universidade federal do rio de janeiro faculdade … · há dias em que fico com uma delas tão...

101
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS ADELAIDE TAVARES MONTEIRO LIMA TÍTULO: A língua cabo-verdiana e a política linguística no País – Cabo Verde - Rio de Janeiro 2007 Adelaide Tavares Monteiro Lima

Upload: doankiet

Post on 28-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

ADELAIDE TAVARES MONTEIRO LIMA

TÍTULO: A língua cabo-verdiana e a política linguística no País – Cabo Verde -

Rio de Janeiro 2007

Adelaide Tavares Monteiro Lima

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

2

A língua cabo-verdiana e a política linguística no País – Cabo Verde -

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em letras neo-latina, Faculdade de Letra, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas Orientador: Pierre François Georges Guisan Rio de Janeiro 2007

Adelaide Tavares Monteiro Lima

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

3

TÍTULO: A língua cabo-verdiana e a política linguística no País – Cabo Verde-

Rio de Janeiro, 12 de Março de 2007

____________________________________ Pierre François Georges Guisan, Doutor, UFRJ

______________________________________

Maria Aurora Consuelo Lagório, Doutor, UFRJ ________________________

Mónica Maria Guimarães Savedra, Doutor, PUC-RJ

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

4

Dedicatória

À Ivana e Nádia, “nhas rikeza”, que reavivaram a criança que há em mim; ao meu marido e companheiro Heldeberto; à minha mãe, ao meu pai e aos meus irmãos que sempre apoiaram todos os meus projectos.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

5

Agradecimentos

É muito difícil encontrar palavras certas para demostrar toda a gratidão que sentimos em relação aqueles que acreditaram que o nosso projecto era possível bem como para demostrar o quanto nos sentimos acarinhadas, durante estes dois anos: ao meu orientador, Pierre Guisan e a todos os meus profesores da pós-graduação, em especial do Departamento de Neolatinas, aos meus amigos brasileiros e à malta cabo-verdiana que passaram a ser a minha família, caros amigos: para cada um de vocês, neste momento, eu diria, tal como disse o músico cabo-verdiano, Paulino Vieira,

“AMI DJA N KRIA SER PUETA PA N FAZEBE UN MAR DI PUEZIA ENFEITODE KU UN BON PÔR-DO-SOL (..)” ( Eu queria ser poeta Para te fazer um mar de poesia, Enfeitado com um bom pôr-do- sol (…)”

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

6

Agora tenho duas línguas comigo. Estou sempre trocando de língua com um pouco de medo,

Como se fosse um caso de bigamia. Uma sabe coisas que a outra desconhece,

Acham graça uma de outra, caçoam e às vezes se zangam Afora isso, elas se dão bem, que sonho nas duas ao mesmo tempo.

Há dias em que quero falar uma e me sai a outra. Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir.

(…) Tenho duas línguas comigo

Duas línguas que me fizeram E já não vivo sem elas, nem sou eu, sem as duas.

Dués lhénguas – Amadeu Ferreira Duas línguas – (Tradução feita por José Ribamar Bessa, Freire aprovada pelo autor Amadeu Ferreira)

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

7

RESUMO MONTEIRO LIMA, Adelaide Tavares, A língua cabo-verdiana e a política lingüística no país – Cabo Verde. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Letras neolatinas) Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Esta dissertação mapeia a situação sociolinguística de Cabo Verde, país cuja independência de Portugal aconteceu há 32 anos. Actualmente vive uma situação de contacto de línguas entre o Português, língua oficial e a língua cabo-verdiana, língua materna, não oficial. Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística e de acordo com a definição de diglossia apresentada por Charles Fergusson (1959) e alargada por Joshua Fishman (1967) o contexto linguístico de Cabo Verde tem características típicas de diglossia e foi mesmo considera uma sociedade diglóssica pelos linguistas nacionais. Esta pesquisa confirmou a hipótese inicialmente levantada que neste momento assiste-se a uma redistribuição das funções das duas línguas e a actual situação é mais de contacto de línguas com base na proposta teórica dos sociolinguistas franceses Louis-Jean Calvet (2002) e Claude Hagege (2000) e que a própria política linguística do país, comprova.

RÉSUMÉ

MONTEIRO LIMA, Adelaide Tavares, La langue capverdienne e la politique linguistique dans le pays – Cap -Vert. Rio de Janeiro, 2007. Dissertation (Maîtrise en Lettres neolatines) Faculté des Lettres de l’Université Fédérale du Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Cette dissertation décrit la situation sociolinguistique du Cap Vert, pays dont l’indépendance de Portugal est arrivée il y a 32 ans. Actuellement il vit une situation de contact de langues entre le Portugais, la langue officielle e la langue capverdienne, langue maternelle, non officielle. Encadré dans le domaine d’études de la sociolinguistique et selon la définition de diglossie présentée par Charles Fergusson (1959) et élargie par Joshua Fishman (1967) le contexte linguistique du Cap Vert a des caractéristiques typiques de diglossie et a été même considérée une société diglossie par les linguistiques nationaux. Cette recherche confirme l’hypothèse initialement soulevée qu’en ce moment on assiste a une redistribution des fonctions des langues et l’actuelle situation est plus de contact de langues basée en la proposition théorique des sociolinguistiques français Louis - Jean Calvet (2002) et Claude Hagège (2000) et que la politique linguistique du pays elle même montre.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

8

SUMÁRIO

Introdução________________________________________________________ 9

Objectivos________________________________________________________11

1.A situação linguística de Cabo Verde________________________________12

2.Contexto comunicacional e situacional do uso das duas línguas _________16

3. Caracterização linguística da língua cabo-verdiana __________________26

4. A língua cabo-verdiana e o processo de Crioulização _________________29

5. A construção das línguas nacionais – o caso de Cabo Verde ___________48

6. Análise da situação linguística de Cabo Verde no quadro do modelo

representacional _________________________________________________63

7. A política linguística vigente em Cabo Verde _______________________74

Conclusão_______________________________________________________82 Referências _____________________________________________________83 Anexo __________________________________________________________86 Índice _________________________________________________________100

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

9

Introdução

Esta dissertação vai mapear a política linguística de Cabo Verde

destacando o processo de oficialização da língua cabo-verdiana como língua

nacional, ao lado do português, língua oficial.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa da actual situação linguística de

Cabo Verde, a partir de uma observação não participante do uso das duas línguas

quer nas situações de comunicação oficiais e informais, orais e escritas, em

presença ou à distância.

Nas situações de comunicação oral foram observadas as salas de aula,

mesas redondas, palestras, debates parlamentares, o dia-a-dia nos serviços

administrativos, a comunicação social nacional (Rádio e Televisão) e a

comunicação em ambientes familiares e na rua. Quanto às situações de

comunicação escrita, foram consultados jornais impressos e electrónicos, actas da

Assembleia Nacional de Cabo Verde, ofícios administrativos, literatura

disponível, anúncios escritos na televisão e emails; situações de comunicação oral

são as observações que fizemos de situações de diálogos em ambientes familiares,

na rua e no Parlamento. Consideramos situações de comunicação em presença, as

em que os interlocutores estão face a face e à distância os feitos através de email,

pela Rádio e pela televisão.

Recorremo-nos ao quadro teórico da sociolinguística francesa, com base

nos autores, Louis-Jean Calvet, Henri Boyer e Claude Hagége, cuja ideia

principal é a análise da situação de contacto linguístico como uma situação de

conflito linguístico.

Fazemos uma abordagem macrossociolinguística e na perspectiva

diacrónica.

Para além do factor emotivo que nos impulsionou a estudar a

situação linguística de Cabo Verde, uma vez que somos falantes nativos da língua

cabo-verdiana a oportunidade profissional de leccionar como professora de língua

portuguesa para alunos cabo-verdianos e professora de língua cabo-verdiana para

estrangeiros e, nos últimos cinco anos trabalhamos como redactora na Assembleia

Nacional de Cabo Verde despertou em nós a curiosidade de tentar entender a

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

10

situação linguística do arquipélago. Durante o nosso curso de licenciatura em

Linguística, na Faculdade de Letras de Lisboa, altura em que tivemos o primeiro

contacto com trabalhos de cariz científico sobre a gramática da língua cabo-

verdiana e, de outras línguas que nasceram no mesmo contexto sócio-histórico

aprendemos que a língua materna dos cabo-verdianos é uma língua assim como o

português ou o francês. Mas, não é esta a percepção que se tem quando se está em

Cabo Verde e se fala da oficialização da língua materna dos cabo-verdianos como

língua nacional, apesar de ser esta a língua que mais se houve em Cabo Verde.

Este paradoxo nos inquietou e procuramos à luz da cientificidade entender o

porquê.

A hipótese que levantamos neste processo de eleição da língua

cabo-verdiana como língua nacional é condicionada por dois factores: primeiro

pela atitude paradoxal do locutor cabo-verdiano que ao mesmo tempo que

idolatra a sua língua materna, assumindo que é um aspecto da sua identidade, no

entanto, a vê como uma língua não hegemónica que só se fala em Cabo Verde e

como tal não existe necessidade de a oficializar, introduzindo-a no ensino, por

exemplo; o segundo factor condicionante é a própria concepção de “língua

nacional” assumida como escolha de uma variante de entre as variedades da

língua cabo-verdiana cuja escolha não é consensual. Questionamos, então até que

ponto os factores representacionais sociolinguísticos condicionam a política

linguística em situações de contacto linguístico?

Linha de pesquisa Nosso trabalho insere-se na linha de pesquisa intitulada “Processos

Interculturais Lingüísticos e Identitários” do Programa de Pós-Graduação em

Letras Neolatinas da UFRJ, que estuda as representações e o imaginário

lingüístico-discursivo na construção de identidades; as relações entre indivíduo e

a comunidade nas práticas orais das línguas; o papel da norma, da variação e da

mudança; o status das realizações orais; escrita, prestígio, tradição escolar e

académica na difusão das línguas e abordagem crítica das políticas linguísticas.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

11

Objectivos: - geral : • Contribuir para dar a conhecer a actual situação sociolinguística

de Cabo Verde;

• Participar na busca de uma proposta de política linguística para o

País.

• Desmistificar a ideia de que as línguas crioulas são utilizadas

apenas com função identitária;

• Demonstrar que os discursos coloniais de supremacia das línguas

dos colonizadores ainda hoje se fazem presente através das imagens e

representações sociolinguísticas que os locutores das línguas nascidas neste

contexto sócio-histórico têm;

• Desmistificar a ideia de que a Nação fez aparecer as línguas

nacionais.

- Específico:

• Mostrar que em situações de contacto de línguas, a função, o

papel e o estatuto que as línguas assumem estão condicionadas pelas atitudes,

ideias, imagens e representações que os próprios falantes têm das suas línguas e

interesses outros que não apenas factores linguísticos.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

12

1. A situação linguística de Cabo Verde

A situação linguística de Cabo Verde, em termos estritamente

linguísticos, nada tem de particular se se tomar em conta que é uma sociedade

plurilingue à semelhança de tantos outros países onde os locutores lidam

diariamente com mais do que uma língua. Os cabo-verdianos lidam diariamente

com a sua língua materna, a língua cabo-verdiana1 e a língua portuguesa, a sua

língua oficial. Mas tendo em conta que Cabo Verde é uma ex-colónia e como

todas as colónias, esse processo de colonização acarretou também consigo uma

colonização linguística (CALVET, 1974).

A particularidade da situação linguística cabo-verdiana reside no facto de

que a língua materna dos cabo-verdianos, é uma língua formada em condições

histórico-sociais particulares e a sua definição linguística é sempre feita

recorrendo-se a estas características sócio-linguísticas. Em termos da sua

formação, assunto que será abordado no capítulo sobre a origem das línguas

crioulas, a linguista portuguesa, especialista nos estudos sobre crioulo de Cabo

Verde, Dulce Pereira (1983)2 concordando que Cabo Verde fora descoberto pelos

Portugueses (1461-1462) diz o seguinte sobre o arquipélago: “ (…) fora ocupado

logo no início das navegações portuguesas por europeus nobres e seus servos,

cristãos fugidos às perseguições, alguns africanos e um enorme contingente de

escravos trazidos da costa da Guiné para o cultivo dos géneros de sustentação e

criação de gado e, posteriormente, para as plantações de açúcar. Este povoamento

por um sistema de donatárias, foi feito inicialmente nas ilhas de Santiago e do

Fogo. No princípio do século XVII ainda não tinha começado o povoamento de

Santo Antão, S. Nicolau e Boa Vista. S. Vicente só será colonizado em 1794 .”

Estes dados fazem-nos situar a formação da língua cabo-verdiana

(adiante lcv) em Sotavento, particularmente na Ilha de Santiago que funcionou

1 É frequente encontrarmos a designação da língua materna dos cabo-verdianos como “crioulo”designação utilizada pelos próprios locutores e a expressão “língua cabo-verdiana” utilizada com menos frequência mas ultimamente mais empregue. Nós usaremos a expressão língua cabo-verdiana para evitarmos qualquer mal entendido em relação às outras línguas designadas crioulas. Para além disso, também esta expressão tem ainda mais duas grafias: caboverdiano e caboverdeano. De acordo com o Dictionnaire Encyclopedique et Bilingue - Cabo Verde (2001) foi escritor e filólogo cabo-verdiano Baltazar Lopes quem utilizou pela primeira vez a expressão “cabo-verdiano” designando “língua nacional de Cabo Verde”, em 1947, na revista “Claridade” no texto “Uma experiência românica nos trópicos”, atribuindo assim o estatuto de língua ao crioulo. 2“ Aspectos do contacto entre o português e o crioulo de Cabo Verde”. Separata do Congresso sobre a situação actual da língua portuguesa no mundo, Lx.1983. Vol.II ( pg:294)

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

13

durante mais de um século como entreposto de escravos onde deviam passar

todos os escravos para serem ladinizados. Concretamente, sobre a presença das

línguas que contribuíram para a formação da língua cabo-verdiana a linguista

Dulce Pereira (op.cit.) admite que “(…) a renovação constante dos escravos a par

do êxodo em massa dos senhores, durante a ocupação espanhola, devido aos

ataques dos corsários e à decadência do comércio ( no final do séc. XVII chegou

a população de Santiago a ficar reduzida a “pouco mais de vinte homens

brancos”)3, confirmam a tendência para uma grande diferença numérica entre o

grupo dominador e o dominado e para o pouco contacto deste último com a

língua portuguesa. Tais circunstâncias devem ter favorecido o aparecimento de

uma primeira geração de falantes crioulos logo nos primeiros tempos da

ocupação.” A isso ela ainda acrescenta “ a entrada, até ao início do séc. XVIII, de

pequenos contingentes cíclicos de escravos e a presença de “língua” (intérpretes)4

em Santiago, até pelo menos aos fins do séc. XVII, fazem supor a coexistência,

até bastante tarde, de falantes do crioulo (em maior número), de português, das

línguas africanas e de um pidgin sempre renovado mas com um conjunto já

estável de regras, eventualmente idêntico ao que ainda hoje podemos encontrar

nas zonas rurais da Guiné-Bissau.” Esta hipótese que será analisada mais à frente

juntamente com outras hipóteses de formação dos crioulos parece-nos partir da

teoria monogética, em particular da tese elaborada por Naro (1978) que defendeu

que todos os crioulos de base lexical portuguesa se formaram a partir de um

pidgin de base portuguesa.

Os estudos sobre a língua cabo-verdiana têm-na classificado sempre

como uma língua crioula por causa deste contexto histórico-social. É frequente

encontrar em várias outras ex-colónias situação linguística parecida com a de

Cabo Verde e alguns linguistas, nomeadamente Derek Bicterton (1984)

identificaram um conjunto de características morfossintáticas peculiares às

línguas designadas crioulas, motivo que levou os pesquisadores, sobretudo depois

da década de 60 a inaugurar uma nova área científica - a crioulística -

justificando que as tais características anteriormente referidas estão ausentes em

3 Pissaro, J. C. 1900, apud Fanha Dulce (1983) in Aspectos do contacto entre o português e o crioulo de Cabo Verde, separata do congresso sobre a situação actual da língua portuguesa no mundo, Lx. Vol.II, p.294 4 Idem, ibidem, p.295.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

14

outras línguas não crioulas. Mas a particularidade atribuída às línguas designadas

crioulas não reside apenas neste imaginário que elas constituem um grupo

linguístico diferente das outras línguas, como também é um facto de que são

línguas, na sua maioria orais, sem tradição escrita, não padronizadas,

estatutariamente línguas não oficiais nos países onde são faladas e se restringem

apenas ao papel de língua materna das respectivas comunidades. Decorrentes do

facto de não serem oficializadas, não são padronizadas e dificilmente são

utilizadas na modalidade escrita: quer na Administração quer no ensino, espaço

onde domina a língua oficial que normalmente é a língua do colonizador. Por

isso, a língua portuguesa era vista como a língua de prestígio, que permite

adquirir o saber e que dá acesso aos cargos administrativos em detrimento da

língua cabo-verdiana, classificada por José Joaquim Lopes de Lima (1844)5 como

“(…) gíria ridícula, composto monstruoso de antigo Portuguez, e das Línguas de

Guiné (…) ”. Esta visão sobre as novas línguas formadas durante a expansão

europeia apesar de terem diminuído, não desapareceram e, ainda, hoje é possível

ouvi-la inclusive da boca dos seus locutores, como se pode comprovar no corpus,

em anexo. Estes aspectos aliados ao mito do que a valorização de uma língua

começa a partir do momento que ela é escrita, retira todo o prestígio às línguas

designadas crioulas.

Retornando à situação de Cabo Verde que não pode ser uma situação de

plurilinguismo como existe, por exemplo na Suiça, onde existem quatro línguas

oficiais e a situação de comunicação quer oral quer escrita acompanha a situação

linguística in vivo. Cabo Verde lida, actualmente, com uma nova modalidade de

um velho problema: a coexistência de duas línguas ou nos termos do quadro

teórico que estamos a utilizar, uma situação de línguas em contacto, sabendo que

uma das línguas, em termos de estatuto e socialmente goza de menos prestígio

junto aos locutores.

Das observações que fizemos nos contextos acima mencionados notamos

que a funcionalidade da modalidade oral predomina no uso da língua cabo-

verdiana e na modalidade escrita prevalece a língua portuguesa. Isto foi também

confirmado no artigo de Guisan, apresentado na ASSEL 2005 que fez a seguinte

5 Apud Lopes, Baltazar ( 1957).O DIALECTO CRIOULO DE CABO VERDE. Escritores dos Países de Língua portuguesa.1.Imprensa Nacional – Casa Moeda – Lisboa -1984

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

15

caracterização da diglossia existente em Cabo Verde: “ (…) a diglossia em Cabo

Verde se caracteriza por uma homologia, ou seja um paralelismo estrito entre as

modalidades oral e escrita, com a consequente alienação que aflige a língua do

povo. Situação problemática do ponto de vista sócio-linguístico, que pode vir a

gerar problemas graves no aspecto sociológico, já que sanciona e perpétua uma

segregação entre as classes e promove o aumento das disparidades que já se

observam (…)”. Opinião parecida emite a linguista portuguesa Mafalda Mendes

(a propósito da repartição do uso das duas línguas: “ (…) a diglossia existente em

Cabo Verde é caracterizada pela exclusividade dos contextos da escrita para a

língua portuguesa e pela predominância do uso da língua materna nos contextos

de oralidade.” 6

.

Vamos, a seguir ilustrar os contextos do uso das duas línguas nas

modalidades oral e escrita, em diferentes contextos situacionais e

comunicacionais.

6 In Revista Língua Portuguesa e Cooperação para o Desenvolvimento. Mira Mateurs, M.H. (org) 2005:123. Edições colibri e CIDAC. Julho, Lisboa

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

16

2.Contexto comunicacional e situacional do uso das duas línguas

2.1. Contexto de comunicação oral

2.1.1. Família

Durante a observação que fizemos, notamos o funcionamento das duas

línguas em Cabo Verde, notamos que estando em casa, em um ambiente familiar,

o locutor cabo-verdiano, escolhe na maior parte das vezes a língua cabo-verdiana.

Encontramos poucas situações em que a língua portuguesa era a língua materna.

No entanto, registamos que as histórias tradicionais, em qualquer

ambiente são em cabo-verdiano bem como anedotas, adivinhas e outros conversas

de convívios informais.

2.1.2. Escola

A grande maioria dos professores fala cabo-verdiano entre si não só na

sala do professor mas também fora da sala. Durante as reuniões de coordenação,

normalmente os coordenadores iniciam a reunião em português, mas momentos

depois continua prevalecendo o diálogo em língua cabo-verdiana. Notamos ainda

que os professores mais antigos, na faixa etária de 50 anos são os que mais fazem

uso da língua portuguesa quer com os colegas quer com os alunos e também nas

reuniões. Os conteúdos programáticos são transmitidos em língua portuguesa. É o

próprio relatório da UNICEF sobre as dificuldades e possibilidades dos

professores e dos alunos no processo de Ensino-Aprendizagem citado em (2003)

no Plano Estratégico para a Educação, M.E.V.R.H7.( p.40) que diz que “O ensino

dos conteúdos, na maioria das aulas observadas, é marcado quase sempre por um

ritual em que o silêncio, a submissão, a sacralização do saber e do professor, são

os seus elementos constitutivos.” Da observação que fizemos pode-se, ainda,

constatar que cresce o número de professores que optam por falar com os alunos

em cabo-verdiano quer dentro quer fora da sala. Relacionado com isso, pergunta-

se até que ponto a formação dos professores de ensino fundamental e secundário,

feito em Cabo Verde está relacionado com isso e o próprio facto de estes

professores terem no seu currículo a disciplinas de introdução à linguística e da

própria estrutura da língua cabo-verdiana?

7 Ministério da Educação e Valorização dos Recursos Humanos

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

17

2.1.3.Convívio social e eventos culturais

Como nos outros sectores, é possível encontrar a utilização das duas

línguas. Os grupos teatrais nacionais apresentam as peças em português ou em

cabo-verdiano e como nos explicou um dos directores de um grupo teatral, muitas

vezes depende do tema a abordar e são os próprios autores que acabam por

decidir.

2.1.4. As actividades religiosas

Nos últimos anos tornou-se frequente as celebrações religiosas

serem proferidas em língua cabo-verdiana o que há duas décadas atrás não era

possível.

2.1.5. Nos Serviços Administrativos

As duas línguas aparecem com muita frequência e dependo dos

interlocutores pode-se ouvir o cabo-verdiano ou o português. Notou-se mais

tendência do uso do português entre a classe dirigente, mas actualmente, os

quadros mais jovens, mesmo estando em posição de chefia recorrem muitas vezes

ao cabo-verdiano, durante as reuniões.

2.1.6.Comunicação social

Na Rádio e na Televisão Nacional de Cabo Verde a apresentação

das notícias é feita em português. No entanto, nas reportagens, entrevistas,

programas culturais e debates é frequente ouvirmos o jornalista a se dirigir aos

entrevistados em língua cabo-verdiana bem como a tendência de ser em

português quando se trata de algum intelectual ou político. Desconhece-se o

critério utilizado para a escolha de uma ou outra língua tendo em conta que não

cabe no âmbito desta dissertação as motivações para os usos linguísticos, mas

levantamos a hipótese que o nível de escolaridade e função social desempenhada

condiciona o uso de cada uma das línguas. Por exemplo, quando das últimas

eleições presidenciais e legislativas, a Comissão Nacional de Eleições, divulgou

um anúncio sobre o dever cívico do cidadão, o texto passava na televisão em

português, mas a voz off, era em cabo-verdiano, parecendo fazer a tradução. E foi

emitido nos mesmos moldes em cabo-verdiano, pela RTP- África Internacional.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

18

As campanhas contra a droga, alcoolismo, AIDS, aparecem ora em português, ora

em cabo-verdiano. Há cerca de cinco anos, foi lançado uma campanha para uma

melhor utilização da água, e os textos e a letra da música apareciam em cabo-

verdiano e em francês8.

2.1.7.Publicidade

Antigamente só se ouvia publicidades em português. Ultimamente, é

frequente ouvir na Rádio e na Televisão nacionais publicidades em cabo-

verdiano. A própria empresa de comunicações telefónicas CABO VERDE

TELECOM, S.A tem apresentado planos para telemóveis cujos nomes são em

cabo-verdiano. Uma empresa chinesa de construção de janelas e portas de

alumínio publicita os seus serviços na televisão com um texto escrito em cabo-

verdiano.

A divulgação de actividades culturais e desportivas, bem como políticas

são feitas em cabo-verdiano e Português. Mas o serviço oficial da Rádio Nacional

que divulga informações de emprego, comunicações de falecimento, é feito em

português. No entanto, no mesmo programa pode-se ouvir convites em crioulo,

para bailes de grupos musicais ou actividades teatrais.

8 O Projecto era financiado pela cooperação francesa.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

19

2.2. Contexto situacional de comunicação escrita

2.2.1. Como dissemos no início, na modalidade escrita predomina o uso

da língua portuguesa. Não obstante, começam a aparecer textos literários escritos

em língua cabo-verdiana. Em textos formais, como as actas das sessões plenárias,

datadas a partir de 1999. Nas revistas podemos encontrar, esporadicamente,

títulos em cabo-verdiano, sobretudo quando se trata de matérias de festas

tradicionais. Nos géneros jornalísticos, entrevistas e reportagens, encontramos

textos dos entrevistados que foram traduzidos da língua cabo-verdiana para o

português. No entanto, é comum encontrar várias expressões do quotidiano cabo-

verdiano em qualquer jornal ou revista nacional quer em versão electrónica quer

impressas.

2.2.2. O português foi sempre a língua oficial foi do sistema educativo e

por isso, a única utilizada na modalidade escrita, enquanto que o cabo-verdiano

nunca foi utilizado no sistema de ensino na modalidade escrita a ponto de os

alunos desconhecerem a existência do ALUPEC – Alfabeto Unificado para a

Escrita do Cabo-verdiano.

2.2.3. Na área da literatura, existe um número bastante reduzido de obras

escritas em cabo-verdiano e são publicações recentes. No entanto, aparecem

sempre expressões em cabo-verdiano nos textos, sobretudo na boca das

personagens. Quando falamos da modalidade oral, referimo-nos às tradicionais

histórias que eram contadas às crianças no final do dia. Existem, hoje, uma versão

bilingue, cabo-verdiano versus português, de algumas destas histórias9. No

entanto, existem registos escritos de poesias em cabo-verdiano, por exemplo do

poeta cabo-verdiano Eugénio Tavares, que morreu em 1930. Muitos poemas dos

escritores cabo-verdianos são hoje letras de músicas que aparecem escritas em

cabo-verdiano nos discos e cd’s. Aliás, os discos e cd’s são os suportes que mais

têm divulgado o cabo-verdiano na modalidade da escrita. Pela ausência de uma

normalização pode-se verificar a alternância no uso das grafias, entre o

etimológico e o fonético. Se a grande maioria, em termos de romances são

9 Nomeadamente , as história do “Ti Lobo e Chibinho”

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

20

escritos em língua portuguesa o mesmo já não se pode dizer das letras das

músicas, inclusive música religiosas.

2.2.4.Nos topónimos encontramos inscrições em português, mas os

falantes sempre pronunciam-no em cabo-verdiano. O nome das ruas aparece

sempre em português. Em muitos casos, o próprio nome do indivíduo tem versão

bilingue. Por exemplo, “João” é frequente que alguém o chame de “Djon”. No

entanto, o que aparece no na Certidão Narrativa de Nascimento é o nome em

português ou em outra língua, mas nunca em cabo-verdiano. Também

encontramos em t-shirts e souvenirs frases e expressões em cabo-verdiano.

2.2.5. A comunicação instantânea via Internet, ganha cada vez mais

adeptos da escrita em cabo-verdiano. Os emails que inicialmente sempre

apareciam em português começam a surgir, em cabo-verdiano. A camada mais

jovem dificilmente recorre-se ao português para escrever email aos amigos. Facto

interessante anotado aqui é a convivência, na modalidade escrita, das variantes

linguísticas existentes na própria língua cabo-verdiana. Perante a ausência de uma

norma ortográfica bem como a ausência de uma política para a escolha da

variante linguística padrão, os internautas escrevem de acordo com a variante que

eles falam. Os locutores que, na situação de comunicação invertem os papéis de

emissor – receptor, não questionam a norma ortográfica utilizada. Acabam por ler

o texto na variante que lhes foi escrito.

2.2.6. Foi publicada em 2005 a primeira versão em língua cabo-verdiana,

de um dos livros da Bíblia, o Livro de Lucas. A tradução da Bíblia vem sendo

feita por uma equipe de evangélicos da Igreja Nazarena na Praia, encabeçados por

dois linguistas norte-americanos. No entanto, não encontramos nenhum

documento oficial que esteja elaborado em cabo-verdiano.

Esta descrição nos mostrou que, neste momento, se assiste a uma

redistribuição do uso das duas línguas. Já não se pode falar em exclusividade do

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

21

uso da língua portuguesa na modalidade escrita e, em espaços oficiais.

Reconhecemos o uso exclusivo da língua portuguesa em documentos oficiais10.

2.3. A língua utilizada em situações formais de comunicação

Outra constatação feita durante a nossa pesquisa são as características

gramaticais da modalidade oral da língua utilizada na comunicação social oral e

em espaços oficiais, como o Parlamento, nas reuniões de trabalho ou encontros

cujos interlocutores ocupam uma posição social destacável ou têm formação

académica de nível superior. Nestas situações, normalmente, predomina o uso do

português. No entanto, uma observação atenta mostra a existência de grandes

interferências do cabo-verdiano no português, interferências duramente criticadas

como sendo erros gramaticais no português.

Ondina Ferreira 11 abordou este problema em um artigo publicado em 10

de Maio 2006 cujo título é: “Crioulês – o novo veículo de comunicação dos

Quadros?” onde ela expõe exactamente a constatação acima e vai mais longe

afirmando que uma nova língua tem vindo a “(…) insinuar-se discreta,

paulatinamente e, diria, quase envergonhadamente, mas sempre em crescendo,

uma nova língua – chamemo-la crioulês, por comodidade de expressão -, uma

forma particular de comunicar e de se fazer entender, utilizada, sobretudo, nos

media, pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores da terra, que, parecendo,

não querer expressar-se nem em cabo-verdiano, nem em português, ou fugindo a

isto, optam e fazem-no através desta espécie, híbrida, de compromisso, para uma

fala situada entre o cabo-verdiano e o português. Presumo que não se trata nem da

evolução de um nem da evolução do outro, se assim me é permitido dizer. Por

vezes - se me acontece apanhar o discurso já iniciado – interrogo-me sobre a

língua veicular, se português, se cabo-verdiano. A dúvida permanece até ao fim.

Aí deduzo que se trata do crioulês. É escutá-los no Parlamento, nas reuniões, e,

de preferência, frente aos microfones da rádio ou da televisão. (…) ”

A partir deste artigo seguiram-se vários comentários dos locutores cabo-

verdianos e de colunistas de jornais. Transcrevemos alguns de modo a mostrar

10 Com excepção das actas da Assembleia Nacional de Cabo Verde. 11 Licenciada em Letras e Literaturas Modernas pela Universidade de Letras de Lisboa, foi professora de Português em Cabo Verde e exerceu as funções de Ministra de Educação e Vice-Presidente da Assembleia Nacional de Cabo Verde.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

22

que a as justificativas para a valorização ou não das línguas existentes em Cabo

Verde passam pelo conceito de língua nacional, pelas representações

sociolinguísticas e pela própria política linguística do país no seio da política de

desenvolvimento de Cabo Verde.

Comentário 1:

“ (…) Como interpretar o fenómeno de “crioulês” numa altura em que vem ventilada a oficialização do crioulo e sua ascensão a língua do Estado! O “crioulês” pode considerar-se um elemento de real interesse no laboratório de ensaio onde decorrerão os estudos e as ponderações de ordem linguística que irão propiciar os primeiros contornos da nova língua oficial do Estado de Cabo Verde? Não me parece. Esta nova linguagem, que tanto pode designar-se “crioulês” como “portucriol”, por mais próxima do português que do crioulo, não tem a integridade genética da língua de berço cabo-verdiano e, portanto, pouco relevo deverá assumir na definição da personalidade morfológica, semântica e fonética daquela que, como é pretensão de alguns, poderá vir a ser, ou não, a principal língua oficial do país. Caso contrário, pouco sentido faria banir o português como língua oficial, ou secundarizar-se a sua importância, já que entre ele e o crioulês não existe um diferencial linguístico significativo (…);

Comentário 2: “Até que enfim, alguém já deu conta deste fenómeno. Devemos sacudir

complexos e usar a língua portuguesa, como deve ser ou usar o crioulo, também como deve ser e evitar esta “djagacida” que, afinal só os letrados entendem. Ou será que o crioulês já é um indicador de alta posição social?”

Outros exemplos sobre isso estão no capítulo “Recursos”.

Não podíamos deixar de citar dois casos bastante interessantes e

importantes a se levar em conta neste processo de oficialização da língua cabo-

verdiana como língua nacional que é a atitude linguística dos estrangeiros em

Cabo Verde

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

23

2.4. A atitude linguística dos estrangeiros em Cabo Verde

Relativamente, à atitude dos estrangeiros em Cabo Verde, tomaremos

como exemplo, a presença de um grupo de cidadãos que entram no país e se

dedicam ao comércio formal e informal que é o caso dos cidadãos Chineses,

Camaroneses, Senegaleses e Marroquinos e, por outro dos cidadãos que entram

através da cooperação técnica com Cabo Verde.

a) A “imigração “ chinesa e dos cidadãos da África continental

aumentou grandemente nos últimos anos em Cabo Verde. Ambos os cidadãos

estão a constituir família em Cabo Verde e os filhos frequentam os

estabelecimentos de ensino nacional. O facto do português ser a língua oficial

utilizada nas escolas constitui um dos principais entraves no processo de

aprendizagem destes novos alunos que têm a língua cabo-verdiana como língua

veicular. Quer os chineses, os senegalês e os outros estrangeiros lidam todos os

dias com uma clientela cabo-verdiana que só usa o cabo-verdiano como língua de

comunicação quer nas lojas (casas comerciais) caso dos chineses, quer no maior

“centro comercial popular “ da capital - Sucupira - . Nas visitas que fizemos a

estes espaços, não registamos um único caso em que estes estrangeiros fizessem o

uso da língua portuguesa. Registamos o uso do cabo-verdiano, do francês ou do

inglês. Reparamos, ainda que em algumas lojas chinesas, encontramos “placas

publicitárias” com frases que se pretendia escrever em português, mas as palavras

são do cabo-verdiano: “vende-se calça mon di vaca “ - (vende-se bermuda) – ou

outras como “ vendemos buluza barato”. No entanto, notamos que no início da

nossa pesquisa eram mais frequentes as lojas com inscrições em cabo-verdiano.

Agora aparecem poucas inscrições do tipo ou, então, as frases aparecem frases

com estruturas semelhantes aos exemplos acima referidos. Um dos últimos

exemplos que retemos é a de uma empresa chinesa de janelas e portas, em

madeira e alumínio, que apresenta a sua publicitada na Televisão nacional cujo

texto é escrito e lido em língua cabo-verdiana.

b) Quanto ao II grupo de estrangeiros, na sua maioria são técnicos com

formação superior, específica que também optaram pelo cabo-verdiano como

língua de comunicação em Cabo Verde.No entanto, alguns deles sentiram a

necessidade de aprender e outros de aperfeiçoar o português porque tinham que

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

24

elaborar relatórios técnicos em português e, como nunca utilizavam o pouco

português que sabiam, tiveram a necessidade de ter aulas extras de português12.

Mas por outro lado, um agrónomo francês, hoje, doutorado em Linguística, conta

que quando se candidatou para ir trabalhar em Cabo Verde, e a língua estrangeira

que lhe foi exigida foi ou o espanhol ou português. No entanto, uma vez chegado

a Cabo Verde ele se deu conta que estava a trabalhar num país cuja língua ele não

entendia e não sabia falar. Quando começou a fazer os trabalhos de terreno, no

interior de Santiago e passava os dias ao lado de agricultores e nas horas de lazer

com jovens e em casas de família onde a única língua que ele ouvia era o cabo-

verdiano, então ele teve que, obrigatoriamente, dedicar-se à aprendizagem da

língua crioula. Como estratégia, passou a andar com um bloco onde anotava as

palavras novas que aprendia e as expressões acabando por escrever um mini-

dicionário pessoal que mais tarde resultou dicionário cabo-verdiano – português a

que todo o público veio a ter acesso.

Ainda, deste II grupo faz parte os estrangeiros, voluntários do Corpo da

Paz. Anualmente, Cabo Verde recebe um grupo de jovens americanos, cerca de

25, que nunca tinham tido nenhum contacto com Cabo Verde. Chegados a Cabo

Verde, recebem uma formação de dois meses, da qual faz parte para além de um

curso dos aspectos culturais cabo-verdianos, um curso da língua portuguesa e

outra de língua cabo-verdiana. Durante vários anos, o curso de língua sempre

começou pelo língua portuguesa que ocupava três terços do total das horas do

curso. A pedido dos próprios estagiários, inverteu-se a ordem do programa

passando o curso a começar pelo ensino do cabo-verdiano. A justificativa dos

estagiários foi que enquanto eles aprendiam o português na formação, fora do

curso ninguém falava com eles em português e para fazerem compras no mercado

municipal, na Feira, em Sucupira, para apanhar o transporte público e comunicar-

se com as famílias com as quais eles viviam a comunicação era feita em cabo-

verdiano. Por outro lado, nem todos eles teria oportunidade de utilizar o

português mais tarde porque alguns eram professores de inglês e outros iriam

trabalhar na área social nas câmaras municipais. Estes últimos precisariam do

12 Em 2004, não existiam nenhuma instituição, em Cabo Verde, que desse aulas de língua portuguesa para estrangeiros. O centro cultural português que normalmente fazia isso, tinha encerrado os cursos Os estrangeiros que nos procuraram para terem aulas de cabo-verdiano e – ou - outros de português, queixavam-se que queriam aulas de português cujo programa contivesse a variante de português falado em Cabo Verde.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

25

português, por causa dos relatórios que tinham que fazer mas os professores de

inglês, quase nunca utilizariam o português, porque as aulas eram em inglês e em

momentos que não estivessem a leccionar utilizariam o cabo-verdiano. Eles

ficariam em Cabo Verde por um período de dois anos, findo o qual, todos

estariam falando cabo-verdiano sem nenhuma hesitação, enquanto que uma

grande parte deles tinham esquecido o que aprenderam sobre a língua portuguesa.

Trabalhamos, individualmente, com alguns destes voluntários. Alguns

que sabiam espanhol, admitiam que não tinham problemas em serem

compreendidos nas reuniões de trabalho e os colegas cabo-verdianos auxiliavam-

lhes na escrita de relatórios, mas queriam aprender o cabo-verdiano porque

queriam fazer parte da vida do dia-a-dia dos cabo-verdianos.

Terminamos esta descrição do uso da modalidade da escrita do cabo-

verdiano e do português com a resposta à pergunta “Quem escreve em cabo-

verdiano?” Respondemos que apenas os alfabetizados em português,

independentemente do grau de escolaridade, e assumem que o fazem porque têm

dificuldades em escrever em português, porque a gramática da língua portuguesa

é complicada e desconhecem muitos vocabulários bem como aqueles que apesar

de ter feito a formação superior em Portugal ou no Brasil, preferem escrever em

cabo-verdiano. Basta confirmar isso, com os emails que os estudantes nestes

países trocam entre si e com os colegas e familiares que se encontram em Cabo

Verde.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

26

3. Caracterização linguística da língua cabo-verdiana

Independentemente da origem e formação da língua cabo-verdiana,

actualmente, ela é uma língua com cerca de 500 mil de falantes em Cabo Verde e

na diáspora, sabendo que a Cidade da Praia tem quase metade desta população e

que a maior comunidade emigrada, fica em Bóston com cerca de 264, 900 mil

habitantes. Como dissemos, anteriormente, Cabo Verde é um arquipélago

composto por 10 ilhas tendo cada uma a sua variante dialectal o que é vista pelos

locutores e pelo senso comum como um empecilho para a oficialização da língua

nacional cabo-verdiana, crentes no mito de que a língua nacional é a eleição de

uma variante linguística de uma determinada comunidade. Podemos comprovar

isso no corpus, em anexo onde os depoimentos de locutores variados discutem

entre si qual dessas variantes deverá ser a variante padrão da língua nacional,

sobretudo para a situação da escrita. É, precisamente, sobre estas variantes

dialectais que vamos nos debruçar neste ponto, mostrando através das

características morfossintáticas comuns que estruturalmente existe apenas uma

única língua em Cabo Verde. À parte as características morfossintáticas existem

ideias, imagens ou representações que os falantes têm das duas variantes, em que

algumas variantes têm mais prestígio social que as outras. Em Veiga (1995) ele

afirma que a variante da Ilha de S. Vicente tem um certo prestígio social.

Pessoalmente, na observação que fizemos comprovamos isso, até que os falantes

destas ilhas, dificilmente adaptam-se às variantes de outras ilhas ainda que vivam

muitos anos numa outra Ilha. E o contrário acontece com maior rapidez. O

prestígio social desta variante poderá estar relacionado com o facto de ela ter sido

povoada tardiamente, no século XVIII. Foi palco do primeiro liceu de Cabo

Verde e os primeiros homens de cultura e da literatura cabo-verdiana, saíram

desta ilha, bem como a publicação das primeiras revistas culturais.

Se levarmos em conta a linha teórica do gerativismo, podemos dizer que

a variação entras as variantes se dá apenas a nível de superfície já que os

locutores das diferentes variantes dialectais nunca precisaram de se recorrer a

uma outra língua para se comunicarem, se compreenderem. As diferenças mais

acentuadas são a nível da realização fonética.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

27

Já o primeiro trabalho descritivo sobre a língua cabo-verdiana, de

Baltasar Lopes (1957:35) ele dizia: “O crioulo de Cabo Verde distribui-se por

dois grupos maiores: o de Barlavento (Santo Antão, S. Vicente, S. Nicolau, Boa

Vista e Sal) e o de Sotavento (Maio, Santiago, Fogo e Brava).” A seguir ele

elenca as características de cada um sempre em comparação com a estrutura

gramatical do português europeu.

Analisando a língua cabo-verdiana tendo em conta a tipologia das

línguas, vimos que não nos é possível classificá-la como línguas isolantes ou

aglutinantes.

Ela tem alguma característica de línguas isolantes, conforme Guisan

(1999:85) “As palavras têm forma fixa; a função é definida pela ordem das

palavras na frase, pelo acréscimo de partículas, ou pelo agrupamento de palavras”

: por exemplo, a função de algumas palavras varia de acordo com a sua posição

na frase :

Ex: tistimunha tistimunha 13. (A testemunha testemunhou.) Pela estrutura

fixa da ordem das palavras na frase, sabe-se que a primeira expressão

desempenha a função de sujeito e a segunda de verbo. Recorrendo-nos mais uma

vez ao gerativismo, a Lcv se enquadraria no grupo das línguas SVO. Isso

acontece mesmo com os pronomes.

Locutor A: undi maçã di mininu! ( Onde está a maça do menino!)

Locutor B: Maria kume-el el. > El kume-el el. (Ela comeu a maçã do

menino)

Em que o falante interpreta a função de cada pronome, realizado

lexicalmente pelo mesmo item, devido à ordem regida das frases - SVO Ind Od –

cuja tradução literal seria “ ele comeu do menino a maçã -. No lcv, o objecto

indirecto com o papel temático de recipiente vem sempre antes do directo.

Também podemos identificar partículas que uma vez acrescidas aos

verbos alteram o tempo dos verbos e outras, mesmo a pessoa verbal o que a faz

pertencer ao grupo das línguas aglutinantes. “Às palavras são acrescidas uma ou

várias partículas com uma função específica para cada uma delas, de modo a

13 Pereira, Dulce, “O principio de parcimónia”. In Actas do colóquio «crioulos de base lexical» Lisboa, 26 a 28 de Junho de 1991 ‘ Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

28

definir a função e os atributos de cada palavra (...) aglutinante. ” (Guisan 1999:

85)

Apresentamos, a seguir, um exemplo da flexão temporal com o verbo

Bai (IR) em que as partículas que indicam a flexão de tempo estão sublinhadas:

N bai bu kaza (Fui à tua casa.)

N baba bu kaza ( Eu tinha ido à tua casa).

N ta bai bu kaza ( Vou à tua casa).

N sa ta bai bu kaza. ( Estou ( a caminho) a ir para tua casa).

N al bai bu kaza ( Talvez, eu vá à tua casa).

Badu bu kaza ( alguém foi pra tua casa).

Bada bu kaza ( alguém tinha ido para tua casa).

Como se pode ver pelos exemplos, há partículas que são presas e outras

que são livres.

Por exemplo, a flexão de género nos nomes e adjectivos depende

de traços referenciais dos itens lexicais (ou sintagmas nominais). Os autores

Manuel Veiga, Baltazar Lopes da Silva e Dulce Pereira comungam a ideia de que

estas especificidades estão relacionadas com os traços animados e não-animados,

humanos ou não-humanos. Nós questionamos se não terá a ver ainda com um

outro traço que é mais ou menos adulto porque muitos adjectivos flexionam com

nomes que se referem a adultos e não com os que se referem a crianças. Pesquisas

mais detalhadas poderão precisar a partir de que idade.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

29

4. A língua cabo-verdiana e o processo de Crioulização

Neste capítulo, a minha intenção é entender as razões linguísticas porque

a língua cabo-verdiana é classificada como uma língua crioula. Para isso,

recorremos aos estudos crioulos, mais precisamente à bibliografia referente às

teorias da origem das designadas línguas crioulas.

4.1. Os Estudos Crioulos

Os primeiros estudos crioulos começaram com os trabalhos do Hugo

Shuchardt, com o jornal intitulado “Estudos crioulos” publicado em 1880 e,

também descrições do filólogo português Adolfo Coelho das línguas crioulas a

que ele apelidou de dialectos neo-latinos da África, Ásia e América, (Susan

Romaine, 1988:4) entre os quais aparece a actual língua cabo-verdiana.

O interesse para os estudos crioulos teve o seu auge nos anos 60 onde

apareceram cada vez mais linguistas a se interessarem pelos estudos

verdadeiramente linguísticos das línguas designadas crioulas, uma vez que

anterior a esta data os poucos estudos eram mais geográficos do que linguísticos

(Susan Romaine, 1988:5).

Susan Romaine (op.cit) ainda nos lembra que esta foi também a época

do desenvolvimento da sociolinguística e de uma nova concepção da língua. E os

estudos crioulos contribuíam muito para os estudos da linguística histórica e foi

de grande interesse para a sociolinguística, dos anos 60, sobretudo a teoria da

variação. Hymes (1971:5) 14 observou que “a pidginização e Crioulização

representam o extremo para o qual os factores sociais podem se encaminhar

(perfilar) na transmissão e uso da linguagem.”

A partir dos anos 60, como dissemos atrás, o aumento do interesse pelos

estudos crioulos originou congressos e encontros internacionais de linguistas

devido ao objectivo do estudo comum – o estudo das línguas crioulas – auto-

designaram-se de crioulistas. Estes, normalmente, corroboram em relação à

natureza do contexto social e histórico em que estas línguas se formaram

14 Apud S.Romaine, 1988:5 tradução feita por nós do seguinte excerto: “ … has remarked that pidginization and creolisation represent the extreme to which social factors can go in shaping the transmission and use of language…”

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

30

discordando, no entanto, em relação ao processo linguístico que as resultaram. (

Salikoko S. Mufwene)15.

Assim, várias hipóteses tentaram explicar a origem das línguas

designadas crioulas, mas como nos alerta Susan Romain (1988:6) é preciso ter em

conta a concepção da língua que veiculava nos estudos linguísticos no século

XVI. As línguas clássicas, como o latim e o grego, eram as únicas que deviam

servir de objectos de estudos gramaticais, devido à complexidade da morfologia

flexional, contrastando com as línguas como o inglês e o francês que,

comparativamente, com estas línguas são vistas como línguas sem gramática. No

século XIX, desenvolveu-se a ideia de línguas desenvolvidas e não

desenvolvidas. Durante este século, ainda as línguas são classificadas numa

perspectiva historicista, em que as semelhanças se explicam através de uma

origem comum (GUISAN, 1999:23). Assim, as línguas pidgins eram vistas como

corruptas, versões simplificadas de línguas “dadores” de léxico. Nesta óptica,

surgiram várias hipóteses para explicar a origem das línguas crioulas partindo do

pressuposto que elas partilham um conjunto de traços ausentes em outras línguas

cuja formação não envolveu o mesmo contexto sócio histórico. Este contexto

envolve sempre a expansão europeia, (as línguas europeias) as colonizações e,

inevitavelmente, as línguas africanas, cujos falantes estavam em situações de

desigualdade social e económica. Como define François (1980:301)16 : “deve

considerar os crioulos como resultado da interacção linguística de dois grupos

sociais de origens diferentes em situação de desigualdade (Aqui colonos europeus

e escravos africanos)”. No enquadramento dos estudos linguísticos da época, os

crioulos e os pidgins beneficiaram das mesmas explicações para as suas origens.

A ideia da teoria de baby talk, ventilada por crioulistas tão antigos como

Hasseling (ROMAINE, op cit. p.72) ou mesmo mais recentes como Bickerton os

pidgins são resultados de “aprendizagem imperfeita do modelo linguístico por

parte dos escravos”. Mas outra definição contrapôs-se a essa já no início do

século XX por Hugo Schuchardt (particularmente em 1909 e 1914) que

considerou que as estruturas reduzidas dos pidgins resultaram de um esforço

consciente de simplificação pelos brancos na típica relação senhor/escravo da

15“ The Universal and Substrate Hypothese Complement One Another” In Universal and substrate Hypptheses 16 Apud P.Guisan ( 1999: 49)

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

31

situação colonial17. Também Bloomfield introduziu a ideia de que um jargão

convencionalizado emergiu como resultado de um processo de imitação

recíproca, ou a imitação dos escravos ou a imitação dos senhores. 18 Esta hipótese

tinha como propósito explicar a semelhança entre os vários pidgins e crioulos,

objectivo que não foi alcançado por um lado porque existem pidgins não

compreensíveis entre si (GUISAN, 1999:59) e por outro, línguas ditas crioulas

que partilham as mesmas características entre si, mas estas características estão

ausentes nas línguas europeias que estiveram envolvidas no processo de formação

destas línguas. No entanto, estes mesmos traços estão presentes em outras línguas

europeias. No caso da língua cabo-verdiana, relativamente ao parâmetro do

sujeito nulo, ela se comporta como a língua francesa – é uma língua que pede a

obrigatoriedade de realização do sujeito – e diferente do português europeu onde

o uso do sujeito é opcional.

Muitas outras teorias surgiram, preocupadas em explicar a semelhança

entre os as designadas línguas crioulas sempre na base de uma formação genética

seguidos de uma simplificação. DeCamp (1971ª) considerou que as tendências

dividiam-se em duas teorias: monogenética e poligenética. Já Muhlausler

(1986:ch.4), lista seis teorias que constituem dois grandes grupos:

(i) Teoria de línguas especificas

a) teoria das línguas náuticas

b) foreigner talk\ baby talk theory

(ii) Teorias gerais

(c) teoria de relexificação

(d) teoria universalista

(e) common core theories

(f) teoria de substrato

Em Valdman (1978) encontramos, relativamente, à génese dos crioulos

as teorias poligenéticas versus monogenéticas e apesar das divergências entre

elas, propõe a origem dos crioulos a partir de um pidgin. Aliás, atrás tínhamos

17 Tradução feita por mim do seguinte excerto : “…the reduced structure of pidgins came about as the result of a conscious effort at simplification by whites in a master\slave relationship typical of colonial situations.” 18 Tradução feita por mim do seguinte excerto: “…a conventionalized jargon emerged as the result of a process of mutual imitation, or of the slave’s imitation of the master’s imitation.”

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

32

dito que Susan Romaine (1988) tinha chamado já atenção que normalmente os

pesquisadores dos anos 60 que isolaram este grupo linguístico designando-os de

línguas pidgin e crioulas, insistem nesse ponto de vista. Aliás, no início da

definição do nosso projecto tínhamos pensado em não abordar estas teorias de

origem dos crioulos uma vez que o nosso objectivo é analisar o processo actual de

oficialização da língua cabo-verdiana como língua nacional. No entanto, as

constantes referências à língua cabo-verdiana como uma língua crioula e às

representações sociolinguísticas desfavoráveis à sua valorização como língua

nacional, sentimo-nos obrigados a justificar a nossa naturalidade em analisar a

língua cabo-verdiana no quadro teórico de uma língua cuja formação e evolução

segue o das línguas consideradas normais. Corroboramos com G. Manessy, no

prefácio ao livro A.Valdman (1978) há cerca de duas décadas “ (…) o facto

estranho é, evidentemente, que o crioulo, idioma de comunidades separadas, que

apenas têm de comum a posição que foram impostas no seio de estruturas

económicas e sociais análogas, foram constituídas de maneira idêntica nas

Américas e nas ilhas do Oceano Indico” e para cuja explicação da sua origem

partilhamos a hipótese proposta por Bickerton (1980).

Já uma nova hipótese da origem das línguas chamadas crioulas a partir

do trabalho de Dereck Bickerton (1974)19 fez surgir uma concepção inatista da

pidginização e da crioulização. A. Valdman (1978:6) afirma a propósito desta

ideia que a concepção inatista da pidginização e crioulização tem o mérito de

sublinhar os factores psicológicos que estes processos partilham com a aquisição

da primeira língua pela criança e aprendizagem de uma segunda língua. Uma

eventual pré-hipótese já tinha sido apresentada pelo “glotólogo” Português

Francisco Adolfo Coelho (1880) e professor do Curso de Letras (1878-1901), a

propósito das línguas que ele chamou de dialectos neolatinos da África, Ásia e

América. Ele “os olhou com um olhar diferente (…) não como “português mal

falado” mas como fonte de saber sobre as leis gerais [psicológicas e fisiológicas]

a que obedece por toda a parte o espírito humano” (…) não são, pois, o resultado

de uma transformação lenta, gradual, tendo por ponto de partida principal a

alteração fonética, como a que se opera nas línguas que seguem o curso normal

19 Apud A. Valdman (1978)

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

33

da sua evolução (…) a formação dos dialectos crioulos é no que tem de essencial

um fenómeno psicológico. 20

Não é nossa intenção nem objectivo discutir as hipóteses das origens das

línguas chamadas crioulas, pelo motivo que expomos acima, mas restringirmos

apenas à análise da teoria monogenética, a de substratista e a de bioprograma. A

discussão será feita tendo sempre presente a língua cabo-verdiana actual que de

acordo com a classificação tipologica dos crioulistas partilha características com

outras línguas designadas crioulas, em particular as de base lexical portuguesa,

razão pela qual foi considerada por eles como uma língua crioula de base lexical

portuguesa.

Atribui-se a Hasseling (1933) a designação de teoria

monogenética segundo a qual, no século XIX, pidgins e crioulos de base europeia

relexificaram-se a partir de um pidgin de base portuguesa utilizada na costa

ocidental africana e mais tarde levada para Índia e Far East. Este pidgin é

identificado como Sabir, língua franca da zona mediterrânica.21 Esta teoria

desenvolveu-se a partir dos anos 60. De entre as teses deste tipo de hipótese

destacamos a tese de Naro (1978) que identificou este pidgin atlântico como um

pidgin de base lexical portuguesa, criado deliberadamente pelos europeus. Ele

afirmou (1978:331-334)22 que os europeus deliberadamente modificaram a sua

língua”. Em outras páginas ele usou conscientemente. Ele admite que esse pidgin

terá tido influência de outros pidgins, nomeadamente o sabir, e reforço dos traços

de pidgin devido ao lado africano. Seria uma língua de comunicação usada pelos

comerciantes com os navegadores na África23 e cuja relexificação ocorreu

apoiando-se nas línguas dos diferentes colonizadores. Assim se explicaria a

presença de características estruturais comuns entre os pidgins que uma vez

relexificados originaram os crioulos de base lexical diferentes.

Se esta tese justifica, por um lado, a semelhança entre os pidgins e

crioulos não justifica por outro a divergência entre elas, por exemplo, entre três

20 Apud Pereira Dulce “o Crioulo, o engenho e a arte da linguagem” in A universidade e os Descobrimentos – Colóquio promovido pela Universidade de Lisboa. Procurar dp o original de Adolfo coelho) 21 S. Romaine ( 1988:86) 22 Apud Naro (1988) In Journal of Pidgin and Creole Language 3:1.95-102 “Replies and rejoinders . A Reply to “Pidgins origins reconsidered ” by Morris Goodman 23 GUISSAN, Pierre, Gragoatá, Rio de Janeiro, vol., 1996, pg 88 e GUISAN, Pierre, Crioulização e mudança lingüística.1999, pg 55. Tese. Doutorado em Lingüística. Universidade Federal de Rio de Janeiro)

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

34

línguas chamadas crioulos de base lexical portuguesa, nomeadamente, uma das

línguas de São Tomé e Príncipe, o kristang e a língua cabo-verdiana. Gostaríamos

de destacar a grande semelhança morfossintática, fonológica e lexical entre a

língua cabo-verdiana e a língua kristang que histórica e, geograficamente, se

distancia muito de Cabo Verde. Assim, questionamos como a hipótese

monogenética poderá explicar esta semelhança? Segundo a tese de Naro (1978),

Cabo Verde e São Tomé foram ocupados depois que este pidgin foi formado na

Europa, 1462 e 1485, respectivamente. É de se ter em conta que, relativamente, a

Portugal, as Ilhas de Santo Tomé e Príncipe não foram submetidas ao estatuto

indígena, enquanto as Ilhas de Cabo Verde mantiveram-se, até aos anos 40, num

quadro de ambiguidade permanente, uma vez que se consideravam os habitantes

cabo-verdianos como “cidadãos”. Retomaremos mais adiante a hipótese da

formação da língua cabo-verdiana.

Insistindo na semelhança entre os crioulos, Hall (1966) avança a

hipótese de um substrato comum que ele identificou como línguas da costa

ocidental africana. Alguns traços foram identificados como característicos apenas

das chamadas línguas crioulas, como o sistema verbal de Tempo (T) Modo (M) e

Aspecto (A) formado por um conjunto de marcadores verbais em vez de

desinências verbais típico das línguas consideradas normais. No entanto, no caso

de Cabo Verde esta teoria não combina com história do povoamento de Cabo

Verde, pois todos os dados históricos afirmam que africanos, locutores de línguas

diferentes estiveram envolvidos no seu povoamento.24 Manessy (1977)25 enfatiza

o facto de o chamado substrato africano ser tipologicamente diverso e esta

combinação de várias línguas de substrato de um lugar para o outro. Ele ainda

questiona se a influencia do substrato fosse tão significante na crioulização como

poderia esta diversidade cristalizar-se em estruturas uniformes?

No caso concreto do traço do sistema pronominal considerado típico das

designadas línguas crioulas, ilustramos abaixo que em cabo-verdiano ela funciona

muito semelhante ao sistema pronominal do francês:

a) Ami n bai bu kaza

24 Andrade, Elisa (1996) ; Lopes, Baltazar ( 1957 ) 25 Apud S. Romaine (1988:109)

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

35

“ Moi, Je suis allé(e) chez toi “em que a partícula Ami é a forma tónica

do pronome pessoal, é facultativo e precede sempre todas as outras pessoas do

pronome pessoal e tem um valor enfático como o mi (eu \ je) muito usado

também em frases interrogativas e exclamativas, mas nunca poderia aparecer

sozinha com o verbo que tem de estar obrigatoriamente precedido da partícula N.

Das duas hipóteses aqui analisadas nenhuma delas tira as preocupações

dos pesquisadores já que fica por explicar a semelhança entre as chamadas

línguas crioulas de base lexical diferentes, nomeadamente, os crioulos de base

espanhola, francesa ou inglesa ou outros.

Perante isto, retomamos a hipótese do bio-programa de D.

Bikerton que atribui “ uma concepção inatista da pidginização e da crioulização

com o mérito de sublinhar os factores psicológicos que esses processos partilham

como a aquisição da primeira língua pela criança e a aprendizagem da língua

segunda. ( VALDEMAN, 1978:6).

Bickerton defende a existência de um pidgin ao ser adoptada por uma

geração (filhos de escravos) sofre um processo de complexificação natural. A

capacidade inata do ser humano para aquisição da linguagem “age” sobre este

pidgin moldando-o e tornando-o a língua de uma comunidade, transformando-se

assim em um crioulo.

Relativamente à formação da língua cabo-verdiana, o filólogo cabo-

verdiano Baltazar Lopes da Silva (1957:32) admite que na formação do crioulo

cabo-verdiano tenha predominado, como substrato, a influência das línguas do

ramo mandinga26 .

O historiador português de origem cabo-verdiana, António Carreira27

defende que, ao contrário, do que reza a tese da maior parte dos historiadores,

Cabo Verde não era desabitado quando os portugueses chegaram. Ele não exclui

26 Silva, B. L ( 1957:32) “ Limito-me, pois, ao aventar a hipótese de ser o grupo linguístico mandinga que funcionou como substrato na formação do crioulo de Cabo Verde, a lembrar o que diz Labouret. Segundo o A., as populações de raça negra que habitam a África ao sul do trópico de Câncer falam idiomas que pertencem à mesma família linguística e se subdividem em dois grupos principais: o sudanês e o banto, que se dilatam, respectivamente, ao norte e ao sul de uma linha divisória bastante irregular, a qual vai da embocadura do Gross River, a oeste, até o oceano Índico, pouco mais ou menos, onde desagua o rio Tana. (…) Do campo puramente linguístico, o crioulo cabo-verdiano pouco informa a respeito. (…) mas desde já me parece que apenas o léxico poderá trazer uma contribuição eficaz, apesar da pobreza do vocabulário possivelmente de origem africana quando confrontado com percentagem do tesouro lexical em que a proveniência portuguesa não deixa dúvidas a ninguém. 27 Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460 -1878)”, 1972,

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

36

a hipótese de Santiago, ter sido refúgio de um pequeno grupo de náufragos jalofos

ou outros habitantes de Cabo Verde ( Lebus ou Sereres). Ele mesmo diz que esta

ocupação foi sem intenção deliberada e sem continuidade de povoamento. Mas

Andrade, E.(1996:34) confirma que a presença de grupos humanos em Cabo

Verde antes da chegada dos portugueses, nos principais escritos dos finais do

século XVIII e início do XIX. Em 1784, um anónimo escrevia “esta ilha

(Santiago) foi encontrada habitada por muitos homens negros. Segundo a

tradição, foi o rei Jalofo que, devido a um levantamento, teve de fugir do seu país

com toda a família para se refugiar em Cabo Verde, na Costa Continental

(Península do Senegal); Mas porque houve uma violenta tempestade, provocada

pelos ventos do leste (…) foram encalhar nesta ilha (Santiago) que se encontra a

oeste de Cabo Verde. Os habitantes da ilha de Santiago são na sua maioria negros

e “pardos”; uns são descendentes dos primeiros negros que se encontravam nessa

ilha aquando da sua descoberta e, outros descendentes dos escravos que se

libertaram e se propagaram como acontece ainda nos nossos dias.”28

João da Silva Feijó (1815, t.IV, p.172)29 confirma, que segundo a

tradição, os portugueses ao chegarem a Cabo Verde, encontraram a Ilha de

Santiago habitada por negros jalofos que, quando fugiam dos felupes, foram por

acaso dar às suas costas, levados pelas correntes marítimas. Mais de cinquenta

anos mais tarde, é Conrado de Chelmicki (1841, vol. I p.4)30 que defende a

mesma posição, seguida por António Pusich (1810, p.611) que se refere aliás, à

existência nas ilhas de certos grupos da costa ocidental africana, lêbus e felupes,

que tinham sido atraídos pela sua riqueza em peixe e pelas salinas, sobretudo as

da ilha do Sal. Também na opinião de Jaime Cortesão (1960, pp.47 e sg),

senegaleses vinham a Cabo Verde buscar sal que trocavam por ouro de

Tombuctu. Andrade, E. (1996:34) considera que seja qual for a tese nenhum

desses grupos constituiu uma população suficientemente importante nem tão

solidamente estabelecida, para oferecer resistência à implantação colonial

portuguesa.

Assim, a inexistência de uma população nestas ilhas, determinou a

política portuguesa de povoamento. Santiago foi a primeira ilha a ser povoada, e 28 Apud Andrade, E. (1996:34) 29 Apud Andrade, E. (1996) 30 Apud Andrade, E. (1996)

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

37

o primeiro núcleo de povoamento, foi feito com de alguns membros da família de

António da Noli e de alguns membros da sua família e ainda de portugueses de

Alentejo e do Algarve, em 1462.

Mas devido à distância que separava as Ilhas de Cabo Verde de Portugal,

o rigor do clima, a impossibilidade de desenvolver em Cabo Verde culturas

cerealíferas às quais as famílias europeias estavam habitadas, a fraqueza

populacional de Portugal, constituíram outros tantos entraves para o

desenvolvimento da fixação Europeia. Então, em 1466, D. Fernando informa ao

seu irmão, D. Afonso V, que seria difícil povoar as ilhas de Cabo Verde, com

europeus como aconteceu com Madeira e Açores, e que era pretensão da politica

portuguesa de povoamento, a não ser que se concedessem regalias e privilégios

aos europeus que se encontravam ali. Assim, D. Afonso através de uma carta

concedeu privilégios aos habitantes de Cabo Verde o direito perpétuo de fazer o

comércio e o tráfico de escravos em todas as regiões da Guiné (que se estendiam,

desde o rio de Senegal até à Serra Leoa).

Então, os poucos brancos que se encontravam em Cabo Verde

tiveram que recrutar mão-de-obra no continente africano e de, imediatamente,

começaram a trazer escravos da Guiné, numa primeira fase para o povoamento e

garantia da exploração das terras, ainda que depois um certo número desses

escravos fossem vendidos para outras zonas (Canárias, Europa e Antilhas).

Regista-se, de acordo com Andrade, Elisa (1996:37) que os primeiros

escravos chegaram a Cabo Verde, provavelmente, em 1466, depois da Concessão

da tal carta dos Privilégios, a partir da qual “ a história política e administrativa da

Guiné ficou ligada à história do arquipélago de Cabo Verde do qual a colónia da

Guiné constituiu, por assim dizer, uma dependência até que, por carta de lei de 18

de Março de 1879 foi desmembrada e erigida em uma província autónoma. 31

Quanto à origem étnica da população cabo-verdiana, baseamo-nos

particularmente em Andrade, E. (1996) que diz que de acordo com o Padre

Brásio, para a Ilha de Santiago, registou-se uma proveniência maciça do elemento

africano da Guiné (no sentido moderno da palavra), com os seus Mandingas,

Balantas, Bijagós, Felupes, Beafadas, Pepéis, Quissis, Brames, Banhuns, Fulas, 31 Apud Andrade, E. ( 1996:37) “ Muito antes da costa ocidental africana, as Canárias foram as grandes forneceoras de escravos, tanto para os portugueses como para os franceses, castelhanos e italianos: ( cf. A. H. de Oliveira MARQUES), 1977,p.223.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

38

Jalofos, Bambará, Bololas e Manjacos, sendo Cacheu, Geba e Bissau quem

forneceu o maior contingente humano. No entanto, António Carreira (1972:304)

alerta para a noção de “Guiné” que se modificou a partir do século XVI, até ao

século XIX.

António Carreira (1972) situa a formação do povo cabo-verdiano na Ilha

de Santiago e que, depois foi levado para a Guiné Bissau. Também, o filólogo

cabo-verdiano Baltazar Lopes da Silva (1957) afirma: “suponho que o crioulo

falado na Guiné é, não uma criação resultante directamente do contacto do

indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado

pelos colonos idos do arquipélago e que, com o tempo se foi diversificando e

adquirindo caracteres próprios sob a influência das línguas nativa.”

Heliana Mello32 na sua tese sobre a língua cabo-verdiana apontou três

hipóteses para a formação da língua cabo-verdiana:

1) alguns autores defendem que esta ocorreu na costa atlântica africana,

e só depois se deu a sua transferência para o arquipélago;

2) que ela teve origem nas ilhas, concretamente em Santiago, e só depois

terá sido levado para África ;

3) outros autores ainda referem o desenvolvimento simultâneo de um

crioulo cabo-verdiano-guineense nas duas regiões: o arquipélago e a costa

africana.

Das três hipóteses, Heliana Mello diz que a segunda é a que reúne

mais consenso, citando António Carreira (1972).

Consultando então, António Carreira confirmamos que ele próprio situa

a formação da língua cabo-verdiana na Ilha de Santiago e justifica apresentando

as línguas que estiveram em contacto no povoamento de Santiago.

Independentemente de assumir esta ou tal teoria para a explicação da origem das

línguas que se designou crioulas, após o conhecimento do material do historiador

acima referido pensamos que uma análise da origem da língua cabo-verdiana, no

quadro inatista é bem mais convincente e natural para se entender o processo da

formação da mesma. A única característica comum entre as outras novas línguas

formadas é o contexto de desigualdade social e económica entre os povos durante

a colonização. Esta é mais uma justificativa para que tenhamos optado por fazer a 32 Mello, Heliana, “Cape Verdean Creole Portuguese” .

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

39

nossa análise no quadro teórico de contacto de línguas, cujo contexto é propício

para o aparecimento de novas língua. Como referiu Guisan (1996), a história da

língua vulgar românica que se transformou no francês é bem semelhante. “Mas é

fora de dúvidas que estas línguas, em determinadas etapas do seu

desenvolvimento, sofreram processos absolutamente similares aos das línguas

designadas crioulas – é o processo da Crioulização - . Podemos afirmar até que a

crioulização faz parte do processo natural de mudança linguística através do

contacto entre línguas diferentes.”

António Carreira (1972) situa a formação da língua cabo-verdiana na

Ilha de Santiago, cerca de 90 anos do seu achamento como uma língua veicular

entre capatazes e escravos e, em certa medida entre os próprios escravos, quando

de grupos étnicos-linguísticos diferentes. Muito cedo, os colonizadores

reconheceram a necessidade e a conveniência de haver elemento de ligação entre

navegantes e negociantes europeus e os povos africanos. Em termos da evolução

cultural, continua Carreira (1972), distinguia-se em Cabo Verde dois grupos de

escravos: os boçais por um lado e os ladinos e naturais por outro. Os boçais eram

os escravos recém chegados e falavam apenas as respectivas línguas, e

entendiam-se com os seus donos e feitores através de chalonas ou línguas

(intérpretes).

No grupo constituído pelos ladinos e naturais, ambos falavam a língua

cabo-verdiana, a que Carreira sempre chamou de crioulo, mas os naturais eram os

nascidos em Santiago e Fogo, eram filhos de escravos, mas eles próprios não

eram escravos e os ladinos que se subdividiam em aqueles que chegaram a Cabo

Verde ainda crianças ou adolescentes e foram baptizado e ensinados a trabalhar e

a falar a “lengua portugueza”33 e um outro grupo considerado mais esperto e com

maior aptidão para falar “crioulo.”

Era indispensável fazê-los aprender, prontamente, uns rudimentos da

língua portuguesa. Para esse fim começou-se pela catequese, pois assim tinha-se

o chalona34 e fazia-se o cristão.

Outros dados que nos pareceram interessantes nesta pesquisa de origem

da língua cabo-verdiana é a história do povoamento das suas nove ilhas habitadas

33 Mas A. Carreira destaca entre parênteses “ certamente, o crioulo”. 34 Carreira, A. (1972)

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

40

e, consequentemente, das línguas envolvidas. Continuamos com os dados

históricos de António Carreira mas também, desta vez, tomamos em conta, uma

outra fonte, a sociológa Leila Leite Hernandez (2002) e comparados sempre que

possível com os apresentados pela linguista portuguesa Dulce Pereira. Assim,

como já nos referimos a propósito da história de Cabo Verde, a Ilha de Santiago

foi a primeira a ser povoada, a partir de 1462 e os seus primeiros moradores eram

“ Europeus nobres e seus servos, especificamente portugueses de Algarve e

Alentejo, espanhóis, genoveses e mais tarde por escravos negros trazidos da costa

da Guiné”. A Ilha do Fogo, começou a ser povoada no início de do séc. XVI, por

habitantes de Santiago, em sua maioria procedentes do Algarve, que eram os

donos das terras onde trabalhavam exclusiva ou, predominantemente, os escravos

negros, que compunham a maior parte da população. Havia uma intensa

comercialização com o trajecto nacional, Santiago – Fogo - Santiago como parte

integrante do comércio internacional, com a rota Santiago - Costa da Guiné -

Santiago.

A Ilha da Brava apesar de ter sido habitada até aos meados do século

XVIII por negros libertos do Fogo e de Santiago, o crescimento da sua população

deveu-se à fixação na ilha de alguns proprietários do Fogo. No entanto, a maioria

da sua população é composta por brancos nascidos na Ilha da Madeira e no

continente europeu. A última ilha do sotavento a ser povoada foi a do Maio, cuja

população inicial eram pastores e caçadores, mas o processo do seu crescimento

começou no final do século XVIII, com homens livres do arquipélago e os

libertos por lei. As Ilhas de Barlavento só mais tardiamente começaram a ser

povoadas: a Ilha do Sal, apesar da exploração do Sal e do cloreto de sódio ter sido

feito nos últimos anos do séc. XVI, o seu desenvolvimento mesmo só veio a

acontecer mais tarde, no século XX, com a reforma do antigo aeroporto, que veio

a ser rebaptizado com o nome que ainda hoje mantém “ Aeroporto internacional

Amílcar Cabral ”. São Nicolau também é uma outra ilha que apesar de haver

registo de que o processo do povoamento na mesma altura que a ilha de Santiago,

o seu desenvolvimento só se deu no século XX, e a população é na sua maioria

mestiça. Boa Vista talvez tenha sido uma das primeiras ilhas do Barlavento a ser

povoado: por volta de 1650. No século XVII, devido sobretudo à ao comércio do

Sal natural, descoberto pelos ingleses, e mais tarde exportado, inclusive para o

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

41

Brasil, ela se torna a ilha mais importante economicamente. Tem uma grande

percentagem de população branca, originária de Inglaterra, de Portugal, da Itália,

de Castilha, da França e de Flandres. No entanto (ou consequentemente) a

escravatura continuou presente e no século XIX era a parte do arquipélago onde

se registrou a maior parte dos escravos.

São Vicente, é a última ilha a ser povoada – séc. XVIII - primeiramente

por um abastado proprietário do fogo e os seus escravos e segundo Dulce

Pereira35 por casais de outras ilhas e gente vinda dos Açores e de Portugal. Viveu

uma curta história de escravatura e foi onde primeiro se aplicou a lei de abolição

de escravatura em 1875 e, também a única beneficiária de uma instituição de

ensino. Já em 1917 tinha o primeiro liceu misto, aliado a uma política de

“desafricanização”. Dulce Pereira, ainda afirma que em 1923 foram proibidas as

festas populares denominadas Tabancas.

Quanto à Ilha de Santo Antão, vizinha da Ilha de S. Vicente, não temos

data precisa do seu povoamento, mas de acordo com Leila Hernandez (2002) no

final do século XVII e início do século XVIII, após a morte dos primeiros

donatários, a terra é dividida entre diversas famílias, segundo concessão de direito

de uso e fruição, e “os beneficiados foram as famílias mais pobres do arquipélago

e os ex-escravos. (…). No entanto, em meados do século, XIX, Santo Antão

recebeu imigrantes judeus de origem portuguesa e francesa, em sua maioria

mercadores que emigraram por motivos de ordem política ou religiosa.

A actual distribuição das variantes da língua cabo-verdiana

comprovadas pelos trabalhos científicos existentes, parece ser o resultado do

povoamento das Ilhas. Como já foi dito a língua cabo-verdiana hoje, é falada em

todo o arquipélago de Cabo Verde e existem variantes dialectais entre as ilhas, o

que não é nenhuma característica particular desta situação linguística, sendo-o

sim, alguns fenómenos linguísticos característicos em algumas ilhas, que

entretanto pensamos que uma pesquisa mais aprofundada do povoamento das

línguas poderá explicar.

Em todos os trabalhos descritivos, os autores têm sempre a preocupação

de esclarecer qual a variante que estão a descrever. Com pouca excepção os

35 “ Aspectos do contacto entre o português e o Crioulo de Cabo Verde” - Separata do Congresso sobre a situação actual da língua portuguesa no mundo – Lisboa – 1983 Vol II

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

42

dicionários e gramáticas apesar de se intitularem ser sobre o cabo-verdiano, os

autores centralizam-se apenas numa variante, escolhas devidamente explicadas

nas referidas notas introdutórias. A variante de Santiago é a que mais se

beneficiou dos estudos existentes. Em contrapartida não existe nenhum trabalho

sobre a variante da língua cabo-verdiana de Santo Antão, cuja variante destaca

pela estrutura de negação que lhe é característica e que não aparece em nenhuma

das outras variantes. É a presença da partícula ne, como na frase Mi ne bai que

corresponde em português a « eu não vou» e que na variante de Santiago é mi n

ka sta bai, nas outras variantes de Barlavento é me n ka ti ta bai.

Outro aspecto que desperta curiosidade na estrutura da língua cabo-

verdiana é o sistema acentual, de acordo o linguista português, Ernesto

d’Andrade36, professor de fonologia e morfologia na Faculdade de Letras de

Lisboa, existem dois sistemas acentuais no sistema verbal da língua cabo-

verdiana:

- Existência de um grupo de verbos cuja vogal tónica é a última,

enquanto que existem um outro grupo de verbos, utilizado sobretudo na variante

da Ilha de Santiago em que a vogal tónica é a penúltima. Enquanto os locutores

cabo-verdianos, com excepção dos da Ilha de Santiago, pronunciam pre’gunta (

perguntar) em que u é a vogal tónica. O mesmo item lexical é pronunciado nas

outras variantes como sendo oxítonas, ou seja, pregun’ta. Em Baltazar Lopes

(1957) no capítulo da fonética, ele realça as diferentes realizações da vogal a, nas

diferentes variantes e distingue a vogal a tónica, aberta e fechada. E a propósito

disto ele diz sobre esta vogal tónica: “ Oral, aberto, na sílaba final dos verbos da

1ª conjugação, adquire valor fechado em todo o arquipélago (…) excepto nas

ilhas de Santo Antão e S. Vicente em que mantém o valor aberto (…)” Mas como

registrado no Dicionário da Ilha de Santiago ( Cabo Verde)37.

Lembramos, no entanto, que tudo isto veio a propósito das teorias da

origem dos crioulos que explicam a formação das mesmas através de um pidgin

comum. E nós fizemos um resumo da história do povoamento de Cabo Verde

tendo em vista as línguas presentes e o resultado actual só nos mostra que das

36 No artigo Porquê de um colóquio sobre Crioulos de base lexical portuguesa in Actas do colóquio sobre os «crioulos de base lexical» Lisboa, 26 a 28 de Junho de 1991 ‘ Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 37 Elaborado por Martina BrÜser e André dos Reis Santos ( Cabo Verde), com a contribuição de Ekkehard Dengler e Andreas Blum, sob a direcção de JÜrgen Lang (2002)

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

43

várias línguas em contacto o resultado que temos hoje não nos permite classificar

a língua cabo-verdiana como uma deturpação ou simplificação da língua

portuguesa tendo em conta que muito cedo as duas línguas viveram lado a lado e

cada um evoluiu de forma independente. A língua cabo-verdiana, hoje é um

sistema linguístico autónomo e diferente do Português, razão pela qual a hipótese

de bioprograma é aquela que melhor explica a formação desta língua.

4.2.Os universais crioulos

Se através da história do povoamento de Cabo Verde compreendemos a

sua origem e a existência de suas variantes, queremos verificar até que ponto a

língua cabo-verdiano partilha dos traços levantados por D. Bickerton como

universais crioulos. Partimos de um conjunto de 34 traços reunidos por Guisan

(1999), traços esses apresentados pelos especialistas como universais das línguas

crioulas, em particular dos designados crioulos de base lexical portuguesa. Guisan

verifica a pertinência destes traços em cinco línguas classificadas como

pertencentes a esta categoria, entre as quais, a língua cabo-verdiana.

A pertinência destes traços na língua é representada através de um

coeficiente de 0 a 5 atribuído a cada traço, em que o valor 1 indica a presença do

traço e somente naquela língua enquanto que a partir do coeficiente 2 até 5 indica

o número de línguas em que esse traço aparece. Guisan ainda estebeleceu o valor

“div” que mostra que o traço em análise é ausente na língua o que,

consequentemente, o desvaloriza como sendo um potencial traço universal dos

crioulos. Assim, nesta análise de entre os 34 traços o cabo-verdiano teve o

seguinte comportamento:

Encontrou-se 18 traços presentes, e 16 casas em branco, pois esses 16

traços não foram observados ou mencionados o que não quer dizer que elas não

existam na língua correspondente. A nossa análise consistia, precisamente, em

verificar se esses traços existem ou não na lcv. Devido a ausência de estudos

linguísticos específicos conseguimos analisar apenas alguns traços, por exemplo:

(1) Os traços fonológicos

1.1.- “síncope da vogal ” - acontece apenas em algumas variantes;

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

44

1.2.- “apócope da vogal ou de sílaba” - acontece também nas algumas

variantes e, normalmente, há uma queda de sílabas póstonicas, deixando apenas a

tónica.

1.3 – “apócope do r” - também é variacional. Em algumas variantes para

além da queda existe na variante de Santiago a iotizaçao do r. Por exemplo, na

palavra mudjer > mudjei que acontece também com o l em posição final de

palavra ou de sílaba, por exemplo, em Manuel > Manei.

1.4 – “padrão Consoante Vogal” - tendência à eliminação do grupo

consonantal. O padrão CV acontece com regularidade na variante linguística das

ilhas do sul, enquanto que as ilhas do norte são caracterizadas pela forte presença

de grupos consonantais.

(2) Os traços morfológicos :

2.1. “ marcação do plural por reduplicação” - não existe no cabo-

verdiano

2.2. “negação marcada com formas mais intensivas” - no cabo-verdiano

para além do ka, existe o ne ( embora registado apenas numa única variante, a de

Santo Antão).

(3) Os traços sintáticos:

3.1.Perda de Artigo. Este traço nos permite fazer uma crítica à própria

concepção de ver as novas línguas que se formaram e que se designaram línguas

crioulas. Não consideramos que se trata de uma “perda” porque há casos em que

o artigo está presente, no entanto, a presença ou ausência do artigo desempenha

uma determinada função. Esta terminologia “perda” só faz sentido num quadro

comparativo com a língua portuguesa.

3.2. Perda da forma passiva. No cabo-verdiano, existe a construção

passiva como se pode ver no exemplo que se segue:

a) Maria fazi bolu. ( A Maria fez o bolo) – Forma activa

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

45

b) Bolu foi fetu pa Maria ( o bolo foi feito pela Maria) – Forma passiva

Como dissemos, relativamente ao traço 3.1, em que se fala de perda e

em todos os outros traços em que se usa esta expressão e nas outras em que se

fala de síncope, apócope e monotongação, em qualquer uma delas está a noção de

transformação da língua de base. Não concordamos com esta noção, uma vez que

nossa concepção da formação destas línguas é o desenvolvimento de um outro

sistema linguístico. Tanto é que no sistema de artigo, fonética e lexicalmente o

artigo não está realizado mas a ideia de restrição, identificação do nome, está

presente através de uma outra estratégia. Por exemplo, o artigo definido não

existe porque o nome, por si só já é restringido. Vejamos: se for um nome

próprio, como no exemplo a seguir:

1) Antónia bai se kaza. ( Antónia foi para a casa dela)

Neste caso, o interlocutor identifica a Antónia porque é a única pessoa

das suas relações com esse nome e tanto ele como interlocutor conhecem-na.

Caso seja uma “Antónia” que nenhum deles conhecem, seria:

2) Un Antónia bem djobebu li . (Uma tal de Antónia veio à tua procura )

Isto quer dizer que para definir o nome, comparativamente ao que se faz

em Português podemos dizer não se utiliza nenhum artigo e para o indefinido,

continuamos a utilizar o artigo indefinido do português “um”. Possivelmente,

necessitaria explicar aqui que para o cabo-verdiano um não é um artigo

exclusivamente masculino, uma vez que acompanha um nome que designa uma

entidade no feminino, ou que ela própria esteja no feminino. Exemplo:

3) Un mudjer ( uma mulher)

4) Un meza ( uma mesa)

Entraríamos aqui na explicação da noção de género em cabo-verdiano,

mas não é do âmbito desta dissertação. Explicaremos apenas que a ausência deste

artigo está relacionado também com a marcação de número: singular vs plural.

Por mais esta razão defendemos a hipótese de uma origem inata da língua cabo-

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

46

verdiana mais do que uma simples transformação das línguas europeias e

africanas que estiveram presentes no início da colonização do arquipélago.

A terminar este capítulo, não poderemos deixar de referenciar os traços

propostos por Bickerton, como partilhados por todas estas novas línguas que se

formaram, a em condições sociais, históricas e económicas particulares.

Bickerton propõe que os morfemas de Tempo (T), Modo (M) e Aspecto

( A) quando co-ocorrem a ordem é TMA, em todos os crioulos. Mas estudo sobre

o sistema verbal da língua cabo-verdiana feitos por Izione Santos38 demonstrou

que o sistema de TMA na língua cabo-verdiana regista duas alterações em

relação ao proposto pelo linguista norte-americano:

Primeira é que as partículas verbais não antecedem os verbos. Elas

distribuem-se em posição pré e pós verbal e, segundo, quando co-ocorrem a

ordem não é TMA, mas sim AMT, como comprovam os exemplos seguintes:

E al sa ta baba se trabadju. Em que al é a marca de modo, sa ta a forma

do verbo estar para indicar o progressivo e – ba que indica o tempo passado.

(Ele, talvez, estivesse indo para o trabalho dele. )

Concluímos então este capítulo sobre a pertinência dos universais

crioulos na língua cabo-verdiana afirmando que a língua cabo-verdiana, nascida a

partir de uma situação de contacto de línguas, que envolve um processo de

crioulização (Guisan, 1999) idêntico ao vivido pelas actuais línguas europeias,

como o francês e o português que só foram assumidas como línguas hegemónicas

a partir do século XVI.

Esta situação de mudança linguística aconteceu no momento em que a

Europa atravessava uma grande crise económica, culminou com o período de

desenvolvimento de capitalismo impresso e a reforma religiosa (Andrea

Berenblum, 2003:35-36) . Um outro facto decisivo neste processo linguístico foi

a formação dos Estados nacionais europeus a partir do século XVIII (Anne Marie

Thiesse, op.cit). O imaginário do conceito de Nação faz que as línguas 38 SILVA, Izione Santos Variation and change in the Verbal System of Capeverdean Crioulo 1985.Tese de doutorado em linguística Georgetown University, USA.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

47

vernaculares passam a ter um papel muito importante nesse processo de

construção de Estados Nacionais. No mesmo período, Cabo Verde mais não era

do que uma colónia de Portugal, desempenhando o papel de entreposto comercial.

E Portugal, como outros estados europeus da época, queria impor a todo o

território português a língua nacional de Portugal – o português -. Aconteceu no

Brasil, expressamente através de uma lei régia, mas em Cabo Verde o processo

não foi acentuado. Portugal praticou política linguística diferente nestes dois

países.

Vamos mapear, no capítulo, a seguir as construções das línguas

nacionais em particular o que aconteceu no Brasil, com o objectivo de mais à

frente tentar entender se o que se passa, actualmente, em Cabo Verde são passos

que já foram dados no Brasil.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

48

5. A construção das línguas nacionais – o caso de Cabo Verde

Quando se lê as primeiras informações de apresentação de um país,

encontramos informações como localização geográfica, povoamento, população e

a língua. Nas nossas pesquisas identificamos dois casos que nos despertou

curiosidade: o primeiro aspecto é que para alguns países o nome das línguas

coincidiam com o nome do país, por exemplo, em França fala-se francês, em

Portugal o português, em Espanha o espanhol, na Holanda fala-se Holandês, na

Alemanha fala-se alemão, etc e o segundo aspecto encontramos casos em que o

adjectivo que designa a língua não tem a ver com o nome do país, no caso do

Senegal onde não se fala o senagalês, mas sim o francês designado como língua

oficial e umas tantas línguas nacionais oficiais, sendo o wolof o que tem maior

número de falantes.

Anne-Marie Thiesse (1999) diz-nos que “ (…) os suecos falam francês,

os alemães falam alemão, os italianos falam o italiano”39.

Ela também citou o caso em que uma única língua nacional é comum a

vários Estados, como acontece na Áustria e na Alemanha e, ainda se referiu aos

países que reconhecem várias línguas nacionais, como Bélgica, Luxemburgo,

Suíça ou Irlanda.

No caso do objecto da nossa pesquisa a nossa primeira questão foi: em

qual destes grupos se enquadra a situação linguística de Cabo Verde? Os

franceses Françoise e Jean-Michel MASSA (2001) definiram Cabo Verde como:

“ Nação bilingue. O português é a língua oficial (administração, médias, ensino,

literatura nacional). Mas a língua nacional é o crioulo com as suas variantes de

acordo com as ilhas. É a língua utilizada em permanência pelos cabo-verdianos

entre eles.” Eles consideraram Cabo Verde como uma nação bilingue, opinião

que não é unânime, questionada por exemplo, pela filóloga cabo-verdiana Dulce

Almada Duarte que levanta a hipótese de Cabo verde ser mais um país

diglóssico40 do que bilingue. Discutiremos esta posição mais à frente, baseado na

linha teórica dos sociolinguistas franceses que defendem que se tratam de

situações conflituosas de contacto de línguas e por isso não é um caso de

39 Tradução feita por mim do seguinte excerto “ (…) Les Suédois parlent le suédois, les Allemands l’allemand, les Italiens l’italien”. 40 Diglossia é termo inaugurado pelo sociolinguista americano Charles Fergusson, em 1957, para definir a coexistência pacifica de duas línguas, em que uma delas é mais prestigiante que a outra.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

49

diglossia, no sentido do sociolinguística norte-americano, Charles Fergusson que

foi quem em 1957, utilizou pela primeira vez o termo “diglossia” para classificar

a situação linguística da Noruega. Foi neste contexto, que em 1959, Charles

Ferguson41 publicou um artigo intitulado “Diglossia” definindo-a como uma

situação linguística estável, onde para além de dialectos principais da língua ( que

podem incluir uma língua estandarizada ou regionais já estandarizadas) existirem

uma variedade sobreposta, muito divergente, altamente codificada

(gramaticalmente mais completa) veículo de uma considerável parte da literatura

escrita seja de uma período anterior ou pertencente a outra comunidade

linguística, e que se aprende em sua maior parte através de um ensino formal oral

ou escrita, para objectivos formais mas que não é empregue em sectores da

comunidade de comunicação ordinária.”42

Assim, Fergunson (op.cit.) considerou a variedade estandarizada a língua

alta e a língua baixa aquela que é aprendida espontaneamente no lar e utilizada

para a comunicação informal, enquanto que a língua alta – considerada própria

para a transmissão da herança literária – se transmite pelos canais de

comunicação formais, a escola em particular. A língua alta constitui a norma e a

língua baixa é vista como um desvio da norma ou, pelo menos, um objeto

lingüístico com o qual a noção de norma é incompatível. Numa análise superficial

podemos considerar que o Cabo Verde é um país diglóssico, pois ao lado da

língua vernácula - lcv - existe uma outra língua com a qual se relaciona

linguística e historicamente, mas socialmente goza de maior prestigio, que é o

português. No entanto, as actual situaçao linguística, já descrita no ponto anterior

leva-nos a questionar se realemente se vivie uma diglossia em Cabo Verde.

Admitimos que qualquer apresentação sobre Cabo Verde seria incompleta e falsa

se não se referir à existência das duas línguas que convivem no dia-a-dia dos

41 Citado em Fernandez, Francisco Moreno. Princípios de sociolinguística y sociologia del lenguaje. Barcelona: Ariel Lingüística, 1998. 42 Tradução do seguinte excerto: “Diglossia es una situación linguística relativamente estable en la cual, además de los dialectos primarios de la lengua ( que puede incluir una lengua estándar o estándares regionales), hay una variedad superpuesta, muy divergente, altamente codificada ( a menudo gramaticalmente más compleja), vehículo de una considerable parte de la literatura escrita ya sea de un período anterior o perteneciente a outra comunidad lingÜística, que se aprende en su mayor parte a través de una enseñansa formal oral o escrita para muchos fines formales, pero que no es empleada por ningún sector de la comunidad para la conversación ordinária. “

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

50

cabo-verdianos e destacar a presença massiva da língua cabo-verdiana na

diáspora43.

Com bases nos autores Anne-Marie Thiesse (1999), Benedict Anderson

(1993), Claude Hagège (2000), Eric Hobsbawm (1990) e Andrea Berenblum

(2003) vamos caracterizar as línguas existentes em Cabo Verde, e mapear o

processo de oficialização da língua cabo-verdiana como língua nacional (adiante

designado ln). A nossa primeira dúvida foi saber o que é uma língua nacional?

Em Hobsbawm (2004:27) ficamos a saber que o dicionário da Real

Academia Espanhola define a língua nacional como: “ (…) a língua oficial e

literária de um país e, à diferença de dialetos e línguas de outras nações, é a

língua geralmente falada.”

De acordo com esta definição, a língua nacional no caso de Cabo Verde

seria a língua cabo-verdiana uma vez que é ela a língua “geralmente falada” mas

tal torna-se falso tendo em conta que ela não é língua oficial e nem literária, como

se comprova pelo que diz o Dictionnaire Enciclopédique et Bilingue – Cabo

Verde\ Cap-vert-44 ou como diz o próprio governo, em uma Resolução de 1996:

“(…) O Governo pretende nesse domínio, com base em estudos científicos que

vêm sendo desenvolvidos e orientados por técnicos competentes na matéria, fixar

metas e determinar etapas, para a oficialização do crioulo como língua nacional

(…)”.

Na nossa pesquisa sobre a definição de uma “língua nacional” acabamos

por aprender que esta expressão foi inaugurada por razões políticas, nos meados

do século XVIII e princípios do século XIX, com a consolidação dos Estados

Nacionais Europeus onde a língua apareceu como um dos símbolos de unificação

da Nação. Embora o conceito tenha aparecido nesta altura, a língua como

elemento comum a um determinado grupo, ela já existia desde o século XVI. A

história da formação das línguas nacionais começou com o aparecimento das

línguas vernaculares europeias que foram ganhando importância em detrimento

do latim, no século XI que também deixou de ser a língua sagrada e elitista.

43 Existem cabo-verdianos bilingues: língua portuguesa versus língua cabo-verdiana, no caso de alguns residentes em Cabo Verde, mas também os que se encontram na diáspora que são sempre bilingues, entre a língua cabo-verdiana e a língua do país de acolhimento. 44 Massa, Françoise et Jean Michel (2001).

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

51

Acontecimentos como a Reforma religiosa, no século XVI, sobretudo o

protestantismo, aliado à difusão do capitalismo impresso contribuíram para a

perda do prestígio do latim. Momento em que a Europa atravessava uma grande

crise económica, os editores começaram a procurar novos mercados, uma vez que

o mercado do latim estava em declínio. Inicia-se, assim, a produção de edições

baratas em línguas vernaculares que se encontravam em plena ascensão, como

afirma Andrea Berenblum (2003:36): “ (…) um desenvolvimento progressivo e

não planificado das línguas vernáculas administrativas, contribuíram para o

declínio do latim como única língua de prestígio e, paulatinamente, vão ocupando

o lugar privilegiado do latim.”

No caso de França, Andrea Berenblum (2003) nos conta que a língua

nacional francesa emergiu a partir da adopção da língua francesa escrita pelos

locutores da corte, em Paris, variante linguística esta que não pertencia a

nenhuma região geográfica específica da França, mas que se foi construindo

como uma variedade linguística de Paris, usada na corte. Então, a variante

utilizada na corte, baseada na língua escrita, foi aos poucos adquirindo

legitimidade de língua oficial e substituindo os falares locais. Politicamente,

serviu-se dessa língua para se implementar a unificação da nação francesa.

No século XIX, é a revolução nos transportes e nas comunicações que

permitiram, por um lado, uma maior aproximação entre as autoridades centrais

dos Estados modernos e os lugares mais distantes, mas por outro, como analisa

Hobsbawm (1990) estes Estados precisavam de uma nova forma de Governo que

ligasse directamente os indivíduos ao novo governo estatal, isto é, o problema de

identificação de cidadãos ao Estado. A partir daí, os Estados sentiram a

necessidade de criar símbolos para marcar esta “relação de pertence”. E o factor

linguístico passou a ser um elemento destacável. Para além de outros mitos como

disse Anderson (1983) “ a unidade linguística é um dos processos (mito) através

da qual a nação é imaginada.” Esta visão de Anderson explica a grande

importância da imposição de se ter uma língua comum a uma nação. Começou-se

assim, o emprego da expressão “língua nacional”. A nova concepção de nação

atribui uma nova importância às línguas vernaculares. Hobsbawm (op.cit.)

distinguem-se duas fases no significado desta palavra – antes e depois de 1884.

Até então significava “ agregado de habitantes de uma província de um país ou de

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

52

um reino” para depois passar a ter um significado mais político: “ estado ou corpo

politico que reconhece um centro supremo de governo comum” e também “ o

território constituído por esse Estado e seus habitantes considerados como um

todo. ”

Como definição do termo nação, adoptamos a definição de Anderson (1983),

onde ele define a nação como: “ uma comunidade política imaginada como

inerentemente limitada e soberana.” 45 Aplicada à nossa pesquisa destacamos

dois momentos em que língua funcionou como um dos elementos de ligação

entre cabo-verdianos: antes e depois da independência. Antes da independência,

Cabo Verde fazia parte do território português e como tal a língua nacional de

todo o português, era a língua portuguesa. A língua que era utilizada pela elite

cabo-verdiana era também um dos requisitos para se conseguir cargos na

Administração. Nas décadas de 40 a 60 a partir da institucionalização do ensino

onde a língua portuguesa era a língua exclusiva do ensino ainda que estranha à

prática social, a língua cabo-verdiana ficou mais marginalizada ainda que era a

língua materna de todos os cabo-verdianos, fossem eles de origem africana ou

europeia. Era apelidada de dialecto e pouco prestigiada, devido à sua condição

de língua dominada46. (ALMADA: 1994) 47

Após a independência, a língua portuguesa continuou a ser, oficialmente,

a língua do ensino e das relações formais, mas utilizada por uma minoria de cabo-

verdianos. No entanto, é neste momento, que pela primeira vez, o governo

promove um encontro internacional para debater a valorização da língua cabo-

verdiana e se introduziu a primeira tentativa de instrumentalização da mesma.

Contrariamente ao que aconteceu com a Suíça, como cita Anderson

(1983), que tornou possível uma prática de “representação” de uma comunidade

imaginada não com base na uniformidade linguística, em que os locutores das

quatro línguas vêm respeitados os seus direitos de terem acesso ao ensino nas

suas línguas maternas, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, Angola

representam o contrário e a confirmação disto é que eles fazem parte de uma

46 Esta é uma expressão cujo uso tentaremos evitar pois, a nosso ver ela não se deve aplicar à situação linguística mas sim, ao contexto social da época, uma vez que os locutores é que era dominados e não a língua até porque numericamente estes locutores eram em número superior. 47 in Propostas de Bases do alfabeto Unificado para a escrita do cabo-verdiano 1994, pg.55

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

53

comunidade de língua oficial portuguesa, ainda que a língua portuguesa seja na

realidade, uma língua estrangeira.

Com base em Thiesse (1999:68-73) analisamos as funções

desempenhadas por uma língua nacional, com o objectivo de verificar qual das

duas línguas presentes em CaboVerde cumprirá as funções de língua nacional. De

entre as várias características apontadas por Thiesse retemos a seguinte:

(1) A ln deve assegurar a comunicação horizontal e vertical no seio da

nação qualquer que seja a sua origem geográfica e social, todos os seus membros

devem utilizá-la.

(2) Ela deve permitir a expressão de toda a ideia e de toda a realidade:

desde os mais antigos aos mais modernos, dos mais abstratos aos mais concretos.

Deste ponto de vista, é a lcv que desempenha a função de língua

nacional em Cabo Verde e o português não, porque conforme descrição

apresentada das situações do uso linguístico em Cabo Verde, na primeira parte

desta dissertação, os locutores cabo-verdiano se expressam à vontade, em

qualquer situação de comunicação, apenas através da língua cabo-verdiana. No

entanto, alguma interrogação se põe quando pensarmos na modalidade escrita da

língua uma vez que não existe uma política de ensino da língua cabo-verdiana e,

consequentemente, uma ausência da prática da Língua Cabo-Verdiana nesta

modalidade .

Assim, de acordo com Thiesse (1999) a eleição de uma língua nacional

deve ter em conta uma destas condições. Pelo que descrevemos nos contextos do

uso linguístico e levando em conta qualquer uma destas condições a língua cabo-

verdiana apresenta mais evidências para ser a língua nacional em Cabo Verde

sobretudo porque é a única língua que permite a expressão de toda a ideia e de

toda a realidade de Cabo Verde. Podemos ilustrar de duas maneiras: primeiro,

porque na literatura cabo-verdiana apesar de ela ser escrita em português, os

autores têm a necessidade de escrever frases e expressões em cabo-verdiano.

Prova disso é o dicionário enciclopédico da língua portuguesa em Cabo Verde da

autoria dos professores franceses da literatura de expressão portuguesa e segundo,

porque há actividades da realidade cabo-verdiana que só são representadas por

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

54

expressões em cabo-verdiano, como por exemplo, o item lexical kotxi que traduz

a actividade de tirar o farelo do milho e preparar o milho para fazer a cachupa48,

que muitas vezes aparece traduzido para a palavra “pilar” mas para o cabo-

verdiano são duas actividades diferentes: “pilar o milho” é tirar a farinha do

milho para fazer cuscuz e é actividade a seguir ao kotxi cuja tradução literal para

o português, não é possível.

Para além disso, encontramos em uma das primeiras intervenções

do Governo de Cabo Verde sobre a situação linguística a referência à língua

cabo-verdiana através da expressão “língua nacional”, a saber, o Decreto-Lei

nº67/98 sobre a proposta de grafia para a língua cabo-verdiana, diz o seguinte:

“ (…) o Português é a língua oficial e internacional e o Cabo-verdiano

( ou o Crioulo) é a língua nacional e materna (…).”

Questionamos, pois por que é até então a língua cabo-verdiana

não faz parte do currículo do ensino formal em Cabo Verde? Mais uma vez

recorremo-nos ao depoimento dos escritores e locutores da língua e deparamos

com o problema de prestígio da língua. E aqui o contexto sócio-histórico em que

a lcv se formou tem um peso muito grande. A língua cabo-verdiana é considerada

como uma língua crioula, grupo linguístico que só recentemente começou a

ganhar algum prestígio e, a ser socialmente aceite como língua. Então, no caso de

Cabo Verde como promover uma língua socialmente desprestigiada, inclusive

pelos próprios falantes, a uma língua nacional oficial?

Mais uma vez recorremos a Thiesse (1999) a partir da qual

depreendemos que o caso de Cabo Verde se enquadra nas situações mais difíceis,

pois, se enquadra no grupo dos casos onde existe uma língua de tradição escrita.

A conservação da língua antiga é uma maneira de se preservar e de dar

continuidade à história, enquanto que a língua moderna mostra a unidade

nacional. No caso de Cabo Verde, a elite que utiliza esta língua de tradição

escrita, no caso o português, é que já constituiu em tempos a classe social

dominante e que deteve o poderio económico nas mãos para além de constituírem

professores a quando da oficialização do ensino em Cabo Verde, no anos 60. A

nova língua que se pretende oficializar necessita então de divulgação e promoção.

Thiesse (1999) propõe que para a construção e a difusão da versão oral da nova 48 Prato tradicional de Cabo Verde feito à base de milho.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

55

língua de cultura é necessário a criação de salons literários e realização de teatros.

Ela chama atenção que uma das tarefas iniciais é convencer as elites locais a

adoptar a língua nacional. A língua portuguesa foi durante muito tempo símbolo

do poder social e meio para se chegar ao conhecimento e poder administrativo.

São os anúncios de ofertas de emprego que exigem e continuam a exigir como

conhecimento linguístico o português, francês e/ou inglês.

Podemos localizar o processo de oficialização da língua nacional em

Cabo Verde na fase de construção e difusão. Aliás, o Governo aprovou em

Novembro de 2005 a estratégia de afirmação e valorização da língua cabo-

verdiana, onde atribui incentivos ao uso incondicional da língua cabo-verdiana,

na modalidade oral quer escrita.

No entanto, um dos maiores meios de propagação da valorização da

língua são os meios de comunicação social do Estado mas estes continuam a fazer

uso da língua portuguesa. Thiesse considera o processo realizado, com sucesso,

quando a nova língua nacional passa a ser a língua de ensino e a sua difusão no

seio da população dá-se numa fase posterior, geralmente depois da formação do

Estado - nação, quando se realiza um sistema público de instrução de ensino

sistemático da língua nacional.

O Ministério da Educação de Cabo Verde se tornou sensível à questão,

nos anos 90, através da experiência piloto da educação bilingue – português e

cabo-verdiano, conforme diz o ex-Deputado Tomé Varela ( apud José Carlos

Gomes dos Anjos, 2002:256) “…As minhas intervenções como deputado eram

(…) em cabo-verdiano. Foi uma experiência interessante que me granjeou muita

aceitação, estima e admiração por parte do grande público nacional ( no país e na

diáspora)” mas por outro, como expressa o mesmo locutor “(… que me criou uma

certa solidão no seio da própria Assembleia Nacional embora com o respeito dos

demais deputados. As consequências foram uma maior confiança e um maior

apego à língua nacional por parte do grande público e (de - forma indirecta –

creio eu) por parte do Ministério da Educação que começou a apostar na

valoração do cabo-verdiano ( ensaindo a alfabetização bilingue) .”

Para além do projecto de ensino bilingue, realizado em 1989, o Instituo

Superior de Educação introduziu, na mesma altura a disciplina de linguísta cabo-

verdiana no currículo dos futuros professores da língua portuguesa do Ensino

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

56

secundário (correspondente ao Ensino Médio aqui no Brasil). E, a partir de 2002

também foi introduzida a disciplina de língua cabo-verdiana aos futuros

professores das línguas estrangeiras francês e inglês, na mesma instituição.

O uso da língua cabo-verdiana na Assembleia Nacional de Cabo Verde é

dos exemplos do uso do cabo-verdiano em espaços onde, apenas circulava

português, uma vez que se considera que as reuniões parlamentares são

momentos solenes. Hoje, o mesmo já não se pode dizer, pois cada vez mais os

deputados intervêm em língua cabo-verdiana.

Consultando as actas da Assembleia Nacional49 encontramos

intervenções dos deputados quer em língua cabo-verdiana quer em língua

portuguesa e muitas vezes é o mesmo deputado que intervém ora numa língua ora

em outra. Um trabalho de pesquisa mais detalhado poderá dizer em que momento

se utiliza um e se utiliza o outro.

Thiesse (1999), ainda adverte que na maior parte dos casos, só muito

mais tarde se passa a usar a língua nacional nos meios de comunicação orais de

massa ( a Rádio e sobretudo a Televisão) bem como a eleição de uma variante, no

caso de não existir ainda uma verdadeira língua escrita que possa servir de

fundamento à língua nacional. Esta ideia é aplicável em Cabo Verde tendo em

conta que já existem rádios que têm vários programas em língua cabo-verdiana e

nenhuma imprensa escrita na língua materna dos cabo-verdianos. A construção da

língua consiste em determinar um ou mais dialectos, escolhidos pelas suas

posições linguísticas medianas, seja pela posição dominante – em termos

económicos e sociais – da sua área de uso. Esta ideia parece contradizer o

processo de eleição da língua nacional francesa onde a variante padrão emergiu a

partir de uma variante escrita. No caso de Cabo Verde, em que não existe uma

tradição escrita da língua candidata à língua nacional parece-nos que ela se

enquadra mais no que Thiesse (1999) propôs, expendida na frase anterior, que é a

eleição de uma variante para a escrita.

Na observação da situação linguística e por todo o corpus aqui

apresentado quer nos textos privados e nos oficias, na designação de Hagége

49 Ver anexo.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

57

(2000)50, o governo e os locutores cabo-verdianos afirmam que a lcv é a língua

nacional. Nesta fase da sua oficialização, dois aspectos se destacam, apesar da

própria oficialização não ter o consenso de todos:

- um dos aspectos é a proposta de ortografia para a língua e o outro

aspecto é a escolha de uma variante padrão. Das justificativas apresentadas no

corpus o que está por detrás desta proposta de grafia é a ideia que se tem de que a

eleição de uma língua nacional tem de ser obrigatoriamente a escolha de uma

variante linguística. E isso leva-nos para o segundo aspecto:

- aliado à ideia que se tem de que a eleição da língua nacional resulta da

escolha de uma variante. Em Cabo Verde este facto é realçado como sendo um

dos grandes impedimentos para oficialização da língua, uma vez que as variantes

linguísticas são associadas à distribuição geográfica das Ilhas. Veiga (1982)

identificou duas grandes variantes da lcv: a do Barlavento, centralizada na

variante de S. Vicente, Ilha onde foi construído o primeiro liceu e onde

começaram a aparecer os primeiros intelectuais cabo-verdianos e a variante de

Sotavento, da Ilha de Santiago, considerada o berço do povo cabo-verdiano e da

língua cabo-verdiana e que, actualmente, é a capital do país. Esta Ilha reúne a

metade da população de Cabo Verde.51

Sobre este aspecto, particularmente, não encontramos nenhum estudo

que dê a dimensão real das consequências da oficialização da língua cabo-

verdiana como língua nacional. Existem sim, estudos sobre alguns aspectos

gramaticais de algumas variantes da língua cabo-verdiana e as políticas

linguísticas traçadas pelo Governo e, como já dissemos que constam do anexo,

opiniões privadas no sentido de Hagége (2003).

Um outro passo que mais, recentemente, se deu e que contribui para a

valorização da língua, como aponta Thiesse (1999) é a publicação de recolhas de

histórias infantis, cantigas populares, adivinhas e provérbios na língua em

processo de oficialização. Este trabalho começou a ser feito, oficialmente, no

50 Hagége (2000:179) utiliza as expressões “vias privadas” e “vias oficiais” a propósito do destino das línguas em que ele define as primeiras como os trabalhos dos escritores, filólogos, folcloristas ou dos patriotas sem qualificação profissional e as “vias oficiais” as intervenções feitas pelo Estado sobre a línguas através de comissões formadas por técnicos especializados cujas decisões se transformam em lei. 51 Massa, Françoise et Jean-Michel (2001)

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

58

início do anos 8052, pela Direcção Geral do Património Cultural embora seja

possível encontrar em entidades não oficiais, recolhas de contos populares.

Será difícil falar na existência de uma literatura de língua cabo-verdiana

mas se levarmos em conta que já no início do século XIX, se registaram letras de

músicas e poesias em cabo-verdiano podemos ver que desde muito cedo os

próprios locutores ainda que alfabetizados em português, sempre tentaram

escrever o cabo-verdiano. Quem fazia isso eram os alfabetizados em língua

portuguesa e utilizavam, muitas vezes, a própria norma ortográfica para o

português. Destaca-se o nome de Eugénio Tavares, um dos grandes trovadores de

Cabo Verde, dos finais do século XVIII. Podemos ver nos anexos um dos seus

poemas, escritos em língua cabo-verdiana.

Em termos de instrumentos para a normalização da língua conta-se com

a existência de uma gramática e de vários pequenos estudos sobre a estrutura

gramatical da língua cabo-verdiana; de um dicionário bilingue “crioulo cabo-

verdiano – português”. Estes materiais não foram produzidos através de algum

órgão estatal, mas sim, a partir de iniciativa própria de especialistas. Aliás, não

existe nenhuma instituição estatal que se ocupe apenas da questão linguística em

Cabo Verde.

Apesar de não se poder contar com um grande volume de produção

escrita em língua cabo-verdiana, para além da produção científica, podemos

registar meia dúzia de produções de contos populares, igual número de poesias e

romances em cabo-verdiano - variante de Boavista e Santiago -.

Cada vez mais vai se alargando o campo do uso da lcv, em particular na

escrita, modalidade que raramente o locutor cabo-verdiano se aventura. Com a

difusão da Internet, a possibilidade de escrever de forma expontânea e

instantânea, obrigou o locutor cabo-verdiano a deixar vir à tona a real gramática

interiorizada. Uma leitura atenta dos sites e blogs de um locutor cabo-verdiano

nos confirma o uso predominante da sua língua materna na modalidade escrita

relativamente a este novo meio de comunicação.

52 C.f. Dulce Almada Duarte “A história da escrita em Cabo Verde” in Propostas do Alfabeto para a escrita do cabo-verdiano. IIPC - Praia

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

59

Assiste-se, neste momento, a uma redefinição das funções e do uso das

duas línguas onde se nota um maior uso da língua cabo-verdiana em contextos e

situações antes reservadas ao português, nomeadamente os meios de comunicação

social, no Parlamento e nas próprias escolas. Esta mudança tem proporcionado

debates sobre usos linguísticos em Cabo Verde. Em paralelo à discussão do uso

destas duas línguas chamou-nos atenção as características do português,

sobretudo oral utilizado em espaços considerados formais, como os que citamos

no início do parágrafo. Para além da nossa constatação, recentemente, este

assunto foi intensamente debatido na comunicação social electrónica, a partir de

um artigo jornalístico, da filóloga cabo-verdiana, Ondina Ferreira. Ela fala no

aparecimento de uma nova língua, ao qual deu o nome de “Crioulês”. Será que

esta nova variante do português que está a surgir em Cabo Verde é a variante do

português de Cabo Verde, à semelhança do que existe já nas outras ex-clonónias

de Portugal? Relacionada a isso está, também a motivação que levou ao

aparecimento do Dictionnaire Encyclopedique et Bilingue – Cap-Vert/ Cabo

Verde (2001) cujos autores, professores de literatura de expressão portuguesa em

França, sentiram a necessidade de ter alguns instrumentos do tipo para facilitar a

análise e interpretação das obras literárias dos escritores cabo-verdianos e, com

isso, eles chamaram a atenção para a necessidade de se estudar a língua

portuguesa, em Cabo Verde.

A propósito deste assunto, discutiremos, comparativamente, a situação

linguística cabo-verdiana e a brasileira, no que diz respeito à formação da língua

nacional dos dois países. Será que em Cabo Verde existe ou haverá uma variante

de português à semelhança do que aconteceu no Brasil?

Uma das autoras em quem nos baseamos, Bethania Mariani (2004)

analisa as formas de organização que a política linguística toma dos séculos XVI

ao XVIII, no Brasil, enquanto regulamentação proveniente da metrópole

portuguesa em sua aliança com a igreja católica, buscando impor meios de

administrar e de garantir o domínio das relações entre as línguas e os povos.

Os portugueses chegaram ao Brasil no ano de 1500 e ali encontram um

outro Povo que não falava português e tinha línguas diferentes entre si,

identificando mais tarde que existia uma língua que era compreendida por quase

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

60

todos - tratava-se da língua tupinambá - falada sobretudo na região Amazónica.

Neste mesmo século, Carreira (1983:54) relata-nos as primeiras referências à

língua cabo-verdiana: “(…) foi, pois, pela acção simultânea da catequese, da

educação e da instrução: nas igrejas, nas casas-grandes e nas fazendas agrícolas, e

pelo aprendizado de ofícios que se operou a formação da importante língua de

comunicação verbal e social : o Crioulo – ” e na página seguinte o mesmo

historiador diz que : “ (…) a menos de cem anos do achamento existiam em

Santiago escravos africanos de toda a estirpe Jalofa que se entendiam

(necessariamente por um pidgin ou proto-crioulo) com os europeus, e que eram

utilizados como intérpretes junto dos povos do continente. O primeiro documento

que conhecemos e que refere ao crioulo falado por escravos é a carta de mercês

dada ao Corregedor de Santiago, Luís Martins Evangelho, a 27 de Setembro de

1558 (…)”. Carreira ( op.cit) diz que “(…) a um século (se não antes) do

achamento das ilhas, já existia um pidgin a facilitar o contacto e a assegurar o

convívio entre brancos e a maioria africana”.

Voltando à situação da formação da língua nacional brasileira, segundo

Bessa, no texto apresentado no colóquio da UFRJ, em Junho de 2005 os jesuítas

que estavam no Brasil com o intuito de cristianizar os povos indígenas do Brasil

se aperceberam que falando tupi podiam se comunicar com outros povos em

outras localidades de Amazónia.

Os missionários não só aprenderam esta nova língua como também

procederam depois à gramatização do tupi jesuítico originando a língua geral.

Este facto, é muito importante para uma posterior comparação com a

situação linguística de Cabo Verde, uma vez que a língua geral não é nenhuma

das línguas que se falava no Brasil, mas sim uma língua criada a partir da situação

de diversidade linguística que se encontrava na época.

O filólogo cabo-verdiano Baltazar Lopes ( 1957:29) identificou dois

momentos na história da língua geral no Brasil : um momento inicial, em que

houve um contacto entre a língua portuguesa e as várias línguas dos indígenas,

entre as quais o tupi foi a língua que mais influências deixou, e um segundo

momento, já com a presença das línguas africanas, a língua geral e a língua

portuguesa cujos locutores estavam em desvantagem numérica. Face à

diversidade linguística foi necessário que se arranjassem intérpretes. Então, nas

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

61

primeiras viagens ao Brasil, como nos conta Berenblum (2003:62) “ (…) os

portugueses deixavam representantes no actual território brasileiro, com a

finalidade de que aprendessem as línguas dos índios e servissem de intérpretes e

tradutores para os portugueses. Surge, assim a figura da língua nos primeiros anos

do século XVI (Dias, 1996).” Também, como dissemos antes existiu esta figura

em Cabo verde, que era responsável pela comunicação entre os escravos e os

colonos portugueses, mas muitos deles iam aprender os “rudimentos da língua

portuguesa” em Portugal e, para além de desempenharem a função de intérprete

eram escravos internos.

Voltando à situação linguística no Brasil e, ainda de acordo com Bessa53,

em 1865, cerca de 48% da população não tinha o português como língua materna.

Até 1750, no Brasil se falava a língua geral e o português não era a língua

materna, sendo sim a língua geral a língua materna de uma geração. Existiam

crianças monolingues em língua geral, designados os Tapuius.

Na mesma altura, verificava-se nos estados europeus aparecimento das

línguas vernaculares, adoptadas, politicamente, como línguas nacionais. Então, a

metrópole portuguesa viu-se obrigada a tomar alguma medida uma vez, que era

inadmissível que em um Estado Português não se falasse o português. Assim, em

1759 Portugal expediu um decreto real - Diretorio dos índios - engendrado pelo

Marquês de Pombal onde se oficializa a língua portuguesa como a língua a ser

falada e escrita pela nobreza portuguesa, incluindo-se aqui os membros da elite

portuguesa nascidos no Brasil. Uma série de medidas políticas, administrativas e

pedagógicas foram tomadas além de se proibir o uso da língua geral e tentar

organizar um outro sistema escolar, totalmente, baseado na língua portuguesa. Foi

também, neste momento, que se consolidou a expulsão dos jesuítas do território

brasileiro. Mariani ( 2004:35)

Relativamente a Cabo Verde, não encontramos dados que

comprovassem a existência de leis régias a proibir o uso da lcv como aconteceu

com a língua geral no Brasil, no entanto existe uma tradição oral de que “o

crioulo foi proibido durante a colonização”. Pelo que podemos concluir a partir

das informações encontradas que essa proibição foi mais psicológica, através da

política de assimilaçaão à cultura portuguesa e como diz Dulce Almada Duarte ( 53 Na apresentação de um simpósio em Junho 2005, na Faculdade de Letras da UFRJ.

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

62

op.ct.) “cuja pedra de toque foi, indubitavelmente, o ensino.” Ela ainda explica : “

Com a língua portuguesa sobremaneira prestigiada como língua exclusiva da

Escola e da Administração e, por conseguinte, como língua de acesso ao topo da

pirâmide social, o crioulo foi reduzido à condição de língua do trato familiar, que

nem dava a possibilidade de promoção social (já que esta pressupunha uma

carreira na Administração colonial.)”

Concluímos este capítulo, relembrando que a língua geral que foi

utilizada no Brasil até o século XVIII foi criada a partir de várias línguas

indígenas e das línguas africanas e foi funcional até serem implementadas as

medidas de políticas linguísticas para impedir a sua divulgação. Hoje temos um

Brasil de língua oficial portuguesa, que pela segunda vez implementou a sua

politica linguística, tendo hoje a sua variante do português que é a língua materna

da maioria da população. Estudos aprofundados sobre a língua portuguesa oral

em situações formais e nos meios de comunicação social, em Cabo Verde,

nomeadamente a Rádio e a Televisão poderão determinar a variante do português

de Cabo Verde.

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

63

6. Análise da situação linguística de Cabo Verde no quadro do

modelo representacional

Uma das nossas hipóteses a quando da realização desta dissertação

prende-se com o seguinte: como é que as representações sociolinguísticas dos

locutores têm condicionado o processo actual de oficialização da língua cabo-

verdiana como língua nacional?

Escolhemos o modelo representacional na perspectiva de Houdebine (

1996) e Calvet (1999), tendo em conta que os dois apesar de utilizarem

terminologias diferentes, não se divergem em termos de análises das

representações linguísticas. Assim, Houdebine fala em imaginário linguístico e o

define “como a relação do sujeito com a sua língua (no sentido de Lacan) e com a

sua língua (no sentido Saussuriano)”54 e Calvet ( 1999:158) preferiu utilizar duas

categorias: práticas e representações, em que as práticas linguísticas

representam o que os locutores produzem enquanto que as representações

simbolizam a maneira como os locutores pensam as suas práticas, como eles se

situam em relação aos outros locutores, às outras práticas e como eles situam as

línguas deles em relação a outras línguas. E tudo isso se manifesta através dos

discursos epilinguísticos. É, por esta razão, que fazem parte do nosso objecto de

análise não só os textos legais, mas também, declarações de cabo-verdianos em

reacção a artigos sobre a língua cabo-verdiana, bem como, os próprios artigos que

serão analisados aqui no quadro das Representações.

A nossa primeira questão está relacionada com a própria designação da

língua pelos próprios locutores. As designações mais comuns e generalizadas de

se referir às duas línguas são: para a língua materna existem os termos crioulo,

língua cabo-verdiana, "língua di terra”55, língua nacional enquanto que para a

única língua oficial a expressão língua portuguesa. Uma grande parte dos

locutores utilizam a expressão crioulo, desconhecendo até que existem outros

línguas que são chamadas de crioulos. Já em textos específicos sobre a língua

encontramos a expressão crioulo cabo-verdiano. Como diz Calvet (1999:284)

relativamente aos falantes de da Ilha de Reunião ou Guadalupe : “ (…) o locutor

que declara falar francês e o crioulo não diz a mesma coisa quando ele declarou 54 Tradução feita por mim de Houdebine (1996:) “comme le rapport du sujet à la langue (Lacan) et à la langue ( Saussure) 55 Que é a expressão em cabo-verdiano que quer dizer “Lingua da Terra”.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

64

falar francês e o guadalopenho, da mesma maneira que o Poitevin declarando

falar patois ou poitevin classifica seu vernacular de maneira diferente e nós

apanhamos coisas sobre suas representações linguísticas: dizer “ eu falo patois”

ou “eu falo crioulo” é situar seu vernacular numa relação de diglossia com uma

variedade alta, enquanto que dizer “eu falo poitevin” ou “eu falo guadelupenho” é

dar ao vernacular o estatuto de língua e o situar em relação aos outros, numa

relação equalitária. ” 56 Para Calvet esta designação de língua é uma questão que

faz parte das representações linguísticas o que desempenha um papel importante

na dinâmica das situações linguísticas.

No caso das línguas designadas crioulas, a questão de representação é

importante e de grande interesse para a afirmação da própria língua tendo em

conta o contexto social em que elas se desenvolveram e a origem do termo

“crioulo”.

Interessa explicar que os países cuja língua materna foi designada de

“crioulo” são aqueles cujos falantes são descendentes de escravos ou da

mestiçagem. Aliás, a etimologia do termo crioulo tem um valor étnico e

linguístico. Curiosa ou coincidentemente o grupo étnico designado “crioulo” nem

sempre fala a língua que se chamou “crioula.” Inicialmente, a aparecer primeiro

no campo étnico, crioulo, de acordo com a Wikipédia57 “era filho de um europeu ou africano nascido na américa ou o filho de

casamento inter-racial em que um dos pais era português (os filhos de casamentos entre

portugueses não eram chamados crioulos).

Durante o período da América Colonial, os filhos dos grandes aristocratas

europeus (em especial espanha|espanhóis) que tinham filhos nascidos em terras

americanas, chamavam a seus filhos de ''criollo''. O termo era usado como sinônimo

para todo aquele que nascesse fora de seu país de origem. Na fase

Escravatura|escravista/esclavagista, os filhos de escravos nascidos em solo estrangeiro

também eram chamados crioulos, em alusão ao termo já utilizado muito anteriormente

pelos nobres e aristocratas europeus. Entretanto, na américa do norte, o termo passou a

ser utilizado de modo pejorativo, para se dirigir em específico às pessoas de cor.

56 A tradução feita por mim do seguinte excerto: “(…) le locuteur qui declare parler le français et le créole ne dit pas la même choese que s’il déclarait parler le français et le guadeloupéen, de la même façon que le Poitevin, en déclarant parler patois ou poitevin classe son vernaculaire de façon différente et nous apprend des choses ses représentations linguistiques: dire “je parle patois” ou “je parle créole”, c’est situer son vernaculaire dans un rapport de diglossie avec une varieté haute, alors que dire “ je parle poitevin” ou “ je parle guadeloupéen”, c’est accorder au même vernaculaire le statut de langue et le situer face aux autres dans un rapport plus égalitaire.” 57 Consultada em Setembro 2006

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

65

No mundo lusófono o termo nunca teve a mesma carga negativa, sendo usado

para denominar os filhos de casamentos inter-raciais (miscigenação) ou, por extensão,

às culturas nascidas do encontro entre o mundo europeu e o africano (como a Cabo

Verde| caboverdiana) ou a São Tomé e Príncipe|santomense.

Esta palavra originou a expressão língua crioula para as línguas que foram criadas nos

territórios colonizados pelos europeus e que usaram uma língua europeia como base

lexical .”

No campo da linguística, as definições são variadas e as, inicialmente,

feitas eram pejorativas. Valdman (1978) diz que “ (…) na sua concepção

linguística, o termo crioulo assimilou o sentido de língua europeia corrompida

empregada pelos negros ou por brancos “crioulos” na suas relacções com os

negros. Ainda, diz que no contexto das colónias americanas (incluindo Antilhas)

esta variedade de língua foi considerada como um idioma que desempenha todas

as necessidades comunicativas e expressivas de seus locutores e limitando-se

apenas a alguns empregos transitórios.”58

Estas ideias quer do campo étnico quer linguístico influenciaram no

desempenho das funções destas línguas e, consequentemente, na política

linguística traçada nestes países.

Depoimentos sobre a língua cabo-verdiana, dos próprios locutores a

partir de uma entrevista com o linguista cabo-verdiano Donaldo Macedo e

comentários a um artigo da filóloga Ondina Ferreira serão analisados à luz dos

autores da sociolinguística francesa, nomeadamente, Calvet ( 1987, 1999 e 2002),

Boyer (1996) e Houdebine-Gravaud (2002).

Mas antes vamos fazer o enquadramento teórico da nossa análise de

acordo com Calvet ( 1999).

Calvet (1999:160) considera que William Labov (1973 e 76 em França)

e Einar Haugen (1962) foram os precurssores do actual modelo de representações

linguísticas, nos estudos sobre a insegurança linguística, com o objectivo de

explicar a mudança linguística. Destaca o papel de Alain Rey (1972) que apelou à

noção de norma e a subdividiu em tipos de normas: Norma objectiva, norma

prescritiva e norma subjectiva. Na sua análise, Rey utiliza como um dos critérios 58 Tradução feita por mim do seguinte excerto “ (…) dans son acception linguistique, le terme créole avite pris le sens de langue européene corrompue employée par les noirs ou les blancs “ créoles” dans lers rapports avec les noirs. Il est important de noter que dans le contexte des colonies américaines (Antilles inclues) cette variété de langue était considerée comme un idiome assurant tous les besoins communicatifs et expressifs de ses locuteurs et non pas limite à certains emplois transitoires. ”

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

66

de avaliação, o julgamento metalinguístico dos próprios locutores que é o que

permite articular o estudo das normas objectivas sobre as normas avaliativas,

fundamento da norma prescritiva e de religar o normal ao normativo. Isto é o

contrário ao que a maior a parte dos linguistas pretendem: As atitudes dos

locutores em relação ao uso que eles fazem das suas línguas, o que constituem os

fundamentos sociais das atitudes normativas e a norma comum a estes locutores é

o elemento de ligação da comunidade linguística.59

Actualmente, este tema é discutido por Anne-Marie Houdebine

(1982,1985) que deixa de lado a dimensão social do problema falando em

imaginário linguístico cuja definição aparece 1995, na sua tese de doutorado de

Cécile Canet60, dirigida por Houdebine e diz que todas as normas avaliativas e

subjectivas características das representações dos sujeitos sobre as línguas e as

práticas linguísticas, observadas através dos discursos epilinguísticos dão conta

da relação pessoal que o sujeito mantém com a língua.61

Calvet compreende, então, que os discursos epilinguísticos são

significados do imaginário linguístico e este faz parte (ou é equivalente) das

atitudes.

Houve então uma generalização nos temas que tratavam deste assunto

até que Dominique Lafontaine62 sublinha que “o termo de atitude linguística é

empregada paralelamente e sem uma verdadeira nuance de sentido, à

representação, norma subjectiva, avaliação subjectiva, julgamento, opinião, para

designar todo o fenómeno que tem carácter epilinguístico e que esteja em relação

com a língua.” O mesmo autor diz que este termo tem um sentido mais preciso

em sociologia da linguagem onde designa “ a maneira como os sujeitos avaliam

quer as línguas, as variedades ou variantes linguísticas quer sejam mais

frequentes, os locutores exprimindo-se nas línguas ou variedades linguísticas

particulares.

59 Tradução feita por mim de “les atitudes des locuteurs envers les usages de leur langues, ces attitudes évaluatives sont les fondement social des attitudes normatives, et la norme commune à ce locuteurs constitue ciment de la communauté linquistique.” 60 Apud Calvet (1999:155) 61 Tradução feita por mim de “Ensemble des normes évaluatives, subjectives caracterisant les representations des sujets sur les langues et les pratiques langagiéres, repérables à travers les discours épilinguistiques. Il rend compte du rapport personnel que le sujet entretient avec la langue.” 62 Apud Calvet (1999)

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

67

Mas Nicole Gueunier63 distingue a noção de representação linguística de

atitudes linguísticas:

“ Se as representaçõs e as atitudes linguísticas têm em comum o traço

epilinguístico, que os diferenciam das práticas linguísticas e das análises

metalinguísticas, eles se distinguem teoricamente pelo carácter menos activo

(menos orientado em direcção ao comportamento), mais discursivo e mais

figurativo que as representações.”64

Da exposição dos vários conceitos de representação a nossa análise vai

se apoiar na proposta de Jean-Louis Calvet (1999) porque ele apresenta a análise

das representações interlíngua, portanto, nos permite trabalhar a situação do

contacto de línguas em Cabo Verde, e também porque ele introduz o factor da

segurança e insegurança linguística que está relecionado com os usos linguísticos.

Calvet (1999) como dissemos atrás distingue as práticas das

representações afirmando que as representações actuam em três domínios: sobre

a forma (a maneira como as pessoas falam, como se deve falar), o status das

línguas (o que se deve falar, a língua legítima) bem como sobre a função

identitária das línguas (o que caracteriza a comunidade). Enquanto que as

representações provocam segurança ou insegurança nos diferentes domínios.

No caso do nosso objecto de pesquisa as representações que o locutor

tem da sua língua materna provocam insegurança linguística que resulta não da

forma da língua mas sim da relação estatutária que lhes foram atribuídas: é o

próprio falante que diz que ele não fala uma língua mas sim “crioulo” .

No corpus em anexo, temos depoimentos vários que comprovam as

representações dos locutores sobre a forma da língua – maneira como as pessoas

falam e como pensam que se deve falar – a propósito do citado artigo da filóloga

cabo-verdiana Ondina Ferreira ( Maio 2006) da entrevista do linguista cabo-

verdiano Donaldo Macedo (Dezembro 2005). Donaldo Macedo propõe a

oficialização do crioulo e a sua introdução no ensino.

63 Apud Calvet (1999) 64 Tradução feita por mim do seguinte excerto : “Si les representations et attitudes linguistiques ont en commun le trait épilinguistiques, qui les differencient des pratiques linguistiques et des analyses métalinguistiques, elles se distinquent théoriquement par le carácter moins actif (moins oriente vers un comportement), plus discursif et plus figuratif des representations.”

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

68

No artigo intitulado “Crioulês, o novo veículo de comunicação dos

quadros?” a autora denuncia e comenta a variante de língua portuguesa utilizada

nos meios de comunicação social e em espaços formais cujos falantes são:

técnicos, políticos e professores. Ela chama a atenção para uma audição atenta,

pois as características morfossintáticas deste tipo de discurso deixa o ouvinte em

dúvida se se trata da língua cabo-verdiana ou da língua portuguesa. Vejamos os

seguintes depoimentos:

“Até que enfim, alguém já deu conta deste fenómeno. Devemos sacudir complexos e usar a língua portuguesa, como deve ser ou usar o crioulo, também como deve ser e evitar esta “djagacida”65 que, afinal só os letrados entendem. Ou será que o crioulês já é um indicador da alta posição social?”

ou outro comentário feito em cabo-verdiano cuja tradução é a seguinte:

“A minha opinião sobre os falantes de “ criolês” é o seguinte: Eles têm problemas de identidade de língua e de cultura. A maioria de falantes do crioulês estuda em Portugal ou no Brasil. Eles não sabem se se identificam com a língua e cultura dos ex-colonizadores ou se se identificam completamente com a língua nacional de Cabo Verde, o crioulo. Paciência para eles!”

Aqui um outro locutor põe em causa o papel identitário das línguas não

opinando, no entanto qual deve ser a língua do Povo cabo-verdiano. Opinião mais comedida tem um emigrante cabo-verdiano nos estados

Unidos da América : “ Nos últimos dias ao viajar pelas páginas dos jornais cabo-verdianos,

notei que em Cabo Verde, os “alguens” estão a ficar um pouco perturbados paranóias) em relação à língua portuguesa – Língua que na altura da independência foi posta à margem. Mas verifica-se que essa mesmas língua vista como algo de valor e que serve para classificar quem é, e quem não é – um que chegou de Cabo Verde tinha comentado: quem qui cata fala português na Cabo Verde é ca ninguém. 66Será Verdade?”

Não se preocupem com esta particularidade. Que falem e se desenvolvam o português de Cabo Verde. Brazil, Angola, Mozambique, Madeira, São Tomé, todos têm cada um o seu dialecto, é a variante da língua. A língua é a portuguesa e cada um dos falantes apresenta-se com a sua variedade. Verifiquei uns mandabocas (porque não passam disso) aos Editoriais do Dr. Jorge Fonseca, que há “pessoas” que estão rebuscando, como à procura de agulha na areia, erros que não existem, pois caso existem, duvido muito que haja muitos do seu calibre intelectual, em Cabo Verde, que terão essa felicidade de ser o sorteado com tal

65 Prato típico de uma das ilhas de Cabo Verde que se mistura a farinha de milho, feijão e outros ingredientes. 66 Quem não fala português em Cabo Verde não é uma pessoa importante.”

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

69

agulha. (…) que me perdoem os meus erros de português (eu falo e escrevo português dialecto di merca)67 cabo-verdianamente. Imigrante”

Questionamos o porquê desta insegurança linguística ou o

desprestígio pela sua própria língua materna, Calvet (1999:160) nos deu a

seguinte resposta:

Ele considera que a insegurança pode resultar de relações que ele

chamará interlínguas – entre línguas diferentes, e aqui ela é o produto do

plurilinguismo: a insegurança pode resultar da comparação da sua maneira de

falar com o falar legítimo ao qual foi atribuído um determinado estatuto já

interiorizado pelo locutor (tem-se aqui um problema de statut linguístico).

Esta língua, ou esta variante do português a que se refere a articulista

não é um caso apenas de português, mas em muitos países com características

linguísticas próximas de Cabo Verde se identificou esta variante linguística e que

é analisada na perspectiva do continuum crioulo.

Pelas justificações das opiniões emitidas a propósito das discussões

acerca da oficialização ou não da língua cabo-verdiana verifica-se que não se

discute a necessidade e a importância da oficialização da língua materna dos

cabo-verdianos, mas sempre se questiona o porquê de se querer oficializar o

“crioulo” se Cabo Verde já tem uma língua oficial que é utilizada dentro e fora do

arquipélago. Podemos encontrar atitudes como esta e outras nas reacções à

referida entrevista dada pelo linguista Donaldo Macedo. Vejamos algumas

reacções:

“Estou de acordo com ele68 em alguns pontos mas não sou de acordo de

ensinar o crioulo na escola. Falamos crioulo, na rua, (…) na escola não

precisamos. Os nossos filhos são futuros quadros. Se não dominarem português é

grave. O crioulo fica nos quatro cantos de Cabo Verde. Imaginem um médico de

amanhã que não sabe se expressar bem em português? (…) sou de acordo quando

dizem que quem fala um bom crioulo não sabe falar um bom português. Se somos

uns pais que quer avançar não é assim.” (sic)

Calvet (1999:158) diz que as representações não agem em uma parte da

língua ou numa palavra mas em toda língua e podem, entre outras coisas, revelar 67 O que quer dizer em Português “ dialecto dos Estudos unidos da América” 68 O linguista Donaldo Macedo que defende a introdução da língua cabo-verdiana no ensino

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

70

uma segurança ou uma insegurança em diferentes domínios que terão efeitos

sobre a língua, modificando-a . Neste sentido, ele considera, então que as

análises das representações que procedem metodologicamente em sincronia,

tocam necessariamente na mudança, na evolução das formas linguísticas e releva

ao mesmo tempo da diacronia.

Outra particularidade proposta por Calvet é que até então as

representações têm sido ligadas à forma da língua e ele questiona se não estará

ligada mais à função desempenhada pela língua do que pela forma da língua. E

isto é aplicável no caso de Cabo Verde uma vez que durante a época colonial o

cabo-verdiano e o português desempenharam funções diferentes. Hoje em dia, de

acordo com a situação linguística descrita anteriormente assiste-se a uma

redistribuição do uso comunicacional das duas línguas.

De acordo com o modelo teórico de Calvet designado, teoria

gravitacional, que tem em conta a complexidade da dimensão essencialmente

comunicativa e social das línguas, a vertente linguística de mundialização implica

diferentes tipos de comunicação desde o círculo familiar até ao espaço mundial.

Um indivíduo teria de fazer uso de um modelo trifuncional recorrendo-se a três

línguas: uma internacional com a qual ele tem apenas um vínculo utilitário,

utilizado na comunicação internacional, uma gregária com a qual ele tem um laço

afectivo e identitário utilizado no espaço familiar e a língua de Estado utilizada na

Administração e via pública. Esta última, no caso do nosso objecto de análise, é a

língua portuguesa, que funciona realmente como língua intermediária e ficaria

seriamente ameaçada neste contexto de mundialização, pois os cabo-verdianos

apenas se comunicam em crioulo entre si, com uma pequena excepção. A

aprendizagem do inglês já é feita com muito entusiasmo e os cabo-verdianos na

diáspora são bilingues falantes do crioulo e da língua do país de origem. Isto quer

dizer que para um emigrante cabo-verdiano, na Holanda ou nos Estados Unidos

da América onde reside a maior comunidade cabo-verdiana na diáspora, a língua

portuguesa não faz parte das línguas que eles utilizam como meio de

comunicação. Em termos de dados demográficos, a população cabo-verdiana

actual é de 401.343 mil habitantes e a maior comunidade cabo-verdiana no

estrangeiro que reside nos Estados Unidos da América conta com um total de

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

71

264.900 mil. Nas comunicações on line é utilizado ou o crioulo ou o inglês para o

caso dos Estados Unidos e a lcv a língua do país de acolhimento.

Pensamos que aqui já não está em causa a língua cabo-verdiana, mas a

língua portuguesa, que de acordo com Calvet (1974:90): “ (…) a ideia de língua

como instrumento de comunicação que teve sucesso na linguística estrutural

contemporânea é suspeita nas sociedades unilingues, já aplicada às situações

colonial, ela torna-se ridícula, sabendo que 2 ou 3% da população de um país

colonizado fala a língua dominante, a língua oficial, enquanto que a maior parte

da população fala a língua dominada, é difícil de admitir que este facto seja

indiferente à luta de classes nesses países. Até porque a única maneira de se

alcançar todos os postos de responsabilidade, o estatuto de funcionário, por

exemplo, é precisamente pelo domínio da língua dominante. (…)” 69. Os dados do

Censo 2000, do Instituto Nacional de Estatísticas, de Cabo Verde, aponta para

uma taxa de analfabetismo de 25%, no entanto, não podemos concluir que o

restante dos alfabetizados fala a língua portuguesa. Quem, normalmente, usa a

língua portuguesa quer oral quer escrito é a camada da população com nível

superior, que corresponde, de acordo com os dados estatísticos citados, 3,2 % da

população masculina e 1,8 da população feminina.

Calvet propõe o cruzamento das práticas linguísticas com as

representações dos locutores o que acaba por ser o cruzamento de o que os

locutores pensam da sua maneira de falar ( segurança| insegurança formal) e o

valor que eles dão ao que eles falam (segurança estatutária). Cruza-se apenas os

dados provenientes dos locutores, que ele questiona como eles se auto-avaliam,

no entanto, fica de lado um outro problema que é a pertinência das avaliações que

os locutores têm das suas práticas.

Existem várias situações em que o linguista e o locutor não se entendem

ou discordam. Ele exemplifica com o caso dos servo-croatas em que os croatas

dizem que falam croata e não servo enquanto os linguistas vêm apenas uma

69 “ (…) Cette idée de la langue comme instrument de communication, qui a eu un large succés dans la linguistique structurale contemporaine, est dejá en elle-même suspecte lorqu’on l’applique aux societés unilingues. Appliquée à la situation coloniale, elle devient ridicule: en effet, si 2 ou 3% de la population d’un pays colonisé parlent la langue dominante, la langue officielle, tandis que l’immense majorité du peuple parle sa langue dominée, il est difficile d’admettre que cela soit indifferent à la lutte des classes dans ce pays. D’autant que la seule façon d’accéder à l’ensemble des postes de responsabilité, au statut de fonctionnaire par exemple, est justement de parler la langue dominante. (…)”.

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

72

língua: a lingua serbo-crota. No caso de Cabo Verde os falantes dizem que têm

várias línguas porque cada uma das Ilhas tem uma variante fonética própria

enquanto os linguistas dizem que em Cabo Verde só existe uma língua apesar de

reconhecerem as variantes fonéticas.

Então, perante estas duas representações, Calvet (1999: 165) questiona

se se deve levar em conta os dados impostos pelas autoridades dos linguistas ou

as representações. Ele prefere ficar com os dados provenientes dos próprios

locutores embora lhe possam dizer que o científico é mais objectivo.

Mas é, precisamente, através desta reputação de objectividade e

competência que a linguista errou no passado: o discurso colonial por exemplo,

que distinguia entre línguas (europeias) e dialectos (africanos), justificando-se

sempre através de recursos científicos.

Assim, Calvet (1999: 167) diz que não é apenas uma questão de colocar

no mesmo plano as representações dos linguistas e dos falantes mas de lembrar

que os primeiros existem e que a objectividade científica não deixa de ser

desejável, mas não é mais do que um objectivo do qual se aproxima sem nunca o

provar, enquanto que o segundo, mesmo recusado cientificamente age sobre as

práticas e as situações: por exemplo, os linguistas têm razão em dizer, há 50 anos

que o hindi e ourdou são uma e mesma língua, bem como considerar o servo-

croata como uma língua, mas leva tempo para que as representações dos locutores

ajam ( juntamente com factores políticos, sociais e ideológicos) sobre as situações

e que o hindi e ourdou continuam a divergir cada vez mais, bem como, o servo e

croata.

No caso de Cabo Verde, existem já algumas gramáticas e dicionários

mas os falantes não os consultam para tirarem as suas dúvidas como fazem em

relação a outras línguas porque para uma grande parte são falantes do cabo-

verdiano e isso lhes garante o domínio da língua.

Ao abordar a questão da insegurança nos usos linguísticos Calvet

introduziu da análise das representações, o problema do seu modo de emergir. Ele

nos lembra que elas são produzidas, por exemplo, relativamente à insegurança

estatutária, ele diz que o locutor não inventa do nada, ou sozinho que ele não fala

uma língua, mas sim, um dialecto ou um patois. Esta ideia pejorativa foi

veiculada, por exemplo, no discurso colonial. Isto também está associado à

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

73

insegurança formal: é o discurso normativo, o da sociedade, do grupo ou do

mestre da escola que a reproduziu. E, tudo isso se passou em Cabo Verde uma

vez que aprendemos na escola, até à independência a cantar o hino nacional ( de

Portugal) e a amar a “pátria amada” (que era Portugal), os professores durante a

época colonial eram portugueses e os alunos como tal tinham que se dirigir a

estes em português, eram eles que ocupavam os cargos de chefia e uma das

condições para se ingressar na Administração Pública, até hoje, é ter o

conhecimento da língua portuguesa. O Antropólogo cabo-verdiano, José Carlos

Gomes dos Anjos ( 2002:254) afirma que “ (…) Há muito generalizado de que os

funcionários são mais prestativos quando o usuário utiliza a língua portuguesa na

solicitação, especialmente de serviços burocráticos. O português é língua e

simultaneamente signo de distinção que marca a proximidade ou o pertencimento

ao estrato social dominante (…)”. Isso é um facto, embora faça parte da mudança

das práticas linguísticas que acontecem, lentamente em Cabo Verde e uma das

razoes é como diz o referido antropólogo cabo-verdiano (op.ct 251) :“Após a

independência nacional, o regresso anual de um grande número de pessoas

oriundas das classes médias cabo-verdianas e uma formação no exterior

caracteriza uma nova geração de intelectuais: os quadros (…).” Estes quadros

desempenham um papel importante a nível da mudança linguística em Cabo

Verde, tendo em conta que eles se formam no exterior, em países como a Ex-

União soviética (nos anos 70 e 80), França e Alemanha, Áustria, Estados Unidos.

A competência linguística do português da maior parte de estes cabo-verdianos

fica no que lhes foi transmitido durante os 12 anos de escolaridade através da

disciplina de português em cuja ementa entra a gramática e a literatura

(portuguesa e cabo-verdiana). A consequência linguística de tudo isto é o que se

assiste hoje: o uso do cabo-verdiano ou da hipotética variante cabo-verdiana do

português.

Quanto à insegurança identitária, Calvet (1999:172) considera que o

modo de emergência é mais complexo, pois às vezes tem a ver com a escolha

identitária do locutor que pensa ou quer pertencer a um determinado grupo.

Estes fenómenos não são estáticos e repercutem na maneira de falar e,

consequentemente, nas práticas linguísticas. E a situação actual da prática

linguística em Cabo Verde reflecte, exactamente, isso: uso alternado do português

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

74

e do cabo-verdiano de acordo com o objectivo que querem atingir (o que nos

remete para a teoria gravitacional já referida) e que em termos de estrutura

gramatical de línguas leva ao aparecimento de variantes linguísticas quer da

língua cabo-verdiana quer do português. Um trabalho de campo neste domínio

clarificava esta situação.

7. A politica linguística vigente em Cabo Verde

Como descrevemos atrás, a actual situação de contacto permanente da

língua cabo-verdiana e da língua portuguesa não é pacífica e as fronteiras do uso

de uma e de outra começam a diminuir. A língua cabo-verdiana faz parte do

símbolo da identidade cabo-verdiana, mas o português é a língua que permitiu e

permite a concorrência aos postos administrativos. Pela análise do corpus, os

locutores cabo-verdianos assumiram a sua língua como língua nacional mas não

assimilaram o conteúdo de o que é uma língua nacional.

Os sucessivos Governos têm sido obrigados a pronunciar-se sobre esta

situação e passados 30 anos após a independência conta-se com algum aparato

jurídico-administrativo para definir a política linguística.

Fizemos uma recolha que abarcou todas as decisões do governo sobre a

língua materna de Cabo Verde desde a independência até ao presente momento.

Normalmente, estes actos tomaram a forma de decretos-lei e foram publicados no

jornal oficial do Governo, designado Boletim Oficial. Também, consideramos os

fóruns e colóquios organizados pelo Governo ou alguma outra instituição mas

que tiveram respaldo oficial.

Para falar da política linguística recorremos ao Boyer (2001:70) que diz

que a gestão oficial de situações de unilinguismo ou plurilinguismo não é apenas

uma gestão, puramente, linguística. Ela depende de situações históricas, sócio-

étnicas, económicas e demográficas. Ele define a política linguística como toda a

acção de um Estado que designa escolhas, orientações e objectivos deste Estado

em relação à gestão das línguas quer em situações de plurilinguismo quer em

situações de unilinguismo. Estas intervenções, às vezes, são inscritas na própria

Constituição, outras vezes suscitadas por uma situação intra ou intercomunitária

preocupante em matéria linguística. E para que elas possam, realmente, deixar de

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

75

ser meras declarações é preciso que sejam executadas. A esta fase chamou de

intervenção glottopolitique: trata-se de planificação ou normalização linguística.

Já Calvet (1987:154-155) definiu a política linguística como o conjunto

das escolhas conscientes efectuadas no domínio das relações entre língua e vida

social e mais, particularmente, entre língua e vida nacional e a planificação

linguística como a procura e a execução dos meios necessários à aplicação de

uma politica linguística. Boyer precisa esta relação estabelecida por Calvet como

uma relação entre língua e vida comunitária ou intercomunitária no seio de uma

mesma sociedade.

Antes de prosseguirmos, vamos definir a terminologia a utilizar, uma vez

que elas variam entre os grupos de sociolinguistas. Assim, os sociolinguistas

anglo-saxões utilizam a expressão Language Planning (planeamento linguístico )

enquanto que no Canadá utilizam amenagement linguistique (política e

planeamento linguístico) e os sociólogos catalãs preferiram o termo

normalisation lingusitique (normalização linguística). Acima de designação dos

termos encontra-se a denotação comum: qualquer uma delas trata da questão da

gestão de uma ou várias línguas na sua forma e uso. Utilizaremos aqui as

expressões política linguística e planificação linguística.

Aspectos técnicos e jurídicos

As intervenções para gestão de línguas variam muito e dependem das

condições históricas, sócio-étnicas, económicas e demográficas. Segundo Boyer

(1991) a intervenção, relativamente, à língua qualquer que ela seja deve ser

executada a nível estatal ou regional:

. Pode-se limitar a uma academia de língua, ou substituindo as

disposições;

. Pode-se encontrar apenas em um artigo da Constituição e observar a

criação de outras instâncias de gestão de línguas, como um Ministério, Direcção-

Geral, comissões tecnicas, conselhos e um conjunto de textos regulamentares,

como decretos, circulares, e leis linguísticas e deve ter em conta dois princípios: o

princípio da personalidade e o da territorialidade. O primeiro obriga o Estado a

garantir ao cidadão todo o direito do uso das línguas, tratando-se de um país bi-ou

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

76

plurilingue enquanto que o segundo refere-se à dimensão do bi ou plurilinguismo,

se se aplica a todo o Estado ou a algumas regiões.

Boyer (1991:76) considera que a expressão política linguística aplicada à

acção de um Estado, designa as escolhas, as orientações, os objectivos que são

aqueles deste Estado em relação à gestão da pluralidade linguística (ou de sua

única língua oficial) definidos na Constituição.

Para Calvet (1987:154-155) a política linguística é toda a escolha

consciente efectuada no domínio das relações entre a língua e a vida social e mais

particularmente entre a língua e vida nacional enquanto que a planificação

linguística é a procura e a implementação dos meios necessários para a aplicação

de uma política linguística.

Com base nisto, podemos dizer que o Estado de Cabo Verde assumiu a

existência de duas línguas na sociedade cabo-verdiana e manifestou a intenção do

Governo em ter, futuramente, duas línguas oficiais, através de um conjunto de

aparatos jurídico-administrativos, alguns anos após a independência.

Assim, pelos dados que recolhemos, a primeira orientação política,

relativamente, às línguas no pós-independência70 foi a criação em 1978 da

Direcção Geral da Cultura que tinha como objectivo a afirmação e valorização da

língua materna. Esta Direcção organizou, no ano seguinte, em parceria com a

UNESCO, o colóquio sob o tema a “A Problemática do estudo e da valorização o

Crioulo”. O colóquio tinha como grande objectivo valorizar a língua e sobretudo

padronizar a escrita que vinha sendo feita de maneira assistemática. Um dos

resultados do colóquio foi a aprovação de uma proposta de grafia etimológica de

base fonológica. (VEIGA, 1995: 27).

A acompanhar a primeira proposta de grafia o colóquio apresentou, entre

outras, as seguintes recomendações a curto e médio prazo

A médio prazo propôs: - “ a realização de estudos necessários com vista à introdução do crioulo no ensino;

- a elaboração de gramáticas ( nomeadamente, de gramáticas do crioulo escritas em

crioulo), de um dicionário, de silabários, etc.;

- a introdução do crioulo como matéria de estudo nas escolas de Formação de

Professores;

70 Cabo Verde deixou de ser colónia de Portugal em 05 de Julho de 1975.

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

77

- a adopção de uma metodologia de ensino do português que permita a utilização

correcta desta língua;

- o incentivo ao uso e à prática do crioulo como língua de produção literária;

- o incentivo à recolha e ao estudo da tradição oral como meio e forma de

conhecimento da língua e da cultura cabo-verdianas;

- a introdução do crioulo nos mass-média, sobretudo na rádio e nos jornais;”

e a longo prazo: - a introdução do crioulo na vida administrativa, económica, social e política do país;

- o acesso do crioulo ao estatuto de língua oficial e a definição política do seu papel

face ao estatuto e ao papel da língua portuguesa no país.”

No entanto, a proposta de alfabeto nunca chegou a ser aprovada pelo

Governo.

Em 1989 realizou-se um fórum internacional de «alfabetização bilingue”

onde foi apresentado uma outra proposta ortográfica, proposta esta que partiu

também da base fonética proposta pelo colóquio mas inova, relativamente, às

representações dos sons palatais. No mesmo ano, foi criada uma comissão

nacional para a língua cabo-verdiana, “Órgão consultivo do governo, na

implementação de políticas visando a defesa e a valorização da língua cabo-

verdiana” (publicada no Boletim Oficial –Suplemento - nº 25 de 28/06/ 89) com o

objectivo de analisar e dar parecer cientifico sobre o projecto de Alfabetização

Bilingue.

Em 1993 constitui-se uma “comissão Nacional para a Padronização do

Alfabeto” que elaborou e apresentou ao Governo uma proposta de regras

ortográficas71, O Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano - ALUPEC

– que foi oficialmente publicado em 1998 – no Suplemento do Boletim Oficial de

Cabo Verde, I série, nº48, de 31 de Dezembro, em cuja introdução declara o

seguinte:

“…Sendo o crioulo a língua do quotidiano em Cabo Verde e elemento essencial da

identidade nacional, o desenvolvimento e valorização da língua materna. Porém, esse

desenvolvimento e valorização não serão possíveis sem a estandardização da escrita do crioulo, ou

seja, Língua Cabo-verdiana. Ora, a estandardização do alfabeto constitui o primeiro passo para a

estandardização da escrita do Crioulo ou seja da Língua Cabo-verdiana. Assim, no uso da

71 A terceira em termos de propostas para a escrita da língua cabo-verdiana.

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

78

faculdade conferida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 216º da Constituição da República de Cabo

Verde, o Governo decreta o seguinte:

Art.º 1º: É aprovado, a título experimental, o Alfabeto Unificado para a escrita da

Língua Cabo-verdiana o (crioulo), adiante designada ALUPEC, cujas Bases72 são publicadas em

anexo ao presente diploma.”

Mas, antes da publicação deste alfabeto o Governo publicou uma

Resolução, em 1996 (B.O. n. 12 de 31 de Abril), com a seguinte declaração em

relação à língua nacional:

“ O Governo pretende nesse domínio, com base em estudos científicos

que vêm sendo desenvolvidos e orientados por técnicos competentes na matéria,

fixar metas e determinar etapas, para a oficialização do crioulo como língua

nacional, ao lado do português. Refira-se que a aprovação, a título experimental,

do alfabeto é uma das primeiras metas. Incentivos serão estabelecidos com vista à

promoção de obras, estudos e trabalhos sobre o Crioulo.”

Em 1998, uma outra Resolução diz o seguinte: será valorizado,

progressivamente, o crioulo cabo-verdiano, como língua de ensino.”

No ano seguinte, em 1999, o Governo procedeu a uma revisão da

Constituição onde aparece, pela primeira vez, em uma Constituição cabo-

verdiana a referência à lcv, nos seus Artigos: “Artigo 7 º (Tarefas do Estado): São tarefas fundamentais do Estado: (…) Preservar,

valorizar e promover a língua materna e a cultura cabo-verdianas;

Artigo 9º - (Línguas oficiais) 1. É língua oficial o Português. 2.O Estado promove as

condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua

portuguesa. 3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito

de usá-las.

Artigo 78º - (Direito à cultura) 3. Para garantir o direito à cultura, incumbe

especialmente ao Estado: (…)

f) Promover a defesa, a valorização e o desenvolvimento da língua materna cabo-

verdiana e incentivar o seu uso na comunicação escrita ; ” 73

72 As bases do ALUPEC encontram-se em anexo 73 in Constituição da República de Cabo Verde, Lei Constitucional nº 1/V/ 99 de 23 de Novembro.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

79

Também, encontramos nos Programas do Governo e no Plano

Nacional de Desenvolvimento referências e opções de política linguística, como

demostraremos nas transcrições abaixo:

No “Programa do Governo 2001-2006” as referências ao crioulo

aparecem do seguinte modo: “(…) 3.2. Cultura: Para a afirmação da Nação e do Estado cabo-verdianos

(…)

c) Elaboração e adopção de uma política adequada à realidade linguística nacional,

caracterizada pela diglossia;

(…)

Língua: promover e valorizar

No domínio da língua, o Governo aprofundará a política de promoção e valorização do

crioulo ou língua cabo-verdiana, tendo em vista a sua oficialização. Em concomitância, tomará,

igualmente, medidas no sentido de fazer com que o país caminhe progressivamente para um

bilinguismo assumido.

(…)”

A derradeira intervenção do Governo sobre a situação linguística cabo-

verdiana foi através de uma Resolução n° 48, de Novembro 2005, onde ele

oferece incentivos para valorização do uso da língua cabo-verdiana.

Todo este aparato jurido-administrativo do Governo de Cabo

Verde revela que a opção da política linguística em Cabo Verde é a construção de

um país bilingue. No entanto, conhecendo a situação in vivo podemos ver que as

políticas não tiveram repercussão na realidade linguística, ou seja não foram

planificadas. Exemplifiquemos a nossa afirmação com o acto do primeiro

colóquio de onde saiu uma proposta de ortografia mas não há amostras do seu

uso, por exemplo, pela comunicação estatal que quando tem necessidade de

escrever em cabo-verdiano, recorre-se ao alfabeto etimológico. No mesmo ano,

realizou-se um encontro sobre a alfabetização bilingue e foi apresentado um

esboço para a gramática do Crioulo e um alfabeto que mais uma vez não chegou a

ser do domínio público, mas que foi avaliada pela referida Comissão, que

considerou que o mesmo “é omisso quanto a questões fundamentais e, muitas

vezes, específicas na gramática da língua cabo-verdiana como: a Fonologia, a

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

80

Morfologia e a Sintaxe em grande Medida)”74. No entanto, a sociedade, por

atitude própria continua a escrever em crioulo, com base na grafia etimológica e

fonética. Não se registou nenhuma acção formal para apoiar ou não essa atitude

dos falantes. Quatro anos depois, com o objectivo de se preparar a oficialização

da língua em causa foi criada uma outra “Comissão Nacional para a Padronização

do Alfabeto” que, efectivamente elaborou a um alfabeto entregue ao Governo em

Maio de 1994 e, cuja publicação data de Dezembro 1998.

Até ao presente momento, não encontramos nenhuma informação que

pudesse servir como balanço ou avaliação desta fase experimental. Podemos

estender esta mesma observação ao artigo da Constituição que passou a

considerar a língua cabo-verdiana língua Co-oficial em construção. Nenhuma

acção em termos de planificação linguística foi desenvolvida até ao presente

momento.

A terminar este último capítulo da nossa dissertação transferimos o que

disse Calvet75 (1987:158-159) relativamente à teoria de politica linguística para o

caso de Cabo Verde, podemos dizer que, perante as posições oficialmente

tomadas já se pode falar que o país realmente tem uma politica linguística, mas o

mesmo já não se pode dizer relativamente à planificação linguística, então a

execução da politica linguística não é funcional, tem uma função simbólica, isto

é as escolhas de politica linguística nunca foram aplicadas.

Fergusson et J. Das Gupta76 (1977) são da opinião de que “ a

planificação linguística é uma questão nova que apareceu a partir da planificação

do desenvolvimento nacional (...) e que as tentativas voluntárias de mudar ou

preservar as línguas e sua utilização podem ser também previstas na política

económica” mas “ foi, apenas recentemente que estas actividades foram

reconhecidas como um aspecto de planificação no domínio linguístico.” 77

74 VEIGA Manuel, O Crioulo de Cabo Verde - Introdução à gramática. Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco, Instituto Nacional de Cultura, 1995. 75 CALVET, Louis-Jean. La guerre des Langues et les politiques lingusitiques , Payot, Paris, 1987, pg. 158- 76 J. Das Gupta et C. Fergusson, “ Problems of Language Planning”, language planning Processes, Mouton, L aye 1977, P.4 Apud CALVET, Louis-Jean .La Guerre des Langues et les politiques linguistiques, pg158 77 Tradução feita por mim do seguinte excerto: “la planification linguistique est une nouvelle venue dans la famille de la planification du développement national.”, e “des tentatives volontaires de changer ou de préserver les langues et leur utilisation peuvent être aussi vieilles dans que la politique économique “ mas “ ce n’est que récemment que ces activités dans le domaine linguistique ont étè reconnues comme un aspect de la planification.”

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

81

Com base nisto, entendemos que o Governo de Cabo Verde tenha

elencado as políticas linguísticas a par das opções e estratégias económicas para o

desenvolvimento do país no “Programa do Governo” e em “As Grandes Opções

do Plano”. Com isto, queremos dizer que as políticas, realmente, começaram a ser

traçadas já o mesmo já não se pode dizer quanto à implementação. Enquanto

isso, os cabo-verdianos fazem da língua cabo-verdiana a sua língua veicular e a

opção que eles fazem de escolher uma ou outra língua é condicionada por

diversos factores, alguns elencados atrás, na sua maioria extra-linguísticos. “ (…)

o ser humana se desenrasca para resolver de uma maneira ou outra, (…) eles

praticam uma gestão in vivo ou in situ que é o que constitui o primeiro modo de

acção sobre as situações de comunicação”78 (CALVET, 2002:17).

No entanto, é preciso para além destas intervenções de carácter

social, involuntárias, muitas vezes regionalizadas, que existam também

intervenções voluntárias, programadas e uniformes. Neste contexto, vimos que a

tal planificação ou padronização linguística que deve acompanhar a política

linguística não tem sido posta em prática em Cabo Verde. Falamos,

concretamente, da ausência do que Boyer (2001:78) designou de instrumentos de

identidade estrutural da língua, nomeadamente, ausência de gramáticas,

dicionários (por exemolo, um dicionários monolingue do cabo-verdiano ou

manuais de ensino do cabo-verdiano).E, ainda, podemos acrescentar a divulgação

junto da comunidade da forma padronizada da escrita da língua nacional.

Em muitos países africanos, saídos da colonização, a presença de várias

etnias corresponde à presença de várias línguas o que dificulta a planificação de

uma política linguística . Cabo Verde não conhece esta situação, pois consta com

apenas duas línguas em presença, mas chegado a este ponto da nossa dissertação,

vimos que como um país recém descolonizado, as condições históricas e sociais,

os discursos coloniais e a ideia de supremacia da língua portuguesa nas

representações sociais e linguísticas dos falantes funciona como um grande

constrangimento à resolução deste problema linguístico.

78 Tradução feita por mim do seguinte excerto : “ (…) les êtres humains se débrouillent pour résoudre d’une façon ou d’une autre, (…) Ils pratiquent ainsi une gestion in vivo ou in situ qui constitue le premier mode d’action sur les situations de communication.”

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

82

CONCLUSÃO No início desta dissertação, a nossa grande preocupação era entender o

porquê da não oficialização da língua caboverdiana como língua nacional e, para

isso, tivemos que mapear a a situação linguística de Cabo Verde, embora com

destaque para a situação actual, mas não nos foi possível livrar do aspecto

histórico. E a observação que podemos fazer nesta fase final é que esse processo

de oficialização da língua cabo-verdiana está, fortemente, condicionado pelas

representações acerca das línguas que os falantes têm e que na verdade, em Cabo

Verde, estão longe de corresponder à realidade linguística, existe sim, um mito

criado desde a colonização que Cabo Verde como ex-colónia de um país de

língua oficial portuguesa, deve ter a mesma língua. Uma pesquisa mais

aprofundada poderá demonstrar qual a função da língua cabo-verdiana e

portuguesa e porquê que os próprios locutores têm dificuldade em assumir a sua

própria língua materna como língua oficial. Por uma concorrência desleal,

imposta por motivos de politica social e económica do país a língua cabo-

verdiana não é utilizada na modalidade escrita.

No entanto, os avanços tecnológicos, o uso que a grande massa de

população emigrante, os novos quadros e os próprios estrangeiros em Cabo Verde

fazem da língua cabo-verdiana motivam a sua instrumentalização e contribui para

a valorização da língua materna dos cabo-verdianos.

Confessamos que esta dissertação nos permitiu conhecer melhor a

situação linguística de Cabo Verde e inteirarmo-nos da bibliografia existente

sobre o tema, e posto isso, ficamos com a sensação de que agora é que devemos

iniciar uma pesquisa para que possamos, realmente, contribuir neste processo.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

83

Referências

Anderson, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. Buenos aires: Fondo de Cultura Económica, 1993.

Berenblum, Andrea.A invenção da palavra Oficial; identidade, língua nacional e escola em

tempos de globalização.Belo Horizonte. Autêntica.2003

Boletim Oficial de Cabo Verde, nº48 , I série, de 31 de Dezembro de 1998 Boletim Oficial de Cabo Verde, nº46, I Série, de 14 de Novembro de 2005 Boyer, Henri (org.) Sociolinguistique: Territoire et Objets. Paris. Lausanne. Délachaux et

Niestlé, 1996.

Brüser, Martina e Santos André dos Reis. Dicionário da Ilha de Santiago (Cabo Verde) 2002.

Sob a direcção de Jürgen Lang

Calvet, Louis-Jean. Les politiques linguistiques. Paris:Presses Universitaires de

France, 1995.

Calvet, Louis-Jean. Pour une écologie des langues du monde. Paris: Plon, 1999.

____________ Le marche aux langues. Les effets linguistiques de la

mondialisation. Paris: Plon, 2002

_____________Linguistique et colonialisme. Petit traité de glottophagie. Paris,

Payot, 1974.

Chaudenson, Robert. La Créolisation: Théories, applications, implications. Paris: Editions

L’Harmattan, 2004.

Carreira, António .O crioulo de Cabo Verde. Surto e expansão.1984.2ª edição. Lisboa 1983. ______________ Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460 -1878)”, 1972 Duarte, Dulce. História da escrita em Cabo Verde (1994): In Proposta de Bases do Alfabeto

Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano. IIPC. Praia, 2005

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

84

Fanha, Dulce. in Aspectos do contacto entre o português e o crioulo de Cabo Verde, separata do congresso sobre a situação actual da língua portuguesa no mundo, Lx. 1983.Vol.II, p.294 Ferreira, Ondina. Crioulês: o nosso veículo de comunicação dos quadros? Expresso das

Ilhas Praia. 10 de Maio de 2005, p.7

Guisan, Pierre.“O papel do discurso sobre a língua, como factor ou variável

independepente.” Assel – Universidade Federal Fluminense 2006

Hobsbawm.E. Nações e nacionalismos desde 1870. Programa, mito e realidade.1990.Tradução de Maria Célia Paoli e Anna Marina Quirino. 4ª edição Rio de Janeiro: Paz e terra, 2004.

Hagége, Claude. La souffle de la langue. Paris. Odile Jacob.2000

Houdebine – Gravaud, Anne-Marie (org) L’maginaire linguistique Paris - L’Harmatan, 1996 Macedo, Donaldo [Opinião sobre a situação linguística de Cabo Verde]. o jornal electrónico Asemana, Praia de 12 de Dezembro disponível em www.asemana/article.php.3?id-article=14036 acesso em 15 de Dezembro de 2005 Massa, Françoise & Jean Michel. Dictionnaire Encyclopedique et Bilinque –Cap-Vert / Cabo Verde, 2001 Mello, Heliana, Cape Verdean Creole Portuguese (?) Tese de doutorado

Mendes.Mafalda. Cabo Verde – ir à escola em L2. In Revista de Língua Portuguesa e Cooperação para o desenvolvimento. (org) Mateus, Maria Helena Mira & Pereira, Luísa Teotónio Língua Portuguesa e Cooperação para o Desenvolvimento.2005. ed.: edites Colibrí e CIDAC

Moreno Fernández, Francisco. Princípios de Sociolingüística y sociología del lenguaje. Barcelona: Ariel Lingüística, 1998.

Guisan, Pierre François Georges. Crioulização e mudança lingüística. Rio de

Janeiro:UFRJ, Faculdade de Letras, 1999. Tese de Doutorado em Lingüística.

Guisan, Pierre F.G. O papel do discurso sobre a língua, como factor ou variável

independente. Trabalho apresentado no congresso da Assel na UFF, Rio de Janeiro. 2005

Guisan, Pierre F.G.Línguas crioulas em Perigo: o exemplo da Língua Kristang, Gragoatá,

Niterói, n.1,p.81-95,2.sem.1996

Romaine, Suzanne. Pidgin and creole languages. London. Longman, 1988.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

85

Silva, Baltazar Lopes (1957) O dialecto crioulo de Cabo Verde

Thiesse, Anne-Marie.(1999) La création des identities nationals; Europe XVIIIe-

XXe siécle. Paris.Seuil.2001

Veiga, Manuel (1982). Diskrison Strutural di língua kabuverdianu. Praia,

Instituto cabo-verdiano do livro

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

86

ANEXOS

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

87

ANEXO A: Extracto da Sessão Plenária de Outubro - Reunião Plenária do dia 30 de Outubro de 2006

Sr. Deputado António Fernandes (PAICV): - Vou endereçar agora uma

pergunta. Levando em consideração de que São Lourenço dos Órgãos é um dos municípios

com a mais baixa taxa de ligação eléctrica, pergunto: O que pretende o Governo fazer no sentido de elevar a curto prazo essa taxa para

pelo menos a média nacional? Sr. Presidente: - Tenha a bondade, Sr. Ministro. Sr. Ministro da Economia, Crescimento e Competitividade, João Pereira

Silva: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, em relação a essa questão devemos dizer que o Município em causa, cerca de metade já está coberta por redes de distribuição.

O problema é da ligação domiciliária. Existe um projecto para apoiar os grupos mais necessitados da população, que está em curso e ainda deverão existir novos projectos e outras verbas.

Mas, digamos, o problema é do acesso das famílias mais carenciadas à energia, quando já existem redes de distribuição, neste caso cerca de metade do concelho está coberto por redes de distribuição.

De todo o modo estamos a arrancar os projectos previstos no programa de investimentos e contamos ainda atingir as metas de cobertura de 95%, com as redes de distribuição. Inevitavelmente, o município de São Lourenço dos Órgãos chegará a essa taxa.

Quanto aos problemas de acesso, de disponibilidade financeira das famílias para pagarem as despesas de ligação, essas questões são tratadas no âmbito de outros projectos e de outras instituições variadas.

Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Lima Santos. Sr. Deputado José Luís Lima Santos (MPD): - Sr. Ministru, nu ste-m papiâ na

língua di téra pa nu podê espresá amidjor y pa no podê tanbê entendê amidjor. Sr. Ministru, na últimu Sesãu ki-m partisipa di anu pasádu na mês di Abril, N

koloka Sr. Ministru un kestãu ki Sr. Ministru da un data di volta, el ka respondê, mas oje dja nu ten resposta.

Nu perguntá Sr. Ministru kenha ki tinha vendide terénus di Esgreta, Sr. Ministru fla ma ka era Guvérnu, nu perguntâ e kenha, Sr. Ministru fla me ka sabia.

Dja nu sabê ma foi Guvérnu através di Cabo Verde Investimentos, nu kre pergunta Sr. Ministru, (purki mal dja ta fête, kel ispropriasãu di kes terénus foi fête di forma kel foi, pa nu foi sinpátiku nu ta fla forsóde y arbitráriu, pa tentâ remediâ, sobretude kes pesoas ki sta lezadu, aflitu pur kauza di ses terene ter side ispropriade da kel forma) pa kuandu indiminizasãu di kes pesoas, dadu ki nô sabê ki-mô dja entrâ un soma avultada di venda di kes terenus pa un grupê ben identifikadu ki nô sabê, nu ten tude ses nome li.

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

88

Nu kre perguntâ Sr. Ministru pa kuandu ki efetivamenti kes pesoas ta resebê ses indiminizasãu? Nu devê fla Sr. Ministru, nho sabê, es ta revoltóde, es ta ta pensâ até na otras formas di luta.

Nu ta flá-s pe-s ten kalma, purki es téra e un téra di justisa, nô ta sperâ ki justisa á-de ser fete.

Un segundu pergunta, Sr. Ministru, kual e kes kritérius pa iskolha di funsionárius pa Sociedade de Desenvolvimento de Boa Vista? N ta referi a sedi na Boa Vista.

Resentimenti entrâ un konjuntu di pesoas la, di tudu es, di sinku pesoas, so un e ki foi alvu di konkursu públiku. Kes otê ninhun ka foi alvu di konkursu públiku, pur isu e un kazu karikatu, un sinhora ki parsê un dia na konkurse e reprovâ, na kel otê dia el entrâ la komu funsionária, nu ka sê nen ki manéra.

Nu kre perguntâ Sr. Ministru kual e ke kritérius pa kolokasãu di funsionárius na séde da Sociedade de Desenvolvimento da Boa Vista e Maio, ma nôs tude nô sabê ke na Boa Vista.

Un terseiru pergunta, Sr. Ministru, na altura di kanpanha Sr. Ministru fla solenimenti y publikamenti ma nos primeirus dias di mandatu siginti, (Sr. Ministru staba seguru kes ta ganhaba ileisoins) ta fazida alargamentu di inerjia na zona norti pa 24 óra.

No sabê, já na ki altura nô ta, nu fikâ kontenti ku es anúnsiu, el e un nesesidadi primente di zona norti, nu kre perguntâ Sr. Ministru si já ka e altura di materializasãu di kel prumesa ki el fazê sulenemente a jentes di zona norte na Boa Vista.

Pa termina, Sr. Ministru, ki razoins e ki estevi na admisãu di sinhor ex-prizidenti di konselhu di administrasãu di Sociedade de Boa Vista e Maio?

Nu sabê ki el asinâ un kontratu di kuatru anus y uns mezis dipôs el foi demetide. Isu kauzâ inormis prejuízus à Sociedade ki inda nu ka sabê sertamenti kóndê e ki el ta bá resebê di indiminizasãu, mas e seguramenti mais di 10 000 kontus.

Nu kre perguntâ Sr. Ministru kual e ke razãu, pe respondê li pur favor, má pa el ka fují, u ki levâ a dimisãu mezis dipôs di Prezidenti di konselhu di Administrasãu de Sociedade de Desenvolvimento de Boa Vista e Maio?

Sr. Presidente: - Antes de passar a palavra ao Sr. Ministro, queria dizer que a

Mesa tem feito um esforço enorme para que as Sessões de perguntas ao Governo decorram de uma forma normal e pediríamos a todos os Deputados, sem excepção, que se ativessem ao n.º 4 do Artigo 252.º que diz que as perguntas orais não devem conter observações subjectivas ou juízos de valor e também nas respostas, os membros do Governo terão que fazer o mesmo esforço.

Com essa observação, de certeza que teremos uma melhor condução e rendimento dos nossos trabalhos.

Tenha a bondade, Sr. Ministro! Sr. Ministro da Economia, Crescimento e Competitividade: - Não estou cá em

campanha eleitoral, de forma que vou responder objectivamente. Primeiro, vou responder em português, a população da Boa Vista tem fama de

falar bom português … Risos dos Deputados da Bancada do PAICV.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

89

(…) e de ter escola pública com professores do Magistério transferidos da metrópole desde o século XVIII, de forma que vou falar em português, na certeza de que vão todos perceber bem.

Não! O Sr. Deputado fez mais uma pergunta que não está na lista. Aproveitou e fez mais uma pergunta que não tinha feito. Tinha quatro perguntas, fez cinco.

Sr. Deputado José Luís Lima Santos (MPD): - Não, fiz quatro. O Orador: - Fez cinco, Sr. Deputado e vou provar-lhe porquê que fez cinco. Voltou à pergunta da Sessão passada para concluir que faltei à verdade, mas devo

dizer que o Senhor é que está a faltar a verdade conscientemente porque é Presidente da Assembleia Municipal da Câmara da Boa Vista.

A Boa Vista tem 35% do capital socialda Sociedade de Desenvolvimento das ilhas da Boa Vista e do Maio.

O Sr. Deputado fez Sessão da assembleia há bem pouco tempo, podia ter

interpelado a câmara, cuja assembleia municipal preside, sobre… ANEXO B : Leis e decretos do governo de Cabo Verde sobre a situação linguística de Cabo Verde bem como encontros para a discussão da mesma promovidos pelos Governo:

- Em 1978 foi a criação a Direcção Geral da Cultura que tinha como objectivo a

afirmação e valorização da língua materna que organizou, no ano seguinte, em parceria

com a UNESCO, o colóquio sob o tema a “A Problemática do estudo e da valorização

o Crioulo”.

- Em 1989 foi criada a Comissão Nacional para a Língua cabo-verdiana, “Órgão

consultivo do governo, na implementação de políticas visando a defesa e a valorização da

língua cabo-verdiana” (publicada no Boletim Oficial –Suplemento - nº 25 de 28/06/ 89)

com o objectivo de analisar e dar parecer cientifico sobre o projecto de Alfabetização

Bilingue.

- Em 1989 realizou-se um fórum sobre a «alfabetização bilingue” onde foi

apresentado uma outra proposta ortográfica da autoria da linguista portuguesa Dulce

Almada.

- Em 1993 constitui-se uma “comissão Nacional para a Padronização do

Alfabeto” que elaborou e apresentou ao Governo uma terceira proposta de de regras

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

90

ortográficas, O Alfabeto79 Unificado para a Escrita do Crioulo ALUPEC – que foi

oficialmente publicado em 1998 – no Suplemento do Boletim Oficial de Cabo Verde, I

série, nº48, de 31 de Dezembro de 98.

- Resolução em 1996 (B.O. n. 12 de 31 de Abril), com a seguinte declaração em

relação à língua nacional:

“ O Governo pretende nesse domínio, com base em estudos científicos que vêm

sendo desenvolvidos e orientados por técnicos competentes na matéria, fixar metas e

determinar etapas, para a oficialização do crioulo como língua nacional, ao lado do

português. Refira-se que a aprovação, a título experimental, do alfabeto é uma das

primeiras metas. Incentivos serão estabelecidos com vista à promoção de obras, estudos e

trabalhos sobre o Crioulo.”

Em 1998, outra Resolução diz o seguinte:” será valorizado, progressivamente, o

crioulo cabo-verdiano, como língua de ensino.”

Em Dezembro 98 foi aprovado a título experimental o ALUPEC através de um

Decreto que diz o seguinte:

“…Sendo o crioulo a língua do quotidiano em Cabo Verde e elemento essencial

da identidade nacional, o desenvolvimento e valorização da língua materna. Porém, esse

desenvolvimento e valorização não serão possíveis sem a estandardização da escrita do

crioulo ou seja língua seja Língua Cabo-verdiana. Ora, a estandardização do alfabeto

constitui o primeiro passo para a estandardização da escrita do Crioulo ou seja da Língua

Cabo-verdiana. Ora, a estandardização do alfabeto constitui o primeiro passo para a

estandardização da escrita. Assim, no uso da faculdade conferida pela alínea a do n.º 2 do

artigo 216 da Constituição da República de Cabo Verde, o Governo decreta o seguinte:

Art.º 1º: É aprovado, a título experimental, o Alfabeto Unificado para a escrita da

Língua Cabo-verdiana o (crioulo), adiante designada ALUPEC, cujas Bases80 são

publicadas em anexo ao presente diploma.”

80 As bases do ALUPEC encontra-se no anexo

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

91

Em 1999, o governo procedeu a uma revisão da Constituição onde aparece pela

primeira vez uma referência à língua cabo-verdiana, nos seguintes termos:

“Artigo 7º.- (Tarefas do Estado) : São tarefas fundamentais do Estado: (…)

Preservar, valorizar e promover a língua materna e a cultura cabo-verdianas;

Artigo 9º - (Línguas oficiais) 1. É língua oficial o Português. 2.O Estado promove

as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a

língua portuguesa. 3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas

oficiais e o direito de usá-las.

Artigo 78º - (Direito à cultura) 3. Para garantir o direito à cultura, incumbe

especialmente ao Estado: (…)

f) Promover a defesa, a valorização e o desenvolvimento da língua materna cabo-

verdiana e incentivar o seu uso na comunicação escrita ; (…) 81

Também encontramos nos Programas do Governo e no Plano Nacional de

Desenvolvimento referências e opções de política linguística, como de mostraremos nas

transcrições abaixo:

No “Programa do Governo 2001-2006” as referências ao crioulo aparece do

seguinte modo:

“3.2. Cultura: Para a afirmação da Nação e do Estado cabo-verdianos

(…)

d) Elaboração e adopção de uma política adequada à realidade linguística nacional,

caracterizada pela diglossia;

(…)

Língua: promover e valorizar

No domínio da língua, o Governo aprofundará a política de promoção e valorização do

crioulo ou língua cabo-verdiana, tendo em vista a sua oficialização. Em concomitância,

tomará, igualmente, medidas no sentido de fazer com que o país caminhe

progressivamente para um bilinguismo assumido.

(…)

81 in constituição da República de Cabo Verde, Lei Constitucional nº 1/V/ 99 de 23 de Novembro.

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

92

ANEXO C :

(I) Depoimentos de atitudes e ideias dos locutores cabo-verdianos sobre as línguas presentes no país, extraídos de jornais electrónicos cabo-verdianos “Asemana” e “liberal” e extracto do jornal impresso “Expresso das Ilhas”: 1. Comentários sobre o artigo de Ondina Ferreira “ Crioulês, o novo veículo de comunicação dos quadros?”Publicado no jornal impresso “Expresso das ilhas” do dia:__ de Maio de 2006 e cujos comentários aos artigos foram extraídos no dia 15 de Setembro do jornal eletrónico LIBERAL, na secção Cultura e Lazer do dia 11 de Setembro 2006. A data destes comentários é do dia 22 de Agosto de 2006. Segundo Ondina Ferreira, em Cabo Verde tem vindo a insinuar-se, paulatinamente e vergonhosamente82, mas sempre crescendo, uma nova língua, que ela chama de crioulês, por comodidade de expressão; surge então uma forma particular de comunicar e de se fazer entender, utilizada, sobretudo, nos media, pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores da terra que, parecendo não querer expressar-se nem em crioulo, nem português (…) Sorocaba (Parceria RondaMundo-Liberal), 22 Agosto- A cultura de Cabo Verde está a ser acompanhada atentamente no Brasil, onde algumas polémicas são lidas e comentadas. Eis um exemplo que, de Sorocaba, Margarida Castro fez chegar a “Acontece em Sorocaba” A atenção que mereceu um texto de Ondina Ferreira ” “Em Cabo Verde são duas as línguas oficiais: o crioulo e o português. Mas agora surge, parece, uma “terceira língua”? Leiam as palavras abaixo a transcrição de excerto de fala e escutada, no parlamento cabo-verdiano, por Ondina Ferreira em seu artigo “crioulês – o novo veículo de comunicação dos quadros”, pg 7, in “Expresso das Ilhas 10-Maio-2006 e a opinião da cabo-verdiana Ondina Ferreira: “…nês contexto e mediante as razoes que o senhor ministro apresenta, é inegável qui nu stá perante um situação de grande complexidade de tal forma, que qualquer solução encontrada pode reverte em desigualdade que tá desacreditá nós sistema democrática…” Segundo Ondina Ferreira, em Cabo Verde tem vindo a insinuar-se, paulatinamente e vergonhosamente, mas sempre crescendo, uma nova língua, que ela chama de crioulês, por comodidade de expressão; surge então uma forma particular de comunicar e de se fazer entender, utilizada, sobretudo, nos media pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores da terra que, parecendo não querer expressar-se e nem em crioulo nem em português, ou fugindo a isto, optem e fazem-no através desta espécie híbrida, de compromisso, para uma fala situada entre o crioulo e o português. Por vezes, diz Ondina Ferreira, ao ouvir nos meios de comunicação os discursos, fica “ na dúvida sobre qual a

82 A autora do texto “crioulês, o novo veículo de comunicação dos quadros?” mandou um esclarecimento-corecçao à redaçao do jornal Liberal (…atenção que há uma diferença semântica das palavras em contexto: vergonhosamente e envergonhadamente. Foi este último que empreguei, no meu texto, o que dá sentido completamente diferente.”

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

93

língua veicular, se português, se crioulo.” Dúvida que permanece até ao fim. E aí deduz que se trata de crioulês. Mais adiante, Ondina pergunta: terá o dito crioulês, nascido sob o signo de uma hesitação onde uma indefinição dos seus talentos, na utilização de uma das suas línguas de uso público em Cabo Verde? Finalizando, Ondina sugere que um sociolinguista e estudioso destas questões preste atenção a este novo fenómeno de comunicação erudita, a terceira (?) língua, ouvia de comunicação oral, que vai ganhando forma e existência, pública e mediática, em Cabo Verde. Realmente, a estratégia da importância da (s) língua (s) no desenvolvimento do sentimento de Nação, pátria ou identidade cabo-verdiana ainda tem muito o que avançar. No caso da piada da articulista, adoptando o nome “crioulês”, para “ terceira língua” , o problema ou questionamento que ela põe, é que seus falantes são da camada social detentora de alta literacia, que transmitem mensagens e enunciados cujos conteúdos estão relacionados com temas científicos, técnicos ou políticos. Um tema complexo, talvez, para maioria de nós, mas que vale acompanhar. / Margarida Castro/ E sobre isto, a opinião dos próprios locutores cabo-verdianos é variada : “Até que enfim, alguém já deu conta deste fenómeno. Devemos sacudir complexos e usar a língua portuguesa, como deve ser ou usar o crioulo, também como deve ser e evitar esta “djagacida” que, afinal só os letrados entendem. Ou será que o crioulês já é um indicador do alta posição social?” 2. “Nha opinion sobre falantes di “creoles” eh o seguinte: Es tem prubulema de identidade di língua y di kultura. Maioria di falantes di “creoles” studa na Portugal y Brasil. Es ka sabi ses “ta identifika ku língua y kultura di ex-colonizadores o ses ta identifika kompletamente ku língua nasional di Kabo Verde, kriolu. Paxenxa pa es!!!” ou 3. (…) A nossa língua caiu no esquecimento e a minha tamanha “burreza” pergunta a quem de direito porque é que quando se discutem problemas do povo todos se entendem excepto o povo que na sua maioria não percebe do que se fala e muito menos do que se está fazendo para melhorarem os seus níveis de vida. Pamodi!

4. “Liberdade e terra”. Terra temos, mas liberdade JAMAIS!Conformados, resposta, continua sendo SIM senhor. O criolo, é belo sem contendas, não está em extinção, que eu saiba. Péricles O.Tavares Nos últimos dias ao viajar pelas páginas dos jornais cabo-verdianos, notei que em Cabo Verde, os “alguens” estão a ficar um pouco perturbados paranóias) em relação à língua portuguesa – Língua que na altura da independência foi posta à margem. Mas verifica-se que essa mesmas língua vista como algo de valor e que serve para classificar quem é, e

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

94

quem não é – um que chegou de Cabo Verde tinha comentado: quem qui cata fala português na Cabo Verde é ca ninguém. Será Verdade? Não se preocupem com esta particularidade. Que falem e se desenvolvam o português de Cabo Verde. Brazil, Angola, Mozambique, Madeira, São Tomé, todos têm cada um o seu dialecto, é a variante da língua. A língua é a portuguesa e cada um dos falantes apresenta-se com a sua variedade. Verifiquei uns mandabocas (porque não passam disso) aos Editoriais do Dr. Jorge Fonseca, que há “pessoas” que estão rebuscando, como à procura de agulha na areia, erros que não existem, pois caso existem, duvido muito que haja muitos do seu calibre intelectual, em Cabo Verde, que terão essa felicidade de ser o sorteado com tal agulha. Camaradas, para que Cabo Verde desenvolva, (não crescimento, isso sei que existe) nhos djunta moncu apelo de Nho Bispo, nhos po mãos à obra, menos conversa e críticas de xáxá e comecem a produzir ou caso não sabem como, apanhem duma vasoura e comecem na limpeza do nosso governo) e da vossa capital e terra que tanto necessitam. Que me perdoem os meus erros de português (eu falo e escrevo português dialecto di merca) cabo-verdianamente.imigrante. Língua é algo colonial. Não sejam extremistas.) 5)Ainda em reação ao artigo em causa, temos um artigo do colunista do jornal electrónico liberal Adriano Miranda Lima, intitulado O crioulês, o português e o crioulo “O crioulo não é apenas o instrumento idiomático” que acompanha o ilhéu desde o berço até à tumba”, como bem disse Baltasar Lopes, é também uma das marcas inconfundíveis da sua cultura. Só que a situação de bilinguismo em que o cabo-verdiano vive cria-lhe um conflito psicológico permanente, em que o crioulo é o refúgio natural e imprescindível e a língua portuguesa um vizinho com quem se tem de conviver. Este problema parece irresolúvel, porque a língua cabo-verdiana, qualquer que seja, e mesmo que venha a tornar-se oficial, nunca poderá abdicar-se da estreita convivência com o português, até porque, segundo parece anunciado este continuará como segunda língua oficial. Esta salvaguarda configurará certamente uma das condições estatutárias, ou pelo menos de ordem cultural, para que Cabo Verde possa continuar a ser membro natural dos PALOP, ainda que com alguns traços dissonantes, com todo o seu significado real e simbólico. Mas uma comunidade com cerca de 200 milhões de falantes em português, veiculando a sétima ou oitava língua hoje mais falada no mundo, pode gerar uma acção centrípeta cujo efeito não será certamente despiciendo. Só o futuro o dirá, mas os sociolinguistas têm de estar atentos. Só agora pude ler um interessante artigo da autoria de Ondina Ferreira, intitulado “crioulês”, publicado no jornal “ Expresso das Ilhas”, de 10 de Maio do corrente. Escreve a autora: “ Tem vindo a insinuar-se, discretamente, paulatinamente, diria, quase envergonhadamente, mas sempre crescendo, uma nova língua – chamemo-la “crioulês”, por comodidade de expressão – uma forma particular de comunicar e de se fazer entender, utilizada, sobretudo, nos “media”, pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores da terra, que, parecendo, não querer exprimir-se nem em crioulo, nem em português, ou fugindo a isto, optem e fazem-no através desta espécie, híbrida, de compromisso, para uma fala situada entre o crioulo e o português.”

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

95

Contudo, esta revelação não constitui qualquer surpresa para mim, apesar de não estar a viver em Cabo Verde há longos anos. É que, em 2003, estando de visita à minha ilha natal, S. Vicente, acompanhei pela rádio nacional uma mesa redonda em que esteve presente o Director Geral das Alfandegas e um representante do Ministério das Fazendas confirmar se é fazendas ou finanças). Estava em discussão a implementação de um novo regime fiscal e aduaneiro e recordo-me bem de que a língua veicular utilizada pelos intervenientes foi mais ou menos o “crioulês”, conforme a designa a Ondina Ferreira. O debate destinava-se a esclarecer o público e a terminologia técnica predominava na interlocução, como o impunha a natureza específica dos assuntos em presença. Em consequência disso, os vocábulos resultavam na sua quase totalidade em português, só fugindo, de um modo geral, à norma idiomático, as particulares de ligação, os prenomes83 e artigos, normalmente invariáveis em género, e as flexões verbais. Contudo, quem distraidamente estivesse a ouvir o debate e não conhecesse a origem dos intervenientes, seria à partida induzido a identificar uma conversação em língua portuguesa, e só instigando mais a audição notaria as destoantes particularidades do acessório linguístico. Isto porque mesmo que não quisesse, a matéria em discussão, predominantemente técnica, não podia evitar o uso alargado do vocabulário técnico português, porquanto o crioulo, até agora, não lhe encontrou qualquer tradução ou sucedâneo. Tenho de confessar que acompanhei o debate com atenção porque o Director Geral das Alfândegas foi um estimado colega de liceu e a oportunidade de o ouvir servia para eu matar as saudades daquele que foi um bom companheiro de carteira. Mas houve um momento em que pensei: “que diabo, se o intuito é facilitar a compreensão do cidadão comum menos instruído, consegue-se o mesmo desiderato falando integralmente em português. Porque a dificuldade da percepção radicava, não no acessório formal da linguagem, mas sim naquela terminologia técnica, que em princípio seria inacessível a grande parte dos ouvintes. É claro que tive oportunidade de assistir nos “media” a outras mais intervenções em “crioulês”, mas o referido debate, pela sua duração, funcionou para mim como uma espécie de ensaio revelador de uma nova forma de comunicar, daí que, repito, não me tenha surpreendido o conteúdo do artigo de Ondina Ferreira.

A autora refere que o “crioulês” resulta de um processo iniciado há, sensivelmente, 30 anos, vindo no entanto, à luz, com mais notoriedade e…(ver o artigo na net) por alturas dos anos quentes de 1974 e 1975, quando se tornaram correntes os comícios políticos. Concordo efectivamente que o período da afirmação revolucionária possa ter determinado a eclosão do que já estava em fase larvar algum tempo antes. Mas sou inclinando a situa-lo em data muito mais recuada, visto lembrar-me perfeitamente de que, já no meu tempo do liceu, era comum utilizarmos um recurso linguístico similar ao crioulês para abordar algumas questões escolares. Por exemplo, as seguir às provas escritas de qualquer disciplina, era frequente confrontarmos as respostas e soluções dadas por cada um e, nessas alturas, libertes do formalismo impositivo da sala de aula, o português puro deixava de ser a língua veicular dos nossos pontos de vistas porque o crioulo logo se encarregava de tomar conta de algumas particularidades do discurso, ainda que o vocabulário presente fosse maioritariamente em português, por razoes que são óbvias como as que se aplicam aos exemplos citados por Ondina Ferreira e ao acaso do debate por mim referido. Também lembro de estudar filosofia com um colega e de, a espaços, interrompermos a leitura do Manuel escolar e dado texto para expormos o nosso 83 Pensamos que o articulista queria escrever “pronomes”

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

96

próprio pensamento, fazendo-o algumas vezes em linguagem algo idêntica ao “Crioulês”. É por este motivo que sou levado a situar a origem do crioulês em data provavelmente muito anterior à independência, se bem que a necessidade imediata de comunicação pública possa ter ocasionado o momento decisivo para libertá-lo da timidez, emprestando-lhe uma roupagem pseudo-formalizante. Como interpretar o fenómeno de “crioulês” numa altura em que vem ventilada a oficialização do crioulo e sua ascensão a língua do Estado! Trocar com o ponto exclamação) o “crioulês” pode considerar-se um elemento de real ineresse no laboratório de ensaio onde decorrerão os estudos e as ponderações de ordem linguística que irão propiciar os primeiros contornos da nova língua oficial do Estado de Cabo Verde? (…) Não me parece. Esta nova linguagem, que tanto pode designar-se “crioulês” como “portucriol”, por mais próxima do português que do crioulo, não tem a integridade denética da língua de berço cabo-verdiano e, portanto, pouco relevo deverá assumir na definição da personalidade morfológica, semântica e fonética daquela que, como é pretensão de alguns, poderá vir a ser, ou não, a principal língua oficial do país. Caso contrário, pouco sentido faria banir o português como língua oficial, ou secundarizar-se a sua importância, já que entre ele e o crioulês não existe um diferencial linguístico significativo. Estará o “crioulês” próximo de alguma linguagem de compromisso que Baltasar Lopes ou Teixeira de Sousa, além de outros, podem ter insinuado em algumas formas de expressão, respectivamente, nos romances de “Chiquinho” e “Ilhéu de Contenda” ? Também não me parece. Por exemplo, o “crioulês” apenas se tem limitado à comunicação verbal, ao passo que nos citados romances ganha forma fala popular, ou seja da raiz crioula, que é algo distinto do “crioulês” e aquilo que é uma manifestação diatópica. Naqueles romances, o que existe é, pois, algum vocabulário e expressão de matriz regional, que surgem apenas em determinados contextos sócio-culturais, não tendo lugar na comunicação erudita. Neles, o diálogo entre os personagens de estratos culturais mais altos é sempre em português padrão e nas circunstâncias apropriadas com doses de conveniente erudição. Mas em caso algum, se nora deriva à norma do português, como no “crioulês”. A propósito, pergunto a razão por que o cabo-verdiano de entre os PALOP que parece ter, como sempre tece, um certo constrangimento em utilizar de forma natural a língua portuguesa, encarando-a apenas como aquilo que ela é: uma simples língua veicular. E isto acontece mesmo nos casos em que se domina a língua com natural desenvoltura. Tem graça recordar-me agora das cartas que em criança o meu pai me escrevia do estrangeiro e em que não se cansava de advertir: “Adriano, procura falar sempre em português., ,as falar sem receio, sem vergonha e com à vontade.” É evidente que a recomendação era perfeitamente inútil porque não me via em circunstância alguma a conversar em português com os meus companheiros de escola ou de brincadeira. Mas a resposta à questão atrás aflorada bem sabemos qual é. O crioulo não é apenas o instrumento idiomático.” Que acompanha o ilhéu desde o berço até à tumba, ” como bem disse Baltasar Lopes, é também uma marca das marcas inconfundíveis da sua cultura. Provavelmente, o “ crioulês” pouco vem acrescentar ao panorama linguístico cabo-verdiano, porque é mais fácil antevermos cenários, ou hipotéticas resoluções administrativas, visualizando o comportamento da língua apenas ma esfera da

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

97

comunicação verbal. Por enquanto, é onde apenas medra o crioulo e o “crioulês”. O imbróglio surge quando entramos no terreno da escrita.

(II) : Reacções de falantes nativos do crioulo de Cabo Verde a uma 84entrevista dada por Donaldo Macedo, linguista de origem cabo-verdiano residente nos Estados Unidos da América, a propósito de um debate sobre a oficialização do crioulo e o ensino bilingue onde ele concluiu a entrevista dizendo «A nossa língua é viável como instrumento pedagógico»;

6. “… e pa mi un grandi orgulhu tem un konpatriota ku tantus konkistas na ária di saber num pais stranjeru sim anho dja nhu konsigi. Riason di pesoas a entrevistas di nho ta mostra kuantidadi di ekivukus y invensons ki sa ta atrazanu na afirmason di nos alma ki e kabu-verdianu, na se rikeza ki ta konstitui sees diferentis variantis. En vez di bem tenta atraza afirmason di nos lingua pur kauza di proteson di un dadu varianti, pessoas debia tenta influensia desizoris scientifiku y pulitiku na sentidu di apruveita lisons di Esperanto di manera a valoriza, na justa medida, tudu varianti di nos terá. Prusesu di afirmason di nos língua debi ser un prusesu xeiu di amor y di alegria, um prusesu ki ta uninu y ta intxi tudu kabuverdianu di orgulhu. Nu ka debi bai pa kaminhu ki ta dexa un parti di nos povu maguadu, ta xinti inferiorizadu. Tudu opson debi ser ser justu y splikadu pa tudu alguen ntendi... (…) Mestre em economia y Inspetor Principal das Finanças em Cabo Verde. 7. Esta conversa mais parece uma conversa de café do que uma entrevista com um discurso científico de alguém que tem um PHD. Desculpe-me doutor, mas o seu discurso peca com as suas inúmeras contradições. Vejamos: o senhor diz que os cabo-verdianos nascidos no estrangeiro não falam crioulo. Mas ao mesmo tempo diz que os seus pais não falam a língua do país onde estão. Logo, come que os pais e os filhos se entendem? A mãe que não fala, por exemplo o inglês nos states, tem de falar crioulo com o seu filho ou não? Logo, o filho mesmo que se recuse a falar a crioulo percebe o que a mãe lhe diz. Temos a impressão que o doutor não tem conhecimentos na área de neuro-linguistica ou de psicolinguistica. Nem tão pouco sabe como funciona o cérebro de alguém que é bilingue naturalmente e que fala várias línguas.

Quanto à sua anedota desse intelectual cabo-verdiano que num colóquio insistiu em falar português porque se sentia mais à vontade em exprimir nessa linha ideias e conceitos, enquanto o senhor replicou em inglês só para o contrariar, tal não passa disso mesmo: anedota.

84 Tirado do jornal online www.asemana.cv, do dia 10/12/06

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

98

Anedota pois, são duas coisas diferentes já que o nosso intelectual aprendeu em português e não em inglês, enquanto o senhor aprendeu primeiro em português e depois e inglês. (…)

Quanto à Lura, o seu exemplo não serve igualmente já que a Lura nasceu em Portugal e sempre se recusou a falar crioulo por complexo de inferioridade, como acontece com a maioria dos miúdos nascidos em Portugal. Só que a maioria insiste em falar portugues, mas fala mal e é por isso que a maioria tem fracassos escolares. Mas toda a gente sabe que a Lura falava portugues, mas no recreio tinha que brincar com os seus colegas que falam em crioulo.

O paradoxo dos putos e Lisboa é que falam mal português, mas insistem em falar português com os pais que lhes respondem em crioulo porque não sabem portugues. (…) conclusão: Lura sempre soube falar crioulo no seu subconsciente ou no seu inconsciente, somente se recusava a falar por uma série de razoes que tem explicações psicológicas, mas que não queremos abordar aqui.

Quanto a isso de aprendermos crioulo é um disparate. Não precisamos de aprender aquilo que já sabemos desde o berço mas sim de aprender uma língua com uma arquitectura do saber e da cultura. Cabo Verde fica a ganhar mais se a malta aprender inglês ou francês, línguas de comunicação. Crioulo é uma língua muito restrita para um pequeno povo, sem expressão nenhuma no mundo. Tanto mais que não há livros escritos em crioulo. O senhor devia começar por reduzir Shakespeare e Milton. Cabo Verde ficaria a ganhar mais. Vamos traduzir por exemplo primeiramente os clássicos universais e depois já conversaremos. Sr. Ministro de Cultura, desculpa-me, mas isto que o senhor disse é uma comparação “besta”. Em Cabo Verde as pessoas que não falam português é porque não quiseram ir para escola ou talvez não quiseram ir para a escola ou talvez porque os pais não importavam em por os seus filhos na escola, ou talvez porque fomos infelizes em, ser colonizados por Portugal e que não faço culpa ao povo português pois, muitos deles mal sabiam falar a língua deles. Mas enfim, paciência., Nós fomos uma colónia de Portugal há quase 500 anos. O senhor fala melhor português que o nosso presidente de Cabo Verde actual ( pelo menos em 75) e muitos que estudaram nas universidades de Portugal. Não venha com esta de usar a língua crioula como língua oficial porque não dá. Só serve para nos isolar mais no mundo. Nós malmente estamos a ser identificados por causa da Cesária Évora e o Sr. Já quer estragar tudo. Olha, procura fazer algo de bom para os estudantes de Cabo Verde como fez um dos ministros da cultura e educação (Sr. Araújo): uma reunião de jovens estudantes cabo-verdiano de todo Cabo Verde, primeiro. Minha sugestão! Desculpe-me para mim isto é uma besteira pura. A comparação que o sr. fez com os alunos do Estado Unidos, é absurda e não se compara. A minha filha com oito anos veio falava portugues porque nunca estudou em Cabo Verdee não falava Sotavento porque nunca teria frequentado casa de familiares ou pessoas de sotavento e foi colocado directamente com alunos americanos e aprendeu inglês sem problemas nenhum. Está com 19 anos está num colégio americano. O senhor vai ser perdoado deste mas por favor não faça mais comparações. (…) como diz o americano, Duh!!Ade? C ocre obrigam fala badiu, Sr. Ministro!!!!

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

99

Entendo sobre a importância do ensino bilingue, mas penso que realmente sp esteve longe dos seus potenciais nas cidades de Brockton e Boston. Serviu como um “laboratório ilegal” para o ALUPEC quando o mesmo Ministro de Educação, M. Veiga dizia que não estava à altura de ser usado como instrumento de ensino. Esses programas tem deixado muito a desejar no lado da cidadania, pois “kulturalmente ” vem sendo uma “training comp” para ideologias políticas. Pergunto: porque a discórdia entre os mais jovens na questão da bandeira di país? Resposta: as aulas da historia recente nestes programas são tendencialmente subjectivas. Os ‘proponentes” do ALUPEC pertencem à mesma linha política. 2. Quanto ao numero maior de acesso, não podemos “reduzir”a implementação do bilingue cabo-verdiano, como a única causa da formação de tantos quadros. Os tempos e as facilidades de acesso a educação superior mudaram ( Isto mesmo em Cabo Verde que continua com o português oficial) e será que não aumentaria o número de conterrâneos concluindo o Liceu se o português fosse utilizado nos programas cabo-verdiano nos Estados Unidos? 3 - geograficamente o Haiti é metade de uma ilha, e nos somos 9 ilhas. Neste caso, fazendo com que CV teria mais variedades e menos migrações. Qual é essa mania dos nossos nos Estados Unidos nos comparar com países das Caraíbas? Primeiro o Dr. Mendes com a música Jamaica e agora o Dr. Macedo com um dos países mais desorganizados do mundo, o Haiti. 4 – Tive o prazer de ouvir o Doutor Macedo na Assomada, e afirmo que a nível linguístico-técnico, não sei se estava a “portuguesar” o crioulo ou a criolar o português. 5 – Na verdade concordo que nos Estados Unidos existe o “criolo vs. Português” e culpo esses pedagogos proponentes do ALUPEC. O uso do lado emocional e as convicções políticas deles, os levam a convencer muita gente a pensar que o português é somente uma arma de neo-colonialismo. 6 – Acho que o nosso crioulo terá sempre esse lugar especial, independente da ilha de origem, mas tenham mesmo muito cuidado com o genocídio linguístico. O movimento nos Estados Unidos pode ser pessoalmente lucrativo para muitos. O mais importante é que devem ter cuidado em “premiar” sentimentos de regionalismo\bairismo, principalmente quando originalidade de cada variante e dêm tempo ao tempo. Com os movimentos migratórios no país e a tecnologia chegaremos a ter uma variante. Força nha terra. 11\12\06.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

100

ÌNDICE

Introdução__________________________________________________ 9

Objectivos__________________________________________________11

1. A situação linguística de Cabo Verde__________________________12

2.Contexto comunicacional e situacional do uso das duas línguas

2.1. Contexto de comunicação oral _____________________________16

2.1.1. Família _______________________________________________16

2.1.2. Escola ________________________________________________16

2.1.3.Convívio social e eventos culturais _______________________ 17

2.1.4. As actividades religiosas_________________________________17

2.1.5. Nos Serviços Administrativos ____________________________17

2.1.6.Comunicação social _____________________________________17

2.1.7.Publicidade ___________________________________________18

2.2. Contexto situacional de comunicação escrita__________________19

2.3. A língua utilizada em situações formais de comunicação________21

2.4. A atitude linguística dos estrangeiros em Cabo Verde _________23

3. Caracterização linguística da língua cabo-verdiana _____________26

4. A língua cabo-verdiana e o processo de Crioulização ____________29

4.1. Os Estudos Crioulos _____________________________________29

4.2.Os universais crioulos _____________________________________43

5. A construção das línguas nacionais – o caso de Cabo Verde ______48

6. Análise da situação linguística de Cabo Verde no quadro do modelo

representacional _______________________________________________63

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo posso explodir. ... Enquadrada na área dos estudos da sociolinguística

101

7. A política linguística vigente em Cabo Verde _____________________74

Conclusão____________________________________________________82 Referências __________________________________________________83 Anexo _______________________________________________________86 Índice ______________________________________________________100