universidade federal do parÁ instituto de...
TRANSCRIPT
-
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
DBORA RODRIGUES DE OLIVEIRA SERRA
O PROCESSO DE TURISTIFICAO DO ESPAO
EM SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS
Uma anlise sobre o Crio de Nazar em Belm-PA
BELM-PAR
2014
-
DBORA RODRIGUES DE OLIVEIRA SERRA
O PROCESSO DE TURISTIFICAO DO ESPAO
EM SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS
Uma anlise sobre o Crio de Nazar em Belm-PA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Geografia do Instituto de
Filosofia e Cincias Humanas da Universidade
Federal do Par (PPGEO/IFCH/UFPA), como
requisito obteno do ttulo de Mestre em
Geografia, sob orientao da Prof. Dr. Maria
Goretti da Costa Tavares.
BELM-PAR
2014
-
DBORA RODRIGUES DE OLIVEIRA SERRA
O PROCESSO DE TURISTIFICAO DO ESPAO
EM SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS
Uma anlise sobre o Crio de Nazar em Belm-PA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Geografia do Instituto de
Filosofia e Cincias Humanas da Universidade
Federal do Par (PPGEO/IFCH/UFPA), como
requisito obteno do ttulo de Mestre em
Geografia, sob orientao da Prof. Dr. Maria
Goretti da Costa Tavares.
Data de Aprovao:
Banca Examinadora:
___________________________________
Prof. Dra. Maria Goretti da Costa Tavares
(Orientadora PPGEO/UFPA)
____________________________________
Prof. Dra. Janete Marlia Gentil Coimbra de Oliveira
(PPGEO/UFPA)
____________________________________
Prof. Dr. Raymundo Heraldo Maus
(PPGCS/UFPA)
____________________________________
Prof. Dr. Joo Baptista Ferreira de Mello
(PPGEO/UERJ)
__________________________________________________
Prof. Dra. Maria da Graa Lopes da Silva Mouga Poas Santos
(Instituto Politcnico de Leiria)
-
Ao maravilhoso Deus
-
AGRADECIMENTOS
Como crist, agradeo a Deus, em sua trindade santa, pela vida, pelos ensinamentos e
pela f, que tem me conduzido por tantos caminhos.
Como catlica, reconheo o exemplo de Maria e agradeo tambm pela possibilidade
de sentir nela o amparo materno.
E no posso deixar de aproveitar essa oportunidade para agradecer a uma, felizmente,
grande lista de pessoas importantssimas para mim, a comear pelos meus pais, Maria Tereza
e Joo Batista, que pela diferena de suas concepes religiosas, me fizeram ter uma postura
sempre reflexiva em relao f.
Aos meus maravilhosos irmos: Elizabeth, Bruno, Monique (primeira revisora!),
Cissa, Adriana, Jean Luck e Jean Michel.
Ao Ronaldo, um bem preciosssimo em minha vida, que me mostra a cada dia o que
amor e companheirismo.
minha orientadora, Goretti Tavares, pela amizade e acompanhamento na
continuidade da minha vida acadmica.
s minhas famlias, que me adotaram em Belm, representadas pela Tia Clara e D.
Rosa: S. Joo, Cleudon, Ronaldo Jr., S. Duca, Regina, Rosngela, Reginaldo, Doriane,
Raimundo, Cilia, Csar, Jonas, Douglas, Regiane e meu afilhado Antnio.
Aos amigos do GGEOTUR, pelos quais tenho um imenso carinho: Nabila, Luana,
Elcivnia, Vanessa, Joo Paulo, Mrcio, Giordano, Marcos Andr, Charles, Casluym, Hugo,
s minhas filhas Magaly e Marilya, ao Cleber (obrigada pelo presente de Portugal to
fundamental para esse trabalho) e Alessandra, amiga que me apia desde a seleo.
Aos demais amigos e colegas pelas palavras, oraes, aes e carinho: Tetezinha, Eli
Regina, Telma, Leide Menezes, Las (Laig), Deiliany, Eliete Gomes, Cludia Neder, Mrcia
Gabriel, Roselene Bastos, Ana Cludia, Maria Sousa, Ana Paula, Eugnia, Antnio Franco,
ltimo Augusto, Mrcio Drumond, Rita Moreira, Maridalva, Heden, Regina Pereira, Renan
Lima, Olenilson, Lucidea, e ao saudoso Paulo Almada.
A Jacqueline Alves, Ariane Mathne e Carlos Figueira, da Paratur, que me ajudaram
com informaes, compreenso e contatos.
Luana Rodrigues, ao Victor do IBGE e ao Hlio do LAIG.
A todos os entrevistados e aos membros da banca, especialmente pelas valiosas
contribuies na qualificao.
-
RESUMO
O Crio de Nazar em Belm do Par realizado desde o final do sculo XVIII e, ao longo
dos anos, tornou-se um complexo de eventos sagrados e profanos, atraindo de modo crescente
milhares de turistas para a cidade no ms de outubro. Observando a sua importncia para a
atividade turstica, esse estudo visa analisar a turistificao de espaos em santurios e
eventos catlicos, enfocando essa festividade a partir da atuao dos agentes envolvidos nesse
processo. Tal objetivo se desdobra na identificao e anlise tanto de espaos turistificados
durante a festividade, quanto dos agentes, os quais se apropriam de tais espaos, com
interesses religiosos, polticos, econmicos e culturais (em sentido amplo). As pesquisas
realizadas demonstram a diversidade de suas intenes, que historicamente convergem e
divergem entre si, ocasionando conflitos de territorialidades, que os impelem a criar
estratgias para manterem seus territrios, dentre elas as parcerias. Assim, a anlise desse
processo possibilita a compreenso da importncia de cada agente e a necessidade de se
buscar o entendimento entre eles de modo a democratizar os benefcios ocasionados pela
atividade turstica em seu segmento cultural e, mais especificamente, religioso.
Palavras-chave: Crio de Nazar. Turismo religioso. Turistificao de espaos. Territrio.
Territorialidades.
-
RSUM
Le Crio de Nazar Belm du Par est ralis depuis la fin du XVIIIe sicle, et au fil des ans,
est devenu un complxe dvnements sacrs et profanes, en attirant de plus en plus des
milliers de touristes la ville au mois doctobre. En observant son importance pour lactivit
touristique, cette tude vise analyser la touristification despaces en sanctuaires et vnements
catholiques, en se concentrant sur cette fte partir de laction des agents impliqus dans ce
processus. Tel objectif se droule dans lidentification et lanalyse autant despaces touristifi
pendant la fte, que des agents, auxquelles sapproprient de tels espaces, avec des intrts
rligieux, politiques, conomiques et culturels (au sens large). Les recherches realises
dmontrent la diversit de ses interactions, qui historiquement convergent et divergent entre
si, provocant des conflits de territorialit, qui les poussent dvelopper des stratgies pour
maintenir leurs territoires, dentre elles les partenariats. Ainsi, lanalyse de ce processus
permet la comprhension de limportance de chaque agent et la necessit de rechercher
lentendement entre eux de faon dmocratiser les privilges occasionns par lactivit
touristique dans leur segment culturel et, plus spcifiquement, religieux.
Mots-cls: Crio de Nazar. tourisme religieux. Touristification despaces. Territoire.
Territorialit.
-
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Bacias Hidrogrficas de Belm................................................................................ 22
Figura 2 - Romaria Fluvial ....................................................................................................... 26
Figura 3- Imagem Peregrina ..................................................................................................... 31
Figura 4 - Procisso Principal ................................................................................................... 32
Figura 5 - Auto do Crio ........................................................................................................... 32
Figura 6 - Arrasto do Boi Pavulagem (Arrasto do Crio) ..................................................... 33
Figura 7 - Trasladao .............................................................................................................. 34
Figura 8 - Festa da Chiquita ..................................................................................................... 34
Figura 9 - Brinquedos de miriti ................................................................................................ 35
Figura 10 - Trajeto das Romarias do Crio de Nazar .............................................................. 38
Figura 11 - Trajeto dos Cortejos do Crio de Nazar ............................................................... 39
Figura 12 - Baslica Santurio de Nazar ................................................................................. 41
Figura 13 - Largo de Nazareth [desenhado por J.L. Righini em meados do sculo XIX] ....... 43
Figura 14 - Largo de Nazar (carto postal/sem data).............................................................. 43
Figura 15 - Centro Arquitetnico de Nazar ............................................................................ 45
Figura 16 - A mais antiga imagem do Crio ............................................................................ 46
Figura 17 - Anncio de companhia area no jornal a Provncia do Par (1965) ...................... 49
Figura 18 - Embalagem da empresa Sucos do Brasil S/A ........................................................ 50
Figura 19- Ncleo da Berlinda ................................................................................................. 77
Figura 20 - Croqui da Operao Crio 2013 realizada pela SEMOB ....................................... 79
Figura 21 - Decorao da fachada de condomnio residencial (homenagem ao Crio) ............ 85
Figura 22 - Santurio de Ftima ............................................................................................... 87
Figura 23 - Baslica Santurio de Aparecida ............................................................................ 88
Figura 24 - Santurio de Aparecida Praa de Alimentao ................................................... 88
Figura 25 - Casa de Plcido ...................................................................................................... 90
Figura 26 - Memria de Nazar ................................................................................................ 90
Figura 27 - Arquibancadas na Av. Presidente Vargas .............................................................. 91
Figura 28- Grfico das motivaes dos visitantes no Crio de Nazar 2012 ............................ 94
Figura 29- Sede da ASAMAB ................................................................................................ 106
Figura 30 - Artesanato no Ateli de Valdeli Alves ................................................................ 107
Figura 31- Material Publicitrio do Hotel Crowne Plaza Belm............................................ 115
Figura 32 - Panfleto divulgando pacote para a Romaria Fluvial ............................................ 116
-
Figura 33 - Crio Musical ....................................................................................................... 118
Figura 34 - Cartaz da Festa dos Romeiros .............................................................................. 120
Figura 35 - Gradil do altar da Praa Santurio com fitas do Crio ......................................... 122
Figura 36 - Feira de Artesanato do Crio na Praa Waldemar Henrique ................................ 125
Figura 37 - Feira do Miriti na Praa D. Pedro II .................................................................... 126
Figura 38 - Cartaz do Crio 2003 (Rainha da Amaznia)....................................................... 130
Figura 39 - Placa instalada na Praa Santurio de Nazar ..................................................... 134
Figura 40 - Smbolo do manto na Praa Santurio de Nazar ................................................ 134
-
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Elementos representativos do Crio de Nazar conforme IPHAN (2006) .............. 30
Quadro 2 - Expectativas e tendncias dos agentes sociais produtores do turismo ................... 70
Quadro 3- Agentes de mercado na turistificao de espaos ................................................... 95
Quadro 4 - Composio da Diretoria da Festa ....................................................................... 101
Quadro 5- Aes recentes do Estado na turistificao do Crio de Nazar ............................ 114
Quadro 6 - Eventos relacionados ao Crio no 2 final de semana de outubro ........................ 120
-
LISTA DE TABELAS
Tabela 1- Romarias Nazarenas / Estimativas de Participantes Crio/2011 ........................... 28
Tabela 2- Estimativas da participao e gastos de turistas no Crio de Nazar em Belm (2004
- 2013) ...................................................................................................................................... 51
Tabela 3- Turistas nos Crios 2011 e 2012 ............................................................................... 93
Tabela 4 - Motivaes dos visitantes no Crio de Nazar 2013 ............................................... 94
-
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAES
ABAV Associao Brasileira de Agncias de Viagens
ABIH Associao Brasileira da Indstria de Hotis
ASAMAB Associao dos Artesos do Municpio de Abaetetuba
BELEMTUR Coordenadoria Municipal de Turismo
DIEESE Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos
FUMBEL Fundao Cultural do Municpio de Belm
IAP Instituto de Artes do Par
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
MIRITONG Associao Arte Miriti de Abaetetuba
N. S. Nossa Senhora
PARATUR Companhia Paraense de Turismo
PRODEPA Processamento de Dados do Estado do Par
SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas
SECULT Secretaria de Estado de Cultura
SETUR Secretaria de Estado de Turismo
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a
Cultura
-
SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................................... 13
1. O CRIO DE NAZAR EM BELM-PA: AS ORIGENS E A EXPANSO DE UM COMPLEXO DE EVENTOS E SUA IMPORTNCIA PARA O TURISMO ................ 20
1.2. A DIMENSO RIBEIRINHA DO CRIO DE NAZAR EM BELM: DAS ORIGENS DA DEVOO SUA EXPANSO TERRITORIAL ................................... 20
1.2. UM COMPLEXO DE EVENTOS EM EXPANSO: AS ESTATSTICAS, A
CRIAO DE NOVAS ROMARIAS E CORTEJOS E A DIFUSO PELO BRASIL ..... 27
1.3. PARA ALM DO CARTER RELIGIOSO: A POLTICA, A ECONOMIA, A POPULARIDADE E A CULTURA NO CRIO DE NAZAR EM BELM E SUA
RELAO COM O TURISMO .......................................................................................... 42
2. O ESPAO E SUA TURISTIFICAO EM SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS: CONTRIBUIES TERICO-EMPRICAS PARA UMA ANLISE
SOBRE O CRIO DE NAZAR ........................................................................................... 54
2.1. O ESPAO GEOGRFICO E O PROCESSO DE SUA TURISTIFICAO ........... 54
2.2. SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS: A APROPRIAO DE ESPAOS
SAGRADOS E PROFANOS NOS SEGMENTOS DO TURISMO RELIGIOSO E
CULTURAL ......................................................................................................................... 72
3. A TURISTIFICAO DO ESPAO NO CRIO DE NAZAR:
PARTICULARIDADES DOS AGENTES E ESTRATGIAS PARA A MANUTENO
DE SUAS TERRITORIALIDADES ..................................................................................... 92
3.1. OS AGENTES DA TURISTIFICAO DO ESPAO NO CRIO DE NAZAR:
PARTICULARIDADES E DIVERSIDADE DE INTENES ......................................... 92
3.2. ESPAOS TURISTIFICADOS NO CRIO DE NAZAR A PARTIR DA ATUAO DOS AGENTES ............................................................................................ 109
3.3. PARCERIAS, CONFLITOS E ESTRATGIAS PARA A MANUTENO DAS TERRITORIALIDADES DOS AGENTES DE TURISTIFICAO DO ESPAO NO
CRIO DE NAZAR .......................................................................................................... 123
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 137
REFERNCIAS ................................................................................................................... 144
ANEXOS ............................................................................................................................... 153
APNDICES ......................................................................................................................... 156
-
13
INTRODUO
Por sua origem portuguesa, a devoo a Nossa Senhora de Nazar disseminou-se por
suas colnias, dentre elas, o Brasil, onde h relatos de que os primeiros cultos foram
realizados no municpio de Saquarema, no Rio de Janeiro, no sculo XVII.
Todavia, tal devoo se destaca no Estado do Par, tanto por tambm ter se iniciado no
sculo XVII, em Vigia, quanto pela quantidade de festas em sua homenagem, em diversos
municpios paraenses, os Crios de Nazar.
Em Belm, essa festividade adquiriu maior expresso nacional e internacional.
realizada desde 1793 (IPHAN, 2006) e tornou-se uma das maiores manifestaes catlicas do
mundo por reunir milhes de pessoas na principal procisso. Quanto s estatsticas, diversos
meios de comunicao afirmam que seriam mais de dois milhes de participantes, porm, de
acordo com Pantoja (2006, p. 42) as estimativas oferecem uma srie de incoerncias.
As primeiras procisses tinham como percurso o caminho que ligava a ermida da
santa, onde atualmente encontra-se a Baslica Santurio de Nazar, e o Palcio dos
Governadores, atual Museu Histrico do Estado do Par, na parte central da cidade.
Entretanto, nas ltimas dcadas, novas romarias foram criadas, expandindo-se o
territrio dessa festividade para um dos distritos de Belm e envolvendo os municpios de
Ananindeua e Marituba, localizados na Regio Metropolitana.
Em Belm, o Crio de Nazar pode referir-se tanto festividade, que tem seu pice no
ms de outubro, englobando mais que os quinze dias da chamada quadra nazarena, como
procisso que ocorre no segundo domingo do referido ms, que nesse estudo ser chamada de
procisso principal do Crio, termo utilizado pelo IPHAN no processo de registro desse
complexo de eventos como Patrimnio Cultural de Natureza Imaterial.
Ao carter religioso do Crio de Nazar incluem-se os aspectos polticos, culturais
profanos, sociais e econmicos, visto que ele se tornou smbolo tanto para a cidade de Belm,
quanto para o Estado do Par. O perodo marcado pela confraternizao, o que, somado ao
aumento do nmero de pessoas que visitam a cidade, por ocasio da festividade, movimenta
consideravelmente a economia.
Conforme IPHAN (2006), o Crio de Nazar em Belm est relacionado a aspectos
religiosos, polticos e econmicos desde sua origem, visto que a primeira procisso registrada
ocorreu quase cem anos aps o incio da devoo na cidade, tendo sido convocada por um
-
14
governador com o propsito tambm de realizar uma feira de produtos regionais junto ao
evento, atraindo pessoas do interior da provncia.
O carter religioso do Crio relaciona-se, em grande parte, organizao realizada pela
Diretoria da Festa. Entretanto, o sagrado e o profano se complementam e nota-se a tentativa
da Igreja de exercer o controle tambm sobre as festas profanas (PANTOJA, 2006).
O envolvimento do poder pblico sofreu alteraes, porm, tanto a Prefeitura
Municipal de Belm, quanto o Governo do Estado do Par continuam sendo consideradas
entidades realizadoras da festividade.
Em relao economia, observa-se que ela dinamizada nesse perodo inclusive com
o uso da marca Crio de Nazar por empresas, com o objetivo de aumentar a venda de seus
produtos e servios (PANTOJA, 2006).
Deve-se destacar o carter popular de tais manifestaes, nas quais os fiis nem
sempre se subordinam ao poder da Igreja e, dessa forma, tal instituio e os demais agentes
devem consider-los no planejamento e organizao desse evento.
Observa-se tambm, que no perodo de realizao do Crio ocorre um significativo
aumento no fluxo de visitantes, que diversas manifestaes da cultura paraense se evidenciam
e que os agentes de Estado e do mercado alteram os espaos e se apropriam de elementos
culturais da festa (CASTRO & SERRA, 2011) buscando-se ampliar a atratividade turstica da
festividade.
O evento altera territorialidades habituais da cidade durante a sua realizao, visto que
alm do uso de espaos considerados sagrados durante todo o ano, a exemplo da Baslica
Santurio de Nazar, determinados objetos espaciais como praas e ruas so apropriados
durante as procisses e demais eventos sagrados ou profanos, modificando-se, assim, suas
funes. As alteraes decorrem tambm do significativo aumento no nmero de visitantes, o
que se comprova com as elevadas taxas de ocupao dos meios de hospedagem nesse perodo,
alm do acolhimento em casas de moradores de Belm, pois, conforme pesquisas dos rgos
estaduais de turismo, a maioria se hospeda em casas de parentes e amigos.
A transformao de eventos religiosos e santurios em componentes da oferta turstica
realizada por agentes com intenes diversas, relacionadas a questes religiosas, polticas e
econmicas, entre outras. Nesse sentido, a tendncia para manifestaes catlicas no Brasil e
em outros pases tem sido ampliar a relao com a atividade turstica, reconfigurando-se
territrios em busca da satisfao dos visitantes, a exemplo das alteraes ocorridas nos
Santurios de Aparecida, em So Paulo, e de Ftima, em Portugal, conforme Oliveira (2004) e
Maria da Graa Santos (2006).
-
15
Ressalta-se que o fluxo de turistas motivados pela devoo a N. S. de Nazar
expressivo no perodo de realizao do Crio, o que no se observa no restante do ano,
diferenciando-se do que ocorre em diversos santurios catlicos (COSTA et al, s/d).
Todavia, as transformaes ocorridas no antigo Arraial de Nazar com a construo do
Complexo Arquitetnico de Nazar (CAN), incluindo-se ainda, um memorial referente
festividade, revelam o interesse de parte dos agentes de turistificao em tornar esse espao
atrativo durante o ano, alm de aumentar o nmero de turistas durante o Crio.
Tais consideraes conduzem aos questionamentos que norteiam essa pesquisa, os
quais se referem a como tem se dado o processo de turistificao do espao no Crio de
Nazar em Belm-PA e que se desdobram nas seguintes indagaes:
Quais os agentes envolvidos no processo de turistificao de espaos no Crio
de Nazar, suas intenes e possveis conflitos de territorialidades?
Quais seriam os espaos turistificados ou em processo de turistificao no
Crio de Nazar?
Quais as estratgias dos agentes para a manuteno de suas territorialidades?
Assim, prope-se nesse trabalho analisar o processo de turistificao do espao na
festividade do Crio de Nazar em Belm - PA, considerando-se seus agentes e os possveis
conflitos de territorialidades entre eles. Tal propsito se subdivide nos seguintes objetivos
especficos:
Identificar e analisar os principais agentes envolvidos no processo de
turistificao de espaos no Crio de Nazar, suas intenes e os possveis conflitos de
territorialidades que podem ocorrer entre eles;
Identificar espaos turistificados ou em processo de turistificao no Crio de
Nazar em Belm-PA, analisando-os e considerando os principais eventos sagrados e
profanos realizados na quadra nazarena;
Investigar, junto aos principais agentes identificados, as estratgias utilizadas
por eles para a manuteno de suas territorialidades.
Pretende-se, com esse estudo, trazer uma nova discusso para o Programa de Ps-
Graduao em Geografia da UFPA, considerando-se que o tema bastante relevante por sua
dinmica que reconfigura territrios, onde relaes econmicas, sociais e culturais tm se
constitudo a partir de uma manifestao religiosa.
O desenvolvimento da pesquisa se deu a partir de uma abordagem dialtica, a qual
parte da anlise crtica do objeto e tem entre suas categorias metodolgicas a contradio, que
-
16
gera as mudanas, e a totalidade, que considera que o todo formado pela interao e
conexo entre as partes e predomina sobre elas (WACHOWICZ, 2001; CARVALHO, 2007).
Considerando que o Crio um fenmeno complexo, concorda-se com Gnter (2006)
em sua discusso sobre as vantagens e desvantagens das abordagens qualitativa e quantitativa,
ao afirmar que o mtodo deve se adequar ao objeto de estudo e, nesse sentido, a coleta de
dados pode incluir perguntas fechadas e abertas e procedimentos qualitativos e quantitativos.
No presente estudo, observa-se a predominncia da natureza qualitativa da pesquisa, embora
tenham sido utilizados dados quantitativos secundrios em relao aos visitantes de Belm
durante a festividade.
Assim, foram utilizadas as seguintes tcnicas de investigao:
Levantamento e reviso bibliogrfica de material j publicado referente ao
Crio de Nazar, s categorias espao e territrio, turistificao do espao e ao turismo
cultural e religioso, visando um melhor embasamento para o tema a ser trabalhado;
Levantamento e anlise documental, considerando-se o documento de forma
ampla por ir alm dos textos escritos. Desta forma, so analisados documentos pblicos
produzidos pelas esferas municipal, estadual e federal, vdeos e matrias publicadas em
diversos meios de comunicao, tais como jornais e revistas, referentes atividade turstica
ligada a essa festividade;
Aplicao de questionrios com carter de sondagem, utilizando perguntas
abertas e fechadas, as quais foram direcionadas a 25 (vinte e cinco) turistas e 31 (trinta e um)
moradores de Belm, no Crio 2012, especificamente em trs procisses (Romaria Fluvial,
Trasladao e na Procisso Principal) e em trs eventos de carter profano (Auto do Crio,
Arrasto do Crio e Festa da Chiquita).
Realizao de entrevistas individuais que, para Gaskell (2008) visam uma
maior profundidade e detalhamento do tema a ser pesquisado. Considerando-se os diversos
agentes relacionados ao processo de turistificao do Crio de Nazar, as entrevistas tiveram
carter qualitativo e foram semi-estruturadas, direcionadas a turistas, agentes de mercado,
representantes do Estado, da Igreja e de manifestaes culturais, alm da populao residente,
conforme detalhamento a seguir:
Turistas: As entrevistas foram realizadas durante a festividade no ano
de 2013, em alguns meios de hospedagem da cidade: hotis localizados na Av.
Presidente Vargas, que faz parte do percurso das principais procisses; casas de
parentes e amigos, e a Casa de Plcido (lugar de acolhida pertencente Parquia de
-
17
Nazar), com o objetivo de verificar a existncia de diversos perfis de visitantes, suas
motivaes e opinies.
Agentes culturais, de mercado, do Estado e da Igreja: as entrevistas
tiveram carter qualitativo e semi-estruturadas, visando obteno de respostas mais
detalhadas e profundas. Assim, as questes no foram fechadas, permitindo a
formulao de outras e possibilitando respostas subjetivas. Os agentes selecionados
para a pesquisa foram:
- Culturais: representantes do Auto do Crio, Arrasto do Pavulagem, da Festa
da Chiquita e dos artesos de brinquedos de miriti (no municpio de Abaetetuba);
- Mercado: representante da Associao Brasileira das Agncias de Viagens -
ABAV e da Associao Brasileira da Indstria de Hotis ABIH;
- Estado: representante do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional (IPHAN) e de rgos de turismo e cultura em nveis estadual e federal
(Secretaria de Estado de Turismo - SETUR, Companhia Paraense de Turismo -
PARATUR, Secretaria de Estado de Cultura SECULT, Coordenadoria Municipal de
Turismo BELEMTUR e Fundao Cultural do Municpio de Belm - FUMBEL),
alm da Capitania dos Portos, tratando-se da Romaria Fluvial;
- Igreja: diretores-coordenadores da Diretoria da Festa dos perodos de 2012 a
2013 e de 2014 a 2015, e representantes das pastorais do Turismo e da Acolhida, a
qual tambm responsvel pelo espao Memria de Nazar.
Populao residente: as entrevistas se subdividiram entre moradores e
usurios do bairro de Nazar e a representante da Associao Cidade Velha Cidade
Viva CIVVIVA, visto que os referidos bairros concentram a maior parte das
manifestaes sagradas e profanas; representantes de trabalhadores informais no
agenciamento da Romaria Fluvial, e participantes das Romarias Fluviais em
embarcaes no comerciais (da PARATUR/SETUR e de empresrio local).
Observao sistemtica em campo que, de acordo com Marsiglia
(2006), requer a sua preparao por meio do projeto (para que ela seja realizada de
modo amplo) e o registro detalhado do que foi observado. Para esse estudo, a
observao teve como principal objetivo a realizao de registros fotogrficos
referentes s alteraes espaciais e aes realizadas pelos agentes de turistificao do
espao.
Como recorte espao-temporal, enfocou-se, principalmente, os eventos sagrados e
profanos relacionados ao Crio de Nazar em Belm que ocorrem no segundo final de semana
-
18
de outubro, de sexta a domingo, incluindo-se alm da sede do municpio, a sua Regio
Metropolitana. O Crio tem durao de quinze dias, a chamada quadra nazarena, sendo que a
escolha por esse perodo de trs dias justifica-se por ele ser considerado o que mais atrai
visitantes, devido concentrao de suas principais romarias e cortejos.
Dentre os procedimentos metodolgicos elencados, destacam-se as entrevistas com os
citados agentes de turistificao do Crio de Nazar, visto que, a partir dessas informaes, foi
possvel responder aos questionamentos propostos nesse estudo, para os quais foram
levantadas as seguintes hipteses:
Os agentes do processo de turistificao seriam o Estado, a Igreja Catlica, os
agentes de mercado, os agentes culturais, os turistas e a populao local. As intenes dos trs
primeiros, possivelmente os hegemnicos, podem estar na ampliao do seu poder
econmico, poltico e religioso. Os possveis conflitos estariam relacionados a algumas
manifestaes profanas que se tornaram atrativos tursticos, mas que so pouco ou no
toleradas pela igreja catlica;
Considerando-se os principais eventos religiosos e culturais ligados ao Crio de
Nazar, os espaos turistificados nessa festividade seriam tanto os utilizados para as romarias
e programaes religiosas, como aqueles em que se realizam os eventos de carter profano;
As estratgias para a manuteno das territorialidades podem estar baseadas na
parceria principalmente entre o Estado, a Igreja e os agentes culturais e de mercado.
Visando contemplar os objetivos descritos, esse estudo est dividido em trs captulos
tericos e empricos, voltados para o evento religioso e cultural em sentido amplo, ao qual se
pretende investigar.
O primeiro captulo apresenta a festividade do Crio de Nazar desde suas origens,
relacionadas s caractersticas ribeirinhas do municpio, at sua transformao em um
complexo de eventos que tem se expandido territorialmente e atrado milhares de turistas para
Belm. Discute, ainda, a relao do Crio com aspectos religiosos, polticos, econmicos e
culturais e sua importncia para o turismo. As principais fontes consultadas so Maus
(2009), Pantoja (2006) e Iphan (2006), Costa et al (s/d) e Matos (2010).
O turismo ocasiona alteraes espaciais diversas, fazendo-se necessrio o
aprofundamento das noes sobre o espao geogrfico e suas categorias, bem como a
identificao e anlise dos agentes produtores desta atividade.
Dessa forma, o segundo captulo faz consideraes sobre o espao como objeto de
estudo da Geografia, discute algumas de suas categorias de anlise e a sua relao com o
turismo, alm de abordar a turistificao do espao e apresentar os agentes desse processo, os
-
19
quais expressam relaes que envolvem apropriao e poder, caractersticas pertinentes a
territrios e territorialidades, tendo-se a abordagem territorial como norteadora das anlises do
presente estudo. Para tanto, so utilizados como base os estudos de Correa (2003), Milton
Santos (2006), Haesbaert (2009), Souza (2001), Cruz, R. (2007), Rodrigues, A. (1997),
Castro, N. (2006) e Fatucci (2007, 2008). Aborda-se, ainda, o turismo religioso a partir das
discusses sobre os espaos sagrados e profanos para o catolicismo; de aspectos conceituais
para o turismo cultural e religioso e as implicaes espaciais da atividade turstica em
santurios e eventos catlicos. Observa-se que os visitantes possuem motivaes diversas para
frequentarem tais espaos, o que os diferencia entre o que alguns estudiosos classificam como
turistas e peregrinos, tendo como base tambm a complexidade do segmento do turismo
cultural que pode ou no incluir motivaes religiosas. Destacam-se entre as fontes
consultadas Barreto (2000), Brasil (2010), Figueiredo (2005), Rosendahl (2002) e Maria da
Graa Santos (2006).
No terceiro captulo so apresentados os agentes de turistificao no Crio de Nazar,
bem como os espaos identificados, durante as pesquisas, como turistificados ou em processo
de turistificao. A atuao dos referidos agentes analisada utilizando-se, principalmente, os
resultados das entrevistas, nas quais se buscou verificar as suas intenes e os possveis
conflitos entre eles, alm das estratgias para a manuteno de suas territorialidades.
Finalmente, considerando-se que os agentes hegemnicos dos processos de
turistificao do espao tm sido o Estado e o mercado, conforme Cruz, R. (2007), ressalta- se
que esse estudo buscou abordar tambm os demais agentes envolvidos nos referidos processos
em relao ao Crio de Nazar em Belm - PA, possibilitando-se, assim, contribuir com
subsdios para projetos ligados ao turismo religioso e cultural que atendam s expectativas de
cada grupo ou pelo menos da maioria deles.
-
20
1. O CRIO DE NAZAR EM BELM-PA: AS ORIGENS E A EXPANSO DE UM COMPLEXO DE EVENTOS E SUA IMPORTNCIA PARA O TURISMO
Nessa seo apresentam-se as origens do Crio de Nazar e sua expanso territorial
pela Regio Metropolitana de Belm, ambos relacionados ao carter ribeirinho da cidade.
Discute-se, ainda, a relao dessa festividade com aspectos religiosos, polticos, econmicos e
culturais e sua importncia para o turismo.
1.2. A DIMENSO RIBEIRINHA DO CRIO DE NAZAR EM BELM: DAS
ORIGENS DA DEVOO SUA EXPANSO TERRITORIAL
A histria da devoo a Nossa Senhora de Nazar iniciou em Portugal, onde se conta
que, sculos depois de ter sido esculpida por So Jos, pintada por So Lucas e passado pelas
mos de So Jernimo e de Santo Agostinho, a imagem original foi abandonada em uma gruta
na Pennsula Ibrica por um rei dos visigodos e encontrada posteriormente por pastores. O
culto santa, todavia, se fortaleceu no sculo XII, quando o fidalgo portugus Dom Fuas
Roupinho foi salvo de cair num abismo, atribuindo-lhe o milagre e difundindo essa f em seu
pas (IPHAN, 2006).
A devoo santa disseminou-se pelas colnias portuguesas. No Brasil, a cidade de
Saquarema, no Rio de Janeiro, considerada a primeira a reverenci-la. Contudo, o Par
merece destaque, tanto porque, tal como na referida cidade fluminense, o culto tambm
iniciou durante o sculo XVII, em Vigia, quanto pela dimenso que a festividade adquiriu na
capital.
Conforme Maus (2009), Vigia considerado o primeiro municpio paraense a cultuar
a santa, ainda no sculo XVII, provavelmente a partir do seu donatrio ou pelos colonos
trazidos por ele. Tendo como uma das fontes a crnica do padre jesuta Joo Felipe
Bettendorf, publicada na revista IHGB em 1909, ele afirma que ao final do referido sculo, a
devoo j estava estabelecida naquela vila.
O autor destaca que, de acordo com o historiador paraense Geraldo Coelho, os colonos
que habitavam Vigia eram possivelmente provenientes dos Aores ou do Algarve e eram,
portanto, culturalmente ligados ao mar, apontando, ainda, a relao entre o culto a Nossa
Senhora de Nazar, nas referidas regies portuguesas, e os navegantes:
H claramente, no culto a Nossa Senhora de Nazar, uma associao entre [a Santa]
e os mareantes, j sinalizada, em Portugal, na segunda metade do Quatrocentos. O
arquiplago dos Aores, ponto obrigatrio de passagem e paragem nas viagens
-
21
sadas de Lisboa para o Brasil, no foi apenas um lugar de fluxo e de trnsito das
naus lusitanas, mas tambm da religiosidade, das devoes populares dos
marinheiros que integravam as equipagens (COELHO, 1998 apud MAUS, 2009,
p. 10).
Em Belm, as origens da devoo, segundo Pantoja (2006), sugerem que aos fatos
histricos so somados os mitos que, solidrios entre si, quase no se reconhece os limites
entre ambos (p. 31). Dentre os mitos destacam-se as fugas da imagem da santa, achada em
1700 por Plcido Jos dos Santos, s margens do igarap Murutucu, nas proximidades da
atual Baslica Santurio de Nazar. As narrativas relatam que Plcido levou a imagem para
casa e no dia seguinte, no a localizando, voltou ao lugar do achado e a encontrou. Essa
situao teria ocorrido diversas vezes, chamando a ateno de um governador que a levou
para o palcio do governo e, mesmo vigiada por soldados, retornou para as margens do
igarap. Tais fugas levaram Plcido a construir uma pequena ermida no local, e grande parte
da populao, ao saber dos milagres atribudos santa se tornou devota (IPHAN, 2006).
Assim, enquanto em Portugal a devoo a Nossa Senhora de Nazar remete ao mar,
em Belm, a origem da devoo est relacionada sua condio geogrfica de cidade
ribeirinha, formada por bacias hidrogrficas que envolvem diversos rios e igaraps, alm de
ser margeada pela Baa do Guajar e pelo Rio Guam, conforme Figura 1.
-
22
Figura 1 - Bacias Hidrogrficas de Belm
Fonte: LAIG/UFPA, 2001. Adaptado pela autora.
-
23
A caracterstica ribeirinha em Belm revela-se em todo o seu processo de formao
scio-espacial. A rea escolhida para a fundao da cidade, em 1616, localizava-se em frente
referida baa e permitia o controle do acesso ao rio Amazonas. Era, portanto, estratgica
para a consolidao da posse do norte da colnia pelos portugueses. Segundo Trindade Jr. et
al (2005), alm da sua gnese, o carter ribeirinho se d ainda por que:
Por mais de trs sculos o rio representou a principal via de integrao regional e
nacional da cidade. Pode-se, ento, compreender a histria e a geografia desta cidade
atravs da fora que os cursos fluviais imprimiram em seu desenvolvimento
econmico e cultural: ndios, portugueses, drogas do serto, cabanos, borracha,
castanha, juta, mandioca, aa; tudo e todos chegavam e partiam de Belm pelo rio.
(TRINDADE JR. et al, 2005, p. 20).
Ressalta-se que alm da poro continental, onde se localiza a sede, o municpio de
Belm formado por 39 (trinta e nove) ilhas, que juntas correspondem a mais de 65% dos
seus mais de cinqenta mil, seiscentos e cinqenta hectares de rea terrestre. (BELM, 2012).
O uso dos rios para o transporte de passageiros e cargas no Par e principalmente em
Belm ainda intenso, destacando-se dos demais estados da regio Norte, conforme aponta o
estudo da Agncia Nacional de Transportes Aquavirios, realizado entre os anos de 2011 e
2012, no qual:
[...] foi levantado um total de 106 terminais de passageiros na Amaznia, sendo 64
no estado do Par [vinte e nove desses em Belm], 30 no estado do Amazonas, 11
no estado do Amap e 01 no estado de Rondnia. A pesquisa indica que o estado do
Par tem maior quantidade de terminais/portos hidrovirios na regio amaznica.
(BRASIL, 2013, p. 27).
Belm desenvolveu-se seguindo as margens da Baa do Guajar. Inicialmente, as reas
mais altas foram ocupadas, formando os bairros da Cidade atualmente Cidade Velha e
Campina. Conforme a necessidade de expanso, parte das reas alagveis foram ocupadas
pelas populaes de baixa renda, enquanto outras passaram por processos de drenagem e
aterramento. Houve tambm a canalizao de igaraps, causando diversas consequncias
negativas, como aponta Rodrigues, E. (1996).
Nas proximidades do igarap Murutucu, onde a imagem teria sido achada, a ocupao
deu-se inicialmente com as chamadas rocinhas, que eram "o todo que formava a pequena
propriedade rural: o campo, o pomar, a floresta e, enfim, a casa. (TOCANTINS, 1952, p. 175
apud PENTEADO, 1968, p. 111). poca, esta era uma rea de floresta e estava ligada aos
primeiros ncleos de Belm pela estrada do Utinga, posteriormente estrada de Nazar, pela
qual era possvel seguir para o municpio de Vigia ou para So Lus, no Maranho. Com o
incio do processo de urbanizao na segunda metade do sculo XIX, durante o ciclo da
-
24
borracha, a cidade recebeu diversos servios urbanos, tais como iluminao pblica,
calamento de vias, bonde eltrico, entre outros. Porm, a execuo de tais servios exigiu,
segundo Pimentel et al (2012), o aterramento do igarap Murutucu, ignorando a sua
importncia religiosa, o que foi tambm apontado por Maus (2009).
Em referncia a Plcido, Maus (2009, p. 47) refora a necessidade da igreja catlica e
da populao o reconhecerem como um dos mais importantes cidados paraenses, cuja
dedicao a seu santurio proporcionou a nosso estado uma das manifestaes religiosas e
culturais mais importantes [...]. Tal observao deve-se forma preconceituosa como
Plcido tem sido retratado: caboclo humilde, caador intrpido, reforando-se sua cor
parda. Em uma comparao entre as obras do historiador Arthur Vianna (1904) e do
jornalista Carlos Rocque (1981), o autor observa em Vianna o preconceito comum aos
intelectuais brasileiros e paraenses do final do sculo XIX e incio do sculo XX, referindo-se
quele que encontrou a imagem como inculto, modesto devoto, morador de uma pobre
palhoa com um tosco santurio. Por sua vez, Rocque aborda as origens da devoo em
Belm de modo a valorizar Plcido.
Com o aumento do nmero de fiis, a devoo popular santa atraiu a ateno de
representantes eclesisticos, que passaram a incentiv-la e posteriormente a providenciar sua
oficializao, dada em 1793, mesmo ano em que o presidente da Provncia do Par, Francisco
Coutinho, realizou a primeira procisso, como pagamento de uma promessa, alm de uma
feira de produtos regionais em frente ermida (IPHAN, 2006).
Em relao feira, Cruz, E. (1973), com base em Vianna (1904), afirma que Francisco
Coutinho enviou um documento aos diretores de vilas e povoaes do interior do Par
ordenando que fossem escolhidos naquelas localidades homens e mulheres (inclusive
indgenas) para participarem do evento e comercializarem seus produtos. A dimenso
ribeirinha se revela nessa feira quando se observa que naquela poca as vias de acesso a
Belm eram fluviais e, tanto a capital como o interior do estado possuam (e ainda possuem)
uma intensa relao com os rios. Dentre os produtos comercializados havia o peixe-boi e o
pirarucu, encontrados em rios da regio amaznica.
Quanto procisso, considerada como o primeiro Crio de Nazar em Belm, ocorrida
em setembro daquele ano, afirma-se que ela foi acompanhado por quase dois mil soldados,
alm da populao civil de Belm e do interior da provncia. Participavam ainda do cortejo,
alm do presidente da provncia, os vereadores da Cmara e o vigrio geral, substituindo o
bispo, que viajara para Portugal (IPHAN, 2006, p. 16). Estima-se que cerca de dez mil
pessoas participaram dessa manifestao, que foi finalizada na ermida da santa com a
-
25
realizao de uma missa e com o lanamento da pedra fundamental da igreja que substituiria a
referida ermida. Tais aes tornam evidente, portanto, a busca da Igreja e do Estado pelo
controle da devoo.
O termo crio tem sua origem do latim cereus significando grande vela de cera,
em aluso s romarias realizadas em Portugal para o Santurio de Nossa Senhora de Nazar,
na qual os fiis levavam velas de cera, passando-se dessa forma a denominarem tais
procisses como crios (IPHAN, 2006).
At o final do sculo XIX o percurso do Crio se iniciava no palcio do governo e
seguia at a ermida da santa. Porm, na vspera, outra procisso conduzia a imagem pelo
caminho inverso, originando-se a chamada Trasladao. Tais percursos, de ida e de volta
relembram o mito das fugas.
Dessa forma, apenas duas romarias compunham o Crio de Nazar inicialmente e,
excetuando-se a Procisso do Recrio, originada em 1859, a partir da dcada de 1980 houve
uma expanso das manifestaes em relao ocupao de diversos espaos (incluindo-se
dois municpios da Regio Metropolitana de Belm), s estatsticas e diversidade.
A primeira romaria criada nesse perodo remete-se dimenso ribeirinha da cidade de
Belm e do prprio Crio. Trata-se da Romaria Fluvial (Figura 2), na qual, segundo Matos
(2010, p. 223): [...] os mitos de origem e narrativas milagrosas associadas s guas, desde os
mares de Portugal aos grandes rios do Par, vm tona para justificar o vnculo do evento
com as caractersticas culturais da regio. Ela foi criada em 1986 pela Companhia Paraense
de Turismo PARATUR, na poca, nico rgo de turismo na esfera estadual. Sobre sua
origem, Bonna (1993, p. 59-60) afirma que era turstica a inteno do seu criador, o
historiador Carlos Rocque, ento presidente do referido rgo. Gerou-se, assim, um novo
atrativo que possibilitou aos turistas uma atividade a ser realizada na manh do sbado que
antecede procisso principal do Crio.
-
26
Figura 2 - Romaria Fluvial
Foto: Ronaldo Farias, 2013.
Apesar de o evento fazer parte da programao oficial do Crio e muitos moradores de
Belm e das ilhas prximas participarem tanto por motivos religiosos quanto profanos, a
PARATUR atua divulgando e oportunizando s agncias de turismo mais um elemento a ser
includo nos pacotes tursticos do Crio, alm de realizar o Concurso de Ornamentao de
Embarcaes desde as primeiras edies da Romaria Fluvial.
Na primeira edio, Bonna (1993) relata que a imagem foi transportada de nibus da
sede do municpio at o trapiche de Icoaraci, reformado pela Prefeitura Municipal para essa
finalidade. De l, ela seguiu a bordo de uma corveta da Marinha do Brasil at o cais do porto
de Belm, a Escadinha do Porto, acompanhada de autoridades do Estado e de,
aproximadamente, trinta embarcaes. Hoje, este nmero tem se ampliado para centenas, com
iates, lanchas, balsas, embarcaes regionais, etc.
Na relao dos belenenses com as guas, a Romaria Fluvial despertou o interesse de
remadores esportistas que desde 1997 realizam a Remaria, procisso com cerca de setenta
caiaques, mas ainda pouco divulgada, que se se inicia em Icoaraci, antes da referida romaria, e
segue para a sede de Belm, finalizando na Vila da Barca (SETUR..., 2013).
A Romaria Fluvial est tambm relacionada expanso territorial do Crio,
considerando-se que ela foi o primeiro evento a ser realizado fora da sede de Belm e que o
percurso at o distrito de Icoaraci (onde ela se inicia) possibilitou a criao da Romaria
Rodoviria, em 1989, e do Traslado para os municpios de Ananindeua e Marituba, em 1992 e
2002, respectivamente.
-
27
1.2. UM COMPLEXO DE EVENTOS EM EXPANSO: AS ESTATSTICAS, A
CRIAO DE NOVAS ROMARIAS E CORTEJOS E A DIFUSO PELO BRASIL
Alm da expanso pela Regio Metropolitana de Belm, o perodo entre a dcada de
1980 e incio da dcada de 1990 apresenta um aumento acentuado no nmero de participantes
na festividade do Crio de Nazar. Conforme IPHAN (2006), em 1980 as estimativas eram de
oitocentos mil na procisso principal, chegando a dois milhes em 1992.
Atualmente, ainda estima-se que participem da referida procisso cerca de dois
milhes de pessoas, entre visitantes e populao local, nmero que a tornou uma das maiores
manifestaes catlicas do mundo. Porm, de acordo com Pantoja (2006, p. 42) as
estimativas oferecem uma srie de incoerncias. Primeiro porque so realizadas por
instituies que participam do processo de organizao do Crio, a exemplo da Polcia Militar;
segundo, porque no se tm dados estatsticos regulares ao longo da devoo.
A reflexo sobre o argumento da autora torna-se necessria considerando-se que em
eventos de grandes propores costuma-se inflar o nmero de participantes para torn-los
mais importantes, a exemplo da Parada Gay, em So Paulo, a qual era atribuda quatro
milhes de pessoas. Conforme Bergamim Junior (2011), os nmeros dessa manifestao
foram contestados em 2011 pelo instituto de pesquisas Datafolha, utilizando-se como base o
manual de clculo de multides do Centro de Estudos e Pesquisas de Desastres, da Prefeitura
do Rio de Janeiro, no qual se considera a quantidade de pessoas por metro quadrado. Apesar
das possveis falhas desse mtodo, a capacidade mxima do evento seria de um milho e
quinhentas pessoas.
Em 2012, segundo Azevedo (2012), o referido instituto realizou pela primeira vez uma
medio cientfica, que considera tambm o pblico flutuante e o resultado ficou em cerca
duzentos e setenta mil, nmero considerado baixo quando comparado aos milhes divulgados
em todos os anos.
Quanto ao Crio de Nazar, o Coordenador de Estatsticas e Informaes da Secretaria
de Estado de Turismo do Par, Admilson Alcntara, relatou, em entrevista1, que a Companhia
Paraense de Turismo (PARATUR) estima a quantidade de turistas que participa do evento h
cerca de dez anos, em trabalho conjunto com o Departamento Intersindical de Estatstica e
Estudos Socioeconmicos (DIEESE). A medio do pblico total feita utilizando o mtodo
da quantidade de pessoas por metro quadrado e o resultado do clculo o de
aproximadamente dois milhes de pessoas na procisso principal.
1 Entrevista concedida autora em 9 jan. 2013.
-
28
Ressalta-se que a populao do municpio de Belm, de acordo com o censo de 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE, de 1.393.399 (um milho,
trezentos e noventa e trs mil, trezentos e noventa e nove) habitantes, o que torna a procisso
principal um momento em que comum se ouvir que a populao quase dobra.
Conforme a Tabela 1, referente s romarias oficializadas pela Diretoria da Festa -
grupo responsvel pelo conjunto de eventos mais associados aos aspectos sagrados dessa
festividade em 2011, a maior concentrao de pblico, entre romeiros e turistas, ocorreu na
procisso principal do Crio (dois milhes de pessoas) e na Trasladao (um milho e
trezentas mil pessoas), que, como visto, so as mais antigas, realizadas desde 1793.
Tabela 1- Romarias Nazarenas / Estimativas de Participantes Crio/2011
Evento Estimativas de participaes de romeiros e turistas
Traslado (Ananindeua) 1.100.000
Romaria Rodoviria 200.000
Romaria Fluvial 50.000
Moto Romaria 35.000
Trasladao 1.300.000
Crio de Nazar 2.000.000
Ciclo Romaria 5.000
Romaria da Juventude 20.000
Romaria das Crianas 300.000
Procisso da Festa 5.000
Recrio 50.000
Total estimado: 5.065.000
Fonte: PAR, 2012b. Adaptada pela autora.
Na referida tabela observa-se a existncia de onze romarias que, junto quelas no
oficializadas, organizadas por grupos como proprietrios de buggys, policiais militares,
bombeiros, entre outros, evidenciam o quanto o Crio de Nazar em Belm tem se expandido.
Nesse sentido, o atual Diretor Coordenador da Diretoria da Festa, Jorge Xerfan,
afirmou, em entrevista2, que a entidade est aberta anlise da oficializao de novas
procisses, mas dever ser criteriosa devido grande quantidade das j oficializadas.
Assim, o Crio de Nazar sofreu diversas alteraes e se expandiu, podendo-se
consider-lo um complexo de eventos, realizados antes e durante a quadra nazarena,
envolvendo alm de Belm, dois outros municpios.
2 Entrevista concedida autora em 21 mar. 2014.
-
29
Alves, I. (2005) refere-se festividade como um complexo ritual, por envolver as
"dimenses sacralizadas e devocionais com aquelas carnavalizadoras, informais e
comunitrias" (p. 316), observando que s vrias procisses somam-se prticas mais
informais, destacando-se o Arraial, onde acontecia a feira de produtos regionais nos primeiros
anos do evento, e o almoo do Crio, realizado por grande parte das famlias aps a procisso
principal.
Nessa complexidade podem ser includos diversos outros eventos religiosos ou no,
tais como as romarias ainda no oficializadas, a exemplo do transporte dos carros do Crio
para a Companhia Docas do Par, organizada pela Diretoria da Festa; do Auto do Crio, da
Festa da Chiquita e das festas de aparelhagem direcionadas aos romeiros.
No que se refere aos aspectos religiosos da festividade, Henrique (2011) afirma que:
Motivados pela amplitude alcanada por esta celebrao religiosa, quatro entidades
de Belm solicitaram ao Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(IPHAN), em dezembro de 2001, o registro do Crio de Nazar de Belm do Par,
como patrimnio cultural imaterial brasileiro. Foram elas: Arquidiocese de Belm,
Diretoria da Festividade de Nossa Senhora de Nazar, Obras Sociais da Parquia de
Nazar e Sindicato dos Arrumadores do Estado do Par (HENRIQUE, 2011, p. 328).
O autor participou de todo o processo que possibilitou o referido registro, que se
iniciava com o inventrio para identificar e sistematizar os bens culturais referentes ao Crio,
finalizando-se com a elaborao de um dossi. O objetivo foi demonstrar que esse complexo
de eventos rene elementos importantes na formao da identidade brasileira e para tanto, foi
necessrio considerar no apenas os aspectos religiosos, mas os culturais de forma mais
ampla.
Em relao ao registro, faz-se necessrio observar que ele diferencia-se do
tombamento por este estar relacionado proteo de bens materiais, enquanto aquele se refere
aos imateriais, tais como as celebraes, a gastronomia, as msicas e as danas. Telles (2010),
todavia, ressalta que:
[...] a dicotomia entre patrimnio cultural material e patrimnio cultural imaterial,
em tese, utilizada e s assim deve ser - como recurso didtico [...]. Ambas
dimenses, portanto, coexistem num mesmo bem cultural (TELLES, 2010, p. 27).
O patrimnio imaterial apresenta como principais caractersticas a sua dinamizao e
a intangibilidade (TELLES, 2007), e desta forma, o modo jurdico para a sua proteo deve
ser mais flexvel, pois, enquanto os bens tombados devem ser preservados sem alteraes em
sua forma, os bens registrados sofrem alteraes conforme a dinmica da sociedade.
Entretanto, o referido autor aponta que a continuidade histrica do bem imaterial essencial
para o seu processo de registro, e assim a legislao prev a revalidao do ttulo, que deve
-
30
ocorrer no mnimo a cada dez anos, e em caso de sua negao, o bem fica apenas registrado
como referncia cultural daquele perodo.
A continuidade histrica necessria ao ttulo de patrimnio imaterial prev que o bem
mantenha seu significado, embora apresente caractersticas diferentes de tempos pretritos,
quando se originou, e que sofra transformaes no futuro, pois as alteraes acompanham o
movimento da sociedade. Registra-se a realidade de uma manifestao de modo abrangente,
mas ele refere-se a um determinado momento.
O Crio de Nazar em Belm foi registrado em 2004 pelo IPHAN como Patrimnio
Cultural de Natureza Imaterial, sendo o nico no chamado Livro de Registro de Celebraes.
No dossi, que resultou no registro e foi publicado em 2006, so elencados os
elementos da festividade considerados essenciais, seja por sua sacralizao, simbolismo,
antiguidade ou notvel afluncia popular (IPHAN, 2006).
O Quadro 1, elaborado por Castro e Serra (2011) com base em IPHAN (2006), ilustra
a grandiosidade e complexidade do Crio por listar grande parte de seus elementos, sendo que
os classificados como "demais elementos" podem tornar-se "essenciais" na perspectiva do
IPHAN no decorrer dos anos. Conforme Henrique (2011), essa nova classificao poder
ocorrer em uma nova pesquisa a ser realizada pelo referido rgo aps dez anos do registro,
conforme estabelecido na legislao.
Quadro 1- Elementos representativos do Crio de Nazar conforme IPHAN (2006)
ELEMENTOS
ESSENCIAIS
Procisso Principal, Imagens (original e peregrina), Trasladao,
Berlinda, Corda, Recrio, Arraial, Almoo do Crio, Alegorias,
Brinquedos de Miriti.
DEMAIS
ELEMENTOS
Missa do Mandato, Visitas da Santa aos Fiis, Traslado para
Ananindeua e Marituba, Romaria Rodoviria, Romaria Fluvial,
Moto e a Ciclo Romaria, Descida e Subida da Imagem, Romarias
da Juventude e das Crianas, Procisso da Festa, Auto do Crio,
Arrasto do Boi Pavulagem, Festa da Chiquita.
Fonte: CASTRO & SERRA, 2011.
Iniciando a festividade nazarena tem-se a Missa do Mandato, no ms de agosto, onde
diversas imagens so abenoadas para realizarem, em setembro, as visitas s casas dos fiis.
No ms de outubro se concentra a maior parte das manifestaes, em geral, com a presena da
imagem peregrina (Figura 3), visto que a imagem original fica constantemente na Baslica
Santurio de Nazar.
-
31
Figura 3- Imagem Peregrina
Foto: Ariane Mathne, 2013.
A imagem original participava das procisses at 1969, quando foi criada a imagem
peregrina, por motivos de segurana, diferenciando-se da primeira por apresentar traos mais
comuns s mulheres amaznicas.
A procisso principal (Figura 4) realizada no segundo domingo de outubro, mas ela
antecedida por diversos eventos ocorridos desde a sexta-feira, como o Traslado que leva a
imagem da Baslica Santurio de Nazar para os municpios de Marituba e Ananindeua, e o
Auto do Crio (Figura 5), cortejo cultural realizado por artistas locais retratando o sagrado e o
profano da festividade.
-
32
Figura 4 - Procisso Principal
Foto: Eliseu Dias/GEPA3.
Figura 5 - Auto do Crio
Foto: Ronaldo Farias, 2013.
A maior parte dos eventos ocorre no sbado, iniciando-se com a Romaria Rodoviria,
que parte da Igreja Matriz de Ananindeua e leva a imagem at o distrito de Icoaraci, onde se
realiza uma missa, dando incio Romaria Fluvial que leva a imagem de volta para a sede de
Belm.
Chegando Escadinha do Porto, prximo Estao das Docas, bairro da Campina,
iniciam-se dois eventos concomitantes: o Arrasto do Boi Pavulagem (Figura 6), de carter
3 Disponvel em: . Acesso em:
2 jul. 2014.
http://fotospublicas.com/imagens-aereas-procissao-cirio-senhora-nazare-belem/
-
33
profano, mais conhecido como Arrasto do Crio, e a Moto Romaria, com aspecto e
motivao mais religiosos.
Figura 6 - Arrasto do Boi Pavulagem (Arrasto do Crio)
Foto: Instituto Arraial do Pavulagem
4
O arrasto do Crio segue para a Praa do Carmo passando pelo Mercado do Ver-o-
Peso. A Moto Romaria conduz a imagem at o Colgio Gentil Bittencourt, no bairro de
Nazar, de onde ela segue no fim da tarde para a Igreja da S, na Trasladao (Figura 7), a
qual, aps passar pela Praa da Repblica, d incio Festa da Chiquita (Figura 8), que
marcada principalmente pela presena de homossexuais e simpatizantes que se divertem ao
som de msicas de vrios estilos. L se realizam tambm premiaes como a Rainha do
Crio e o Veado de Ouro. Essa manifestao no tolerada pela Diretoria da Festa e pelas
autoridades da Igreja. No mesmo dia ocorre na Baslica de Nazar a cerimnia da Descida da
Imagem, em que a imagem original retirada do espao reservado para ela no altar mor e fica
mais prxima dos fiis (CASTRO & SERRA, 2011).
4 Disponvel em: . Acesso em: 2 jul. 2014.
http://www.facebook.com/institutoarraialdopavulagem/photos/pb.360420523970840.-2207520000.1406662095./688763091136580/?type=3&theaterhttp://www.facebook.com/institutoarraialdopavulagem/photos/pb.360420523970840.-2207520000.1406662095./688763091136580/?type=3&theater
-
34
Figura 7 - Trasladao
Foto: Ronaldo Farias, 2013.
Figura 8 - Festa da Chiquita
Fonte: Babados e Badalados (Facebook)
5
No domingo ocorre a principal procisso, chamada de Crio, levando a imagem da S,
no bairro da Cidade Velha, Baslica, em Nazar, tendo como importantes elementos, assim
como na Trasladao, a berlinda, a corda, as alegorias e os brinquedos de miriti.
O miriti tambm chamado de buriti em outros estados e, sobretudo no municpio de
Abaetetuba, utiliza-se o caule para a produo de brinquedos, os quais so vendidos em
diversos espaos da festividade, chamando ateno pelo seu colorido (Figura 9).
5 Disponvel em:
. Acesso em: 30 abr. 2014.
https://www.facebook.com/BabadosBadalados/photos/at.375141092617308.1073741862.314531962011555.100001554620064/375142422617175/?type=1&theaterhttps://www.facebook.com/BabadosBadalados/photos/at.375141092617308.1073741862.314531962011555.100001554620064/375142422617175/?type=1&theater
-
35
Figura 9 - Brinquedos de miriti
Foto: Ronaldo Farias, 2013.
Aps a procisso principal, ao seguirem para casa, os fiis tradicionalmente se renem
em famlia para o almoo do Crio. Porm, ao contrrio da maioria das festas de santos, a
referida procisso no finaliza a festividade, que se estende por quinze dias, nos quais so
realizadas a Ciclo Romaria, as romarias das Crianas e da Juventude, a Subida da Imagem, e a
Procisso da Festa. Quinze dias aps a procisso principal, ocorre a ltima procisso, o
Recrio, que conduz a imagem peregrina da Baslica de volta para o Colgio Gentil
Bittencourt, onde ficar at o ano seguinte (CASTRO & SERRA, 2011). Ressalta-se que a
maior parte das manifestaes se concentra no segundo final de semana do ms de outubro.
Tratando-se da dimenso espacial do evento, nota-se que as primeiras procisses
Trasladao e procisso principal do Crio percorriam o caminho que ligava a ermida da
santa, onde atualmente encontra-se a Baslica de Nazar, e o Palcio dos Governadores, atual
Museu Histrico do Estado do Par. Conforme IPHAN (2006), aps o fechamento da capela
do Palcio devido posse dos republicanos, o ponto de partida da procisso principal foi
alterado para a Igreja de Santo Alexandre, em 1891, e depois para a Igreja da S. A mudana
j era desejada pelo Bispo Dom Macedo Costa, o qual defendia o fim do regime do padroado.
Em seu estudo sobre a viso geo-social do Crio, Moreira (1971) afirma que
inicialmente a principal procisso provocava um intenso deslocamento de Belm para fora da
cidade, considerando-se que o local onde atualmente se encontra a Baslica era considerado
zona rural at meados do sculo XIX. Com a expanso da cidade, a procisso tornou-se
completamente urbana e o movimento cidade-interior se inverte com o aumento do nmero de
-
36
fiis vindos do interior do Estado para Belm. Ele destaca a presena dos devotos interioranos
na procisso principal afirmando que:
[...] O Crio um reflexo da presena do interior no ambiente urbano, convindo
salientar que sem essa presena le no seria o que , a comear porque o devoto
interiorano mais compenetrado e representativo. A trasladao e o Recrio so
belemenses, mas o Crio paraense (MOREIRA, 1971, p. 07).
Tal observao permanece adequada atualidade, pois, embora no haja dados
recentes e precisos quanto quantidade de visitantes provenientes do interior do estado,
observa-se que a presena deles continua acentuada, especialmente na procisso principal, a
qual o referido autor denomina apenas Crio.
Nesse sentido, os dados existentes que mais se aproximam do que percebido provm
do estudo de Costa et al (s/d), no qual foram realizadas estimativas quanto aos visitantes de
Belm no perodo do Crio at 2005. Os autores consideraram os nmeros referentes
procisso principal, por constatarem que todos visitantes que tiveram como motivao essa
festividade, participam da referida procisso. Para eles, aproximadamente 58% (cinquenta e
oito por cento) dos participantes so da Mesorregio Metropolitana de Belm, enquanto 40%
so de outras mesorregies, a maioria deles do nordeste paraense.
Conforme mencionado, a maior parte das romarias realizadas atualmente foi criada a
partir da dcada de 1980, quando se expandiu o territrio dessa festividade para o distrito de
Icoaraci, em Belm, envolvendo-se posteriormente os municpios de Ananindeua e Marituba,
localizados na |Regio Metropolitana.
A partir de entrevistas com pessoas direta ou indiretamente ligadas Diretoria da
Festa, Pantoja (2006) informa que esse aumento acentuado no nmero de procisses deve-se a
motivos diversos, tais como a demanda dos devotos, a exemplo da Ciclo Romaria e da
Romaria das Crianas; ou a criao de um novo atrativo turstico para a cidade, no caso da
Romaria Fluvial.
Em relao ao traslado para Ananindeua, a sua criao deu-se a partir da solicitao de
um empresrio do municpio e a extenso at Marituba ocorreu em atendimento ao pedido de
um proco (IPHAN, 2006).
Houve tambm, de acordo com Pantoja (2006), o pedido do prefeito de Marituba para
que a imagem pernoitasse nesse municpio, o que no foi aceito pela Diretoria da Festa. Em
compensao, foi permitida a extenso do tempo de permanncia da imagem antes do seu
retorno para Ananindeua.
-
37
As manifestaes realizadas no segundo final de semana de outubro podem ser
observada nos mapas das Figuras 10 e 11, nos quais se apresentam os percursos de eventos
religiosos (romarias) e profanos (cortejos) realizados nesse perodo.
-
38
Figura 10 - Trajeto das Romarias do Crio de Nazar
Fonte: LAIG/UFPA, 2013. Organizado pela autora.
-
39
Figura 11 - Trajeto dos Cortejos do Crio de Nazar
Fonte: LAIG/UFPA, 2013. Organizado pela autora.
-
40
Em relao Figura 10, o Traslado para Ananindeua tem incio na Baslica Santurio
de Nazar. Foi criado em 1992 e seu prolongamento para o municpio de Marituba ocorreu
em 2002 (IPHAN, 2006). Nesses municpios, a procisso percorre as parquias de alguns
bairros, sendo considerada a mais longa, com cerca de cinquenta e cinco quilmetros de
extenso e durao de aproximadamente doze horas (FILHO, 2012).
Aps pernoitar na igreja matriz de Ananindeua, a imagem segue na Romaria
Rodoviria at o distrito de Icoaraci para dar incio Romaria Fluvial, que segue pela Baa do
Guajar at chegar Escadinha do Porto, prximo Estao das Docas, na sede de Belm. A
partir desse ponto milhares de motociclistas conduzem a imagem para o Colgio Gentil
Bittencourt, que l permanece at a Trasladao, procisso que a leva para a Igreja da S, de
onde ela parte no dia seguinte, na procisso principal, chamada de Procisso do Crio, e
finaliza-se na Baslica Santurio de Nazar.
Quanto aos cortejos apresentados na Figura 11, a Praa do Carmo o espao onde se
inicia o Auto do Crio e se finaliza o Arrasto do Crio. O referido auto segue at a Praa D.
Pedro II, fazendo diversas paradas para encenaes. O Arrasto comea na Escadinha do
Porto.
Observa-se que parte dos espaos apropriados pelos organizadores do Crio durante a
sua realizao so considerados atrativos tursticos. No distrito de Icoaraci, pertencente ao
municpio de Belm, destaca-se o Trapiche, onde se realiza uma missa para em seguida se
iniciar a Romaria Fluvial. localizado na Orla, espao estruturado com calado, bares,
restaurantes e quiosques para a venda de artesanato, principalmente as cermicas marajoara e
tapajnica.
Na sede do municpio de Belm, os eventos concentram-se em trs bairros nos quais
os espaos apropriados so considerados tursticos tanto pela sua relao com as festividades
do Crio de Nazar, como principalmente por sua importncia na formao histrica e scio-
espacial da cidade. Tem-se, dessa forma, a Baslica de Nazar (Figura 12) e o Colgio Gentil
Bitencourt no bairro de Nazar; as Praas do Carmo e D. Pedro II e a Igreja da S, na Cidade
Velha, e, finalmente, a Praa da Repblica e a Escadinha do Porto (onde se finaliza a Romaria
Fluvial), localizados no bairro da Campina. Ainda no referido bairro destaca-se o Complexo
do Ver-o-Peso como parte do percurso de algumas romarias e cortejos.
-
41
Figura 12 - Baslica Santurio de Nazar
Foto: Marcos Costa, 2011.
A devoo a Nossa Senhora de Nazar est presente em diversos municpios paraenses
e em outros estados brasileiros. Devido influncia de paraenses que moram fora do Par e de
peregrinaes da imagem, podemos encontrar tambm Crios de Nazar realizados no
Maranho, Distrito Federal, Rio de Janeiro e So Paulo (COSTA et al, s/d)6.
Em pesquisa em sites catlicos e de jornalismo, observou-se que as peregrinaes da
imagem em diversas capitais brasileiras, na dcada de 1990, favoreceram a realizao do
Crio de Nazar em So Lus; que no Rio de Janeiro, Niteri e Saquarema a festividade tem
sido realizada desde o final da dcada de 2000 com a presena da imagem de Belm; e que
em So Paulo e Braslia a festividade se d desde as dcadas de 1950 e 1960,
respectivamente, inspirada pelos moradores paraenses.
Assim, a expanso do Crio tanto pela Regio Metropolitana de Belm, como por
outros municpios paraenses e de outros estados estimulada pela igreja catlica que busca
ampliar seus territrios, ou seja, os espaos apropriados por ela nos quais ela poder exercer
maior controle. Porm, somado a esse estmulo, a apropriao popular da festividade, como
ser discutido a seguir, tambm contribui para ampliar o alcance dessa festividade.
Nos sites pesquisados, percebeu-se que nas cidades de So Lus, Rio de Janeiro,
Niteri, So Paulo e Braslia tambm se utilizam vrios elementos que fazem parte da
manifestao realizada em Belm, tais como a corda, a valorizao da gastronomia paraense,
a berlinda, o manto, alm do formato e dos nomes das procisses. A exceo seria a cidade de
6 Ressalta-se que Dom Orani Joo Tempesta, arcebispo de Belm no perodo de 2004 a 2009, contribuiu para o
processo de expanso da devoo, inclusive com as visitas da imagem peregrina ao Rio de Janeiro e
Saquarema durante as festividades realizadas nas referidas cidades em homenagem santa.
-
42
Saquarema, que no apresenta tais caractersticas, mas realiza o Crio das guas, pela lagoa
do municpio, e o Crio das Rodas, que rene bicicletas, carros e motos. Elas assemelham-se
s romarias Fluvial, Rodoviria, e Moto e Ciclo Romaria.
Observa-se, assim, que o Crio no pode ser considerado apenas como manifestao
religiosa, pois ele envolve diversos outros aspectos culturais e, como ser abordado a seguir,
relaciona-se com a poltica e a economia do estado, destacando-se ainda sua importncia
como atrativo turstico.
1.3. PARA ALM DO CARTER RELIGIOSO: A POLTICA, A ECONOMIA, A POPULARIDADE E A CULTURA NO CRIO DE NAZAR EM BELM E SUA
RELAO COM O TURISMO
Desde sua origem, o Crio de Nazar em Belm um evento ligado a aspectos
religiosos, polticos e econmicos, considerando-se que apesar da devoo santa ter se
iniciado por volta do ano de 1700, como abordado anteriormente, a primeira procisso
registrada ocorreu quase cem anos mais tarde, convocada pelo governador Francisco
Coutinho, que realizou durante a festa uma feira de produtos regionais, para a qual foram
convidados os habitantes do interior da provncia (IPHAN, 2006).
Essa relao com o poder pblico modificou-se com a posse dos republicanos, que
transformariam oficialmente o Brasil em um Estado laico. Entretanto, os governos estadual e
municipal continuaram a se envolver nesse evento de forma que atualmente a contribuio do
poder pblico em nvel estadual e municipal, conforme Pantoja (2006, p. 65), considerada
pela Diretoria da Festa no apenas como uma forma de parceria: Prefeitura e Governo do
Estado so entendidos como entidades realizadoras.
De acordo com Costa et al (2008), desde 2003, os governos estadual e municipal tm
contribudo financeiramente com cerca de cinqenta por cento do oramento da festividade,
no que se refere programao e aes executadas pela Igreja. Em busca da ampliao de
recursos, a Diretoria da Festa tem realizado projetos voltados para os empresrios: o
Patrocinador e o Apoiador Oficial do Crio, criados em 2003 e 2009, respectivamente, com
cotas pr-estabelecidas, oferecendo-se como contrapartida a promoo das empresas em
diversos meios de comunicao. Ressalta-se que em 2013 os investimentos totalizaram mais
de dois milhes e oitocentos mil reais (DIRETORIA..., 2013).
O carter religioso do Crio, conforme Pantoja (2006), est mais presente no momento
das procisses, quando os catlicos tm em comum a devoo. Acrescenta-se, porm, os
demais eventos religiosos que fazem parte do Crio, tais como missas e shows catlicos. A
-
43
dimenso religiosa, considerando-se os eventos sagrados, portanto, administrada pela Igreja
por meio de instituies como a Diretoria da Festa. Entretanto, o sagrado e o profano se
complementam e nota-se a tentativa da Igreja de exercer o controle tambm sobre as festas
profanas, a exemplo da determinao do horrio de encerramento das atividades no arraial,
conforme Pantoja (2006).
Conforme as Figuras 13 e 14, o espao destinado ao arraial, onde se realizava a feira
de produtos agrcolas desde o primeiro Crio, sofreu diversas transformaes, acompanhando
as mudanas da cidade.
Figura 13 - Largo de Nazareth [desenhado por J.L. Righini em meados do sculo XIX]
Parte da srie de litografias Panorama do Par em doze vistas, publicado em 1867.
Fonte: Centro de Memria da Amaznia (UFPA)7.
Figura 14 - Largo de Nazar (carto postal/sem data)
Ao fundo a Baslica de Nazar (arquitetura atual) e no largo a presena dos coretos desaparecidos.
Fonte: Biblioteca do IBGE8.
7 Disponvel em: . Acesso em: 05 fev. 2013.
8 Disponvel em:< http://biblioteca.ibge.gov.br/d_detalhes.php?id=42480>. Acesso em: 05 fev. 2013.
http://www.ufpa.br/cma/imagenscma.htmlhttp://biblioteca.ibge.gov.br/d_detalhes.php?id=42480
-
44
Matos (2010) destaca as alteraes ocorridas entre meados do sculo XIX e incio do
sculo XX, perodo conhecido como Belle poque, quando tambm ocorre a reforma da
Igreja Catlica ou romanizao, a qual se estendeu at a dcada de 1960. Durante a Belle
poque, Belm cresceu economicamente com a extrao e o comrcio da borracha e viveu um
processo de modernizao.
A autora ressalta esses dois eventos por serem propulsores de mudanas nos valores,
cdigos e prticas da vida sociocultural da cidade, que se expressam em novas formas de
festejar o Crio de Nazar. (MATOS, 2010, p. 70). Especificamente em relao ao arraial,
nesse momento, observam-se a diferenciao de classes presentes naquele espao e a
diversificao das atraes, em que os folguedos populares comuns nas festividades religiosas
eram reprimidos, enquanto se importavam espetculos de outras cidades e pases.
Ela observa que o referido espao, onde ocorriam as manifestaes profanas, sempre
expressou as tenses e negociaes entre os catolicismos oficial e popular e ao longo de sua
histria o arraial passou por inmeras intervenes por parte da diretoria da festa e das
autoridades eclesisticas [...], preocupados em organizar esse espao segundo as concepes
religiosas e morais vigentes (p. 231). Porm, a dcada de 1980 caracterizou-se por alteraes
nas festividades populares, incluindo-se o Crio de Nazar, visando torn-los mais atrativos
para turistas e investidores. Em 1982, houve a transferncia do arraial para uma rea lateral
baslica, pertencente Igreja, e em seu lugar foi construdo o Centro Arquitetnico de Nazar
CAN (Figura 15), com recursos da Unio. A praa pblica tornou-se um prolongamento da
baslica, controlada pela Diretoria da Festa.
-
45
Figura 15 - Centro Arquitetnico de Nazar
Ao centro, observa-se a estrutura para a exposio da imagem peregrina durante o Crio.
Foto: Heden Franco, 2012.
A autora ressalta, tambm, o risco de perda de fiis devido crescente diversidade
religiosa, ocasionando profundas mudanas na igreja catlica a partir da dcada de 1960, e
transformando o Crio [...] mais ainda em um instrumento canalizador de novos adeptos.
(MATOS, 2010, p. 262).
Ainda exemplificando as tentativas de controle da Igreja sobre as manifestaes
profanas, pode-se destacar a sua tentativa de ingerncia no processo de registro do Crio de
Nazar pelo IPHAN, em relao incluso da Festa da Chiquita no inventrio e no dossi.
Para a Diretoria da Festa, tal manifestao era ofensiva e desvinculada do Crio. Entretanto,
foi observada nos discursos de Eli Iglsias, principal organizador do evento, a constante
associao entre o Crio, a confraternizao e o combate ao preconceito sexual (HENRIQUE,
2011).
O Crio de Nazar em Belm apresenta tambm um carter popular, no qual os fiis
nem sempre se subordinam ao poder da Igreja. Um dos momentos considerados de
insubordinao popular ocorreu no final do sculo XIX, quando o bispo Dom Macedo Costa,
que liderava o processo de romanizao da igreja na regio amaznica, visando ajust-la aos
preceitos da Santa S, em Roma, suspendeu as funes religiosas do Crio e fechou as portas
da ermida ao ser provocado por uma denncia de que no arraial foram apresentados quadros
com mulheres despidas. A reao do povo, estimulado pela Irmandade de Nazar, grupo que
organizava o evento, foi de invadir a ermida, sendo realizados em 1878 e 1879 dois crios
civis, ou seja, sem a participao do clero e de autoridades religiosas (IPHAN, 2006).
-
46
A Figura 16 representa esse momento, onde se observa esquerda e abaixo os frades
repudiando a procisso com vaias e colocando a lngua para fora. considerada a mais antiga
imagem do Crio, publicada na Revista Puraqu em 1878 (NASSAR, 2012).
Figura 16 - A mais antiga imagem do Crio
Elementos como a berlinda e alguns carros utilizados no Crio esto presentes na gravura.
Fonte: Blog do Flvio Nassar9.
A situao ficou conhecida como questo nazarena e s foi solucionada em 1880, a
partir da mediao do ento presidente da provncia, Jos Coelho da Gama e Abreu, com a
criao de uma comisso para organizar a festa, formada por confreiros e religiosos, nomeada
pelo bispo. (IPHAN, 2006, p. 23), o que reduziu o poder da irmandade na organizao do
evento.
Dessa forma, pode-se afirmar que apesar da tentativa de controle por parte da Igreja e,
em alguns momentos, do prprio poder pblico, o Crio de Nazar tem um carter
eminentemente popular, no qual os agentes devem considerar, no ato do planejar esse
complexo de eventos, as formas populares de devoo, a fim de reduzir os possveis conflitos,
em geral, relacionados ao receio dos devotos quanto supresso de elementos considerados
por eles como fundamentais procisso, mas que no so vistos do mesmo modo pelas
autoridades eclesisticas.
Nesse sentido destacam-se as questes relacionadas corda, que conforme IPHAN
(2006), foi utilizada pela primeira vez em 1855, mas oficializada pela Igreja somente em
1868. Maus e Maus (2005) afirmam que ela perdeu seu sentido original, sua necessidade,
9 Disponvel em: . Acesso em: 03
jan. 2013.
http://blogdoflavionassar.blogspot.com.br/2012/10/o-cyrio-de-1878.html
-
47
que seria de tracionar o carro de bois que levava a berlinda. Porm, ela passou a ter um
significado simblico extraordinrio, o lugar onde as pessoas fazem suas promessas [...]. Na
cultura humana, o que conta, sobretudo, no so as necessidades prticas, mas os valores
simblicos (p. 55). Apesar de essencial, considera-se que este elemento dificulta o fluxo da
procisso, o que ocasiona polmicas frequentemente.
De acordo com IPHAN (2006), no final da dcada de 1920 ocorreram as primeiras
tentativas de supresso da corda, quando o arcebispo Dom Irineu Joffily introduziu mudanas
no Crio baseadas no processo de romanizao do evento. A abolio da corda causou a
reao dos fiis e de parte da imprensa, mas foi apoiada pelo ento governador, Dionzio
Bentes, por meio do policiamento nas ruas durante a procisso. A soluo para a questo
ocorreu em 1931, mediada pelo interventor populista Magalhes Barata.
A polmica atual em relao corda refere-se ao seu corte pelos promesseiros antes do
final da procisso principal, pois eles desejam levar os pedaos como lembrana. Tal atitude
tem sido condenada pela Diretoria da Festa e pela Arquidiocese de Belm, que realizam desde
2011, a campanha pelo No Corte da Corda, em rdios e televises, para evitar acidentes
pela presena de armas brancas durante o evento. Os organizadores garantem que prximo ao
final da procisso a corda cortada pela Guarda de Nazar10
e entregue aos participantes (...,
2012).
O carter popular do Crio foi observado por Moreira (1971). Para ele, a romaria
popular se imps pela sua prpria popularidade, predominando-se sobre as procisses e festas
reais, impostas por lei. Ele compara o evento Cabanagem afirmando que esses so os dois
maiores exemplos do poder afirmativo das massas na histria paraense. (p. 15).
A popularidade do Crio verificada tambm em seus aspectos profanos, com a
presena de diversas manifestaes culturais, visto que esse complexo de eventos
considerado como parte da identidade cultural no apenas dos belenenses, como dos
paraenses.
Figueiredo (2005) afirma que:
Nesse perodo, a cultura paraense manifesta-se em todos os bairros de Belm, na
maioria das casas, quer pela culinria, quer pela msica, artes, etc. So realizados
muitos eventos em funo do Crio, como feiras de artesanato, manifestaes da
10
A Guarda de Nazar foi criada em 1974, sendo considerada a primeira guarda catlica no Brasil. formada
apenas por catlicos do sexo masculino, tendo como funes principais cuidar da berlinda, auxiliar na
organizao das procisses, supervisionar a Praa Santurio durante os eventos, zelar pela baslica, e dar apoio
a outras parquias.
-
48
cultura popular (bois, carimbs, etc.), exposies de arte, festas, festivais, entre
outros (FIGUEIREDO, 2005, p. 26-27).
Limitando-se aos elementos profanos selecionados pelo IPHAN, conforme Quadro 1
(p. 28), pode-se exemplificar a diversidade das manifestaes culturais com a realizao dos
cortejos do Auto e do Arrasto do Crio; da presena dos brinquedos de miriti (ou buriti),
feitos do caule de sua palmeira, cuja produo destaca-se no municpio de Abaetetuba,
prximo a Belm; bem como no almoo do Crio, realizado logo aps a procisso principal,
cujos principais pratos so considerados tpicos paraenses, especialmente a manioba e o pato
no tucupi ou suas variaes como o frango e o peru.
Apesar de no incluso nos elementos selecionados pelo IPHAN, as festas populares,
mais especificamente as chamadas festas de brega (atualmente, festas de aparelhagem), que
so realizadas durante o ano, destacam-se no perodo do Crio. Costa, A. (2006) afirma que o
circuito bregueiro:
[...] se conecta aos grandes eventos, assumindo um papel de complementao dos
festejos. A festa de brega permanece como uma opo importante de lazer para os
romeiros e fiis do Crio. A atividade empresarial e a freqentao do circuito
durante estes festejos no interrompida. Ao contrrio: ela enriquecida pelo
esprito festivo que toma conta da cidade e, ao mesmo tempo, adapta-se a ele.
(COSTA, A., 2006, p. 84).
Com base em Magnani (1996, 2002), o autor utiliza a categoria circuito para se referir
ao exerccio de uma prtica cultural ou a oferta de um servio qualquer, demarcados por
estabelecimentos, equipamentos e espaos sem relao de contigidade entre si e
reconhecidos em conjunto pelos seus usurios regulares (COSTA, 2003, p. 108). Assim, o
circuito bregueiro em Belm apresenta elementos espalhados por diversos bairros,
principalmente os de periferia, envolvendo as aparelhagens (empresas de sonorizao), as
casas de festa e o pblico apreciador, alm de estdios de gravao, produtoras de CDs,
artistas e rdios.
Dessa forma, os aspectos religiosos, polticos, culturais (em sentido amplo) e a
popularidade do Crio se entrelaam, permitindo-se inferir que os diversos agentes promotores
da festividade tm se articulado