes, se relaciona com o
que Lucien Febvre chamou, em 1941 de “grande drama da relatividade” e que hoje se
amplia com a dúvida sobre as certezas e ciências por um lado e com a maior atenção ao
papel da subjetividade no conhecimento, por outro. O conhecimento histórico não passa
incólume, e nesse sentido, ganha importância o exame da função fundamental do
historiador na construção do conhecimento histórico, o qual inexiste sem a intervenção
humana (a “inevitável cumplicidade” enunciada no título do artigo de Mendes). Por
meio das perguntas que coloca às suas fontes, dos recortes feitos em seu objeto, dos
referenciais com que dialoga e se apropria (bem como seus interesses pessoais,
trajetória de vida, inserção social), o historiador imprime sua marca subjetiva em seu
trabalho, sendo importante conhecê-lo para uma apreensão mais completa do tema em
estudo.
Sobre a mediação que a própria história do historiador representa no
conhecimento que ele produz, Eric Hobsbawm dá um exemplo bem conhecido no seu
artigo “Não basta a história de identidade”10
, quando examina como as vivências de
diferentes historiadores e eventuais envolvimentos pessoais tendem a influir nas suas
apreciações desses acontecimentos. O historiador exemplifica, no citado artigo, através
do caso de uma conferência internacional, realizada em uma aldeia italiana, sobre os
massacres dos alemães na Segunda Guerra Mundial. E encontramos aí aqueles
historiadores para os quais os massacres eram matéria de interesse estritamente ético,
outros, cuja própria historia estava diretamente ligada aos massacres, fossem eles
historiadores alemães que desconheciam aquilo que seus pais ou avós haviam ou
9 MENDES, José Amado. Produtor e produção histórica: a inevitável cumplicidade. Estudos Ibero-
Americanos. PUCRS, v. XXV, n.1, p. 259-274, junho 1999. p. 261 10 HOBSBAWM, Eric. Não basta a história de identidade. IN: Sobre História. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998. pp. 281-292.
14
poderiam ter feito, ou italianos, descendentes dos que sofreram o massacre.
Também Edward Thompson oferece uma reflexão sobre isto:
Cada idade, ou cada praticante, pode fazer novas perguntas à evidência
histórica, ou pode trazer a luz novos níveis de evidência. Nesse sentido, a
“história” (quando examinada como produto da investigação histórica) se
modificará, e deve modificar-se, com as preocupações de cada geração
ou, pode acontecer de cada sexo, cada nação, cada classe social. Mas isso
não significa absolutamente que os próprios acontecimentos passados se
modifiquem a cada investigador, ou que a evidência seja indeterminada.
As discordâncias entre os historiadores podem ser de muitos tipos, mas
continuarão sendo meros intercâmbios de atitude, ou exercícios de
ideologia, se não se admitir que são conduzidas dentro de uma disciplina
comum que visa ao conhecimento objetivo.11
Mas além de reconhecer a inquestionável mediação do historiador entre o
acontecido e o conhecimento do acontecido, esta questão se desdobra em outra, a qual
abordaremos a seguir.
1.2 CONDICIONANTES SÓCIO-POLÍTICOS E CULTURAIS, VONTADES E
ESCOLHAS DOS HISTORIADORES: AS MUDANÇAS TEMÁTICAS E TEÓRICAS
DO CONHECIMENTO HISTÓRICO COMO FENÔMENOS SOCIAIS.
A inserção do historiador na sua sociedade implica considerar as questões dos
usos políticos do conhecimento que produz, do engajamento, da tomada de partido e
ideologia por parte do historiador. Da mesma forma, como já dissemos isto nos alerta
para lembrar que as mudanças da problemática histórica e a transição de um espaço
teórico a outro são fenômenos da órbita do processo social e não abstrações de um
pensamento autônomo, apartado da sociedade em que se desenvolve, dos lugares que
seu autor ocupa, dos mecanismos de sua disseminação e recepção.
Passaremos então a desenvolver um pouco estas questões.
Carlos Fico e Ronald Polito, em sua obra conjunta “A História no Brasil (1980-
1989): elementos para uma avaliação historiográfica”12
, definem o termo historiografia
11 THOMPSON, Edward. La miseria de la teoria. Barcelona:, Grijalbo, 1981. 12 FICO, Carlos & POLITO, Ronald. A história no Brasil (1980-1989) elementos para uma avaliação
historiográfica. Ouro Preto: Editora UFOP, 1992.
15
de uma forma bastante próxima do fenômeno que aqui estudamos, por isso citamos:
Buscamos, portanto, uma análise historiográfica tendo em vista as
vicissitudes da dinâmica econômica, política e social e cultural do Brasil
no período em pauta. Afinal, todos esses aspectos de alguma maneira
condicionam a atuação do historiador e, consequentemente, a produção
do conhecimento histórico. É assim que diversos quadros conjunturais
tiveram que ser levados em conta para a análise do movimento
historiográfico, como a dinâmica editorial, a criação de revistas, o
montante de verbas para pesquisa, os eventos realizados, as instituições
criadas, as linhas de pesquisa privilegiadas pelas pós-graduações, as
efemérides comemoradas no período e as modas teóricas. Dispensável
notar que nos preocupamos também com a abordagem das relações e dos
desdobramentos internos à própria história da historiografia, cumprindo
este que também é um encaminhamento típico dos textos na área, ainda
que não com as mesmas implicações teóricas.13
Para pensar esta questão também é útil o seguinte destaque de Ernildo Stein:
Não apenas nosso grau de conhecimento é limitado no que se refere à
tradição que nos persegue, mas o clima espiritual que nos envolve
seleciona os nossos juizos e os determina a cada momento. O próprio
passado que julgamos dá seu colorido aos nossos juizos. Estamos
envoltos nas cargas da tradição quando interpretamos a tradição. A
história como passado pesa sobre nós mesmo quando julgamos atingí-la
com absoluta isenção. 14
O autor observa que esta “carga da história” limita a objetividade total e impede
um juizo neutro a cada momento, mas valoriza este fato: ter consciência da ação da
história sobre nós é uma das formas de reconhecer nossos limites na produção do
conhecimento histórico e aprofundar nossa consciência crítica.
A mesma linha de entendimento encontramos no texto “Propostas de esquerda
para um novo Brasil: o ideário socialista do pós-guerra”, capítulo integrante do
segundo volume da coleção “As esquerdas no Brasil”, organizada por Jorge Ferreira e
Daniel Aarão Reis15
. O autor do escrito em questão, Alexandre Hecker, na página 23 de
seu texto, busca expor aos leitores aquilo que chama de “suas principais dificuldades
metodológicas”, causadas pelo tema ao qual se dedica, o socialismo, que como se sabe,
13 Idem, pp. 18-19. 14 STEIN, Ernildo. História e ideologia..Porto Alegre, Movimento, 1981. p. 27. 15 HECKER, Alexandre. Propostas de esquerda para um novo Brasil: o ideário socialista do pós-guerra.
IN: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil: nacionalismo e reformismo
radical (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp. 21-52.
16
é um assunto atravessado por múltiplos significados:
O pesquisador do passado não tem como fugir da influência do presente
sobre suas escolhas e preferências. O historiador, do remoto ou do
recente, ele próprio uma criatura histórica, ambiciona a técnica da
objetividade, da imparcialidade, sabendo-se incapaz dessa liberdade
absoluta. No caso do historiador da política do tempo presente, o
problema se exacerba, pois parece estar ainda mais exposto a tramas e
embaraços que o envolvem. Mas todas as injunções em que se vê
colocado podem ser também incentivos ao seu trabalho, já que a
ambiguidade que lhe é própria se apresenta, ao mesmo tempo, como
limite e propulsão. Fazer história pode parecer fácil, mas não é.
Tal reflexão foi escrita como introdução ao texto. Nos apropriamos de seu
“parecer teórico-metodológico” pois julgamos que neste estudo (ousamos afirmar: em
qualquer estudo histórico) os cuidados autorais devem ser os mesmos. Hecker tem como
objeto o ideário socialista no Brasil, algo importante para a sua época, um tema nada
inocente. Nosso objeto é diverso, porém não menos desprovido de um sentido político:
uma polêmica ocorrida na historiografia brasileira, durante o final da década de 1980 e
o início da de 1990, referente a uma relação de poder, a escravidão neste mesmo país.
Não fazemos história do tempo presente, contudo temos atenção ao fato de que todos os
atores envolvidos ainda estão vivos, alguns são profissionais atuantes em suas áreas.
Suas produções possuem larga influência no conhecimento histórico que hoje se estuda,
pesquisa e produz, como será exposto em momento posterior deste trabalho.
Com ciência de nosso possível envolvimento em “tramas e embaraços”, como
exposto acima, também nos sentimos motivados pelas limitações próprias de discutir
um objeto tão sensível em nosso meio. Tratar de um tema que possui influência bastante
explícita na historiografia brasileira atual nos é caro: por mais comprometido que esteja
com questões presentes, a perspectiva de melhor entender a gestação do atual “estado da
arte” nos é forte incentivo. Certamente escrever História não é fácil, porém sem dúvida
é instigante!
Os autores de que trataremos aqui também sofreram a influência de seu tempo
em suas pesquisas e escrita. No segundo capítulo teremos a oportunidade de discutir em
quais espaços se inserem e como as questões que colocam às fontes históricas são
influenciadas pela época em que vivem.
Mas neste momento do trabalho nos cabe refletir, mesmo que de forma muito
17
breve, sobre as influências do contexto social e temporal na produção historiográfica e
como os historiadores lidam com tais dimensão de seu ofício.
Josep Fontana, em seu livro “A história dos homens”16
, discute o que chama de
“guerras da história” rivalidades entre as interpretações do passado, em geral focadas
em processos chaves na definição de épocas históricas, como as controvérsias sobre a
Revolução Francesa. Acreditamos que a conclusão de seu estudo é de grande ajuda para
a compreensão dos traços que percebemos nas fontes consultadas:
O que mostram os exemplos de 'guerras da história', escolhidos entre
muitos outros que poderiam ter sido examinados, é que os debates a que
se referem têm pouco a ver com a ciência e muito com o contexto
político e social em que se movem os historiadores.17
Tal citação é bastante semelhante ao que o historiador catalão afirma em uma
obra anterior: “História: análise do passado e projeto social”18
. Preocupado em
pesquisar as formas com que narrativas sobre o passado - da Antiguidade ao mundo
contemporâneo - legitimaram poderes instituídos e carregaram em seu bojo projetos de
sociedade, Fontana produz as duas obras citadas. Estudar e discutir as relações entre a
historiografia e o contexto em que esta é produzida está em nossas preocupações
centrais para o trabalho aqui apresentado e as ideias de Josep Fontana serão um bom
auxílio em nosso diálogo com as fontes, pois percebemos, nos debates sobre a
escravidão, a presença das demandas políticas e sociais (de sua época) na produção de
cada autor. Segue outro trecho do mesmo historiador, no qual sintetiza como entender a
presença conjuntural na historiografia:
Toda visão global da História constitui uma genealogia do presente.
Seleciona e ordena os fatos do passado de forma que conduzam em sua
sequência até dar conta da configuração do presente, quase sempre com o
fim, consciente ou não, de justificá-la.19
Também embora pareça óbvio que as interpretações históricas (pelas mesmas
razões das simultâneas “inserção social” e “vontade” dos historiadores) incluam juízos
16 FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. 17 FONTANA, Josep. Idem. p. 379. 18 FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru: EDUSC, 1998. 19 Idem, p. 9.
18
de valor e o peso de ideologias, é uma posição ingênua pensar que seja possível evitá-
los para preservar uma suposta pureza ou neutralidade científica. Como observa Carlos
Pereyra, “pensar assim exibe incompreensão sobre quais são os modos em que intervém
a ideologia na produção de conhecimentos.”20
Em se tratando dos juízos de valor que o historiador formula, é muito
esclarecedora uma passagem da “Miseria de la teoria”, de Thompson, que embora um
tanto longa, tentaremos sintetizar a seguir:
[o conhecimento do] passado sempre foi, entre outras coisas o resultado de
um raciocínio valorativo. Ao recuperar este processo [...] devemos, até
onde a disciplina permita, manter nossos próprios valores em suspenso.
Mas uma vez recuperada esta história, ficamos em liberdade para expressar
nossos juízos sobre ela. Tais juízos devem estar, por sua vez, sob controles
históricos. O juízo deve ser adequado aos materiais. É absurdo lamentar
que a burguesia não tenha sido comunitária [...] O que podemos fazer é
identificar-nos com certos valores defendidos por atores do passado e
rechaçar outros.[...] Nosso voto não mudará nada. E não obstante, em outro
sentido, pode mudar tudo. Porque estamos dizendo que estes valores e não
outros, que fazem com que esta história tenha sentido para nós e que são
estes valores que tratamos de estender e apoiar em nosso presente.21
E para concluir estes breves comentários sobre os efeitos da simultânea
“inserção social” e “vontade” dos historiadores no conhecimento que produzem,
encontramos em Eric Hobsbawm algumas pistas para a questão do engajamento do
historiador, quando em seu texto Engajamento ele discute o stalinismo e o tipo de
posicionamento de intelectuais que assumem o compromisso político acima de sua
responsabilidade científica:
O que se pode chamar de engajamento stalinista está excluido do discurso
científico. Se os estudiosos e cientistas acreditam que seu compromisso
político exige que submetam sua ciência a seu compromisso [...] deveria
admiti-lo ao menos para si mesmos. É muito menos perigoso para a ciência e
para uma análise política cientificamente fundamentada saber que se está
praticando supressão da verdade ou mesmo sugestão de falsidade, que
convencer a que as mentiras são, em certo sentido complexo, verdade.
20 PEREYRA, Carlos e outros. História, para que? México: Siglo XXI, 1982. p. 28. Sobre a relação da
ideologia com o conhecimento e com os sujeitos sociais numa determinada sociedade, ver:
ESCOBAR, Carlos. Ciência da história e ideologia. Rio de Janeiro, Graal, 1979. p. 67-80. 21 THOMPSON, Edward. La lógica de la história. IN: Miséria de la teoria. Barcelona:, Grijalbo, 1981.p.
72-73.
19
E mais adiante Hobsbawm acrescenta:
Uma zona nebulosa entre a atividade científica e a proposição política que
talvez afete mais os historiadores é a “advocacia política” ou seja, tomar
como dado o caso a ser defendido[...] Em resumo, ao contrário da ciência
(por mais engajada que seja) a advocacia toma como um dado o caso a ser
defendido.22
* * * * *
Todas as questões que aqui abordamos envolvem outra, que tem desafiado os
historiadores ao longo do tempo: o caráter objetivo e/ou subjetivo do conhecimento
histórico produzido e suas condições de verdade, o que nos levaria outras discussões,
entre as quais a do próprio estatuto científico do conhecimento histórico.
Francisco Falcon expressa certa concepção sobre o que constitui a história e o
historiador. Ele reconhece como importantes a percepção da pluralidade de passados
que o historiador recompõe e os elementos de subjetividade que o discurso histórico
incorpora. Mas acrescenta:
O decisivo, porém, é que não se perca de vista a capacidade deste
discurso de dizer algo verdadeiro a respeito de uma realidade passada que
constitui seu referente extra-discursivo. Logo, por mais que se pretenda o
inverso, o historiador não é nem pode ser um autor de ficção, pois não é
livre para inventar, imaginar e interpretar: o exercício de suas faculdades
criativas está limitado pelas evidências documentais disponíveis no seu
próprio tempo e lugar. É a partir de protocolos de verdade que se
identificam, em derradeira instância, a história e o historiador como
tais.23
Mas deliberadamente não vamos tratar dela, pois consideramos que extrapolaria
nossas possibilidades não só de tempo e espaço deste TCC, como nos remeteria a outra
problemática, cuja envergadura não nos dispomos enfrentar nesse momento.
Vamos, sim, retomar agora nosso objetivo de pesquisa, que é analisar as
mediações que envolvem a produção do conhecimento histórico em um caso concreto, o
confronto interpretativo sobre a escravidão, envolvendo Jacob Gorender, Sidney
Chalhoub e Silvia Lara.
22 HOBSBAWM, Eric. Engajamento. IN: Sobre História. S. Paulo: Cia das Letras, 1998. pp. 145-146. 23 FALCON, Francisco. Apresentação. IN: BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. Passados
recompostos. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/ Editora da FGV, 1998. p. 18.
20
CAPÍTULO II
OS HISTORIADORES, O CONTEXTO SÓCIO-POLITICO E OS ENFOQUES
TEÓRICOS MEDIADORES DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO: A
POLÊMICA INTERPRETATIVA SOBRE A ESCRAVIDÃO BRASILEIRA
ENVOLVENDO JACOB GORENDER, SIDNEY CHALHOUB E SILVIA LARA.
Considerando o que antes foi apresentado sobre as condições sócio-politicas e as
tendências teóricas como mediadoras do trabalho do historiador na produção do
conhecimento histórico, esse capítulo vai tratar dos sujeitos historiadores envolvidos na
disputa interpretativa sobre a escravidão no Brasil a partir de suas circunstâncias: quem
são, de que lugares falam, em que conjuntura teórica e sócio-política escrevem suas
obras, com quais referenciais dialogam. Para tanto ele será dividido em alguns tópicos,
visando uma melhor clareza expositiva.
2.1 OS SUJEITOS QUE ESCREVEM A HISTÓRIA: JACOB GORENDER, SÍLVIA
LARA E SIDNEY CHALHOUB
Iniciaremos a exposição por Jacob Gorender, representante de “um dos lados” da
disputa, militante comunista e autor de importantes ensaios que muitas discussões
renderam entre os estudiosos do fenômeno escravista brasileiro. Para introduzirmos a
sua trajetória, será utilizado como bibliografia um artigo de Mário Maestri24
em que o
autor pretende produzir algo semelhante a uma “biografia intelectual” de Gorender e
duas entrevistas suas, sendo uma realizada pela Revista Arrabaldes25
, no ano de 1988, a
outra foi concedida pelo autor a Ana Paula Goulart e Angélica Muller dentro do projeto
“Memória do movimento estudantil”, em 200526
.
Vamos, então, conhecer um pouco Jacob Gorender e as condições sócio políticas
24 MAESTRI, Mário. O escravismo colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender. A gênese, o
reconhecimento, a delegitimação. IN: Cadernos IHU Unisinos. Ano 3, Nº 13, 2005. pp. 4 – 42. 25 GORENDER, Jacob. Uma vida de teoria e práxis (uma entrevista com Jacob Gorender). IN: Revista
Arrabaldes. Ano I, nº 2, set./dez. 1988. 26 GORENDER, Jacob. Entrevista para o “Projeto Memória do Movimento Estudantil”, na data de
15/06/2005. Realizada por Ana Paula Goulart e Angélica Mülller. Revisão de Tatiana Rezende. IN:
www.mme.org.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocummentID={422E
59FF-661B--4E65-BA59-1C31D99F9595}&ServiceInstUID={350441AD-EA8E-4CBD-9419-
87E1E7F85FCA} Acesso em: 24/10/2011 às 01:05.
21
e concepções de história que estão mediando suas obras.
Nasceu em Salvador, no ano de 1923, filho de imigrantes judeus e socialistas.
Estudou na Faculdade de Direito de sua localidade natal (porém não concluiu sua
formação universitária), militando na União de Estudantes da Bahia, entidade em que
conheceu pessoas que influenciaram o seu ingresso no Partido Comunista Brasileiro
(PCB). Segundo o próprio:
Eu me tornei membro do Partido Comunista, pois tinha simpatias pelo
comunismo – é claro – sem saber, sem ter conhecimentos teóricos,
porque os livros marxistas só circulavam clandestinamente, eram
proibidos no Brasil. Mas me tornei membro do Partido Comunista em
1942. Fui recrutado – como se dizia àquela altura – por Mário Alves, um
grande companheiro que faleceu torturado no quartel da Polícia do
Exército do Rio de Janeiro […] devido à torturas que ele foi submetido...
isso já depois do golpe de 1964, não me lembro em que ano exatamente
foi, acho que foi em 1968 ou 1969. Mas foi ele quem me introduziu no
Partido Comunista, em 1942. Éramos estudantes, ele estudava Ciências
Sociais e eu Direito.27
Participa de batalhas da Segunda Guerra Mundial, como soldado, na Itália, lugar
em que conhece militantes italianos do Partido Comunista Italiano, ligados a Josef
Stalin, então chefe de Estado na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Seu interesse por política possui plena relação com sua participação na guerra, como
podemos perceber através deste depoimento seu:
Como é que me interessei pela política? Isso foi uma coisa irrigada,
sobretudo, nos anos 30. Nasci em 1923 e, por volta de 1935, com meus
12 anos, já entendia das coisas da política. E havia uma preocupação
muito grande entre os judeus com o crescimento do anti-semitismo.
Hitler já estava no poder na Alemanha e as notícias sobre as perseguições
anti-semitas na Alemanha e em outros países da Europa chegavam a
Salvador.28
Sobrevivente da guerra, Gorender retorna ao Brasil para lutar através da via
política, ligado aos quadros do PCB, o qual vivia uma época de tensão, oscilando na sua
situação de ilegalidade. O comunista passa a atuar educando militantes pelo “Curso
Stalin”, espaço de formação marxista, bem como através da redação de jornais também
destinados especificamente a leitores comunistas, dentre os quais podemos citar “A
27 Idem, p. 3. 28 Idem, p. 1.
22
Classe Operária” e “Imprensa Popular”, ambos editados no Rio de Janeiro e com
circulação nacional29
.
Posteriormente, no ano de 1955, Jacob Gorender teve a oportunidade de estudar
na URSS, na formação de quadros do Partido Comunista da União Soviética (PCUS),
próximo a Moscou. Sua jornada de estudos não dura muito, pois, em 1956, Nikita
Kruschev divulga seu relato sobre os excessos ditatoriais durante o governo de Stálin, o
que lança muitos abalos sobre o movimento comunista, e apressa o retorno dos
brasileiros à sua terra natal. Quais os efeitos da tensão comunista posterior ao relatório
de Kruschev? No caso brasileiro houve a redação e publicação da “Declaração de
Março”, em que temos a presença de Gorender como um dos redatores30
. Em tal escrito
observa-se uma mudança nas orientações partidárias, com a proposta de aliança ao setor
chamado de “burguesia progressista e nacional”. O poder seria conquistado, segundo a
Declaração, através de uma via pacífica e democrática, o que conforme Maestri, é a:
[...] materialização no Brasil da nova orientação da burocracia soviética
de franca coexistência pacífica. O caráter da revolução brasileira, dizia o
documento, era antiimperialista e antifeudal, nacional e democrático.31
Como intelectual, Jacob Gorender passa a atuar para além das páginas dos
jornais revolucionários, publicando ensaios sociológicos e traduzindo obras marxistas
oriundas de autores soviéticos. Já em 1960, no PCB então reorientado para uma política
reformista, o autor ocupa o cargo de membro pleno do Comitê Central, no V Congresso
do partido. Sua então importante função nos quadros do PCB não lhe garante
hegemonia no mesmo, o qual se encontra em crise após o Golpe de 1964, quando há
uma divisão interna no partido entre uma oposição de esquerda (o grupo ao qual Jacob
Gorender encontra-se ligado) e um grupo ligado às ideias e propostas de Luís Carlos
Prestes (famoso revolucionário brasileiro, responsável pela chamada Intentona
Comunista, na década de 1930), vencedor na batalha pelo controle partidário.
Gorender, expulso do PCB junto de seus camaradas ideológicos da oposição de
esquerda, participa da fundação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário
29 Cf. TORRES, Juliana Dela. A gravura como recurso visual na imprensa comunista brasileira
(1945/1957). IN: III Encontro Nacional de Estudos da Imagem. Londrina, 2006. 30 Segundo Mario Maestri,, o documento citado se gestou como uma espécie de “substituto” às
orientações oficiais do Partido “onde tinham força stalinistas”. Os redatores da “Declaração de
Março” foram reunidos por Giocondo Dias, sob a recomendação de Luiz Carlos Prestes. Cf.
MAESTRI, Mário. Idem. p. 5. 31 Idem. p. 6
23
(PCBR), no ano de 1968. Maestri sintetiza a sua proposta:
No plano político, rejeitava a aliança com a burguesia, mas negava a luta
direta pelo socialismo. No plano tático-organizacional, defendia a luta
social e sindical, desprestigiada pela derrota da esquerda diante dos
militares, em 1964, associada à luta armada no campo, fortemente
prestigiada pela recente vitória cubana, em 1959-61, e pela luta
vietnamita, então em curso.32
A duração da nova organização comunista foi efêmera, dadas as prisões (e
mortes, em alguns casos) de membros da mesma. Jacob Gorender não fica incólume às
arbitrariedades ditatoriais, sendo também preso e torturado, como seus companheiros,
em 1970. Ao contrário de alguns destes, sobrevive e passa a combater através de outro
meio que não as ações armadas: a luta intelectual. Para compreendermos a razão desta
investida do autor diferente da maioria de seus colegas ideológicos, envolvidos em
guerrilhas e movimentos afins, explica Mario Maestri:
[…] Gorender dedicava-se à investigação sobre o caráter da formação
social brasileira e da revolução brasileira. Grande parte da esquerda
evoluíra da política de colaboração com a “burguesia nacional” para o
assalto militar ao poder sem crítica real das concepções passadas e sem
apoiar a nova política em interpretação estrutural da realidade
brasileira.33
Questionado em sua entrevista concedida a Arrabaldes sobre o surgimento de
sua idéia referente ao modo de produção escravista colonial (o qual a seguir
comentaremos), teorização surgida em seu novo campo de batalha (o das ideias),
Gorender explica:
Isso se relaciona a aspectos da minha biografia, de como elaborei este
livro. A minha concepção de história é a de uma ciência que orienta a
ação revolucionária. Nunca tinha sido historiador profissional, mas fui
revolucionário profissional e até hoje me dedico a trabalhar pela
revolução no Brasil. Considero que a história é um conhecimento
científico indispensável para que uma perspectiva revolucionária acertada
seja estabelecida. […] O meu interesse pela história nasceu das
perplexidades que as interpretações historiográficas correntes na
esquerda brasileira ocasionavam, sobretudo após a derrota de 1964.34
32 MAESTRI, Mário. Op. Cit.. p. 7. 33 Idem, p. 8. 34 GORENDER, Jacob. Uma vida de teoria e práxis (uma entrevista com Jacob Gorender). IN: Revista
Arrabaldes. Ano I, nº 2, set./dez. 1988. p. 137.
24
Ele segue, em outro momento da entrevista, discutindo a sua concepção de
História e a importância desta em um projeto de sociedade:
[...] gostaria de acrescentar que vejo a história como ciência da revolução
e também componente fundamental na construção do universo
ideológico. Todos nós, qualquer que seja o grau de cultura, temos uma
visão da história do país ao qual pertencemos. Essa visão da história nos
é incutida desde a escola primária através das aulas, de comemorações,
de feriados, do culto aos heróis, aos símbolos nacionais, etc. Sendo um
componente de nosso universo ideológico a história é muitíssimo
importante. Cabe aí citar uma frase riscada da Ideologia alemã: 'Nós só
conhecemos uma única ciência, a ciência da história'. Na verdade, todas
as ciências sociais desaguam na história.35
Quando preso, Gorender deu início a um de seus mais conhecidos projetos
intelectuais: a interpretação da formação social brasileira, transformado posteriormente
em um livro publicado em 1978, com o nome “O escravismo colonial”36
. Orientado
então pela sua perspectiva de História como algo indispensável para o acerto na
revolução – a qual, como também visto em citação, era mal interpretada, segundo
Gorender, pelo resto da esquerda – o que o autor busca é expor a sua interpretação,
renovadora se comparada com o que até então se conhecia, deste objeto, através do
historicamente novo modo de produção escravista colonial. Seu texto dialoga com as
outras tentativas de interpretação econômica do passado brasileiro (as quais serão
apresentadas nos próximos subcapítulos) através do afastamento das mesmas.
Eis o resumo do que Gorender diagnostica sobre a produção referente à
escravidão no Brasil:
O escravo, está claro, sempre figurou no quadro geral, mas explicado por
este e não o explicando. Como se devesse ocupar na hierarquia teórica o
mesmo lugar subordinado que ocupara na hierarquia social objetiva. Por
motivos ideológicos, o primeiro tipo de interpretação sociológica colocou
a classe senhorial no centro do quadro e, guiando-se por certos dos seus
caracteres exteriores, modelou a história de uma sociedade patriarcal e
aristocrática. Nisto se identificaram Oliveira Vianna e Gilberto Freyre,
expoentes desse tipo de interpretação. É significativo terem ambos
chegado ao mesmo resultado apesar da divergência em matéria
antropológica, não tão completa, aliás, quanto se afigura à superfície. Se
Oliveira Vianna legitimou a aristocracia escravista brasileira pela
35 Idem, p. 151. 36 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978.
25
superioridade racial, o anti-racismo de Gilberto Freyre deixa margem
explícita a uma legitimação análoga pela presumida superioridade
genética dos stocks, das estirpes ou das etnias.37
Jacob Gorender propõe uma nova interpretação para o passado brasileiro (o que
também inclui, claro, pensar sobre o escravo e os frutos de seu trabalho), baseada em
outros estudos econômicos, pois faz oposição tanto àqueles que postulam a existência
de um feudalismo no Brasil (nomeadamente, Alberto Passos Guimarães e Nelson
Werneck Sodré) quanto aos que focam no comércio exterior colonial, quais sejam, Caio
Prado Jr., Alice Canabrava e Fernando Novais. Por que se opõe a tais estudos? Citamos
Gorender:
As duas linhas de interpretação, a que me referi no início, fizeram
avançar o processo cognoscitivo da realidade histórica, mas o travaram,
cada qual delas, com o seu unilateralismo próprio. E o travaram e
desviaram ambas pelo obstáculo que opuseram ao estudo da categoria
central de todas as formações sociais: a categoria de modo de produção.
As tentativas de aproximação a esta categoria pela via de qualquer destas
linhas e, ainda, da linha dualista intermediária resultaram frustradas.
Muitíssimo mais do que uma questão de rotulação classificatória, o que
se acha em jogo é a desobstrução metodológica do acesso ao
conhecimento histórico da sociedade brasileira.38
O escravismo colonial teve sucesso, o que demonstra o fato de sua reedição
durante a década de 1980 e o relançamento agora em 2011. Assim, e por sua
interpretação economicista ortodoxa do marxismo, é cabível pensar que o estudo de
Jacob Gorender não poderia originar apenas reações positivas.
Autores como Ciro Cardoso, contrários a um livro que é uma “[...] espécie de
tratado de Economia Política, não propriamente um livro de História”39
externaram
seus contrapontos ao conhecido militante mesmo muitos anos depois da publicação do
livro. Sidney Chalhoub, como veremos mais detalhadamente depois, critica a “ligação”
de Jacob Gorender com a chamada “teoria do escravo-coisa”. Não podemos esquecer
também dos autores e autoras que, mesmo não entrando em “confronto direto” com o
autor de “O escravismo colonial”, partiam de pressupostos diversos dos seus para
interpretar o mesmo fenômeno, dentre os quais podemos citar a historiadora Kátia
37 Idem, p. 15. 38 Idem, p. 20. 39 CARDOSO, Ciro. Entrevista. IN: MORAES, José; REGO, José Marcio. Conversas com historiadores
brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 221.
26
Mattoso, autora de “Ser escravo no Brasil”40
, obra bastante criticada posteriormente
pelo historiador baiano, bem como João José Reis, aluno de Mattoso, o qual escreveu
livros como “Negociação e conflito”41
(com Eduardo Silva) e “Rebelião escrava no
Brasil”42
(tese de doutorado defendida originalmente em 1982) que constituem estudos
marcados pela presença da resistência negra.
A reação de Gorender às criticas recebidas (embora ele tenha grangeado
também muitos seguidores, entre os quais, por exemplo, os historiadores Mario Maestri
e Philomena Gebran) se materializará no ano de 1991, novamente em forma de livro: “A
escravidão reabilitada”43
. Em tal obra, no lugar da interpretação estrutural do passado
brasileiro, realiza um estudo sobre as tendências então recentes da historiografia
brasileira sobre a escravidão (e, em especial, as contrárias ao autor).
Esta intenção crítica está sintetizada abaixo:
Meu propósito é o de examinar o procedimento analítico que conduziu a
redesenhar o perfil da escravidão com o objetivo explícito ou tácito de
reabilitá-la. Daí a atenção temática seletiva, sem pretenções de balanço
geral. Porque a escravidão brasileira continua a atrair pesquisadores
nacionais e estrangeiros e, nos últimos anos, foi objetivo de quantidade
elevada de teses acadêmicas, artigos de revistas e jornais e livros
especializados. Fato positivo, em si mesmo, uma vez que a quantidade
alcance o teor de massa crítica que se converte em nova qualidade.44
Em seu livro publicado no alvorecer da década de 1990, Jacob Gorender
percorre uma ampla bibliografia referente à escravidão, através de uma divisão temática
que contempla as grandes teses que concernem tal problema, podendo ser citadas: a
brecha camponesa (ou seja, o espaço destinado para os escravos cultivarem lotes de
terra dos senhores tendo em vista o seu consumo ou venda no mercado), o
abolicionismo, a violência, a família escrava e as variedades do ser escravo. Tais
tendências não são recebidas, por Gorender, com muito entusiasmo, pois reprova os
referenciais com que dialogam, como podemos perceber na citação a seguir:
O estudo da escravidão por historiadores, sociólogos e antropólogos foi
40 MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003. 41
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 42 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835. São Paulo:
Brasiliense, 1986. 43 GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Editora Ática, 1991. 44 Idem, p. 18.
27
afetado pelas tendências chegadas não só dos Estados Unidos, onde se
concentra a maior massa de trabalhos sobre o escravismo nas Américas.
Os ventos também sopraram de Paris e Londres. E sopraram com força
na mesma direção de ataque ao marxismo.45
Na mesma linha de comentários que o autor tece sobre as tendências recentes no
pensamento social, atentamos para o seguinte comentário, referente à produção de
Edward Thompson (autor que, como mostraremos depois, é influência importante na
renovação historiográfica brasileira da década de 1980), comentário que é um indício
para entender as orientações teóricas que assume. Citamos:
Embora não se trate de identificação, as mencionadas tendências
francesas [Nova História] possuem pontos comuns com o culturalismo de
Thompson, e tudo isto podia ser amalgamado na mesma orientação
historiográfica.46
É a partir daí, como veremos, que o objeto desta pesquisa vai se constituir,
porém é necessário apresentarmos antes os outros envolvidos na contenda. Ei-los agora.
Sílvia Hunold Lara é uma historiadora ligada à Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), instituição de ensino superior em que leciona desde 1986.
Infelizmente, não obtivemos dados de sua história de vida e o que encontramos permite
apenas (mas não com menor importância para esta pesquisa) acompanhar sua biografia
acadêmica. Como veremos adiante, houve a mesma dificuldade em relação à trajetória
não acadêmica de Sidney Chalhoub. Para nossa reconstituição breve do histórico dos
autores, utilizamos suas obras principais escritas durante o período em que polemizaram
(bem como uma recente entrevista com Sidney Chalhoub), nas quais os mesmos
expõem os caminhos de sua trajetória acadêmica, bem como as questões candentes do
momento político que vivenciaram.
Lara foi graduada (1977) e doutora em História pela Universidade de São Paulo
(USP), sob a orientação de Fernando Novais. Sua tese de doutoramento, intitulada
“Campos da violência: estudo sobre a relação senhor-escravo na capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808”47
, foi defendida no ano de 1986, sendo publicada como livro dois
45 Idem, p. 16. 46 Idem, p. 17. 47 LARA, Sílvia H. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-
1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
28
anos depois, pela Editora Paz e Terra, na Coleção “Oficinas da História”, dirigida pelo
seu colega Edgard De Decca48
.
Que questionamentos a então estudante de História Sílvia Lara realizou?
Na entrevista fílmica inédita concedida à Profa. Regina Xavier durante o 5º
Encontro Liberdade e Escravidão no Brasil Meridional (P. Alegre, 12 de maio de 2011)
encontramos algumas pistas de sua trajetória acadêmica.
Ela lembra que o enfoque marxista era importante na universidade nesse
momento e, como aluna de História Moderna, (por volta de 1974-1975) deparou-se com
as relações entre a servidão e as guerras de religião e daí perguntou-se porque a
escravidão, sendo um trabalho compulsório, não provocara algo semelhante. Sua
formação vinha da bibliografia clássica sobre escravidão; a violência do senhor era vista
como castigo, mas a violência do escravo era crime. E segundo Fernando Henrique
Cardoso, o crime, a violência, era o “ato humano” do escravo. Quer então entender a
questão da violência dentro da dinâmica da escravidão, da lógica senhorial e como se
exercia o domínio do senhor sobre o escravo. Sua questão não era mais “a escravidão”,
mas como se exerceu o domínio sobre o escravo.
Dedicara-se a examinar a documentação escrita, especialmente os processos
criminais desde o século XVII (na região de Campos, no atual estado do Rio de
Janeiro), e nesses processos encontrou coisas que os escravos faziam e indicações de
sua vida social que jamais poderia imaginar, que contribuíram para que entendesse
quem eram estes escravos, quais as suas experiências. A partir daí mudou sua ótica
sobre a escravidão e passou a pensar qual seria a visão escrava da escravidão e a
influência dos historiadores marxistas britânicos nessas reflexões foi inegável. Esta foi
a origem de sua tese Campos da violência. Esta pesquisa teve desdobramentos e um
deles foi procurar entender o que é a escravidão no mundo do Antigo Regime, entender
a presença do escravo no mundo colonial e, na sequência a dos libertos e forros. Silvia
Lara explica que entrou nesta temática pelas “frestas” da documentação , principalmente
as leis, justiça, processos, etc.
Ao estudar, então, a escravidão, ela percebeu uma recorrência no que se escreveu
48 Doutor em História pela USP, Edgard De Decca leciona na UNICAMP desde 1977. Não é inocente a
publicação da obra de Lara na coleção dirigida pelo autor citado: o fato de seu livro ter sido publicado
pela Editora Paz e Terra na Oficinas da História pode ser interpretado como um indício de qual linha
o mesmo segue, pois – segundo De Decca – na mesma foi buscada a divulgação da “[...] bibliografia
internacional que se dedicava a esse tipo de história 'vinda de baixo'”. Cf. DE DECCA, Edgard.
Entrevista. IN: MORAES, José; REGO, José Marcio. Conversas com historiadores brasileiros. São
Paulo: Editora 34, 2002. pp. 263-287.
29
sobre este tema: a relação entre violência e escravidão. Esta questão vai marcar rumos
em sua pesquisa e será eixo da polêmica historiográfica com Gorender.
Em seu livro “Campos da violência”, a historiadora observa:
Apesar de imagens tão variadas, ligadas a diferentes propostas políticas e
ideológicas, podemos afirmar que o pano de fundo comum a todo o
conjunto da bibliografia é a relação entre violência e escravidão. Negada
diante do caráter paternal da instituição ou de uma pretensa tradição
pacífica da história brasileira, denunciada com paixão nos discursos
abolicionistas, acentuada ou atenuada na comparação com outras
Colônias, todos se referem de forma recorrente à violência.49
Sua análise, como veremos na próxima citação, difere do muito que já se
escrevera – e aqui podemos citar uma diversa produção, que abrange nomes como
Gilberto Freyre, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Jacob Gorender, para citar
alguns – sobre a violência do regime escravista. Vejamos o que a autora do livro citado
escreve:
Mais que definir seu grau de incidência, descrever seus procedimentos,
estudar suas ocorrências particulares, ou discutir a qualificação do
cativeiro como “suave” ou “cruel”, procuramos penetrar nos mecanismos
que lhe deram origem, questionar suas limitações e justificativas e,
especialmente, recuperar o modo como senhores e escravos viviam e
percebiam sua prática. Ultrapassando a simples descrição dos castigos e a
denúncia veemente da violência em termos gerais para perguntarmos pela
sua especificidade, mergulharmos nas vivências senhoriais e escravas da
escravidão, na dinâmica de seus confrontos cotidianos, nas relações de
luta e resistência, acomodamentos e solidariedades vividos e
experimentados por aqueles homens e mulheres coloniais.50
Retornamos aos escritos de Lara para conhecer como ela sintetiza seu
entendimento sobre a escravidão brasileira. Acreditamos que através da comparação que
a mesma empreende no texto que logo será citado, podemos compreender seu
posicionamento:
O fato de se afirmar que a escravidão seja uma relação de dominação e
exploração violentas (e é claro que ela é), que a sociedade escravista seja
uma sociedade desigual (o que é óbvio), não é suficiente para diferenciá-
49 Idem, p. 19. 50 Idem, p. 21.
30
la da sociedade em que vivemos hoje. Nosso mundo também é um
mundo de desigualdades (e de desigualdades extremadas); também
vivemos relações de dominação e exploração extremamente violentas.
Adjetivar a escravidão como violenta, acentuando sobretudo uma ideia
de violência absolutamente abstrata, é um procedimento incapaz de
diferenciar a escravidão do mundo de hoje. Hoje, a violência não é mais a
do chicote do feitor nos ombros do escravo, mas existem atualmente
muitas outras formas de violência. Embora elas possam nos parecer
muito “naturais” foram, no entanto, construídas historicamente. Hoje
regulamos nosso tempo pelo relógio; o operário que chega atrasado tem o
tempo de atraso descontado em seu salário.51
Da citação acima podemos apreender qual o caminho a historiadora utiliza para
definir violência: como já exposto pouco antes, através da especificidade de tal relação
na época em que ocorre. Porém julgamos que isto que Lara escreveu pode ser também
pensado pelas suas críticas à sociedade contemporânea, afinal, o longo movimento que
acentua o caráter violento da escravidão (não negado pela autora) pode conduzir a um
duplo erro: ignorar a violência presente na atualidade através do anacronismo. As
especificidades do período em que a escravidão foi a relação social mestra do Brasil se
apagam ao utilizarmos tão extensivamente um adjetivo que, pela argumentação que a
autora propõe, pode muito bem ser aplicado ao tempo presente, período este que, pela
naturalização, também comporta uma série de aviltantes práticas de dominação.
O contexto em que Silvia Lara e o logo adiante tratado Sidney Chalhoub
escreveram seus trabalhos será melhor detalhado no item 2.2 deste estudo, no qual nos
deteremos no contexto sócio-político da época, nas instituições nas quais cada autor
atua e nas influências teóricas que receberam na produção do conhecimento.
Em período e espaço institucional semelhante ao de Lara, temos a presença do
historiador Sidney Chalhoub. Também docente da UNICAMP, Chalhoub possui uma
trajetória inicial diversa da de sua colega, pois faz seus estudos de graduação na
Lawrence University, nos Estados Unidos da América (1979) e sua dissertação de
mestrado (1984) no nascente Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense (UFF), doutorando-se pela UNICAMP em 1989, com a tese “Visões
da liberdade: Uma história das últimas décadas da escravidão na corte”, publicada em
51 LARA, Sílvia. Escravidão no Brasil: um balanço historiográfico. IN: LPH – Revista de História. v.3,
n.1, 1992, pp. 225-226.
31
199052
. Tanto no mestrado quanto no doutorado é orientado por Robert Slenes,
historiador norte-americano que vem dedicando seus estudos à escravidão brasileira,
desenvolvendo a sua carreira neste país.
As instituições que abrigaram no Brasil o então estudante Sidney Chalhoub (e
como vimos, Silvia Lara como estudante e como docente), - UFF, USP e UNICAMP-
testemunharam um processo então há pouco iniciado e ainda hoje em crescimento no
país: a difusão dos programas de pós-graduação em História e a profissionalização do
historiador. Não são pequenos os efeitos disso no conhecimento histórico, podendo-se
destacar uma mudança de um estilo ensaístico de escrever a história – no qual a
intenção era a de produzir grandes sínteses – para um padrão de estudos de teor
empírico com delimitação espacial e temporal claras (e mais rigorosas), controlado
pelas regras específicas de pesquisa que um programa de pós-graduação exige, espaço
este onde as transformações antes referidas sobre a reflexão histórica tiveram seu local
principal de discussão e prática historiográfica.
As tendências dessas novas concepções sobre o conhecimento histórico e as
demandas desse novo local de produção marcaram muitos historiadores daquela década
de 1980 e foram uma das características que diferenciarão radicalmente os trabalhos
Sidney Chalhoub e de Silvia Lara dos de Gorender.
Eis o testemunho de Chalhoub sobre o período:
Fiz o concurso de pós-graduação da UFF, e em 1981, comecei a fazer os
cursos. A UFF foi uma experiência fantástica. Os seminários eram
excelentes e havia aquele momento do país, com as eleições diretas de
governadores em 1982, a campanha por eleições diretas para presidente.
Havia a sensação de viver esses momentos da história em que o futuro
está aberto, pode de fato acontecer. 53
Percebe-se, no relato de Chalhoub, não só este clima de renovação que envolvia
a pós- graduação no Brasil como a articulação entre as mudanças específicas do campo
historiográfico e as novas situações vivenciadas na sociedade brasileira, que passamos a
examinar como o contexto sócio-político em que o trabalho dos historiadores se
desenvolveu: o processo de distensão na ditadura civil-militar, em que novos atores
históricos entram em cena. Não podemos esquecer da emergência do Partido dos
52 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: Uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 53 CHALHOUB, Sidney. História, literatura e legados historiográficos: Entrevista com Sidney
Chalhoub. pp. 185-186.
32
Trabalhadores (PT), no início da década de 1980 (período em que a historiografia
produzida pelos autores que aqui discutimos floresce), representativo de uma “nova
esquerda”, contraponto das organizações de viés marxista tradicional ou radical. Não
apenas na via partidária temos novidades, pois outros movimentos sociais também
ganham destaque nos anos 80: Movimento Negro, Teologia da Libertação, Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento Feminista etc. A história do Brasil
passava por mudanças e sua historiografia não passou à margem desse processo.
Citamos Chalhoub:
As aulas e os seminários eram muito quentes e logo surgiram debates
internos importantes. Por exemplo, a gente começou a discutir o uso de
processos criminais na história social, e havia ainda uma percepção
crítica em relação à história do trabalho, muito voltada para a história do
movimento operário organizado. Então, como vários pós-graduandos se
voltavam para a história da agricultura e para a história da escravidão,
queriam exatamente valorizar a experiência de trabalhadores fora dos
movimentos organizados, de modo que as fontes cartoriais e judiciais
ficaram logo no centro das preocupações de muitos alunos. 54
Seu tempo e seu lugar são fundamentais para explicar um historiador. Uma nova
forma de escrever a história se gestava de acordo com novos problemas que os sujeitos
se propunham55
. Sidney Chalhoub está atuante na UNICAMP, instituição que, como já
observamos e veremos adiante, era caracterizada por uma produção historiográfica com
influências dos chamados historiadores marxistas britânicos – conhecidos pelo seu
comprometimento com a “história vista de baixo”, aquela escrita com a intenção de
recuperar as experiências históricas dos marginalizados, dos “de baixo”, não apenas
quando organizados nas formas clássicas de atuação política (a noção sociológica de
movimento), mas principalmente em sua sociabilidade cotidiana, nos seus costumes e
experiências partilhados em grupo.
Na conclusão de seu livro Visões da liberdade: Uma história das últimas
décadas da escravidão na corte, Chalhoub oferece importantes indícios sobre o que
constitui recuperar a experiência histórica dos subalternos e, principalmente, contra que
54 Idem, p. 186. 55 Em outro texto seu, neste caso um “Prefácio à segunda edição” do seu “Trabalho, lar e botequim”,
Sidney Chalhoub novamente relembra o “turbilhão político” em que pensou e escreveu sua
dissertação. O caráter politizado de sua obra não é escamoteado, pelo contrário, sendo claramente
explicitado pelo autor: “Era um momento histórico raro, desses em que a crença no futuro vira
experiência coletiva. À história vivida pertencia também a empreitada de produzir conhecimento
histórico”. Cf: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. Campinas: Editora UNICAMP, 2001.
33
tipo de interpretação ele se coloca. Vejamos como o historiador define isto:
Este livro foi uma contestação, mais ou menos explícita ao longo dos
capítulos, mas sempre presente, daquilo que batizei aqui de “teoria do
escravo-coisa”. Tal teoria – tão difundida na produção historiográfica que
é quase supérfluo ficar arrolando nomes de autores – defende a idéia que
as condições extremamente duras da vida na escravidão teriam destituído
os escravos da capacidade de representar o mundo a partir de categorias e
significados sociais que não aqueles instituídos pelos próprios senhores.
[…] Procurei demonstrar também que a outra face da teoria do escravo-
coisa é a ênfase na rebeldia negra. Apesar das diferenças de formulação,
a idéia sempre presente aqui é a de que as práticas mais abertas de
resistência por parte dos negros eram a única maneira de eles se
afirmarem como pessoas humanas, como sujeitos de sua própria
história.56
Dois autores que Chalhoub pretendeu contestar neste seu livro são citados
nominalmente: Fernando Henrique Cardoso e Jacob Gorender. Os “autores-protótipo”
da “teoria do escravo-coisa” - todos os termos cunhados pelo autor do livro – são
contrariados com a justificativa de possuírem problemas tanto na ordem da pesquisa
quanto da explicação histórica. Com uma análise desprovida de “[...] o mínimo de
desconfiança [...]”, ambos os pensadores citados transcrevem em sua literalidade os
testemunhos racistas dos séculos anteriores, concebendo a priori pensamento e ação dos
escravos, ambos no que chama de “[...] termos de alternância […] entre passividade e
atividade, conformismo e resistência, ou coisificação e rebeldia”57
. Sidney Chalhoub –
de acordo com afirmações do próprio - busca romper com tais dicotomias, produzindo
uma obra em que recupera as “[...] visões ou percepções [...]” dos atores históricos,
através das suas experiências.
O professor da UNICAMP terá uma nova oportunidade de fazer a sua crítica à
chamada “teoria do escravo-coisa” em novembro de 1990, através das páginas da Folha
de São Paulo, na qual Chalhoub publica então uma resenha do já citado “A escravidão
reabilitada”, de Jacob Gorender. Jacob Gorender e Sílvia Lara darão continuidade à
controvérsia que a partir dai se estabelece através do jornal, levando a discussão de um
tema “acadêmico” sobre o conhecimento histórico para o âmbito do público leitor não
especializado na matéria, circunstância que examinaremos no item 2.4 desse capítulo.
56 Idem. pp. 249-250. 57 Idem, p. 250.
34
Como já apresentado anteriormente, Jacob Gorender busca conhecer o caráter da
formação social brasileira – através de um enfoque materialista – para os fins de sua
atividade política de transformação da sociedade, enquanto um militante comunista.
Não é demasiado lembrarmos que a escrita de O escravismo colonial se deu durante a
década de 1970, tendo sido pensada enquanto o autor se encontrava preso, dado a sua
atuação política subversiva para a Ditadura Civil-Militar que então assolava o país.
Sílvia Lara e Sidney Chalhoub, como já observamos antes, também escrevem
livros que testemunham as questões de seu tempo. Suas obras se inserem em um
período marcado pela profissionalização gradual do seu ofício, através dos emergentes
programas de pós-graduação em História, no âmbito das universidades brasileiras. Tão
importante quanto este aspecto é a influência, também já comentada, das
particularidades políticas vivenciadas por eles: um país em processo de
redemocratização, com a emergência de uma série de novas formas de ação política e
social.
Localizados em tais processos, ambos não escrevem uma história como a de
antes, a qual, como era cercada por diferentes contextos, propunha outras questões e
produzia distintas respostas.
Conhecidas, de maneira breve, as trajetórias dos historiadores em estudo e um
pouco do contexto teórico e sócio-político da época em que escreveram, nosso próximo
passo será abordar de maneira mais detida os espaços em que estes historiadores atuam,
relacionando assim a sua produção com o tipo de história que se produz em suas
instituições partidárias ou acadêmicas e com os debates que marcaram seu tempo.
2.2 LUGARES DE COMBATE: OS DEBATES NO PARTIDO COMUNISTA E AS
VIVÊNCIAS NO AMBIENTE ACADÊMICO
Muito já se escreveu sobre a escravidão brasileira, sendo extensa a produção
historiografia sobre tal tema, partindo de variados enfoques e orientações teóricas,
focando-se em múltiplas faces do fenômeno: a família escrava, biografias e trajetórias, a
religiosidade, a vida cotidiana, demografia, tráfico transatlântico, tráfico interno etc.
Não é a nossa intenção discutir tão rica bibliografia, mas tentar inserir nosso objeto na
totalidade de que faz parte, conhecer as condicionantes históricas suas.
Os autores que aqui estudamos também dedicam uma parte importante ou
mesmo central de sua produção intelectual ao estudo das relações de trabalho
35
escravistas no Brasil. É necessário então conhecermos, para melhor responder aos
problemas que nos colocamos nesta pesquisa, qual o espaço em que Jacob Gorender,
Sílvia Lara e Sidney Chalhoub respectivamente realizam sua produção de conhecimento
referente à escravidão no Brasil incluindo aí no que se diferenciam do que antes se
produzia, no que se aproximam, em quais debates se inserem. Examinar estas questões é
o objetivo deste subcapítulo.
As contribuições de Jacob Gorender ao estudo da escravidão no Brasil não
causaram discordâncias consideráveis apenas entre os autores objeto de nossa pesquisa.
Ao lembrarmos que a produção de Gorender (especificamente O escravismo colonial)
se insere em um debate de maiores dimensões – referente à economia colonial –
podemos compreender de quais destes debates seu itinerário intelectual se aproxima.
Dividimos aqui os debates sobre a economia colonial em quatro vertentes:
feudalismo brasileiro, antigo sistema colonial, modo de produção escravista colonial,
antigo regime nos trópicos. Este último momento não nos interessa aqui, estamos
cientes de sua relevância na historiografia brasileira mais recente, porém é posterior à
polêmica que atentamos. Mesmo em relação aos outros modelos explicativos, não
pretendemos mais que enunciar sinteticamente seu conteúdo.
Precisamos localizar a emergência da teoria do escravismo colonial em relação
ao que já se escrevia antes sobre a economia do Brasil Colônia, neste caso temos tanto a
chamada tese do caráter feudal da colônia brasileira, que surge dentro dos quadros do
PCB, quanto a tese do antigo sistema colonial, tributária de Caio Prado Jr. (este em
oposição a interpretações “mecânicas” do passado) e Fernando Novais (intelectual
ligado à USP). De acordo com Andrés Ferrari e Pedro Cezar Fonseca o proposto modelo
feudal de economia:
[...] vinculava-se à “matriz ortodoxa” que procurava ajustar o curso
histórico – através de uma “estranha e anti-científica maneira de
interpretar os fatos”[...] - nas etapas de modos de produção mencionadas
por Marx na Crítica de 1859, os quais todos os países deveriam
atravessar antes de – ou para poder – chegar ao socialismo.58
O que leva uma produção historiográfica a assumir as características citadas por
58 FERRARI, Andrés; FONSECA, Pedro Cezar. A escravidão colonial brasileira na visão de Caio Prado
Junior e Jacob Gorender: uma apreciação crítica. IN: Ensaios FEE. Porto Alegre, v. 32, n.1, jun. 2011.
p. 164.
36
Ferrari e Fonseca? Para responder tal questão devemos compreender historicamente
como se gesta a reflexão intelectual do PCB, ou seja, precisamos investigar o que era tal
partido quando emergiram tais teses, na década de 1960. Para termos uma idéia do
“quadro geral” do partido, citamos Daniel Pécout:
De 1954 a 1964, este partido foi adquirindo um papel crescente na
estruturação do movimento nacionalista. Elaborou teses que se situaram
no centro dos debates intelectuais. Propôs uma visão da “revolução
brasileira” que, em muitos aspectos, gerou uma espécie de senso comum
a partir do qual se reconheciam os intelectuais progressistas: mesmo que
alguns deles duvidassem da validade dessas teses, eram obrigados a se
posicionar em relação a elas. Em torno do Partido Comunista e de sua
interpretação do nacionalismo formou-se toda uma cultura política
singularmente fecunda, que se afirmou sobretudo após 1960, e iria
sobreviver ao golpe de Estado de 1964; de fato, talvez tenha sido em 64-
68 a época de sua maior influência.59
A “visão da revolução brasileira” mencionada acima encontrava expressão nas
teses que também são lembradas por Pécout. Porém, não era qualquer revolução a que
era proposta, portanto as teses que davam sustentação intelectual a este projeto também
não podiam ser de qualquer tipo.
Devemos lembrar aquilo que foi chamado, pejorativamente, de etapismo (muito
bem sintetizado na citação de Ferrari e Fonseca, acima). Em tal concepção histórica era
postulado que as sociedades humanas todas possuíam um desenvolvimento, por modos
de produção, determinado e igual, o qual seguia tal curso: escravismo-feudalismo-
capitalismo-socialismo. Para chegar à etapa socialista, era necessário desenvolver as
forças produtivas no capitalismo. Tal será a postura recomendada pelo PCUS e seguida
no Brasil, através da cooperação com a burguesia nacional em busca da industrialização
brasileira.
Tal atividade política acompanha também um esforço para pensar a sociedade
(em especial o seu processo histórico). Gorender avaliará a produção teórica do PCB,
referente à realidade brasileira, de forma não muito positiva, como podemos ler em suas
palavras:
Só comecei a ter plena liberdade de criação intelectual depois que saí do
PCB. Não que o PCB me proibisse de conceber um Modo de Produção
59 PÉCOUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Editora
Ática, 1990. p. 141.
37
Escravista Colonial. É possível que tivesse tal concepção, publicasse o
livro e isso não criasse problemas maiores, ou, pelo menos, não criasse
um conflito. Mas não havia somente a questão da linha política que era
etapista – que concebia um período feudal no Brasil. Havia também a
introjeção dessa linha dentro de mim. Nós realizávamos a autocensura. A
impossibilidade criativa, nesse particular, não vinha só da imposição da
linha política e das concepções praticamente oficiais, como também das
introjeções dessas idéias e da autocensura que fazíamos. Foi
indispensável me libertar disso.60
Em tal período de repressão política, os comunistas foram enfraquecidos
politicamente, como atesta Gorender na mesma fonte:
[…] com o PCB, o que aconteceu? Depois de 1964, com a ilegalidade em
que caímos, isso criou uma situação de decepção...uma situação de
desorientação também, e fez com que membros do PCB e de outras
numerosas organizações surgidas então... fazendo com que a esquerda se
fragmentasse.[...] E essa fragmentação só pode ser nociva à esquerda
devido à falta de união.
Dentro de tal situação fragmentária, de fato a esquerda se enfraqueceu, sendo
muitos de seus adeptos vítimas da arbitrariedade política, como já expusemos na breve
“biografia” de Gorender, presente no item 2.1. O que era segundo Pécout, o bastante
forte PCB, acaba dividindo-se em uma série de siglas partidárias, todas imbuídas de seu
próprio caminho revolucionário.
A atuação formal dos comunistas também se modifica. Antes alinhados com os
dirigentes soviéticos, agora os militantes brasileiros possuem outros exemplos
revolucionários (bastante diversos) em que se espelharem, filhos de uma nova
conjuntura, talvez mais alinhados com a esperada revolução a ocorrer no Brasil. Segue
depoimento de Gorender:
E, além disso, havia a influência da Revolução Cubana e da Revolução
Chinesa, que tinham sido vitoriosas pelas armas. A Revolução Cubana foi
vitoriosa em 1959 e o golpe ocorreu em 1964 (cinco anos depois); a
Revolução Chinesa foi muito antes... Tanto que naquela época, o PCdoB
mandava seus estudantes estudarem na China, depois eles voltavam com
as idéias chinesas na cabeça. Mais adiante, Cuba passou também a
acolher brasileiros que iam fazer curso de guerrilha lá e depois voltavam
ao Brasil...muitos morreram nessa volta.
60 GORENDER, Jacob. Uma vida de teoria e práxis (uma entrevista com Jacob Gorender). IN: Revista
Arrabaldes. Ano I, nº 2, set./dez. 1988. p. 147.
38
As revoluções sacudiam áreas periféricas de diferentes lugares do globo, países
eram descolonizados na África e o Brasil (bem como o resto da América Latina) era
assolado pelas Ditaduras de Segurança Nacional. Este quadro político, interpretamos,
influencia na revisão de teses consolidadas sobre o passado. Novas interpretações, para
melhor compreender este novo cenário, são necessárias. O autor que por ora estudamos
não se furta tal tarefa.
Jacob Gorender se insere nos debates referentes ao caráter da economia colonial
com a publicação, em 1978, do seu O escravismo colonial. O motivo de sua tentativa de
compreender tal aspecto do passado é expressa pelo mesmo quando entrevistado:
Eu acredito que nas “Reflexões metodológicas”, que compõem a
introdução do meu livro O Escravismo colonial, esteja bastante claro o
motivo da escolha do tema, decorrente da metodologia marxista, que
coloca o modo de produção como o sistema básico da formação social. 61
Temos aqui uma nova interpretação para a formação social brasileira. Surgida
em um conturbado contexto político, a ideia de um modo de produção historicamente
novo, com suas leis e tendências emerge. Jacob Gorender não foi o único a escrever
sobre o passado de relações escravistas no Brasil. Gilberto Freyre, na década de 1930, já
lançava seu livro “Casa Grande & Senzala”, obra esta que será comentada por
Gorender e, segundo este, posteriormente “reabilitada” por uma série de historiadores
durante a década de 1980. Quem são estes “reabilitadores”? Logo saberemos, por ora
cabe lembrar mais alguns momentos desta rica e importante temática do pensamento
social brasileiro.
Durante as décadas de 1950 e 1960 a interpretação de Gilberto Freyre é
combatida por um grupo de pesquisadores ligados à USP. A Escola Sociológica Paulista,
que abarcava intelectuais como Fernando Henrique Cardoso, Emília Viotti da Costa e
Florestan Fernandes, busca denunciar o quadro de mazelas entre os negros,
escamoteado pela tese da democracia racial, cara ao intelectual pernambucano. Através
de um enfoque materialista, os sociólogos (e a historiadora) de tal grupo atentam para o
caráter violento do regime escravista, o qual explorava seus trabalhadores ao limite da
coisificação. Tal expressão, como veremos no item 2.4, causou controvérsias entre os
historiadores vindouros. Frente a um quadro em que os explorados são tidos como
61 GORENDER, Jacob. Uma vida de teoria e práxis (uma entrevista com Jacob Gorender). IN: Revista
Arrabaldes. Ano I, nº 2, set./dez. 1988. p.137.
39
“coisas”, uma nova interpretação surgirá, enfocando nos modos com que os subalternos
resistem, negociam e buscam melhorias em sua situação, enfim, são sujeitos de si.
Agora conheceremos esta modificação na forma de pensar o social (e os ambientes em
que esta surge).
As contribuições de Sidney Chalhoub e Sílvia Lara aos estudos sobre trabalho
escravo no Brasil se gestam em uma instituição diversa da de Gorender. Ambos se
inserem no processo de organização e expansão dos programas de pós-graduação em
História no Brasil, o que causa uma influência (e modificação) considerável no modo
com que a História é escrita no país. Ao contrário do autor de O escravismo colonial,
ambos são “historiadores de profissão”, formados nos quadros da academia,
respondendo a demandas distintas das características do Partido Comunista (ou de
dissidências críticas do mesmo). Chalhoub e Lara estudaram em instituições diferentes,
o que também já foi mencionado, porém atuam profissionalmente no mesmo local, a
Universidade de Campinas.
Cabe agora comentarmos a forma como na UNICAMP se pesquisa e escreve a
História. Edgard de Decca, professor desta instituição e ex-estudante de graduação da
USP, escreve sobre isto.
Questionado sobre a predominante influência da historiografia francesa em sua
graduação, nos mostra qual tradição orientava a produção dos autores ligados à
UNICAMP (ou ao menos que linha de pensamento era almejada pelos mesmos):
Na verdade, quem introduziu uma vasta literatura inglesa nos cursos
universitários de História fomos nós da UNICAMP. A UNICAMP de fato
não seguiu a escola francesa dos Annales, que dissimulava a luta de
classes. Nós queríamos uma escola historiográfica que falasse da luta de
classes e isso era a escola inglesa; a história marxista dos historiadores
ingleses.62
A proposta em questão, prossegue De Decca na mesma entrevista, é a da
formação de “[...] um campo à margem da História da USP”. De acordo com o citado
historiador, a UNICAMP é uma alternativa de inovação com relação à USP, a qual, com
a “[...] hierarquia que por lá reinava [...]”, não possuía o espaço político adequado para
62 DE DECCA, Edgard. Entrevista. IN: MORAES, José; REGO, José Marcio. Conversas com
historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002. pp. 267-268.
40
uma reformulação, para o entrevistado, necessária.
Quais os efeitos historiográficos da desejada mudança de ares? A modificação do
que o autor chama de “perspectiva mais tradicional”, como o próprio relata, se expressa
nos estudos sobre vida cotidiana, sociabilidade fora das fábricas, cultura popular e
escravidão. Novos intelectuais entram em cena na UNICAMP, como os americanos
Michael Hall, Robert Slenes e Peter Eisenberg e a brasileira Déa Fenelon, aos quais é
creditada parte da responsabilidade pelas novidades. A intenção do “grupo” era
recuperar a memória dos trabalhadores, através de novos questionamentos:
Essas posturas muito inovadoras estavam sendo esboçadas naquela época
e apontavam para uma perspectiva nova na área da pesquisa histórica. A
UNICAMP procurava dar respostas a essas mudanças ecoando até as
transformações do conjunto da sociedade […] o que nos orientou, do
ponto de vista historiográfico, foi centrarmos toda a atenção no resgate
daqueles que estavam “por baixo da história”, mas não como
personagens coadjuvantes da história. 63
Eis uma das principais problemáticas reivindicadas por Lara e Chalhoub em
variados momentos de sua produção: o protagonismo dos sujeitos históricos, não mais
“vítimas passivas”, porém agentes do seu “fazer-se”, para utilizar um termo
thompsoniano. Inseridos no mesmo lugar de produção que os historiadores já citados na
entrevista de De Decca, aqueles dois autores também recebem influências semelhantes,
comungam de leituras e discussões, as quais, como fica claro na citação acima, são
comprometidas com a chamada “história vista de baixo”, focadas em personagens
históricos subalternos, como trabalhadores operários e escravos, por exemplo.
Por que surge esta mudança de foco na historiografia produzida? Para responder
esta questão é necessário contextualizá-la.
Lembraremos aqui da época em que Sílvia Lara defende a sua tese, o ano de
1986 e, em que, um pouco antes (1984), Sidney Chalhoub defendia sua dissertação de
mestrado. Ocorreu em tal período a emergência de uma nova agenda de problemas posta
aos historiadores que implicou deslocamentos às vezes radicais no campo teórico da
reflexão histórica que vinha se produzindo até então.
Anteriormente se apresentavam estudos de enfoque estrutural, baseados muitas
vezes em modelos macroeconômicos, em que a determinação material, em última
63 Idem, p. 271.
41
instância, era a tônica, não raro sendo presentes conceitos como “base” e
“superestrutura”, posteriormente sendo fortemente criticados.
Emergência dos sujeitos e suas ações, matizando as determinações das
estruturas; a valorização das experiências dos agentes históricos; a difusão da história de
baixo para cima; a vida cotidiana pensada também como significativa para a explicação
histórica são algumas das transformações notáveis na forma de investigar o passado,
transformações que ocuparam e vem ocupando muitas páginas das discussões teóricas e
historiográficas no mundo ocidental e, no que interessa a este trabalho, na circunstância
brasileira64
.
Sem pretender aqui desenvolver estas profundas transformações seja quanto às
suas origens, seja quanto a seus desdobramentos, cabem, no entanto, algumas
observações que são mais necessárias para este trabalho de conclusão.
Para este novo momento de produção historiográfica, e por sua singular
contribuição, devemos destacar a influência central do pensamento dos chamados
historiadores marxistas britânicos, especialmente de Edward P. Thompson,
configurando o que Sidney Chalhoub chamará de uma “thompsomania” na UNICAMP,
até então inexistente em outros ambientes brasileiros. O historiador britânico teve a
tradução de suas obras desenvolvida por professores de História daquela Universidade.
Como já referimos anteriormente, na Coleção Oficinas da História temos a coordenação
de Edgar de Decca, tradutor do clássico “A formação da classe operária inglesa”, bem
como a presença de alunos da pós-graduação em História da citada universidade na
promoção de outras obras de Thompson, como “Costumes em comum” (com Antonio
Negro no grupo de revisores técnicos)65
e “As peculiaridades dos ingleses”66
.
Na influência de Thompson, que estuda aquilo que ficou conhecido como “o
fazer-se da classe operária inglesa”, podemos reconhecer a preocupação de muitos
historiadores brasileiros com a maneira como concretamente homens e mulheres
64 As modificações citadas, cabe o destaque, não são exclusivas dos estudos de escravidão, sendo
presentes também na produção referente ao trabalho operário. É interessante comparar como as
modificações em ambas as temáticas se assemelham, o que nos sugere pensá-las mais no que se
aproximam do que em suas distâncias. Cf: BATALHA, Cláudio Henrique. Historiografia da classe operária no Brasil: trajetórias e tendências. IN: FREITAS, Marcos Cezar de. Historiografia brasileira
em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998; COSTA, Emília Viotti da. Experiência versus estruturas
Novas tendências na história do trabalho e da classe trabalhadora na América Latina – O que
ganhamos? O que perdemos? IN: História Unisinos. Número especial julho/dezembro 2001, pp. 17-
51; LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História. São
Paulo (16): 25-38, fev. 1998. 65 THOMPSON, Edward. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 66 NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (org.). E.P. Thompson: as peculiaridades dos ingleses e
outros artigos. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.
42
experimentam suas relações sociais, especialmente as de exploração, e atribuem sentido
às mesmas, construindo identidades.
A chamada “história de baixo para cima”67
torna-se um campo em franca
ascensão nos bancos universitários e simpósios acadêmicos do Brasil. Não que os
explorados já não fossem objeto de atenção dos pesquisadores nacionais, mas há um
importante deslocamento. De uma história construída sob a ótica da classe “de cima”, a
atenção volta-se para aqueles que tinham sido praticamente excluídos desse
conhecimento. Além do foco nos movimentos dos subalternos, passa-se à atenção na
cultura da classe, nas sociabilidades e sensibilidades destas, em suma, no que já foi
escrito aqui (e será retomado depois), nas experiências concretas e percepções dos
sujeitos históricos antes desconsiderados. 68
Termos como “cotidiano”, por exemplo, tornam-se presentes nos títulos de
produções de historiadores brasileiros do mesmo período69
. O que buscam interpretar
sobre o passado (e, talvez, sugerir para o presente) os autores que utilizam tal enfoque?
Percebemos nos historiadores que estudam as vivências cotidianas uma proposta de
conhecer a forma com que os sujeitos históricos – e, em específico novos sujeitos
históricos em cena nos escritos do historiador – se defrontam com os problemas de sua
realidade e, principalmente, como interpretam tal experiência. Enfim,
Novos atores sociais, constituídos fora dos mecanismos institucionais-
estruturais, formas autônomas de organização, resistência e rebelião e
novas formas de viver o cotidiano tem forte conteúdo político e não
podem ser desconhecidas pelos pesquisadores.70
*****
No contexto teórico há pouco apresentado se desenvolvem os trabalhos de Sílvia
67 Tal categoria é tributária, de acordo com Jim Sharpe, ao já citado Edward Thompson, em artigo seu de
1966, entitulado “The history from below”. Cf: SHARPE, Jim. A história vista de baixo. IN: BURKE,
Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. pp 39-62. 68 Importante reflexão, de caráter tanto histórico quanto epistemológico, neste sentido podemos perceber
em Eric Hobsbawm, porém pensado especificamente para o caso europeu. Cf: HOBSBAWM, Eric. A história de baixo para cima. IN: Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp. 216-231.
69 Aqui cabe citar obras como: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: O cotidiano dos
trabalhadores do Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: Editora UNICAMP, 2001; DIAS, Maria
Odila. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; FAUSTO,
Bóris. Crime e Cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984.
É importante destacar um ponto em comum entre tais obras: a presença de atores sociais pouco
privilegiados pela historiografia em geral até então, quais sejam: trabalhadores e mulheres. 70 PETERSEN, Sílvia. Dilemas e desafios da historiografia brasileira: a temática da vida cotidiana. IN:
Caderno de Estudo Programa de Pós-Graduação em História UFRGS. Porto Alegre, nº 03, 1996.
43
Lara e Sidney Chalhoub. É preciso lembrar que Gorender viveu estes anos de
transformações nas perspectivas teóricas da análise histórica, mas sua antiga e longa
formação partidária provavelmente foi responsável por sua permanência numa
concepção ortodoxa do marxismo.
Conhecidos alguns dos condicionantes da produção historiográfica de cada
autor, agora nossa análise se deterá em algo que, julgamos, possui relação com a
emergência deste acirrado debate sobre a escravidão brasileira: a efeméride dos cem
anos da abolição da escravatura. Aliada ao processo de mudanças no pensamento e
escrita da História no Brasil, tal data também influi no que se publica (e debate) sobre o
período escravista.
2.3 TEMPOS DE COMBATE: O CENTENÁRIO DA ABOLIÇÃO
O historiador marxista britânico Eric Hobsbawm, ao comentar as considerações
feitas por colegas de profissão em um evento em sua homenagem, lembra isto que é
uma variante das referências teóricas deste trabalho de conclusão: a existência de uma
relação entre a recepção de determinadas obras e o contexto em que isto ocorre. Nas
suas palavras:
Finalmente, eu quis fazer – porque sou marxista – uma análise marxista
precisa da recepção destes livros. Às vezes, existe uma relação entre a
leitura de livros de intelectuais conhecidos de esquerda e a situação
histórica e política em vários países. Me parece, por exemplo, que há
certos momentos na evolução de alguns países que facilitam a
popularidade de certos tipos de obras, como ocorreu por exemplo na
Espanha, na Itália e no Brasil. Eu certamente me sinto beneficiado, pois
certas situações não dependem dos méritos do autor, mas da situação
concreta e objetiva da recepção destes livros71
.
O pensamento que Hobsbawm externou na citação acima nos ajuda a pensar
alguns aspectos da polêmica que aqui analisamos. Tanto os livros quanto os artigos
escritos por nossos contendores têm sua gestação e repercussão relacionada com o
período em que foram criados e postos em circulação. Refletimos já – no primeiro
capítulo deste estudo – sobre a importante relação entre o historiador e o conhecimento
71 HOBSBAWM, Eric. Comentários de Eric Hobsbawm. IN: História Social. Campinas: PPG em
História da UNICAMP, (4/5): 75-76; 1998.
44
que produz, bem como a inserção deste em sua sociedade, em sintonia com uma série de
demandas sociais, de variados matizes (políticos, ideológicos etc.). Neste momento do
trabalho discutiremos a conjuntura histórica em que a polêmica se gestou: a do
centenário da Abolição.
Para isto, uma pergunta deve ser formulada sobre a divulgação jornalística das
discussões que envolveram por um lado Jacob Gorender e por outro Silvia Lara e
Sidney Chalhoub: o que teria levado à publicação das perspectivas teórico-
metodológicas e discordâncias historiográficas de tais historiadores nas páginas de um
jornal de grande circulação? Sabemos que o público-leitor padrão dos historiadores (ao
menos no Brasil) se constitui de seus pares e alguns colegas das ciências vizinhas. Por
que motivo, então, historiadores tiveram espaço para polemizarem diante de uma grande
gama de leitores não-especializados?
Julgamos que tal questão pode ser respondida se atentarmos a uma efeméride
ocorrida no período que estudamos, plenamente relacionada ao objeto de disputa: o
Centenário da Abolição da Escravatura brasileira em 198872
. Jacob Gorender, por
exemplo, utilizará tal marco em A escravidão reabilitada para a sua análise
bibliográfica: o estudo do que se produziu, no âmbito das ciências sociais, nos dez anos
anteriores a tal data.
Por que este acontecimento histórico suscitaria tanto debate? Gorender, no livro
citado, ensaia uma resposta:
[…] o Centenário da Abolição não foi comemorado, muito menos
festejado. Desde passeatas de rua a congressos acadêmicos, os eventos
relacionados com a data se salientaram pela tônica da negação: não
houve abolição. Em vez de festejo – repúdio. Antes de submetê-lo a
72 Stuart Schwartz argumenta para a importância da data comemorativa no seguinte trecho: “Em
reconhecimento do centenário, brasileiros de todas as raças fizeram um balanço do passado da nação
e do papel dos descendentes de africanos dentro dela. A cobertura na imprensa foi abrangente,
movimentos políticos procuravam mobilizar a consciência negra e alguns líderes negros se
pronunciaram contra qualquer comemoração do que, na opinião deles, parecia um evento vazio,
dadas as desvantagens ainda sofridas pelos negros no Brasil. Não obstante, foram criadas inúmeras
comissões nacionais para planejar uma série de eventos públicos e acadêmicos. Foram publicados
mais de 100 livros, alguns clássicos e outros novos, com o apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), e surgiram outras obras sem tal apoio. Realizaram-se
grandes congressos e simpósios acadêmicos por todo o Brasil, e muitas publicações acadêmicas
dedicaram edições inteiras à questão da escravidão na vida do Brasil. Durante pelo menos um ano,
escravidão e raça chamaram a atenção dos brasileiros e brasilianistas de maneira inédita.[...] O
centenário de 1988, portanto, apresentou um bom ponto de observação para que se lançasse um novo
olhar às três décadas anteriores de estudos acadêmicos, durante as quais houvera progressos
consideráveis no entendimento de como a escravidão funcionava no Brasil e o que significava para a
nação e seu povo.” Cf: SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. pp.
21-22.
45
critérios analíticos, podemos considerar este repúdio um julgamento
contemporâneo do fato histórico. Ainda que se conclua pela veracidade
historiográfica do julgamento, não há como deixar de reconhecer que a
negação expressou atitudes presentes formadas diante de condições
presentes. O passado visto pela consciência social da atualidade. […] O
enfoque da abolição emergiu e se configurou a partir da situação atual
das massas negras. Discriminação racial e pobreza dos dias de hoje se
constituíram em critérios historiográficos e conduziram a concluir: a
Abolição não se realizou. Mero engodo, a Lei Áurea proclamou o que
não houve73
.
A velha máxima entre historiadores de que “toda história é história do tempo
presente” mantém a sua validade neste caso. A questão da discriminação e da exclusão
social se coloca como imperativo para interpretar e julgar o passado. E Gorender,
militante comunista que é, não se furta a pensar tal fato, problematizando em sua obra
quais as imagens da escravidão brasileira vêm sendo formadas no interior da produção
intelectual, as quais serão contrapostas, de acordo com ele, com o duro quadro que se
apresenta para os negros brasileiros tanto da escravidão colonial quanto os das décadas
finais do século XX.
Não é só Gorender quem incorpora diretamente a data histórica como um
problema para sua reflexão. Sidney Chalhoub atribui ao epílogo de seu Visões da
Liberdade o seguinte título: “A despedida de Zadig, e breves considerações sobre o
centenário da Abolição”74
. Como tal episódio comparece na obra de Chalhoub?
Também fortemente criticado, mas por motivos diferentes. Ao relembrar o embate entre
qual das datas seria mais significativa para os negros brasileiros – se a Abolição da
escravatura, no 13 de maio, ou a epopeia de Zumbi dos Palmares, no 20 de novembro –
o autor busca desconstruir (ou seguir desconstruindo, pois já o fez em todo seu livro,
como afirma anteriormente) a interpretação que até então dava o tom do entendimento
do passado escravista e que também norteava as próprias disputas “de calendário”.
De um 13 de maio já desmoralizado pelas condições aviltantes que permanecem
nos mundos do trabalho (como o próprio autor coloca, há uma substituição dos açoites
pelos acidentes de trabalho enquanto técnica de disciplina e mutilação dos corpos)75
,
bem como pelo tom “conciliador e indulgente” do mesmo, parte-se para um 20 de
novembro não menos mítico, pois, nas suas palavras:
73 GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Editora Ática, 1990. pp. 5-6. 74 CHALHOUB, Sidney. A despedida de Zadig, e breves considerações sobre o centenário da Abolição.
IN: Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. pp. 249-253. 75 Idem, p. 251.
46
Uma das formas de se combater um mito histórico é tentar destruí-lo em
seu próprio campo de luta: aceitando a necessidade de mitos históricos
com certas características e funções, o que se faz é reforçar um outro
mito que represente valores diametralmente opostos àqueles estampados
no mito que se quer destruir. Esta é sem dúvida uma forma
historicamente recorrente de conduzir lutas sociais, e implica certamente
conduzir a luta num campo de possibilidades que é, em larga medida,
uma criação dos adversários76
.
Em 1988, a figura de Zumbi é que é posta de forma mítica. Um mito de cores
progressistas, mas ainda pensado pelos atores sociais de então dentro do bojo da “teoria
do escravo-coisa”. É o “escravo-rebelde” clássico, contraponto do outro extremo, que
apenas consegue reproduzir a ideologia de seus senhores.
Ao relacionarmos os comentários de Chalhoub sobre a construção de mitos
históricos com o Zumbi dos Palmares cada vez mais em voga nos imaginários
engajados o que podemos perceber? Que a apropriação de condições historicamente
dadas (e limitadas) de luta social, definidas pelos “adversários”, é uma forma de
combate utilizada contra a imposição da data histórica marcada pela “concessão”,
através da imposição de um novo marco temporal, o rebelde e combativo 20 de
novembro, protagonizado pelo negro Zumbi. Aqueles que buscam, através do processo
de insistência na rebeldia escrava representada por Zumbi, colocar em voga uma nova
data chave para pensar e representar o passado escravo, “jogam” no campo do
“adversário”. Adaptam-se a um campo de possibilidades já posto e mapeado,
apropriando-se das brechas e malhas de tal sistema para o seu benefício, sem dúvida de
intenções transformadoras.
Através de tal exposição Sidney Chalhoub apresenta a sua interpretação de como
os escravos agiam frente às adversidades de sua época. Em outras palavras, as já
bastante citadas nesta monografia condições históricas, no caso de possibilidade e
limitação social estabelecidas pelos dominantes. De acordo com o próprio:
O fato de muitos escravos terem seguido este caminho não significa que
eles tenham simplesmente “espelhado” ou “refletido” as representações
de seus “outros” sociais. Os cativos agiram de acordo com lógicas ou
racionalidades próprias, e seus movimentos estiveram sempre
firmemente vinculados a experiências e tradições históricas particulares e
originais. E isto ocorria mesmo quando escolhiam buscar a liberdade
76 Idem, p. 252.
47
dentro do campo de possibilidades existente na própria instituição da
escravidão – e lutavam então para alargar, quiçá transformar, este campo
de possibilidades77
.
Ao demonstrar como, em 1988, se deu a luta política dos “de baixo” frente uma
data histórica marcada pela concessão, mapeada pelos dominantes, Chalhoub relembra
que tal prática se dá nos termos delimitados pelos dominadores. Tal constatação
encontra-se com o argumento de sua tese, sobre as ações negras nas últimas décadas de
Império: os escravos lançavam mão de muitos recursos que lhes eram disponíveis para
construir o que entendiam por liberdade (um conceito polissêmico, como Sílvia Lara
expõe no artigo que fecha esta polêmica, sobre o qual escreveremos posteriormente) –
até mesmo de precedentes abertos dentro do sistema jurídico de então, ou seja, de
pontos existentes dentro daquele que é o clássico instrumento de dominação. Por qual
motivo o autor lança mão de tal exposição? Segundo o próprio:
Algumas pessoas ficarão decepcionadas com as escolhas destes escravos
que lutaram pela liberdade, resolutamente por certo, mas sem nunca
terem se tornado abertamente rebeldes como Zumbi. Essa é uma
decepção que temos de absorver, e refletir sobre ela, pois para cada
Zumbi com certeza existiu um sem-número de escravos que, longe de
estarem passivos ou conformados com sua situação, procuraram mudar
sua condição através de estratégias mais ou menos previstas na sociedade
na qual viviam. Mais do que isto, pressionaram pela mudança, em seu
benefício, de aspectos institucionais daquela sociedade. E que os
defensores da teoria do escravo-coisa não me venham com a afirmação
de que tais opções de luta não são importantes: afinal, combater no
campo de possibilidades largamente mapeado pelos adversários é
exatamente o que fazem ao insistirem em Zumbi e na rebeldia negra.78
Através deste “constrangimento” aos “defensores da teoria do escravo-coisa”,
Sidney Chalhoub busca valorizar a atuação social de marginalizados de um século atrás,
bem como afirmar sua interpretação histórica. Sem dúvida sua escrita da História tem
plenas relações com o contexto do fazer político de seu tempo.
Traçadas resumidamente as condições da conjuntura em que se gesta a polêmica
entre Gorender, Chalhoub e Lara, encaminharemos nossa análise para a “batalha
intelectual” entre os autores, na qual se colocavam em causa diferentes versões sobre o
77 Idem. 78 Idem, pp. 252-253.
48
passado escravista brasileiro, bem como duas formas de se escrever a história.
2.4 A POLÊMICA EM SEU CONTEXTO HISTÓRICO E TEÓRICO: CONFRONTO
NAS PÁGINAS DA FOLHA DE SÃO PAULO
Como visto anteriormente, mudanças ocorreram na forma com que se escrevia a
História no Brasil. Os estudos sobre escravidão não passaram incólumes por tal
processo, sofrendo renovação também. O novo “estado da arte” leva Gorender a
escrever o seu A escravidão reabilitada, livro não sobre a “escravidão em si”, porém
sobre a historiografia produzida referente a este tema. Seu livro merecerá uma resenha
de Sidney Chalhoub, nas páginas da Folha de São Paulo, com o título “Gorender põe
etiquetas nos historiadores.” (24/11/1990) As citações neste subcapítulo são todas das
publicações de Chalhoub, Gorender e Lara no jornal, sendo adiante referidas, não sendo
assim referenciadas a cada momento79
. Quando citarmos algo diverso destes específicos
escritos, indicaremos.
O debate historiográfico sobre duas das interpretações do fenômeno escravista
no Brasil atinge o espaço público: sai das salas de aula dos programas de pós-graduação
e invade as páginas de um dos periódicos de maior circulação no país. A Folha de São
Paulo, que, entre os meses de novembro de 1990 e janeiro de 1991, publicou a referida
resenha crítica de Sidney Chalhoub, recebeu a réplica de Jacob Gorender e a tréplica de
Sílvia Lara. O que era um debate se faz uma polêmica!
Sidney Chalhoub acusa Jacob Gorender de “etiquetar” os historiadores”, como
fica claro para o leitor no nome atribuído à sua resenha: “Jacob Gorender põe etiquetas
nos historiadores”. A acusação empreendida pelo historiador carioca se opera através de
uma comparação de Gorender com Simão Bacamarte, personagem fictício criado por
Machado de Assis em uma de suas mais famosas estórias: “O Alienista”. Eis como
Chalhoub compara o sujeito real e o personagem literário:
No conto de Machado de Assis, Bacamarte quer estudar profundamente a
loucura, determinar-lhe os diversos graus, classificar-lhe os casos etc.,
num procedimento taxonômico bastante característico do século 19. Em
“A Escravidão Reabilitada” (sic), a monomania classificatória se ocupa
dos historiadores que se atreveram a escrever sobre a história da
79 Destacamos que ambos os artigos publicados por Gorender, Chalhoub e Lara na Folha de São Paulo,
objeto aqui em questão, encontram-se digitalizados, em ordem de sua publicação, nos anexos deste
trabalho, tendo em vista o acesso à fonte para verificação.
49
escravidão e da abolição no Brasil em anos recentes – especialmente
depois de 1978, ano em que Gorender fez saber ao mundo que havia
descoberto as leis eternas e imutáveis que regiam o funcionamento do
modo de produção escravista colonial.
De acordo com Sidney Chalhoub, Gorender, em sua sanha de classificar os
historiadores, encontra uma maioria de “reacionários”. Tais “reacionários” seriam
aqueles que empreenderam uma “reabilitação” das ideias defendidas por Gilberto Freyre
em seu clássico “Casa Grande & Senzala”, quais sejam: o paternalismo na escravidão
brasileira e o mito de democracia racial.
Cabe atentar para a linguagem que é utilizada por Chalhoub ao comentar o
objetivo de Gorender na escrita de “A Escravidão Reabilitada” (título da obra este que,
sempre que é referido na resenha, é acompanhado da expressão “sic”, já denotando
reprovação às idéias expressas pelo autor).
Segundo Chalhoub, o objetivo de Gorender é “[...] explicar a seus leitores aquilo
que ele realmente acha, e achou desde sempre, sobre este ou aquele aspecto da história
da escravidão.”
A ridicularização dos pressupostos de Jacob Gorender segue junto à comparação
continuada deste com Bacamarte, no momento em que Chalhoub diz que o militante
comunista, ao contrário do médico alienista da literatura brasileira, não procede pela
pesquisa empírica e teste de teorias. Enquanto Simão Bacamarte testava seus
pressupostos teóricos na observação empírica, reavaliando a validade de suas teses
quando necessário, Jacob Gorender, nas palavras de Sidney Chalhoub:
[...] nunca fez uma pesquisa histórica prolongada nos arquivos da
escravidão brasileira – limitou-se, até hoje, a ler alguns documentos
impressos e livros de viajantes –, e então fundamenta seus procedimentos
de crítica historiográfica no truque e na pilhagem.
Da crítica de “não familiaridade” com o trabalho empírico – marca fundamental
no métier do historiador - o autor passa a caracterizar o método de Gorender como uma
“ventriloquia”. O próprio Chalhoub explicará sua metáfora: “[...] trata-se da arte de
fingir que é um outro sujeito quem fala, quando na realidade é ele mesmo quem está
falando. O método permite que o autor reconstitua os argumentos dos outros a seu bel-
prazer.” A ventriloquia serviria a Gorender para, principalmente, esquecer o que havia
escrito outrora, não reconhecer ideias anteriormente defendidas sendo “[...] o outro dele
50
mesmo.” O uso da ventriloquia mascara a contradição, de acordo com Chalhoub, das
afirmações de Gorender em suas duas obras sobre a escravidão: O escravismo colonial e
A escravidão reabilitada.
O autor da resenha utiliza uma citação de O escravismo colonial, afirmando que
Gorender as tinha omitido, falseando assim o que afirmara ali, na dita obra. Através dos
trechos selecionados, segundo Sidney Chalhoub, podemos aproximar, por meio do
truque da ventriloquia em si mesmo, Gorender da teoria do escravo-coisa – o que este
nega. O “método da pilhagem” que Gorender se utilizaria, pelas palavras de Chalhoub,
na sua crítica historiográfica: “[...] consiste na prática gorendista de pinçar documentos
isolados de seu contexto para 'comprovar' as leis do modo de produção etc.”. Eis os
trechos que, como mencionados por Chalhoub, comprovariam a ventriloquia do autor de
“A escravidão reabilitada” (“esquecidos” por este, para citarmos o historiador carioca):
Seu comportamento [o dos escravos] e sua consciência teriam de
transcender a condição de coisa possuída no relacionamento com o
senhor e com os homens livres em geral. E transcendiam, antes de tudo
pelo ato criminoso [frase agora omitida por Gorender]. O primeiro ato
humano do escravo é o crime.
Porém, apesar de não desenvolver este ponto final em sua crítica à Escravidão
reabilitada, a conclusão de sua resenha não é menos provocadora. Com a expressão
“lógica do expurgo”, que Chalhoub relaciona a quem utiliza termos como
“reacionarismo” e “reabilitação” (utilizados por Gorender), temos a relação indicada
deste com o estalinismo, o que nos sugere que críticas intelectuais (ao menos esta, em
específico) muitas vezes transcendem o campo científico e comportam fortes cargas
políticas.
Jacob Gorender afirma, em sua réplica à crítica de Sidney Chalhoub (a qual
possui o irônico título de “Como era bom ser escravo no Brasil” - também presente no
Caderno Letras do mesmo jornal, publicada no dia 15 de dezembro de 1990), que o seu
estudo em “O escravismo colonial” é sobre “[...] a contradição inerente ao escravo
entre ser coisa e ser pessoa.” Tal contradição, escreve Gorender, é resultado do
tratamento social (através do que chama de “Direito dos regimes escravistas nas
Américas”) dispensado aos negros cativos, tornados mercadorias passíveis de venda,
aluguel, empréstimo, transmissão de propriedade etc. no sistema escravista, porém ainda
51
seres humanos dotados de subjetividade. Eis a novidade na tese de Jacob Gorender: a
diferença fundamental entre coisificação social e coisificação subjetiva.
O autor da réplica retoma a sua ácida linguagem com relação a Chalhoub,
chamando este de “cuspidor”, para reforçar que ele havia escamoteado um trecho de sua
obra, o qual constituiria “[...] a súmula da argumentação [de Jacob Gorender]”. Qual
era esta súmula? Que a condição de “coisa possuída” era transcendida pelos escravos ao
relacionar-se com outras pessoas, especialmente pelo crime, sendo este o seu “[…]
primeiro ato humano”. E por que o primeiro ato humano do escravo era o crime?
Porque a legislação escravocrata, que Gorender afirmava, no início de sua replica,
coisificar socialmente os escravos, qualificava estes “[...] como pessoas ao lhes atribuir
responsabilidade penal”. Sua subjetividade humana era reconhecida, socialmente,
quando cometia um crime. É assim que Gorender exemplifica a já referida “contradição
inerente ao escravo”, e é assim que se defende da acusação de ter falseado citações de
sua própria obra – como vimos anteriormente, Chalhoub acusa Gorender de entrar em
contradição em duas obras suas, o que seria mascarado pelo recurso da “ventriloquia”.
Temos aqui também um lembrete do militante comunista que cabe ressaltar, dado sua
importância no debate sobre a agência escrava, em especial se lembrarmos os resultados
obtidos nos estudos da Escola Sociológica da USP: “E esclareço que jamais aceitei a
coisificação subjetiva do escravo como fato geral.”
O conceito que causa impacto, ao menos neste momento do debate (o mais
violento), é o de coisificação, como o próprio Gorender explicitará aqui:
Em 1975, não tinha em vista teses então inimagináveis e inacreditáveis.
Para correntes historiográficas fortalecidas então nas universidades de
São Paulo e de outros Estados do país, coisificação se tornou palavrão
comumente grafado entre aspas pejorativas. Joga-se no mesmo balaio a
coisificação subjetiva do escravo – caso-limite, conforme escrevi – e a
coisificação social, imposta a todos os escravizados.
Os autores em contenda com Gorender, de acordo com o mesmo, além de
condenarem o uso do termo coisificação (o qual seria mal-entendido por aqueles em sua
critica), aproximam-se da famosa interpretação de Gilberto Freyre, presente em “Casa
Grande & Senzala”. São “neopatriarcalistas”! Afirmam existir algo como “castigo
justo” (referência clara a “Campos da violência”, tese em que dois dos capítulos têm
nome bastante semelhante a este termo), bem como proteção legal do Estado, através de
“leis equitativas”, configurando assim um quadro em que a negociação (outra
52
expressão nada gratuita, dado ser título de importante livro sobre a escravidão brasileira,
de João José Reis e Eduardo Silva) é constante na relação social.
Interessante é pensarmos a comparação feita por Jacob Gorender do quadro que
(em sua interpretação) a historiografia recente da escravidão pinta do passado brasileiro
com os eventos políticos próximos à época de escrita dos artigos (e a idealização criada
por seus atores):
Tão pacífica que o processo da abolição teria sido conduzido de maneira
“lenta, gradual e segura” pelos estadistas do Império escravocrata, com
relevo para o visconde do Rio Branco e o senador Nabuco de Araújo. Os
próprios cativos teriam dado seu consenso à política de hegemonia dos
escravistas, condensada na célebre fórmula do presidente Geisel com
antecipação de um século.
Suas críticas finais recaem sobre as “tendências acadêmicas” contemporâneas
suas, as quais “desenharam semelhante perfil histórico mistificador”, reabilitando assim
o escravismo, o que acaba por motivar o título de seu, até então, mais recente livro.
Como síntese de suas acusações, citamos:
Na ilha-fantasia das Bermudas, o personagem de “A Tempestade” de
Shakespeare se deixou arrebentar pelo enlevo do “admirável mundo
novo”. Hoje, se acreditasse nas teses universitárias da historiografia
pretensamente avançada, decerto poderia exclamar: “Admirável mundo
velho! Como era bom ser escravo no Brasil!”
Um mês depois, no dia 12 de janeiro de 1991, novo fogo na polêmica: Sílvia
Lara publica uma tréplica no mesmo jornal, com um título forte, como o de seu colega
Chalhoub: “Gorender escraviza história”. Seu objetivo é expor o que classifica como
“[...] algo oculto nessa discussão”, o elemento político presente na análise histórica dos
autores, o motivador de “[…] tantas linhas a discutir se os escravos eram, afinal,
'coisas' ou sujeitos de sua própria história”, não explícito para os leitores habituais do
veículo informativo, pressupostos desconhecedores do “estado da arte” sobre a
produção historiográfica referente à escravidão no Brasil.
Lara aponta ao que nos interessa pesquisar neste trabalho: que o historiador não
está ausente de seu tempo e neste caso, de um debate no interior das esquerdas. Seu
argumento procede através uma análise dos termos utilizados por Gorender, os quais
53
tornariam explícito o posicionamento político do autor, deixando manifesto de quais
pontos o mesmo parte para o debate.
Nesse texto encontramos a crítica até então mais forte à produção de Gorender
(na polêmica que aqui enfocamos). O que antes foi sugerido por Chalhoub é agora
explicitado por Sílvia Lara: a presença de vícios estalinistas na produção histórica de
Gorender. Quais seriam estes vícios? Para a historiadora, a “[...] velha crença de que
uma boa 'teoria geral' substitui com vantagens o diálogo com as evidências”. Temos
então a presença de um dos principais eixos com que a batalha das ideias se desenvolve:
a tensão entre teoria e empiria. Outra importante questão da teoria social contemporânea
também se faz presente na argumentação: a relação entre os sujeitos históricos e a
estrutura.
Jacob Gorender, no quadro construído por Lara, através do enfoque teórico
marxista, especificamente o de “[...] uma certa tradição […], para a qual a 'Grande
Teoria' obscurece qualquer relação com a multiplicidade da experiência social”, e
fechado em tal teoria, aponta os erros da historiografia sobre a escravidão e ignora o
trabalho empírico com as evidências históricas, a pesquisa nas fontes. Através de tal
procedimento, Gorender produz uma interpretação do Brasil escravista como uma
estrutura de dominação rígida, sem espaço para a ação dos escravos.
Como resposta à postura que atribui ao autor baiano, Lara apresenta aos leitores
um quadro de insurreição intelectual “[...] contra concepções desta natureza [...]”
surgido em outro contexto: a década de 1960 na Inglaterra. Temos aqui anunciado
aquele que constitui a influência central para o novo grupo de historiadores não só do
trabalho escravo, mas do trabalho livre também: o já referido Edward Palmer
Thompson.
O historiador inglês é tido como exemplo dentro das lutas intelectuais internas
do marxismo. Integrante do que se convencionou chamar de grupo dos historiadores
marxistas britânicos, Thompson possuía uma trajetória de polêmicas acirradas com
outros adeptos do materialismo histórico, dentre os quais destacamos Perry Anderson e
Louis Althusser. Suas contendas, tanto com Anderson quanto com Althusser se
encontram em um de seus mais populares livros “The poverty of theory and other
essays”80
, originalmente publicado em 1978.
80 A edição brasileira desta obra, publicada em 1981 pela editora Zahar, contém apenas o primeiro dos
ensaios anunciados (com o título traduzido para “A miséria da teoria”), sendo os seus outros ensaios,
traduzidos, encontrados em publicações fragmentadas, das quais destacamos a compilação feita por
54
Como o exemplo de Thompson apareceria na historiografia da escravidão, de
acordo com Lara? A autora responde nesta citação:
Não nos preocupamos em saber se os escravos agiam ou não segundo as
leis de um bem construído conceito de modo de produção ou qualquer
outra modalidade teórica disponível no mercado. Ao estudar a escravidão
no Brasil procuramos encontrar e ouvir os escravos: não conceitos
abstratos, nem arquétipos de heróis ou vítimas. Em nossos textos, os
escravos, fugitivos e libertos, têm nomes. Suas histórias mostram como
seres humanos submetidos à escravidão tinham outros valores e projetos
– diferentes daqueles de seus senhores – e lutaram por eles enquanto
escravos. Construíram alternativas de vida, lutaram de diversas formas e
conquistaram “direitos”, transformando as próprias relações de
dominação a que estavam submetidos. Suas ações e valores só podem ser
compreendidos no interior através das relações sociais tecidas por eles e
seus senhores. Deixar de lado noções anacrônicas de violência e
liberdade significa apenas dar voz para esses homens e mulheres
afirmarem suas concepções a respeito destas palavras.
A contenda fundamental entre Gorender e os outros autores é referente ao peso
que a agência escrava possui em seu contexto frente às determinações estruturais do
sistema escravista. Em tal ponto é inevitável pensarmos na relação com a chamada
tensão entre sujeito e estrutura, debate privilegiado nas ciências humanas e que
especialmente a partir do trabalho dos historiadores marxistas britânicos é recolocado na
agenda dos historiadores, dentre os quais os referidos investigadores da Unicamp,
depois de uma longa tradição de um marxismo ortodoxo mecanicista ligado ao
Stalinismo e de uma versão “reabilitadora” teoricista ligada ao pensamento de Althusser,
nas quais os sujeitos eram simples produtos das estruturas ou do modo de produção.
Por um lado, este contexto teórico, aqui tão simplificado é o que podemos
identificar no trabalho de Gorender com sua ênfase nas determinações do modo de
produção:
Os homens seriam iguais às formigas ou às abelhas se houvessem se
fixado na forma originária das suas forças produtivas. Não teriam outra
história que não fosse a história natural, ou seja, a história diretamente
determinada pelas condições naturais externas. Do ponto de vista
propriamente humano, não teriam história. Sabemos, porém, que os
Alexandre Fortes e Antonio Luigi Negro, já citada anteriornente. Cf: MÜLLER, Ricardo G.;
MUNHOZ, Sidnei J. Edward Palmer Thompson. IN: LOPES, Marcos Antônio; MUNHOZ, Sidnei J.
(orgs.). Historiadores de nosso tempo. São Paulo: Alameda, 2010.
55
homens acumulam e transformam suas forças produtivas. A começar por
eles próprios como força produtiva dotada de subjetividade e
intencionalidade. Possuem, por conseguinte, uma história que é obra do
seu ser social e não das condições naturais externas. [...] Da
transformação das forças produtivas, por sua vez, se gera a
descontinuidade da história, a substituição de relações de produção já
incompatíveis com o caráter adquirido pelas forças produtivas por novas
relações de produção, a sucessão dos modos de produção e das
formações sociais. O estudo de uma formação social deve começar pelo
estudo do modo de produção que lhe serve e base material. As formações
sociais podem conter um único modo de produção, o que lhes atribuirá
homogeneidade estrutural. Podem conter, no entanto, vários modos de
produção, dos quais o dominante determinará o caráter geral da
formação social. Comumente, os próprios modos de produção não são
puros, mas encerram categorias insuficientemente desenvolvidas ou
decadentes, que representam embriões ou sobrevivências dos modos de
produção diferentes. O objeto desta obra, estritamente limitado, é o modo
de produção escravista colonial. Por conseguinte, somente o fundamento
da formação social escravista, não toda ela. 81
Da mesma forma podemos identificar os trabalhos de Silvia Lara e Sidney
Chalhoub na vertente teórica que se volta aos sujeitos e seu protagonismo histórico, o
que lhes permitiu, penetrar nas experiências concretas de escravos que, afinal, não eram
“coisas” o que é bem expresso nas citações destes pesquisadores da UNICAMP abaixo
transcritas:
Escreve Sílvia Lara em Campos da Violência:
Mais que definir seu grau de incidência, descrever seus procedimentos,
estudar suas ocorrências particulares, ou discutir a qualificação do
cativeiro como “suave” ou “cruel”, procuramos penetrar nos
mecanismos que lhe deram origem, questionar suas limitações e
justificativas e, especialmente, recuperar o modo como senhores e
escravos viviam e percebiam sua prática. Ultrapassando a simples
descrição dos castigos e a denúncia veemente da violência em termos
gerais para perguntarmos pela sua especificidade, mergulharmos nas
vivências senhoriais e escravas da escravidão, na dinâmica de seus
confrontos cotidianos, nas relações de luta e resistência,
acomodamentos e solidariedades vividos e experimentados por aqueles
homens e mulheres coloniais82
.
E Sidney Chalhoub, em Visões de liberdade, acrescenta:
81 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978. pp. 24-25. 82 LARA, Sílvia H. Campos da violência: estudo sobre a relação senhor-escravo na capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 22.
56
Este livro foi uma contestação, mais ou menos explícita ao longo dos
capítulos, mas sempre presente, daquilo que batizei aqui de “teoria do
escravo-coisa”. Tal teoria – tão difundida na produção historiográfica
que é quase supérfluo ficar arrolando nomes de autores – defende a
idéia que as condições extremamente duras da vida na escravidão
teriam destituído os escravos da capacidade de representar o mundo a
partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídos
pelos próprios senhores. […] Procurei demonstrar também que a outra
face da teoria do escravo-coisa é a ênfase na rebeldia negra. Apesar das
diferenças de formulação, a idéia sempre presente aqui é a de que as
práticas mais abertas de resistência por parte dos negros eram a única
maneira de eles se afirmarem como pessoas humanas, como sujeitos de
sua própria história83
.
No ano de 1992 a polêmica seguiu suscitando novos resultados, porém fora do
âmbito público. A discussão retorna aos muros da academia, especificamente na Revista
de História do Laboratório de Pesquisa Histórica da Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP), número 1, 1992. Sílvia Lara e Jacob Gorender, em um dossiê sobre o
tema da escravidão, publicam um artigo cada, retomando pendências das notas
anteriormente presentes nos jornais.
Este momento da discussão, no entanto não será abordado aqui, pois
consideramos que os artigos da folha de São Paulo são suficientes para as intenções e
limite de extensão deste trabalho.
2.5 ALGUNS COMENTARISTAS DO DEBATE
Esta polêmica e o debate historiográfico mais amplo que ela expressa ou sucitou
não podem ser considerados pontuais ou apenas um fato jornalístico.
Uma prova disto é que as discussões sobre o trabalho escravo no Brasil estão
presentes em uma vasta bibliografia, que a seguir procurei indicar e caracterizar alguns
exemplos.
Márcia Lupion, em seu artigo “A gênese da história do trabalho e dos
trabalhadores no Brasil e os paradigma da 'transição' e da 'substituição'”, contrapõe os
historiadores Sílvia Lara e Sidney Chalhoub (bem como Robert Slenes) aos intelectuais
83 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990. pp. 249-250.
57
ligados à USP (a chamada Escola Sociológica da USP), ao estudar as continuidades
entre o trabalho do escravo negro com o operariado nascente no início do século XX.
Tal artigo ajuda a compreender alguns pressupostos de Lara e Chalhoub, mas não cita a
polêmica objeto da pesquisa, nem mesmo os contrapontos com Jacob Gorender (sejam
os publicados nos folhetins, sejam os presentes nas suas publicações acadêmicas),
focando-se na produção paulista apenas84
.
Em relação ao nosso objeto de pesquisa, é Suely de Queiróz quem, no texto
“Escravidão negra em debate”85
, que discorre sobre a polêmica em si – mas não
problematiza as influências e intencionalidades nas manifestações de Lara e Gorender,
detendo-se apenas em posicionar-se frente ao tema em discussão, no caso de forma
contrária às concepções de Sílvia Lara. Destaca-se que o artigo de Queiróz integra um
livro destinado a apresentar o “estado da arte” da historiografia brasileira, reunindo
reflexões sobre múltiplas temáticas, como historiografia do movimento operário,
influência dos Annales e problematização do livro didático.
Leandro Fontella e Luís Augusto Farinatti também produzem um artigo de
síntese sobre a historiografia da escravidão brasileira86
. Os autores caracterizam
Gorender como alguém: “[…] vinculado a uma tradição teórico-conceitual e
metodológica marxista estruturalista leninista [...]”, um posicionamento que sofrerá
oposição do que chamam “historiografia do escravo real”, a qual compreende Lara e
Chalhoub. Destacamos a lembrança (nem sempre explícita em alguns casos) de Fontella
e Farinatti tanto aos centros de pesquisa em que tal historiografia se desenvolve, quanto
à uma influência teórica que é presente em tal produção, qual seja, a de Edward Palmer
Thompson87
. Importante também no artigo que citamos é a menção às reações de Jacob
Gorender aos seus contrários, bem como a citação a um historiador que segue a mesma
interpretação do comunista baiano sobre a historiografia mais recente da escravidão:
84 LUPION, Marcia. “A gênese da história do trabalho e dos trabalhadores no Brasil e os paradigmas
da “transição” e da “substituição”. IN: http://www.revistatemalivre.com/trabalho11.html. Acesso
em: 29/08/2011. 85 QUEIROZ, Suely Robles de. Escravidão negra em debate. IN: FREITAS, Marcos Cezar de.
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. pp. 103-118. 86 FONTELLA, Leandro e FARINATTI, Luís Augusto. Acomodação, negação e adaptação: Debate
historiográfico entre Gilberto Freyre, Jacob Gorender e a historiografia do escravo real (historiografia
da escravidão no Brasil). IN: Disc, Scientia Série Ciências Humanas, Santa Maria. v.9, nº1, 2008. pp.
121-140. 87 Idem. p. 132.
58
José Carlos Reis (historiador brasileiro que, é válido salientar, não é especialista em
escravidão, dedicando seus estudos à teoria da história e história da historiografia)88
.
Sobre o debate específico de Gorender com a “historiografia do escravo real”, os
autores do artigo afirmam ocorrer (de maneira implícita) a oposição entre:
[…] duas correntes teórico-conceituais e metodológicas marxistas: a
corrente estruturalista, neste debate específico representada por J.
Gorender; e a corrente culturalista, baseada nas interpretações de Marx
promovidas por E.P. Thompson, as quais filiam-se diversos historiadores
da HER [historiografia do escravo real].89
Demian Melo90
, em uma proposta de discutir a historiografia brasileira atual,
classificará a produção de Sílvia Lara (e de outros autores não discutidos diretamente
aqui, como Sheila de Castro Faria e João Fragoso) como revisionista. Tais autores se
legitimariam pela caricatura – nas palavras do citado historiador – dos debates
anteriores sobre seu tema (em específico as interpretações de Caio Prado Jr e Fernando
Novais, e de seus divergentes, Ciro Cardoso e Jacob Gorender), informados “[...] pelos
ares da crítica pós-moderna”. A influência pós-moderna, segundo sugere Melo, leva
Lara e os outros já citados a descontruir os paradigmas anteriores, mais calcados em
pretensões totalizantes, dotados de uma teoria de caráter estrutural. A proposta dos
“novos historiadores” (assim citados por ele) é a de uma consistência empírica em seus
trabalhos como contraponto a um anterior teoricismo presente na produção
historiográfica.
Outros historiadores, estudiosos de temas tão dinâmicos na historiografia
nacional quanto a escravidão (populismo, golpe de 1964 e ditadura civil-militar),
também são acusados por Melo de “revisionismo”, pós-modernismo e coisas piores, mas
aqui não cabe comentar.
O resultado geral dos estudos criticados indica a presença da negociação como
constante na sociedade, o que, segundo o autor, impossibilita a crise estrutural do
sistema em questão e, por consequência, a possibilidade de sua transformação, postura
esta que é defendida pelo autor do artigo que discutimos.
88
Idem, p. 133. 89 Idem, p. 136. 90 MELO, Demian Bezerra de. Considerações sobre o revisionismo: notas de pesquisa sobre as
tendências atuais da historiografia brasileira. IN: XII Conferência Anual da Associação Internacional
para o Realismo Crítico, 2009, Niterói. Anais da XII Conferência Anual da Associação Internacional
para o Realismo Crítico, 2009.
59
Jurandir Malerba, em seu “A História na América Latina”91
(obra de síntese
sobre tendências historiográficas da região nas últimas cinco décadas), define a obra de
Sílvia Lara como um esforço analítico para resgatar a experiência dos escravos
enquanto sujeitos históricos, superando assim: “[...] o entendimento do escravismo
como sistema de dominação insuperável no qual os escravos eram vítimas impotentes
[...]”92
. De acordo com Malerba, Lara – e os outros autores que cita como revisores na
ideia de resistência escrava (João José Reis, Sidney Chalhoub etc.) - não negam o
sistema de dominação complexo que é o escravismo, porém não percebem no mesmo
determinações de qualquer instância (econômica, cultural etc.).
A influência de tais autores sobre a posterior produção historiográfica referente à
escravidão foi enorme, configurando um quadro, novamente segundo Malerba, de
completa renovação nesta área de estudos.
*****
Depois de apresentar alguns autores que se relacionam com o tema da polêmica
historiográfica, passaremos a algumas considerações finais sobre este trabalho de
conclusão de curso.
91 MALERBA, Jurandir. A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro:
Editora da FGV, 2009. 92 Idem, pp. 76-77.
60
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E nisso tudo, talvez seja mais conveniente terminar dizendo que a
História pode não ser a melhor nem a mais importante entre as ciências
humanas e sociais, mas talvez tenha sido, pela sua iniludível vocação de
prender-se ao fluxo do passado e às contingências da vida, a mais
diretamente capaz de pensar as transformações do país. Porque, afinal,
forjada na impermanência, presa aos fluxos da vida social, virada e
revirada, inventada e reinventada pelos remoinhos do tempo, a História
pode iluminar, como um clarão emancipador, o Brasil do presente – que é
onde toda vocação do historiador começa e para onde toda história deve
retornar.
(Elias Thomé Saliba, 2002)
É com as palavras finais do prefácio à obra “Conversas com historiadores
brasileiros” que buscamos encaminhar a conclusão deste trabalho. Acreditamos que o
sentido de uma polêmica historiográfica (o que é o nosso objeto central de análise)
encontra-se sintetizado na citação acima: através da mudança, os historiadores pensam e
repensam o seu passado e, em especial, o seu presente. Posicionamentos se confrontam,
tanto na face de referenciais teóricos quanto de orientações de teor político. O objetivo
geral, porém, é o mesmo: pensar a transformação, o como o “hoje” foi construído
enquanto tal – uma atualidade que, como Saliba salientou acima, institui
questionamentos e é ponto de retorno, preocupação chave, tomamos a liberdade de
afirmar, do historiador.
*****
Nas divergências interpretativas entre Jacob Gorender, Sidney Chalhoub e Sílvia
Lara podemos perceber alguns traços que devem ser discutidos neste momento.
A contribuição de ambos os historiadores foi fundamental no campo de estudos
sobre a escravidão no Brasil. Gorender, na discussão sobre qual modelo melhor se
adaptava ao estudo da economia colonial marcou terreno entre os que postulavam a
existência de um modo de produção específico da formação social brasileira, juntamente
com Ciro Cardoso. Chalhoub e Lara, entre os pesquisadores comprometidos com o
estudo das experiências dos “de baixo”, também tiveram importância. Recuperaram a
forma com que os escravos agiam perante as adversidades de sua condição, como se
adaptavam, resistiam e utilizavam de possibilidades presentes na estrutura em que se
61
inserem. Nota-se que o desejo de repensar a escravidão não é o que os opõem e sim
divergências profundas nesse entendimento fizeram com que ocorressem violentos
confrontos entre eles (ao menos nas páginas de livros e jornais, onde tinta é derramada,
ao invés do sangue adversário). Por que isto aconteceu?
Vivia-se um momento de mudanças no conhecimento histórico (as quais,
destacamos, não são filhas das décadas de 1970 e 1980, mas sim fruto de um processo)
e na política nacional.
A historiografia baseada nos pressupostos do paradigma científico moderno
encontrava-se em xeque, questionada por uma série de novas teorias que punham em
causa a própria possibilidade de alguma representação objetiva do passado. Por outro
lado, fora do escopo do irracionalismo, também surgem sopros de renovação no
pensamento histórico.
Na Itália, pesquisadores ligados à Einaudi buscam entender o funcionamento da
totalidade social através de um novo foco, realizando as suas investigações através do
olhar no micro.
Na Inglaterra, um grupo de historiadores ligados ao Partido Comunista (os quais
depois, em sua maioria, desligam-se deste) também sugerem novas direções para a
História que se pesquisava e escrevia naquele país. De uma produção interessada nos
“do alto”, parte-se para uma revisão em que os subalternos são os sujeitos históricos. É
no estudo de suas experiências concretas que o seu protagonismo surge, uma marca que
faz com que os marxistas britânicos exerçam grande influência na historiografia.
Tais modificações não aconteceram sozinhas, “por si”, pois são filhas de novas
perguntas, as quais são formuladas pelo historiador. Seus questionamentos obedecem ao
tempo em que se inserem. Relacionam-se com a estrutura e conjuntura em que aquele
vive.
Ao retornarmos ao Brasil, no momento da divergência historiográfica que
analisamos, percebe-se um quadro de intensas modificações políticas. De um regime
autoritário que marcava suas duas décadas de duração, surge uma situação em que os
trabalhadores mostram sua possibilidade de protagonismo histórico nas grandes greves
no ABC paulista, diferentes movimentos sociais ganham visibilidade na luta por suas
causas.
Novos tempos exigiam novas respostas! A análise do passado brasileiro, feita na
década de 1980, se modifica. Está relacionada com as demandas de sua época, é fruto
do questionamento dos historiadores, os quais se inserem na sua sociedade. Na
62
historiografia brasileira dedicada às relações de trabalho são grandes as modificações. O
foco passa a ser detido nas ações dos explorados, em como estes sujeitos fazem a sua
história, atuam na sociedade, buscam construir melhorias para si. Jacob Gorender,
Sidney Chalhoub e Sílvia Lara estão presentes em tal processo de mudança,
respondendo de maneiras diferentes a tal prerrogativa.
Através da polêmica que travam no jornal, ponto máximo em que suas críticas
mútuas chegam, antes restritas às páginas de seus livros e aos anais dos simpósios
acadêmicos, podemos estudar a relação entre a construção do conhecimento histórico, a
mediação do historiador que lhe dá vida, e todas as condicionantes que influem neste.
Neste estudo de caso ficam evidenciadas as demandas sociais que orientam as
problemáticas históricas: Gorender, buscando lutar com o governo ditatorial brasileiro
(e a estrutura capitalista que lhe sustenta) de forma mais eficaz que seus anteriores
companheiros de batalha socialistas, empreende a releitura do passado de seu país. Para
saber como agir politicamente, o militante antes deve possuir conhecimento da História,
saber como o que deve ser transformado se constituiu enquanto tal. Através de um
enfoque estrutural, o autor busca desvendar as leis que regem o modo de produção
específico da formação social do Brasil, para além dos ditos esquematismos anteriores,
resultado de uma produção intelectual relacionada à militância comunista com
inspiração em Stálin e nos modelos teóricos que concebiam a realidade subjugada à
linearidade dos modos de produção europeus.
Chalhoub e Lara respondem as demandas de sua época e instituição de forma
diferente. Na História que escrevem a perspectiva não é postular quais as leis regem
determinado modo de produção, ou qual o sentido da colônia brasileira, porém
recuperar o protagonismo histórico dos “de baixo”, suas experiências e apropriações,
seu modo de agir socialmente. Não é sem razão que este novo modo de pensar o
conhecimento histórico, que, como ressaltamos, já estava surtindo efeitos em seu país
de origem, repercute nos estudos dos historiadores brasileiros. Há uma mudança de
paradigmas, de uma atenção nas estruturas e suas leis passa-se às pesquisas das relações
sociais dos trabalhadores, em contextos espaciais e temporais definidos, recortados.
Como já escrito anteriormente, no Brasil os trabalhadores mostram o seu “fazer-se”. É
surgido um novo sindicalismo, greves chamam a atenção (em uma sociedade em que as
televisões ampliam o alcance da informação), novos partidos entram na arena da disputa
política. Tal condição histórica no presente sugere uma reconsideração sobre os
personagens históricos estudados. A historiografia representada pelos dois autores aqui
63
citados encontra foco e abrigo em algumas universidades, em que cada vez mais
pesquisas com determinadas características (recorte temporal e espacial claro,
necessidade e explicitação do uso de fontes, diálogo com referenciais teóricos etc.)
surgem e adquirem espaço, através do processo de expansão e consolidação dos
programas de pós-graduação.
Quem (ou se alguém) estava certo na disputa historiográfica ou quem melhor se
aproximou da verdade sobre o processo passado é algo que não nos propomos responder
aqui. O que buscamos contribuir, com este estudo, é em elucidar sobre as relações entre
a historiografia (e os historiadores que a constroem, cabe ressaltar) e a sociedade em
que se insere. O fato de tal divergência ter alcançado espaço em um periódico de grande
circulação nos chamou a atenção para a importância que ela adquiriu em seu tempo.
Polêmica importante sobre um tema central tanto na História quanto na historiografia
brasileira, julgamos que nela podem ser percebidos traços desta relação concreta, mas
nem sempre explícita, entre o objeto de pesquisa e o historiador, mediada pelo contexto
sócio-político e cultural e pelas teorias interpretativas que lhe servem de referência.
*****
Este trabalho começou a ser pensado, de forma bastante preliminar, no primeiro
semestre do ano de 2010. Muito se modificou do que foi previsto no projeto de
pesquisa, para este resultado final. “Um bom trabalho de pesquisa histórica é aquele em
que há uma modificação dos resultados que o autor espera e seu produto final”, foi o
que afirmou a historiadora italiana Sabina Loriga, em conferência na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em outubro de 2011.
Estas últimas páginas são escritas em novembro de 2011, portanto, um mês
depois da referida fala ilustre. Constatamos a validade do que Sabina Loriga disse:
respostas que imaginávamos se modificaram com o desenrolar do trabalho, e nossa
própria percepção sobre o ofício do historiador também mudou neste exercício de
pesquisa.
O tema escolhido, o corpus documental e as questões que o historiador se
propõe, como afirmamos muitas vezes em nosso texto, não são nada inocentes. Pode ser
por causas pessoais ou psicológicas, ou por demandas sociais ou políticas, há algo a
mais do que a mera curiosidade intelectual (a qual, é claro, também se faz presente e
não em pequeno grau) norteando a pesquisa histórica. Durante o período de redação do
64
projeto de pesquisa, e, principalmente, no trabalho empírico e de redação deste texto,
não foi possível (nem mesmo desejado) calar nossa reflexão sobre o por que tal tema,
documentos e questões.
Vivemos hoje um período de crises e incertezas quanto ao conhecimento
histórico. Reduzido à sua mera dimensão narrativa, são excluídos deste os referenciais
extralinguísticos que lhe legitimam e dão base. Tido como apenas um entre tantos
outros discursos, este proclamado gênero literário que tornou-se a História perde a sua
função explicativa, caindo no limbo de mais uma forma de divertir e encantar os
homens. Sem dúvidas nos divertimos e encantamos com a História, porém acreditamos
que ela é maior que isto!
O período em que este trabalho de conclusão foi escrito também testemunhou
algo a mais do que este quadro teórico que não é novo e não acabará tão cedo. Em
variados lugares do planeta, de uma praça no Egito, passando pelas ruas gregas até a
opulenta Wall Street, pessoas insurgiram-se em busca de fazerem a sua própria
História. Pensamos que a famosa frase de Francis Fukuyama, proclamada no início da
década de 1990, está errada: não aconteceu o fim da História.
Frente este duplo quadro que expomos, de uma crise narrativesca no
conhecimento histórico e de movimentação popular como há muito não vista, que
resolvemos pensar os motivos deste trabalho e sua importância, consciente de suas
limitações, em seu contexto. Estudamos aqui uma polêmica entre três autores: Jacob
Gorender, Sidney Chalhoub e Sílvia Lara. O que percebemos de união estre os três – por
mais que sejam discordantes – é a tentativa de compreender, no passado brasileiro, as
mazelas de seu presente. Nosso intento aqui foi o mesmo. Através das obras que, por
meio de referenciais teóricos, pesquisa sólida e articulação abrangente, tentaram
escrever e reescrever aspectos da experiência histórica brasileira como forma de atuar
sobre o presente, foi que tivemos a intenção de entender um pouco das mudanças em
nossa historiografia. E o resultado que alcançamos o leitor pode avaliar neste Trabalho
de Conclusão de Curso.
Sobre as modificações na historiografia brasileira (para o contexto da polêmica
analisada) já tratamos. Fica o caminho aberto para a pesquisa (e, em especial, a
reflexão): quais as modificações que ocorreram no conhecimento histórico produzido no
Brasil, do início da década de 1990 para cá? A resposta para tal questão fica para outro
momento, por ora apenas fica a sugestão (e caminho de pesquisa) que se produza uma
História consciente das demandas de seu tempo e da subjetividade do historiador que
65
lhe constrói, bem como uma História que busque atuar sobre o presente, que através do
estudo do passado construa uma maneira de pensar e atuar perante uma situação
problemática, para além de meros joguetes retóricos deslocados do concreto. Esta foi a
intenção de Jacob Gorender, Sidney Chalhoub e Sílvia Lara. Esta foi a nossa intenção.
66
BIBLIOGRAFIA
Fontes Consultadas
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de Janeiro na Belle Époque. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
______. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
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______. “Gorender põe etiquetas nos historiadores”. Folha de São Paulo, 24/11/1990,
Caderno Letras, p. H-7.
______. Trabalho, lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro na
Belle Époque. Campinas: Editora UNICAMP, 2001.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978.
______. A escravidão reabilitada. São Paulo: Editora Ática, 1990.
______. “Como era bom ser escravo no Brasil”. Folha de São Paulo, 15/12/1990,
Caderno Letras.
______.A escravidão reabilitada. LPH – Revista de História. v.3, n.1, p. 245-,1992.
LARA, Sílvia H. Campos da violência: estudo sobre a relação senhor-escravo na
capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
______.“Gorender escraviza história”. Folha de São Paulo, 12/01/1991, Caderno
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