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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE Juliana Dias Rovari Cordeiro O LUGAR DA COMIDA NA ESCOLA: interseções com alunos futuros professores sobre alimentação, cultura e sociedade Rio de Janeiro 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE

Juliana Dias Rovari Cordeiro

O LUGAR DA COMIDA NA ESCOLA: interseções com alunos futuros professores

sobre alimentação, cultura e sociedade

Rio de Janeiro

2013

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Juliana Dias Rovari Cordeiro

O LUGAR DA COMIDA NA ESCOLA: interseções com alunos futuros professores

sobre alimentação, cultura e sociedade

Dissertação de Mestrado apresentada

ao Programa de Pós-Graduação em

Educação em Ciências e Saúde, Núcleo

de Tecnologia Educacional para a

Saúde, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como requisito parcial à

obtenção do Título de mestre em

Educação em Ciências e Saúde.

Orientador: Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca,

Doutor em Sociologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO

2013

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C794l Cordeiro, Juliana Dias Rovari.

O lugar da comida na escola: interseções com alunos futuros professores sobre alimentação, cultura e sociedade / Juliana Dias Rovari Cordeiro. – Rio de Janeiro: NUTES, 2013.

123 f.; Il. color. 21 cm.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca.

Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) -- UFRJ, NUTES, Rio de Janeiro, 2013.

Bibliografia: f. 111-117. 1. Hábitos alimentares. 2. Alimentação. 3. Estudantes.

I. Título. II. Fonseca, Alexandre Brasil Carvalho da.

CDD 371.716

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Juliana Dias Rovari Cordeiro

O LUGAR DA COMIDA NA ESCOLA: interseções com alunos futuros

professores sobre alimentação, cultura e sociedade

Dissertação de Mestrado

apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação em

Ciências e Saúde, Núcleo de

Tecnologia Educacional para a

Saúde, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, como requisito

parcial à obtenção do Título de

Mestre em Educação em Ciências

e Saúde.

Aprovada em

_____________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca – UFRJ

______________________________________________

Prof. Dr. Paulo Cesar Rodrigues Carrano – UFF

______________________________________________

Profa. Dra. Vera Helena Ferraz de Siqueira – UFRJ

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AGRADECIMENTOS

- Quem fez esse bolo? Foi você?

- Não, fomos nós.

- Nós, quem?

- Antes de os ingredientes chegarem à minha cozinha, uma rede de pessoas

plantou, colheu, produziu, embalou, distribuiu e comercializou os produtos

necessários para que eu comprasse num supermercado e tivesse a

oportunidade de preparar esta receita. Por isso, não posso lhe responder que

fiz esse bolo sozinha. Eu participei do processo de feitura. Agora, está na mesa

para ser servido. Mas a rede continua a ser tecida por quem vai servir, provar,

digerir, compartilhar, recomendar, reproduzir e reinterpretar. É um ciclo vivo e

contínuo. A minha lista de agradecimentos traz alguns nomes que me

inspiraram, e criei vínculo durante a realização desta pesquisa saborosa e

prazerosa, com gosto de quero mais.

Agradeço a Deus pela inspiração e capacitação para realizar esta empreitada;

Aos meus pais Jorildo e Judite pela paixão que transmitem pela comida, pelo incentivo

e apoio incondicional, e à minha irmã Josélia;

Ao meu filho Daniel, que me trouxe asas para voar mais longe;

Ao meu marido Fernando, companheiro de todas as horas;

Ao meu orientador Alexandre Brasil que me conduziu pelo caminho tracejado da

pesquisa acadêmica, me permitindo ousar, inovar e experimentar (como numa cozinha

ou um laboratório) os ingredientes desta receita;

Às minhas queridas parceiras Carolina Amorim e Mariana Moraes por todo apoio,

colaboração e entusiasmo nessa busca fascinante sobre alimentação;

Aos meus sogros Amaurílio Cordeiro e Ilda Rovari e minha cunhada Janaína Rovari,

por todo suporte, principalmente em cuidar do meu tesouro Daniel;

Às companheiras de pesquisa Fernanda Dysarz, Juliana Casemiro, Elizabete Silva,

Fernanda Portronieri, Carolina Rangel, Daniela Frozi e Ana Gabriela, pelo rico

intercâmbio de conhecimentos e aprendizado;

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À coordenadora do Ensino Médio Normal (RJ) Dilene Rodrigues, por viabilizar a

pesquisa no Instituto de Educação Governador Roberto Silveira;

À direção da escola: Verônica Bazílio, Sandra Araújo e Sheila Maria; à professora

Marilene Dias; à turma CN 3002 pela criatividade, disposição e prazer com que

abraçaram este convite;

Às bolsistas Camila Ferracioli, Isabela Cravo e ao bolsista Guilherme Moreira do

Observatório da Educação/NUTES/UFRJ;

Aos convidados Margarida Nogueira, Ana Pedrosa, Enrique Rentería, Lucas Zappa e

Diogo Russo;

Ao Observatório da Educação do NUTES;

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Escrever é mais complexo e mais demandante que o de pensar sem escrever,

segundo Paulo Freire (1997). Por isso, Clarice Lispector (1998) disse que a

tarefa é dura como quebrar rochas. Freire esclarece: “O processo de escrever

que me traz à mesa, com minha caneta especial, com minhas folhas de papel

em branco e sem linhas, condição fundamental para que eu escreva, começa

antes mesmo que eu chegue à mesa, nos momentos em que atuo ou pratico

ou que sou pura reflexão em torno de objetos; continua, portanto, pondo no

papel da melhor maneira que me parece os resultados provisórios, sempre

provisórios, de minhas reflexões, continuo a refletir, ao escrever, aprofundando

um ponto ou outro que me passara despercebido quando antes refletia sobre o

objeto, no fundo, sobre a prática”.

Noel Rosa (Araruta/1932) me anima ao cantar que “água mole na pedra dura

tanto bate até que fura”. Recorro novamente a Freire para encarar esta

empreitada: “É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-

blamente, que estudamos, aprendemos, ensinamos e conhecemos com o

nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos,

com os medos, com as dúvidas, com a paixão e com a razão crítica. Jamais

com esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do

emocional”.

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RESUMO

CORDEIRO, Juliana Dias Rovari. O LUGAR DA COMIDA NA ESCOLA:

interseções com alunos futuros professores sobre alimentação, cultura e

sociedade. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) -

Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Comer tornou-se uma tarefa complexa e está no centro das tensões e conflitos

da cultura e da sociedade. A instituição escolar tem sido vista como o ambiente

adequado para as crianças aprenderem a se alimentar corretamente. Este

estudo analisa as compreensões de alunos futuros professores de uma Escola

Normal do Estado do Rio de Janeiro sobre o lugar que a comida ocupa no

contexto escolar, diante dos desafios contemporâneos; e elabora e

experimenta uma proposta metodológica com abordagem participativa,

centrada na cultura, na memória e nas artes.

Por ser o alimento um objeto multidimensional (Fischler, 1995), fato social total

(Mauss, 1973) e uma lente para compreender o mundo, acessamos saberes,

experiências e a memória para localizar a relação dos estudantes com a

alimentação. A partir deste ponto, o objetivo é refletir como os estudos de

alimentação podem colaborar para uma prática docente integrada com

conhecimentos escolares, científicos, populares e aqueles construídos com a

vivência social e familiar.

Palavras-chaves: Alimentação. Escola. Interdisciplinaridade. Cultura.

Sociedade.

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ABSTRACT

CORDEIRO, Juliana Dias Rovari. THE PLACE OF FOOD IN SCHOOL:

intersections with students and prospective teachers about food, culture

and society.. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) -

Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Eating has become a complex task and it is in the center of tensions and

conflicts in culture and society. The school has been considered as an

appropriate environment for children to learn to eat healthily. We analyze how

trainee teachers in a Rio de Janeiro school understand the symbolic place of

food in schools in view of todays’ challenges; and develops and experience a

methodology with participatory approach, focused on culture, memory and the

arts.

Taking food as multidimensional (Fischler, 1995), a total social fact (Mauss,

1973) and as a lens to understand the world, we accessed knowledge,

experience and memories to identify the place of the students’ relationship with

eating. From this perspective, the objective of this study is to reflect on how

Food Studies may contribute to teaching practice intertwined with scientific,

popular and school knowledge, and knowledge built within social and family life.

Keywords: Food. School. Interdisciplinarity. Culture. Society.

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LISTA DE SIGLAS

CAE – Conselho de Alimentação Escolar

CEERJ - Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro

CECANE - Centro de Colaboração em Alimentação e Nutrição do Escolar CEB – Câmara de Educação Básica

CFN - Conselho Federal de Nutrição

CFPEN - Curso de Formação de Professores do Ensino Normal

CNME - Campanha Nacional de Merenda Escolar

CNE - Conselho Nacional de Educação

CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar DCN - Diretrizes Curriculares Nacionais

DHAA – Direito Humano à Alimentação

EAN - Educação alimentar e nutricional

EJA - Educação para Jovens e Adultos

EN – Ensino Normal

FEBF - Faculdade de Educação da Baixada Fluminense

FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

IGRS - Instituto Governador Roberto Silveira

LOSAN - Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional

LDB - Lei de Diretrizes e Bases

LP – Laboratório Pedagógico ME – Ministério da Educação MS – Ministério da Saúde

MEC - Ministério da Educação e Cultura

NUTES – Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde

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PCN - Parâmetro Curricular Nacional

PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar

PNE – Plano Nacional de Educação

PPIP – Prática Pedagógica e Iniciação à Pesquisa

PPP - Projeto Político Pedagógico

PSE - Programa Saúde nas Escolas

SAE - Setor de Alimentação Escolar

SAN – Segurança Alimentar e Nutricional

SEEDUC – Secretaria do Estado de Educação

SNSAN - Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: Porque escrevo sobre alimentação? 11

INTRODUÇÃO 15

CAPÍTULO 1: Escola Normal: caminhos para a interdisciplinaridade

1.1 A criação da Escola Normal na Europa 23

1.2 A Escola Normal no Brasil 25

1.3 A legislação brasileira para a Escola Normal 27

1.4 O Ensino Médio Modalidade Normal no Estado do Rio de Janeiro 30

1.5 Celeiro de cultura 31

CAPÍTULO 2: Percurso metodológico

2.1 Em busca de um laboratório/cozinha 33

2.2 Pesquisa Ação Participativa: quatro gerações 37

2.3 A nova geração da Pesquisa Ação Participativa Crítica 39

2.4 Ciclo espiral autorreflexivo: principais características 41

2.5 A coletividade na Pesquisa Ação 43

2.6 Interseções de Alimentação e Arte 44

CAPÍTULO 3: O lugar da comida na escola

3.1 Comida: objeto central com dimensões múltiplas 49

3.2 Panorama do tema alimentação nas políticas públicas do Brasil 51

3.3 Atores da Alimentação Escolar: diálogos truncados 57

3.4 A centralidade da cultura 62

CAPÍTULO 4: Comida é memória 4.1 O chá de tília e a madeleine de Proust: comida é memória 66 4.2 A madeleine e o chá da turma 3002 72 4.3 Cozinha: espaço de mediação e comunicação de saberes 77 4.4 Juventude, cultura e escola: ruídos na comunicação 81 4.5 Cozinhar é uma atividade científica 85 4.6 Alimento para transformar 89

CAPÍTULO 5: Saberes plurais

5.1 Comer e conhecer 93

5.2 O professor e a pluralidade de saberes: desafio de ser interdisciplinar 95

5.3 Multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar: caminhos para

descompartimentar os saberes 101

5.4 Ousar a ensinar 103

A MESA ESTÁ POSTA (CONSIDERAÇÕES FINAIS) 108

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 111

ANEXO 118

APÊNDICE: Interseções de Alimentação e Arte

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Não quero faca, nem queijo. Quero a fome.

Adélia Prado, poeta.

Por que escrever sobre alimentação?

Escrevo sobre alimentação porque a considero uma lente para compreender o

mundo. Espiar a sociedade através deste olhar permite uma visão ampliada,

com projeções do passado, em que a passagem da natureza para cultura é

pedra fundamental na história da civilização; do presente, com os dilemas do

onívoro na pele do comensal contemporâneo; e do futuro, com as questões

que desafiam a saúde pública e a soberania alimentar das nações. Dá para

enxergar do micro ao macro; do simples ao complexo; do popular ao científico

e as interações entre esses polos de oposição.

A escritora norte-americana Mary Francis Kennedy Fisher, especializada em

literatura gastronômica, respondeu1 a pergunta que a perseguiu em sua

carreira: “Por que você escreve sobre alimentos, comida e bebida?”. O

questionamento, em tom de acusação, explicitava uma indignação dos críticos

pela escolha de sua temática literária. Sugeriam que ela poderia tratar de

temas mais relevantes como poder, segurança e amor. A resposta da

prestigiada autora é simples: “como a maioria dos outros seres humanos, tenho

fome”. De acordo com Fischer, alimento, amor e segurança, três necessidades

básicas, estão de tal maneira entrelaçadas e misturadas que se torna

impossível pensar nelas separadamente.

Quando escreve sobre comida, ela assevera, fala de fome, afeto, riqueza e a

realidade grandiosa da fome satisfeita como um só tema. “Todos precisam

comer. Em face desse fato ameaçador, podemos encontrar sustento, tolerância

e compaixão. Há uma comunhão em nossos corpos quando partimos o pão e

bebemos o vinho”, justifica. O escritor mineiro Rubem Alves aponta a relação

visceral entre escrita e alimento ao afirmar que “palavras e comidas são feitas

com a mesma substância. Elas nascem da mesma mãe: a fome”. A resposta

de M. F. K. Fischer revela a sua fome por conhecer a fundo o homem, a cultura

e sociedade, por meio dos significados do comer.

1 Foreword, em Food and Culture: a reader (Ed. Routledge), 2008.

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Sou faminta desde pequena. A alimentação desperta em mim o apetite pelo

conhecimento. O gosto pela cozinha era fermentado na mesa, lugar oficial do

convívio familiar e da celebração das tradições do Nordeste. Dobradinha,

sarapatel, pé de galinha enrolado com tripa, mocotó, buchada de bode, cuscuz,

angu, macaxeira, inhame e carne seca com jerimum. Meu pai, seu Pacheco,

fazia questão que as filhas soubessem apreciar sua cultura e culinária, mesmo

tendo nascido no Rio de Janeiro. Ele falava de cada prato com tanto prazer e

riqueza de detalhes que era impossível não se encantar. Cada vez mais

desejei conhecer as narrativas servidas na refeição.

Por meio da influência do Seu Pacheco, construí uma visão sobre a

alimentação que vai além de matar a fome, da satisfação em preparar, comer e

compartilhar. Tem a ver com a origem, a memória e um gosto do qual não se

quer desgarrar porque este mantém vivo a presença do lugar. Uma das

participantes desta pesquisa relatou que a mãe maranhense não abre mão de

preparar os pratos regionais de sua terra-natal para os filhos que nasceram na

cidade. “Querendo ou não, vamos conhecendo outros tipos de comida, de

cultura”, disse a jovem. Podemos pensar, observando as características

regionais, a relação entre cultura e comida com o antropólogo carioca Raul

Lody, dedicado aos estudos da alimentação brasileira. Ao apresentar a

perspectiva do sertanejo, para quem a comida é “coisa séria”, Lody destaca:

Ele valoriza muito a comida, essa dádiva de ter o feijão à mesa, nem que seja apenas cozido na água e sal. Por isso, cada ingrediente traz memórias; referências sobre a seca; sobre as chuvas; sobre o tempo das comidas de festa; das comidas de milho do São João. Pois cada comida tem um sentimento, e ganha um significado especial no desejo e no ato de comer. (LODY, 2012)

Não tive dúvidas de que a cozinha faria parte da minha vida, da profissão e da

forma como enxergo o mundo. Mas nunca quis ser cozinheira profissional ou

nutricionista, por exemplo. O manejo com forno e fogão era apenas o

diferencial de uma moça prendada. Escolhi o jornalismo, de coração, pelo

fascínio da comunicação em tornar acessível a informação, e as várias

maneiras de se comunicar. Durante a faculdade, percebi que poderia juntar as

duas paixões. Entretanto, não queria fazer críticas de restaurante ou escrever

sobre receitas. Desejava falar de comida no mesmo tom e seriedade que uma

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editoria de economia. Em 2003, quando me formei, os veículos de

comunicação no Brasil dedicavam pouco espaço para o noticiário

gastronômico.

Em 2006, junto com a jornalista Carolina Amorim, abri uma empresa de

comunicação especializada em gastronomia, a Malagueta Comunicação. Com

o site Malagueta News2, nossa proposta é exercitar um jornalismo

gastronômico em que a comida seja abordada como um fato social total

(MAUSS, 1973). O engajamento no campo alimentar apeteceu meu paladar por

informações que justificassem tal visão, e me permitisse exercer esse

posicionamento editorial. O assunto gastronomia serviria para tratar de temas

relevantes e centrais. As disciplinas de Antropologia, Sociologia e História

aplacaram minha fome inicial. Na poesia e literatura, encontrei expressões

artísticas para traduzir as teorias, aproximá-las do cotidiano, criar teias de

identificação e empatia com os autores das ciências sociais.

Ao propor que a alimentação é uma lente, busquei a nitidez em teóricos, poetas

e literários como Brillat-Savarin, Alexandre Dumas, Marcel Proust, Câmara

Cascudo, Gilberto Freyre, Mary Douglas, Massimo Montanari, Cora Coralina,

Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Gustave Flaubert, Eça de

Queiroz, Machado de Assis e Rubem Alves. Durante o período de realização

da pesquisa, me aproximei mais de Proust e Drummond, mas descobri outros

como Rubem Braga e Clarice Lispector e, na área da música, compositores

como Luiz Gonzaga. Estas são algumas fontes de inspiração e motivação, que

sustentaram o argumento de que a comida deveria ser tratada com maior

abrangência e profundidade.

Na busca por conteúdo, encontrei o movimento italiano Slow Food com a

proposta de promover a educação do gosto, o retorno aos sabores originais, a

aproximação com a terra e os agricultores; e a composição de uma teia

multiprofissional e multidisciplinar. Encontrei nas ideias de Michael Pollan,

jornalista norte-americano, escritor e ativista alimentar, um manifesto em

defesa da comida, questionamentos sobre alimentos ultra processados, a

relação conflitante com a ciência do nutricionismo e o consumo; o tipo de

2 www.malaguetanews.com.br

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comunicação dirigida a esses produtos; e a agricultura industrial versus a

orgânica. Escolher o que colocar no prato, hoje, implica em questões morais,

éticas e políticas. Esse é o paradoxo do (h) onívoro (FISCHLER, 1990).

A fome só aumentava. Na rotina de apuração de pautas e coberturas de

eventos, a alimentação nas escolas me chamou a atenção, pois identifiquei

neste ambiente a possibilidade de aprofundar o olhar complexo e múltiplo para

o alimento. Desejei ir a campo, experimentar na pele, olhar nos olhos, me

colocar no lugar das pessoas as quais tinha interesse em conhecer, os

professores, porque são mediadores do saber, fontes de inspiração, referência

e influenciadores. Com base nos ideais de cunho educacional3, defendidos

pelo Slow Food, ponderei que a escola é o lugar apropriado para discutir a

respeito de comida, cultura e sociedade. É a alternativa para recuperar o

itinerário da terra ao prato, encurtado pela oferta abundante de comida barata,

rápida e industrializada; e o declínio das refeições preparadas em casa.

Ao exercitar este modelo de jornalismo gastronômico, descobri que o repórter e

o pesquisador podem ser a mesma pessoa. Ambos buscam responder o lead:

o quê, quando, onde, como e quem. O jornalista se propõe a fazer uma

investigação para apurar os fatos, antes de comunicá-los; e o cientista produz

uma grande reportagem com a finalidade de transmitir os resultados de sua

pesquisa. Essa fome me levou ao mestrado em Educação e Ciências e Saúde,

do Nutes (Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde), da UFRJ

(Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde descobri um “furo”, como se diz

no jornalismo: um grupo multidisciplinar e multiprofissional chamado

Observatório da Educação, que realiza estudos sobre alimentação e escola.

Este era o lugar que procurava para saciar o apetite. Na pesquisa acadêmica,

descobri um banquete, mesa farta, onde pude iniciar uma jornada saborosa em

busca do lugar da comida na escola. O convívio com profissionais e

pesquisadores de diferentes áreas de saber e a participação no Observatório

foram experiências transformadoras, ricas de conhecimento, trocas culturais,

prazer, gosto e apuração dos sentidos.

3 Manifesto da Educação, 2010.www.slowfoodbrasil.com

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INTRODUÇÃO

“Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida”.

Michael Pollan, jornalista e escritor.

A alimentação ganhou relevância na cena contemporânea devido à fatores

como a “gastronomização” da comida; medicalização da refeição; crise no

sistema de produção e consumo de alimentos; ameaça da soberania e

segurança alimentar dos territórios; e os altos índices de obesidade e doenças

crônicas. Estas questões são amplamente divulgadas nos veículos de

comunicação e reinterpretadas pela arte. Literatura, cinema, música e artes

visuais manifestam essas tensões e conflitos. No cinema, por exemplo, a

produção de filmes de viés político e social sobre o modo de comer cresce

progressivamente. Assim como há uma expressiva literatura gastronômica,

existe o cinema culinário. O cotidiano se apresenta com uma estética e uma

poética para ser apreciada e refletida.

O sociólogo francês Claude Fischler4 comentou que nos últimos anos tem se

dedicado a pesquisas sobre alimentação no contexto escolar. De acordo com o

autor, a sociedade depende da escola para a educação alimentar das crianças.

Por isso, o tema está em alta nas pesquisas acadêmicas, em congressos

científicos e debates com lideranças políticas internacionais, como a primeira-

dama dos Estados Unidos Michelle Obama; e a chef norte-americana, Alice

Waters, idealizadora do projeto Edible Schoolyard5, que influenciou diretamente

o posicionamento engajado de Michele neste campo. Trata-se de uma nova

área de investigação e debates. Fischler aponta que, antes, não comer era um

problema; agora, se configura num desafio diário e ameaçador.

“Nos países ricos a pergunta não é: ‘iremos conseguir comer amanhã?’, e sim

‘o que nós vamos comer hoje? O que as crianças vão comer?’. Esse

questionamento não é mais óbvio. E a razão é porque o ato de se alimentar

tornou-se uma atividade cada vez mais individualizada”, explica. A maioria das

4 Comunicação oral durante o I Congresso Comer em la Escuela, realizado em Barcelona, na

Espanha, em maio de 2012 5 www.edibleschoolyard.org

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discussões não é sobre religião. As alergias alimentares dominam a pauta. “O

que se faz quando uma criança é ameaçada por partículas minúsculas de

comida? Parece um caso extremo, e, claro, muito importante para os filhos,

seus pais e a sociedade. Mas a questão que surge é o que acontecia antes?

As pessoas morriam e não se percebia?”, indaga. O sociólogo considera

fascinante, como assunto para investigação, o peso que se atribui ao indivíduo

na hora da refeição.

Comer passou de atividade coletiva para ação individual. Diariamente, temos

de fazer decisões sobre cada molécula que colocamos no nosso corpo, frente a

tantas opções e liberdade. Em contrapartida, a capacidade maior de fazer

escolhas é uma grande responsabilidade e gera ansiedades. Essa angústia

também está presente na escola, Fischler adverte. “Existe muita ansiedade nas

refeições servidas para os escolares. Mesmo sendo um peso para o indivíduo,

a instituição escolar é lugar das interações sociais. O que temos visto nas

pesquisas é que comer sozinho não é natural, é indicação de um problema.

Comer é social, as pessoas comem em grupos, com inclusões ou exclusões de

comensais”, justifica o autor, que tem estudado sobre as regras sociais na

escola.

“Em outras palavras, na França tem uma expressão que diz: ‘a árvore não

deve esconder a floresta’, então, o indivíduo não deve se sobrepor ao grupo. E,

quando falamos de comida, a pessoa não deve se sobrepor à sociedade. E

nós, com estas investigações, estamos olhando para a sociedade e as relações

entre o indivíduo e a sociedade”, conclui. Essas são algumas mudanças que

impactaram o modo de vida dos ocidentais, movidos pelo capitalismo, consumo

desenfreado e pela globalização. Se as estruturas das relações sociais,

econômicas e culturais foram abaladas, a escola, como instituição cultural

(GOMÈZ, 1999) e produtora de sentido (CARRANO, 2009), também sentiu os

efeitos. Mais do que ser afetada, como essas transformações são absorvidas,

refletidas e reinterpretadas para o cotidiano escolar e o conteúdo curricular? Se

no século XXI escolher o que colocar no prato gera uma crise planetária, qual o

papel dos estudos de alimentação?

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O chef vai à escola

1ª edição com a chef Roberta Sudbrack, no colégio estadual Compositor Luiz Carlos da Vila,

em Manguinhos (RJ).

No primeiro semestre de 2011, as reflexões sobre repórter e pesquisador;

acrescidas das discussões nas disciplinas de Metodologia de Pesquisa e

Educação em Ciências e Saúde I; temperadas com as dúvidas sobre o objeto a

ser pesquisado, me levaram para a rua, como se diz na redação. Decidi iniciar

minha pesquisa por uma reportagem. No dia 29 de junho participei do I Fórum

sobre Alimentação Escolar, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

(UFRRJ). O encontrou abordou a Lei da Alimentação Escolar (11.947), que

prevê a compra de, no mínimo, 30% de produtos da agricultura familiar e

oficializa as práticas educativas em Educação Alimentar e Nutricional.

Estiveram presentes os principais atores sociais envolvidos com o Programa

Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) do Estado do Rio de Janeiro.

Ao voltar para a redação, elaborei uma pauta para abordar os assuntos

discutidos. Optei por fazer uma matéria sobre a lista divulgada dos alimentos

que seriam comprados da produção rural de pequena escala. A ideia era

investigar como seria a compra, a logística da distribuição, a relevância no

cardápio, e se poderiam ser utilizados como elemento educativo entre campo e

escola. Propus um desafio a cinco dos principais chefs de cozinha da cidade

para criarem receitas com o intuito de valorizar esses gêneros alimentícios na

merenda. Para minha surpresa eles toparam com entusiasmo. São eles: a

gaúcha Roberta Sudbrack (RS), que está entre os cem melhores restaurantes

do mundo; o belga Frédéric de Maeyer (Eça), há 20 anos no Brasil; as cariocas

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Ludmilla Soeiro (Zuka), um dos destaques da gastronomia do Rio, Teresa

Corção (O Navegador), presidente do Instituto Maniva; e o francês Claude

Troisgros (Olympe), um dos mais prestigiados e premiados cozinheiros no país.

O orientador deste projeto, o sociólogo carioca Alexandre Brasil Fonseca,

acompanhou toda a movimentação desde a ida ao fórum, e incentivou o que

seria até então uma reportagem. Mas a pauta saltou do papel e foi para o

campo. Nossa equipe da redação cogitou a possibilidade de levar os chefs

para prepararem suas receitas com as merendeiras, com a finalidade de

aprofundar a matéria. Ao apresentar a proposta para a Coordenação de

Alimentação Escolar, da Secretaria do Estado de Educação do Rio de Janeiro

(SEEDUC), a aceitação foi imediata. Com a colaboração e apoio do orientador,

a Malagueta lançou o projeto “Chefs na Escola: recriando a merenda”. O

objetivo principal é promover o diálogo entre merendeiras, chefs de cozinha,

alunos e pesquisadores, em colégios da rede estadual de ensino do Rio de

Janeiro.

O projeto passou a fazer parte das atividades de extensão do Observatório da

Educação CAPES/INEP– núcleo NUTES/UFRJ. Com isso, os pesquisadores

do grupo atuaram em cinco edições, realizando os Grupos de Diálogos, onde

os alunos puderam discutir caminhos para a alimentação escolar. Visitamos

cinco escolas nos bairros de Manguinhos, Santa Cruz, Nova Iguaçu e Belford

Roxo. Os diálogos com os alunos foram gravados e também foi aplicado o

teste de aceitabilidade para avaliar o cardápio proposto pelos chefs. As cinco

receitas fizeram parte do cardápio da rede em 2012.

A rotina na cozinha vai além do preparo e da distribuição da refeição. Inclui

atenção, cuidado e conhecimentos variados – oriundos tanto de saberes

populares como científicos. “É fundamental que gestores e professores tenham

em mente esta compreensão e que promovam ações e oportunidades para tal

inserção em torno da multidimensionalidade da alimentação” (FONSECA,

2011). O projeto terá continuidade em 2013 com visitas a novas escolas no

Estado.

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Essa experiência foi fundamental para minha entrada no campo da educação

como observadora. O contato com alunos, diretores, coordenadores

pedagógicos, merendeiras e nutricionistas me deu um panorama preliminar de

como funciona o ambiente escolar, além de trazer inspirações valiosas para a

pesquisa. Na visita à escola Vicentina Goulart, no bairro Miguel Couto, em

Nova Iguaçu, reencontrei as normalistas, com aquele uniforme alinhado, blusa

social, saia plissada e cinto. Lembrei que no colégio onde estudei na Ilha do

Governador tinha o curso Normal. Por muitas vezes, ao ver aquelas moças

arrumadas desfilando pelo pátio com pose de professora, desejei transformar a

brincadeira de menina, dar aulas, em uma possível profissão.

Ali, me dei conta que eles são alunos e futuros professores, público

extremamente interessante para conhecer e pesquisar.

Um lugar para pensar sobre o comer

Com base nessas reflexões e vivências, o presente trabalho tem como objetivo

analisar as compreensões de alunos futuros professores sobre a relação entre

escola, cultura e sociedade, a partir do conceito de multidimensionalidade do

alimento. E também elaborar e experimentar uma proposta metodológica

centrada na cultura, na memória e nas artes para inserir o tema da alimentação

no cotidiano escolar.

O estudo foi realizado no Instituto de Educação Governador Roberto Silveira

(IEGRS), integrante da rede pública estadual do Rio de Janeiro, com uma

turma de terceiro ano do Ensino Médio Modalidade Normal. Durante o segundo

semestre de 2012, ficamos responsáveis a cada 15 dias por três horas da

disciplina Práticas Pedagógicas e Iniciação à Pesquisa (PPIP).

Na condição de alunos futuros professores, este público ofereceu duas

perspectivas igualmente relevantes e estimulantes. A primeira é que são alunos

da rede pública e, portanto, têm direito ao PNAE. Isto possibilitou observar os

significados embutidos nas opiniões sobre comer na escola e como o horário

da refeição pode se constituir num espaço de ensino-aprendizagem (BRASIL

2009).

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O segundo ponto de vista é a de futuros professores da Educação Infantil e das

quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, além de Educação para

Jovens e Adultos (EJA). Na reta final do último ano de formação, eles estavam

aptos a avaliar criticamente as possibilidades da prática docente, pois

passaram por estágios obrigatórios; as condições e oportunidades do mercado

de trabalho para o professor; e o exercício da profissão no dia a dia em sala de

aula, onde ele é responsável por transmitir todo o conteúdo do currículo,

assumindo papel de destaque na formação social e cultural dos escolares.

O primeiro capítulo começa com o histórico da Escola Normal (EN), o

surgimento dessa modalidade de ensino no Brasil, a legislação, e o contexto do

Estado do Rio de Janeiro, com as especificidades das diretrizes curriculares. A

trajetória do IEGRS, escola que abrigou a pesquisa, é retratada devido à

relevância no desenvolvimento da educação na região da Baixada Fluminense.

O intuito é conhecer a estrutura do EN, que passou por períodos de auge e

declínio, mas se mantém como um curso atualizado, com propostas arrojadas.

Esta formação tem atendido a crescente demanda de docentes nos municípios

do Estado, principalmente para a Educação Infantil.

No segundo capítulo, descrevemos o percurso metodológico com a Pesquisa

Ação Participativa. Traçamos o histórico deste método, as características, e

esclarecemos as técnicas utilizadas para a obtenção dos dados e

apresentamos a proposta de trabalho realizada numa disciplina voltada para a

pesquisa. Na terceira parte, discutimos a centralidade do alimento e suas

múltiplas dimensões com as contribuições de Fischler. Traçamos um itinerário

da alimentação na escola, e o panorama das políticas públicas nas áreas de

Saúde, Cultura e Educação, que possibilitaram uma aproximação com outras

dimensões da comida. A partir da Lei 11.942, buscamos entender como se dá

a participação e o engajamento dos atores sociais, principalmente os alunos,

no desenvolvimento do PNAE, sob uma perspectiva interdisciplinar e

interinstitucional. Debatemos sobre os ruídos na comunicação e os diálogos

truncados nesta rede. Ao tratar sobre alimentação e sociedade, buscamos

compreender a posição central que a cultura ocupa nesta esfera com o teórico

cultural Stuart Hall.

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Prosseguimos a reflexão no capítulo 4, onde analisamos as compreensões

sobre alimentação surgidas durante os encontros de Interseções de

Alimentação e Arte, onde memória e degustação foram os guias desta busca

do significado do comer. A cozinha se apresenta como um espaço de

comunicação e mediação de saberes ao aproximar pessoas em volta do

preparo e do compartilhar o alimento. Abordarmos ainda a relação do jovem,

sujeito de direito, cultura e consumo, com a instituição escolar.

Na quinta parte, estabelecemos uma relação entre comer e conhecer, a partir

da origem das palavras educar, saber e crítica. Com isso, introduzimos as

contribuições de Tardif, Lessard e Lahaye sobre a pluralidade do saber docente

e o valor da experiência; e de Freire, que associa memória, cotidiano, corpo e

curiosidade com o aprendizado. Articulamos essas ideias para refletir como a

experiência com a alimentação pode ser transportada para prática docente,

numa ótica interdisciplinar. Nesta etapa, discutimos os conceitos de

multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, e suas

relações campo da educação.

Finalizamos com considerações e proposições sobre espaços e conteúdos

interdisciplinares na formação docente do Ensino Médio Modalidade Normal, e

suas possibilidades para processos de construção de conhecimento que

caminhem numa direção plural, tendo o alimento como mediador de disciplinas,

das experiências e do convívio.

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CAPÍTULO 1: Escola Normal: caminhos para a interdisciplinaridade

A Escola Normal (EN) foi o modelo de ensino pioneiro destinado à formação de

professores para lecionar nos primeiros anos de aprendizado da criança, o

antigo Primário, hoje Educação Infantil (de 0 a 6 anos). Iniciamos o trabalho

com esta trajetória devido à importância histórica, social, econômica e cultural

para construção da sociedade brasileira. As normalistas, como ficaram

conhecidas as estudantes em sua maioria formada por mulheres,

protagonizaram na literatura, na música e no teatro questões polêmicas e

políticas. Elas foram tema do romance do escritor Adolfo Caminha, em 1893;

de músicas compostas por Nelson Gonçalves, Benedito Lacerda e David

Nasser; e de contos do dramaturgo Nelson Rodrigues.

Após quase 200 anos de sua constituição no Brasil, a EN se mantém como

uma importante via de acesso das classes mais baixas à profissionalização,

principalmente às mulheres; possui matriz curricular arrojada, em sintonia com

uma proposta interdisciplinar do ensino, em constante atualização; e oferece

perspectivas de ingresso no mercado de trabalho. Hoje, a base profissional que

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compõe a Educação Infantil é formada, principalmente, por egressos do curso

Normal.

Nesse sentido, a EN se apresenta como um promissor campo de investigação

à medida que privilegia a interdisciplinaridade e o desdobramento dessa prática

com crianças, público-alvo das preocupações contemporâneas com a

alimentação. Assim, abre-se caminho para construções de conhecimento em

que o alimento, com seu caráter multidimensional, seja integrado como elo

central para a compreensão de uma educação para a vida, contribuindo para

compor um conjunto de fatores que podem acrescentar sentido na

escolarização.

1.1 A criação da Escola Normal na Europa

A demanda pela profissionalização docente desencadeou o surgimento da EN

na Alemanha e na França, entre os séculos XVIII e XIX. A finalidade era

institucionalizar o ensino público e torná-lo laico. A criação deste modelo

educacional se deu numa disputa entre o Estado burguês e a Igreja Católica. A

educação assistencialista, oferecida aos pobres, e a aristocrática, para a

formação de dirigentes, geralmente era coordenada por uma ordem religiosa.

As raízes desta quebra de paradigma estão na Reforma e Contra Reforma

(MANACORDA, 1997, p.228).

O contexto que viabilizou a ruptura entre educação e religião tem como cenário

o Iluminismo do século XVII. As reflexões pedagógicas surgiram por meio de

pensadores como Rousseau, Pestalozzi e Condorcet. Neste período, a cultura

estava no centro da busca pela felicidade; e a educação era o vetor para

formar os cidadãos modernos. Com estes pressupostos, a educação religiosa e

privada passaram a ser combatidas, tendo em vista um plano de instrução

gratuita, pública e laica. A democratização do acesso à cultura para as classes

populares se contrapunha aos restritos interesses aristocráticos.

Três inciativas ocorridas na Alemanha e França, em períodos distintos, marcam

o início da EN. A primeira começou no início do século XVIII com os

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“Seminários de professores”. Idealizado pelo católico Jean Baptiste de La Salle,

o projeto passou por várias cidades francesas. Para ele, o ensino deveria

formar hábitos morais e intelectuais dos alunos (GINER, 1985, p.11). Os

diversos seminários de formação docente, surgidos após a iniciativa de La

Salle, se devem a uma influência alemã. Depois da Guerra dos Sete Anos

(1756 e 1763), Frederico II, rei da Prússia, na Alemanha, decidiu compor um

novo sistema educativo onde o ensino fosse obrigatório e houvesse "normas"

para a capacitação. Os encontros franceses passaram a ser chamados de

“Escolas Normais”. Daí, originou-se a primeira instituição com o nome de

Escola Normal, na França, em 1794.

A segunda e a terceira inciativas importantes neste processo ocorreram na

Alemanha, no início do século XIX. O movimento Pietista, ligado à Igreja

Luterana, originou a criação das Escolas Formadoras de Professores. Baseado

em princípios pedagógicos cristãos, criou um formato de ensino completo em

vários níveis. Já o movimento Pestalozziano defendia a preparação para a

docência no Primário. São deste tempo os Seminarium praeceptorum, origem

das Escolas Normais alemãs; e as Realschulen (escolas científico-técnicas).

Contudo, só após a Revolução Francesa (1789 – 1799), que se concretizou o

modelo de escola direcionada para formar docentes dedicadas ao ensino

Primário, com competência pública, sem a interferência da Igreja Católica

(GINER 1985, p.30).

Mesmo liberto do crivo da Igreja, a religião era um tema relevante para

admissão nessas escolas e nas disciplinas. O candidato passava por exame

oral a fim de avaliar seus conhecimentos, aptidões e a fé que professava. O

curso ainda previa a realização de práticas pedagógicas em escolas primárias

anexas à Escola Normal. A duração era de dois anos e poderia chegar a três.

O currículo incluía as seguintes matérias: Instrução moral e religiosa; Leitura;

Aritmética, Sistema de pesos e medidas; Gramática francesa; Elementos de

Geometria e suas aplicações usuais, especialmente desenho linear; Noções de

Ciências Físicas e de História Natural, aplicadas aos usos da vida; Elementos

de História e Geografia, em especial da França; Canto; Ginástica; Métodos de

ensino e Princípios da educação.

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No auge da difusão das Escolas Normais na França, a educação das mulheres

tinha pouca expressão, e sua preparação para o professorado, menos ainda.

Os homens ilustres aspiravam à moralização das pessoas a fim de regular a

vida social. A partir daí, a mulher de elite logo foi identificada como agente

disseminador de um comportamento moralizante (SCHAFFRATH, 2000, p.3).

Desde o convívio familiar, ao preparar os filhos para vida em sociedade, até

acompanhar o marido. As autoridades francesas na época faziam o seguinte

raciocínio: se a mulher é a primeira educadora de seus filhos (“Como Gertrudes

educava seus filhos”, Pestalozzi) e exerce influência sobre o marido, estava na

hora de fomentar a educação feminina para aprender e ensinar. Em 1842 é

aprovada uma lei para a criação de cinco Escolas Normais femininas na

França.

Analisando o processo de estruturação das Escolas Normais na Europa,

Heloisa Villela (1990, p.79) aponta que formar o professor público significava

capacitar o indivíduo para uma dupla missão: transmitir os bens culturais que

garantiriam a unidade das nações e, ao mesmo tempo, facilitar o controle do

Estado sobre seus cidadãos. Embora a Alemanha tenha sido pioneira na

formação de professores, conforme apontado anteriormente, foi certamente o

modelo francês que mais inspirou a criação de Escolas Normais em todo o

mundo.

1.2 A Escola Normal no Brasil

A primeira EN brasileira é criada em 1835, no município de Niterói, na então

Província do Rio de Janeiro, durante o Império. A experiência no Brasil começa

41 anos após o surgimento desta modalidade na França (1794) e sete anos

antes da lei de Escolas Normais femininas. Neste recorte cronológico, é

possível ressaltar algumas particularidades, como a ausência das mulheres e

negros, inclusive os já libertos. Somente aqueles que eram homens, livres e

possuíam propriedades tinham o beneficio de ser cidadão do Império, poderiam

matricular-se na escola.

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No período imperial, as Províncias receberam autonomia administrativa para

prover e organizar seus sistemas de ensino Primário e Secundário. No Estado

que se formava a função do professor era muito mais moralizante do que

propagador de conhecimentos. A raiz desta instituição está estreitamente

ligada a um projeto das elites para a formação do povo (VILLELA, 1990, p.260).

As condições morais eram mais importantes do que o preparo intelectual.

O currículo, pouco diferia das escolas primárias, acrescentadas apenas noções

de didática e leitura. A formação oferecida pela EN compreendia ler e escrever

pelo método Lancasteriano6; realizar as quatro operações matemáticas e

proporções; conhecimentos da língua nacional; elementos de Geografia e

princípios de moral cristã.

A matrícula de mulheres não estava prevista, inicialmente. Em quatro anos de

existência (1835-1839), o curso habilitou 14 professores, dos quais 11

exerceram a profissão e três a recusaram. A escassez de docentes inviabilizou

o funcionamento de 11 das 20 instituições de Primeiras Letras, na Província.

Até 1851, quando a escola foi desativada, não teve nenhuma mulher

matriculada na Escola Normal de Niterói. Somente mais tarde, no período de

reabertura, é que as aulas para preparar professoras aparecem no currículo. A

elas era dado o direito de aprender leitura, escrita e as quatro operações

matemáticas, sendo, portanto, interditado ensino de Geometria e Decimais e

Proporções, oferecido aos homens.

6 O Método Lancasteriano foi um método pedagógico formulado nos últimos anos do século

XVIII, pelo inglês Joseph Lancaster (1778-1838), amparado nas ideias pedagógicas do pastor anglicano Andrew Bell (1753-1832) e nas ideias panópticas do jurista e reformador de costumes Jéremy Bentham (1748-1892). No Brasil, foi o primeiro método pedagógico, para a instrução pública instituído, oficialmente, por D. Pedro I, por meio da Lei 15 de outubro de 1823, no período que gira em torno da descolonização e dos diferentes projetos que o recém-fundado Estado Nacional se propunha a desenvolver. Para Neves (2003) a apropriação do método lancasteriano pelas elites monárquicas estava associada ao projeto de consolidação do Estado Nacional, por meio da promoção da vigilância e da disciplinarização no corpo infantil, no interior das escolas, visando à formação disciplinar das classes subalternas.(NEVES E MEN, 2007)

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Ao estudar a profissionalização do magistério feminino, a educadora

catarinense Marlete Schaffrath, sinaliza que a presença da mulher foi

determinada por um conjunto de relações sociais e, dialeticamente,

determinante de uma série de relações postas para educação em nossa

sociedade. De um lado, a sociedade liberal passou a requisitar a mulher como

agente civilizador dos novos cidadãos; de outro lado, as relações de

discriminação com o sexo feminino continuavam permeando o trabalho da

mulher na docência. A profissão de professora foi comparada ao sacerdócio,

tamanha era a dedicação exigida e também esteve associado à vocação, pela

associação da função de primeira educadora dos filhos às atribuições de

alfabetizadora na escola.

Alguns pesquisadores indicam para utilização da ideia de sacerdócio como

fator explicativo dos baixos salários da profissão e poucos investimentos na

educação pública. A fim de desvelar a ideia de vocação, alguns estudos

admitem que foi utilizado como mecanismo de legitimação do preconceito

contra o sexo feminino. Trabalhar como professora e se sujeitar a uma baixa

remuneração fazia parte do perfil vocacional das mulheres (SCHAFFRATH,

2000, p. 15)

Ainda hoje, a presença feminina nos cursos de formação, como o Normal, e na

atuação do magistério é amplamente maior que a dos homens. De acordo com

o Censo do Professor7, o Estado do Rio de Janeiro possuí mais de 108 mil

professoras para 24 mil homens na Educação Básica (Educação Infantil,

Ensino Fundamental e Ensino Médio).

1.3 A legislação brasileira para a Escola Normal

A Constituição de 1946 propunha um equilíbrio na organização do sistema

educacional, descentralizando-o administrativa e pedagogicamente, sem que a

União deixasse de assumir o seu papel quanto às linhas gerais pelas quais

deveria reger-se a educação nacional. As ENs, então, equipararam o ciclo

7 Fonte: Ministério da Educação/ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais

Anísio Teixeira (INEP) e Diretoria de Estatísticas Educacionais (DEED)

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inicial de quatro anos ao primeiro ciclo ginasial, de controle federal, mantendo

como “vocacional” apenas o segundo ciclo (atual Ensino Médio), que seria

considerado similar aos cursos técnicos das escolas federais. Na década de

1950, uma das “leis de equivalência”, a de nº 1821, de março de 1953,

determinava a possibilidade de inscrição nos exames vestibulares ao ensino

Superior os concluintes do segundo ciclo dos cursos industriais, agrícolas e

normais. Porém, restringia o acesso dos normalistas aos cursos de Pedagogia

e Letras (CUNHA, 1983), através do decreto Nº. 34.330, de outubro do mesmo

ano.

Por outro lado, essas instituições de EN não eram controladas pelo governo

federal, o que lhes conferia liberdade de constituição e organização regional.

Este modelo de gestão acabou por facilitar a proliferação de estabelecimentos,

cujo objetivo era menos de preparar professores e mais de oferecer uma

modalidade de ensino secundário, equivalente aos cursos federais. Isto devido

à demanda cada vez maior da classe média por um ensino que proporcionasse

acesso ao curso Superior (LOPES, 2006, p.7).

Na opinião do educador Anísio Teixeira (1994), este foi o primeiro passo para

descaracterizar o Normal como um curso de habilitação ao magistério Primário.

(...) perdia-se a antiga unidade de propósito e a perfeita caracterização de escola vocacional (...) era natural que [os cursos normais] se deixassem dominar pelo caráter de educação preparatória e não pelo de formação vocacional do mestre, pois os alunos já agora desejavam também a nova oportunidade que a mudança lhes abria, além da habilitação para o magistério.

(TEIXEIRA, 1994, p. 124)

Como bem observou Teixeira, descaracterizava-se o curso de formação de

professores, adotando-se um currículo acadêmico para as EN. Numa grosseira

corrupção do conceito de acadêmico, significava ensino verbalístico, com

simples memorização de textos. Nem formação geral adequada, nem formação

profissional digna, proclamava o educador (1994, p.126). A primeira Lei de

Diretrizes e Bases (LDB) foi criada em 1961, seguida por uma versão em 1971.

No capítulo V, que trata sobre a “Formação de professores e especialistas”,

ficou estabelecida a formação mínima para o ensino do magistério. A alínea A

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dispõe que no ensino de 1º grau, da 1ª a 4ª série (primeira metade do Ensino

Fundamental), a habilitação específica é de 2º grau (Ensino Médio Modalidade

Normal), artigo 30.

A última LDB foi sancionada em 20 de dezembro de 1996 pelo presidente

Fernando Henrique Cardoso e pelo ministro da Educação Paulo Renato (Lei

9334). Baseada no princípio do direito universal à educação para todos, a LDB

trouxe diversas mudanças em relação às leis anteriores, dentre as quais a

inclusão da Educação Infantil (creches e pré-escolas) como primeira etapa da

Educação Básica, composta pelo Ensino Fundamental e Ensino Médio. Uma

importante mudança foi a respeito da formação para atuar na Educação Infantil

e primeira metade do Fundamental. O artigo 62 indicou a necessidade do curso

Superior em Pedagogia. Mas manteve o Normal na qualidade de formação

mínima para atuar até as quatro primeiras séries iniciais.

Com essa mudança, houve uma baixa nas matrículas das ENs, pois era mais

atrativo ingressar no curso de Pedagogia, que permitia acesso a outras

atividades dentro da área de educação. O centenário Instituto de Educação do

Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca, passou a oferecer a habilitação superior,

extinguindo o Normal. A informação de que o Nível Médio garantia a habilitação

mínima para o magistério foi suplantada pelo acesso à universidade. Outra

novidade instituída com a LDB de 1996 foi a criação do Plano Nacional de

Educação (PNE), artigo 87.

Em 1999, o Conselho Nacional de Educação (CNE) instituiu as Diretrizes

Curriculares Nacionais (DCN) para a Formação de Docentes da Educação

Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, em Nível Médio, na

modalidade Normal8. O texto enfatiza na formação de alunos futuros

professores aspectos, tais como, a inserção no mundo social, abordagem

condizente com suas identidades e a diversidade cultural no processo de

aprendizagem.

8 Resolução CEB Nº 2, de 19 de abril de 1999.

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1.4 O Ensino Médio Modalidade Normal no Estado do Rio de Janeiro

O Rio de Janeiro manteve a oferta de cursos de nível médio para a formação

de professores num contexto em que a ênfase está na formação de nível

Superior. A iniciativa se deve ao Parecer do Conselho Nacional de Educação

(CNE) e da Câmara de Educação Básica (CEB) de janeiro de 2003: "(...) é

admitida a formação mínima para o exercício do magistério na Educação

Infantil e nas quatro primeiras séries do ensino Fundamental, oferecida em

nível médio, na modalidade Normal (...)". A rede estadual fluminense possui 96

Escolas Normais, nas 14 Regionais, com mais de 30 mil alunos matriculados,

segundo dados do primeiro semestre de 2012, avaliados pela Coordenação de

Ensino Médio Modalidade Normal, da SEEDUC.

Em 2010, a Deliberação do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro

(CEERJ) Nº 316, artigo 21, diz que “para o docente de Educação Básica exige-

se, como formação mínima, diploma registrado no órgão competente,

habilitando-o a lecionar: I. para docência na Educação Infantil e/ou nos anos

iniciais do Ensino Fundamental, em nível de Ensino Médio, na modalidade

Normal”.

O Currículo do curso Normal é composto pela reorientação curricular (CEB Nº

2) e pelo currículo mínimo da Base Nacional Comum. A carga horária total é de

5.200 horas, distribuídos em três anos letivos, que começou a vigorar em 2012.

Não há exames de seleção. Em março de 2010, a SEEDUC estabeleceu a

Portaria Nº 91 com normas e orientações quanto à implantação da matriz

curricular do curso. O parágrafo quinto determina que as unidades escolares

devem fazer constar em seus Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) o

planejamento do componente curricular “Prática Pedagógica/Iniciação à

Pesquisa (PPIP)/Laboratórios Pedagógicos (LP)”, utilizando tecnologias

aplicadas à educação. Os Laboratórios Pedagógicos (LPs) são direcionados “a

favorecer o processo formativo do futuro professor, permitindo maior reflexão

sobre a sua prática e também vivências de projetos interdisciplinares”.

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Em 06 de dezembro de 2012, a SEEDUC publicou nova resolução (4843), que

fixa as diretrizes para a implantação das matrizes curriculares para a Educação

Básica nas unidades escolares da rede pública. A matriz do Ensino Médio

Normal é formado pela Base Nacional Comum, Parte Diversificada, Formação

Profissional e Prática Pedagógica (Capítulo IV, artigo 22).

A Parte Diversificada é componente obrigatório e deverá ser articulada à Base

Nacional Comum, com a finalidade de tornar o currículo como um todo

significativo e integrado (Capítulo I, artigo 2º). Nesta publicação oficial,

também ajusta-se o texto dos LPs, conforme o artigo 23 do Capítulo IV:

Os laboratórios pedagógicos serão espaços de pesquisa, construção e utilização de recursos metodológicos que ajudarão os alunos em suas atividades práticas nos estágios curriculares obrigatórios, permitindo também nestes ambientes a vivência de projetos interdisciplinares. Os Laboratórios Pedagógicos serão direcionados a favorecer o processo formativo do futuro professor, onde a construção de atividades práticas deverá permear o saber pedagógico.

A pesquisa passa a ser o enfoque para o exercício da prática. Dentro do curso

Normal, esta disciplina se configura num espaço-tempo, onde os estudos de

alimentação podem colaborar para pensar o exercício da docência. Com isso,

pode desencadear processos educativos transdisciplinares, minimizando as

fronteiras entre saberes e as relações pessoais.

1.5 Celeiro de cultura

A pesquisa de campo para esta dissertação foi realizada no Instituto

Governador Roberto Silveira (IGRS), que completou 50 anos em 2012. O

Decreto Estadual Nº 8.272, de 12 de junho de 1962, cria o Instituto de

Educação, no município de Duque de Caxias. Inicialmente, funcionou dentro da

Escola Abraham Lincoln. Dois anos depois, em 1964, ganhou prédio próprio,

onde funciona atualmente, na Rua General Mitre, 587, no bairro 25 de Agosto,

área central do município.

Sob a direção do professor Álvaro Lopes, que já havia coordenado o primeiro

Curso Ginasial em Caxias, a primeira turma de normalistas iniciou em 1965 e

se formou em 1967, com o nome de Monteiro Lobato. Antes desse período, a

escola oferecia do Jardim de Infância ao Ginásio (hoje, Educação Infantil e as

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quatro primeiras séries do Fundamental). Lopes teve a iniciativa de solicitar ao

Conselho Estadual de Educação a criação do Curso de Formação de

Professores do Ensino Normal (CFPEN) na região. Em de 15 de dezembro de

1965 o curso foi regulamentado por meio do parecer Nº 198. Trata-se de um

dos mais importantes estabelecimentos de ensino público da Baixada

Fluminense. Na década de 60 foi sede da Faculdade de Educação da Baixada

Fluminense (FEBF), que usou parte das instalações do IGRS até 12 de

setembro de 1998. Hoje, a faculdade ganhou autonomia como Unidade

Universitária da UERJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O município tem cinco Escolas Normais, tendo o IGRS como base. São cerca

de 900 estudantes por ano e está entre as 20 melhores escolas da região,

concorrendo com 16 particulares e outras três estaduais. A direção atual é

formada por Verônica Bazílio, como diretora geral; Sheila Maria, Sandra Araújo

e Márcio Augusto como diretores adjuntos. No ano comemorativo foi lançado

um selo com o slogan “grande celeiro de cultura”, que agora faz parte do

uniforme oficial.

O instituto é amplo, ocupa um quarteirão de esquina. Tem quadra,

estacionamento, refeitório espaçoso com cozinha equipada, salas de vídeo,

biblioteca e auditório. Oferece boa infraestrutura e as salas de aula estão em

boas condições. A escola tem longos corredores e murais bem decorados

espalhados pelas paredes. Nos canteiros das árvores, os alunos plantaram

uma pequena horta em garrafas pet, com a orientação de um professor. Há

rigor com os horários de entrada e a aparência dos estudantes. Os alunos

parecem atentos a essas normas.

Em 2012, o IGRS foi escolhido pela SEEDUC para iniciar o modelo integral do

curso Normal, com três anos de duração. A turma CN 3002, participante desta

pesquisa, foi a primeira a experimentar a mudança na carga horária. Em 2013,

todas as unidades oferecerão a formação em três anos.

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CAPÍTULO 2: Percurso metodológico

“A mente é uma grande cozinha. Pensar é cozinhar: transformar as

ideias cruas pelo poder do fogo.”

Rubem Alves, escritor.

2.1 Em busca de um laboratório/cozinha

A escolha de metodologia com abordagem participativa surgiu da demanda em

acessar informações que não apareceriam numa entrevista, ou num

questionário. Para pesquisar sobre comida, senti a necessidade de realizar

experimentações, próprio do processo culinário, que implica em selecionar,

preparar com diferentes técnicas e saberes e no prazer em compartilhar o

alimento. Os significados do comer, os quais estava interessada em descobrir

nos alunos futuros professores, só emergiriam com a construção do convívio e

da sociabilidade, também característica da refeição. Interessava- nos também

propor uma investigação que permitisse intervenções na condução da coleta de

dados.

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A hipótese inicial era de que com a arte e a cultura, associadas à alimentação,

poderíamos testar se essas dimensões chegariam à memória do comensal

para, a partir daí, aflorar suas reflexões e compreensões, matéria-prima deste

estudo. Como no banquete da cozinheira Babette9, precisava de uma

articulação dinâmica, com seleção cuidadosa do conteúdo, das referências do

que seria servido à degustação da mente e do corpo. Tudo deveria produzir

sentido a fim de olhar o cotidiano com outros olhos.

Precisaríamos de um laboratório, espécie de cozinha experimental para testes

e degustações. Um ambiente propício onde ciência, técnica, método,

criatividade, improviso, saberes, disciplinas e vivência pudessem congregar. O

caminho metodológico fundamentado na pesquisa participativa, e fazendo uso

de noções da Pesquisa Ação Participativa, combinou os seguintes

ingredientes: dados quantitativos, participação, debate, diálogo, entrevistas

livres, oficinas criativas, escrita reflexiva e observação. Como resultado dessas

experiências, a proposta foi refletir sobre a prática docente sob a perspectiva

do impacto da alimentação na sociedade contemporânea. E elaborar um

“receituário” com sugestões práticas, tendo a finalidade de envolver o futuro

professor e seu trabalho.

Esta pesquisa teve também natureza participante, na medida em que exerci o

papel de mediadora ao longo de todo o processo; estive ciente que os dados

obtidos foram em grande medida construídos pelas atividades propostas e

reavaliadas em campo.

A Pesquisa Ação Participativa oferece um espaço de transformação constante.

Três atributos são utilizados para distinguir esta modalidade da convencional:

compartilhar a “posse” do projeto de pesquisa; analisar problemas sociais da

comunidade-base; e ação orientada para a comunidade. Na relação entre

teoria e prática, há uma intenção de encantar, engajar e mudar (KEMMIS &

MCTAGGART, 2005, p. 560). Tal qual essa relação, a cozinha também

encanta e engaja, e é um lugar de transformações.

9 Filme A Festa de Babette (1997)

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O estudo foi realizado num ambiente favorável aos processos de investigação

em educação. Os Laboratórios Pedagógicos são temáticos e oferecidos

durante os três anos do curso. No primeiro ano a ênfase é Brinquedoteca e/ou

Culturas; no segundo, Arte Educação e Práticas Psicomotoras; no terceiro,

Linguagens e Alfabetização, Atendimento Educacional, Vida e Natureza e um

opcional, dentre os relacionados no primeiro e segundo ano. A PPIP propõe

que o olhar do futuro professor seja direcionado para além das observações do

espaço escolar, aprendendo com a prática, a interpretar os fatos que

acontecem no cotidiano. Nesse sentido, caminhamos em sintonia com a

orientação da matriz curricular do EN. Durante o processo, os participantes

foram estimulados a assumir o papel de pesquisadores na investigação do

lugar da comida na escola.

Cabe destacar, entretanto, a consideração das autoras Leny Azevedo e Maria

Cristina Peixoto, ao realizarem um estudo sobre as trajetórias em formação de

jovens no Ensino Médio Normal no Rio de Janeiro. As pesquisadoras

verificaram a falta de estrutura para a implementação desses laboratórios,

assim como a inexistência de profissionais com formação para o

desenvolvimento das propostas (2011, p. 298). Elas alertam para a falta de

sintonia entre o que é proposto nos textos legais, nos cursos, e a necessidade

de uma prática qualificada, que desencadeie a melhoria da Educação Básica

no país (2011, p.301).

Para a realização da pesquisa foi enviado um ofício para a SEEDUC,

endereçado à coordenação do Ensino Médio Modalidade Normal. O interesse

era participar da disciplina de PPIP, no LP do terceiro ano de formação. A

coordenadora nos ofereceu a possibilidade de escolher o bairro mais próximo,

acessível às visitas. Escolhemos o município de Duque de Caxias por esta

razão. Fomos encaminhados, então, para o IGRS, e a direção nos alocou no

Laboratório de Vida e Natureza, com a supervisão da professora Marilene Dias.

Combinamos realizar visitas quinzenais às quartas-feiras, com duração de três

horas, de julho a dezembro de 2012. Haveria a possibilidade de realizar

encontros as terças pela manhã. Quanto ao horário, poderia ser ajustado

previamente com a professora responsável. A turma CN 3002 era formada por

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26 alunas e 1 aluno, com idades entre 16 e 21 anos. A maioria mora com pai,

mãe e irmãos. Apenas uma é casada e trabalha formalmente. Nos últimos três

anos, a turma esteve dedicada aos estudos devido à carga horária integral, que

não permitia conciliar outras atividades. A reclamação sobre o acúmulo de

atribuições escolares era constante. Temos de considerar também que

estavam no último semestre, reta final da jornada. Lutavam contra o sono e o

cansaço, mas a presença nas aulas era em torno de 90% a 100%.

Era visível o empenho dos estudantes em cumprir as obrigações com as

disciplinas, se organizavam para a preparação dos trabalhos e se lembravam

mutuamente dos compromissos. Volta e meia se reuniam para combinar os

detalhes da formatura. Demostraram comprometimento e dedicação ao curso

Normal, durante o período que convivi com eles. Nas aulas, a criatividade e a

curiosidade se destacaram na performance dos participantes. Percebi também

a postura de futuros professores, no respeito a quem estava falando e na

reflexão sobre os desafios da prática docente. Cerca de 88%, segundo dados

do questionário, passaram por estágios de Educação Infantil, EJA, Educação

Especial, e 12% pelas primeiras séries do Fundamental em escolas públicas de

Duque de Caxias.

No mês de junho de 2012 realizamos três visitas prévias paras as

apresentações oficiais e direcionamentos. Em 11 de julho de 2012 entramos

em campo. É importante ressaltar que o objetivo metodológico não foi cumprir

à risca as recomendações da Pesquisa Ação Participativa por conta da

limitação do tempo de que dispúnhamos. Da mesma maneira, não há como

demonstrar e mensurar todos os resultados obtidos, pois o processo de

reflexão é contínuo, como sugere Paulo Freire. Ainda assim, essa amostra que

iremos compartilhar, nos permitiu refletir o quanto este espaço de

interdisciplinaridade no EN carece de aportes pedagógicos, metodológicos e

profissionais para que a proposta arrojada da disciplina de PPIP seja uma

realidade acessível aos normalistas. Seguir a trilha desta metodologia, aliada a

uma disciplina curricular, possibilitou uma rica oportunidade de encontros com

saberes profissionais, cotidianos e escolares, apontando caminhos para

aperfeiçoamento e desenvolvimento do docente da Educação Infantil. E,

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principalmente, nos instigou a prosseguir mais fundo no campo da

interdisciplinaridade, ampliando a visão e os conceitos para um modelo de

pesquisa inclusiva, democrática e participativa, na busca pela compreensão

coletiva.

2.2 Pesquisa Ação Participativa: quatro gerações

Os autores Kemmis e McTaggart, que há mais de três décadas estudam a

Pesquisa Ação Participativa, traçam um histórico, dividindo em quatro

gerações, presentes em diversos campos da prática social. A primeira geração

da Pesquisa Ação teve início com os estudos do psicólogo social Kurt Lewin,

nos Estados Unidos, em 1946 (Action research and minority problems). Suas

pesquisas iniciais tinham por finalidade a mudança de hábitos alimentares da

população norte-americana, e também a de atitudes frente aos grupos éticos

minoritários. Pautavam-se, ainda, em valores como democracia, respeito às

culturas e tolerância. (The Problem of Changing Food Habits Report of the

Committee on Food Habits/1941-1943; A group test for determining the

anchorage points of food habits/1942). (FRANCO, 2005, p.485)

O trabalho e a reputação de Lewin deu impulso à Pesquisa Ação em diferentes

disciplinas. O professor Stephen Corey iniciou esta metodologia no campo da

educação, também nos Estados Unidos, no ano de 1949. No entanto, a

reinterpretação e justificativa com ênfase no ideal positivista nos EUA resultou

num declínio temporário desta prática metodológica (KEMMIS, 1981).

A Segunda Geração é marcada pelos pesquisadores britânicos do Instituto

Tavistock (RAPAPORT, 1970). Eles começaram no campo do desenvolvimento

organizacional. Os primeiros trabalhos foram no Ford Teaching Projetc,

conduzido por John Elliot e Clem Adelman (1973). Os australianos se

identificaram com o caráter prático da pesquisa na iniciativa britânica. Com

isso, encaminharam a Pesquisa Ação numa direção mais crítica e

emancipatória (CAR E KEMMIS, 1986). O impulso crítico aconteceu

paralelamente com defesas semelhantes na Europa (BROCK-UTNE, 1980).

Essa defesa e esforço foi chamada de Terceira Geração.

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Na Quarta Geração acontece o encontro entre a Pesquisa Ação Crítica

Emancipatória e a Pesquisa Ação Participativa, desenvolvida no contexto dos

movimentos sociais. Os protagonistas desta geração são Paulo Freire, Orlando

Fals Borda, Rajesh Tandon, Anisur Rahman e Marja-Liisa Swantz, além de

pesquisadores norte-americanos e britânicos, atuantes em educação de

adultos, alfabetização e comunidades em desenvolvimento. Neste estágio,

destacam-se duas características: argumentos teóricos mais políticos e

necessidade de pesquisadores da Pesquisa Ação Participativa para fazer

conexão com os grandes movimentos sociais.

A Pesquisa Ação Crítica é uma análise completa, com reflexão coletiva e

estudo da prática. É representada pela literatura de Pesquisa Ação

educacional. Deste contexto emerge uma insatisfação com esta investigação

em sala de aula, que não olha a totalidade na relação entre educação e

mudança social. Este método envolve técnicas de interpretação qualitativa de

investigação e base de dados de professores. Com a visão dos docentes são

feitos julgamentos sobre como aprimorar a prática. Primeiramente, dá aos

professores a própria compreensão e julgamento. Este modelo enfatiza a

prática e traz uma tradição teórica baseada na educação progressiva. Os

autores a consideram idealista e utópica, pois os pesquisadores são vistos

como advogados da cultura do professor. Desta forma, corrobora para diminuir

a relevância da pesquisa. Passa de uma teoria crítica passa para um discurso

teórico.

Outros modelos surgiram na busca para aperfeiçoar a relação entre teoria e

prática. Entre eles, citamos Ação Aprendizado (Action Learning) e Ação para

Ciência (Action Science). O primeiro tem origem no trabalho do advogado Reg

Revans. Ele percebeu que a tradicional abordagem de investigação na área de

gestão era inútil para resolver problemas das empresas. A ideia fundamental

era trazer pessoas para aprender com a experiência do outro. Esse modelo

enfoca o estudo da situação de cada participante, esclarece as metas que

empresa precisa alcançar e trabalha para remover os obstáculos. Aspira

construir uma companhia eficaz e eficiente, conduzindo-a ao engajamento no

processo (CLARCK, 1972; PEDLER, 1991; REVANS, 1980, 1982 apud

KEMMIS E MCTAGGART 2005).

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O segundo é o estudo da prática no ambiente organizacional, com a finalidade

de promover um novo entendimento e aprimoramento da prática. Analisa a

lacuna entre o teórico e o prático. A abordagem almeja o desenvolvimento de

profissionais liberais, em especial os médicos, com capacidade de reflexão a

respeito de seu ofício (ARGYRIS, 1990; ARGYRIS & SCHÖN, 1985; REASON,

1988; SCHÖN, 1983, 1987, 1991 apud KEMMIS E MCTAGGART 2005).

2.3 A nova geração da Pesquisa Ação Participativa Crítica

Até 1990, o campo da pesquisa ação era eclético, e interessou diferentes áreas

de conhecimento, a partir da legitimação dos estudos de Lewin. A utilização de

literaturas variadas sob chancelas disciplinares significava que havia pouco

diálogo entre os grupos de profissionais liberais e advogados. A visibilidade da

Pesquisa Ação e a popularidade nas abordagens provocou mudança neste

cenário. Isto se deveu à larga utilização em estudos, a frequência da Pesquisa

Ação Participativa em congressos internacionais; e do interesse pelo assunto

em conferências mundiais de sociólogos.

A Pesquisa Ação Participativa reemerge com a abordagem influente dos

Estados Unidos, berço da Pesquisa Ação (GREENWOOD & LEVIN, 2000,

2001). A nova associação entre pesquisadores e uma vasta literatura a respeito

da crítica da modernidade; a insinuação do capitalismo, neocapitalismo e pós

capitalismo; e o impacto dos sistemas sociais e políticos no cotidiano deram

impulso para a possibilidade de ampliar o diálogo. A distribuição histórica e

geográfica da Pesquisa Ação ao redor do mundo e suas interrelações foram

melhor compreendidas.

A Pesquisa Ação Participativa Crítica nasce de parte deste panorama. Clama

por prover um quadro de referência para compreensão e crítica de seu próprio

método e de seus predecessores. Oferece uma maneira de trabalhar que

aborda o individualismo desenfreado, desencantamento e domínio da razão

instrumental – principais características do mal-estar da modernidade

(TAYLOR, 1991).

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Este conjunto de abordagens está em sintonia com os questionamentos atuais

sobre a forma de produzir, distribuir e consumir alimentos, bem como os

impactos na saúde do homem, da terra e do planeta. Permite colocar o comer

no centro dessas questões contemporâneas e irradiar para a sala de aula,

lugar onde se pode construir visão crítica, autônoma e engajada. As discussões

sobre a complexidade da alimentação surgem da necessidade de mudança de

comportamento em prol da sobrevivência e soberania alimentar das nações; do

colapso entre a agricultura industrial e a natural; do consumismo desmedido;

da economia globalizante; da persistência da fome; e do paradoxo da

abundância, com a obesidade; e os dilemas do comedor.

A Pesquisa Ação Participativa Crítica abre caminho para reinterpretar pontos

de vista de Pesquisa Ação desenvolvidos teoricamente, pedagogicamente e na

prática (e.g, CARR & KEMMIS, 1986; KEMMIS & MC TAGGART, 1991 a).

Kemmis e McTaggart apresentam as principais características que definem a

nova geração da Pesquisa Ação Participativa Crítica. O processo é descrito

como uma sequência de passos mecânicos. Geralmente, envolve um ciclo

espiral autorreflexivo: planejar a mudança; agir e observar o processo e as

consequências da mudança, refletir sobre o processo e consequências;

replanejar; agir e observar novamente; refletir novamente e recomeçar. Eles

concluem que esquemas como esses estão obsoletos à luz da experiência do

aprendizado, apesar de parecer aberto, mais fluído, e responsivo.

O fator de sucesso deste ciclo não é o tempo dedicado em cada passo,

seguido à risca, mas um forte e autêntico senso de desenvolvimento e

evolução de suas práticas, suas compreensões sobre a prática e a situação em

que se encontram essas práticas. Cada passo da espiral é melhor

compreendido com a colaboração dos participantes da Pesquisa Ação

Participativa. Pode parecer óbvio, mas nem toda teoria sobre esta metodologia

enfatiza a colaboração; algumas argumentam que a Pesquisa Ação é um

caminho solitário de sistematização da autorreflexão. A Pesquisa Ação

Participativa é um processo social, educacional, de aprendizagem colaborativa,

realizada por grupos que trabalham juntos na mudança de práticas.

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O sujeito assume a investigação como uma prática social; e o objeto é social. É orientada para estudar, enquadrar e reconstruir práticas sociais. Tal prática é construída na interação social. A mudança da prática é uma construção social. Oferece uma oportunidade para criar fóruns nos quais as pessoas podem refazer as práticas no processo de interação. A racionalidade e a democracia podem servir ao mesmo propósito sem uma separação artificial entre ambos. No livro “Entre fatos e normas”, Habermas descreve esta relação como “abertura de espaço comunicativo”. (HABERMAS, 1996, apud KEMMIS & MC TAGGART, 2005, P.563)

A Pesquisa Ação Participativa envolve a investigação da mudança da prática

atual, e não de uma prática abstrata. Está diretamente ligada a um aprendizado

sobre o real, material, concreto e práticas específicas para determinadas

pessoas de lugares em particular. Este caminho se difere dos demais por ser

mais direcionado à mudança dos participantes e de suas práticas.

Os pesquisadores estão interessados na mudança aqui e agora. Entretanto,

eles alertam que se devem evitar algumas filosofias e práticas perigosas

idealistas que este método sugere. Os frutos de uma mudança real devem

conter o que as pessoas querem; como interagem com o mundo e com os

outros; o que representam e qual o seu valor; e o discurso com o qual as

pessoas compreendem e interpretam o seu mundo.

2.4 Ciclo espiral autorreflexivo: principais características

São sete as características consideradas relevantes para aplicar o ciclo espiral

autorreflexivo. A Pesquisa Ação Participativa Crítica é um processo social;

participativa; prática e colaborativa; emancipatória; crítica; reflexiva; e articula

teoria e prática. Dessas, destaco a função de ser crítica, descrita pelos autores

como um caminho para ajudar pessoas a retomar e libertar das restrições

embutidas no meio social onde elas interagem: sua linguagem (discurso), modo

de trabalho e relações sociais de poder (afiliação e diferença, inclusão e

exclusão nas quais interagem com outros, gramaticalmente falando, em

primeira, segunda e terceira pessoa). Conduz à reinterpretação e descoberta

do seu mundo.

E sublinho também o sétimo ponto, onde é possível o pesquisador explorar o

potencial de diferentes perspectivas, teorias e discursos que colaborem para

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iluminar práticas particulares, como base para o insight crítico e ideias de como

as coisas podem ser transformadas.

(...) clama por transformar as teorias praticantes e a prática e a teoria e prática de outros, as quais perspectivas e práticas podem ajudar a moldar as condições de vida e trabalho de uma comunidade. (...) clama por conectar o local com o global e viver o slogan “o homem é um ser político”. (KEMMIS & MC TAGGART, 2005, p.568)

Ao entrar em campo para empreender o estudo, minha expectativa foi de gerar

mudança e engajamento dos alunos futuros professores a respeito do campo

da Alimentação. Ao término do trabalho, refletindo sobre o convívio com a

comunidade escolar, e após a análise dos dados, percebo que os significados

do comer ganharam sentido e possibilidades para a futura prática docente,

numa perspectiva interdisciplinar. Não basta apenas colocar o tema, aplicar a

metodologia e combinar técnicas. Para que este processo de participação seja

efetivo é preciso sensibilizar, emocionar, mobilizar. Desde o primeiro encontro,

notei que eles abraçaram o convite de olhar a comida com outros olhos e

encará-la a como uma lente. Senti-me acompanhada. Não falo de um lugar

solitário, mas no lugar apropriado, onde o que transmito sobre as relações com

o comer é compreendido e dividido com o grupo.

Quanto mais os participantes demonstravam interesse em conhecer e expor

suas opiniões, aumentava minha motivação e entusiasmo. Cada dia que

antecedia a visita gerava em mim grande expectativa e tensão. Precisava

surpreendê-los e mantê-los interessados para que a matéria-prima, suas

compreensões, continuassem sendo produzidas. Para liberar os aromas da

experiência de cada um, utilizamos a linguagem da arte, que diz sem dizer,

conduz o expectador a aflorar seus afetos e falar o que não é dito em outras

circunstâncias. É usar a subjetividade para chegar à objetividade, com a

finalidade de mobilizar. Depois de terminado o encontro, invadia-me uma

sensação de alívio, de prazer e alegria. Foram dias trabalhosos, estimulantes,

felizes. Chegava em casa com fome de compartilhar. Redigia longos e-mails

para meu orientador, comentava com as colegas de trabalho e de pesquisa.

Esses e-mails, que poderiam ser chamados de “relatórios quentes”, também

me auxiliaram na análise dos dados, pois traziam observações e sugestões do

orientador desta pesquisa; e meu sentimento registrado no dia do encontro.

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“Hoje foi a apresentação da turma 3002 sobre os encontros de Interseções de Alimentação e Arte. Fiquei emocionada com o que vi. Estamos no caminho certo. Vale a pena apresentar esse olhar da centralidade da comida, apostar na cultura e na culinária. Percebi que estavam engajados no assunto, tomaram posse do discurso, sabe? Relacionaram os temas críticos que discutimos. Gravei pelo gravador. Mas um aluno filmou pelo Ipad. Fizeram um PPT com as fotos que tirei durante os encontros e selecionaram várias frases de comida. Fizeram painéis com as poesias, comidas brasileiras e um quadro sobre o preço dos alimentos. Estou com todo esse material. Senti que é isso que quero fazer. Colocar essa semente da paixão pela comida, de que é um fato social total, complexo, transversal e interdisciplinar. Os projetos educativos sobre alimentação, cultura e culinária precisam ser mais frequentes na escola. É o que temos no momento para fazer. Oportunidades não faltam nas leis, nem espaço nas escolas. Talvez esse seja o caminho para disseminar a semente do olhar curioso para o comer (curiosidade epistemológica/Paulo Freire).Daí, o sonho é ver a alimentação como um meio educativo para abrigar saberes científicos e não científicos em seu conteúdo. Estou em êxtase. Escrevi demais. Mas estou transbordando....precisava compartilhar!”, trecho do e-mail escrito no dia 21/11/2012.

Assim, Kemmis e McTaggart enfatizam que “o som da pesquisa deve ser mais

respeitado do que os cânones do método”. Por isso, antes de abordar

especificamente a metodologia e as técnicas, os autores optaram por

contextualizar e envolver o interessado neste modelo de pesquisa, quanto às

implicações da teoria, da prática e da mudança. Identifiquei-me com a

Pesquisa Ação Participativa exatamente pela maneira como foi apresentada.

Senti-me acolhida, respaldada e encorajada para colocar em prática o desejo

de pesquisar, mudar práticas e transformar num mesmo processo. O som da

pesquisa está ecoando em mim.

2. 5 A coletividade na Pesquisa Ação

Nas revisões mais recentes sobre Pesquisa Ação, o coletivo suporta três

importantes funções. A primeira é a expressão da democratização da prática

científica. A comunidade científica local estabelece o uso de princípios da

pesquisa para melhorar e criar compreensões mais ricas. Esse processo é

chamado de objetificação da experiência. A segunda é a ideia de disciplinar a

subjetividade, a qual está relacionada com aspecto afetivo, a reação emocional

dos participantes e mediação política.

No aspecto afetivo da subjetividade, o procedimento de Pesquisa Ação cria

oportunidades para fazer com que os sentimentos sejam acessíveis e

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explorados. Ao mesmo tempo abre caminho para as pessoas sentirem suas

situações, examinar as causas e os significados. Isto não implica que o

pesquisador será um terapeuta especialista em grupos ou um facilitador,

supostamente neutro. Ao contrário, ele é parte do processo social de

transformação.

A ação política é a terceira função, com elevado atributo de compreensão e

motivação. O afeto mobiliza e organiza. A experiência é mais claramente

compreendida e objetivada. Conhecimento e sentimento são articulados e

disciplinados pela coletividade para uma ação prudente. A coletividade provê o

suporte crítico para o desenvolvimento político. Por meio dessas interações,

novas formas de participação consciente emergem. A ação e a pesquisa,

aspectos da Pesquisa Ação requerem uma participação maior dos efeitos

disciplinadores da coletividade.

2.6 – Interseções de Alimentação e Arte

O pesquisador deve evitar limitações de métodos e técnicas. Por exemplo,

pode legitimamente evitar o empirismo estreito de abordagens que tentam

interpretar a objetividade das práticas. Não é possível excluir a ponderação das

intenções subjetivas dos participantes, os significados, valores e categorias

interpretativas de compreensão dessas práticas. Ou, ainda, anular os

fragmentos da linguagem, do discurso e tradição em que as pessoas de

diferentes grupos a constroem.

Antes de decidir qual o método será apropriado é necessário decidir o tipo de

prática e teoria. Daí, então eleger os dados e evidências relevantes para

descrever a prática. E que tipo de análise é adequada para interpretar e avaliar

a prática real, numa situação real em que as pessoas trabalham. Nessa

direção, optamos por realizar os encontros criativos, os quais demos o nome

de Interseções de Alimentação e Arte, onde apresentamos dez eixos temáticos.

Cinco foram relacionados às manifestações artísticas e sua relação com a

comida (Cinema, Poesia, Literatura, Culinária e Artes Plásticas); dois

associados a áreas de conhecimento (Nutrição e Ciência); e três direcionados

às implicações sociais e culturais (Memória, Cultura e Sociedade).

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Nestas temáticas acrescentamos questões pertinentes, tais como: Direito

Humano à Alimentação Adequada (DHAA); integração dos saberes

disciplinares; valorização dos conhecimentos não científicos; reestruturação

dos sistemas de produção, distribuição e consumo de alimentos; e alimentação

escolar como espaço pedagógico de sociabilidade. Convidamos especialistas

para enriquecer a discussão e as atividades. Em cinema, Margarida Nogueira,

chef, ativista alimentar e líder do convivium Slow Food; Culinária, Ana Pedrosa,

chef, membro do grupo Ecochef/Maniva e do Consea (Conselho Nacional de

Segurança Alimentar), no Rio; Nutrição, Juliana Casemiro, nutricionista e

doutoranda do NUTES/UFRJ; em Ciência, o food designer, físico e historiador

Enrique Rentería; e Artes plásticas, Lucas Zappa e Diogo Russo, do coletivo de

arte urbana Tocayo. Ao final dos encontros, oferecíamos uma degustação, e a

receita era relacionada com o tema. Assim, o cardápio contou broa de milho,

bolo de abobrinha, bolo de cenoura com calda de chocolate, bolo de maçã,

tapioca, pipoca, legumes assados, suco da luz, maionese caseira, bolo de

chocolate com castanha, e cupcake de frango.

Para dialogar a comida como um fato social total (MAUSS,1973) , de múltiplas

dimensões (FISCHLER, 1995) e central (MINTZ, 2001), foi necessário apontar

o sentido do cotidiano, utilizando o ponto de vista da arte que tem a capacidade

de transformar o simples em matéria de alta complexidade humanista e

estética. Com esta visão, reunimos leituras e referências com múltiplos olhares,

aliadas às estratégias de ensino-aprendizagem, que colaboraram para

repensar a relação com a alimentação e sua centralidade na vida social.

Nosso interesse era acessar as compreensões sobre o comer ligadas à

identidade, cultura e memória na interseção do conjunto de conteúdo

apresentado pela pesquisadora, com o conjunto de conhecimento prévio dos

alunos. Deslocamos o foco da saúde e mostramos a alimentação a partir de

várias disciplinas. O que chamamos de interseção é o ponto em que os

participantes apresentavam suas criações, opiniões e reflexões a respeito do

assunto tratado. É neste ponto de encontro que buscamos os dados para esta

pesquisa. A experiência em sala de aula gerou um material educativo com o

título “Interseções de Alimentação e Arte: reflexões sobre escola, cultura e

sociedade” (APÊNDICE).

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Os encontros começavam com uma apresentação elaborada em power point

sobre o tema. Após a explanação, sempre buscando estimular a participação

dos alunos, era proposta uma oficina criativa, como aula de culinária, produção

de poesias, roteiro para teatro e chamada para um suposto telejornal de

alimentação e cultura. No primeiro dia aplicamos um questionário (em anexo)

contendo informações sobre parentesco e preferências alimentares. Outras

turmas do 4º ano responderam às questões, totalizando cerca de 130. O intuito

era conhecer, preliminarmente, a relação com a comida e comparar essas

informações com colegas de outras turmas, a fim de ter um parâmetro. Para a

análise deste estudo, utilizamos algumas informações do questionário dos

alunos.

Outra fonte de coleta de dados, que considero a mais relevante, foi o caderno

de campo, dado no primeiro dia de aula a cada aluno. A finalidade foi

configurar a qualidade de pesquisadores e, portanto, deveriam estar atento aos

acontecimentos a sua volta e relacioná-los com a pesquisa, à medida do

possível. As observações dos participantes dentro e fora da sala de aula

deveriam ser articuladas na forma escrita.

No decorrer dos encontros, sugeríamos que fizessem anotações e comentários

no caderno. Este suporte foi devolvido no dia 05 de dezembro. A leitura me

surpreendeu. Foi mais intenso que os debates, mas intimista e pessoal, e

revelador. Também realizei entrevistas semiestruturadas com a diretora da

escola e a professora responsável pela PPIP. A primeira entrevista ocorreu

após o término do ano letivo na própria escola. A pauta de perguntas foi

relacionada à interdisciplinaridade no currículo normal, às oportunidades

profissionais para os egressos; e a avaliação em relação ao projeto realizado

com a turma. A segunda entrevista foi feita por e-mail e versou sobre a

avaliação em usar o tema alimentação na prática docente e as oportunidades

que a PPIP oferece para abrigar o assunto. O retorno foi bastante receptivo,

com possibilidades de aplicar os resultados obtidos neste estudo a partir de

2013.

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Ao longo da pesquisa, pudemos colaborar na construção da capacidade de

refletir sobre a centralidade da alimentação no cotidiano, e como ser aplicada à

prática doente. Vieira (2007 p. 76) sublinha que:

O processo de escrita reflexiva permite que o sujeito produza um conhecimento sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o seu cotidiano, o que potencializa o contato com sua singularidade e a reflexão sobre sua identidade. É, pois, processo de formação e de conhecimento fundamentado nas experiências do sujeito.

Para a análise dos dados, utilizei os relatos dos cadernos de campo,

combinados com as transcrições dos debates em sala de aula e dados dos

questionários. Como estávamos numa disciplina formal, a professora sugeriu

uma avaliação, que foi realizada no dia 21 de novembro de 2012, no evento

chamado Culminância, onde as turmas do último ano de formação apresentam

projetos na área de educação. A CN 3002 apresentou o projeto “Interseções

de Alimentação e Arte”. Falar de comida é congregar temas, então tanto a

metodologia, quanto à análise não poderia ser unidimensional, mas sim plural,

o que enriqueceu e marcou meu exercício de reflexão de forma indelével.

É importante destacar, para fins deste estudo, três pontos sobre a relação

engendrada na Pesquisa Ação Participativa. O primeiro é perceber que certas

relações são apropriadas como elemento para a pesquisa. A prática é

diretamente deliberada para recuperar, investigar e alcançar concordância

subjetiva, mútua compreensão e um consenso voluntário sobre o que se está

fazendo. Trata-se de uma prática colaborativa crítica, realizada em, e através

de, uma prática de colaboração de pesquisa que visa mudar os próprios

pesquisadores, assim como o mundo social em que vivem (CARR & KEMMIS,

1986; HABERMAS, 1972).

Em segundo, é perceber que as relações similares são apropriadas como

elemento da ação. Não é somente um senso colaborativo de mediação, mas

um senso colaborativo de legitimação das decisões que as pessoas fazem e

das ações que tomam em conjunto. O terceiro envolve relações de participação

como característica central e definidora, não como um tipo de instrumento ou

um valor contingente incluído no termo. É criar circunstâncias para que todos

os envolvidos e afetados pelo processo de pesquisa e ação (todos envolvidos

no pensamento e na ação, bem como na teoria e na prática) sobre o tema têm

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o direito de falar e agir para transformar as situações da melhor maneira

possível.

A Pesquisa Ação Participativa é cientifica e reflexiva no sentido em que John

Dewey descreveu o “método científico”, no livro “Democracia e Educação”

(DEWEY, 1916).

Em primeiro lugar, que o aluno tenha uma genuína experiência; que haja uma atividade contínua que o mantenha interessado em si mesmo. Em segundo lugar, que um problema verdadeiro desenvolva dentro desta experiência um estímulo ao pensamento. Em terceiro, que tenha posse da informação e faça as observações necessárias para lidar com ela. Quarto, que sugira soluções, as quais sejam responsáveis pelo desenvolvimento de forma ordenada. Em quinto, que tenha oportunidade e ocasião para testar suas ideias por meio de aplicação, para ter significado claro, e descobrir por si mesmo sua validade. (p. 192)

Segundo Dewey, experiência e ação inteligente estão conectadas num ciclo.

Educação, como a ciência, clamam não somente por ocupar a mente dos

estudantes, mas também ajudá-los a tomar posição na sociedade democrática,

e incessantemente reconstruir e transformar o mundo por meio da ação. A

ação inteligente sempre será experimental e exploratória, realizada com os

olhos voltados para a aprendizagem, e como uma oportunidade de aprender

com desdobramento da experiência (KEMMIS & MCTAGGART, p., 580 e 581).

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CAPÍTULO 3: O lugar da comida na escola

A comida e a refeição são expressões simbólicas de uma ordem social e, mais do que isso, a refeição é um sistema de comunicação

que reflete relacionamentos entre grupos sociais.

Mary Douglas, antropóloga.

3.1 Comida: objeto central com dimensões múltiplas

Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss o ato de cozinhar nunca foi

suficientemente enfatizado (1964). O teórico estruturalista considera a cozinha

e a linguagem como as formas verdadeiramente universais da atividade

humana: “não existe sociedade sem linguagem, tampouco existe alguma que

não cozinhe, nem que seja alguns de seus alimentos”. Em sua obra, ao

estabelecer o Tripé Culinário com as categorias cru, cozido e assado, construiu

um sistema de oposições entre natureza e cultura, que revelam a estrutura e as

contradições das sociedades. De acordo com Lévi-Strauss, a comida não é

somente boa para comer, serve também para pensar.

A esta afirmação, trago para discutir neste trabalho as ideias do sociólogo e

filósofo francês Rolland Barthes ao definir a refeição como “um sistema de

comunicação, um corpo de imagens, um protocolo de convenções, situações e

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comportamentos” (1997, p. 21); e do antropólogo norte-americano Sidney Mintz

ao defender que “a comida e o comer assumem uma posição central no

aprendizado social, devido à sua natureza vital e essencial, embora rotineira”

(2001, p. 31). Esses autores nos apontam características vinculadas à

educação e ao saber. Dessa forma, podemos pensar na escola como um

espaço favorável para exercer a reflexão, formando pensadores autônomos e

críticos, que reconheçam o que comem e, por isso, o que são. É além do que

saber comer adequadamente frutas e legumes para manter uma vida saudável.

É conhecer a dimensão do alimento para o homem, para a vida.

Ao alinhar as relações entre escola, cultura e sociedade, observamos que a

alimentação está intrinsicamente ligada a estas esferas por seu caráter múltiplo

e identitário. Fischler nos esclarece essa complexidade. Quando começou a

trabalhar com comida - por volta da década de 80 com o sociólogo francês

Edgard Morin, autor do Pensamento Complexo -, ele tinha em mente olhar a

partir de vários ângulos, de várias disciplinas. Então, começou a reunir escritos

de psiquiatras, antropólogos, sociólogos, historiadores e etc. Daí se propôs a

discutir o valor da multidimensionalidade (1995), aproximando o comedor

biológico do social.

Fischler analisou as teorias antropológicas sobre a relação com o alimento,

transitou entre estruturalistas e funcionalistas, e refletiu sobre as questões

inerentes ao assunto. Ele assumiu as conexões diretas e indiretas que

constituem o comer. Congregou, classificou e nomeou os atributos da

diversidade e variedade alimentar. Falou de aprendizagem social, de princípios

de incorporação e de função social numa perspectiva da estrutura, da origem,

da base do vínculo entre homem e alimentação.

Antes de trabalhar com Morin, Fischler era jornalista. Ressalto isso porque o

comunicador social é um generalista. Precisa ter habilidade para escrever

sobre qualquer assunto, fazer conexões de fatos, dados e costurar falas de

pessoas de áreas distintas para compor um texto que tenha unidade. Talvez

por essa base jornalística, aliado a influência da teoria da complexidade, o

pesquisador tenha conseguido cruzar as múltiplas facetas do alimento e

propor, então, as múltiplas dimensões. Acredito que a área que escolhemos

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para atuar profissionalmente reflete, ou interfere, em nossa visão de mundo, na

forma como o percebemos e agimos. Ao meditar sobre sua prática, o

profissional pode aperfeiçoá-la e transformá-la.

Essa pesquisa nasce de inquietações de uma jornalista faminta pelos

significados do comer. Nessa procura, me deparei com autores, como Fischler,

que chega como aquele cheiro e sabor da comida de casa, um comfort food,

trazendo acolhimento para o pensamento. Faço essas considerações também

porque em campo, convivendo com os futuros professores e conhecendo, em

parte, seus desafios, examinei leituras como as de Paulo Freire. Percebi que o

engajamento é um fator relevante para colocar em prática essas dimensões da

comida em sala de aula. E que apresentar os vínculos entre comida, escola,

cultura e sociedade pode ser o ponto de partida para mobilizar e engajar

pessoas num conhecimento mais amplo do que representa se alimentar; abrir o

apetite, instigar a fome, como a de M.F.K. Fischer e a de Rubem Alves.

3.2 Panorama do tema alimentação nas políticas públicas do Brasil

A institucionalização da merenda escolar no Brasil surge num contexto em que

o foco das políticas públicas era a fome e a desnutrição. Em 1947, foi criado o

programa de alimentação para a escola, primeiramente no Rio de Janeiro, sob

a responsabilidade da Secretaria do Município geral de Educação. O apoio e

desenvolvimento ficaram a cargo do Instituto de Nutrição da Universidade do

Brasil, do setor de Alimentação Escolar (SAE) e da Escola Técnica de

Assistência Social Cecy Dodsworht (COSTA, 2001). Com a publicação do

documento “A conjuntura alimentar”, em 1953, o programa começou a ser

propagado em âmbito nacional. O texto relata a situação de subnutrição no

país. Para a resolução dos problemas uma série de medidas é elaborada,

tendo como prioridade o plano de assistência e educação alimentar à infância e

adolescência (FERNANDES, 2012, p. 20 e 21).

Em 1955, com o decreto nº 37.106, de 31 de março, foi instituída a Campanha

Nacional de Merenda Escolar (CNME). Um dos responsáveis pela execução

era o Ministério da Educação e Cultura (MEC). Em 1965, passou a ser

chamada Campanha Nacional de Alimentação Escolar (CNAE), e em 1979

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recebeu o nome que mantém atualmente: Programa Nacional de Alimentação

Escolar (PNAE). Por dia são atendidos cerca de 45 milhões de estudantes da

Educação Básica e de Jovens e Adultos. Parte do recurso financeiro é

repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) aos

estados e municípios, que podem complementar a verba.

O assunto alimentação começa a aparecer no currículo, oficialmente, em 1971

com a LDB (5.692), que fixou as diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º

graus. O Programa de Saúde tornou-se obrigatório, previsto no artigo sete. E

Alimentação Escolar passou a ser um serviço de saúde, e espaço para ações

educativas. No entanto, essa condição pedagógica, precisou ser aprimorada

ao longo dos anos, com novas leis, a fim de conquistar reconhecimento dentro

e fora do contexto escolar. Hoje, o espaço dedicado à alimentação está

ganhando cada vez mais prestígio e relevância, tanto por parte do governo,

como dos educadores. Como já discutimos, o tema é central para

compreensão das culturas e sociedades, e ganhou relevância na cena

contemporânea por conta dos dilemas, tensões e conflitos que engloba.

Há 42 anos, quando foi implantada a política de Educação em Saúde, o

objetivo também era combater a desnutrição e reduzir o fracasso escolar, como

no PNAE. Por isso, não houve abertura para discussão do programa com foco

na educação. Aliada a essa política assistencial, a alimentação passou por um

longo período como preocupação secundária da área de educação. Esses

posicionamentos dificultaram a transposição do conceito de refeição como

apenas suprimento das necessidades nutricionais de crianças carentes

(MOYSÉS e COLARES,1995; ABREU, 1995, apud FERNANDES, 2012)

Após a descentralização do PNAE, houve um processo de reestruturação que

refletiu também nas questões educacionais. Em 1995, o Conselho Federal de

Nutrição (CFN) publicou documento sobre o panorama da Alimentação Escolar.

Além de se enfatizar a qualidade nutricional, também se destacou a

possibilidade de usá-la como ferramenta educativa.

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No ano de 1997, o Ministério da Educação estabelece o Parâmetro Curricular

Nacional (PCN), que são referências de conjuntos de conhecimentos

necessários para a Educação Básica em todo o país. Com o PCN foram

introduzidos os Temas Transversais composto por Ética, Saúde, Meio

Ambiente e Pluralidade Cultural. A alimentação aparece como subtema básico.

Estes assuntos devem perpassar o currículo escolar.

Há mais de 20 anos, o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN)

vem sendo debatido por grupos da sociedade civil organizada no país. Desde

2003, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) atua como um

mecanismo de controle social inédito, formado em sua maioria por

representantes de diferentes movimentos sociais e acadêmicos, em parceria

com o governo. A função é monitorar, propor soluções para as questões de

alimentação e nutrição, estabelecer uma nova compreensão e alterar políticas

públicas.

A mudança no perfil nutricional da população e a prevalência de sobrepeso e

obesidade em crianças e jovens, causada pelo aumento da ingestão de

gorduras e pela redução da atividade física, provocaram o desenvolvimento de

uma série de programas de educação nutricional, reforçando o potencial do

PNAE como espaço para esse processo. Em maio de 2006, a Portaria

Interministerial 1010, entre o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da

Educação (ME), instituiu as diretrizes para a promoção de Alimentação

Saudável na Educação Básica. As práticas alimentares deveriam assumir os

significados socioculturais dos alimentos. Neste ponto, a alimentação começa a

ser concebida com uma visão voltada para aspectos além da nutrição.

Essa concepção ampliada também faz parte da Lei Orgânica de Segurança

Alimentar e Nutricional (LOSAN), elaborada pelo Consea em 2006, e

sancionada no mesmo ano. De acordo com o documento, o acesso regular e

permanente de alimentos de qualidade deve ter como base “práticas

alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural, e que

seja ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis” (BRASIL,

2006).

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A LOSAN também colocou em evidência a obrigação do Estado brasileiro com

o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e sua relação com a SAN.

A lei ainda prevê a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e

Nutricional (SNSAN), através do qual será implementada uma Política Nacional

de SAN. Esta é uma demonstração bem sucedida da relação entre poder

público e sociedade na construção efetiva de participação social e democracia

participativa.

A ideia de prover uma educação integral foi ganhando consistência. No ano de

2007, o governo federal lançou o Programa Saúde nas Escolas (PSE), com o

decreto 6.286. A nova articulação entre MS e ME teve como pressuposto tratar

a saúde e a educação de forma integral, “como parte de uma formação ampla

para a cidadania e usufruto dos direitos humanos”. No PSE, a escola é vista

como espaço de promoção da Alimentação Saudável.

Desde 2009, a Lei de Alimentação Escolar (11.947) oficializa o olhar cultural do

comer; inclui a educação alimentar e nutricional no processo de ensino-

aprendizagem que perpassa o currículo escolar; o respeito às tradições

alimentares e à preferência alimentar local saudável; e o desenvolvimento

biopsicossocial; amplia a presença de outros profissionais na escola, com

proposta interdisciplinar e intersetorial; e determina que, ao menos 30% da

compra de alimentos para a refeição escolar, venha da agricultura familiar

local, tendo sido produzidos de forma agroecológica ou orgânica. Com esta

abertura, a multidimensionalidade do alimento ganha cada vez mais

envergadura em âmbito legal.

O PNAE se consolida como “um espaço sócio cultural, numa situação em que

homens, mulheres e crianças se ‘educam entre si’, numa troca de experiências

e conteúdos, que vão muito além do espaço da sala de aula” (FONSECA,

2011). Segundo o pesquisador, os conhecimentos reunidos pelo campo da

educação já são mais do que suficientes para atestar o quão amplo e inclusivo

é o processo educativo. Em relação à alimentação, esta compreensão tomou

escopo de lei ao definir novos parâmetros relacionados à aquisição, à

abrangência e ao papel educativo da alimentação escolar.

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Entretanto, ressalto que, ao falar de cultura, tradição e de abordagem integrada

de aspectos biológicos, psicológicos e sociais, o objetivo final é promover

alimentação saudável, segura, adequada, contribuir com rendimento escolar, o

estado de saúde e a qualidade de vida do indivíduo na perspectiva do direito,

da universalidade, da equidade e da sustentabilidade por meio de ações de

educação alimentar e nutricional e oferta de refeições (BRASIL, 2009, p. 2 e 3).

Estes princípios e diretrizes do programa são finalidades importantes e

indiscutíveis. Porém, questiono quanto à utilização do termo alimentação

saudável como premissa desses decretos e leis, que pode indicar uma certa

restrição para tratar o alimento como um fato social total, integrado, portanto, à

saúde e a educação.

Entendo que, baseada nas contribuições apresentadas neste estudo, o fator

“saudável” é uma consequência de uma abordagem ampla sobre o comer, e

não uma meta a ser perseguida. Nesse contexto, ainda é preciso encontrar o

sentido e os significados da comida quando se pensa num processo educativo.

Adotar um cardápio correto do ponto de vista dos nutrientes não é suficiente

para prover uma visão consciente e engajada. Há um esforço em englobar

outros saberes, mas a visão da cultura e do alimento, explicitadas,

principalmente na Lei 11.947, se difere da que estamos tratando neste estudo.

O olhar da saúde permanece como bússola. Trata-se de promover alimentação

saudável prioritariamente.

Existe uma distância entre as políticas públicas e a prática, seja no refeitório,

ou em sala de aula. Talvez por ser necessário estabelecer pontes entre as leis,

a escola e a comunidade escolar. A alimentação voltada para a educação

precisa ser vista na teoria e na prática pelos professores, educadores,

merendeiras e outros profissionais, que efetivamente lidam com as questões

relacionadas ao comer.

As propostas curriculares interdisciplinares também favorecem a abordagem do

assunto alimentação. Por isso, destaco duas iniciativas da SEEDUC, entre

2009 e 2010. A Resolução 4376 e a Portaria 91 estabelecem a

interdisciplinaridade no Ensino Médio Normal, em espaços formais e não

formais. Neste ponto, vislumbrei oportunidades de promover uma dimensão

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mais ampla da comida na escola, em que a relação com a cultura e a

sociedade pudesse ser mais acessível e perceptível. Em 2012, o Consea

propôs, e foi aprovado, que o FNDE repasse verba para estados e municípios

destinarem às estratégias de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) nas

escolas. Nestas articulações citadas, é possível observar o movimento das

esferas públicas, e da sociedade civil, em torno da alimentação, direção que

conduz para ações em nível intersetorial.

No mês de novembro de 2012, foi lançado o “Marco de Referência de

Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas”. A EAN é uma das

principais estratégias para a promoção da Alimentação Saudável. Essa foi

uma das conclusões da 4ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e

Nutricional, realizada em novembro de 2011. Por isso, a necessidade de

elaborar um documento público com referências para colaborar com esta

prática educativa que acontece além de escolas, em comunidades, hospitais e

empresas. O Marco tem a finalidade de estimular um campo comum de

reflexões e orientações. Funciona como um guia para conduzir os atores

sociais envolvidos com a EAN.

Segundo o documento, pretendeu-se mapear a área de atuação, a diversidade

de abordagens conceituais e práticas da EAN; dar visibilidade às experiências

bem sucedidas; e investir em metodologias e estratégias eficazes. Há ainda

uma preocupação em discutir a lacuna entre formulações das políticas e as

ações educativas desenvolvidas no âmbito local. Esta lacuna foi uma das

constatações que fizemos ao debater com os participantes sobre o PNAE. Ao

serem questionados se já tinham ouvido falar do programa, a resposta foi um

sonoro não. O olhar para a alimentação como um espaço de educação ainda é

pouco visível. As dificuldades para esta compreensão passam pela visão que

se tem do que representa comer, do sentido desta refeição diária na escola; a

carência de fomentar a interdisciplinaridade no contexto escolar, de forma mais

sinérgica, inclusiva, participativa e democrática.

Com o marco regulatório, espera-se contribuir para o engajamento de pessoas

e comunidades em prol da realização do “Direito Humano à Alimentação

Adequada (DHAA) e garantia da Segurança Alimentar e Nutricional

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(SAN); adoção de práticas alimentares saudáveis na perspectiva da promoção

da saúde; corresponsabilização; autonomia; autocuidado; e reconhecimento da

alimentação como direito social e exercício da cidadania.” Esta contribuição

está em sintonia com a experiência que propusemos na Roberto Silveira.

Considero o engajamento, o autocuidado e autonomia ingredientes-chaves

para exercitar um olhar voltado para as múltiplas dimensões da comida.

Nove princípios são apresentados para fundamentar a EAN:

1- Sustentabilidade social, ambiental e econômica;

2- Abordagem do sistema alimentar na sua integralidade;

3- Resgate e valorização da cultura alimentar local e respeito à diversidade

de opiniões e perspectivas considerando a legitimidade dos saberes de

diferentes naturezas (cultura, religião, ciência);

4- A comida e o alimento como referências; valorização da culinária

enquanto prática emancipatória e de autocuidado dos indivíduos;

5- Participação ativa e informada dos sujeitos visando à promoção da

autonomia e autodeterminação;

6- Educação enquanto processo permanente e gerador de autonomia;

7- Diversidade nos cenários de prática;

8- Intersetorialidade;

9- Planejamento, avaliação e monitoramento das ações.

As diferentes perspectivas que vêm sendo utilizadas para se pensar o PNAE

não têm encontrado acolhida na teoria e na prática docente. Por meio destas

políticas públicas temos uma porta aberta para propor iniciativas que atendam

à demanda em incluir a alimentação no processo educacional. Mas na prática,

trocando em miúdos, como é possível promover a interdisciplinaridade no

ambiente educativo, tendo o alimento como foco?

3.3 Atores da Alimentação Escolar: diálogos truncados

A Lei 11.947 define os atores sociais que devem participar do processo

educativo, estabelecido para a alimentação na escola com articulação de áreas

como educação, saúde, agricultura, ação social e a participação da sociedade

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civil. Prevê a criação do Conselho de Alimentação Escolar (CAE), de

competência dos municípios. É um mecanismo de controle social que deve ter

a participação de membros da comunidade escolar, inclusive alunos, pais e

outros interessados. O objetivo é acompanhar a execução do PNAE nos

estabelecimentos de ensino. Regulamenta ainda que o FNDE fomente Centros

Colaboradores em Alimentação e Nutrição do Escolar (Cecane) e/ou Centros

de Referência por meio de parcerias com Instituições e Entidades de Ensino e

Pesquisa e Associações Técnico-Científicas. O intuito do Cecane é “prestar

apoio técnico e operacional na implementação da alimentação saudável, e

desenvolvimento de outras ações pertinentes ao programa” (BRASIL, 2009).

O nutricionista assume papel de maestro desta orquestra, além de receber uma

série de incumbências para o funcionamento do programa. Este profissional é o

responsável-técnico e cabe a ele atribuições como coordenar o diagnóstico e o

monitoramento do estado nutricional dos estudantes, planejar o cardápio,

acompanhar a aquisição dos gêneros alimentícios até a produção e

distribuição, bem como propor e realizar ações de EAN. Nesta área educativa,

temos a chance de integrar os atores sociais ligados à alimentação escolar, e

agregar outros profissionais que podem ajudar a pensar a comida neste

contexto, e colaborar para a promoção da EAN, de maneira ampla e inclusiva.

Entre as atividades previstas estão hortas escolares, inserção do tema

Alimentação Saudável no currículo, oficinas de culinária experimentais,

formação da comunidade escolar e criação de tecnologias sociais que a

beneficiem. Partindo deste alicerce legal, encontramos caminhos para propor a

concepção de multidimensionalidade do alimento e de fato social total, com o

intuito de contribuir para alargar o entendimento da relevância dos estudos de

alimentação.

Com isso, pudemos levar para a escola outros profissionais como artistas,

cozinheiros e um food designer, que é físico e historiador. A lei incentiva o

caráter interdisciplinar, interinstitucional e multiprofissional, mas esta integração

trata-se de uma empreitada complexa. Tomemos como exemplo os desafios da

pesquisa acadêmica para o estudo do comportamento alimentar a fim de traçar

um paralelo com as dificuldades de uma prática articuladora. Conforme a

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antropóloga espanhola Mabel Gracia Arnaiz, existem muitas disciplinas

interessadas na alimentação humana, porém os dois enfoques predominantes

é a instância do biomédico e do sociocultural. Este último apontou a

oportunidade de desenvolvimento da multidisciplinaridade e a abordagem do

alimento na interdisciplinaridade. Arnaiz sustenta que o trabalho interdisciplinar

requer um esforço de comunicação, síntese e integração, enquanto que a

multidisciplinaridade faz apenas referência a uma recompilação de vários

modos de abordar o alimento.

Desde os anos de 1930 e 1940, antropólogos especialistas em alimentação

como Audrey Richards e Margaret Mead, insistiram repetidamente na

necessidade de romper os paradigmas de comunicação atuais entre os

distintos profissionais dedicados ao tema nutrição e alimentação. Ambas

propuseram como imperativo o fato de contar com a participação da população

nas ações dos especialistas, com a finalidade de trocar e evitar a criação de

dependência das culturas afetadas (GRACIA ARNAIZ, 2005, p, 292). O

problema que se defronta é que reconhecemos a complexidade biossocial da

alimentação, mas não a incorporamos nas nossas teorias e práticas.

Gracia Arnaiz (2005 p. 293) afirma que falta interesse em buscar a

complexidade da análise devido à falta de formação interdisciplinar que nos

tornaria capazes de compreender e abordar a multidimensionalidade do fato

alimentar. A antropóloga insiste na necessidade de estabelecer um ponto de

encontro, um espaço comum dentro das especialidades, em que os

pressupostos teóricos e os recursos técnicos se aproximem e evitem, na

medida do possível, os erros e fracassos acumulados.

Esta constatação da antropóloga nos mostra o quanto é desafiador operar a

interdisciplinaridade no campo acadêmico. Trazendo essa reflexão para as

determinações do PNAE e da matriz curricular do Ensino Normal, observamos

que o ordenamento legal não torna a tarefa mais fácil. Portanto, penalizar um

ou outro ator; ou uma instituição, não é a solução para resolver o impasse. Há

de se admitir as dificuldades e entender, primeiramente, os motivos pelos quais

a engrenagem da Alimentação Escolar não movimenta todos os atores,

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estimulando o processo de ensino-aprendizagem, no sentido de abordar as

dimensões da comida.

Na Interseção de Alimentação e Nutrição, a nutricionista e doutoranda do

Nutes Juliana Casemiro falou sobre o PNAE associado aos temas DHAA,

Alimentação Saudável e SAN. Antes de a convidada introduzir o seu assunto,

fizemos uma apresentação, relacionando gastronomia e nutrição, apontando

que a atuação em conjunto das duas ciências podem proporcionar

conhecimentos, saúde e prazer. Juliana perguntou quem já tinha feito dieta e a

maioria respondeu que sim. Ainda não tinham ouvido falar sobre os conceitos

de DHAA e SAN, não conheciam o PNAE, não sabiam da existência do CAE e

disseram não participar das decisões alimentares. Antes, ironizaram: “a única

coisa que a gente sabe é que segunda é dia de ovo. Quando pedimos

mudanças, a direção nos informa que a Secretaria de Educação é que envia o

cardápio”.

Sobre a qualidade da refeição, eles se dividiram entre opiniões positivas e

negativas: “gosto”, “não gosto”, “é comível”, “não gosto do macarrão”, “a

quantidade é exagerada”, “em vista de outras é melhor”, “só para tapar o

estômago”, “não é igual a de casa, mas é boa”, “não pode repetir”, “antes era

self service”, “horrível”, “boa”, e “mais ou menos”. Essas avaliações indicam

uma incomunicabilidade entre os sujeitos escolares. Há um desencontro, cheio

de ruídos entre os representantes da instituição escolar e a juventude

(CARRANO, 2009, p 160). Como romper com essa falta de comunicação entre

os atores sociais da alimentação escolar?

Ao propor a compreensão da vida escolar como uma via de mão dupla,

Carrano (2009, p. 160) intui que os esforços dos educadores em entender os

sentidos de ser jovem no tempo presente podem resultar em práticas e

políticas que possibilitem aos estudantes encontrarem sentido nos tempos e

espaços escolares. De um lado, temos os dispositivos legais; do outro, os

educandos, sujeitos de direito, cultura e de consumo (CARRANO, 2009),

famintos por sentido. Quais os fatores internos, ou externos, ao contexto

escolar podem promover uma articulação integrada e inteirada nesta rede

social, cultural e alimentar?

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Falta sinergia entre o espaço da Alimentação Escolar, a sala de aula e os

alunos. Não há diálogo transparente e direto entre os atores. Interessante que

as políticas são pensadas para os alunos - o público-alvo, o cliente, o principal

favorecido e endereçado – mas o processo de divulgação e transmissão de

informação não é dirigido de forma clara, objetiva e inteligível.

Nos cadernos de campo, recolhemos alguns comentários sobre o debate da

alimentação na escola, considerado por eles muito interessante, de maneira

geral.

A escola pode interferir na alimentação. A pergunta que iniciou o encontro foi: “o que vocês acham da comida na escola? Então, tiveram muitos comentários positivos e negativos. E reconhecemos que a alimentação, enquanto um direito, deveria ser realidade em muitas escolas. A nutricionista nos levou a questionar as causas da fome que atinge muitas pessoas. (Chocolate)

O nosso projeto hoje foi sobre como a escola pode interferir na nossa alimentação e foi o dia que teve mais debate porque começou gente a reclamar da comida da escola, gente a discordar. (Banana II)

O projeto inteiro foi falado de como a alimentação pode interferir na escola. A turma toda comentou o fato de muitos professores não levarem a alimentação para sala de aula porque dá muito trabalho, principalmente porque tem colégio que não tem estrutura, mas é principalmente porque dá trabalho. (Pêra)

Isso deu um debate excelente. (Abacate)

(...) discussões e críticas referentes à nossa alimentação escolar. Assunto bastante polêmico com levantamento de questões e debate, houve bastante reclamação e tiramos dúvidas com a nutricionista. Foi bem legal e produtivo (...). (Açaí)

Na dissertação de mestrado da nutricionista inglesa Rebecca Greenwood

(2011, p.22), a autora destaca que a maioria dos estudos sobre a Alimentação

Escolar tem olhar sobre a estrutura e o funcionamento do PNAE numa

percepção macrossocial, utilizando-se principalmente de métodos quantitativos.

Sua pesquisa realizou uma investigação etnográfica no cotidiano de uma

escola municipal da Zona Norte do Rio de Janeiro, com o intuito de revelar os

conhecimentos compartilhados na construção social da Alimentação Escolar.

De acordo com Greenwood:

(...) entre os diferentes espaços da alimentação, a rua foi a mais valorizada, pois a aquisição dos alimentos demanda o acesso financeiro, que nem todos os alunos têm (...). O alimento na casa

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também foi considerado importante devido à presença da figura da mãe no seu preparo, aferindo gosto e afeto à comida. Quando os alunos não podem comer na rua ou na casa, a última opção é a escola, onde são servidos alguns alimentos da casa, mas não tem o mesmo gosto. (2011, p.11)

Segundo as respostas dos 25 questionários respondidos na CN 3002 a

refeição preferida na escola é o strogonoff (32%), o risoto de frango (20%) e o

frango assado (20%). Oito por cento disseram que preferem a comida da

cantina. Na avaliação dos dados, apareceu a valorização da comida de casa e

da rua, bem como a preferência pela comida da mãe, de homens ligados à

família e até de um chef de televisão. Entretanto, a merendeira da escola não

foi citada em nenhuma das respostas. A disponibilidade do espaço do diálogo,

afirma Greenwood, faz emergir entre os alunos o desejo da participação, das

sugestões e de soluções para os problemas identificados na escola. A autora

indica que o envolvimento dos escolares poderia proporcionar o conhecimento

sobre a origem e o preparo dos alimentos em sua escola. Também fomentaria

o processo de ensino-aprendizagem sobre o funcionamento do PNAE, dos

conselhos municipais e estaduais, dos conceitos de democracia e cidadania,

além de temas como Alimentação Saudável, agricultura familiar,

sustentabilidade, direitos humanos, entre outros.

É perceptível a desilusão dos alunos pela Alimentação Escolar. Nos debates

provocados ao longo dos encontros, eles não se referem de forma positiva às

refeições escolares. Despejam, sem constrangimento, críticas, principalmente

ao cardápio e ao tempero. Fora o strogonoff e o risoto, comentados também

em aula, a maioria diz que come por falta de opção ou por estudarem em

tempo integral. Muitos, fora as opiniões dos questionários, preferem comer na

cantina da Roberto Silveira, que oferece lanches como pizza, hambúrguer e

sanduíche natural. De acordo com a direção, a permissão para o

funcionamento da cantina encerrou em 2012. Na hora do almoço, a fila do

refeitório é grande e é bastante movimentada.

3.4 A centralidade da cultura

A centralidade da cultura, explica o teórico cultural jamaicano Stuart Hall,

abrange aspectos substantivos e epistemológicos, respectivamente. O primeiro

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se refere à estrutura empírica real, à organização das atividades e às relações

culturais com a sociedade. Para explicar o aspecto substantivo, o autor

estabelece quatro dimensões: (1) a ascensão dos novos domínios, instituições

e tecnologias associadas às indústrias culturais, que transformaram as esferas

tradicionais da economia, indústria, sociedade e cultura em si; (2) a cultura

vista como uma força de mudança global; (3) a transformação cultural do

cotidiano; (4) e a formação das identidades pessoais e sociais.

O segundo, campo epistemológico, se refere à Virada Cultural, responsável por

marcar a mudança de paradigma nas ciências sociais e humanidades (Hall,

2001, p.27):

Refere-se a uma abordagem da análise social contemporânea, que passou a ver a cultura com uma condição constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente.

Ao consideramos a centralidade da cultura, proposta por Hall; que a comida

está no centro do aprendizado das práticas sociais ao relacionar

comportamento alimentar e identidade, conforme sugere Mintz, podemos

pensar sobre a posição que ocupa esses alunos futuros professores. Como o

tema da alimentação dialoga com a prática docente neste novo paradigma? O

que representa a alimentação escolar no cotidiano dos alunos? Qual o lugar da

cultura na escola? Quais os significados que o comer agrega à experiência

escolar na contemporaneidade?

Alfredo Bosi, historiador paulista, ao discutir sobre a democratização da cultura

brasileira, afirma que a escola deveria ser, em um regime democrático, uma via

de acesso sempre renovada à Natureza, a uma introdução larga ao

conhecimento do Homem e da Sociedade, uma ocasião constante de

desenvolvimento da própria linguagem como expressão subjetiva e

comunicação intersubjetiva; enfim, um despertar para o que de mais humano e

belo tem produzido a imaginação plástica, musical e poética no Brasil, ou fora

do país. Este ideal é o que forma o consciente das conquistas do gênero

humano e deve reger a escola única. Não pode ser barateado, nem trocado

por esquemas inertes ou migalhas de uma informação científica ou histórica

(BOSI, 1992, p. 340).

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A principal ação do projeto educador, tal como se revela admiravelmente na teoria e na prática de Paulo Freire, é levar o homem iletrado não à letra em si (letra morta ou letal), mas à consciência de si, do outro, da natureza. Essa consciência é o verdadeiro vestibular das Ciências do Homem, das Ciências da Natureza, das Artes e das Letras. Sem ela, o letrado cairá no mundo do receituário e da manipulação. (BOSI, 1992, p. 341)

A cultura fundamental deve ser um prolongamento e uma reflexão do cotidiano.

É na experiência com a terra, com o instrumento mecânico, com a máquina,

com o seu grupo de trabalho, com a própria família, que o ser humano se inicia

no conhecimento do real e do drama da vida em sociedade, que as disciplinas

escolares formalizam, às vezes precocemente (BOSI, 1992, p. 341).

Para o autor, uma filosofia da educação brasileira não deveria ser elaborada

abstratamente, fora de uma prática da cultura brasileira e de uma crítica da

cultura contemporânea. Ele propõe fazer a descrição e a interpretação da

cultura erudita, de massa, popular e criadora individualizada. Em seguida, ver

como se interpenetram em formas históricas concretas, multiplamente

determinadas pelo contexto econômico, pelas relações de classes, pelo

dinamismo interno dos grupos e, até mesmo, pela sensibilidade individual dos

criadores e dos receptores das várias culturas. Só nessa altura da análise é

que Bosi indica ser o caminho para responder à pergunta-matriz: educar, sim,

mas para qual cultura? E a outra pergunta: estamos sendo educados, em qual

cultura? E, se estamos tratando de um projeto educacional democrático-

socializante a resposta não deixará de ser “pluralista e o mais abrangente

possível”:

Educar para o trabalho junto ao povo, educar para repensar a tradição cultural, educar para criar novos valores de solidariedade; e, no momento atual, mais do que nunca, pôr em prática o ensino do maior mestre da Educação brasileira, Paulo Freire: educar para a liberdade (BOSI, 1992, p. 342).

Nesse sentido, Bosi aponta para um processo educativo, amplo, que privilegie

conhecer o homem e a sociedade. Por meio da alimentação essa proposta é

viável, pois a comida é reveladora de identidade, mas também de consciência

a respeito do que representa a relação homem/natureza e as estruturas das

organizações sociais. Este sujeito consciente, além de possuir visão crítica,

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autonomia e engajamento, tem a capacidade de mobilizar e influenciar

pessoas, tal qual faz a experiência à mesa ou à cozinha, numa demonstração

em que são processos que demandam relacionamento, convívio e ação.

Pensar a cultura como uma continuação do cotidiano produz sentido. É trazer a

cultura para o epicentro das relações, onde a comida está no centro do

aprendizado social, proporcionando interações e interfaces com a sociedade e

o mundo.

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CAPÍTULO 4: Comida é memória

A arte tem seus modos próprios de realizar os fins mais altos da socialização humana, como a

autoconsciência, a comunhão com o outro, a comunhão com a natureza, a busca da

transcendência no coração da imanência.

Alfredo Bosi, historiador.

4.1 O chá de tília e a Madeleine de Proust: comida é memória

O tema do primeiro encontro foi Alimentação e Memória. Fizemos a

apresentação oficial, e formal, da pesquisa e a proposta de serem

participantes, antes de introduzir o assunto. Após a porta se fechar e ficarmos a

sós, a primeira dinâmica teve como objetivo eleger a identidade gastronômica

de cada participante, que seria utilizada durante o semestre. Em roda, jogamos

uma maçã uns para os outros, seguida da pergunta “Que alimento você

seria?”. Todos receberam um crachá para desenhar, ou escrever, o alimento

escolhido e dar uma breve justificativa. Fui a primeira a abrir os trabalhos e

disse que seria um pão porque cada cultura tem o seu próprio tipo, simboliza a

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paz, comunhão, sociabilidade. A palavra companheiro vem do latim cum panis,

cujo significado é aquele com quem dividimos o pão.

A seguir, algumas justificativas que trazem associação com a personalidade e

a memória. Antes de explicar a relação entre comida e memória, na dinâmica

os alunos já revelaram suas preferências baseadas nas lembranças.

Eu escolhi o abacaxi porque ele é doce e azedo, e me identifico assim, mesmo que da maioria das vezes azeda.

Escolhi a banana porque é a fruta que mais lembra a minha infância. É a melhor e a que não pode faltar para mim. Adoro a vitamina de banana que a minha mãe faz para mim.

Eu seria um chocolate porque é um alimento muito saboroso e cura minha tristeza.

Eu gostaria de ser um morango. Às vezes doce, às vezes amargo, mas todos gostam.

Seria uma jabuticaba, além de preta sou doce.

Nesta primeira fase, as frutas e verduras foram eleitas para representá-los,

com exceção do chocolate e da lasanha. Talvez nesse primeiro encontro,

quisessem causar boa impressão. Não fiz nenhuma restrição de alimentos.

Mas, pareceu-lhes de bom tom associar a identidade com hábitos saudáveis,

como se quisessem mostrar sua melhor imagem. Ao longo da pesquisa, nós já

nos referíamos ao outro por esta identificação, como a “jabuticaba”, o “cacau” e

a “morango”.

Para falar de memória, utilizamos o trecho do livro “No caminho de Swann”, de

Marcel Proust, onde o escritor francês revela sua fonte de inspiração: chá de

tília e madeleines. Do escritor Brillat-Savarin, de “A Fisiologia do Gosto”,

citamos um de seus vinte aforismos: “Diga-me o que comes e eu te direi quem

és”. O trecho do filme Ratatouille (2007) ilustrou como uma refeição pode

transportar o comensal às suas memórias. As lembranças do temido crítico de

gastronomia Anton Ego foram acessadas ao experimentar um simples cozido

de legumes. Surpreso ao voltar à infância por degustar uma receita tão

comum, Ego disse que, tanto o prato como quem o preparou, desafiaram sua

percepção sobre gastronomia.

A seguir, fizemos a segunda dinâmica “Comida é Memória”, idealizada para a

ocasião. Exibimos imagens de pratos diversos (lasanha, estrogonofe,

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hambúrguer, bife com batata-frita, caviar, comida japonesa), onde eles

disseram o que vinha à mente, estimulando a memória gustativa. Nessa etapa,

os alunos já estavam mais à vontade para falar do que gostam de comer.

Registramos expressões como “almoço de família”, “suculenta”, “Kinder Ovo”,

“Comida não muito boa”, “Mc Donald’s”, “Burger King”, “trailer do Duda”,

“fome”, “comida da mãe”, “rotina”, “almoço de domingo”. Do caviar, disseram

que lembra as sementes do quiabo e, imediatamente, comentei do caviar de

quiabo, inventado pela chef Roberta Sudbrack. Ou seja, valorizei que se tratava

de uma associação cabível e interessante do ponto de vista da percepção do

alimento, de como pode ser transformado. As imagens abriram o apetite da

turma, que soltou a língua, fazendo associações, baseadas nas próprias

recordações.

Neste exercício, podemos perceber a questão entre tradição e modernidade

que convivem sem conflitos. As culturas da juventude não são unicamente

modernas ou tradicionais; eruditas ou populares; democráticas ou

antidemocráticas; locais ou globais. Elas são híbridas (CANCLINI, 1989;

BHABHA, 1998), sincréticas (CANEVACCI, 1996; 1993); de fronteira (BOSI,

1992; SANTOS, 1993); interculturais (CANCLINI, 2005) (CARRANO, 2009, p.

178). Da mesma forma, a cultura alimentar é constituída pelos hábitos

alimentares em um domínio que a tradição e a inovação têm a mesma

importância. Não diz respeito somente àquilo que tem razões históricas, mas

principalmente, aos hábitos cotidianos, que são compostos pelo que é

tradicional e pelo que se constitui como novos hábitos (BRAGA, 2004, p. 39).

Um outro aspecto, segundo a antropóloga carioca Vivian Braga, se refere ao

que dá sentido às escolhas e aos hábitos alimentares, que são as identidades

sociais. Recorro à Mintz (2001, p.31) quando afirma que o comportamento

relativo à comida liga-se diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa

identidade social. Tais atitudes são aprendidas desde cedo, onde constroem-se

os laços culturais, sociais e psicológicos entre o indivíduo e o grupo ao qual

pertence. É neste percurso que os hábitos alimentares e o gosto são moldados.

O comportamento alimentar revela repetidamente a cultura em que cada um

está inserido.

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Para cada indivíduo representa uma base que liga o mundo das coisas ao mundo das ideias por meio de nossos atos. Assim, é também a base para nos relacionarmos com a realidade. A comida ‘entra’ em cada ser humano. (...) Nossos corpos podem ser considerados o resultado, o produto, de nosso caráter que, por sua vez, é revelado pela maneira como comemos (...). (MINTZ 2001, p.32)

A centralidade da comida na atividade humana, assinala o antropólogo, não se

deve apenas pela frequência, mas também porque cedo se torna a esfera onde

se permite alguma escolha. Depois de agitar os ânimos e os estômagos,

fizemos um convite para usar a “lente alimentação”. O encerramento foi com a

terceira dinâmica “Caminho de Emaús”, também planejada para esta pesquisa.

A atividade é baseada no livro bíblico de Lucas, capítulo 24, do versículo 13 ao

35. Utilizamos este texto sem conotação religiosa. O motivo é que se trata de

uma passagem em que a comida é associada à memória. Como a proposta

deste trabalho é multidisciplinar, acessamos as fontes de saber que pudessem

justificar esse posicionamento.

Na última Ceia, sentado à mesa seus discípulos, Jesus sacramenta a comida e

a bebida como memória ao declarar: “E, tendo dado graças, o partiu (o pão) e

disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em

memória de mim” (I Coríntios 11:24). Após esse jantar, acontece a crucificação

e a ressurreição de Cristo. É no caminho em direção à cidade de Emaús, que

Jesus reaparece a dois de seus discípulos, que não o reconheceram. Somente

quando sentam novamente à mesa, e ele repete o gesto de partir o pão, é que

eles se dão conta de que era o seu Mestre que os acompanhava: “(...) estando

com eles à mesa, tomando o pão, o abençoou, o partiu, e lho deu. Abriram-se

então os olhos, e o conheceram (...)” (Lucas 24. 30 e 31).

Ao repetir a ação de sentar à mesa e partir o pão, as lembranças florescem e

ganham significado, assim aconteceu com o chá de Proust e o cozido de

legumes de Anton Ego. Ao final, repartimos uma deliciosa e fresca broa de

milho, simbolizando que, naquele momento, assumíamos o compromisso de

olharmos a alimentação com outros olhos, principalmente na escola. Desde o

primeiro encontro, senti que a turma CN 3002 aceitou o convite de bom grado.

Retornei para casa vibrando com a oportunidade de experimentar com futuros

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professores as dimensões do comer, a partir das artes e das trocas culturais,

como podemos demonstrar nos seguintes apontamentos:

No projeto, falamos muito sobre como é bom poder relembrar as coisas boas; e a comida também nos faz relembrar coisas do passado. Que tudo isso é algo simbólico (...). (Lasanha)

A comida pode relembrar momentos da infância, relatos de um acontecimento em família e amigos, e também sentimentos esquecidos. Um simples tempero pode trazer memórias, porém o tempero mais importante é o amor. (Batata-frita)

Nutrir não significa apenas satisfazer o desejo de se alimentar, mas

absorver os sentidos transmitidos pelo alimento. (Abacaxi)

Nos debates em sala de aula, uma aluna comentou:

A minha mãe tem muita saudade da terra dela. Porque minha mãe

nasceu em Brasília. De Brasília, ela foi morar na Paraíba; e da

Paraíba, veio pro Rio, não sei porque. Mas ela sente muita saudade

da comida de lá, da Bahia também ela gosta. Quando ela vê gente

igual... Teve uma vez que viu uma moça vendendo tapioca na rua.

Ela quase saiu do carro para poder comprar tapioca (...).

A palavra memória apareceu no título de 9 cadernos de campo dos 16 que

escreveram o nome do projeto na primeira página das anotações. De

“Interseções de Alimentação e Arte”, surgiu “Interseções de Alimentação e

Memória”. As lembranças permearam as descrições e discussões. O francês

Marcel Proust fez arte a partir do único bem que possuía: a memória. Privado

de uma vida real por ser asmático, vivia recluso num quarto, em Paris. Ele

aprendeu a acreditar no poder da arte com o filósofo Henri Bergson, e foi um

dos primeiros a internalizar sua filosofia. Bergson sustentava que a realidade é

entendida melhor subjetivamente, suas verdades acessadas intuitivamente.

(LEHER, 2010)

Com este pensamento, Proust rompeu com a literatura do século XIX, que

privilegiava a matéria no lugar dos pensamentos, por meio da descrição

detalhada de objetos. Para o escritor, ao invés de se aproximar do real, este

tipo de literatura afastava-se. A solução de Proust chegou na forma inesperada

de um bolinho amanteigado de limão em forma de concha. Eis o pedacinho de

matéria que revelava “a estrutura de seu espírito”. (LEHER, 2010)

Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso,

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isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes às vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal.

De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada demais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. (PROUST,1982 p. 31 )

Na obra proustiana, o alimento foi transformado em obra de arte. Como os

pintores, o escritor não desprezou as naturezas mortas, que por ele são

descritas como uma espécie de epicurismo requintado. Segundo Collete

Cosnier10, a gastronomia de Proust ganha igualmente uma significação

sociológica. Se as refeições têm essa importância na série “Em Busca do

Tempo Perdido” é porque são uma atividade essencial da sociedade provincial

ou parisiense que retratou.

O escritor norte-americano especializado em neurociência, Jonah Lehrer,

afirma que Proust teve “muita intuição sobre a estrutura do cérebro” ao

descobrir que, intuitivamente, os sentidos do olfato e do paladar possuem uma

carga de memória singular. Atualmente, diz o autor, a neurociência sabe que

Proust estava certo. Rachel Herz, psicóloga da Universidade de Brown (EUA),

escreve no artigo “Testando a hipótese de Proust” que esses sentidos são

exclusivamente sentimentais. Ambos são os únicos que se conectam

diretamente com o hipocampo – o centro da memória de longo prazo do

cérebro. A visão, o tato e a audição são primeiro processados pelo tálamo – a

fonte da linguagem e a porta de entrada para a consciência. Por isso são bem

menos eficientes em trazer à tona nosso passado. O autor de “Em busca do

tempo perdido” intuiu esta autonomia. Usou o sabor da Madeleine e o aroma

do chá para dar vazão a sua infância (LEHER, 2010).

O resgate da memória alimentar e o valor para compreender as relações com a

comida nos demonstrou ser uma estratégia adequada para estabelecer os

10

Artigo Gastronomia de Proust – edição especial da revista Europe, em comemoração ao centenário de morte do escritor.

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vínculos que temos com a origem, as tradições e os novos hábitos. Podemos

pensar a partir da relação entre comida e memória, como essas lembranças

podem se transformar em matéria consistente para serem trabalhadas numa

proposta educativa que caminha na direção da interdisciplinaridade.

4.2 A Madeleine e o chá da turma 3002

Os poetas, afirma Rubem Alves (2012, p.44), escrevem com intenções

culinárias: “querem transformar o mundo inteiro, os seus fragmentos mais

insignificantes, em comida. Poemas são para serem comidos”. O grande

desejo dos poetas – seu sonho alquímico – é transformar o visível em

comestível (BROWN, 1966, p. 167). A Interseção Alimentação e Poesia foi uma

das mais expressivas em sala de aula, e comentada nos cadernos. A 3002

surpreendeu pela criatividade e entusiasmo. A relação entre comer e escrever

poemas apareceu como um assunto novo, mas se revelou familiar, quando os

estudantes colocaram a “mão na massa”. Após um “sarau culinário” com Carlos

Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Cora Coralina (anexo),

passamos para a oficina de escrita criativa.

A proposta foi escrever um poema utilizando a identidade gastronômica.

Depois, alguns declamaram suas criações. Mesmo com o tempo limitado, eles

iniciaram uma busca pelo chá com Madeleine que ativariam suas recordações.

Com os textos dos 27 alunos, podemos nos deleitar com a riqueza de conteúdo

que expressaram sobre o alimento. O que essa força criativa pode nos ensinar

quando pesamos no lugar da comida na escola? A poética e a estética do

comer afloraram. O cotidiano – maçã, cenoura, morango - vira inspiração, e o

prazer é uma condição irrevogável. Surgem reflexões sobre o alimento que

nutre o corpo e alma; a arte culinária; o sabor; a fome e a abundância.

Separamos quatro textos que apontam para essa diversidade de assuntos

digeridos.

O alimento para mim é essencial. Como quando estou triste, Como quando estou feliz, Como quando estou sozinha. Em todos os momentos, sentimentos me fazem comer.

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Então, o alimento faz parte de todos os momentos de minha vida. Sempre tem uma lembrança. (Limão)

Ode à cenoura

Se cozida, tão sem graça Então, junte ovos e muito leite para alegrar a criançada. Leve ao forno com carinho E terás, após um tempo, Delicioso bolinho.

Já não basta degustar Invente, recrie... Atreva-se a preparar. Não se esqueça da cobertura Que a beleza irá trazer E um prato apetitoso, Você acaba de fazer. (Bolo de cenoura com cobertura de chocolate)

Poema do açaí Em tigela ou cuia Toma-se esse suco roxo Dele se usa tudo Até mesmo o caroço

Negro como a noite Numa chuva de granola Quando vai em minha boca Minha vida se adoça.

Confesso por ti meu gosto Aos teus atrativos me entrego É fruto de mil encantos Sou louca por ti não nego.

Tua cor, ah! Como me atrai Linda, forte e vibrante Vinho vivo, cor alegra Açaí, que bem que você me faz. (Açaí)

A comida, que muitas vezes reclamam, jogam fora, é a mesma que em qualquer estado alimenta um faminto. A água que dá de beber também é a que afoga, ou seja, tudo em excesso faz mal. E talvez seja por isso que muitas pessoas esnobam o alimento, enquanto outras choram por estar sendo afogados pela fome. (Amora)

Com estas oficinas de criativas abrimos o baú culinário das recordações dos

alunos. Percebemos nestas atividades, que estimulam a subjetividade, os

significados do comer aparecem mais nitidamente. Freire (1997, p. 7 e 8)

afirma que o processo de escrever não é um ato mecânico, começa antes

mesmo de sentar à mesa diante de uma folha em branco. Inicia-se naqueles

momentos em que “atuo, pratico ou que sou pura reflexão em torno de

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objetos”. Continua, quando se coloca no papel “da melhor maneira que me

parece os resultados, sempre provisórios, de minhas reflexões”. A reflexão

permanece ao escrever, aprofundando um ponto ou outro que passou

despercebido, quando antes refletia sobre o objeto, “no fundo, sobre a prática”.

O ato de escrever é mais complexo e mais demandante do que o pensar sem

escrever.

Durante a pesquisa de campo, além das oficinas, os cadernos se constituíram

em espaço para este processo de construção de conhecimento sobre a

alimentação. Freire aponta que as relações entre pensar, fazer, escrever, ler,

pensamento, linguagens e realidade são impossíveis de separar, de

dicotomizar, pois há uma solidariedade mútua.

Nos cadernos, o projeto passou a se chamar “Interseções de Alimentação, Arte

e Memória”, a degustação foi o fio condutor para relatar as reflexões sobre os

encontros, sendo que esta era a última parte da aula. Mesmo que não fosse

citada no começo, esteve presente em todas as descrições. Alguns cadernos

trazem o índice, ou o título, pelas degustações servidas (broa de milho, bolo de

abobrinha, bolo de cenoura com calda de chocolate, bolo de maçã, tapioca,

pipoca, legumes assados, suco da luz, maionese, bolo de chocolate com

castanha, e cupcake de frango) ao invés das temáticas (memória, cinema,

poesia, literatura, nutrição, culinária, cultura, sociedade, ciência e artes

plásticas).

Harmonizamos as comidinhas com o conteúdo. Assim, o bolo de abobrinha foi

pensado para o encontro de poesia porque tem ingredientes que é preciso

sensibilidade para perceber; o de maçã está equilibrado com o símbolo da

nutrição, comer corretamente; a pipoca com o filme; e assim por diante. Toda

aula eles pediam a receita e perguntavam com foi feito o tal bolo. Com o livro,

eles terão as receitas e as atividades produzidas em conjunto.

O que eles comeram em sala de aula ficou na memória, não passou

despercebido. Ao contrário, retornou carregado de significados. Quando decidi

colocar a degustação na pesquisa, ponderei que comer faria parte da

investigação para proporcionar uma experiência multissensorial. Mas não

esperava que o retorno fosse tão expressivo, ao ponto de ser lembrado e

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comentado no conjunto de experiências da turma. Na culminância, onde as

turmas apresentam um projeto final no auditório da escola para os colegas,

professores e a direção, a professora da turma sugeriu aos seus alunos relatar

o projeto das Interseções.

Com a ajuda da família, eles preparam os quitutes servidos em aula: tapioca,

bolo de abobrinha, bolo de chocolate e bolo de cenoura. Fizeram cartazes com

o título “O preço de uma alimentação saudável”, utilizando informações de uma

matéria de jornal para falar sobre a alta dos alimentos e o impacto na cesta

básica; outro intitulado “Delícias do meu Brasil”, com fotos sobre pratos

regionais brasileiros; e o terceiro com fotos dos encontros. Distribuíram cartões

com a frase: “a palavra e a comida vêm da mesma substância. Nascem da

mesma mãe: a fome”, de Rubem Alves, e fizeram uma apresentação em power

point com frases relacionadas à alimentação de autores diversos, tais como:

“Um bom prato é como uma obra de arte, com uma vantagem, além de

apreciar podemos saborear” (Nicolau Rosa), “Beber e comer mantém a alma e

o corpo juntos” (Heinrich Böll), e "O gourmet é um comilão erudito" (Millôr

Fernandes). No último slide, escreveram o seguinte:

Queremos agradecer pelo projeto que nos foi proposto pela professora Juliana, que (...) nos trouxe personalidades da culinária e conhecimentos sobre a gastronomia envolvendo a arte, a cultura e a literatura. Instruiu-nos (...), nos proporcionou experiências únicas. Agradecemos também a Direção, toda a equipe pedagógica e a professora por aceitar esse projeto. (Morango)

A representante da turma que apresentou o projeto defendeu:

A dinâmica acelerada da sociedade muda o habito alimentar. Se antes a gente tinha o momento de ceia na família, que era diário, hoje as pessoas comem cada vez mais rápido, com produtos industrializados, uma alimentação que se encaixe nesse estilo de vida. Olhar para essa alimentação enquanto centralidade da nossa sociedade foi um dos objetivos, uma das discussões do projeto. É exatamente para esse olhar, que pensa a alimentação, como uma alimentação cultural, enquanto hábito intimamente ligado às nossas produções, enquanto hábito aprazível é o que a gente buscou refletir

(Bolo de cenoura com calda de chocolate)

No caderno, uma das participantes anotou:

Com este projeto aprendi que devo olhar os alimentos com outro

olhar. A alimentação é um fator muito importante na vida do ser

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humano. Este projeto foi muito importante também para o meu

enriquecimento de conhecimento. Também tivemos acesso a alguns

alimentos, como suco da luz e legumes assados no forno do

refeitório. (Banana I)

A degustação compartilhada nos encontros foi levada para a casa, dividida com

a família, como podemos compartilhar no relato:

A tapioca é gostosa para quem gosta. Eu não gosto, mas foi legal no dia em que a professora Juliana falou sobre a tapioca. A tapioca pode ser recheada com vários sabores. Pode ser doce ou salgada. No dia, eu não comi e até a chef Margarida Nogueira me perguntou o por que. Falei que não gostava, mas ensinei minha mãe outro tipo de recheio para ela fazer para minha família. Foi muito bom. (Cereja)

O conjunto das experiências nos cadernos de campo me fez retomar o convite

que propus no primeiro encontro: olhar a alimentação com outros olhos. Ao

longo do processo, percebemos que esse olhar foi apurado. As declarações

apontam que os encontros de Interseções, possibilitaram a descoberta de um

novo olhar para o cotidiano hábito de alimentar-se. Outras perspectivas sobre o

comer foram apresentadas e apreendidas pelos participantes. O objetivo de

mostrar as dimensões do alimento, por meio da arte e da subjetividade, dos

desafios, da centralidade e da prática culinária, foi alcançado, na medida em

que verificamos os comentários como estes:

Hoje foi o encontro da curiosidade, quanta coisa eu não sabia! Descobri que um legume que eu não gostava fazia parte dos ingredientes de um bolo e que ficou uma delícia. (Cacau)

Eu, quando peguei o bolo, descobri que não tinha gosto de abobrinha, mas um gosto diferente de canela. O bolo era gostoso. Foi bem interessante nesse dia. (Cereja)

Comer, cozinhar e falar de comida são atividades que aproximam e mobilizam

pessoas. A prática culinária e a experiência gastronômica foram reveladoras na

pesquisa. O prazer de degustar, emitir opinião crítica, de ir para a cozinha

demonstraram que os estudos de alimentação prescindem a valorização

dessas funções, que se complementam com o olhar da arte para o cotidiano e

o alimento.

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4.3 Cozinha: espaço de comunicação e mediação de saberes

Notei que a presença do chef de cozinha provocou euforia na turma. Em países

como França, Estados Unidos, Dinamarca e Brasil, os cozinheiros estão se

aproximando da escola. Este profissional tornou-se uma figura pública, goza de

prestígio e credibilidade. Por isso, está presente nas propagandas publicitárias

e é cada vez mais solicitado a participar do universo educativo. Na pesquisa

tivemos a presença das chefs Margarida Nogueira e Ana Pedrosa. Em

Alimentação e Cinema, que contou com a participação de Margarida,

começamos com um panorama sobre esta relação, mostrando como a

linguagem audiovisual, desde a década de 80, tem se apropriado do tema para

compor suas tramas de diferentes estilos: drama, comédia e suspense. Muitas

vezes, a comida torna-se o centro do roteiro, e já se se constituiu em gênero,

com o nome de Cinema Culinário.

Margarida exibiu o filme “Professor da Farinha” (Instituto Maniva). A produção

de farinha artesanal é documentada nos estados do Pará e de Santa Catarina.

Seu Bené, produtor paraense do município de Bragança, fala com orgulho de

sua habilidade para transformar a mandioca numa farinha d’água, que tem o

selo do saber tradicional. Após a sessão, promovemos um debate e a chef

realizou oficina de Tapioca, em sala de aula, com dois fogareiros a gás. As

alunas, neste dia só estavam as alunas, ficaram animadas em preparar

tapiocas com recheios de tomate cereja, requeijão e manjericão; e coco com

mel.

A novidade na combinação surpreendeu os paladares. Quem nunca tinha feito

tapioca aprendeu, inclusive a virar a massa jogando a frigideira para o alto.

Quem já sabia preparar, fez questão de mostrar a habilidade. Nesta interseção,

discutimos a questão da produção local versus global de alimentos; a

importância de fortalecer a economia da agricultura familiar; a valorização dos

sabores regionais; a autoestima do Seu Bené em comparação à falta de

motivação do produtor de farinha polvilhada, em Santa Catarina; e foi

trabalhado o slogan do Slow Food “Bom, limpo e justo”. Os alimentos devem

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ser bom para comer, limpos de agrotóxicos e comercializados a um preço justo.

Nos cadernos, garimpamos este texto:

Nesse documentário observa-se as técnicas de produção agrícola e relato do sentimento de um agricultor, que se emociona ao imaginar que o alimento cultivado por ele enche a mesa de famílias, de várias formas, purê de mandioca, tapioca. (Cereja II)

As participantes começaram a relatar histórias de famílias e tirar dúvidas sobre

o preparo da goma para a tapioca. Em outro caderno temos o seguinte:

Engraçado que a mandioca varia de estado para estado, o modo como se usa. Por exemplo, aqui no Rio a tapioca é feita com recheios. No Maranhão é usada para tomar café da manhã, e não é usada em recheios. (Pêra)

Margarida ressaltou que o ideal é que se coma o alimento da região em que se

vive porque é natural e valoriza a economia local. Uma delas concordou: “tem o

sabor original”. Alguém levantou a questão: “no Pará, açaí é mais consumido

que o feijão. E isso pode causar deficiência de ferro”. A chef respondeu: “a

natureza se encarrega de fazer esse equilíbrio porque eles comem de acordo

com a oferta local”, e acrescentou: “comer açaí aqui (no Rio de Janeiro) não é

o mesmo de lá (Pará). Não podemos transportar o bioma amazônico para cá.

Temos que comer os alimentos de nossa horta, que é em Teresópolis,

Petrópolis e Campo Grande. Quanto mais local a gente comer, o produtor

ganha mais e planta mais”.

No debate, também falamos das frutas da Mata Atlântica que não encontramos

mais. É o caso da amora, mas uma aluna comentou que em Caxias tem. As

outras citadas pela chef ninguém tinha ouvido falar: cambucá (prima da

jabuticaba), uvaia, araçá e grumixama (cereja brasileira). Neste encontro,

ouvimos sobre os quintais da região, onde se cultivam alimentos, consumidos

pela família.

“Por aqui também tem muitas frutas e frutos que não comemos porque dizem

que tem veneno”, comentou uma aluna. Outra disse que descobriu uma

castanha deliciosa dentro da ameixa. E a chef confirmou que o sabor da fruta

está ali. É ótima para colocar na geleia de ameixa, recomendou Margarida.

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Segundo o Manifesto da Educação, elaborado pelo movimento Slow Food

(2010), “a educação é aprender fazendo, pois a experiência direta alimenta a

aprendizagem”; e “alimenta-se do contexto no qual se encontra, valorizando

memória, saberes e culturas locais”.

Volto novamente à leitura de Fischler que, ao tratar as angústias do comedor

contemporâneo, fala sobre a necessidade vital de se identificar o alimento no

sentido próprio e figurado: “se não sabemos o que comemos, é difícil saber não

só o que chegaremos a ser, como também quem somos?” (1995, p.70). Os

alimentos são portadores de sentido, e este sentido nos permite exercer efeitos

simbólicos e reais, individuais e sociais (1995. p.80).

O ato de cozinhar, de provar ingredientes conhecidos de uma nova maneira ou

conhecer novos sabores, estimulou a reflexão no encontro de Alimentação e

Culinária. A convidada foi a chef Ana Pedrosa. Ana falou sobre produção

orgânica de alimentos, a importância de preparar refeições em casa, o excesso

de condimentos e produtos industrializados e a escolha por consumir produtos

da agricultura familiar e alimentação saudável. Neste último assunto, os dados

do questionário apontam para um conhecimento prévio sob o aspecto da

nutrição do corpo, que é ter variedade de nutrientes necessários (carboidratos,

lipídeos e proteínas, além dos micronutrientes).

Esse discurso é recorrente em campanhas publicitárias, matérias jornalísticas e

campanhas educativas. É uma resposta usualmente aceita como correta. Nas

respostas para a pergunta “Como você definiria uma alimentação saudável”

encontramos definições coerentes: “Arroz, feijão, peixe, salada, sucos naturais

e comida japonesa”; “De tudo, com moderação”; “Salada, frango grelhado e

arroz integral”; “Comer bem, de três em três horas, sem muita fritura, e beber

bastante líquido”; “Seria uma alimentação consciente, que privilegia o bem

estar e o prazer”.

Cinquenta e dois por cento consideraram ter uma alimentação quase saudável;

20%, não saudável; 16%, saudável; 12%, bem saudável; 4%, não saudável; e

4% totalmente saudável. O cardápio de final de semana está garantido com

pizza e fast food. Na pergunta sobre preferência de frutas e legumes, eles

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escreveram uma diversidade de nomes, daria para fazer uma feira bem

variada. Entre os pratos preferidos, o strognoff é o predileto em 64% dos

estudantes; e a lasanha, em 36%.

Passando dos dados para a experiência prática, o contato com os legumes

despertou curiosidade e interesse. A aula com a Ana começou na sala e

terminou na cozinha. A chef ensinou a preparar legumes assados e suco da luz

do sol, durante a oficina culinária. Deu dicas para lavar os legumes, descascar,

preparar e consumir. As merendeiras também participaram da aula, atentas a

cada orientação, filmaram no celular e fotografaram. Depois, recebi a

informação da direção que elas reproduziram as receitas e gostaram bastante

da visita da chef.

Hoje, o projeto foi no refeitório, onde fizemos assados de legumes e depois suco de legumes. O que me chamou a atenção foi a preparação do suco, porque não vi a palestrante colocando açúcar. (...) ela respondeu que o doce do açúcar viria da maçã. Achei muito interessante e diferente. (Chocolate)

Esse dia foi muito interessante, pois saímos da sala de aula e fomos para o refeitório. Alguns de nós (como eu) não sabíamos que se poderiam usar legumes para sucos e, principalmente, que era tão gostoso. (Pêra)

Os legumes são praticamente a parte mais importante em um prato. Comer legumes faz muito bem para a saúde de todos. Esses legumes que comemos, foram todos bem preparados e bem crocantes... Ficaram excelentes, com um sabor inigualável, muito bom. O suco também era feito com legumes e algumas verduras, e o mais interessante é que não usamos açúcar e o suco ficou docinho, com um sabor diferente. (Melancia)

Alguns alunos comentaram que prepararam as receitas em casa e ensinaram

para a família, por exemplo, a técnica de assar legumes no forno com sal

grosso e ervas frescas, que dá um aspecto mais atrativo às hortaliças e confere

textura crocante. O fato de usar o refeitório para cozinhar também foi novidade,

assim como a batata baroa e o aipo.

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4.4 Juventude, cultura e escola: ruídos na comunicação

Ao me integrar à escola para pesquisar as possibilidades de entrelaçar as

dimensões do alimento com as disciplinas curriculares e a prática docente, me

deparei com os problemas “de dentro”, os quais ampliaram meu olhar para a

questão do sentido da escolarização. Ouvi de alguns participantes jovens um

certo desapontamento, com reclamações quanto à sobrecarga do ensino

integral em três anos; a falta de perspectiva na profissão de professor em

relação às condições de trabalho e baixos salários; e as dificuldades para

prosseguir os estudos por conta da necessidade de gerar renda para ajudar no

sustento da família. A educação pode ser apontada como o caminho para

aprofundar a visão sobre o comer, entretanto a estrutura está com infiltrações,

rachaduras e uma série de problemas que comprometem duas características:

a de ser uma instituição cultural e produzir sentido, conforme os autores Peréz

(1999) e Carrano (2009).

Diante de um cenário de incerteza e insegurança, como produzir sentido sobre

a alimentação na escola se a instituição tem se mostrado vulnerável na

produção dos princípios do conceito de educação?

Nos encontros, me chamou a atenção o fato de os normalistas estarem a par

das tensões que envolvem a alimentação hoje, como o excesso de consumo

de alimentos industrializados, o uso de agrotóxicos na agricultura e os males

para a saúde; a maneira mecanizada como animais são abatidos; e a

necessidade de valorizar os produtos locais. Talvez a comunicação para este

público deva ser dirigida de forma mais contextualizada, mostrando a

interseção entre a escola e o cenário atual, em que comer protagoniza os

principais conflitos da sociedade capitalista, globalizada e em crise. Temos

diante de nós um exercício de descompartimentar os saberes e pensar de

maneira relacional, articulada, com livre circulação de ideias,

democraticamente, sem hierarquizar os saberes. Nos debates realizados em

sala de aula, registramos as seguintes falas, que demonstram a facilidade de

congregar fatos atuais e refletir sobre a prática cotidiana.

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Sobre a produção de carne:

Uma vez ouvi no rádio que o frango é abatido em 18 dias. Dezoito

dias, gente. Olha a quantidade de hormônio! A gente só come

hormônio. Nada cresce em seu período certo.

Sobre o desperdício de alimentos na escola:

Porque tem gente, que pega o prato e joga fora. Eu acho isso um

absurdo, então eu costumo pegar e colocar pouco. Ou, às vezes,

prova a comida, não gosta e joga fora.

Sobre a produção, consumo e distribuição de alimentos:

A gente pode pensar na questão de prioridade para o sistema porque,

por exemplo, se o país (Brasil) se importasse em produzir mais

alimentos através da plantação natural, como no caso da cana-de-

açúcar, ou através de outro produto, esse alimento produzido em

mais quantidade seria mais acessível, porque provavelmente teria um

custo menor e, então, alcançaria uma quantidade maior de pessoas.

Sobre produção e lucro:

(...) nós vivemos em um país capitalista, onde geralmente, os grandes

empresários é que lucram. Em relação à agricultura familiar, por

exemplo, eu vendo tomate a cinco centavos e o tomate vai sair a R$

5 no mercado. O agricultor vai ganhar 5 centavos e o empresário é

que vai faturar. Ele não plantou, não teve nenhum trabalho. E, muitas

vezes, o próprio agricultor vai até o empresário vender. Quer dizer,

ele não teve nenhuma vantagem com relação àquilo. O que acontece

é que o empresário tem todo o lucro em cima do agricultor que, às

vezes, nem comeu o tomate cultivado por ele para poder vender.

Para articular estas relações, prossigo com o pensamento de Carrano (2009)

ao afirmar que os muros escolares podem servir de fronteiras, ou barreiras,

para temas que se relacionam com os estudantes jovens, sujeitos de direito, de

cultura e, especialmente, de consumo. Esta condição de ampliar ou restringir a

circulação de saberes é um dos traços mais significativos das sociedades

ocidentais.

O poder de formação de sujeitos pela instituição escolar tornou-se

significativamente relativizado pelas inúmeras agências e redes culturais e

educativas de elaboração de subjetividades e sentidos de existência. Dentre

esses, se destacam os meios de comunicação (não apenas os de massa, mas

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também as mídias alternativas e descentralizadas), os mercados de consumo e

os grupos de identidade. Fanfani (apud CARRANO, 2009, p.160) corrobora

com esta compreensão ao afirmar que:

Todas estas transformações na demografia, na morfologia e na cultura das novas gerações põem em crise a oferta de educação escolar. Os sintomas mais evidentes e estridentes são a exclusão e o fracasso escolar, o mal-estar, o conflito e a desordem, a violência e as dificuldades de integração nas instituições e, sobretudo, a ausência de sentido da experiência escolar para uma porção significativa de adolescentes e jovens latino-americanos (em especial, aqueles que proveem de grupos sociais excluídos e subordinados) que têm dificuldades para ingressar, progredir e se desenvolver em instituições que não foram feitas para eles.

À medida que propusemos e estimulamos as discussões, baseadas nos dez

eixos temáticos, os pesquisadores exerceram a reflexividade sobre as relações

entre escola, cultura e sociedade, centrados na alimentação. Com isso,

transitamos por saberes, disciplinas, questões complexas e desafios inerentes

ao sujeito, ao cidadão, ao comensal e ao professor. Em cada visita, com o

fortalecimento da relação pessoal, os estudantes se sentiam mais à vontade

para trazer o seu cotidiano, suas histórias individuais e familiares como

exemplos para compor as interseções. Percebemos que ao discutir

alimentação sob o olhar da arte, a subjetividade aflorou e aproximou os

participantes com a pesquisadora. A atividade foi ganhando sentido para os

jovens e despertou interesse.

Este relacionamento construído durante o processo da pesquisa - com as

trocas entre os pesquisadores (sem excluir a de receitas), a convivência, o

aprendizado em mão dupla, e as percepções sobre a temática exposta em

PPIP -, aumentou o meu entusiasmo pelo assunto, pois vi na prática os efeitos

e resultados que podem ser obtidos, partindo desta visão. O que me levou a

campo aumentou ainda mais a minha fome, diante dos diálogos possíveis, das

interseções cabíveis, do cruzamento de disciplinas, saberes e dimensões. O

pensamento do sociólogo e antropólogo francês Pierre Bourdieu me ajudou a

refletir na construção desta relação. Segundo ele, não se pode perder de vista

a condição de que pesquisar é também uma maneira de se relacionar

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socialmente. E esta interação não exclui o conceito que ele denomina de

“violência simbólica”, capaz de afetar as respostas. Na própria estrutura da

pesquisa estão inscritas todo o tipo de distorções, tal qual acontece fora da

interrogação científica, na vida social.

Ainda que a relação de pesquisa se distinga da maioria das trocas da existência comum, já que tem por fim o mero conhecimento, ela continua, apesar de tudo uma relação social que exerce efeitos (variáveis segundo os diferentes parâmetros que a podem afetar) sobre os resultados obtidos. (BOURDIEU, 2003, p. 694)

Tais distorções devem ser reconhecidas e dominadas, alerta o teórico, na

própria realização de uma prática que pode ser refletida e metódica, sem ser a

aplicação de um método ou a colocação em prática de uma reflexão teórica.

Bourdieu chama atenção para uma reflexividade reflexa, baseada num

“trabalho”, num “olhar” sociológico, que permite perceber e controlar no campo,

na própria condução da entrevista, os efeitos da estrutura social na qual ela se

realiza.

A escrita de uma das participantes em seu caderno de campo indica o que

representou esta relação social na pesquisa:

“Este projeto foi uma ótima forma de nos mostrar uma nova visão sobre os alimentos em geral. Ver quão é importante saber mais sobre eles, suas origens e histórias. É muito bom ter acesso a todas essas informações importantes e interessantes num só projeto. Também é bom descobrir curiosidades. O melhor mesmo é poder descobrir, estudar, discutir, debater, inventar e, principalmente, experimentar tudo que é inventado para melhorar a saúde do ser humano. (Melancia)

Percebo pelos relatos que, da mesma maneira que fui impactada com as

interseções produzidas, eles compartilharam que conseguiram enxergar a

alimentação com outros olhos, um dos objetivos propostos nesta pesquisa aos

alunos futuros professores.

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4.5 cozinhar é uma atividade científica

O food designer Enrique Rentería apresentou a relação entre gastronomia e

ciência. A formação de físico, historiador e cozinheiro lhe dão credenciais para

transitar entre a ciência e a prática culinária. Há mais de 30 anos no Brasil, o

sotaque de estrangeiro ainda é marcante, e a primeira pergunta feita a ele foi:

“de onde você é?”. Rentería é chileno, alto, com cabelos prateados

esvoaçantes e tem uma capacidade de reunir informações históricas e

curiosidades sobre alimentação impressionantes. Sua figura lembra o

estereótipo de um cientista de desenho animado. O comentário de uma das

alunas no caderno de campo confirma a impressão:

“(...) recebemos a visita inusitada, simbolicamente representada em

nossas mentes, como uma figura distante, inquestionável, envolvida

pelos experimentes e pesquisas em laboratórios... recebemos a visita

de um cientista!” (bolo de cenoura com cobertura de chocolate)

Para o encontro de Alimentação e Ciência, levou microscópio, fouet, bowl de

inox, um ovo, azeite e mostarda. A ciência está presente na cozinha de forma

tão automática e natural que não percebemos os fenômenos no dia a dia.

Cozinhar, explica Rentería, é atividade de fundamento científico. Ao observar o

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trabalho de um cozinheiro fica claro que, no mínimo, a ciência da química entra

em jogo. Como explicar que uma maçã cortada escurece ao ficar exposta ao

ar? Ou que alguns produtos tenham em seus rótulos a orientação de

armazená-los longe da luz e da umidade? O motivo é a oxidação, reação

actínica e de hidratação. “Cozinhar é praticar físico-química”, diz o estudioso.

Por que assopramos a sopa quanto está quente? Porque o leite sobe quando

ferve? Com esses questionamentos, a turma ficou com a curiosidade aguçada

e arriscou algumas respostas.

Renteria escolheu o ovo como objeto de estudo com a CN 3002, por ser

familiar, versátil na culinária e relativamente barato. Uma das receitas que leva

o ingrediente é a maionese. No Brasil, é geralmente utilizada no preparo de

saladas com batata e cenoura. É guarnição popular no churrasco. A receita

básica é feita à base de gema e azeite, ou outro tipo de óleo.

A maionese é um bom exemplo de físico-química em ação. A emulsão

permanece sem se separar graças à ação de uma terceira substância

estabilizante chamada de emulsificante. Com apenas uma gema, exatamente o

que o estudioso utilizou, é possível fazer até 24 litros do molho, segundo

experiência relatada pelo cozinheiro e escritor canadense Harold McGee. A

origem da receita também foi esclarecida. Teria surgido em Mahon, capital de

Minorca, uma ilha espanhola do Mediterrâneo. No século XVII este território foi

conquistado pelos franceses. Eles descobriram que os catalães faziam um

molho à base de azeite e ovo e passaram a chamar de mahonnaise.

O experimento da maionese foi acompanhado com atenção e interesse. Afinal,

a turma provaria a maionese ao final do encontro. A dúvida era se uma gema

daria para fazer maionese para quase 30 pessoas. Uma aluna lembrou que a

tia fazia maionese, antes da industrializada chegar ao mercado. Enquanto

Rentería conversava com os alunos sobre os fenômenos da cozinha,

acrescentava à gema, cuidadosamente, azeite de oliva, e com o fouet batia

vigorosamente para incorporar gema e óleo. No caso estudado, o óleo está

disperso na gema, composta por cerca de 70% a 80% de água. “Como é

sabido, água e óleo não se misturam. Mas nesta preparação, elas não só se

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misturam como se mantém unidas, formando um molho homogêneo. Formam

uma emulsão, junção de duas substâncias imiscíveis, ou seja, que não se

misturam”, explicou o cientista.

Conforme prometido, a maionese ganhou volume e enquanto as moléculas de

água e óleo iam se misturando, os participantes puderam observar o fenômeno

no microscópio. A fila logo se formou atrás do equipamento, e o molho de

gema e azeite ganhou status de experimento científico, digna de ser

observada, comentada e explorada com questionamentos. A experiência na

cena contemporânea só tem validade se for fotografada. Ao ver a imagem, o

aluno Jonathan sacou seu samartphone, clicou e ficou ainda mais

impressionado com o resultado, pois a amostra da maionese em processo de

emulsificação parecia também uma lua.

O alvoroço e interesse que a ciência provoca com situações do cotidiano são

fascinantes. De acordo com Freire (1998), num processo educativo é

importante manter a curiosidade epistemológica, uma espécie de alarme para

práticas cotidianas, que se naturalizam e, portanto, não são mais questionadas.

O autor ilustra fatos do dia a dia para fazer ilustrar à automatização da prática

docente. Com a ciência e a cozinha, pudemos perceber como a curiosidade

por um ovo, por exemplo, surge com interrogações pertinentes, relevantes e

gera fascínio. Parece ser uma surpresa não termos pensado sobre como água

e óleo se misturam.

Depois de pronta a maionese, pode-se temperar com alho, sal e especiarias ao

gosto do freguês. É uma receita demorada, que exige atenção do cozinheiro. O

professor explica que é possível fazer o molho com água, no lugar da gema. É

uma alternativa para pessoas alérgicas ao ovo. Também pode ser feita com as

claras, que contém grande porcentagem de água. Esta solução é ideal para

receitas em que a maionese serve apenas como um veículo para ressaltar

outros sabores, pois tem gosto delicado, diferente da gema. Outro ingrediente

que pode ser utilizado é o chocolate porque tem gordura. Derrete-se o

chocolate e, quando estiver numa temperatura em torno de 50º, pode ser

acrescido à clara. Essa versão doce, atraiu voluntários para teste.

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A maionese ajuda a explicar o que é uma emulsão e também permite

generalizar o comportamento de misturas de substâncias gordurosas com

aquosas, da qual o leite é um exemplo natural. Essas parcerias são

abundantes na cozinha. De acordo com Rentería, o passeio em torno do ovo e

suas combinações oleosas mostra claramente o conteúdo científico da culinária

e serve também para despertar o interesse dos alunos pela abordagem

científica e a ciência em geral.

Rentería também instigou os alunos a pensarem sobre a ciência de cozinhar o

ovo. No mesmo caderno de campo citado no início deste tópico, a aluna define

o encontro como “surpreendente e desafiador”. Os questionamentos

despertaram a atenção “acerca de fenômenos físicos diários, naturalmente

curiosos, mas esquecidos com a frequência de suas ocorrências”.

Os chefs de cozinha buscam preparar o prato perfeito, do ponto vista do sabor,

da apresentação e da técnica. E isto não se faz sem ciência. O professor

explica como que o ovo cozido perfeito é aquele que a casca não estoura na

água do cozimento; é fácil de descascar; tem a clara corretamente cozida (não

fica borrachuda); a gema não fica arenosa, farinhenta, não tem a cor verde e

fica no centro. Parece fácil cozinhar um ovo, mas exige alguns cuidados:

1- Quando colocar o ovo na água, mexa continuamente com uma colher de pau

para garantir que a gema fique no centro. Ou cozinhe num suporte apropriado

para ovos.

2- Cozinhe até chegar na temperatura de 69º. O motivo é porque a gema coagula

com 62º; e a clara, a 68º.

3- Quando retirar do calor, esfrie o ovo em água fria.

4- Na hora de descascar, aperte delicadamente. A casca sairá inteira, como se

fosse a casca de uma laranja. Evita sujeira, principalmente se for fazer em

quantidade.

5- Ao cortar, utilize um cortador de ovos. Pode ser utilizado para decorar prato.

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O encontro de ciência deixou um gosto de quero mais imediato. Pediram para o

professor voltar, gostariam de esclarecer outras dúvidas culinárias que o tempo

não permitira. Reunir alimentação e ciência num contexto escolar, nos aponta

para oportunidades de explorar a experiência e o cotidiano, com a finalidade de

recuperar a curiosidade, o interesse em aprender na escola. Cozinhar pareceu

ser uma via encorajadora para estes objetivos, por encharcar de sentido

situações que parecem normais e corriqueiras, sem necessidade de grandes

explicações.

4.6 Alimento para transformar

No encontro de Artes Plásticas, os artistas Lucas Zappa e Diego Russo

apresentaram a trajetória do coletivo de arte Tocayo, pioneiro no Rio de

Janeiro. Formado por jovens artistas, a ideia é tornar a arte acessível em

espaços não formais, como ruas, bares e residências. O movimento criou corpo

e ganhou novos grupos, que buscam a estética e a poética do cotidiano.

Objetos são transformados, reinterpretados, resinificados e reciclados. A

comida é matéria-prima para as criações. Onde se vê um alimento, os artistas

exploram possibilidades de exibi-lo como objeto artístico. Essa mutação tem

como premissa, justificam os artistas, provocar reflexão. Zappa e Russo

mostraram fotografias e vídeos de suas exposições, com intervenções de arte

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no espaço urbano, como o painel de bananas, instalado na lagoa Rodrigo de

Freitas, Zona Sul do Rio de Janeiro. As bananas formaram a imagem de um

imenso coração que trazia a seguinte mensagem: “mais arte na sua mesa”.

Quem passasse pela obra, poderia não só apreciar, como degustar e deixar um

recado sobre alimentação.

Os artistas explicaram que por meio da arte, busca-se a origem do material que

se utiliza e as possibilidades de uso. Interessa conhecer e apreender o seu

percurso na natureza e como pode ser reaproveitado. Com a alimentação, a

ideia segue na mesma direção: conhecer para potencializar os usos e suas

relações com a cultura e a sociedade. Esta visita à turma CN 3002

proporcionou o debate sobre a transformação dos objetos e matérias-primas. A

discussão girou em torno da necessidade de exercitar um olhar aguçado para o

cotidiano. Neste dia, a degustação foi cupcake salgado de frango, conforme

pedido dos alunos à pesquisadora que insistia em preparar só pratos doces.

O vínculo entre alimento e sociedade foi trabalhado em aula com o documento

“A centralidade do Alimento”, lançado pelo Slow Food, em 2012. Assinado pelo

fundador Carlo Petrini, o texto justifica uma nova posição adotada pelo

movimento, fruto da experiência de mais de 23 anos. Oito temas se relacionam,

impulsionando o modo de comer para o epicentro dos desafios. São eles:

fertilidade do solo; salubridade da água; salubridade do ar; defesa da

biodiversidade; paisagem; saúde; conhecimento e memória; e prazer,

sociabilidade, convívio e compartilhamento.

Antes de relacionar os temas que colocam a comida no centro das tensões e

conflitos contemporâneos, o direito ao alimento é posto como condição para

garantir a sobrevivência do planeta, e não só da humanidade.

A fome é, acima de tudo, uma forma de injustiça, de prepotência com os seres humanos que têm os mesmos direitos. E não poderemos nos sentir à ‘vontade’, no nosso direito ao alimento garantido até que o mesmo direito não seja garantido para todos. (SLOW FOOD, 2012)

Além do direito ao alimento, o direito à água é reivindicado por fazer parte das

condições essenciais para a sobrevivência. O Slow Food defende o direito ao

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prazer, mas com este novo documento, a visão é que se devem reconsiderar

as perspectivas dos direitos por não existir prazer baseado no sofrimento e na

escravidão dos outros.

Para esta interseção, a turma foi dividida em oito grupos e cada grupo ficou

com um tema para ler e discutir. Após a discussão, eles apresentaram suas

impressões sobre o texto. Ao final, realizamos uma oficina de telejornalismo

para apresentar um telejornal gastronômico com o nome de Gourmet News. Os

grupos elaboraram uma chamada com o seu assunto, e escolheram um

apresentador para a bancada. Oito âncoras, como se chama no jornalismo o

profissional que apresenta o telejornal, foram escolhidos, com eleição de cover

de Patrícia Poeta e Willian Bonner (Jornal Nacional) e de Glória Maria (Globo

Repórter), ambas programações da TV Globo.

A tarefa era apresentar a escalada do telejornal, Escalada são as manchetes

anunciadas no início de cada edição. Serve para prender a atenção do

telespectador e informar quais serão as principais notícias do dia. Tivemos

pouco tempo para ensaiar, mas o resultado foi proveitoso e divertido. Com a

vinheta do Jornal Nacional de fundo, nossos apresentadores se posicionaram

em fila na frente da sala, diante dos colegas. Um após outro, numa sequência

como na TV, faziam o noticiário só com notícias de alimentação. Seguem

algumas manchetes para ilustrar a oficina:

Pesquisas comprovam que daqui a dois anos, aproximadamente, se

não diminuirmos o uso de agrotóxicos, toda a população terá riscos

de não ter mais solos férteis.

Acaba de ser aprovado no Brasil o projeto de lei que terá incentivos

fiscais para agricultores informais. Com isso, centenas de cidades do

país poderão caminhar rumo à agricultura familiar.

Cada dia que passa a obesidade cresce nos países desenvolvidos. O

mercado oferece mais alimentos que desfavorecem à saúde.

A partir da declaração da centralidade, a associação apresenta quatro ações

estratégicas. Algumas já estão em curso por meio dos projetos implementados

em mais de cem países. A volta à terra; a luta contra os desperdícios; a

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economia local e a democracia participativa; e a educação permanente são os

pilares que nortearão o Slow Food até 2016. O estudo deste documento foi

relevante para compreender as questões que envolvem o alimento, suas

implicações sociais e políticas em nível global. Além de conhecer pessoas que

estão atuando para resistir o atual sistema que prioriza o capital, o consumo e

o desperdício.

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CAPÍTULO 5: Saberes plurais

O saber entra pelos sentidos e não somente pelo intelecto.

Frei Betto, escritor.

5.1 Comer e conhecer

Educação, saber e crítica são elementos inerentes ao processo de construção

do conhecimento e da autonomia. Poderíamos afirmar que há um senso

comum a respeito desses três aspectos. Assim, por exemplo, diz-se que, para

o Brasil prosperar, é preciso investir em educação. Uma boa colocação

profissional necessita do saber. E um cidadão bem formado está apto a exercer

uma visão crítica da sociedade em que vive. Coincidentemente, essas três

palavras têm conotações culinárias. Estudando a etimologia descobrimos que

comer e conhecer estão entrelaçados em sua origem.

Educar vem do latim educare, que originalmente tinha o sentido de criar, nutrir,

amamentar, cuidar. Depois, passou a significar instruir, ensinar. Educare

também tem o sentido de ex-ductere (educere) que significa conduzir para fora,

lançar, “tirar de dentro”, parir, produzir. Tais significados parecem completar-se

demonstrando, por um lado, que para educar seria necessário alimentar, nutrir.

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Aquele que está sendo educado nutre-se de conhecimentos. Por outro, indica

que este processo deve partir de dentro, sendo necessário ter fome e

demonstrá-la (GARCIA, 2001, p. 95 e 96). As definições de M. F K. Fischer e

Rubem Alves sobre palavra e comida corroboram esta explicação, pois

apontam para a fome do conhecer.

Sabor e saber vêm da mesma fonte etimológica: sapere. Sapientia quer dizer

conhecimento saboroso. O sapio é aquele que saboreia. Essa duplicidade de

sentido está esquecida no português. No dicionário Aurélio o verbete saber é

registrado como “ter conhecimento”. Ao meditar sobre saberes e sabores, o

escritor Rubens Alves, conclui que os saberes moram nas palavras, e os

sabores moram além dos verbos: na boca. A escola, de acordo com ele, não

ensina o sabor porque não há formas de avaliá-lo.

Como dizer o gosto de um morango? A falta de clareza e distinção das palavras da sapientia não são um defeito de comunicação que pode ser corrigido. Os sabores são, essencialmente, segredos incomunicáveis. O objeto da sapientia está além das palavras. (ALVES, 2011, p. 59)

A crítica é a delicada arte de discriminar as sutilezas do desejo. A palavra é

usada ad nauseam para definir o objetivo da educação. Crítica deriva do grego

krinein, que quer dizer julgar, separar, distinguir. O degustador é o crítico. Ele

não come. Apenas coloca a comida na boca. Submete-se à prova do corpo. E

ao corpo caberá fazer o julgamento e dar sua sentença. O sabor tem sempre a

palavra final, sob esse aspecto.

Depois de colocadas as etimologias na mesa, sugiro uma associação entre o

comedor biológico e o social, tal como Fischler definiu o onívoro, a partir dos

significados de educação e saber. Educar é nutrir, aspecto fisiológico e vital

para a sobrevivência humana. Saber é descobrir sabores, característica

cultural, modulada pelos hábitos alimentares e tradições culinárias. Nesse

sentido, a transmissão e produção de conhecimentos estão ligadas ao sentido

amplo de alimentar-se, operando natureza e cultura. A primeira vez que visitei

a Roberto Silveira encontrei no mural da sala uma frase que harmoniza com

essas colocações: “o saber entra pelos sentidos e não somente pelo intelecto”,

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de Frei Betto. No momento em que li, tomei logo nota em meu caderninho por

identificar que os sentidos dizem respeito à experiência gustativa. Após refletir

sobre as relações entre educar/nutrir, saber/sabor e crítica/degustação, o

pensamento de Betto é pertinente ao considerar a amplitude que estamos

propondo para a alimentação na escola.

Nada mais cotidiano e trivial do que comer e, por isso mesmo, serve para

pensar, como definiu Lévi-Strauss, e também para educar e saber. A próxima

etapa é promover a crítica, o julgamento, a distinção do que é ruim, mau de se

comer ou deve ser cuspido. Essas ideias expostas apontam que, falar de

alimentação na escola vai além de promover um estilo de vida saudável,

acessível e com segurança. É mais do que saber fazer escolhas “certas” no

prato para reduzir índices de obesidade e o risco de doenças crônicas. Olhar

para a comida como uma lente, um fato social total e um objeto

multidimensional é saber lidar com a própria vida. E este aprendizado confere

autonomia, autocuidado e visão crítica. Considero, assim, que as estratégias

de Educação Alimentar e Nutricional deveriam assumir um caráter mais

abrangente, incitar o olhar para a origem do que significa o comer.

5.2 O professor e a pluralidade de saberes: desafio de ser interdisciplinar

De acordo com as formulações apresentadas neste trabalho, educar está

intrinsecamente ligado ao ato de nutrir conhecimentos, trazer sabor às

experiências e formar uma visão crítica para saber degustar e distinguir. Os

pesquisadores canadenses Maurice Tardif, Claude Lessard e Louise Lahaye

(1991) consideram que a prática docente integra diferentes conhecimentos,

com os quais os professores mantêm diferentes relações. De acordo com os

autores, o professor é antes de tudo alguém que sabe alguma coisa e cuja

função consiste em transmitir esse saber/sabor (grifo meu) a outros. Qual é a

sua função na definição e na seleção dos saberes/sabores (grifo meu)

transmitidos pela instituição escolar? E na produção de saberes pedagógicos?

Esses são alguns questionamentos colocados por Tardif, Lessard e Lahaye

que caminham na direção de uma pluralidade.

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O saber docente é plural, formado pelo amálgama mais ou menos coerente, de

saberes oriundos da formação profissional, dos saberes das disciplinas, dos

currículos e da experiência. Na sala de aula, esses conhecimentos devem ser

articulados habilmente com a finalidade de compor uma dimensão sociocultural

da educação.

O saber profissional é transmitido pelas instituições (escolas normais ou

faculdades de Pedagogia), que também seleciona e difunde os saberes sociais,

oriundos de diversos campos e dispostos na sociedade. Estes últimos

emergem da tradição cultural e dos grupos sociais produtores de saber. No

decorrer da carreira, o professor se apropria dos saberes curriculares, aqueles

que se apresentam sob a forma de programas escolares (objetivos, conteúdo e

métodos), que devem aprender e aplicar. Por fim, somam-se à sua bagagem

pedagógica os saberes da experiência, construídos em seu trabalho cotidiano e

no conhecimento do seu meio. O amálgama é incorporado à vivência individual

e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber fazer e de saber

ser.

Segundo os autores, o professor “padrão” é alguém que deve conhecer sua

matéria, sua disciplina e seu programa, que deve possuir certos conhecimentos

das ciências da educação e da pedagogia, sem deixar de desenvolver um

saber prático, fundado em sua experiência cotidiana com os alunos. Estas

múltiplas articulações requeridas para o exercício docente fazem do professor

um grupo social e profissional cuja existência depende, em grande parte, de

sua capacidade em investir, em integrar e mobilizar tais saberes como

condição para a sua prática.

Os saberes da experiência surgem como núcleo vital do saber docente, a partir

do qual os professores tentam transformar suas relações de exterioridade com

os saberes em relações de interioridade com sua própria prática. Não são

saberes como os demais, ao contrário, são formados de todos os demais,

porém retraduzidos, polidos e submetidos às certezas construídas na prática e

no vivido. Neste núcleo, chamado de vital pelos pesquisadores, podemos

pensar que, olhar para a alimentação por meio de suas dimensões, enriquece

com sentido, sabor e prazer a prática pedagógica.

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Em face das necessidades educativas presentes, a escola continua sendo o

lugar de mediação cultural. A pedagogia, ao viabilizar a educação, constitui-se

como prática cultural intencional de produção e internalização de significados

para, de certa forma, promover o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral

dos indivíduos. As relações entre escola e cultura não podem ser concebidas

como polos independentes, mas sim como universo entrelaçados, como uma

teia tecida no cotidiano e com fios profundamente articulados (MOREIRA E

CANDAU, 2003).

Antes de começar a pesquisa na área de educação, tinha em mente que a

resposta estava na multidisciplinaridade. Mas no primeiro contato com as

disciplinas do mestrado, percebi que não era tão óbvio enxergar o alimento

como uma lente, um fato social total e um objetivo multidimensional. Não

estava posto no ambiente educativo, não era “natural”.

Precisei me esforçar para me colocar no lugar de meu objeto de pesquisa: o

futuro professor. Talvez porque neste estágio, ainda há muito o que ser

moldado. Não saímos prontos de um curso de formação. A experiência

profissional é construída gradativamente. Por isso, esse público me interessa.

Existe a possibilidade de intervir, mobilizar e engajar, antes que se encapsulem

com os vícios e discursos da profissão.

Para poder olhar deste outro lugar, do qual não faço parte, me propus a “ser

professora”, além de pesquisadora por seis meses. Aprendi, na prática, a lidar

com os alunos; prender a atenção, transmitindo conteúdos de maneira

interessante; encantá-los com o assunto proposto; estimular o debate; e levar

esse aprendizado para refletir na futura prática profissional, com base no que já

foi vivenciado no curso e nos estágios. Aprendi a preparar aula, bolar

estratégias de atividades; tratar com questões como o cansaço, o sono durante

a exposição, entre outras situações que me remeteram a minha posição de

aluna.

Lembro que no primeiro dia de aula, ao entrar na escola, senti aquele frio na

barriga, mas ao mesmo tempo uma alegria por estar na Roberto Silveira.

Reparei que o cheiro da escola me atrai, como aquele cheiro irresistível do

refogado de alho e cebola. Sinto-me acolhida neste ambiente e desafiada. Tive

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prazer em frequentar a escola. Lamentei o término das atividades. Tivemos até

despedida, com direito a cartão e lembrancinha. Lembrei que quase fiz normal

e de que brincava de dar aula, quando pequena.

Nesse período, encontrei na professora responsável uma grande parceira e

apoiadora do projeto. A cada encontro, ela me retornava com os comentários

dos alunos, foi prestativa e demonstrou paixão pelo seu ofício. Nos cadernos

de campo, a referência a esta professora foram carinhosas, reconhecendo seu

empenho e profissionalismo.

Essa reflexão me conduz a colocar na discussão a visão de Bourdieu ao tratar

a relação entre pesquisador e pesquisado numa entrevista. Os pressupostos

desta condição se encaixam na minha experiência vivida na escola. O autor

utiliza três ações praticadas (grifo meu) por quem conduz uma entrevista:

situar-se em pensamento no lugar em que o entrevistado ocupa no espaço

social para o necessitar, e a partir deste ponto para o decidir-se de alguma

maneira por ele (no sentido de optar pelas coisas).

Não se trata, alerta o teórico, em executar a “projeção de si em outrem” do qual

falam os fenomenólogos. É dar-se uma compreensão genérica e genética do

que ele é, fundada no domínio (teórico ou prático) das condições sociais das

quais ele é o produto: domínio das condições de existência e dos mecanismos

sociais cujos efeitos são exercidos sobre o conjunto da categoria da qual eles

fazem parte (estudantes e futuros professores) e domínio dos

condicionamentos inseparavelmente psíquicos e sociais associados à sua

posição e a sua trajetória particulares no espaço social. “(...) é preciso ser dito

que compreender e explicar são a mesma coisa”, afirma Bourdieu ( 1997, p.

699, 700).

“Esta compreensão não se reduz a um estado de alma benevolente. Ela é exercida de maneira ao mesmo tempo inteligível, tranquilizadora e atraente de apresentar a entrevista e de conduzi-la, de fazer de tal modo que a interrogação e a própria situação tenham sentido para o pesquisado e também, e sobretudo, na problemática proposta: esta, como as respostas prováveis que ela provoca, será deduzida de uma representação verificada das condições das quais ele (pesquisado, grifo meu) é o produto.(BOURDIEU, 1991, p. 700)

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A conclusão é que o pesquisador não tem qualquer possibilidade de estar

verdadeiramente à altura de seu objeto. Portanto, a posição que ocupei na

disciplina de PPIP foi um exercício inicial para compreender, em parte, o que é

ser professor e quais as expectativas de um futuro docente. Neste cruzamento

de posições e disciplinas, conheci caminhos para exercer a pluralidade de

saberes que o docente deve articular.

Ouvi dos alunos que a interdisciplinaridade não é fácil de ser posta em

circulação. Isto porque demanda informação, conhecimentos e empenho do

professor. Mas existem outras questões em jogo, conforme esta fala captada

em sala de aula:

A questão é que o professor, eu acho que ele teria mais trabalho em

ter que planejar uma aula pensando nesse sentido, entendeu? E

geralmente os professores, eles não fazem isso, então, é muita

teoria, eles falam de interdisciplinaridade, mas eles geralmente não

põem em prática. Dá trabalho. Você tem que inserir mais matérias em

uma só, tem que ver com uma visão ampla. Determinado professor

vai temer porque com a interdisciplinaridade não é só ele que vai

mandar, são outros também, junto com ele. É um medo do novo.

Também pode ter medo de ser criticado pelo trabalho dele, que os

outros começam a se meter. Ou medo de errar. Eu sou ótima em, sei

lá, ciências. Aí, vou e entro em matemática, faço uma besteira

enorme, aí o que acontece? Já estou no campo que não domino...

(Pavê).

Neste debate, compreendi que reunir saberes ao ensinar uma disciplina não é

uma tarefa simples. Entretanto, a alimentação já congrega múltiplos

conhecimentos e, pelas razões já expostas no presente trabalho, talvez partir

deste ponto, considerando as contribuições de Tardif, Lessard e Lahaye,

quando afirmam que os saberes da experiência são um núcleo vital do saber

docente; e retomando os significados de educar, saber e crítica, a

multidimensionalidade do alimento possa surgir como um potencializador das

práticas interdisciplinares. Mostrar interseções entre alimentação e arte

proporcionou uma reflexão sobre quão multidisciplinares somos diariamente ao

lidar com a comida e sua capacidade de reunir assuntos, mobilizar e engajar.

Se experimentarmos essa competência do alimento num processo educativo

que se proponha ser interdisciplinar, essas impossibilidades tornem-se mais

flexíveis de ser transpostas. Principalmente porque os normalistas lidam com

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crianças de 0 a 6 anos de idade, período em que a capacidade de influência é

latente. Retorno ao pensamento de Mintz sobre a infância ao sublinhar que a

comida é a esfera, na qual desde cedo as escolhas são possíveis. É quando se

dá ao aprendizado social, onde o comportamento alimentar começa a ser

moldado e reproduzido.

Em entrevista para esta pesquisa (Duque de Caxias, 20/12/2012), a diretora

geral da escola, Verônica Basílio, acredita na proposta de unir arte, ciência e

alimentação. Para ela, o saber pedagógico deve estar alinhado com a arte. “Os

alunos chegavam à aula cansados devido ao horário integral, mas tinham

vontade de participar porque sabiam que a aula era diferente. E é isso que eles

esperam da escola: aulas atrativas, que saiam daquela prática repetitiva”,

explicou. Verônica comenta ainda sobre a dificuldade de reunir vários

especialistas num mesmo projeto e, por isso, ressalta que a disciplina de PPIP

se constitui num espaço privilegiado, onde os estudantes podem desenvolver

“um potencial a mais”.

A diretora concorda que dá trabalho atuar numa perspectiva interdisciplinar,

mas por razões como alta carga horária de trabalho e os baixos salários.

Porém, ela reforça que o professor da Educação Infantil pode exercitar essa

prática uma vez por semana, ou a cada 15 dias. Deve partir do prático, do

palpável para transmitir o conteúdo embasado na teoria. Hoje, a escola é

conteudista. Os alunos são cobrados pelo Enem, o vestibular e outros índices,

por isso, Verônica conclui que a educação deixou de ter esse foco: de precisar

sentir, tocar para agir e entender qual o sentido da palavra naquele momento.

“Tem que trabalhar trazendo a vida prática do aluno e mostrar como esses

conteúdos se interligam. Dá trabalho, mas é possível. Demanda planejamento”,

sugere.

Na formação desse professor, responsável por transmitir o conjunto de

conteúdo curricular das disciplinas, a diretora destaca que os LPs

proporcionam um ambiente concreto, de vivenciar o fazer pedagógico. A

professora Marilene, em entrevista por e-mail, nos contou que o projeto a fez

refletir sobre como podemos usar questões de alimentação nas práticas do dia

a dia. E também na importância da comida para o corpo e a mente. “Em vários

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momentos de planejamento com os alunos eles próprios aliaram esse projeto

ao seu momento de prática. Levamos aos alunos de escolas municipais e

particulares o assunto da aula e o conhecimento alimentar e nutritivo do

alimento da época. Foi muito bom pra mim e pra eles”, afirma a professora.

5.3 Multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar: caminhos para

descompartimentar os saberes

O alimento é multidimensional e, por isso, permite abordagem multidisciplinar,

prática interdisciplinar e atitude transdisciplinar. Pode ainda reunir especialistas

numa proposta multiprofissional e articular ações em nível interinstitucional.

Essa amplitude de saberes em direções plurais nos leva a identificar o que

cada termo representa no campo da educação. O intuito é compreender os

significados teóricos, e buscarmos caminhos para descompartimentar os

saberes numa perspectiva prática.

Antes de esclarecer os conceitos, voltemos à palavra disciplina, raiz desses

termos. Em linhas gerais, pode ser entendida pelo enfoque imperativo de

submissão a regras ou pela origem da palavra (latim: discere), cujo significado

é aprender. Unidas, tais concepções, comporiam o aprendizado de um

conjunto de saberes submetido a regras e métodos correlatos. Cabendo

ressaltar que a aprendizagem pode prescindir do rigor metodológico

(SOMMERMAN, 2006 apud, SILVA, 2010).

Segundo o epistemólogo suíço Jean Piaget (1973), a multidisciplinaridade

ocorre quando "a solução de um problema torna necessário obter informação

de duas ou mais ciências ou setores do conhecimento sem que as disciplinas

envolvidas no processo sejam elas mesmas modificadas ou enriquecidas". A

multidisciplinaridade foi considerada importante para transpor um ensino

extremamente especializado, concentrado em uma única disciplina.

As várias definições identificadas para interdisciplinaridade pressupõem

interações colaborativas, em diferentes graus, entre disciplinas. A

interdisciplinaridade emerge antagonicamente da especialização do saber

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disciplinar, ou seja, à medida que se faz o aprofundamento de uma disciplina

evidenciam-se suas fronteiras e impossibilidades, promovendo a busca de

elementos em outras disciplinas. Assim, novas teorias pedagógicas,

psicológicas e científicas passaram a se desenvolver no sentido de unificar os

saberes, abrindo o diálogo entre as diferentes áreas. (SOMMERMAN, 2006,

apud SILVA, 2010, p. 29).

A interdisciplinaridade não deve ser entendida como uma camisa de força para

juntar pessoas e nem para acomodar interesses. Quando demandada, deve

ultrapassar a multidisciplinaridade e multiprofissionalidade, mas ao mesmo

tempo em que conta com elas (MINAYO, 2010). Não se trata de teoria ou

método inovador. “É uma estratégia para compreensão, interpretação e

explicação de temas completos” (p.437).

O termo transdisciplinaridade surgiu há três décadas da necessidade de ir além

da interdisciplinaridade, transgredindo as fronteiras disciplinares. Na

atualidade, foi resgatado como a abordagem capaz de responder aos anseios

contemporâneos:

A transdisciplinaridade, como o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento (NICOLESCU, 2005, p. 53).

A atitude transdisciplinar evidencia o caráter complementar das abordagens

disciplinar, multidisciplinar e interdisciplinar. Demanda rigor, abertura e

tolerância, havendo, obrigatoriamente, estreita ligação entre teoria e prática. O

rigor consiste em considerar todos os elementos que compõem uma situação.

A abertura refere-se a admissão do desconhecido, do inesperado e do

imprevisível. A tolerância implica a aceitação das escolhas opostas aos

princípios da transdisciplinaridade (NICOLESCU, 2005).

Ao transpor a atitude transdisciplinar para o campo da educação, vislumbram-

se possibilidades de sua contribuição nas proposições de um novo tipo de

educação. De acordo com o Relatório Delors, documento produzido pela

“Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI” (UNESCO), a

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ênfase está embasada em quatro pilares interrelacionados que contemplam as

dimensões cognitiva, produtiva, relacional e pessoal do sujeito: aprender a

conhecer, aprender a fazer, aprender a viver em conjunto e aprender a ser.

Essa nova perspectiva em educação traz a percepção de que o ser humano

deve ser considerado de modo integral e integrado. Não se pode mais priorizar

a inteligência, ignorando a sensibilidade e o corpo, uma vez que as

interferências entre tais aspectos são mútuas (NICOLESCU, 2005).

Diante desse panorama, concluímos que as concepções modernas de

educação caminham na direção de religar saberes compartimentados, ou

descompartimentá-los, romper paradigmas disciplinares, acessar saberes

científicos, populares a experiência pessoal e familiar, a bagagem cultural e

demais aspectos que proporcionem relações, comunicação, trocas,

intercâmbio. Dessa forma, é viável pensar que a alimentação, frente às tensões

contemporâneas sociais e individuais, pode ser mediadora de uma atitude que

transcende as compreensões demarcadas, institucionalizadas; e vai além,

produz sentido.

5. 4 Ousar a ensinar

No período em que me “passei” por professora encontrei um livro de Paulo

Freire que me trouxe alento. Em “Professora, sim. Tia, não – cartas a quem

ousa ensinar”, o educador fala sobre a figura do ensinante, que é um aprendiz.

É tarefa prazerosa e igualmente exigente, alerta. Exigente de seriedade, de

preparo científico, de preparo físico, emocional, afetivo. Requer um gosto

especial (grifo meu) de querer bem não só aos outros, mas o processo que ela

implica. O autor descreve do que se trata esta ousadia, a qual me submeti para

experimentar na prática quais os significados podem emergir com o tema

alimentação.

É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blamente, que estudamos, aprendemos, ensinamos e conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e com a razão crítica. Jamais com esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional. (1997, p. 8)

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Ensinar e conhecer com o corpo inteiro, em sua totalidade, é também o que

sugere Carrano (2009) ao propor que o corpo esteja no centro do processo

educativo. Esse olhar implica em buscar a compreensão do sujeito da

aprendizagem não apenas como o aluno – objeto de aprendizagens, mas como

um sujeito cultural íntegro – portador de determinada experiência cultural.

A racionalidade de nossas pedagogias quer nos fazer crer que a aprendizagem restringe-se apenas a saberes situados fora do nosso corpo. Deveria haver uma hierarquia sobre os conhecimentos científicos e aquele que ele (o aluno) sabe, sente e representa sobre si mesmo? (2009, p.179)

Ousar a ensinar pode ser uma experiência multissensorial, tal qual a relação

com o alimento. Na condição de ensinante, estive atenta às leituras que

emergiram a partir do conteúdo apresentado e resignificado. Propus ler o

mundo por meio da comida, e a turma respondeu com a produção de oficinas

criativas, debates e o caderno de campo, onde podemos estimular a

articulação entre pensamento, linguagem e realidade. À medida que

mostramos a proximidade entre comida e arte, percebemos que as histórias

familiares foram se desprendendo do fundo da panela e soltando seus aromas.

Por ser tão familiar e conhecido, é possível que o vínculo alimentar da casa

seja valorizado numa perspectiva multidisciplinar com a finalidade de

potencializar o conjunto de experiências vitais do saber docente. Reproduzo a

seguir o trecho de um diálogo sobre os hábitos alimentares da casa realizado

em um dos encontros. A conversa gira em torno dos costumes mais íntimos,

feitos a partir de sobras, da necessidade e dos costumes culturais:

Lá em casa é aquela banana de cozinhar, cuscuz e batata doce.

Lá em casa o que mais tem é batata doce

Na minha casa, é uma chácara, lá tem horta, animais como coelho, galinha e pato. Então, é uma pequena fazenda.

Uma coisa que minha vó faz que é muito bom (...) ela faz um bolo de

feijão, não é bolo (...), parece almôndega. A minha mãe fazia isso

para o meu pai não passar fome porque dá sustância.

Eu faço lá em casa bolinho de arroz

Ninguém nunca fez bolinho de macarrão, não? (...) minha mãe faz

com resto de macarrão, eu não gosto, eu gosto quando é macarrão

com molho. O bolinho é feito sem o molho

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Minha mãe tem uma mania horrível de ficar inventando coisa. A gente tem uma torradeira de pão. Ela fez fritada e botou dentro da torradeira, você acha que não queimou? Queimou a torradeira.

Do caderno de campo, garimpei uma anotação que relaciona uma lista de

pratos preferidos, que demonstram ligação com a família e o sabor da infância:

A vida do ser humano é marcada por bons momentos, por exemplo, os momentos de prazer e alegria como a hora de comer. Minhas comidas preferidas são feijoada, buchada de bode, camarão, sonho, bolo de chocolate, nata, caldo verde, dobradinha e sacolé de abacate. (Batata Frita)

Ao deslocar o olhar para a cultura e o prazer de se alimentar, os saberes

parecem se integrar de forma mais homogênea. Ao comer um bolo, podemos

sentir o gosto de alguns ingredientes e texturas que sobressaem, mas estes

não são descolados do todo. O ovo, a farinha, o açúcar, a manteiga, cada um

com sua especificidade e importância se incorporam numa massa uniforme

para se transformar num bolo. Porém, quando provamos de um bolo, também

estamos provando uma história, afetos, desejos e memórias. Não é possível

falar de comida, sem considerar a centralidade da cultura, como já tratamos

com Stuart Hall. Ao ler uma poesia ou um romance, ao assistir um filme sobre a

temática da alimentação, os conhecimentos produzem sentido e as dimensões

se conectam.

A experiência sensorial é característica da cotidianidade (KOSIK, 1976) e a

capacidade de generalizar é própria da experiência educativa, que opera na

linguagem escolar e desta ao concreto tangível (FREIRE, 1997, p. 21). Uma

das maneiras de realizar a passagem do sensorial para a generalização é

colocar em prática o que Freire chama de “leitura da leitura anterior do mundo”,

ou seja, a leitura do mundo, que precede a leitura da palavra. Ora, a pesquisa

de campo se deu num contexto em que propusemos olhar a alimentação com

outros olhos e considerá-la uma lente para compreender o mundo, as relações

entre escola, cultura e sociedade. Perseguir essa leitura, assim como a

compreensão do objeto estudado, se faz no domínio da cotidianidade, onde

está situada a comida.

Não basta apenas a experiência sensorial, adverte o educador. No aprendizado

ela não pode ser desprezada como inferior pela leitura feita a partir do mundo

abstrato dos conceitos que vai da generalização ao tangível (1997, p. 21).

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Deve-se ultrapassar esta experiência para alcançar a capacidade de

generalizar.

Tomemos como exemplo o produtor de farinha do município de Bragança, no

Pará. No filme “Professor da Farinha”, exibido na interseção Alimentação e

Cinema, os alunos perceberam que, para o senhor Bené, transformar

mandioca em farinha d’água não era apenas uma forma de sobreviver, mas

também de fazer cultura, arte, preservar as tradições culinárias indígenas e

influenciar as futuras gerações. O orgulho de ser produtor de farinha e de

transmitir seu ofício a outros chamou a atenção da CN 3002. Os comentários já

foram expostos neste trabalho. Para trazer este exemplo, me baseio no relato

descrito por Freire (1997, p. 21):

Criar o jarro com o trabalho transformador sobre o barro não era apenas a forma de sobreviver, mas também de fazer cultura, de fazer arte. Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do mundo e dos que-fazeres no mundo, aquela alfabetizada nordestina disse segura e orgulhosa: ‘Faço. Cultura. Faço isto.

Seu Bené não passou pelos círculos de cultura do educador pernambucano,

mas segundo ele, a “inteligência de berço”, o permite ter uma visão sensível e

profunda de sua arte. E essa percepção foi transmitida para os alunos, que

meditaram sobre o valor e o lugar de seu trabalho de agricultor e produtor.

O alimento nos proporciona múltiplas dimensões da cotidianidade, nos situa na

centralidade no aprendizado social, na cultura e na sociedade. Por isso,

introduzo na discussão o conceito de contexto concreto, ou prático, proposto

por Freire.

O autor sugere imaginar a rotina diária: despertar, tomar banho, tomar café da

manhã e sair de casa para o trabalho, por exemplo. Todos os dias executamos

várias atividades, sem questionar porque fazemos. Não nos damos conta e não

indagamos as razões. É isso que caracteriza o mover no mundo concreto da

cotidianidade. Agimos com uma série de saberes que ao terem sido aprendidos

ao longo de nossa sociabilidade viram hábitos automatizados. Por agirmos

dessa maneira, nossa mente não funciona epistemologicamente. Nossa

curiosidade não se “arma” em busca da razão de ser dos fatos (FREIRE, 1997,

p. 69 e 70). O ato de comer exige do comensal uma série de conhecimentos

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que são aplicados e operados sem questionamentos. Dessa maneira, as

relações entre prática e o saber da prática são indicotomizáveis, mas no

contexto concreto, prático, não atuamos o tempo todo epistemologicamente

curiosos. “O ideal na nossa formação permanente está em que nos

convençamos de, e nos preparemos para, o uso mais sistemático de nossa

curiosidade epistemológica" (1997, p. 70).

Pensando a prática aprende-se a pensar e a praticar melhor, afirma o

educador. Sua conclusão é de que é impossível ensinar conteúdo sem saber

como pensam os alunos no seu contexto real, cotidiano. Sem saber o que

sabem independentemente da escola para que ajudemos a saber melhor o que

já sabem, de um lado; e, de outro, para a partir daí, ensinar-lhes o que ainda

não sabem. Não se deve ignorar o contexto social e econômico dos alunos.

Tudo marca, inegavelmente, a maneira cultural de estar sendo desses sujeitos.

Com o contexto concreto, penso que a experiência, o núcleo vital do saber

docente, não pode prescindir dessa curiosidade epistemológica para descobrir

a multidimensionalidade do alimento, e como essa compreensão pode fazer

parte da prática educativa numa proposta que vai além da interdisciplinaridade

e segue num exercício constante de transdisciplinaridade. O relato de uma das

alunas no caderno de campo nos dá uma pista a respeito das possibilidades de

ligar os elos sensoriais e agregar os interesses e saberes da experiência para

enriquecer a prática docente.

Cozinhar é algo mágico, algo encantador. Todos podem cozinhar, basta querer. Desde criança gostava de fazer comida. Todos os dias eu ia para a cozinha com minha mãe ou meu pai para poder aprender mais coisas e poder mexer com o fogão, panelas, legumes, verduras e carnes. (...) Na minha casa, todos aprovam minhas invenções. Às vezes pedem para fazer novamente em outro dia. (...) Eu já pensei em ser nutricionista. Tudo por causa dessa minha paixão pela arte de cozinhar, mas desisti, pois, me identifiquei mais pela área pedagógica. Hoje, já sei o que quero ser... professora. (Melancia)

A boa notícia é que o fazer culinário não precisa ficar restrito à casa. Ele pode

ser incorporado à escolha profissional. Se a decisão é pelo magistério, a

cozinha não está de fora, pelo contrário, como temos analisado neste estudo..

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As respostas dos questionários e o convívio com os alunos nos mostraram uma

proximidade com a culinária. Dos 26 normalistas, 76% disseram que gostam de

cozinhar e elencaram suas especialidades como bolo, massas, strogonoff,

panquecas e escondidinho. Desta forma, identificamos que a relação com o

preparar e compartilhar alimentos está inserido no cotidiano desses

estudantes. Portanto, temos pontes para transportar o saber culinário para o

saber escolar.

A MESA ESTÁ POSTA (CONSIDERAÇÕES FINAIS)

Ao pensar sobre alimentação e escola, estamos olhando para a sociedade e as

relações entre o indivíduo e a sociedade. Com este estudo, observamos que a

arte e a memória podem nos conduzir ao caminho de casa, à experiência

cotidiana com a alimentação, às lembranças da infância. Esse percurso nos

parece uma maneira estimulante de reconectar o homem com suas origens e

sua identidade. Depois da língua é a comida o vínculo mais forte do indivíduo

com sua cultura. Buscar sentido em comer, cozinhar e compartilhar as

refeições se faz urgente num tempo em que o indivíduo se sobrepõe ao

coletivo, e as refeições em casa são compartimentadas e herméticas, assim

como as pedagogias que segmentam o conhecimento.

Com Tardif, Lessard e Lahaye buscamos o valor da experiência, tida como

núcleo vital do saber docente. Em Freire, encontramos o valor da prática, do

corpo e da curiosidade para entrelaçar com as compreensões que emergiram

durante a pesquisa. E entendemos que faz sentido ter o alimento como

mediador entre sociedade, casa e escola. Faz sentido acessar a memória

gustativa para refletir sobre a contemporaneidade. Faz sentido convocar os

poetas, educadores e literários para ampliar a visão e os significados sobre o

comer. A relação entre escrever e cozinhar também se mostrou pertinente para

articular o pensamento e a realidade, principalmente se estamos em ambientes

de formação de professores, com a proposta de estimular o olhar de

pesquisador. O trânsito de informações da escola-casa e casa-escola também

se revelou uma troca produtiva. A presença do chef de cozinha é outro fator a

ser destacado para estabelecer relações entre prazer e saúde, devido seu

entusiasmo contagiante pela comida, e facilidade em operar saberes e culturas.

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Os encontros de Interseções de Alimentação e Arte se constituíram numa

proposta metodológica atraente, que pode ajudar na construção de um

processo educativo, em que os estudos de alimentação sirvam como

mediadores para reunir conhecimentos distintos. O material que gerou o livro

me parece que será uma ferramenta interessante para prosseguir com a

proposta de olhar a comida como uma lente, fato social total e

multidimensional. A ideia é que este livro seja acessível à comunidade escolar

para que possamos ter a oportunidade de testar exaustivamente e aprimorar

esse conteúdo. Existem outras referências, autores e assuntos que podem ser

explorados. A música, por exemplo, é um componente valioso que deve ser

integrado a este propósito. Tenho interesse em garimpar com poetas e

escritores brasileiros suas produções sobre alimentação. Os cadernos de

campo poderiam ser revisitados, com novas estratégias, para dar suporte às

ações promovidas nos encontros. É um instrumento potencial nesse processo.

Faço gosto de ver os usos e reinterpretações deste material produzido em

escolas e manter um processo contínuo de atualização, pois aprendi que

poesia, literatura e cozinha são valiososas para produzir sentido. Trata-se de

uma aposta, baseada nos autores apresentados nesta investigação, em

valorizar os saberes/sabores não disciplinarizados em sinergia com os

científicos e escolares.

O que temos na mesa, então? A perspectiva de uma educação integral, com

Parâmetros Curriculares transversais, matrizes curriculares interdisciplinares,

carga horária integral e ações educativas multiprofissional e intersetorial. Com

este panorama, centrado em propostas integradoras, articuladas,

intersecicionais, interativas e entrelaçadas, identificamos a necessidade de um

elemento mediador, que congregue, reúna, mobilize e engaje. Nesse sentido,

encontramos na alimentação a possibilidade para transpor fronteiras e construir

pontes para que educar seja uma maneira de nutrir; saber, conhecer os

sabores; e que a visão crítica permita degustar e discernir com autonomia.

Essa medição é sugerida num contexto em que a cultura é vista como uma

força de mudança global; o cotidiano é culturalmente transformado e as

identidades pessoais e sociais são formadas. Nestas três etapas do novo

paradigma (HALL, 1997), a relação com a alimentação é transdisciplinar. Por

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isso, a necessidade em pensar o quanto a escola está envolvida com esta

condição, sendo ela mesma mediadora de culturas e cultural.

Espaços de aprendizagem como a disciplina de PPIP e os Laboratórios

Pedagógicos permitem exercitar um olhar para outros saberes, além do

escolar, refletir sobre a prática docente. Consideramos um ambiente fértil e

privilegiado, portanto, para pensar o lugar da comida na escola, questionar,

debater, refletir, intervir e cozinhar. Por isso, se faz necessário investir nestes

lugares, rever atentamente como estão sendo trabalhados nos Projetos

Políticos Pedagógicos, prover estrutura necessária para o pleno funcionamento

em nas unidades escolares, organizar encontros temáticos com os docentes

responsáveis por esta disciplina, oferecer aporte pedagógico para atuar no

campo da interdisciplinaridade; promover

encontros/oficinas/workshops/capacitação centrados na interseção da comida

com arte, relacionando com as tensões e conflitos da contemporaneidade.

Os futuros professores que passam por esta disciplina demandam conhecer o

funcionamento do PNAE e toda a carga de informação que o programa

demanda, a fim de ter subsídios para articular as disciplinas com as questões

alimentares, a partir da realidade da escola. Por isso, experiências como as

que vivenciamos nos motivam a prosseguir. Falar de alimentação, escola,

cultura e sociedade trata-se de um único e grande tema. Deixar de fora essas

relações pertinentes, intrínsecas e relevantes - ou restringir a abordagem a

algumas disciplinas e saberes - caminha na direção oposta de uma visão

integradora, complexa, plural e total do ensino. E, consequentemente, de uma

atitude transdisciplinar, colaborativa, coletiva, democrática e inclusiva. Qual o

lugar da comida na escola? No centro das relações, conteúdos, vivências e

saberes. Qual a sua função? Produzir sentido na cultura e na sociedade. A

mesa está posta. Sirva-se à vontade e bom apetite.

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VILLELA, H.O.S. A primeira Escola Normal no Brasil: uma contribuição à

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ANEXOS

1. QUESTIONÁRIO SOBRE HÁBITOS ALIMENTARES

2. Idade: _________

3. Sexo: ( )Feminino ( ) Masculino

4. Quantas pessoas moram com você? _______________

5. Grau de parentesco: ( ) Pai ( ) Mãe ( ) Irmãos ( ) Outros. Qual o

vínculo?_______________

6. Qual a situação da moradia? ( ) Aluguel ( ) Casa Própria ( ) Outra.

Qual?________________

7. Profissão do pai?______________________________________________

8. Escolaridade do pai: ( )Sem estudo ( )Fundamental incompleto ( )Fundamental

( ) Médio incompleto ( )Médio ( )Superior incompleto ( )Superior

9. Profissão da mãe?_____________________________________________

10. Escolaridade da mãe: ( )Sem estudo ( )Fundamental incompleto ( )Fundamental

( ) Médio incompleto ( )Médio ( )Superior incompleto ( )Superior

11. Está fazendo estágio? ( ) Sim Para qual série? __________ ( )Não

12. Qual o seu prato preferido?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

13. Qual o ingrediente que você mais gosta de comer?

_____________________________________________________________________________

14. Qual a comida que lembra a sua infância?

____________________________________________________________________________

15. Por que este prato lembra a sua infância?

___________________________________________________________________________

16. Diga qual prato/receita você associa a sua mãe ou sua avó e que representa uma comida que

você valoriza e gosta.

17. Em sua opinião, qual a comida ideal para comemorar, uma comida que tenha cara de festa?

__________________________________________________________________________

18. No dia a dia, o que não pode faltar no seu prato?

19. Costuma beliscar entre as refeições? O quê?

___________________________________________________________________________

20. Quais as frutas que você mais gosta?

___________________________________________________________________________

21. E quais as verduras/legumes?

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2. POESIAS

Feijoada à minha moda (Vinícius de Moraes) Amiga Helena Sangirardi Conforme um dia prometi Onde, confesso que esqueci E embora — perdoe — tão tarde

(Melhor do que nunca!) este poeta Segundo manda a boa ética Envia-lhe a receita (poética) De sua feijoada completa.

Em atenção ao adiantado Da hora em que abrimos o olho O feijão deve, já catado Nos esperar, feliz, de molho

___________________________________________________________________________

22. Como você definiria uma alimentação saudável?

___________________________________________________________________________

23. Em relação a essa definição, como classificaria sua alimentação?

( )Totalmente saudável ( )Bem saudável ( )Quase saudável ( )Não Saudável

24. Na escola, qual a refeição que você mais gosta? Quando é dia de.....

____________________________________________________________________________

25. Qual a comida que você tem curiosidade para provar?

____________________________________________________________________________

26. E o que você detesta?__________________________________________________________

27. Você gosta de cozinhar? ( ) Sim ( ) Não

28. Se gosta de colocar a mão na massa, qual a sua especialidade?

___________________________________________________________________________

29. Para quantas pessoas você costuma cozinhar? _____________

30. Costuma comer sozinho ou em família?__________________________________________

31. A televisão é uma companheira na hora da refeição? ( )Sim ( ) Não

32. No final de semana, o que gosta de comer quanto está entre amigos ou com namorado (a)?

_______________________________________________________________________

33. A comida define seu programa de final de semana, ou tem papel secundário?

________________________________________________________________________

34. Não sua opinião, quem é um (a) cozinheiro (a) de mão cheia?

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E a cozinheira, por respeito À nossa mestria na arte Já deve ter tacado peito E preparado e posto à parte

Os elementos componentes De um saboroso refogado Tais: cebolas, tomates, dentes De alho — e o que mais for azado

Tudo picado desde cedo De feição a sempre evitar Qualquer contato mais... vulgar Às nossas nobres mãos de aedo.

Enquanto nós, a dar uns toques No que não nos seja a contento Vigiaremos o cozimento Tomando o nosso uísque on the rocks

Uma vez cozido o feijão (Umas quatro horas, fogo médio) Nós, bocejando o nosso tédio Nos chegaremos ao fogão

E em elegante curvatura: Um pé adiante e o braço às costas Provaremos a rica negrura Por ond devem boiar postas

De carne-seca suculenta Gordos paios, nédio toucinho (Nunca orelhas de bacorinho Que a tornam em excesso opulenta!)

E — atenção! — segredo modesto Mas meu, no tocante à feijoada: Uma língua fresca pelada Posta a cozer com todo o resto.

Feito o quê, retire-se o caroço Bastante, que bem amassado Junta-se ao belo refogado De modo a ter-se um molho grosso

Que vai de volta ao caldeirão No qual o poeta, em bom agouro Deve esparzir folhas de louro Com um gesto clássico e pagão. Inútil dizer que, entrementes Em chama à parte desta liça Devem fritar, todas contentes Lindas rodelas de linguiça

Enquanto ao lado, em fogo brando Dismilinguindo-se de gozo Deve também se estar fritando

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O torresminho delicioso Em cuja gordura, de resto (Melhor gordura nunca houve!) Deve depois frigir a couve Picada, em fogo alegre e presto.

Uma farofa? — tem seus dias... Porém que seja na manteiga! A laranja gelada, em fatias (Seleta ou da Bahia) — e chega

Só na última cozedura Para levar à mesa, deixa-se Cair um pouco da gordura Da lingüiça na iguaria — e mexa-se.

Que prazer mais um corpo pede Após comido um tal feijão? — Evidentemente uma rede E um gato para passar a mão...

Dever cumprido. Nunca é vã A palavra de um poeta...— jamais! Abraça-a, em Brillat-Savarin O seu Vinicius de Moraes Oração do Milho (Cora Coralina)

Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres. Meu grão, perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada. Ponho folhas e haste e se me ajudares Senhor, mesmo planta de acaso, solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos, o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou. Sou a planta primária da lavoura. Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo. E de mim, não se faz o pão alvo, universal. O Justo não me consagrou Pão da Vida, nem lugar me foi dado nos altares. Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre. Sou de origem obscura e de ascendência pobre. Alimento de rústicos e animais do jugo. Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão do eito. Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante. Sou a farinha econômica do proletário. Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha. Sou apenas a fartura generosa e despreocupada do paiol. Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece. Sou o carcarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos. Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, que me fizeste necessária e humilde Sou o Milho.

No restaurante (Carlos Drummond de Andrade)

– Quero lasanha.

Aquele anteprojeto de mulher – quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia – entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.

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O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.

- Meu bem, venha cá.

- Quero lasanha.

- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.

- Não, já escolhi. Lasanha.

Que parada – lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:

- Vou querer lasanha.

- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.

- Gosto, mas quero lasanha.

- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?

- Quero lasanha, papai. Não quero camarão.

- Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?

- Você come camarão e eu como lasanha.

O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:

- Quero uma lasanha.

O pai corrigiu:

- Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.

A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:

- Moço, tem lasanha?

- Perfeitamente, senhorita.

O pai, no contra-ataque:

- O senhor providenciou a fritada?

- Já, sim, doutor.

- De camarões bem grandes?

- Daqueles legais, doutor.

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- Bem, então me vê um chinite, e pra ela… O que é que você quer, meu anjo?

- Uma lasanha.

- Traz um suco de laranja pra ela.

Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.

- Estava uma coisa, heim? – comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. – Sábado que vem, a gente repete… Combinado?

- Agora a lasanha, não é, papai?

- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?

- Eu e você, tá?

- Meu amor, eu…

- Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha. O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultra-jovem.”

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Reflexões sobreescola, cultura e sociedade

Juliana Dias e Alexandre Brasil

INTERSEÇÕES DE ALIMENTAÇÃO E ARTE

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comunicação

© 2013 Juliana Dias e Alexandre Brasil. © 2013 desta edição Malagueta Comunicação. Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19.2.19998. É proibida a reprodução total e parcial, por quaisquer meios sem a expressa anuência da editora.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -Produção editorial Malagueta Comunicação

Coordenação acadêmica Alexandre Brasil

Co-pesquisadores Marilene de Souza Dias - Aline Lima (Limão) - Ângela Cristina dos Santos (Maçã) - Amanda Freitas (Queijo) - Anadrielly de Oliveira (Arroz e feijão) - Beatriz Costa (Cereja) - Débora Silva (Açaí) - Francyslene de Oliveira (Abacaxi) - Hellen Carlos (Morango) - Jhulye Passarelo (Bolo de cenoura com cobertura de chocolate) - Jhonatan dos Anjos (Chocolate) - Joice Amorim (Banana) - Juliana Monteiro (Abacate) - Juliete Batista (Pavê) - Karoline Bento (Uva) - Larissa Angel (Cacau) - Marcela Guedes (Cereja) - Marcelle Mello (Batata frita) - Michelle Barbosa (Lasanha) - Rayane Fontela (Pêra) - Rute de Sousa (Melancia) - Taís Correa (Morango) - Tayná Teixeira (Amora) - Thamires dos Santos (Chocolate) - Thamiris da Silva (Banana) - Thatiana Santos (Jabuticaba) - Vanesa Karoline (Pêra) - Yasmim Moreira (Morango)

Projeto gráfico e diagramação Gregor Carnaval

Revisão de conteúdo Juliana Casemiro, Fernanda Portronieri e Mariana Carnaval

Revisão de texto Aline Leal

Impressão e acabamento Singular Digital

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -Dias, JulianaInterseções de alimentação e arte / Juliana Dias e Alexandre Brasil. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Malagueta Comunicação, 2013.Bibliografia.

ISBN 978-85-66494-00-6

1. Alimentação 2. Alimentação escolar 3. Arte 4. Degustação 5. Gastronomia 6. Identidade cultural 7. Nutrição 8. Oficinas pedagógicas 9. Prática de ensino I. Brasil, Alexandre.II. Título.

13-00173 CDD-370

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -Malagueta ComunicaçãoAvenida Nossa Senhora de Copacabana, 1133, SL 502, Copacabana, Rio de Janeiro,RJ Tel: 2226-4002www.malaguetacomunicacao.com.brwww.malaguetanews.com.brwww.facebook.com/malaguetacomunicacao

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde NUTES Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -Apoio

Reflexões sobre escola, cultura e sociedade

Juliana Dias e Alexandre Brasil

INTERSEÇÕES DE ALIMENTAÇÃO E ARTE

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“ A mente é uma grande cozinha. Pensar é cozinhar: transformar ideias cruas pelo poder do fogo. “Rubem Alves

A série de encontros Interseções de Alimentação e Arte foi desenvolvida como estratégia para aplicar a metodologia Pesquisa Ação Participativa no estudo “O lugar da comida na escola: Interseções com alunos futuros professores”. A investigação foi realizada com a turma CN 3002, que corresponde ao terceiro ano do Ensino Médio Modalidade Curso Normal do Instituto de Educação Governador Roberto Silveira, localizado no município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de Janeiro.

Sob a orientação do sociólogo Alexandre Brasil, foram realizadas dez sessões em que a pesquisadora apresentou conteúdos sobre alimentação a partir das artes. O intuito era mediar discussões com jovens estudantes sobre a centralidade do alimento e sua relação com a cultura, sociedade e escola. Após expor o conjunto de informações, a mediadora provocava o debate e promovia oficinas criativas, associando os principais temas pertinentes a este contexto:

Introdução

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Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA); integração dos saberes disciplinares; valorização dos conhecimentos não científicos; reestruturação dos sistemas de produção, distribuição e consumo de alimentos; e alimentação escolar como espaço pedagógico de sociabilidade. O objetivo foi buscar o conjunto de informações dos alunos para daí formar a interseção dos saberes, matéria-prima da pesquisa. Por meio da subjetividade, do fortalecimento da identidade cultural e da criação de vínculos com o rotineiro hábito de alimentar-se, os normalistas, na condição de co-pesquisadores, questionaram, debateram e produziram material em oficinas de poesias, de literatura, de comunicação e de artes plásticas, propostas durante os encontros. Além de um caderno de campo para relacionar experiências gastronômicas, expressar ideias e escrever receitas. Em cada sessão, a degustação fez parte da experimentação. Não dá para falar de comida sem comer.

Numa parceria pela busca de sentido com a turma e a professora Marilene Dias, e ao mesmo tempo inspirados pela arte, nos afastamos da cotidianeidade alimentar para pensar como é possível a comida produzir sentido no ambiente educativo, na prática docente, no currículo e nas relações entre os membros

da comunidade escolar. O projeto é fruto de “intenções culinárias” e “pensamentos-pimenta”, cozidos em fogo lento por uma jornalista apaixonada pelas entrelinhas do comer. A inspiração veio do pai, nordestino que sabe bem o valor da cultura e do território; da criação de uma empresa de comunicação especializada em gastronomia, a Malagueta Comunicação; da vivência multiprofissional e do aprendizado interdisciplinar no Observatório da Educação do Nutes; e do convívio com os alunos futuros professores. Este material contém um resumo do conteúdo e das atividades propostas em cada Interseção. É um convite para enxergar o mundo com a lente da alimentação.

“Este projeto foi uma ótima forma de nos mostrar uma nova visão sobre os alimentos em geral. Ver quão é importante saber mais sobre eles, suas origens e histórias. É muito bom ter acesso a todas essas informações importantes e interessantes num só projeto. Também é bom descobrir curiosidades. O melhor mesmo é poder descobrir, estudar, discutir, debater, inventar e, principalmente, experimentar tudo que é inventado para melhorar a saúde do ser humano”, Rute Custódio, na aula da turma CN 3002.

Deguste!

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A Deus, pela inspiração; ao meu pai, seu Pacheco, pela paixão; ao meu filho Daniel pela motivação e sentido; ao meu marido Fernando, pelo companheirismo, compreensão e incentivo; ao meu orientador Alexandre Brasil, que me conduziu pelo caminho tracejado da pesquisa acadêmica e me permitiu ousar, inovar e experimentar (como numa cozinha ou num laboratório) os ingredientes desta receita; à minha mãe, Dona Judite, pela assessoria na cozinha e apoio emocional;

às minhas sócias Carolina Amorim e Mariana Moraes pela parceria, colaboração e entusiasmo; ao meu sogro Amaurílio Cordeiro, por ter me ensinado o percurso para Caxias; à minha sogra Ilda Rovari, pela receita do bolo de cenoura; às pesquisadoras Fernanda Dyarsz, Fernanda Portronieri, Juliana Casemiro, Elizabete Ribeiro, Ana Gabriela Souza e Daniela Frozi pelo rico intercâmbio de conhecimentos e aprendizado;

à coordenadora do Ensino Médio Modalidade Curso Normal (RJ) Dilene Rodrigues, por viabilizar a pesquisa no Instituto de Educação Governador Roberto Silveira; à direção da escola: Verônica Bazílio, Sandra Araujo e Sheila Maria; à coordenadora pedagógica Dolores; à coordenadora de turno Rosângela; à professora Marilene Dias;

à turma CN 3002 pela criatividade, disposição e prazer com que abraçou este convite. Conhecê-los e estudar com esses alunos futuros professores sobre comida e escola foi um privilégio; às bolsistas Camila Ferracioli, Isabela Cravo e ao bolsista Guilherme Moreira;

aos convidados Margarida Nogueira, Ana Pedrosa, Juliana Casemiro, Enrique Renteria e ao coletivo de arte Tocayo; ao Observatório da Educação do NUTES; e à direção do NUTES.

Agradecimentos

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Alimentação e Memória

Alimentação e Poesia

Alimentação e Cinema

Alimentação e Literatura

Alimentação e Culinária

Alimentação e Nutrição

Alimentação e Cultura

Alimentação e Sociedade

Alimentação e Ciência

Alimentação e Artes Plásticas

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Encontros

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SE VOCÊ FOSSE UM ALIMENTO, O QUE SERIA?

Essa pergunta deu início à série de encontros. Cada aluno escolheu um alimento, que foi a sua identidade gastronômica ao longo do semestre. Num crachá, eles desenharam o símbolo que os representariam. A cada sessão, a identificação era entregue aos participantes.

“ Diga-me o que comes e te direi quem és. “Brillat-Savarin, gastrônomo francês

Para falar sobre a relação entre comida e memória, utilizamos o cinema e a literatura para justificar que as concepções sobre alimentação podem fluir de múltiplas fontes de conhecimento.

RATATOUILLE (2007)

No filme, as lembranças do temido crítico gastronômico Anton Ego foram acessadas ao experimentar um simples cozido de legumes. Surpreso ao voltar à infância por degustar uma receita tão comum, ele diz que, tanto o prato como quem o preparou, desafiaram sua percepção sobre gastronomia.

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (1913)

O escritor francês Marcel Proust (1871-1922) fez arte a partir do único bem que possuía: a memória. Privado de uma vida real por ser asmático, vivia recluso num quarto, em Paris, tentando relembrar sua história. Para ele, “o olfato e o paladar têm o poder de convocar o passado”. Após comer um bolinho de limão, chamado Madeleine, com uma xícara de chá, recobrou à memória de infância. Depois de saborear esse lanchinho surgiu o romance “Em Busca do Tempo Perdido”. Editado em sete volumes, é considerado um dos principais clássicos da literatura mundial.

“ Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar,

estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção

da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma

preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre,

contingente, mortal. “ (No Caminho de Swann, p.31)

O jornalista Jonan Lehrer, especializado em neurociência, afirma que Proust teve “muita intuição sobre a estrutura do cérebro” ao descobrir que, intuitivamente, que os sentidos do olfato e do paladar possuem uma carga de memória singular. Atualmente, diz o autor, a neurociência sabe que Proust estava certo. Rachel Herz, psicóloga da Universidade de

Primeiro encontro Degustação Broa de milho

1 ALIMENTAÇÃO E MEMÓRIA

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Brown (EUA), escreve no artigo “Testando a hipótese de Proust” que os sentidos do paladar e do olfato são exclusivamente sentimentais. Ambos são os únicos que se conectam diretamente com o hipocampo – o centro da memória de longo prazo do cérebro. A visão, o tato e a audição são primeiro processados pelo tálamo – a fonte da linguagem e a porta de entrada para a consciência. Por isso são bem menos eficientes em trazer à tona nosso passado.

O comensal urbano, tal qual Proust e Ego, estão em busca de um sabor perdido, de um prazer. Experiências multisensoriais, que se conectem com a memória, resgatem histórias, proporcionem bem estar e novas aventuras.

INTERSEÇÃO

O QUE UM PRATO DE COMIDA PODE REVELAR

Exibição de fotos de nove pratos de comida: ovo, hambúrguer, lasanha, estrogonofe, comida japonesa, comida francesa, pizza, frango assado e feijão com arroz. À medida que as imagens surgiam, os alunos revelavam que tipo de lembrança as fotografias ativavam.

O CONVITE

Ao final, formamos uma roda e fizemos um convite: “tirar as escamas dos olhos” para enxergarmos os significados da alimentação na cultura, na escola e na sociedade. Para esta atividade, utilizamos o texto bíblico “No caminho de Emaús”, onde o gesto de partir o pão é o sinal para ativar a memória dos discípulos que participaram da Última Ceia.

“ E aconteceu que, estando com eles à mesa, tomando o pão, o abençoou e partiu-o, e lho deu. Abriram-se-lhes então

os olhos, e o conheceram. “ Lucas 24: 30 ao 31

Em roda, repartimos uma broa de milho fresquíssima para simbolizar o convite à turma CN 3002 de usar a alimentação como uma lente para compreender as tensões e conflitos da contemporaneidade, que giram em torno da produção, distribuição e consumo alimentar.

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Foto

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“ Meus pensamentos começam a teologar. Penso que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas tão

incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de

inventar a culinária. “ Rubem Alves, escritor

Na poesia, encontramos inúmeras referências à comida. Os poetas, que habilmente sabem dar prazer às palavras, compreendem que entre comida e letras há uma aliança. Uma é alimento para o corpo, concreto; a outra, para o espírito, abstrato. Esses cozinheiros de palavras souberam descrever com encantamento os hábitos alimentares de seu tempo, as delícias de sua infância; o prazer de uma refeição; a fome, a fartura e o comportamento à mesa. Nesses registros em forma de versos, podemos descobrir a relação com a alimentação. São homens e mulheres que viram muito além de um prato, enxergaram poesia e beleza. Os poetas, diz Rubem Alves, escrevem com intenções culinárias: “querem transformar o mundo inteiro, os seus fragmentos mais insignificantes, em comida. Poemas são para serem comidos”.

ALIMENTO PARA A ALMA

“ A quem faz pão ou poemaSó se muda o jeito à mão

e não o tema. “Agostinho da Silva, poeta português

“ O fruto palavra de doce mascavo

repuxa viçosono taxo da boca

mel caramelado. “Aníbal Beça, escritor amazonense

Segundo encontro Degustação Bolinho de abobrinha

2 ALIMENTAÇÃO E POESIA

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INTERSEÇÃO

VAMOS COZINHAR PALAVRAS?

Com o alimento escolhido para sua identidade gastronômica, crie uma frase, um verso, ou um poema. Relacione este alimento com sua história. Abaixo, algumas interseções poéticas da turma 3002.

“ O alimento para mim é essencial.Como quando estou triste, Como quando estou feliz,

Como quando estou sozinha.Em todos os momentos,

sentimentos me fazem comer.Então, o alimento faz parte de todos os

momentos de minha vida.Sempre tem uma lembrança. “

Aline Lima, Limão

“ A comida, que muitas vezes reclamam, jogam fora, é a mesma que em qualquer estado

alimenta um faminto. A água que dá de beber também é a que afoga,

Ou seja, tudo em excesso faz mal. E talvez seja por isso

que muitas pessoas esnobam o alimento, enquanto outras choram

por estar sendo afogados pela fome. “Tayná Teixeira, Amora

POEMA DO AÇAÍ

“ Em tigela ou cuiaToma-se esse suco roxo

Dele se usa tudoAté mesmo o caroçoNegro como a noite

Numa chuva de granolaQuando vai em minha boca

Minha vida se adoçaConfesso por ti meu gosto

Aos teus atrativos me entregoÉ fruto de mil encantos

Sou louca por ti, não negoTua cor, ah! Como me atrai

Linda, forte e vibranteVinho vivo, cor alegra

Açaí, que bem que você me faz. “

Débora Silva, Açaí

“ A comida e tudo que a envolve é uma poesia. Ela sente e fala.

Nós só temos que saber ouvi-la e senti-la.

A comida tem suas fases para cada ocasião.

Comida, a verdadeira poesia, tão apaixonante e sublime

que nos surpreendemos com o prazer que é concedido para nós:

maravilhosos temperos, especiarias, sabores e mais sabores.“

Hellen Carlos, Morango

1918

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Bolo de abobrinha, Foto: Mariana Carnaval

ODE À CENOURA

“ Se cozida, tão sem graçaEntão, junte ovos e muito leite

para alegrar a criançada.Leve ao forno com carinho

E terás, após um tempo,Delicioso bolinho.

Já não basta degustarInvente, recrie. . .

Atreva-se a preparar.Não se esqueça da cobertura

Que a beleza irá trazerE um prato apetitoso,

Você acaba de fazer. “

Jhulye Passarelo, Bolo de cenoura com cobertura de chocolate

BOLO DE ABOBRINHA

INGREDIENTES

* 2 ovos

* 2 xícaras de açúcar mascavo

* 1 xícara de óleo (preferível de girassol)

* 1 colher de chá de baunilha

* 2 xícaras de farinha de trigo

* 1 colher de chá de fermento

* 1 colher de chá de sal

* 1 colher de chá de canela

* 2 xícaras de abobrinha picada

* 1 xícara de passas

MODO DE PREPARO

Bater os ovos, o óleo, o açúcar e a baunilha no liquidificador. À parte, misturar a farinha, o sal, o fermento e a canela. Junte tudo e mexa delicadamente até formar uma mistura homogênea. Acrescente a abobrinha e as passas. Assar em forminhas untadas e enfarinhadas. Se preferir, coloque forminhas de papel dentro das forminhas de alumínio e recheie com a massa até à metade. Levar ao forno pré-aquecido em 180o por 10 a 12 minutos. Faça o teste: espete um palito. Se sair seco, o bolo está pronto.

Rende 15 bolinhos, em média. No lugar da abobrinha, pode-se colocar a mesma quantidade de maçãs picadas.

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EM CARTAZ: O COMER!

Desde os anos 80, o cinema nos apresenta a comida em seu cardápio de exibição. A produção audiovisual é uma poderosa linguagem para transmitir a centralidade da alimentação no cotidiano e nos relacionamentos, traduzindo hábitos, modos de vida, culturas e o tempo em que vivemos. A comida como protagonista nas telas cria identificação imediata com o espectador. É objeto de reflexão sobre a prática diária do comer e seu impacto na sociedade contemporânea. Podemos ver o mundo e nos ver nas refeições cinematográficas.

FILMES PARA COMER

Os filmes podem ser de diferentes gêneros (documentário, drama, ficção, romance, humor, animação) e de múltiplas abordagens:

* Os ingredientes e quem os prepara;

* As técnicas, tradições e inovações culinárias;

* Questões simbólicas, culturais;

* As relações sociais e de poder em torno do alimento;

* Cozinhas de vários países (italiana, francesa);

* De cunho político e ideológico sobre a indústria alimentícia,

* o meio ambiente e a sustentabilidade;

* Sobre ambientes: cozinhas, restaurantes, regiões.

O GÊNERO: COMIDA

Esses elementos, códigos narrativos em comum, reinventados a cada trama, nos permitem enxergar um gênero específico: o da comida, que já faz parte da nossa cultura fílmica.

O gênero Comida revela como um tema rotineiro, ligado à necessidade vital do homem, pode interessar à arte como ao nosso apetite por cinema. Não assistimos às refeições apenas, mas às versões e visões de hábitos alimentares com seus atributos sociais e culturais.

FESTIVAIS DO GÊNERO

* Slow Food on Film - Bologna, Itália

* Mostra Culinária no Festival Berlinale - Berlim, Alemanha

* Festival de Cinema e Alimentação - Pirenópolis - Goiás

* Filmes à Mesa - Rio de Janeiro

LIVROS SOBRE CINEMA E GASTRONOMIA

* O Cinema vai à Mesa - Histórias e Receitas (Melhoramentos)

* Jantares de Cinema - Receitas de seus Filmes favoritos (Gutenberg)

* Coquetéis de Hollywood (Senac São Paulo)

NOSSA SESSÃO

O Professor da Farinha | Documentário Brasil/2005 – 8m Instituto Maniva

Terçeiro encontro Convidada Chef Margarida Nogueira, líder do convivium Slow Food-RJ e ativista alimentar Degustação Tapioca

3 ALIMENTAÇÃO E CINEMA

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A produção de farinha artesanal é documentada nos estados do Pará e de Santa Catarina. Seu Bené, produtor paraense do município de Bragança, fala com orgulho de sua habilidade para transformar a mandioca numa farinha d’água, que tem o selo do saber tradicional.

INTERSEÇÃO

DEBATE

Tradição e economia local X agricultura industrial, com Margarida Nogueira. Após a sessão, a chef fez uma tapiocada na sala de aula, com a participação ativa dos alunos.

Os recheios foram de tomate com requeijão e orégano, e coco com mel. A combinação sugerida por Margarida foi mais um atrativo deste encontro, que soltou os aromas das ideias e instigou o paladar a experimentar outros sabores com a tapioca.

TAPIOCA

INGREDIENTES

* Goma de tapioca hidratada (se preferir, pode comprar a goma já hidratada)

Recheio

* 1 copo de requeijão

* Tomate cereja

* Orégano

* Coco ralado fresco

* Mel

MODO DE PREPARO

Aquecer uma frigideira pequena em fogo baixo. Peneirar a goma com uma colher fazendo círculos em cima da frigideira até cobrir o fundo. Quando as bordas começarem a levantar, virar a tapioca com auxílio de espátula, ou erguer a frigideira para cima. Assim, derreterá a goma do outro lado também. Retirar e colocar num prato para rechear. Se for uma tapioca salgada, misturar sal à goma na hora de peneirar. Se for doce, não colocar sal.

Se o recheio for de requeijão, espalhar uma colher de sopa do queijo cremoso, acrescente os tomates cereja, cortados ao meio e salpicar orégano. Fechar como um pastel.

Para o de coco, misturar com mel e espalhar na tapioca. Para umedecer a goma: cobrir a forma de tapioca com água. Aguardar 1 hora para decantar. Escorrer a água e deixar secar por 30 minutos. Escorrer novamente. Repetir o processo até que não haja uma gota de água para escorrer. Para agilizar o processo, depois de escorrer a goma pela segunda vez, cubra a tigela com uma toalha e espalhe farinha de mandioca para absorver a umidade.

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O casamento entre literatura e comida é de longa data, com muitos frutos e ainda está cheio de vigor.

IDADE MÉDIA (SÉCULOS V E XV)

Na literatura medieval a comida representava o sagrado. Os textos literários cultos utilizavam o tema como estratégia para falar de alguma outra coisa, numa relação abstrata. Era o veneno da maçã ou a poção mágica da eterna juventude. Somente nos escritos populares, a comida começa aparecer em sua forma concreta, nas receitas, ou ainda, em gêneros como a sátira.

RENASCIMENTO (FIM DO SÉCULO XIII E MEADOS DO SÉCULO XVII)

Os gêneros culto e popular se misturam, e a comida simboliza essa mudança. A literatura passa a contar a vida dos santos a partir da alimentação: “O Tormento de Santa Cebola” e “O Martírio de São Arenque”. É também uma época na qual a sociedade europeia está ávida de prazeres – não tem televisão, não tem imprensa, não há muitos livros. As pessoas

comem. As rotas comerciais, que na verdade são em busca de alimento, coincidem com a publicação do primeiro livro de cozinha: Le Viander.

A partir do final do século XV, e durante todo o século XVI, a comida aparece nos textos como representação concreta das culturas de diferentes povos. Quatro elementos passam a fazer parte destas narrativas: a alimentação, a antropofagia, os banquetes e a fome.

Já no início do século XVII, surge o romance “Dom Quixote de La Mancha”, do espanhol Miguel de Cervantes. O autor utiliza o tema da alimentação propositalmente. Ele descreve, em detalhes, tudo o que come o personagem Alonso Quijano, que fica louco por ler romances de cavalaria. Já Quixote, o fidalgo pobre, tem suas refeições diárias – de segunda a domingo, registradas, como um cardápio. A ideia era mostrar a vida social como ela é, em seu cotidiano. (LABRIOLA, 2008)

RELATOS DE VIAGENS

Os cronistas, responsáveis por contar aos outros viajantes tudo o que viram nas terras desconhecidas, falavam minunciosamente o que comiam, como se sustentavam e como os habitantes se alimentavam.

O maracujazeiro, por exemplo, era louvado por suas flores, pela sombra fresca e pelos frutos, que abrigavam colonos, viajantes e missionários nas tardes quentes da América Tropical. O padre Francisco Soares relata que havia maracujá em quantidade no Brasil do século XVI. Além de ser apreciado pelo sabor e o cheiro, era utilizado pelas propriedades medicinais. As folhas eram bem pisadas e colocadas em cima de feridas para “tirar o fogo e câncer que tiver”, devido a sua natureza fria. Já o padre Fernão Cardim foi o primeiro a divulgar as virtudes do maracujá: “fruta de que se faz caso”. Ele se regalava em comer “a substância de caroços e o sumo com certa teia que as cobre”, afirmando que “era de bom gosto”. (MOURA HUE, 2008)

Em seus relatos, os cronistas fantasiavam as descobertas, misturando realidade e imaginação. Considerando a mente fértil desses autores, a descrição dos alimentos passou a ser adotada como um registro verdadeiro. Daí, a credibilidade a este gênero literário. Assim, a comida se constituiu ao longo dos séculos um dos elementos fundamentais da narrativa moderna. A literatura é capaz de conjugar outros temas como infância, amor, morte, memória, e tantos outros, de forma específica,

Quarto encontro Degustação Bolo de cenoura com calda de chocolate

4 ALIMENTAÇÃO E LITERATURA

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quando atrelada ao tema comida. Monteiro Lobato, Fernando Pessoa, Rubem Fonseca e Eça de Queiroz são alguns autores que celebram o comer, revelando os significados sociais e culturais da refeição.

INTERSEÇÃO

Nesta interseção, a literatura gastronômica serviu para falar de amor, paciência e perdão para os alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). No momento da refeição à mesa, o convívio aflora o diálogo; e os sabores aquecem os sentimentos.

A ESSÊNCIA DA FELICIDADE

No início de cada final de semana muitos namorados planejam aonde ir e o que comer. Enfim, conseguem arrumar um tempo em meio a tantas atenções que precisam dedicar à família e aos amigos. Conversas vão e conversas vêm, vários assuntos são comentados. De repente, por um deslize da namorada, o rapaz puxa uma discussão:

Diogo: “ Por que você não foi à minha casa na quarta-feira? “Fernanda: “ Eu não sabia que você estava na casa do Diogo. “Diogo: “ Fernanda, você sabe que toda quarta-feira eu chego cedo do trabalho. “Fernanda: “ É, mas você não me ligou. “Diogo: “ Nós somos namorados, e sou eu quem

sempre tenho que te procurar. Somos um casal e a preocupação deve ser mútua. “Fernanda: “ Eu me preocupo com você. “Diogo: “ Não parece. “Fernanda: “ É, mas me preocupo. “Diogo: “ Quer ir embora? “Fernanda: “ Não, eu quero ficar com você. “

Bate um silêncio angustiante, quando o garçom vem ao encontro do casal e pergunta o que desejam comer. Diogo responde que quer comer Paciência e Fernanda diz que não quer nada. Então, o garçom vendo aquela situação, resolve fazer uma cortesia para o casal e conversa com a chef.

Marcos: “ Senhora Roberta Subrack, poderia preparar um daqueles cafés decorados para um casal que

está brigando na mesa 3 e estão sem se falar? “

Roberta: “ Claro, Marcos, mas você terá que preparar, pois estou muito ocupada. “Marcos: “ Muito obrigada, senhora. “Marcos então começa a preparar os cafés e os decora com alguns dizeres. No de Fernanda escreve “paciência é uma virtude”; e no de Diogo, “o amor perdoa”, dentro de um coração. No caminho para o salão, Marcos fica inseguro com medo de não dar muito certo.

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Quando chega à mesa, o garçom entrega os cafés sem dar uma palavra.Diogo, sem entender nada, olha para o rosto de Fernanda. E, como se não a tivesse visto antes, percebe que a moça estava com os cabelos cacheados, o que não era de costume, e a elogia. Fernanda agradece e vira-se para o café junto com o namorado. E, ao lerem os dizeres, o casal não tem coragem de beber sem antes se desculparem um com o outro, e dar um beijo singelo.

Em um esbarrão leve das mãos de Fernanda, o seu café é derramado. Diogo, em um gesto solidário, divide o café de sua caneca com Fernanda e lhe diz:

“ Meu amor por você é capaz de perdoar e também de dividir, querida. E eu te trouxe até aqui para saber se você aceita dividir a sua vida comigo. Fernanda, eu quero saber se você aceita dividir o

café de todas as manhãs. Quer se casar comigo? ““ Claro, eu te amo. “

- responde Fernanda, sem sobra de dúvida, e altamente trêmula. Diogo vai até Marcos e o agradece com dinheiro. Marcos então lhe diz:

“ Meu caro, o dinheiro não paga a felicidade de um casal apaixonado. Retribua-me fazendo

sua esposa feliz todos os dias. E, se algum dia me encontrar em um momento de discórdia, faça o mesmo, pois o alimento é

a essência da felicidade, materializada sobre um prato. “

Autora e narradora - Tayná SantosFernanda - Yasmim Moreira

Diogo - Francyslene LimaRoberta - Juliana Monteiro Marcos - Thatiana Santos

BOLO DE CENOURA INGREDIENTES

Para a massa

* 3 ovos

* 1 ½ xícara de açúcar

* ½ xícara de óleo (de preferência, de Girassol)

* 2 cenouras grandes ou 3 pequenas

* 2 xícaras de farinhas de trigo

* 1 colher de chá de fermento

Para a cobertura

* 3 a 4 colheres de sopa de achocolatado

* 1 xícara de leite

* 1 colher de sopa de manteiga sem sal, ou margarina

* 1 colher de sopa rasa de maisena MODO DE PREPARO

Massa

Bater os ovos, o óleo e a cenoura no liquidificador. À parte, misturar a farinha e o fermento. Juntar tudo e mexer delicadamente até formar uma massa homogênea. Unte com manteiga e farinha de trigo uma forma pequena. Levar ao forno pré-aquecido em 180o por 20 a 25 minutos. Faça o teste: espete um palito. Se sair seco, o bolo está pronto.

Cobertura

Coloque todos os ingredientes numa panela, menos a maisena. À parte, coloque um pouco da mistura num copo e acrescente a maisena. Mexer até dissolver e acrescentar na panela. Levar ao fogo baixo até engrossar. Depois de assado o bolo, espalhe a cobertura.

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“ Comer é um ato agrícola. “

Wendel Berry, ensaísta e agricultor

O QUE É ALIMENTAÇÃO?

Processo biológico e cultural que se traduz na escolha, preparação e consumo de um ou vários alimentos. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008)

O QUE É CULINÁRIA?

A palavra culinária vem do latim culinarius, que deriva da palavra culina, que quer dizer cozinha. Diz respeito à arte de cozinhar e pode ser caracterizada por um conjunto de aromas e sabores peculiares a uma dada cultura. Trata-se de um fenômeno estritamente cultural que diferencia o homem dos demais animais. (GARCIA E CASTRO, 2011)

A chef Ana Pedrosa compartilhou como ingressou profissionalmente na cozinha e sua experiência com a alimentação natural e orgânica. Tudo começou com o empenho em preparar refeições saudáveis para os filhos. Ana faz parte dos Ecochefs, cozinheiros com responsabilidade social e ambiental, que atuam na área de Educação, Cultura e Agricultura do Instituto Maniva. A associação que utiliza a gastronomia brasileira como ferramenta de transformação social.

Ana apresentou os conceitos da associação internacional Slow Food. O alimento deve ser Bom para comer, Limpo de agrotóxicos e comercializado a um preço Justo tanto para o produtor como para o consumidor.

INTERSEÇÃO

AULA DE CULINÁRIA NO REFEITÓRIO DA ESCOLA

A conversa começou na sala de aula e terminou na cozinha. A chef preparou legumes assados e suco da luz, enquanto conversava sobre agricultura familiar na Alimentação Escolar, Alimentação Saudável e escolhas alimentares. Os alunos arriscaram provar vegetais como a batata baroa, beterraba e o alho porró, e a bebida à base de couve e maçã. A experiência culinária e gastronômica agradou e surpreendeu ao mostrar legumes conhecidos, como a cenoura e a batata doce, de um jeito diferente e atrativo, com textura crocante. Os pensamentos também foram cozidos pelo poder do fogo. O paladar é uma conexão com os conceitos apresentados no encontro.

QUANTO MAIS PERTO DA TERRA, MAIS...

* Saúde para o homem e o meio ambiente

* Sabor

* Cultura

* Prazer

* Crescimento para a economia local

* Alimentos frescos na mesa e fixação dos produtores no campo

Quinto encontro Convidada Ana Pedrosa, Ecochef Maniva, conselheira do CONSEA-RJ, co-líder do Slow Food-RJ Degustação Legumes assados e suco da luz

5 ALIMENTAÇÃO E CULINÁRIA

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LEGUMES ASSADOS

INGREDIENTES

* Abobrinha

* Berinjela

* Batata baroa

* Batata doce

* Cenoura

* Cebola

* Alho Porró

* Beterraba

* Batata inglesa

* ou outros legumes de sua preferência

* Azeite ou óleo

* Sal grosso a gosto

MODO DE PREPARO

Aquecer o forno alto (250o) por 20 a 30 minutos (tem que estar bem quente) - lavar todos os legumes. Descascar a batata baroa, batata doce, cenoura e cebola. Os demais podem ser cozidos com a casca. Cortar em rodelas, de aproximadamente 1cm, a abobrinha, berinjela, cenoura , beterraba e as batatas. Colocar numa vasilha, untar com azeite e alecrim desfolhado (ou qualquer outra erva fresca). Deixar por cerca de 30 minutos para sorar (sair a água dos vegetais para que fiquem crocantes por fora e macios por dentro). Partir a cebola ao meio e dividir cada metade em três partes, com corte longitudinal. Fazer cortes na diagonal com o alho porró. Espalhar os legumes em um tabuleiro untado. Colocar as ervas. Polvilhar com sal grosso e regar com azeite. Levar ao forno médio (180o) por 30 a 40 minutos.

Quando estiverem macios, retirar do forno e servir. O ideal é assar primeiro os legumes mais duros (batatas, cenouras, beterraba). Depois, os mais macios (abobrinha, berinjela, alho porró, cebola).

SUCO DA LUZ DO SOL

INGREDIENTES

* Maçã + Legumes + Raízes (cenoura, abóbora, maxixe, pepino, batata doce, nabo, inhame, quiabo, couve-flor, abobrinha, beterraba, etc).

* Folhas

MODO DE PREPARO

Colocar duas maçãs picadas sem sementes no liquidificador. Bater com a ajuda de um pepino como socador para auxiliar a extrair o líquido que mora dentro dos vegetais. Acrescentar folhas verdes comestíveis (couve, chicórea, hortelã), um legume, e a raiz escolhida. Variar as hortaliças sempre que possível, e privilegiando as de produção orgânica. Coar num coador de pano e beber logo em seguida.

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O QUE É GASTRONOMIA?

A gastronomia é um conceito que surgiu no início do século XIX, na França, após a Revolução Francesa. O Livro “A Fisiologia do Gosto”, escrito pelo advogado francês Jean Anthelme Brillat-Savarin, é considerado a “certidão” de nascimento” ao apresentar o assunto relacionado com diversas disciplinas e áreas de conhecimentos. Mas, principalmente, por colocar o prazer como condição indispensável para a alimentação. Com a invenção dos restaurantes, a refeição, restrita aos lares, tornou-se um evento público. A gastronomia passou a ser celebrada como a arte de comer bem e do prazer à mesa. Sabores exóticos, luxo e sofisticação são algumas das características deste modo de comer e enxergar o alimento. Surgem também os personagens que dão vida a esta ideia, como o chef de cozinha, o gourmet e o gastrônomo.

O QUE É NUTRIÇÃO?

A Nutrição é um estado fisiológico vital para a sobrevivência dos

organismos (animais e vegetais). Resulta do consumo e da utilização biológica de energia e nutrientes em nível celular. Nutir significa alimentar-se. Trata-se de uma ciência, que estuda diversos assuntos relacionados à alimentação, como por exemplo, a importância de cada tipo de alimento, e como ter uma alimentação saudável na infância, na adolescência e na vida adulta. O nutricionista é o profissional especializado em Nutrição. Uma de suas tarefas é a de promover a saúde das pessoas.

GASTRONOMIA X NUTRIÇÃO

Hoje, a Gastronomia e a Nutrição ensaiam trabalho em conjunto para promover saúde, sabor e o prazer de se alimentar. Chefs de cozinha e nutricionistas pensam juntos estratégias para fazer da refeição não uma cartilha de regras, mas sim uma aquarela de cores e sensações para serem escolhidas pelos comensais.

INTERFACES COM AS QUESTÕES DE CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL

A disponibilidade de alimentos aumentou no mundo, mas grande parte da população sofre a mais grave violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA): um bilhão de pessoas passam fome. Coloca-se em xeque a atual noção de desenvolvimento e organização da sociedade, que transfere ao mercado a responsabilidade de resolver toda necessidade humana seja ela um supérfluo ou um direito fundamental.

DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA (DHAA)

Fazem parte do atual cenário dos debates sobre alimentação e nutrição três conceitos que ao mesmo tempo representam campo de luta e campo de conhecimento:

Segurança Alimentar e Nutricional

“ ... é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas

Sexto encontro Convidada Juliana Casemiro, nutricionista e doutoranda do NUTES/UFRJ Degustação Bolo de maçã

6 ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO

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Foto: Slow Food

alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis. “ (CONSEA 2003) Direito Humano à Alimentação Adequada

“ ... que realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. “ (COMENTÁRIO GERAL 12)

Soberania Alimentar

“ ... é o direito dos países definirem suas próprias políticas e estratégias de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam a alimentação para toda a população, respeitando as múltiplas características culturais dos povos. “ (Foro Mundial de Soberania Alimentaria, 2001)

O QUE É ALIMENTAÇÃO ADEQUADA E SAUDÁVEL?

Organização das Nações Unidas (ONU)

“ ... o alimento é adequado quando satisfaz às necessidades alimentares, durante todo o ciclo da vida, levando em conta necessidades relacionadas a gênero, ocupação e cultura e que não contenha substâncias adversas acima do estabelecido por legislação, tenha frescor, sabor, aparência, palatabilidade e aceitabilidade cultural. “Ministério da Saúde

“ ... é aquela que atende às necessidades nutricionais e as características de cada fase do curso da vida, é acessível física e financeiramente a todos, saborosa, variada, colorida, harmônica e segura do ponto de vista sanitário e que respeita a cultura alimentar da população. “Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA)

“… realização de um direito humano básico, com a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais dos indivíduos, de acordo com o ciclo de vida e as necessidades alimentares especiais, pautada pelo referencial tradicional local. “Uma alimentação adequada deve ser:

* Variada, colorida e em harmonia

* Ciclo de vida

* Segurança sanitária

* Sabor

* Cultura alimentar

* Acessibilidade física

E O QUE ESSAS INFORMAÇÕES TÊM A VER COM ALIMENTAÇÃO ESCOLAR?

* O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) disposto na Lei nº11.947/2009 garante o direito à alimentação escolar para todos os estudantes da rede pública de educação básica (educação infantil,

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ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos).

* A Lei 11.947/2009 determina que, no mínimo, 30% do valor destinado, por meio do PNAE, aos estados e municípios sejam utilizados na aquisição de alimentos da Agricultura Familiar local. Esta é uma estratégia para aproximar o produtor do consumidor, obter alimentos mais frescos, valorizar a cultura da região, produzir com menos agrotóxicos, favorecer a geração e circulação de renda no local; e cultivar os alimentos considerados básicos.

* O Programa tem por objetivo atender as necessidades nutricionais dos estudantes durante o tempo de permanência na sala de aula, contribuindo para o desenvolvimento e aprendizagem, reduzindo a evasão escolar, promovendo a melhora no rendimento escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis.

* O nutricionista é o Responsável Técnico da Alimentação Escolar.

* A Lei de Alimentação Escolar define e reforça o papel do Conselho de Alimentação Escolar (CAE). Trata-se de um espaço para reunir a comunidade escolar e a sociedade civil com a finalidade de colaborar com o aprimoramento deste serviço.

“ Art. 15. Compete ao Ministério da Educação propor ações educativas que perpassem pelo currículo escolar, abordando o tema alimentação e nutrição e o desenvolvimento de práticas saudáveis de vida, na perspectiva da segurança alimentar e nutricional. “ (FNDE,2011)

INTERSEÇÃO

DEBATE

Comida serve para pensar: que “novas” relações podemos estabelecer com a vida, com a comida, com o alimento e com os nutrientes?

BOLO DE MAÇÃ

INGREDIENTES

* 3 xícaras de farinhas de trigo

* 2 xícaras de açúcar

* 3 ovos (clara e gema separadas)

* 200g de manteiga sem sal, ou margarina

* 1 xícara de leite

* 1 colher de chá de fermento

* 2 xícaras de maçãs picadas com a casca canela para polvilhar

MODO DE PREPARO

Bater a manteiga com o açúcar até formar uma mistura homogênea e fofa. Acrescentar as gemas e bater novamente. Acrescentar o leite, alternando com a farinha de trigo peneirada. Acrescentar o fermento e mexer delicadamente. Bater rapidamente as claras em neve e incorporar a massa, com movimentos leves para que o bolo fique fofo. Coloque as maçãs enfarinhadas para afundarem no bolo. Colocar numa assadeira grande untada com farinha e manteiga. Polvilhar com canela.

Levar ao forno pré-aquecido em 180o por 30 minutos, aproximadamente. Faça o teste: espete um palito. Se sair seco, o bolo está pronto.

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O QUE É CULTURA?

“ É todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade. “ (TYLOR, 1871)

O QUE É CULTURA ALIMENTAR?

“ Cultura alimentar é constituída pelos hábitos alimentares onde tradição e modernidade têm a mesma importância. A cultura alimentar não diz respeito apenas àquilo que tem raízes históricas, mas, principalmente, aos nossos hábitos cotidianos, que são compostos pelo que é tradicional e pelo que se constitui como novos hábitos. As práticas alimentares revelam a cultura em que cada um está inserido, visto que comidas são associadas a povos em particular. “ (BRAGA, 2004)

COMIDA, SEMPRE COMIDA

Neste encontro, utilizamos a linguagem do cinema para falar de cultura alimentar. O filme escolhido retrata o dilema dos indianos que convivem com tradição e modernidade. Na cidade de Hyderabad, capital do estado de Andhra Pradesh, o embelezamento da cidade e a industrialização empurram para a periferia os tradicionais vendedores de comida de rua, que resistem a esta imposição. Os indianos passam a frequentar shoppings centers; restaurantes fast food; e supermercados abastecidos com marcas de comida industrializada e semi pronta, encontradas em qualquer lugar do mundo. A relação com o global e o local contrapõe gerações. O estilo de vida moderno, com a mulher no mercado de trabalho, também modifica as relações e os hábitos à mesa.

INTERSEÇÃO

DEBATE

Conexão Índia-Brasil - a questão da cultura alimentar na Índia pode ser reconhecida em qualquer outra região, como o Rio de Janeiro. Por isso, o filme ajuda a pensar sobre a identidade cultural num mundo global.

Sétimo encontro Exibição do documentário Comida, sempre comida | Alemanha-Índia, 2010/44m Degustação Pipoca

7 ALIMENTAÇÃO E CULTURA

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O Slow Food lançou o documento Centralidade do Alimento, durante o congresso internacional realizado em Turim, na Itália, em 2012.

Assinado pelo fundador Carlo Petrini, a carta justifica uma nova posição adotada pela associação internacional,que surgiu na Itália há 23 anos. É fruto dessa experiência, atualizada e aprimorada diante da crise do sistema de produção, distribuição e consumo de alimentos. Antes de relacionar os temas que colocam a comida no centro das tensões e conflitos contemporâneos, o direito ao alimento é posto como condição para garantir a sobrevivência do planeta, e não só da humanidade. De acordo com o texto, essa afirmação terá desdobramentos significativos na atuação do movimento.

Além do direito ao alimento, o direito à água é reivindicado por fazer parte das condições essenciais para a vida. A partir deste documento, o Slow Food abre uma temporada de luta declarada contra a fome e contra a escravidão que a escassez impõe. A fome é, acima de tudo, uma forma de injustiça, de prepotência com os seres humanos que têm os mesmos direitos que nós. E não poderemos nos sentir à ‘vontade’, no nosso direito ao alimento garantido até que o mesmo direito não seja garantido para todos.

O Slow Food defende o direito ao prazer, mas com este novo documento, a visão é que se deve reconsiderar as perspectivas dos direitos por não existir prazer baseado no sofrimento e na escravidão dos outros.

Na Centralidade do Alimento, oito temas se relacionam, impulsionando o modo de comer para o epicentro dos desafios das nações. São eles: fertilidade do solo; salubridade da água; salubridade do ar; defesa da biodiversidade; paisagem; saúde; conhecimento e memória; e prazer, sociabilidade, convívio e compartilhamento. A partir da declaração da centralidade, a associação apresenta quatro ações estratégicas. Algumas já estão em curso por meio dos projetos implementados em mais de cem países. A volta à terra; a luta contra os desperdícios; a economia local e a democracia participativa; e a educação permanente são os pilares que nortearão o Slow Food até 2016.

PROGRESSO TÉCNICO E DINHEIRO

O Alimento não é um direito somente de quem tem dinheiro para comprá-lo. A agricultura industrial e a indústria alimentar, voltadas para o mercado, defenderam uma visão das sociedades baseada no sonho da independência das estações, do tempo e das mudanças. A segurança alimentar não é garantida pelos sistemas agrícolas que produzem poucos produtos em grandes extensões de terra, sem considerar os cultivos locais e com o objetivo de alcançar as melhores posições nos mercados internacionais. A África é o continente que paga o preço mais alto em termos de direito ao alimento.

Segurança alimentar e o direito ao alimento = pequenas economias locais, diversidade cultural e bem estar físico e psíquico dos homens.

INTERSEÇÃO

Divididos em oito grupos, o conteúdo dos temas foi distribuído. Após a leitura, os participantes de cada grupo debateram e selecionaram os trechos que julgaram ser mais interessantes para apresentar à turma.

Oitavo encontro Degustação Bolinho de chocolate com castanha de caju

8 ALIMENTAÇÃO E SOCIEDADE

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Durante a apresentação, os alunos fizeram comentários, relacionando conhecimento e experiência.

EXTRA, EXTRA

A partir dos oito temas da centralidade do alimento, elaborem e apresentem a escalada de um telejornal só com notícias sobre alimentação, ligadas aos assuntos discutidos. Escalada são as manchetes do telejornal, sempre no início de cada edição. Serve para prender a atenção do telespectador e informar quais serão as principais notícias do dia.

“ A dinâmica acelerada da sociedade muda o hábito alimentar. Se antes a gente tinha o momento de ceia na família, que era diário, hoje as pessoas comem cada vez mais rápido, com produtos industrializados, uma alimentação que se encaixe nesse estilo de vida. Olhar para essa alimentação enquanto centralidade da nossa sociedade foi um dos objetivos, uma das discussões do projeto. É exatamente para esse olhar, que pensa a alimentação como uma alimentação cultural, enquanto hábito intimamente ligado às nossas produções, enquanto hábito aprazível que a gente buscou refletir. “

Jhulye Passarelo, representando a turma CN 3002 na apresentação do projeto Interseções de Alimentação e Arte para as turmas de 3º e 4º ano.

BOLO DE CHOCOLATE COM CASTANHA DE CAJU

INGREDIENTES

* 300g de açúcar

* 240g de manteiga sem sal

* 200g de chocolate meio amargo

* 300g de farinha de trigo

* 40g de cacau em pó

* 10g (2 colheres de chá) de fermento químico

* 6 ovos

* 1 pitada de sal

* Suco de uma laranja e raspas

* 100g de castanha de caju para decorar

MODO DE PREPARO

Cortar o chocolate em pedaços pequenos. Levar ao banho-maria para derreter. Acrescentar a manteiga e misturar levemente. Reservar. Peneirar a farinha de trigo com o fermento e o cacau numa vasilha e separar. Bater as claras em neve com o sal. Acrescentar o açúcar e as gemas. Bater por 1 minuto, aproximadamente. Adicionar o chocolate derretido, o suco e as raspas da laranja. Misturar levemente. Adicionar e misturar a farinha. Colocar em forminhas untadas com manteiga e farinha ou colocar forminhas de papel sobre as de alumínio. Colocar a castanha de caju. Levar ao forno pré-aquecido em 180o por 12 minutos, em média. Rende 32 bolinhos.

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Maionese no microscópio, Foto: Jhonatan Anjos

A ciência está presente na cozinha de forma tão automática e natural que não percebemos os fenômenos no dia a dia. Ao cozinhar, explica Rentería, estamos numa atividade de fundamento científico. Ao observar o trabalho de um cozinheiro fica claro que, no mínimo, a ciência da química entra em jogo. Como explicar que uma maçã cortada escurece ao ficar exposta ao ar, ou que alguns produtos tenham em seus rótulos a orientação de armazená-los longe da luz e da umidade? O motivo é a oxidação, reação actínica e de hidratação. “Cozinhar é praticar físico-química”, diz o cientista.

Para ilustrar esta afirmação, Renteria escolheu o ovo como objeto de estudo, por ser familiar, versátil na culinária e relativamente barato. Uma das receitas que leva o ingrediente é a maionese. No Brasil, é geralmente utilizada no preparo de saladas com batata e cenoura. É guarnição popular no churrasco. A receita básica é feita à base de gema e azeite, ou outro tipo de óleo. A maionese é uma dispersão, nome que se dá à mistura íntima de duas substâncias, quando uma delas está dispersa na outra. No caso estudado, o óleo está disperso na água da gema, composta por cerca de 70% a 80% de água. Como é sabido, a água e óleo não se misturam. Mas nesta preparação, elas não só se misturam como se mantém unidas, formando um molho homogêneo. Formam uma emulsão, junção de duas substâncias imiscíveis, ou seja, que não se misturam.

PORQUE A EMULSÃO DURA, TORNA-SE ESTÁVEL?

A maionese é um bom exemplo de físico-química em ação. A emulsão permanece sem se separar graças à ação de uma terceira substância estabilizante chamada de emulsificante. As moléculas do emulsificante têm uma parte que repulsa o óleo e outra que é atraída por ele. Essas moléculas encontram uma gota de óleo e o rodeiam, colando-se a ela com a parte que gosta de óleo; e formam uma camada com as outras pontas que repelem o óleo. Por essa razão, duas gotas de óleo na emulsão não podem juntar-se e acabam ficando suspensas no interior da massa geral de água.

Para fazer maionese em casa, tome uma gema, separando-a da clara, e um vidro de azeite (de preferência), um fouet (batedor) e uma tigela. Com apenas uma gema é possível fazer até 24 litros do molho, segundo experiência relatada pelo cozinheiro e escritor canadense Harold McGee. Coloque a gema no recipiente e vá acrescentando azeite aos poucos, sem parar de bater até ganhar consistência e volume. À luz da ciência, esse procedimento implica em dividir o óleo no maior número de gotas possível. Com a ajuda de um microscópio, os alunos observaram amostras da maionese em evolução. Eles viam como as gotas de óleo diminuíam de tamanho à medida que a mistura ganhava consistência. Na imagem, as gotas maiores são de azeite; e as menores de água. Embora a gema contenha um emulsificante, para garantir o resultado, é recomendável acrescentar outro emulsificante. O mais comum é a mostarda, como é preparada na França. De acordo com o professor, a finalidade do uso da mostarda não é propriamente dar sabor, mas contar com mais substâncias

Nono encontro Convidado Enrique Rentería, food designer Degustação Maionese, preparada em sala de aula, com torradas

9 ALIMENTAÇÃO E CIÊNCIA

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tensoativas (que têm a dualidade de atrair e rejeitar a água). Estas criam uma camada defensiva em torno das moléculas de óleo. Assim, evita-se que desande o ponto depois de pronta.

Este molho teria surgido em Mahon, capital de Minorca, uma ilha espanhola do Mediterrâneo. No século XVII este território foi conquistado pelos franceses. Eles descobriram que os catalães faziam um molho à base de azeite e ovo e passaram a chamar de mahonnaise. Depois de pronta, pode-se temperar com alho, sal e especiarias ao gosto do freguês. É uma receita demorada, que exige atenção do cozinheiro. O professor explica que é possível fazer maionese com água, no lugar da gema. É uma alternativa para pessoas alérgicas ao ovo. Também pode ser feita com as claras, que contém grande porcentagem de água. Esta solução é ideal para receitas em que a maionese serve apenas como um veículo para ressaltar outros sabores, pois tem gosto delicado, diferente da gema. Outro ingrediente que pode ser utilizado é o chocolate porque tem gordura. Derrete-se o chocolate e, quando estiver numa temperatura em torno de 50o, pode ser acrescido à clara.

A maionese ajuda a explicar o que é uma emulsão e também permite generalizar o comportamento de misturas de substâncias gordurosas com aquosas, da qual o leite é um exemplo natural. Essas parcerias são abundantes na cozinha. De acordo com Rentería, o passeio em torno do ovo e suas combinações oleosas mostra claramente o conteúdo científico da culinária e serve também para despertar o interesse dos alunos pela abordagem científica e a ciência em geral.

GASTRONOMIA MOLECULAR

A ciência na cozinha permite criar métodos para resolver problemas e aprimorar os processos culinários, agregar a beleza e o sabor, requeridos pela gastronomia. Daí, temos a sistematização das técnicas culinárias, aperfeiçoada com erros e acertos ao longo dos anos até chegar numa versão que pode ser reproduzida por qualquer pessoa. Muitos cozinheiros sabem intuitivamente o que se deve ou não fazer. Pela experiência profissional ou aprendizado com a mãe e avó, por exemplo, descobriram o caminho. Em 1988, os físicos Nicholas Kurt e Hervé This criaram uma disciplina científica chamada Gastronomia Molecular. Para eles, a gastronomia significa conhecimento e não alta cozinha. E gastronomia molecular não é uma forma sofisticada ou exótica de se cozinhar alimentos. O objetivo desta disciplina é olhar para os fenômenos que ocorrem durante

a preparação e consumo do prato. Trata-se de uma metodologia para sistematizar saberes populares e científicos. Na definição de This, esta disciplina serve para cozinhar combinando novas ferramentas, ingredientes e métodos.O chef catalão Ferran Adrià ficou conhecido no mundo inteiro por aplicar os conceitos da Gastronomia Molecular em seu restaurante, transformando a cozinha num laboratório; o cardápio em experimentos científicos; e a mesa numa experiência multisensorial para os comensais. A ciência e a cozinha não são saberes distintos. Caminham juntas diariamente.

INTERSEÇÃO

Observação da maionese no microscópio, questionamentos, e relato no caderno de campo. Ao final da experiência, a turma provou a maionese com torradas. Foi uma experiência estimulante, divertida, recheada de informações sobre a ciência no cotidiano, e, claro, saborosa.

O OVO DURO PERFEITO

Os chefs de cozinha buscam preparar o prato perfeito, do ponto vista do sabor, da apresentação e da técnica. E isto não se faz sem ciência. O professor Enrique explica como que o ovo cozido perfeito é aquele que a casca não estoura na água do cozimento; é fácil de descascar; tem a clara corretamente cozida (não fica borrachuda); a gema não fica arenosa, farinhenta, não tem a cor verde e fica no centro. Parece fácil cozinhar um ovo, mas exige alguns cuidados.

1. Quando colocar o ovo na água, mexa continuamente com uma colher de pau para garantir que a gema fique no centro. Ou cozinhe num suporte apropriado para ovos.

2. Cozinhe até chegar na temperatura de 69o. O motivo é porque a gema coagula com 62o; e a clara, a 68o.

3. Quando retirar do calor, esfrie o ovo em água fria.

4. Na hora de descascar, aperte delicadamente. A casca sairá inteira, como se fosse a casca de uma laranja. Evita sujeira, principalmente se for fazer em quantidade.

5. Ao cortar, utilize um cortador de ovos. Pode ser utilizado para decorar prato.

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O QUE A ALIMENTAÇÃO TEM A VER COM A ARTE?

A comida, nua e crua, é um objeto como qualquer outro. Nesta condição pode ser elevada à categoria de obra de arte. Assim como a roda de bicicleta, de Marcel Duchamp; o Cachimbo, de René Magritte; e as latas de sopa Campbell, de Andy Warhol. O cotidiano tem uma estética e uma poética para ser apreciada.

A fotógrafa e historiadora da arte Carolina Matos destaca que a comida sempre teve papel fundamental na representação pictórica. “Desde o Egito antigo até a contemporaneidade, alimentos em seu estado natural, ou o próprio preparo da refeição, são repetidamente retratados.”

No final do século 14, os trabalhos do maneirista italiano Giuseppe Arcimboldo são marcados pela invenção e a relação homem-alimento. O quadro-espelho “O Homem-Horta” (1590) transforma um vaso de hortaliças na imagem de um distinto senhor, de barba e chapéu. Do mesmo período, o holandês Pieter Aertsen retrata “A Verdureira” (1567), uma bela mulher cercada de hortaliças vistosas. E o espanhol Diego Velázquez com a “Velha

Fritando Ovos” , em 1618. O monge espanhol Juan Sánchez Cotán foi um dos mestres do bodegon, a natureza-morta espanhola (1600). No século 16, o francês Jean Siméon Chdari pinta o quadro “Legumes para a sopa” (1733), onde ressalta a beleza das coisas em sua realidade prosaica. E no fim do 17, o holandês Vincent van Gogh apresenta “Os comedores de batatas” (1885).

Tais obras compõem uma pequena mostra sobre a celebração do cotidiano universal. Esses são alguns exemplos na História da Arte em que a natureza-morta é central. Trata-se de um tipo de retrato responsável por representar e documentar animais abatidos, frutas, taças de vidro, garrafas, jarras de metal, entre outros objetos comuns à mesa. “Podemos testemunhar o tipo de alimento disponível em diferentes épocas, através de estilos variados, comprovando, assim, a relevância da comida na história da humanidade”, aponta a historiadora. Para o pesquisador em literatura, arte e gastronomia, Fabiano DallaBona, a comida cumpre uma função didática por meio da arte. “É possível refletir sobre o símbolo, gerar questionamento e inquietação. Pode chamar atenção para questões polêmicas e desafiadoras”, sugere. Segundo o também escritor, ao longo dos séculos o alimento, considerado sagrado, foi dessacralizado. Passou a ser um objeto estético e prazeroso, para além de seu caráter nutricional. A partir de 1910, o movimento Futurista, na Itália, convocava todos os sentidos, como o gosto, indica Dallabona. Em sua opinião, qualquer coisa pode ser uma obra de arte. Não precisa ser eterno.

A ESTÉTICA DO COTIDIANO

Na arte contemporânea, o olhar do cotidiano foi justaposto pela apreciação da alta gastronomia, restrita e exclusiva. A imagem da refeição passa a ser associada ao glamour com receitas conceituais, como a cozinha molecular ou tecno-emocional. Nessa seara, o chef catalão Ferran Adrià é o principal expoente. Seu talento para criar obras comestíveis rendeu o inédito convite à cobiçada mostra de arte Documenta 12, em Kassel, na Alemanha, no ano de 2007.

Os olhares estão direcionados para o dia a dia. A historiadora cita o trabalho da artista brasileira Rivane Neuenschwander. A obra “Alfabeto Comestível” (2002) é composta por 26 painéis, que representam as letras do alfabeto, feitos com temperos e pós alimentícios. Cada uma dessas placas possui cor e cheiro diferentes, despertando no público lembranças,

Décimo encontro Convidado Coletivo de arte Tocayo Degustação Cupcake salgado

10 ALIMENTAÇÃO E ARTES PLÁSTICAS

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sabores e cheiros característicos. Essa visão, ela pontua, contribui para reafirmar o papel da comida na arte. Pode funcionar como mecanismo de resgate da memória e identidade através dos sentidos. Já Dallabona aponta o caráter efêmero da produção artística e cultural, a partir do cinema e das novas tecnologias nos anos 80 e 90. Daí surgem criações, por exemplo, com restos de comida. O paulista Vick Muniz dá nome às obras pelo material utilizado, como “Imagem de Chocolate” ou “Crianças de Açúcar”.

COLETIVIDADE NA REFEIÇÃO E NAS ARTES

As práticas alimentares, partilhadas nas refeições à mesa, lugar oficial do convívio, inspiram artistas a utilizarem o espaço urbano, a rua, como cenário para suas invenções. Organizados em coletivos, esse movimento provoca uma intervenção criativa na rotina. O coletivo Opavivará surgiu em 2005 no Rio de Janeiro com a proposta de realizar “experiências poéticas coletivas interativas”. Quer lugar mais apropriado que a cozinha para executar essas ideias? O grupo elegeu a refeição um dos componentes forte para proporcionar encontros que congregam público, artistas, espectadores e passantes. Todos se envolvem ativamente no processo de criação e de construção da obra, que pode ser na rua ou num apartamento. Os artistas

já organizaram experiências culinárias coletivas, ações gastromusicais e performances digestivas.

Entre as atividades estão “Cozinha Coletiva” (2007), “Salada Mista” (2007), “Gororópera” (2010) e “Parabéns para você, Mercadão de Madureira” (2010). “A gastronomia é um ótimo elemento de integração social. Os aromas, cores e sabores são excelentes atrativos para o envolvimento que a nossa poética exige. Os processos de cozinha e degustação coletivos promovem intimidade e informalidade entre os participantes. Isso gera uma temporária desconstrução das estruturas hierárquicas sociais. Tanto no meio específico da arte, como no contexto geral da sociedade”, diz o coletivo, que respondeu a entrevista em grupo, por e-mail, com a participação geral.

Na Cozinha Coletiva eles contam que alcançaram uma maior horizontalidade das relações. De acordo com o Opa, as sensações, imagens, ideias e conceitos são melhor degustados, digeridos, trocados e ressignificados. “É cozinhando que a gente se entende. Com a comida entramos com arte dentro dos corpos das pessoas”, afirmam. Para eles, a matéria-prima comida tem um grande poder de transformação química, social, conceitual e até espiritual. “É o material mais popular e universal que existe. Por isso torna-se uma ferramenta e um veículo tão gostoso de se trabalhar. Se entendemos nossa alimentação diária como uma experiência estética e poética, toda a vida pode ser arte. Desde o antepasto até as fezes. E se comer é arte, esta é uma arte realizada por todos os seres humanos do planeta diariamente, eternamente. Tudo começa e termina em torno da comida!”, justificam.

Desde 2004, o Tocayo é um dos coletivos pioneiros na cidade. Nos eventos, já recebeu artistas que utilizaram o alimento como base para suas pinturas, como por exemplo, o café. A cada edição, os cinco idealizadores se importam em oferecer um cardápio diferenciado, em parceria com restaurantes. O objetivo é proporcionar uma atmosfera completa. O grupo “toca” reuniões e manifestações diversas, envolvendo cada vez mais um número maior de artistas e apreciadores. Lucas Zappa, um dos líderes, afirma que gastronomia está mais evidente na rotina urbana como arte. Por isso, a rua e a refeição promovem uma experiência artística. “A arte de rua fica à disposição para qualquer pessoa, e esse movimento tem colocado a arte cada vez mais no cotidiano das pessoas, acreditamos que iniciativas como o ‘expo boteco’ (mini evento urbano de exposições de arte em botecos) possam unir a arte de rua e uma gastronomia popular”, aponta Zappa. A rua é uma fonte de inspiração, referências e conceitos. Para o

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Opa, a gastronomia popular oferece vivências estéticas “maravilhosas e inesquecíveis” ao alcance de todos. Esse aspecto público e democrático já promove uma série de sentidos artísticos e relações poéticas, o grupo indica. “A arte não está apenas na comida oferecida, com seus sabores, texturas, cores e formas, está em toda a dinâmica gastronômica, desde a instalação e engenharia da barraca ou carrocinha, com todas as soluções improvisadas e gambiarras, até a performance do artista que é chef, cozinheiro, maître, garçom, caixa e faxineiro de seu próprio restaurante ambulante”, completa.

A comida, por sua vez, é central no aprendizado cultural, e é o vínculo mais resistente com a cultura, depois da língua. O caminho de associação e aproximação entre arte e comida é desejável para construir um novo olhar sobre o lugar das práticas alimentares. Quem vive uma experiência, como as propostas pelos coletivos, tem a chance de criar identificações, laços e refletir sobre o que se come diariamente, por meio de sua estética e poética.

INTERSEÇÃO

O coletivo e a turma CN 3002 debateram sobre a transformação de materiais com novos usos, novas aplicações e novos olhares. A alimentação foi um dos exemplos de transformação de matéria-prima em arte, comestível ou para apreciação, cuja finalidade é a reflexão da cotidianidade.

“ A arte de um prato não se encontra somente na beleza, mas também no contexto em que foi criado, considerando seus

ingredientes, seus diferentes sabores.“Marcelle Bento, Batata-frita

“ Fazer do alimento uma . . . arte! Dar importância ao seu passado, valorizar o que é feito com amo; e ficar próximo à

natureza, saber onde e como é feito, conhecer o processo de produção.“Thamires dos Santos, Chocolate

CUPCAKE DE FRANGO

INGREDIENTES

* 2 ovos

* 120 ml de leite desnatado

* 60 ml de óleo de girassol

* 100g de peito de frango refogado e desfiado

* 50g de queijo minas

* 70g de tomate sem pele e nem semente

* 100g de milho verde

* 30g de azeitona verde picada

* 120g de farinha de trigo

* 80g de aveia em flocos

* 10g de fermento em pó

* Orégano e sal a gosto

MODO DE PREPARO

Pré aquecer o forno a 180o. Bater na batedeira ligeiramente os ovos, acrescentar o leite e o óleo e bater mais um pouco. Desligar a batedeira, juntar os demais ingredientes. Misturar bem para incorporar tudo.

Dividir a massa em forminhas de alumínio untadas, ou forrada com forminhas de papel. Leve ao fogo por 30 minutos.

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ALVES, RUBEM. Lições de feitiçaria. Meditações sobre a poesia. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

ALVES, RUBEM. Variações sobre o prazer. Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011.

BLOCH-DANO, ÉVELYNE. A fabulosa história dos legumes. Trad: Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.

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Referências Bibliográficas

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SITES

www.malaguetanews.com.br

www.slowfoodbrasil.com

comunicação4940067885669

ISBN 978-85-66494-00-6

“ A mente é uma grande cozinha. Pensar é cozinhar: transformar ideias cruas pelo poder do fogo. “

Rubem Alves