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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ELIETE BORGES LOPES NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE UMA COMUNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ. CUIABÁ-MT 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ELIETE BORGES LOPES

NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE UMA COMUNIDADE EM

SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ.

CUIABÁ-MT

2016

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ELIETE BORGES LOPES

NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE

UMA COMUNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ

CUIABÁ-MT

2016

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ELIETE BORGES LOPES

NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE UMA

COMUNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Educação do Instituto de Educação da Universidade

Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos

para a obtenção do título de Doutora em Educação.

Área de concentração: Movimentos Sociais e Política

Educação Popular.

Orientador: Prof º Dr. Luiz Augusto Passos.

Co-orientador: Amilcar Martins

CUIABÁ-MT

2016

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AGRADECIMENTOS

Meu primeiro e mais especial agradecimento se dirige ao meu

orientador, o Professor LUIZ AUGUSTO PASSOS. Com Passos aprendi a

potência de uma verdadeira relação pedagógica. Passos é desses orientadores

que te elevam e que te auxiliam de verdade. Meu agradecimento ao Professor

Amilcar Martins por ter aceitado a co-orientação do meu trabalho e o convite

de estar conosco em uma programação que inclui a qualificação de tese como

um processo de criação e de intercâmbio. Agradecimento especial a Lídia

Xavier que prontamente aceitou o convite para compor a banca de exame

desta tese e que se desloca de Brasilia até Cuiabá, mesmo sem planejamento

prévio. Agradecimento especial também à Professora Michele Sato, professora,

pesquisadora e grande intelectual, sensível e muito companheira e que

conheço há mais de uma década na luta pró-Ambiente e Direitos Humanos.

Meu agradecimento muito especial também à estimadíssima professora e

amiga Priscila Scudder, que aceitou ler e contribuir na partilha deste

momento tão especial para mim e certamente para todos nós. No processo de

elaboração da tese, preciso agradecer a toda equipe do Programa de Pós

Graduação em Educação, à Coordenação de Pedagogia, aos colegas de curso e

às professoras que ministraram disciplinas fundamentais para a consolidação

deste momento: professora Filomena Arruda e Ozerina Victor fica meu

agradecimento. Nessa caminhada atravessada por laços, encontros e

companheirismos agradeço a toda minha família, em especial minha mãe

Elizabete Borges Lopes, meu irmão Marcos Borges Lopes, minha tia Maria

Aparecida Borges, meu companheiro Yuri Kopcak e minhas filhas gêmeas

Irene Borges de Oliveira e Constantine Borges de Oliveira. Agradecimento

especial a todos os moradores e moradoras de rua com quem conversei e vivi

este processo. Um abraço àqueles que me ajudaram a alcançar esta etapa e

meu muito agradecido reconhecimento a Rui Leonardo Sousa Silveira, que me

auxiliou enquanto estive na Educação do Campo a estudar o tema e me

inseriu nos grupos de trabalho e pesquisa bem como na luta pela Terra. Meu

muito carinhoso abraço à Claudia Cristina, que me incentivou e me botou na

roda do Ruação e que foi fundamental para minha aproximação do Grupo

Pesquisador e da pesquisa em si. Claudia com sua generosidade e sua

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autenticidade muito fez para que eu estivesse junto do Grupo e por isso lhe

sou muito grata. Agradecimento profundo a Maurília Valderez, Ana Amélia e

Eduardo Ferreira, Guilherme Rosa Almeida, Afonso Henrique Alves, João

Batista Alves dos Santos, Isaura Aço e Ariadne Marinho que tantas vezes

trocaram ideia comigo sobre o processo de vida e pesquisa. E meu

agradecimento indireto a todos que ofereceram resistência ao meu

pensamento e minha pesquisa, que acabaram por me fortalecer em meus

pensamentos e a gostar ainda mais de estar na rua, que me fizeram

compreender o quão importante é o valor da resistência. A todos aqueles que

criticaram e me fizeram ver o que eu não via e assim consolidaram uma

reflexão contrária ao meu pensamento, o que oi muito válido para o processo

de pensar-com.

Agradeço a Kayene Cupertino que foi até o Instituto Metrópolis para

pegar para mim o livro NOVAS FACES DA RUA, lançado recentemente e que

me colocou em contato com Mariana Menezes a quem fica meu abraço e forte

intenção de conhecê-la pessoalmente e que foi muito atenciosa em minha

interlocução.

Agradeço muito ao professor Amilcar Martins de maneira especial,

porque além de me trazer livros importantíssimo de Portugal também

destrinchou a primeira redação da tese comigo numa longa conversa e me

ajudou a consolidar melhor o ponto de vista de uma metodologia mais clara e

mais consistente e com quem aprendi e vivi muitos bons momentos em sua

interlocução conosco. Obrigada Arte-Nauta Amilcar, que prazer foi recebê-lo!

Também agradeço a todos que me indicaram livros, leituras, me

trouxeram notícias da rua, me enviaram fotos, me questionaram sobre o que

estava estudando, enfim... àqueles que passaram rapidamente e

acrescentaram uma inquietação. Meu mais profundo agradecimento in

memorian a Andréia, a Cheirosa, que se foi tão cedo e que marcou

profundamente essa pesquisa. Agradecimentos também a todos os grafiteiros,

especialmente: Góra, Siq, Babu e Amarelo. Com toda gratidão também

agradeço à Maria Yrigaray e Clovis Hirigaray pelas conversas, pelo convívio e

pelas belas imagens. Também agradeço a Fábio Pinheiro Saravy – Fábinho

Munduruku – pela revisão desta tese. A todos e todas: obrigada.

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NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE UMA

COMUNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ.

In Memorian

Foto: Dizão Gonçalves – Cheirosa.

Cuiabá, 2016

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Me llaman calle

(Mano Chao)

Me llaman calle, pisando baldosa

La revoltosa y tan perdida

Me llaman calle, calle de noche, calle de dia

Me llaman calle, hoy tan cansada, hoy tan vacía

Como maquinita por la gran ciudad

Me llaman calle, me subo a tu coche

Me llaman calle de malegría, calle dolida

Calle cansada de tanto amar

Voy calle abajo, voy calle arriba

No me rebajo ni por la vida

Me llaman calle y ése es mi orgulloYo sé que un día llegará

Yo sé que un día vendrá mi suerte

Un día me vendrá a buscar, a la salida un hombre Bueno

Por toda la vida y sin pagar, mi corazón no es de alquilar

Me llaman calle, me llaman calle

Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar

Me llaman calle, calle más calle

Me llaman calle la sin futuro

Me llaman calle la sin salida

Me llaman calle, calle más calle

La que mujeres de la vida

Suben para bajo, bajan para arriba

Como maquinita por la gran ciudad

Me llaman calle, me llaman calle

Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar

Me llaman calle, calle más calle

Me llaman siempre, y a cualquier hora

Me llaman guapa siempre a deshora

Me llaman puta, también princesa

Me llaman calle, es mi nobleza

Me llaman calle, calle sufrida, calle perdida de tanto amar

Me llaman calle, me llaman calle

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Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar

A la Puri, a la Carmen, Carolina, Bibiana, Nereida, Magda,

Marga, Heidi, Marcela, Jenny, Tatiana, Rudy, Mónica, María, María

Me llaman calle, me llaman calle

Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar

Me llaman calle, me llaman calle

Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar

Me llaman calle, me llaman calle

Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar

Me llaman calle, me llaman calle

Foto: Amarelo – Cuiabá – 2014.

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RESUMO

A tese aqui presente é a de que existe em Cuiabá uma comunidade em

situação de rua que habita a Ilha do Bananal no Centro da Cidade e que esta

comunidade possui uma auto-organização a partir dos arte-fatos e afetos que

mobilizam. Este fenômeno foi descrito a partir da pesquisa de campo

exploratória e contou com o diálogo com moradores em situação de rua e

descrição dos fenômenos que compõe a comunidade que habita a Ilha do

Bananal. Os arte-fatos e afetos são uma maneira de dizer de toda uma cultura

material e imaterial que envolve a vida da população em situação de rua que

habita a Ilha do Bananal. A principal interlocutora do trabalho foi Andreia, a

Cheirosa, que morreu este ano. A pesquisa revela que mesmo vivendo sob

égide da vulnerabilidade a comunidade da Ilha do Bananal consegue resistir

frente a fenômenos como a pobreza e a violência. O trajeto de pesquisa

desenvolveu-se a partir do fenômeno de interação entre a população em

situação de rua e os diversos elementos presentes na comunidade, quer seja,

a dimensão arquitetônica, os graffits e atos performativos da vida na rua. As

dimensões de apropriação e transformação da cultura e da própria vida

através dos arte-fatos e afetos presentes na comunidade garantem o habitar a

rua como processo de resistência e dão indicativos da possibilidade de uma

episteme nova para o entendimento da perspectiva da população em situação

de rua. Uma episteme das ruas e sobretudo uma episteme das ruas do Sul

começa a se insinuar numa trajetória em que a população em situação de rua

como protagonista do processo de habitar a rua deixa ver sua potência crítico-

educativa.

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ABSTRACT

The thesis herein is the one that in Cuiabá there is a homeless

community that inhabits the Bananal Island downtown and that this

community possesses a self-organization whose starting point is the art-facts

and affections it mobilizes. This phenomenon was described from exploratory

field research and has recurred to dialogues with the homeless inhabitants

and the description of the phenomena that comprise the community that

inhabits the Bananal Island. The art-facts and affections are a means of

expression of an entire material and immaterial culture that involves the life

of a homeless population that inhabits the Bananal Island. The main

interlocutor in this research was Andreia, the Fragrant, who died this year.

The research reveals that even living under the auspices of vulnerability, the

Bananal Island community manages to resist phenomena like poverty and

violence. The research path has developed from the phenomenon of

interaction between the homeless population and the many elements present

in the community, be it the architectonic dimension, the graffiti and

performance acts of life on the streets. The appropriation dimensions and the

transformation of culture and of life itself through art-facts and affections

present in the community assure inhabiting the streets like a resistance

process and indicate the possibility of a new episteme for understanding the

perspective of a homeless population. A streets episteme and, above all, a

Southern streets episteme start insinuating a trajectory in which the

homeless population as a protagonist in the process of inhabiting the streets

reveals its critical-educative dimension.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................13

PARTE 1

NO FRONT DA VIDA .............................................................................. 16

1.1 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABA...........................16

1.2 A Pesquisa Junto Da População Em Situação De Rua ........................ 18

1.3 . Como A Pesquisa Se Desenvolveu .......................................................................... 26

1.4 . Cartografia e Descrição.....................................................................52

1.5 . Características da Pesquisa...............................................................56

1.6 . A Pesquisa e Suas Interfaces.............................................................58

1.7 . Leituras: Compreensão, Interpretação e Descrição.............................60

1.8 . A dimensão fenomenológica do trabalho............................................63

PARTE 2

A VIDA NO FRONT............................................................................68

2. COMUNIDADE DA ILHA DO BANANAL..............................................68

2.1. Uma Árvore Pode Ser Um Perigo?.....................................................70

2.2. Circulação Circular.........................................................................78

2.3. Ele Pula Numa Ilha De Calor...........................................................82

2.4. Uma Experiência De Como As Informações Chegam Antes...............87

2.5. Baculejo Nervoso (30 De Agosto De 2016)........................................90

2.6. Uma Festa no Beco do Candeeiro....................................................95

2.7. A Ilha Extrapola A Ilha...................................................................100

PARTE 3

DAS ILHAS.....................................................................................105

3. ILHAS NASCENTES, ILHAS EXTINTAS E ILHAS DESERTAS.........105

3.1. Das jangadas de pedra...................................................................106

3.2. Comunidade Nascente...................................................................114

3.3. Ilha do out-door..............................................................................119

3.4. Comunidade Extinta.......................................................................126

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PARTE 4

POÉTICAS...........................................................................................132

4. DAS DESUTILIDADES, CRÍTICAS E POÉTICAS DAS ILHAS...........132

4.1. Da Lentidão Ou A Lentidão Como Resistência..................................138

4.2. Mina, Seus Cabelo É Da Hora..........................................................143

4.3. Das ilhas e margens – viver sem lugar.............................................153

4.4. A Praça Como Ilha...........................................................................161

4.5. A ilha do Maestro Das Máquinas Pulsantes.....................................165

4.6. Fila na Lapa. Uma ilha em um parêntese.........................................168

4.7. Uma ilha no meio do canteiro central..............................................172

4.8. A ilha dentro da ilha.......................................................................180

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................189

REFERÊNCIAS ..............................................................................192

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INTRODUÇÃO

Existem duas ideias centrais divididas em quatro partes e

considerações que formam esta tese e que no arcabouço de uma pesquisa

exploratória e descritivo-interpretativa dimensionam todo o trajeto de

pesquisa.

A primeira ideia é a de que existe uma comunidade de rua vivendo no

Centro da Cidade de Cuiabá. Para se chegar a esta tese a pesquisa se

estruturou nas seguintes fases: cartografia das ruas1, pesquisa exploratória

e interpretação-descrição dos fenômenos. Nas etapas de cartografia,

pesquisa exploratória e pesquisa descritiva, descobrimos uma comunidade

composta por mais de sessenta (60) pessoas vivendo numa localidade

chamada de Ilha do Bananal. Essa região está situada geograficamente entre

o Morro da Luz e o Beco do Candeeiro no Centro Norte da Cidade de Cuiabá-

MT-BR.

A segunda ideia que compõe esta tese e que percebemos através da

observação e interação com a comunidade da Ilha do Bananal é a de que

esta possui uma auto-organização e que este aspecto é fundamental para

sua sobrevivência enquanto comunidade nômade.

Estes aspectos estão enunciados no título do trabalho como a da vida

no front; são abordados de maneira a circunscrevermos a comunidade da

Ilha do Bananal e a cidade de Cuiabá (Porto, Centro, CPA e Coxipó) para

dimensionar os arte-fatos e afetos das/nas ilhas.

Esta pesquisa também descobriu a existência de uma comunidade

nascente e rememorou uma comunidade extinta que será brevemente

mencionada.

A Ilha do Bananal possui um envoltório de temas crítico-reflexivos com

grande potencial educativo vinculados ao seu território e entorno dado

principalmente pelos grafittis; possui também um repertório de agentes e

ações que bebem em seus temas, quer seja, o tema da rua e da vida nas

1 Cartografia aqui é utilizada no sentido de criar mapas de imagens, uma perspectiva que coloca a centralidade,

portanto, nas imagens da cidade, no caso uma cartografia voltada para as imagens da população em situação de rua e suas relações com o urbano. Interessa a esta cartografia o registro da vida dessa população através da imagem das pessoas em seus contextos de vida e interação com o urbano, por isso ações como dormir, andar, comer, passear, transitar, pedir, cantar, chorar, gritar, surtar e defecar na rua interessam.

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ruas – inspiração para este e outros trabalhos que certamente virão deste e

que portanto bebe nesta fonte a que me refiro.

Neste repertório de manifestações da cultura e da arte de rua, o graffiti

e as performances dos habitantes da ilha e de seus interlocutores forjam a

particularidade simbólico-comunicacional do vir-a-ser deste território.

A relação entre patrimônio arquitetônico, graffitis e performances da

população em situação de rua dá-nos o cenário da Ilha como um território

que, apesar da violência a ele relegada, também possui potencial educativo,

do ponto de vista de que a comunidade atua um teatro e pedagogia dos

oprimidos. As interlocuções com os moradores de rua revelam condição de

possibilidades educativas do território a partir do conjunto de imagens e de

interação que estas congregam. Apesar deste território estar legado ao

abandono pelo poder público sua organização enquanto moradias é

certamente um aspecto que revela a auto-organização e o potencial de

sociabilidade das pessoas que habitam os casarões da Ilha do Bananal.

Se complementa a tudo isso a perspectiva de que essa comunidade é

por sua vez interagente com este constructo da cultura material artística de

rua, ou seja, ela constitui junto desse amplo aspecto cultural um aspecto

sócio-político que relaciona território, habitação e cultura.

A Ilha do Bananal mobiliza todos esses elementos que chamamos aqui

de arte-fatos e de afetos e que são, em suas ligações com o contexto de vida

da cidade, o âmbito comunitário, vida comum ou vida compartilhada

presente na Ilha. Os afetos dizem respeito a toda interação e maneira de se

presentificar e de se conectar ao território, de sorte que também o meu afeto

de conexão analítico-descritivo e desejante forma com as pessoas do lugar e

a cultura um prisma das paisagens da ilha.

A ilha configura um território de saberes, presentes sobretudo em arte-

fatos e afetos que estão em devir e também os sentidos de vida da

comunidade.

Veremos que outras ilhas também integram o devir morar na rua,

habitar a rua. O patrimônio arquitetônico, os graffitis e as performances dos

moradores de rua presentes na Comunidade da Ilha do Bananal e seu

entorno constroem uma maneira de habitar a rua muito própria a estes

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moradores, pois encontram entre o Morro da Luz, o Beco do Candeeiro e a

Ilha do Bananal complementaridades entre as representações da casa, do

quintal e da cidade ao mesmo tempo em que tudo foge a estas

representações.

Habitar a rua torce o sentido do urbano, e por isso o fenômeno é feito

de ambiguidades e ambivalências. Assim nos questionamos: Dentre as

ambiguidades das ilhas está a de ensinar a pensar sobre uma cidade

educadora? As ilhas dariam conta de falar sobre uma nova maneira de

ver/ser na/da cidade? Habitar a rua pode constituir, para além das táticas

de sobrevivência no front, um ponto de vista da educação que leve em conta

a vida dessas populações numa perspectiva de educação popular? Com

quem, quais personagens e autores, se pensaria tal aspecto da educação?

Compreender o urbano a partir de uma população que habita a rua é

um desafio que toca as pedagogias comprometidas com as lutas pela terra e

território e, neste sentido, mergulhar na cultura de rua, pensá-la como

comunidades pode trazer a tona uma episteme nova – uma episteme que se

configure como uma episteme do Sul e mais ainda como uma episteme das

ruas do Sul. Também poderíamos pensar em termos da consolidação de algo

realmente novo na arte pública, conceito que ganhou notabilidade a partir

da incursão dos movimentos tipicamente da rua. Como isso seria possível?

Foto: Eliete Borges Lopes – (Detalhes: Av. do CPA – 2015 e Rodoviária, 2015).

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PARTE I

NO FRONT DA VIDA

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Bairro Bela Vista.

“Sem rua não há comunidade.” Bauman

1. 1 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ

O termo “população em situação de rua” será aqui utilizado de maneira a

relevar a parcela da população que se encontra morando na rua, habitando

a rua. Quando não for possível utilizar esse termo, o mais adequado

contemporaneamente, usaremos “morador em situação de rua” ou “morador

de rua”, em contraponto ao uso de “mendigos” ou “andarilhos”.

Abordaremos no decorrer do trabalho que as pessoas em situação de rua

fazem parte dos grupos vulneráveis, em contrapartida a algumas

formulações que tratam a população em situação de rua como desvalidos,

fragilizados, débeis ou aqueles a quem sempre falta algo; traremos a

dimensão de uma população que se auto-organiza e que é ativa e rebelde.

A pesquisa realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e

Combate à Fome, no período de agosto de 2007 a março de 2008, constatou

que em 71 cidades brasileiras com população superior a 300 mil habitantes

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(exceto São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, que já possuíam

levantamentos próprios) existiam 31.922 pessoas que utilizam as ruas como

forma de moradia no país.

Os resultados dessa pesquisa foram divulgados em 20082.

A partir dos questionários aplicados com essas pessoas maiores de 18

anos, encontramos alguns dados relevantes no relatório que apresentamos

em síntese: 82% desta população são do sexo masculino; 53% dos

entrevistados possuem entre 25 e 44 anos; 39% se declararam pardas;

29,5% brancas e 27,9 negras; 52,6% recebiam entre R$ 20,00 e R$ 80,00

semanais; 74% dos entrevistados declararam saber ler e escrever; 17,1%

respondeu que não sabem escrever e 8,3% apenas disseram que assinam o

próprio nome.

Os dados deste levantamento são importantes no quesito trabalho, pois

70,9% declararam exercer algum tipo de atividade remunerada, das quais:

27,5% são catadores de materiais recicláveis; 14,1% são flanelinhas; 6,3%

trabalham na construção civil; 4,2% exercem atividades de limpeza; e 3,1%

são carregadores ou estivadores. É interessante que somente 15,7% dos

entrevistados declaram que pediam esmola como meio de obtenção de renda.

Outro dado interessante elucidativo da pesquisa é sobre a origem da

população em situação de rua, pois 4,8% dos pesquisados responderam que

sempre viveram no município em que moram atualmente. Considerando os

outros 54,2% dos entrevistados, temos que destes 56% vieram de municípios

do mesmo estado de moradia atual e 72% vieram de áreas urbanas. Conclui-

se que parte considerável da população em situação de rua é originária do

mesmo local em que se encontra ou de locais próximos, não sendo em

decorrência de deslocamentos ou de migração do campo para a cidade.

2 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília – DP: [s.n], 2008. Disponível em: http://www.criancanaoederua.org.br/pdf/Pesquisa%20Nacional%20Sobre%20a%20Popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Rua.pdf (Acessado em 07/11/2016).

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1.2. A Pesquisa Junto da População em Situação de Rua

Meu lugar de pertencimento na pesquisa junto da população em

situação de rua é um lugar que está no coletivo; não é meu: é nosso. E nesse

lugar onde pesquisa e vida não se separam, o esforço é o de compreender,

por exemplo, como se constitui a Comunidade da Ilha do Bananal, com seus

traços particulares de bando e nomadismo e como estes articulam os arte-

fatos e os afetos relativos ao território.

Junto dessa população percebemos, por exemplo, o aprofundamento

dos laços sociais que criam pertencimentos e afetos que revelam uma

população ativa e rebelde que, em face do abandono, tem como estratégia de

defesa e de luta o 'bando' que, somado à afetividade, traz à tona

comunidades nascentes, e comunidades em Devir.

Trata-se de comunidades de sujeitos coletivos que se negam a um

coletivismo gregário, sujeitos políticos que destronam a política na crítica

que fazem enquanto aqueles que se sabem tornados vulneráveis e que essa

condição é, ao mesmo tempo, uma forma de existir e resistir, portanto de r-

existir.

R-existir ganha um sentido de vida, daquele que está lançado na

existência como sobrevivente, isto é, aquele que existe em combate com tudo

aquilo que o hostiliza, ou seja, que ameaça a sua própria existência e que no

combate pela sua manutenção encontra a existência como resistência por

isso R-existe.

Essas populações, que na vida estão como que na linha de frente, no

front mesmo de um combate travado em nome de uma suposta civilidade,

lida com aquilo tudo: Estado, Governo, Sociedade e Política, que os qualifica

como incivilizados, selvagens, sem alma, sujos, ladrões, imorais, doentes,

loucos e animais.

Aqui aparece uma colonialidade que surge como classes,

nomenclaturas, diagnósticos, avaliações vindas de várias áreas dos saberes e

que tratam a população em situação de rua muitas vezes na condição de um

rebaixamento de sua própria humanidade.

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Assim, estar no front afirma por um lado uma alternativa, uma

escolha, mas também uma falta de opção, uma violência. Se por um lado

afirma uma potência, uma condição de possibilidade, uma vida nova, um

devir criança, um devir animal e um devir louco, por outro lado também

afirma a maneira colonial de tratar essa população em muitos gradientes de

normatividade que transforma a condição de diferença numa profunda

desigualdade como o sabemos a partir de Boaventura de Souza Santos e

todos os teóricos que tratam da colonialidade do ser, do saber, do poder e

porque não, do viver.

A manutenção da vida dessa população constitui uma luta contrária à

colonialidade do viver e do habitar. Por isso traz consigo uma afirmação da

vida. A afirmação da vida a partir da r-existência às violências forma parte

da auto-organização de comunidades em situação de rua e mostra a vida no

front a partir das tentativas de aniquilamento como constitutiva da própria

vida urbana.

Ao mesmo tempo, o urbano construído pela população de rua ganha a

tônica de processo de colonização pelo sistema-mundo-capitalista e também

de um habitat. Habitat não no sentido de encontrar um conjunto de

elementos e situações físicas, geográficas e territoriais que favoreçam o seu

desenvolvimento, mais ou menos como entende a biologia, mas um sentido

de habitat como lugar único e que projeta sobre o mundo sua unicidade, sua

imensa capacidade de continuar a ser único em sua manifestação e ao qual

se pode buscar como condição de possibilidade de um outro urbano, uma

outra cidade, um outro mundo possível.

Neste sentido o a população em situação de rua é justamente aquela

que consegue construir o fenômeno “morar” a partir dos detritos, destroços,

desperdícios e desusos, formando assim para usar uma expressão do poeta

Manoel de Barros, uma série de desutilidades poéticas.

O lado perverso disso tudo é a acumulação de alguns enquanto que

outros precisam viver do que foi descartado. Outro lado também muito

complexo do ponto de vista educacional é preconceito quanto a não

existência de dignidade em uma vida que se descole do consumismo e da

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propriedade privada, no caso da vida na rua. Veremos como estes

preconceitos se veiculam a diversos discursos, dentre eles o de limpeza.

A comunidade de rua, ou comunidade no front, além de evidenciar que

o processo de Colonialidade do habitar e o silenciamento do r-existir dessas

populações são estratégias de um poder soberano, para lembrar Agambem,

também fazem ver que o silenciamento atinge seu ápice como marca do

processo civilizatório e que nos massacres, chacinas e assassinatos que

promovem o aniquilamento da população em situação de rua se tem a marca

de seu poder de destruir populações.

“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”.3

Dizer da existência de uma população de rua organizada numa

comunidade como a comunidade da Ilha do Bananal é problematizar a

legitimidade da morte na rua, pois encarar que não é problema viver na rua

nos propõe uma visão nova da vida em sua manifestação, entendendo que o

problema da vida na rua não é propriamente a vida na rua e sim a morte na

rua, ou seja, a autorização da morte na rua e sua não autorização enquanto

manutenção da vida.

Esse dilema entre viver e morrer, onde ambos possam se tornar um o

sinônimo do outro, tem implicações sérias do ponto de vista de que se assim

assumimos como algo dado na realidade ou consequência das escolhas

feitas, estaremos tomando um ponto de vista de permissão para a morte

daquele que tem a sua vida nua, ou seja, aquele que, na condição de

matável, pode também morrer na rua, sem maiores implicações. Isso

também problematiza a rua enquanto território de morte e não como

3 AGAMBEM, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 13.

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território de vida, o que enfraquece a própria noção de vida e de vida nas

cidades.

Se viver significa morrer, deixar morrer e ao mesmo tempo, fazer viver,

o que poderia nesta condições afirmar a vida?

Esta foi durante a pesquisa uma questão importante e por isso

entendemos que falar da comunidade de rua, de seus arte-fatos e afetos de

vida é a melhor maneira de afirmar a vida; é disso que se trata. Não uma

vida idealizada, ou que tenha dimensões prescritivas de como ela deva ser

vivida, nem mesmo uma vida que não deseje a morte, ou que não tenha a

morte como a espreita; sabemos que não se trata disso.

Se trata de afirmar a vida que é vivida, aquela que é presentificada e

que mesmo tendo sido deixada para morrer, no sentido do abandono, e por

isso se encontra no front, é ao mesmo tempo aquela que vive e deseja viver,

não aquela que se faz viver no sentido de legar a vida como condição, mas

aquela que encontrou uma saída que não é outra que não a própria vida em

suas contradições e ambiguidades, em suas existências e resistências, o

pulso que pulsa a vida que vive.

Colocar a questão da comunidade é colocar para este trabalho uma

questão central para pensar a Comunidade como Ilha, como uma

comunidade em devir, no sentido de que ela é e ao mesmo tempo está se

formando, se fazendo, e ainda mais se perguntar: o que pode significar ser

uma comunidade numa ilha? Que habitat é esse que integra o urbano sendo

ilha? Como uma população empobrecida e sem recurso financeiro ou de

investimento consegue organizar uma comunidade e sobreviver pairando

sobre si a permissão para a morte? Em que condições se forma essa

comunidade? O que é aqui uma comunidade e uma ilha?

“É possível pensar uma comunidade de mortais desde que ela seja de outra ordem. O filósofo francês Georges Bataille estabeleceu uma diferenciação, que me parece muito pertinente, entre uma ‘comunidade tradicional’ e uma ‘comunidade eletiva’. A ‘comunidade tradicional’ se funda na veneração da raça, solo ou tradição. A ‘comunidade eletiva’ é a comunidade desses que nada tem em comum, a não ser ‘uma escolha da parte dos elementos que a compõem’. Só que o ‘escolher’ refere-se menos à comunidade mesma do que à condição de mortal. É preciso primeiro escolher ser mortal. Trata-se de uma situação

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ambivalente: não podemos perder a comunidade, pois ela nos constitui essencialmente; somos condenados a ela. Mas, ao mesmo tempo, a comunidade não é dada, impõe-se conquistá-la e tornar possível seu vir-a-ser”4.

É preciso dizer que estas populações resistem, como na Ilha do

Bananal, cercados e no interior da cidade como desorganizadoras das lógicas

urbanas, mas também como integrantes a elas como articuladoras de novas

possibilidades de vida e de vida na rua, mas também cerceadas e tolhidas

pelas mesmas políticas de controle.

O fenômeno do “habitar a ilha” neste sentido está composto de

ambiguidades e ambivalências que se mostraram durante o percurso de

pesquisa e que se mostram aqui nos fragmentos escolhidos como partes dos

relatos e das análises.

A ambiguidade dá-se no cruzamento de linhas de vida e de morte que

atravessam a vida dessa comunidade, na violência intrínseca ao processo de

manutenção da comunidade e na relação com o que é externo à ilha, na

própria conexão entre interior e exterior.

A ligação entre interior e exterior é pensada como trânsito, como troca,

como jogo entre todo e qualquer vir-a-ser da comunidade da Ilha do

Bananal, não encerrando-a num nome ou numa categoria,como pode querer

a ideia de ilha ou de comunidade.

Esse trânsito, jogo, esse intercâmbio diz de uma comunidade que,

respeitando a característica do conceito de comunidade em Agambem, não

tem nada de endógeno, de fechada em si mesma, de auto-excludente, nem

que se defina apenas a partir de si mesma. Ela é auto-referenciada, mas não

é autóctone. Ele é auto-referencial mas não fechada.

O jogo entre a comunidade da ilha do bananal e a sociedade

envolvente, o entorno ou como queiram chamar as outras pessoas que não

moram na comunidade da Ilha do Bananal, é dado por uma grande

quantidade de eventos que atravessa a vida dos moradores da ilha e que são

parte da população de rua.

4 LINS, Daniel (org.) Nietzsche/Deleuze: arte, resistência. Simpósio Internacional de Filosofia. Fortaleza – CE:

Forense Universitária, 2007.

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Esses atravessamentos dão conta de uma vivência complexa e que ao

mesmo tempo trazem à tona essas ambiguidades próprias da vida humana

e, sobretudo, de uma vida no front. Estar entre é uma expressão interessante

e que pode ajudar a pensar a ilha como fronteira, uma ilha como uma faixa

limítrofe em que se conjugam tantos afetos diferentes que traçam sobre o

território tantas linhas que também ele deixa de existir como fronteira física

e passa a existir como fronteira que congrega, como fronteira pensada do

ponto de vista de uma linha fortemente marcada na experiência dos

moradores da ilha como moradores de rua, o que encerra uma dificuldade a

ser traçada conceitualmente, mas que dá a pensar a experiência da rua

como fronteira e a fronteira como rua.

A comunidade da Ilha do Bananal mobiliza espaços, temporalidades,

fatos e artefatos sociais e da cultura, de maneira a subverter o desejo de

pólis e consagrar-se ao desejo de Plaza (praça). Esse desejo de praça é desejo

do público, da própria fronteira, do contexto de uma vida limítrofe, entre o

aqui fora e o lá dentro, e sobretudo um entre passante, um entre nômades.

Esse desejo de plaza que é desejo de rua se constitui na

“inexpropriação”. O que é irredutível a essa população, o que lhes é

inexpugnável, é justamente não apenas a contingência da rua, mas o seu

desejo, tanto de amparo como de r-existência – desejo que é complexo e

ambíguo no sentido de que seus riscos configuram-se na mesma medida de

suas possibilidades.

Essa ambiguidade não apenas forja em grande medida o sentido da

comunidade que vem (Agambem); essas potências ensaiam as condições de

possibilidade de uma política da rua, de uma vida comum, no sentido de

uma vida compartilhada, isto é, o mesmo que a utopia de uma comunidade

nascente e de uma comunidade que ainda está vindo.

Para pensar uma pedagogia da rua, uma maneira de ensinar próprio

da rua, é evocativo pensar a vida compartilhada sendo aquela mesma vida

que resiste, que repensa e recria o urbano e portanto auto-organizada numa

nova urbanização, que revira, mexe com os sentidos comuns de habitação,

de habitat e de hábitos e que ao mesmo tempo coloca-se numa Guerra dos

Lugares, como diz Raquel Rolnik, ao abordar o tema.

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A população em situação de rua possui um capital cultural urbano,

principalmente pela sua imersão no interior da própria dinâmica da cidade,

especificamente na dinâmica do centro da cidade.

Algumas experiências dão conta de entender esse saber da cidade

como um de importância para a própria cidade. É o caso da experiência em

que a população em situação de rua atua como guias turísticos, como

pesquisadores que fazem entrevistas e recolhem dados para um determinado

fim e em experiências como, por exemplo, a de Porto Alegre em que temos o

belo exemplo do jornal Boca do Lixo, um jornal que fala da cidade a partir

das notícias que os moradores de rua contam e que é distribuído como um

jornal que tem igual status de notícia como os jornais feitos por empresas de

comunicação.

Abaixo se encontram algumas fotos da Comunidade Ilha do Bananal,

que certamente conta com esse potencial de criação e que é já um grande

diferencial na paisagem urbana colonizada pela circulação de mercadorias

do sistema-mundo-capitalista.

A comunidade da Ilha do Bananal comporta um território que vai da

Avenida Prainha até o fim do Morro da Luz. São casarões que deveriam ter

sido desapropriados para a construção e passagem do VLT (Veículo Leve

sobre Trilhos), que deveria ter sido implementado para a Copa do Mundo de

Futebol que aconteceu no Brasil em 2014 e em que Cuiabá se tornou uma

das sedes do evento.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Vista da Comunidade da Ilha do Bananal.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Ilha do Bananal.

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1.3. Como A Pesquisa Se Desenvolveu

Antes de iniciarmos a descrição do processo de cartografia da rua,

considero fundamental algumas imagens e por isso trago-as abaixo. Elas

proporcionam ver a cidade dando visibilidade à população em situação de

rua.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Maria Taquara, Centro.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Beco do Candeeiro, Centro.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Praça Ipiranga, Centro.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Praça do Porto.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Boa Esperança.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Boa Esperança.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Avenida do CPA.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Avenida do CPA.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Avenida do CPA.

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A pesquisa que se inscreve no quadro de uma pesquisa exploratória a

princípio se configurava como uma cartografia da situação de rua em Cuiabá

nomeada inicialmente por “Fronteiras de Vida: Cartografia Política da

Situação de Rua em Cuiabá – Projeto RuAção 2015-2018”.

Percebemos na cartografia a existência de territórios, habitações,

afetos, trajetos e laços sociais no funcionamento de uma política de ruação5;

essa política está imbuída de aspectos da produção da vida social e da

produção de uma cultura que mesmo na subalternidade possui grande

pertença aos movimentos sociais e de luta, pois cada auto-organização

nômade configura no espaço urbano maneiras de enfrentar as políticas mais

hostis. Essas maneiras de sobreviver e as táticas de luta são diferentes, por

exemplo, do Movimento dos Sem Terra, do Movimento dos Sem Teto e de

quaisquer outros movimentos.

A cartografia pensada numa perspectiva de pesquisa exploratória

proporcionou dimensionar o contexto mais amplo da cidade. Neste momento

foram importantes as fotografias, escolha de material bibliográfico de

pesquisa, escolha de lugares para observar, descoberta de quem eram os

moradores de cada região, traçado de quais lugares eram mais frequentados,

quais horários apareciam para pedir, para dormir, para passear.

Esse processo começa em um momento anterior ao curso de

doutorado na educação e durou ao todo em torno de um ano e meio.

Começou como uma pesquisa intuitiva em meados de 2014, e seguiu com

minha aprovação para o doutoramento no ano de 2015, ano este que

coincide com o primeiro ano de disciplinas e aprofundamento teórico e a

5 Ruação possui um sentido original de ruar, isto é, de fazer ruação, que consiste em tirar à volta da planta, folhas, gravetos e pequenos sedimentos para que o fogo não tenha como destruí-la. Na introdução do livro que é o resultado de diversas pesquisas feitas a partir do projeto RuAção assim escreve Solange T. de Lima Guimarães: RuAção: Das epistemologias da rua à Política da rua é o primeiro volume de uma série nominada PalavrAção: pesquisa e vulnerabilidades. Ele integra o conjunto de pesquisas do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e

Educação (GPMSE) e do Grupo de Estudos EducAção em Merleau-Ponty (GEMPO), vinculados ao Programa de Pós-

Graduação em Educação (PPGE) – Mestrado e Doutorado – do Instituto de Educação (IE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Esta pesquisa, proposta pela Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, advém do Centro de Referência dos Direitos Humanos de Mato Grosso referido à Secretaria Nacional de Direitos Humanos vinculada ao Gabinete da Presidência da República no Brasil, órgão financiador.

O Centro de Referência em Direitos Humanos, como proponente da pesquisa, é uma unidade da Secretaria de Estado de Direitos Humanos de Mato Grosso, criado pelo Decreto nº 1.094/2011. Dentre suas finalidades, propõe-se: ser um espaço de promoção, defesa, garantia e ampliação dos direitos de grupos e pessoas em condição de vulnerabilidade social, nas quais se incluem as populações em situação de rua; além de ser um espaço dialógico de

articulação política dos movimentos sociais, de produção e difusão de conhecimentos relativos aos direitos humanos e à dimensão política dos cidadãos. RuAção: das epitemologias da rua à política da rua. Organizado por Solange T. L.Guimarães, Claudia Cristina Ferreira Carvalho, Luiz augusto Passos, José Marin. Cuiabá-MT: EdUFMT, Editora Sustentável, 2014. Série PalavrAção.

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pesquisa cartográfica de teor exploratório. Anterior a estes dois processos,

meu desejo era o de fotografar os moradores e as coisas que levavam, como

na imagem abaixo, de 2011.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2011

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2011 – Morro da Luz.

A pesquisa de campo centrada no estudo exploratório proporcionou

entender o movimento nômade da população em situação de rua em grande

parte da cidade, sendo observadas também outras situações de interlocução

e registro em outros municípios.

Uma pequena observação é a de que o ponto de ônibus no qual me

situo para observar a comunidade da Ilha do Bananal é este da foto acima. E

que me localizo geralmente no banco de cimento onde o senhor de boné

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vermelho está sentado, ou no banco de metal do ponto de ônibus onde o

rapaz também com boné em tom vermelho está sentado.

A pesquisa de campo contou com o registro sistemático de toda pessoa

em situação de rua que eu encontrasse, sendo que com algumas delas,

havendo a possibilidade de uma conversa informal, esta se dava

independentemente de seu registro através dos instrumentos de gravação em

áudio, ou audiovisual, transcrição ou notas em caderno de campo, sendo

estas reservadas a momentos imediatamente posteriores.

A pesquisa exploratória na qual nos focamos tem seu principal aporte

teórico em Gil (2008)6, no entanto, é preciso salientar que a pesquisa de

campo tem essa característica, mas possui um forte teor de pesquisa

descritiva, e neste sentido se liga à dimensão fenomenológica, embora não

seja trazido todo o aporte teórico da fenomenologia. No trabalho, nossa

filiação de leitura para a vida se encontra na fenomenologia Merleau-

Freireana, uma perspectiva de trabalho que une a filosofia Merleau-

Pontyana e a práxis da pedagogia freireana.

A pesquisa bibliográfica, as conversas com as pessoas que estudam o

assunto através de encontros, reuniões e grupos de trabalho foram uma

constante durante todo o trajeto de pesquisa e a busca por uma leitura que

una Merleau-Ponty e Paulo freire numa teoria merleau-freireana esteve

presente nas publicações que fazem parte da dimensão curricular e em

partes da exigência para o cumprimento dos créditos relativos ao curso de

doutoramento, de maneira que podem ser acessados através dos escritos e

das diversas intervenções em Encontros, Jornadas, Simpósios e Congressos,

porém este âmbito de leitura ainda é feito aqui com a reserva de uma

iniciante.

Os encontros e conversas não puderam ser gravados, todas as pessoas

com quem conversei não se encontram abrigadas, nem contam com

nenhuma proteção, a não ser a da Ilha e por isso mesmo raramente deixam-

se gravar. Essa dificuldade metodológica foi descrita em trabalhos como o de

6 GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

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Kasper, que integra a bibliografia deste trabalho e que versa sobre as

moradias construídas a partir de caixotes de feira.

A perspectiva de uma singularidade qualquer7 acabou por se

transformar numa importante realidade de leitura, de interpretação e de

descrição. Entendemos que manter a possibilidade do anonimato quer dizer

potencializar os encontros e proteger as pessoas em situação de rua. Revelar

as pessoas que desejam passar sem serem notadas, portanto como

singularidades qualquer, para usar um termo de Agambem também

constitui uma questão ética muito séria do ponto de vista da pesquisa; me

ajudou pensar com Peter Pal Pelbart ao perguntar sobre o sentido do

comum:

“Como desafiar aquelas instâncias que expropriam o comum, e que o transcendentalizaram? É onde Agambem evoca uma resistência vinda, não como antes, de uma classe, um partido, um sindicato, um grupo, uma minoria, mas de uma singularidade qualquer, do qualquer um, como aquele que desafia um tanque de guerra na Praça Tienanmen, que já não se define por sua pertinência a uma identidade específica, seja de um grupo político ou um movimento social. É o que o Estado não pode tolerar a singularidade qualquer que o reusa sem constituir uma réplica espelhada do próprio Estado na figura de uma formação reconhecível. A singularidade qualquer, que não reivindica uma identidade, que não faz valer um liame social, que constitui uma multiplicidade inconstante, como diria Cantor. Singularidades que declinam toda identidade e toda condição de pertinência, mas manifestam seu ser comum – é a condição, diz Agambem, de toda uma política futura. Bento Prado Jr., referindo-se a Deleuze, utilizou uma expressão adequada a uma tal figura: o solitário solidário.”8

Toda esta pesquisa possui uma amplitude de pesquisa exploratória e

de campo realizada entre os meses de agosto de 2014 a dezembro de 2014 e

de março de 2015 a dezembro de 2015; contaram também como observação

e observação participante. A vivência junto da comunidade em situação de

rua da Ilha do Bananal foi proporcionada principalmente pela interlocutora e

moradora de rua Andreia, a Cheirosa, que morreu entre maio e junho de

2016.

7 A singularidade qualquer é um conceito agambenziano, contido em A Comunidade que vem (AGAMBEM, 2013, p.12). 8 PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 39.

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A pesquisa centra-se, portanto, entre os movimentos de campo, como

pesquisa exploratória reveladora da população em situação de rua e mesmo

como o processo que levou ao descobrimento de uma população inteira

vivendo no interior da Ilha do Bananal e também como pesquisa de

interlocução, de observação e de participação principalmente através das

atividades de andanças e conversas no Centro Norte, de Atividades no Beco

do Candeeiro e da forte interlocução com a moradora de rua Cheirosa.

A pesquisa exploratória proporcionou familiaridade com o problema de

pesquisa, aproximação da população em situação de rua, envolvimento com

a rede de proteção às vulnerabilidades da rua, alem de contato com

materiais de pesquisa que vieram através de pesquisadores e profissionais

que lidam diariamente com o cuidado institucional ou não relativo a estas

populações.

Esse tipo de pesquisa se mescla o que Gil, 2008 chama de pesquisa

descritiva que é uma pesquisa que tem por objetivo descrever as

características, as dimensões identitárias das populações ou fenômenos.

Esta pesquisa, no entanto, possui técnicas padronizadas de coleta de

dados e de observação sistemática, o que nos faz relativizá-la no sentido da

primeira exigência quanto ao levantamento de dados sistemáticos, dado a

complexidade do campo e todas as dificuldades já mencionadas em relação à

população em situação de rua; levantar dados sistemáticos neste sentido se

torna praticamente inviável. No entanto, a pesquisa descritiva se aplica a

este contexto no sentido de descrever exaustivamente à maneira

fenomenológica o fenômeno sentido, visível e invisível.

Também podemos adotar a característica de uma pesquisa explicativa

– conforme Gil (2008) – que é aquele tipo de pesquisa que pensa a

identificação de fatores que contribuem para explicitar uma dada realidade,

que, em suma, agrega elementos da realidade para constituir um todo

conectado e que faz sentido do ponto de vista de uma lógica explicativa da

realidade.

Não nos detemos no período anterior ao curso, mesmo este fazendo

parte do processo de pesquisa; mesmo que seja referido em alguns

momentos, não constituem em si o núcleo de análise. Nele estão contidas as

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conversas, os encontros informais que ocorreram de maneira não

intencional, o estudo relativo às questões de terra e território que já eram

uma intenção de pesquisa quando entrei para o curso.

Portanto, a existência de uma leitura e embasamento teórico anterior

proporcionou-me um rápido trânsito que foi das questões iniciais da Terra,

pois o meu projeto para o doutorado era sobre o Movimento dos Sem Terra

no assentamento Antônio Conselheiro MT para pensar as questões da terra,

da territorialidade e desterritorialização da população em situação de rua.

Também está contido neste período o trabalho de fotografia e

etnografia urbana realizado a partir do projeto Tão Incrível que Parece

Cuiabá, que tem uma página na rede social e que durante um período

anterior ao processo foi por mim alimentada e também o meu trabalho junto

à população do campo através da Superintendência de Diversidades

Educacionais na Coordenadoria de Educação do Campo da Secretaria de

Estado de Educação de Mato Grosso.

Deste modo, reforço o trajeto anterior ao ingresso no curso de

doutoramento como fundamental para constituir a minha vivência de

pesquisa com as populações em luta por terra e território, o que tornou meu

percurso relativamente mais aprofundado do ponto de vista do conhecimento

das teorias e do ponto de vista da militância política que por sua vez

proporcionou a entrada no campo muito cedo, o que correu em paralelo com

o desenvolvimento e aprofundamento das teorias e processos de pesquisa

exigidos como parte da formação no curso.

No citado acima – o Tão Incrível que Parece Cuiabá – foram realizadas

maratonas fotográficas, entrevistas e visitas a dois bordéis e visitas aos

moradores do bairro Porto, como é o caso da entrevista que fizemos ao Kid,

um antigo boxeador que sofre hoje de uma doença pulmonar e que vive em

condições de pobreza e falta de acesso à saúde.

Aquilo que se convenciona chamar entrevistas, que são conversas

informais, encontros, esbarrões e situações de rua vividas durante o período

de exploração do território, está diluído no trabalho de maneira a dar uma

condição de leitura a um fenômeno complexo e cheio de sobreposições,

reentrâncias, encavalamentos e de muitas ligações até certo ponto

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emaranhadas e em certa medida aparentemente desconexas. Elas estão

vinculadas a acontecimentos e fazem parte daquilo que se configurou a

descoberta do território e da comunidade da Ilha do Bananal.

A interlocução com a comunidade, e principalmente com a Cheirosa,

não se deu de maneira sistemática nem com registro formal. A não ser os

momentos em que existem registros do entorno da Ilha do Bananal e do seu

interior, nenhum outro momento foi filmado ou gravado em áudio, pois não

recebi nenhuma autorização para tal. A única pessoa de quem eu tinha

autorização expressa para gravar em áudio e vídeo era da Cheirosa.

Também cheguei a receber autorização do Cigano, mas acabei por ficar

com as trocar de ideias e as discussões sobre a rua com ele porque descobri

por ele mesmo que ele possuía uma casa e que, portanto, não morava mais

na rua, permanecendo com uma forte ligação com a rua como seu lugar de

pertencimento, principalmente para estar enquanto trabalha ou se diverte,

mas que não passa mais as noites na rua e que efetivamente não é mais

morador de rua.

Cigano hoje foi deslocado da frente do shopping Pantanal por uma

batida da polícia que retirou todos os vendedores ambulantes do local.

Cigano voltou para o centro onde estende seu pano com artesanato e de

onde saiu há muitos anos por conta da retirada dos hippies da lateral da

igreja matriz em frente à Praça da República, onde a prefeitura da cidade

realocou vendedores que possam pagar por cada metro quadrado que sua

barraca ocupe.

A dificuldade enorme de encontros com a população de rua mesmo no

estudo exploratório inicial, o que culminou numa iconografia de análise que

é apresentada junto desta tese, é sempre uma questão a colocar aspectos de

limites da investigação junto da população em situação de rua por um lado e

a problematizar até que ponto as próprias pesquisas se tornam invasivas e

violentadoras, por outro.

O não consentimento em gravar a fala evidencia muito da maneira

como lidamos com a população em situação de rua e, ao evidenciar isso,

Cheirosa uma vez me disse: “Ô minha linda, mas o que você vai fazer com as

coisas que eu falar?” Eu expliquei tudo que eu pretendia, ela falou que tudo

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bem, mas que precisava de um dinheirinho; eu achei justo e disse que

pagaria pelo seu trabalho. Neste dia tirei uma foto com a Cheirosa e fui para

casa com a promessa que jamais viria a se realizar.

Essas dimensões da pesquisa foram constantes durante todo o

processo de cartografia e mesmo no momento posterior, quando houve

interação junto à população em situação de rua a partir da Comunidade da

Ilha do Bananal, Beco do Candeeiro e seu entorno, o Centro Norte de

Cuiabá. Ao encontrar-me com a Hippie no Beco do Candeeiro num momento

de interação, ao conversar com ela descobri que eu poderia procurá-la na

Rodoviária; fui até a Rodoviária nos dias que se seguiram ao meu encontro

com a Hippie e não encontrei a Hippie na rodoviária – também não a vi mais.

Esse momento de pesquisa relatado aqui brevemente em que encontro

a Hippie, uma mulher de uns 35 anos, negra e grávida, me deram a certeza

de que eu poderia ter uma outra interlocutora. No entanto, quando fui à

rodoviária, não a encontrei. Desde lá, o mês de junho de 2015, não a

encontro mais. Isso torna a pesquisa implicada em dificuldades ainda

maiores: a de se perder a todo o tempo os seus interlocutores, os “sujeitos de

pesquisa”.

Neste momento, passa a ter importância a ideia contida no título: que

estes momentos são arte-fatos e afetos construídos junto dos moradores de

rua. Este arte-fato, este afeto, incorpora a pesquisa exploratória, a

cartografia, a pesquisa descritiva e analítica e todo o processo de vida que

acompanha o percurso do próprio curso.

O embrião da pesquisa está nos momentos de pesquisa em que

fotografava a população de rua pela cidade. Este momento é a própria

cartografia e marca a tentativa de passagem à interlocução com a população

de rua efetivamente, o que vem a ocorrer num curto período de tempo e que

corresponde ao tempo em que se deu a maior interação com Andréia, a

Cheirosa.

Este momento de pesquisa entre a cartografia e a interação junto da

comunidade da Ilha do Bananal marca a compreensão da existência de uma

auto-organização e maneira como se dão as relações com o entorno, o Beco

do Candeeiro e o Centro Norte.

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É necessário dizer que essa população, diferentemente de outras

populações, não figura no rol do engajamento tal qual pensam aqueles que

lutam por direitos e que, por isso, sua legitimidade é muitas vezes

contestada, pois há também para todo movimento uma forma da

organização a ele característico e que precisa ser olhado, visto, notado. É

muito comum pensar que para se ter organização se precisa líderes,

bandeiras, palavras de ordem, pautas, discursos e maneiras de se fazer

ouvir.

Essa população neste sentido mais clássico da organização dos

movimentos sociais muitas vezes carece desses aspectos da luta. Isto os

coloca muitas vezes ainda mais distantes dos movimentos por direitos; mas,

de maneira igualmente inteligente, também por esse motivo não se deixam

governar, nem se deixam cooptar. Mas há que se ver o outro aspecto: que é

justamente por isso que muitas vezes são tidas pelo poder como intratáveis,

incuráveis, ou como libertinos misantropos incorrigíveis.

Para efeitos deste trabalho, investimos na ideia de comunidade. Ao

sentido mais usual do termo, contrapusemos outras ideias, principalmente

as de Agambem, quanto ao vir-a-ser do termo, que designa pessoas em uma

dada condição por comunidade.

Pensamos com ele que a comunidade é um conceito interessante se

leva em conta dimensões como a de uma comunidade de jogo, como diz Peter

Pal Pelbart ao falar sobre o “Bloom” – termo da língua francesa para designar

o que seria para um tipo específico de pessoa. “À vida sem forma do homem

comum, às condições do niilismo, o grupo de Tiqqun9 deu o nome de

Bloom.”10

“Recentemente uma publicação anônima inspirada em Agambem contrapunha à comunidade terrível que se anuncia por toda parte, feita de vigilância recíproca e frivolidade, uma comunidade de jogo. Uma tal comunidade baseia-se numa nova arte das distâncias, no espaço de jogo entre desertores e não elide à dispersão, o exílio, a separação, mas assume a seu modo, mesmo nas condições mais adversas do niilismo, mesmo nesta vida sem forma do homem comum, aquele que perdeu a experiência, e com ela a comunidade, mas a comunidade que nunca houve, como

9 Revista Tiqqun. Paris, 2001 10 Peter Pal Pelbart. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

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disse Nancy, pois esta comunidade que ele supostamente perdeu é aquela que nunca existiu, a não ser sob as formas alienadas das pertinências, de classe, de nação, de meio, recusando sempre aquilo que a comunidade teria de mais próprio, a saber, a assunção da separação, da exposição e da finitude, como o havia postulado Bataille.11

Aqui alcançamos a afirmação da tese, a da existência de uma

comunidade de rua. Esta existência é ambígua, pois a ideia de comunidade

como a entendemos e como utilizamos neste escrito possui o sentido do

comum como aquele que não necessariamente é o sentido de um

agrupamento de pessoas que têm ideias e ideais em comum.

A dimensão que configura a comunidade é ao mesmo tempo a da sua

ligação organizada entre si e com a sociedade envolvente como um todo; não

é por acaso que pensamos numa ilha que se situa no centro da cidade de

Cuiabá; é porque esta ilha, esta comunidade no seio do urbano, rejeita a

condição de habitação do urbano e está para a cidade como a cidade está

para si, de maneira a não desertar do território, mas ao mesmo tempo fazer

o território diferir de si mesmo.

Dessa diferença, dessa diferenciação que a comunidade faz emergir,

surge o movimento da comunidade e os movimentos em torno desta, isto é, a

organização de uma rede por parte do Estado e da sociedade civil.

Existem vários movimentos articulados em torno dos direitos da

população em situação de rua – eu mesma faço parte dele – e o que está em

questão é justamente: como lidar com essas ambiguidades? Como viver-com

sem violentar o sujeito coletivo que ao mesmo tempo se nega ao coletivismo?

Como pensar a individualidade, que no interior da unidade chamada

população de rua, não se deixa aprisionar por nenhuma rede social e

nenhum discurso sobre si mesmo.

Poderíamos pensar numa espécie de cidadania daquele cidadão que,

não abrindo mão do urbano, o faz tecer-se à sua própria subjetividade e não

busca se enquadrar no urbano para nele permanecer, mas torcendo o

sentido posto de urbano?

11 Idem.

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É certo que a presença dos sujeitos coletivos e solitários ao mesmo

tempo indica necessidades, mas como prevê-las no escopo das políticas

públicas sem tornar o morador de rua um tipo normativo?

Como entender que esse cidadão da cidade, com toda sua

redundância, leva à realidade o direito de estar no mundo e de viver onde se

quiser nele? São cidadãos que rejeitam a ideia da necessidade de uma

propriedade para se habitar, pois deseja habitar o “lugar qualquer”. Habitar

o público e o público. Tornando o público efetivamente público pelo seu uso,

esse morador “qualquer” é também uma forma da nova comunidade que

vem. E esta é uma questão ética, entender a possibilidade de que não haja

um destino traçado e que não haja uma via de regra para a própria vida é

pensar a possibilidade mesma da ética, como nos diz Agambem12:

“O fato de onde deve partir todo o discurso sobre a ética é o de que o homem não é nem terá de ser ou de realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico. É a única razão por que algo como uma ética pode existir: pois é evidente que se o homem fosse ou tivesse de ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não existiria nenhuma experiência ética possível – haveria apenas deveres a realizar”.

O que nos mostra Agambem é que as tentativas de controle das

populações, e especialmente da população em situação de rua, revela

questões éticas profundas que dizem respeito ao controle da própria

existência das pessoas no sentido de uma destinação da vida nua, isto é, da

impossibilidade de liberdade frente ao mundo determinado pela condição de

vida a rua.

Controlar essas populações é sempre intento de políticas de Estado ou

de governo que investem na ideia de que o controle sobre suas vidas lega à

sociedade um estatuto de social, uma ideia de coerência e de eficácia na

manutenção da vida. Isso pode ser posto em dúvida por todas as pessoas

que permanecem na rua a despeito da tentativa de controle. Também aqui se

encontra um ponto ambíguo para se pensar, que leva a um questionamento:

12 AGAMBEM, Giorgio. A Comunidade que vem. 1ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, 1993. p. 38.

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o que seria necessário para ter uma vida digna e ao mesmo tempo se

conservar o direito de viver na rua? Como se poderia manter a vida como

potencia?

Agambem em seu livro Potencia do Pensamento, irá dizer que o

potente pode ser aquilo no que há falta, assim, recorre à tradição filosófica

para explicar que naquilo a que falta existe também uma potência, como o

músico que pode escolher tocar e escolher não tocar, sendo que sua potência

ao escolher não tocar está justamente no fato de que sabe tocar e escolhe

não tocar. Essa decisão também pode ser vista naquele que escolhe não

escrever, como Bartebly, o personagem de Herman Melville, que sendo um

escriturário, decide não mais escrever: a recusa à escrita é uma potência

mais potente que a própria escrita, dado que entre escrever e condenar ele

prefere não escrever e assim a potência reside justamente na negação, na

negação enquanto posicionamento ético, na negação enquanto negação da

automativa da escrita e na implicação do sujeito em seu fazer, questionado

de dentro pela liberdade em dizer não.

Aqui também existe a mesma potência da organização que rejeita

qualquer organização exógena ficando a cargo da auto-organização.

Uma das formas de organização mais recorrentes na organização da

população em situação de rua é a organização a partir de cooperativas de

catadores de materiais recicláveis e das redes de apoio que se formam em

torno da população em situação de rua, ambas com suas potencias e suas

limitações. São as práticas que mais têm sido implementadas

contemporaneamente em nosso país e são as de organização em torno da

população de rua. As práticas de rede, de formação de redes de atendimento

na cidade de São Paulo, por exemplo, são amplamente descritas no livro:

Corpos Urbanos Errantes de Simone Miziara Frangela 2009.

Outros escritos como os Relatórios Nacionais13, o Censo Nacional14,

Relatórios sobre Violação dos Direitos Humanos durante megaeventos15 dão

13 PARESCHI, A. C. C.; ENGEL, C. L.; BAPTISTA, G. C. Direitos Humanos, grupos vulneráveis e segurança pública (Coleção pensando a segurança pública, volume 6). Brasília – DF: Ministério da Justiça e Cidadania. Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2016. Disponível em http://www.justica.gov.br/sua-

seguranca/seguranca-publica/analise-e-pesquisa/download/pensando/pensando-a-seguranca-publica_vol-6.pdf (Acessado em 08/11/2006). 14 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília – DP: [s.n], 2008. Disponível em:

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conta de falar sobre a rede em torno da população em situação de rua e as

violações em relação a esta população. As discussões bem como os Fóruns

que acontecem nas esferas Municipais, Estaduais e Nacionais também

figuraram uma dimensão importante.

Muitos projetos de vida comunitária e de engajamento na vida social

levam em conta o importante fato de que as pessoas que vivem em condição

de rua não necessariamente desejam outra condição, mas desejam por outro

lado que a condição de rua não se lhes imponha como consequência trágica

de sua alternativa de vida, por exemplo, a privação, a interdição, a prisão, a

violência e a morte.

A violência decorrente da intolerância quanto à legitimidade da

população da situação de rua em habitar a rua gera uma condição

absolutamente adversa e hostil pra quem vive na rua, mas entre a

diminuição da potência de vida e sua afirmação, a população em situação de

rua acaba por criar-se na afirmação, gerando novas potências mesmo que

pela falta, na falta, na indiferença e na quase impossibilidade. O

problemático está muitas vezes em ter de colocar a própria vida em risco

para poder gerar essa potencia de vida, o que torna a condição de rua

trágica. Morar na rua não é crime, mas no Brasil tem sido criminalizado

pelas políticas de higienização, de segurança e toda a política de gestão do

espaço público.

Toda a cartografia do nosso trabalho desembocou na circunscrição de

um território mais imediato que envolve a Ilha do Bananal, e levou-nos a

perceber a população de rua dispersa por toda a cidade e ao mesmo tempo

concentrada em algumas áreas formando pequenas comunidades ou ilhas,

como a Ilha do Bananal.

A existência da ilha impõe a existência de um território; o território é

poroso, cheio de rugosidades e essas rugosidades, para usar uma expressão

deleuzeana, criam a existência da habitação como um dado do território, um

http://www.criancanaoederua.org.br/pdf/Pesquisa%20Nacional%20Sobre%20a%20Popula%C3%A7%C3%A3o%20

em%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Rua.pdf (Acessado em 07/11/2016). 15 MEGAEVENTOS e violações de direitos humanos no Brasil: Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa. [S.l.: s.n., 20--]. Disponível em formato PDF em: http://www.apublica.org/wp-content/uploads/2012/01/DossieViolacoesCopa.pdf

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estriamento do território, grosso modo colocado aqui, o território da ilha não

e liso, é estriado, é cheio de reentrâncias, de diferenças.

Abaixo selecionei do amplo material recolhido do campo algumas

imagens que dão conta de mostrar duas dimensões da ilha, o lado de dentro

e o lado de fora, que contextualizam a vida no seu interior, o patrimônio

arquitetônico e o arte-fatos presentes em sua configuração enquanto

território de rua – os graffitis que estão espalhados por toda a sua extensão e

a figura de um homem sentado retratado no interior da Ilha. Há também o

quintal e a parte interna da construção, que dão a dimensão de uma

habitação convencional e que, ao mesmo tempo, em seus novos usos pela

população em situação de rua, se tornam também não convencionais.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Interior da Ilha do Bananal.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Interior da Ilha do Bananal.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Exterior da Ilha do Bananal.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Exterior da Ilha do Bananal.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Graffiti Ilha do Bananal.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Interior da Ilha do Bananal.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Interior da Ilha do Bananal.

A adaptação de uma carcaça de ventilador a um pé de cadeira tornou o

objeto uma inteligente solução ao calor que em Cuiabá é intenso

praticamente todo o ano. Durante um curto período em que observei a

comunidade a noite, não consegui observar luzes acesas em seu interior,

sendo que sua iluminação vem dos postes de iluminação pública que nas

ruas do centro nesta região é bem intensa. Mesmo assim o ventilador indica

a existência de energia elétrica, ao menos na parte de baixo da construção, o

que também pode denotar uma opção por não se ter luz no interior dos

casarões, ou mesmo que talvez estas realmente não funcionem e devam

também permanecer dessa maneira.

O ventilador – que é como um ready-made, pois teve sua função

deslocada – cumpre ao mesmo tempo com a função de utilidade, também

como um arte-fato: uma invenção que cumpre com um misto de

intencionalidades, a de sua utilidade e de sua aparição enquanto um fato da

cultura, portanto um arte-fato no sentido que estamos nomeando.

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Também pode se configurar como uma territorialização no sentido de uma

marca do território, uma marca de que este território é habitado e que além

de habitado é um espaço em que se pensa alternativas para a sobrevivência.

“O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções que nele se exercem são produtos da territorialização.” (DELEUZE & GUATTARI, 1997)

O território da Ilha do Bananal possui destes afetos, comunga desses

objetos arte-fatos.

A combinação é uma das táticas que se manifestam em diversas

culturas de rua. A combinação pode se mostrar também nos graffitis das

paredes do prédio onde se situa a população da comunidade Ilha do

Bananal, onde elementos da cultura pop se misturam a elementos da

cultura de rua e ícones consagrados tornam-se importantes indicadores de

leituras críticas.

Numa das paredes do casarão podemos ver, por exemplo, um

barquinho. O barquinho, representando o que é frágil em meio ao caos e

destruição do monumento, cria uma atmosfera em que a cultura de rua,

com seus artistas, poetas e moradores, configura um único movimento cheio

de re-entrâncias e desdobramentos de uns sobre os outros.

Um outro elemento que aparece também é um palhaço triste, que

situa-se na beira de uma janela que está ruindo. Este desenho coloca este

ser, que é um palhaço, aqui podendo ser aquele que é ludibriado, enganado

ou surrupiado e por isso está triste, em crise, ruindo junto com o casarão.

Além desses personagens, outros feitos por máscaras estão no interior e no

exterior do casarão, formando uma espécie de alegoria fantasmagórica que

representa os mesmos fantasmas que sobem com a fumaça do crack, dos

sonhos esvoaçantes dos moradores com seus fogões improvisados de latas,

com a fumaça que sobe do lixo que queimam, enfim... figurando como seus

próprios demônios e anjos que circulam como velhos conhecidos dos

moradores da Ilha.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Interior da Ilha do Bananal.

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1.4. Cartografia e Descrição

Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Andréia, a Cheirosa.

Ao mencionarmos, qualquer que seja o lugar de onde estamos falando,

da população em situação de rua ou dos “moradores de rua”, estamos já nos

referindo a uma realidade que possui um quê de impalpável, imaterial e

incorpóreo.

Com isso não estou negando a dura realidade dessa população, suas

dificuldades e as condições de possibilidade de Vida que ela representa; o

que digo é que estaremos falando, autorizadamente ou não, num alto grau

de generalidade a respeito de uma população heterogênea e ingovernável.

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Ingovernável no sentido de que, como nômades, passam ao largo das

convenções sociais e ao mesmo tempo estão no coração da vida urbana, na

constituição mesma das comunidades nascentes.

A percepção de que o nomadismo é uma tática fundamental de vida

tem uma tônica forte em meu trabalho, principalmente em função de uma

série de desencontros e de encontros fortuitos, como é o caso do trabalho

junto da população em situação de rua desenvolvido aqui.

A pesquisa, que começa por uma cartografia da rua, relativa ao

primeiro ano do curso de doutorado, em que me dediquei a descobrir cada

vez mais as pessoas em situação de rua na cidade de Cuiabá, me mostrou

que muitos dos meus encontros provavelmente não se repetiriam, dado à

transitividade do contato e da não permanência das pessoas nos mesmos

locais.

Esse contato fugidio passou a ser problematizado do ponto de vista da

pesquisa como uma característica do trabalho com a população em situação

de rua.

Pensando essa dimensão da conversa informal, dos contatos não

planejados com essas pessoas, descobri que também minha pesquisa teria

de construir-se em meio à presença-ausência dessas pessoas; que a

abordagem não seria uma simples abordagem, que mesmo encontrar as

pessoas configurava um obstáculo a ser considerado na pesquisa.

Tendo em vista o percurso absolutamente imprevisível dos moradores

de rua, comecei a perceber que não poderia me fixar em algumas pessoas, e

que seria difícil, apesar de compreender a existência de territórios e rotas

afetivas, encontrá-las novamente ou, quando de um novo encontro, retomar

um encontro já acontecido. Por outro lado, como pesquisadora, não poderia

– nem deveria – me permitir minar a estratégia da vida nômade.

Não percorrer os mesmos lugares, não se deixar aprisionar por lugares

ou pessoas é uma tática de vida e de sobrevivência.

Aprendi com a população em situação de rua que cada dia é um dia, e

que não se deve esperar continuidade, ou ao menos não se deve nutrir

expectativas tal qual aquelas às quais estamos adaptados, a dos encontros

pedagógicos ou dos processos educativos no sentido mais formal deles.

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As imagens que aparecem aqui quando falo da cartografia são da

Cheirosa, porque através da Cartografia foi que a conheci.

Ela já habitava o Centro da cidade e eu, no projeto cartográfico, jogava

as imagens na rede social. Ao jogar a imagem da Cheirosa, a quem eu ainda

não conhecia nem pelo apelido, uma amiga e colaboradora, filha de uma

grande artista chamado Clovis Irigaray, a Maria Hirigaray, falou comigo

dizendo que era tão bom saber da Cheirosa – o que logo me interessou.

Ela me contou um pouco da vida da Cheirosa, pois a conhecia antes

dela ir para a rua e nela morrer. Contou-me que Cheirosa fazia artesanato e

que tinha um pano estendido na mesma lateral da igreja Matriz, onde os

hippies foram retirados pela prefeitura, e que a partir do momento em que

passou a não ter mais lugar para vender os seus “trampos” passou a viver

pelo centro, perambulando e comendo do que pedia.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Andréia, a Cheirosa.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Andréia, a Cheirosa.

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1.5. Características da Pesquisa

Percebo que qualquer referência a algum tipo de aprisionamento, seja

a palavras ou mesmo a um compromisso, a um novo encontro, qualquer que

seja a modalidade da socialização – planejada ou simulada como fortuita –

na maioria das vezes não dá resultados.

A complexidade da aproximação, da escuta ou da interação com a

população em situação de rua me levou a abrir mão de máquinas

fotográficas, gravadores, blocos de anotações ou qualquer coisa que me

identificasse como uma pesquisadora e passei a agradar-me dos encontros

totalmente fortuitos, sem pauta, sem nexo aparente e sem mesmo registro

formal.

Nem mesmo o nome é algo a ser dito. Quando reconheci Andréia numa

tarde quente em Cuiabá e a chamei pelo nome perto de outras pessoas ela

me repreendeu, disse que “num colava mais em mim” e que se eu quisesse

falar com que era pra chama-la de Cheirosa.

Comecei a entender que a interação de pessoa a pessoa, excluída a

“função social”, era a única alternativa para que eu pudesse ter uma

confiabilidade mínima de quem falava a mim, e que esta seria na verdade a

possibilidade mais potente de um encontro.

O desejo de morar na rua não é um desejo simples: ele releva uma

liberdade radical que para se deixar tocar é preciso se colocar de igual pra

igual, descer da condição de humanidade outra à qual você como

pesquisadora pode ser considerada segunda a ótica da rua; descer do

pedestal quer dizer falar com e ser toda ouvidos, entender que existe sim a

ideia de que nós somos nós e eles são os outros.

Nós e eles. Essa expressão fica clara na relação com os moradores de

rua. Nós somos aqueles aos quais eles aderem às regras apenas como uso

descartável e muito liquefeito, que usada essa regra uma vez ela se torna

como a própria vida na rua em toda sua intensidade de não repetição. Não

me reconhecer é típico. Fingir que não me viu, fingir que não se lembra, eu

também com isso jogo o jogo, sabendo que são eles quem dá as cartas; isso é

legítimo.

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Entendo que jogam o tempo todo com os nossos pressupostos e

entendimentos sobre o mundo, que estão prontos a desconstruí-los com a

legitimidade de quem conhece tanto uma quanto a “outra vida” e que há, em

grande medida, muitas contingências, mas também há decisão – decisão

quanto ao modo de vida a se levar, decisão quanto ao que se escolhe.

Algumas dimensões importantes apareceram durante a cartografia e

serão apenas mencionados e demonstrados através de imagens escolhidas a

partir da cartografia, quer sejam: a presença do animal junto ao morador de

rua, a completa destituição de bens de consumo.

Foto e montagem: Eliete Borges Lopes – 2014-2015 – Cuiabá.

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1.6. A Pesquisa e Suas Interfaces

Foto: Eliete Borges Lopes – Julho de 2016 – Rio de Janeiro.

Ao participar do Fórum Permanente da População em Situação de Rua

do Estado do Rio de Janeiro, um debate forte se deu em torno da rede de

assistência à pessoa em situação de rua e uma das preocupações é com uma

espécie de triagem – essa triagem é também uma espécie de rastreamento

em que a ideia de atender ao morador e tão logo identificada sua “origem”,

“recambiar” o paciente para sua unidade é o pressuposto da existência da

rede.

Esta estratégia pode ser justamente um dos principais motivos pelo

qual o morador de rua sai ou se ausenta do sistema, dado que mina sua

principal tática de sobrevivência, o não estar em lugar algum e ao mesmo

tempo em todo lugar como cidadão radical, como representante de uma

cidadania radical. Ao “recambiar” - palavra horrorosa - o morador para sua

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“origem” o sistema o devolve ao próprio sistema ao qual ele está fugindo ou

fazendo fugir. O sistema de vida nômade consiste em fazer os problemas de

sobrevivência fugirem conforme se faça a vida seguir em outra e outra e

outra direção e por isso a andarilhagem como combate e como a saúde

assume uma função profilática.

Nada fere mais de morte um morador que problemas em seus pés;

notem que este problema de saúde também tende a ser recorrente, como

trabalhadores do campo que tem problemas com a não impressão de suas

digitais por conta do trabalho com as mãos que lhes arranca as marcas. O

cidadão radical, o morador de rua, pela sua necessidade de saúde, tende a

ter problemas nos pés dadas as suas longas caminhadas e sua condição

difícil de acesso à saúde social.

A rede de atendimento merece uma atenção especial no trabalho de

Simone Miziara Frangella. Da página 83 a 104 a autora aborda a questão,

falando das minúcias do atendimento, principalmente em albergues na

cidade de São Paulo.

Insistimos na tese do nomadismo como tática, e explicitamos que a

tática de deixar o território é tão importante quanto uma política de auto-

organização, mas que à diferença de um estabelecimento sedentário, um

morador pode durante muitos anos e, dependendo de seu objetivo, ter como

tática o constante caminhar.

Em Brasília, à época em que se tinha intensificado o policiamento,

ouvi de um morador de rua exatamente este relato: o de que era importante

sempre circular porque os canas estavam em todo lugar e uma maneira era

confundi-los, pois eles não conseguiam saber quem era quem com tanta

gente (moradora de rua) em circulação. Além disso, certa camuflagem

também se fazia necessária: andar parecendo transeunte normal pelas ruas

para ser identificado como qualquer trabalhador, não carregar suas coisas

em sacos de lixo, não usar gorro, não usar havaianas se possível, carregar o

mínimo como se fosse uma mochila de quem passa o dia fora. E como

guardar as suas coisas? Como dormir? Eu quis saber; ele disse que tem de

ficar “mocando” tudo, escondendo tudo.

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1.7. Leituras (Compreensão, Interpretação e Descrição)

Para pensar em termos teóricos a construção do arcabouço de

pesquisa, as relações entre as teorias e a maneira como abordar a temática

proposta além das leituras fundantes no interior do grupo de pesquisa de

Movimentos Sociais (Seminário Avançado I - Movimentos Sociais, Política e

Educação Popular, Movimentos Sociais e Educação I e II), foi necessário o

cumprimento de uma série de disciplinas como Teorias e Práticas em

Pesquisa na Educação I, Seminário de Pesquisa em Educação I, Teorias e

Práticas em Pesquisa na Educação II, Teorias e Práticas em Pesquisa na

Educação II.

Além do cumprimento com as disciplinas programadas, ainda

realizamos dois cursos para discutir a Fenomenologia como aporte teórico-

metodológico, os cursos de Seminário Temático e um curso de Extensão com

carga horária de 60 horas sobre o tema “Educação e Fenomenologia:

Paradigma da Esferecidade versus Homogeneização”, organizado e

ministrado no interior do grupo de pesquisa. Além desse aprofundamento,

busquei em outro programa de pós graduação – o ECCO, Programa de Pós

Graduação em Estudos da Cultura – uma disciplina sobre Walter Benjamim

que se intitulou “Tópicos Especiais em Epistemes Contemporâneas:

Experiência, Mediação pelas Novas Tecnologias” com o professor Bernard

Fitcher, que esteve conosco num intercambio de uma semana, bem como

trabalhos de leituras e aprofundamentos junto dos programas de pós

graduação oferecidos pela UFMT.

Também realizei, como parte integrante de minha formação, dois

estágios docência no curso de Pedagogia, o primeiro foi numa disciplina de

Literatura Infantil e o segundo na disciplina de Fundamentos e Metodologia

da Linguagem II; ambas integram a dimensão dos estudos relativos à minha

formação continuada em docência e assim foram pensados para darem

conta da minha atualização profissional voltada para o magistério das séries

iniciais, onde se configura meu lócus de atuação profissional como

professora da Rede Estadual de Ensino.

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Além desses aspectos, fiz uma disciplina optativa com carga horária de

60 horas que me proporcionou dimensionar a disciplina de didática não

apenas para o ensino fundamental, como é o caso de minha formação inicial,

mas agora para a Didática no Ensino Superior, no qual tenho experiência

apenas em instituições privadas.

Todas essas atividade somam-se a publicações que são resultantes dos

períodos de trabalho com a cartografia da rua e os momentos de interação

com a Comunidade da Ilha do Bananal, de maneira que estão aqui sendo

brevemente contextualizadas por fazerem parte desse escrito como a base

fundamental que sustenta a discussão mesma e para contextualizar uma

trajetória de leitura que neste momento está presente no trabalho mas que,

por desejar criar um estilo próprio, abandonou por vezes as citações, a

maneira mais clássica de divisão das partes do trabalho e uma série de

normativas que durante muitos anos se julgou necessárias à construção dos

trabalhos acadêmicos, mas que tem sido flexibilizadas pela própria academia

muitas vezes por entender que uma voz própria precisa ser pensada e

atualizada na dimensão dos escritos autorais.

A tese apresenta um estudo da cultura material, das dimensões de

vida cotidiana dos moradores de rua na cidade de Cuiabá, mais

especificamente na Ilha do Bananal. Aposta no ponto de vista do habitar

enquanto modo de ocupação do espaço, como criação de territórios e de

tecnologias, de modos de ser e de fazer, de modos novos de pensar o urbano.

Também desejou contar a história de vida de uma moradora de rua – a

Cheirosa. No entanto a pesquisa neste ponto foi interrompida por sua morte,

o que levou também ao seu término e encerrou a possibilidade de pesquisa

em uma pesquisa exploratória. Como projeção de continuidade podemos

pensar a pesquisa se fechando neste momento como um mapeamento da

comunidade em situação de rua, a descoberta dos arte-fatos e análise

preliminar de alguns desse arte-fatos, a marca forte da dimensão do afeto,

como afeto ao urbano, manifestado por um morador de rua que quando em

conversa comigo me disse que morar no Centro é a melhor coisa que existe.

Ele me perguntou: “Onde a senhora mora?” Eu disse: no Coxipó. E ele

respondeu: “Pois é... eu moro no Centro, e eu não saio daqui, daqui eu só

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vou morto, aqui eu tenho tudo que eu preciso e eu não preciso de muita

coisa não, a senhora bem vê!”

Esse pequeno trecho que trago aqui serve para circunscrever um

pouco do que significa o afeto que os moradores tem pelo Centro. E também

serve para pensar as perspectivas de continuidade de um mapa afetivo a

partir dos moradores de rua. Pensar quais são os melhores lugares segundo

sua ótica, o que cada lugar apresenta como facilidade e conforto... Enfim...

pensar questões do ambiente e do social que se entrelaçam no fenômeno

morar na rua.

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1.8. A Dimensão Da Fenomenologia Do Trabalho

Mesmo que de maneira bastante sintética, é importante mencionar

que o trabalho teve, durante o curso, a sua orientação voltada para a

concepção fenomenológica da pesquisa enquanto escopo teórico-

metodológico. Rapidamente poderíamos, numa breve contextualização, dizer

que o fenômeno é uma inscrição kantiana que em sua tradição enquanto

conceito filosófico tem na pergunta de Kant: o que é possível conhecer? Uma

de suas fundações. Kant se pergunta isso porque está absolutamente

abalado pela leitura que fez de Hume.

Hume que é um cético moderno diz: “Não podemos conhecer.” São os

hábitos mais a memória que criam os nexos entre causa e efeito, portanto, o

conhecimento são hábitos e memória conjugando nexos arbitrários, ou seja,

Causalidade, que por sua vez é uma importante questão para a filosofia na

Antiguidade e continuará ainda após Aristóteles.

O que se investigava antes de Kant era o Ser – ou o conhecer – desde

Parmênides, que identificava o Ser com o pensamento passando por Platão,

que acreditava que o mundo fenomênico, como nos referimos

modernamente, tinha sua essência no mundo das ideias até chegarmos ao

filósofo que é uma espécie de síntese dessas ideias: Aristóteles.

Aristóteles diz que a causalidade – ou a causa última – das coisas é

Deus, o primeiro motor imóvel. Aristóteles é síntese no sentido de que não

toma de todo nem as concepções de Parmênides quanto à imobilidade do Ser

nem as de Platão quanto ao mundo das essências imutáveis. Assim,

Aristóteles distingue substância de essência de acidente; ato de potência e

forma de matéria, como maneira de conciliar a imutabilidade e a mudança, o

acidental e o essencial e ainda o individual e o universal.

Durante a Idade Média – século 11 e 12 – ainda havia muita polêmica

em relação ao objeto, tanto que terei que resumidamente apenas mencionar

as três correntes mais conhecidas, sem entrar em pormenores; são elas: 1) o

realismo - que defendia que as coisas (ou o universal) têm realidade objetiva

- retomada de Platão; 2) Thomas de Aquino defendia um realismo moderado

que dizia que os universais só existem formalmente no espírito, no entanto

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eles têm fundamento nas coisas e 3) o nominalismo - que dizia que o

universal é conteúdo de nossa mente expresso em nome, ou seja, o universal

é palavra sem realidade que a corresponda.

A revolução científica, o iluminismo do século 17 e o rompimento com

o aristotelismo põem em evidência a questão que é a do método. Temos

então duas correntes opostas: o racionalismo e o empirismo. Para a primeira

(René Descartes) a dúvida é uma dúvida do sujeito, obviamente; para a

segunda (John Locke), através da experiência é que apreendemos os

materiais e a razão.

Kant entre o racionalismo e o empirismo tem uma postura Crítica no

sentido de um certo rompimento com ambos; e pela influência de Hume, que

é quem diz que conhecemos apenas os fenômenos – o que aparece no tempo

e no espaço – que Kant falará em sua arquitetura filosófica como sendo

formas do entendimento.

Podemos dizer que na história da filosofia existe um a.K e um d.K, isso

para dizer que Kant assinala uma grande ruptura. É ele quem inverte a

busca pelo objeto e vai ao sujeito. Kant centraliza na razão a priori, que é por

assim dizer, a “estrutura inata” que constrói a ordem do universo, a questão

do conhecimento. Assim, em sua teoria estética ele diz que sei o que é o belo

antes porque o sinto do que por uma propriedade da coisa em si. Um quadro

que admiro em si não é belo. Belo é uma propriedade do sujeito e não a coisa

em si; o quadro do exemplo. Com isso Kant faz desmoronar o legado do

“conhecer da coisa em si”. Dizendo aproximada e resumidamente que o

conhecimento se dá no sujeito, isto é, nada mais próprio que: o fenômeno se

dá no sujeito.

Após Kant, quem levará a “bandeira do fenômeno” será Hegel.

Discordante do idealismo transcendental kantiano, Hegel dirá, grosso modo,

que se essa propriedade da qual Kant fala fosse de fato uma propriedade do

humano nada teria impedido Aristóteles, por exemplo, de já tê-lo dito de

forma que o que nos aparece – o fenômeno – está não numa propriedade do

humano, mas no espírito absoluto ou na razão absoluta, que Hegel chama

de História. Os fenômenos aparecem através da história e dialeticamente. A

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dialética é o método que vai ter uma importância enorme para Marx,

Feuerbach e Engel.

Depois de Hegel, a ideia de fenômeno fica esquecida. Isto porque é um

momento de efervescência dos regimes democráticos e da urgência das

questões democráticas e socialistas, sendo da filosofia de Hegel resgatada

apenas o método dialético (Marx, Feuerbache e Engel).

Só no começo do século 20 o fenômeno tem retomada na proposta de

Husserl.

Ele é quem introduz no lugar da palavra razão a consciência, que é

então o sentido de um Ser.

Surgem as FENOMENOLOGIAS:

Influência direta de Bretano, Husserl, um filósofo matemático, através

da Lógica estabelece de uma vez por todas o “status” do fenômeno. A partir

dele, o estudo do fenômeno é “fenomenologia”.

A fenomenologia em Husserl tem seu começo ligado à psicologia

descritiva e mais tarde se desdobrará num método próprio.

A partir do trabalho de 1913 (Ideas), Husserl desenvolve então a

“fundação” da fenomenologia, primeiramente através do método epoché –

supensão do juízo, para os gregos – que para Husserl vem a ser o “entre

parênteses”, que por sua vez são proposições que advém da lida com os

fenômenos para vê-los em sua essência.

Para Husserl a consciência está nas coisas, quer dizer: no fluxo que

me lança ao objeto e o fluxo que este faz até mim, assim numa construção

absolutamente sintética: “quando olho para este copo minha consciência se

dá, e entre o olhar para o copo e o que me sugere o copo enquanto a sua

volta para mim e que se dá o fenômeno”.

Em Husserl a consciência é intencional. É a partir de sua filosofia que

surgem as diversas correntes fenomenológicas: a da Percepção de Merleau-

Ponty, a Hermenêutica de Paul Ricouer, com ênfase na interpretação, o

Existencialismo de Sartre e a “ontologia existencialista” de Heidegger.

A postura existencialista de Sartre em contraposição à tendência

universalista refere-se aos problemas particulares e à situação do indivíduo

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em relação ao mundo. Sua filosofia brota de uma época conturbada e seu

sentido em parte é derivado disso.

Sartre foi influenciado por Heidegger – seus primeiros trabalhos

seguem a corrente fenomenológica. É de 1943 a obra o Ser e o Nada, onde a

ideia de consciência é identificada com o Nada. Esta ideia é uma distinção de

base entre para si e em si, que são ideias retiradas da filosofia

heideggeriana. As categorias “o ser-para-si” e o “ser-em-si” contém uma

repercussão hegeliana.

O ser-para-si – conceito hegeliano – é o mesmo que consciência em

Sartre e, em Heidegger, é o Daisein, “consciência de si mesmo”.

A consciência em Sartre é um nada no sentido de não ter essência. O

absurdo do mundo é sua função de contingência, e frente a isto o homem se

vê condenado a escolher, ou seja, condenado à liberdade.

Merleu-Ponty não diferencia o Ser do outro, do mundo. É como se eu

fosse o próprio tecido do tempo, as tramas das situações que vivi e o

entendimento ou a percepção sobre o que internalizei que me constituem,

isto é: sou constituído pelo meu tempo, porém sou também uma

individualidade, sou fruto das minhas relações.

Para Merleau-Ponty a realidade é a existência do mundo material

(cultural e espiritual) e nossa existência nele. Sua fenomenologia, que é

tanto método como fundamento teórico, trata basicamente do “texto”.

Entendamos, todavia, que o texto ultrapassa o que está escrito para o que

está representado.

É por esse viés que a fenomenologia se propõe a estudar a cultura, da

forma que a psicanálise, por exemplo, estuda o inconsciente: “o inconsciente

fala uma linguagem que é a dos sonhos”.

Assim esse brevíssimo percurso para dizer um pouco de como nos

filiamos à fenomenologia e de dois aspectos fundamentais para o trabalho, o

de que o ser, o mundo e o outro são inseparáveis, a de que a composição

disto que eu sou entrelaçado a tudo e todos é a dimensão mesma da vida e

que o atravessamento das outras existências na minha existência é a

condição de possibilidade de entendimento do mundo fenomênico. Essas

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características estão presentes no trabalho enquanto trabalho de pesquisa e

por este motivo se fez necessária toda essa digressão.

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PARTE 2

A VIDA NO FRONT

F

Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Lateral do Supermercado Conquista.

Casa de Papelão – Crioulo – 2015

Olhos nos olhos

Sem dar sermão

Nada na boca

E no coração

Seus amigos são

Um cachimbo e um cão

Casa de papelão

Olhos nos olhos

Preste atenção

Olha a ocupação

Só ficou você

Só restou você

Ruivo louco

Sangue em choro

Pra agradar a opressão

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Não de foice ou faca

Esquartejada a alma

Amarga amassa a lata

Estoura pulmão

Toda pedra acaba

Toda brisa passa

Toda morte chega e laça

São pra mais de um milhão

Prédios vão se erguer

E o glamour vai colher

Corpos na multidão

Na minha mente varias portas

E em cada porta uma comporta

Que se retrai e às vezes se desloca

E quantos segredos não foram guardados nessa maloca

Flutuar no céu poluído dessa cidade e beber

Toda sua mentira

Esperança minha, torneira sem água

Moeda? É religião que alicia

Vamos cantar pra nossos mortos

Vamos chorar pelos que ficam

Orar por melhores dias

E se humilhar por um novo abrigo

Não de foice ou faca

Esquartejada a alma

Amarga amassa a lata

Estoura pulmão

Toda pedra acaba

Toda brisa passa

Toda morte chega e laça

São pra mais de um milhão

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2. COMUNIDADE DA ILHA DO BANANAL

2.1. Uma Árvore Pode Ser Um Perigo?

Fragmento 1

Foto: Maria Irigaray – 2015 – Beco do Candeeiro.

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Ao mencionarmos a população em situação de rua, estaremos já nos

referindo a uma realidade que possui algo de impensável. Com isso não

estou negando a dura realidade dessa população, suas mazelas, dificuldades

e as condições de possibilidade de Vida que ela representa e efetiva; o que

digo é que estaremos falando, autorizadamente ou não, num alto grau de

generalidade a respeito uma população de certo modo ingovernável e que,

além disso, falaremos sempre do ponto de vista de quem está “do outro

lado”.

A definição presente no decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de

200916, que institui a política da População em Situação de Rua, dá conta de

minimamente evidenciar uma espécie de definição quanto à População de

rua:

“Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.

A generalidade aqui advém, por exemplo, da não definição de faixas

etárias, de sexo, classe e região geográfica. No entanto, a heterogeneidade

aparece como conceito para dizer que esta é uma população que inclui todas

as idades, sexos, gêneros e origens regionais. Uma característica dessa

população no Brasil é a de ser uma população empobrecida – isso é algo que

aparece no texto do decreto como algo admitido.

Trata-se de uma população heterogênea no sentido de que, como

nômades, passam ao largo das convenções sociais e ao mesmo tempo estão

no coração da vida urbana, na constituição mesma da sociedade e, portanto,

também interagem com a norma e a lei, compondo a ambiguidade entre

estar dentro e estar fora, como teoriza Agambem.

16 BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Decreto nº 7053 de

dezembro de 2009: Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de

Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Brasília – DF: [s.n.], 2009.

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Essa percepção tem uma tônica forte neste trabalho, principalmente

em função de uma série de desencontros e de encontros fortuitos, como é o

caso do trabalho junto da população em situação de rua; o encontro-

desencontro se fez presente do começo ao fim da pesquisa.

A pesquisa começa por uma cartografia da rua, relativa

principalmente ao primeiro ano do curso de doutoramento. Nesse ano me

dediquei a descobrir, olhar e fotografar cada vez mais as pessoas em

situação de rua na cidade de Cuiabá, buscando registrar o quanto pudesse a

população de rua na capital. Esse primeiro ano me mostrou que muitos dos

meus encontros provavelmente não se repetiriam, dado à transitoriedade do

contato.

Isso coloca questões quanto ao método acadêmico e à maneira como

comumente se faz pesquisa em educação. O contato fugidio, a dificuldade de

citar fonte, a maneira como ouvir a população em situação de rua, passou a

ser problematizado como uma característica do trabalho e ao mesmo tempo

como um dado sobre essa população.

Pensando essa dimensão da conversa informal, dos contatos não

planejados com essas pessoas, descobri que também minha pesquisa teria

de construir-se em meio à presença-ausência dessas pessoas e que a

abordagem não seria uma simples abordagem, que mesmo encontrar as

pessoas seria já um problema de pesquisa.

Tendo em vista o percurso absolutamente imprevisível dos moradores

de rua, comecei a perceber que não poderia me fixar a algumas pessoas, e

que seria difícil encontrar duas vezes a mesma pessoa. Apesar de

compreender a existência de territórios e rotas afetivas, quando o contato

repete-se, no quando do novo encontro é quase certo a impossibilidade de

retomar um encontro já acontecido, uma conversa já dada; não raro o

morador em situação de rua fala como que pela primeira vez toda vez que

acontece uma nova conversa.

Aí reside a dificuldade da pesquisa em traçar uma linha de narrativa

à maneira tradicional relativamente grande, pois há sempre um recomeço e o

re-contar de memórias e vivências dos moradores de rua que atuam de

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maneira a tecer e destecer a trama, de maneira a desdizer o que foi dito, ou

de contradizê-lo.

Isso torna complexo citar as narrativas ou a tentativa de sequenciá-

las. Isso aconteceu com Cheirosa, com quem tinha mais contato. Ou ela não

se lembrava de fato do que havia conversado comigo ou se lembrava e não

queria falar nele e assim preferia falar em outra coisa que não o já dito,

performatizando, assim, sempre um tema novo junto de um tema já

dialogado.

Ambas as coisas não me autorizaram a prosseguir na conversa, de

maneira que era sempre melhor falar sobre outra coisa, respeitar o discurso

de minha interlocutora e ao mesmo tempo entender uma lógica de

remetimentos que tinha sempre uma maneira nova de aparecer. Neste

sentido era sempre um acontecimento, aquilo que é o novo no velho, o

diferente no já dito, o que difere, o que remete a outro destino – a palavra

levada pela brisa das ruas, ou tocada de mansinho como uma folha que cai

de uma árvore, como uma folha de papel a quem se destinou a rua e não a

espiral do caderno...

Desta maneira, as histórias possuem outros elos de ligação que

dificultam muito a análise mais sistemática ao modo acadêmico de entender

o que pode vir-a-ser o sistema de uma entrevista, de uma conversa ou

interação.

Este aspecto da vida nômade é extremamente importante do ponto de

vista do entendimento de que as convenções dos laços sociais importam na

medida em que servem como fim em si mesmo; conhecer alguém não serve

como jogo que leva a um outro fim, como por exemplo o ganho de conhecer

alguém influente.

Ao mesmo tempo, existe uma profundeza do laço no sentido de

solidariedade; esse mesmo laço é questionado no mesmo termo. Assim, a

referência de laço sanguíneo passa a ser uma referência de grupo social, que

tanto implica na ligação de conexão afetuosa quanto na vinculação por um

questionamento, por uma reprovação ou contestação.

O tratamento “irmão” neste sentido passa a ser usual e de um

significado vinculado que traz sempre uma reflexão carregada de sentido,

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principalmente quando usada em negativas, como por exemplo: “Aí não

irmão!” ou como no caso “Ah! Nem que me pague irmão!”, ou ainda com uma

conotação totalmente diferente que coloca a ideia de que “Como você pode

pensar isso ou fazer isso sendo meu irmão?”, vistas em expressões que

recolhi dos moradores nas interrogativas como: “Pô, tá me tirando irmão?”

“Quê que é isso irmão?”

É preciso dizer que a comunidade efetiva laços orgânicos em que,

para determinados usos, ações e compartilhamentos da vida comum, não se

tem uma censura, onde se entender com o outro independente do que ele é

ou onde os atos que tenha praticado não passam por um crivo de moral

cristã no sentido de dizê-lo como diferente de si, mesmo que as vivências

sejam absolutamente diferentes.

Em outro âmbito, uma certa moral também impregna os sentidos de

afirmar valores importantes, como, por exemplo, o que ouvi de um morador

ao dizer: “Ah, tá... eu uso mesmo essas porcarias, peço dinheiro pra comer,

vivo igual um cachorro mas roubar, eu não roubo, não”, o que denota um

pouco do que é a dimensão ética e ao mesmo tempo o que também pode ser

um jogo com os meus supostos valores. Fazer uma diferenciação entre si e o

outro também é comum, de maneira que uma vez mais a ambiguidade toca a

vida dos moradores de rua da mesma maneira que a nós e neste sentido ele

diz: “Eu sei que a vida é dura e que as vezes o camarada num tem outra

opção, mas eu mesmo eu, eu não roubo ninguém não, dona.”

As relações da comunidade não estão fechadas; elas tendem a se

expandir principalmente quando os moradores da Ilha do Bananal transitam

entre as avenidas que cercam a ilha e quando saem para pedir – é o

momento em que consigo mais interação com a comunidade, às vezes uma

boa prosa, como costumo dizer, mas estas relações são marcadas pela

maneira itinerante e descontinuada, como relata também Frangella17 em seu

livro Corpos Urbanos Errantes:

17 FRANGELLA, Simone Miziara. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. 361 f. 2004. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. p. 86.

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“As relações de sociabilidade e as interações entre os habitantes de rua são igualmente construídas a partir do molde itinerante. Pessoas ou grupos reproduzem, muitas vezes, papéis familiares entre os demais que compartilham o mesmo espaço, seja por pouco ou muito tempo. Marcam também relações de vizinhança entre si e com outros segmentos que compartilham seu mundo. No mundo da rua, agrupamentos são formados usualmente de forma provisória temporal e espacialmente. Nestes, várias formas de sociabilidade se manifestam, tendo as formas ou trocas ou compras e comunhões dos objetos acumulados cotidianamente como base das alianças: comida, roupas, bebida, drogas, cobertor, potenciais “mercadorias” encontradas no lixo. Estas trocas efetivam uma particular rede de solidariedade que garante a circulação de objetos necessários à sobrevivência, e é descrita pelos moradores de rua como de ajuda, de fraternidade. O compartilhamento do álcool – elemento fundamental de sociabilidade neste segmento social –, as festas e fogueiras são fatos sociais que complementam essa malha de relações de mutualidade e solidariedade. Simultaneamente reiteram aquilo que Brognoli define como sistemas de trocas materiais que demarcam posições de igualdade, “em contraposição ao mundo hierarquizado e competitivo dos que têm” (1999:86).

Considerando esses aspectos uma vez mais como aspectos inerentes

à pesquisa de campo e ao conteúdo mesmo da experiência da rua, da

vivência junto da comunidade de rua e da imensa dificuldade de abordagem

encontrada no campo é que decidi então escolher um ponto de ônibus pra

sentar e ficar em meio às pessoas como uma observadora comum e uma

transeunte sem interesses maiores no contexto da comunidade que observo

e ao mesmo tempo como um visível-invisível, para pensar numa dimensão

dialética importante para Merleau-Ponty.

No centro histórico de Cuiabá, de frente para o Beco do Candeeiro, no

sopé do Morro da Luz, me situo na tentativa de conhecer e entender como se

processa a vida comunitária dos moradores de rua em sua comunidade. Lá

me coloquei várias vezes e mais, especificamente, uma sexta feira foi muito

marcante.

Este lugar me situa no meio de um fluxo da comunidade e, no

entanto, não sou percebida como uma pessoa que cause estranhamento ou

seja um perigo potencial, o que poderia dificultar-me ainda mais a pesquisa

já bastante difícil. Durante 6 meses fiquei ao menos uma vez a cada duas

semanas sentada neste ponto de ônibus por algumas horas. Devido a dias de

calor intenso, em alguns dias fiquei menos tempo – em torno de 2 horas.

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Existiram durante a pesquisa muitos outros lugares de onde observei a

comunidade, incluindo a lateral da igreja de São Benedito, na rua Coronel

Escolástico.

Primeiro fiz um passeio de reconhecimento pelas imediações do

Centro. Contornei o Beco, subi o Morro e desci para o ponto de observação.

Desci e escolhi propositadamente o ponto que fica sem nenhum privilégio de

visão pra captar o que é subterrâneo, o que acontece perto da população que

passa pelo Centro. Escolhi ficar sentada e não em pé, me locomovendo a

partir do ponto em que começa minha observação, apenas na rota de quem

pega ônibus. Assim ou me coloco sentada observando ou me levanto e ando

pelo ponto a partir da linha de embarque dos ônibus.

Também escolhi ficar sem filmadoras, gravadoras, máquinas

fotográficas ou qualquer outro auxílio que não a experiência vivencial de

estar junto das pessoas com todos os meus sentidos.

Quando uso aparelho para filmagens, geralmente uso o celular,

que não chama atenção e me permite não ter que preparar a máquina, nem

que desmontar a máquina. E também evita o inconveniente de passar como

turista, ou de chamar a atenção sobre mim.

Meu primeiro estranhamento, nos primeiros dias de observação,

deu-se quando eu descobri o que estava faltando na paisagem. Havia uma

impressão de que faltava algo, mas não descobria imediatamente, como o

movimento é grande e preciso me concentrar nas rotas e nas interações dos

moradores da ilha, acabei por me dar conta de que faltava uma das únicas

árvores que ainda existia no Beco do Candeeiro porque a luz estava

diferente. Havia uma nítida diferença na luz.

Atrás da estátua erguida aos meninos assassinados na chacina do

Beco do Candeeiro, havia uma árvore. Essa árvore morreu, o que abriu uma

luminosidade ainda maior no espaço daquele lugar. À noite, com a morte da

árvore, não há mais sombras, o que configura para minha percepção como

algo desejado. A árvore foi morrendo aos poucos e não vi quando foi retirada,

mas muitas vezes presenciei pessoas residentes da comunidade urinarem

nela e colocarem vasilhames descartáveis pendurados nela, além de sofrer

uma poda que a fragilizou muito. A partir da poda, a árvore começou a ficar

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mais e mais mirrada. A árvore era de grande porte, com vagens que ao

tremular faziam barulho. Ficava na lateral do Bar da Flávia, que mudou de

nome. Sei por experiência que a noite com o vento a árvore fazia barulho,

mas esse barulho em meio ao caos dos motores era quase imperceptível.

Ao estar no bar durante a noite, bebendo percebi este detalhe por seu

movimento quase fantasmagórico. Entendo a morte da árvore como um

fenômeno importante na vida da comunidade. Ela foi retirada aos poucos,

com muita paciência e muita perspicácia; foi sendo convencida a não ficar,

com quase tudo que cerca e trás perigo à comunidade.

A árvore passa a ser uma ameaça a partir do momento em que suas

sombras trazem o escuro para um lugar que – os habitantes sabem – é

muito frágil, exposto a violências e muito vulnerável. Trazer à luz o espaço

aberto ajuda na passagem dos habitantes. Não haver lugares escuros em

que possa se esconder o perigo ajuda a sobreviver na comunidade. A não

existência da árvore passa a ser necessária para abrir passagem e não

permitir “tocaias”. Logo atrás de onde existia a árvore agora existe um

grafite, parede ao fundo.

Assim foi durante várias semanas. Estive sentada no ponto de ônibus

que está de costas para o Morro da Luz, de Frente para o Beco do Candeeiro

e ao lado da Ilha do Bananal, de maneira que, a partir daí, elaborei através

da observação sistemática dos percursos que os moradores da Ilha fazem um

desenho cartográfico da região.

Neste desenho pude perceber os movimentos da Comunidade. O

primeiro aspecto que dou relevância e que saltou aos meus olhos, inclusive

num dia de muita agitação na comunidade, foi seu aspecto circular. O

segundo aspecto de que me dei conta é que, no interior de um sistema

circular, todo ponto do círculo pode se tornar uma tangente.

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2.2. Circulação Circular

Fragmento 2

Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Vista da comunidade para o Morro da Luz, da

subida da Avenida Coronel Escolástico pela Avenida Prainha e da lateral da Igreja São

Benedito.

Outro aspecto importante – e que, a saber, foi enunciado

propositalmente de maneira redundante neste subtítulo – é o da existência

de uma circularidade que compõe as ilhas.

Apesar do foco na Ilha do Bananal como o lugar de morada da

Comunidade, todo o círculo que vou descrever é composto não de uma ilha –

a Ilha do Bananal –, mas de um sistema de ilhas que compreende o Morro

da luz como uma ilha de descanso em meio à natureza, um refrigério por

assim dizer; o Beco do Candeeiro como uma Ilha de busca de tudo que a

comunidade precisa: alimento, água, drogas, álcool, sexo, lazer e dinheiro e

a própria Ilha do Bananal que é a ilha habitat e a que mais se aproximaria

da ideia da casa.

Os elementos casa, quintal e cidade estão todos presentes num único

círculo. Todos esses elementos constituem os arte-fatos e os afetos que

circulam no arquipélago e que tem sua proteção fechada principalmente na

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Ilha do Bananal, mas que também conta com pontos cegos em todas as

ilhas.

O contato entre os moradores da Ilha do Bananal se dá no interior da

Ilha, entre as avenidas Prainha (Tenente Coronel Duarte), Historiador

Rubens de Mendonça, Coronel Escolástico e Voluntários da Pátria, sendo

que o entorno da ilha está circunscrito também à Rua Galdino Pimentel,

Candido Mariano e Voluntários da Pátria.

O percurso principal dos moradores que circulam entre na ilha pode

ser pensado também como pontos entre a Paróquia de Nossa Senhora do

Rosário, Igreja de São Benedito, Mesquita Islâmica e Igreja da Matriz. Sendo

que daí circulam entre a Igreja Bom Despacho, Universal do Reino de Deus,

Praça Ipiranga, Praça da República, Praça Alencastro e sinaleiros do início

da Avenida Historiador Rubens de Mendonça.

Esses pontos geográficos nos importam como um ponto de vista que é

o de que toda uma comunidade religiosa frequenta esta região, o que indica

um indício forte de que uma articulação entre elas poderia surtir efeito

positivo no acolhimento da população em situação de rua. Esta iniciativa era

efetiva na pastoral de rua situada no Beco do Candeeiro, ligada à Paróquia

Nossa Senhora do Rosário.

Vejamos que, na parte posterior ao morro e subindo apenas algumas

quadras, encontra-se a Igreja da Matriz e, seguindo pela Prainha em frente a

uma outra zona muito frequentada pelos moradores de rua, está a Igreja

Bom Despacho. Pensando apenas este aspecto, sei que os moradores

procuram ajuda nas igrejas e dormem em suas escadarias, como maneira de

proteger-se embaixo de algo que ainda possa ser sagrado, ou possa ser

respeitado.

Outro aspecto importante a salientar é que em frente, ao lado ou nas

imediações imediatas das igrejas encontram-se no arquipélago, bares,

prostíbulos e pontos de comercio de crack18 – dentre outras drogas –, de

maneira a entrelaçar essas dimensões numa única vivência do urbano na

região das ilhas.

18 Substância que geralmente é obtida através do aquecimento de uma mistura de cocaína, ou pasta-base de cocaína, água e bicarbonato de sódio, dente outras substâncias desconhecidas que podem ser adicionadas.

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A circulação dos moradores da ilha está mais ou menos delimitada

neste circuito que marquei a partir dessas referências que são, para o

contexto, significativas do ponto de vista do enlace das dimensões da cultura

na qual está imersa a comunidade.

Mas para além da circulação tangencial dos moradores, um aspecto

mencionado anteriormente merece destaque. A circulação circular – por

assim dizer e de maneira até mesmo redundante – da comunidade vai,

basicamente, da casa para o quintal e do quintal para a cidade, sendo

comuns alguns percursos. Alguns dos percursos que mais me chamaram a

atenção foram os percursos de consumo de drogas, os percursos de busca

por drogas, os percursos de interação para se conseguir comida e água e

eventualmente roupas - também os percursos que visavam sexo e descanso.

O percurso mais usual da comunidade é o do Beco para a Ilha do

Bananal da Ilha para o Beco – este percurso é o de uso de drogas –, de

maneira que até chegarem a conseguir uma pedra de crack e a consumirem,

por vezes levam mais de 5 ou seis voltas em torno do contato, negociação,

compra, uso e fuga.

O segundo percurso mais usual dos que me interessam é o percurso

Ilha-Beco-Ilha-Morro. Esse percurso engloba uma meia lua em que a

comunidade se mobiliza indo até o Beco para buscar a pedra crack, de lá vão

para a Ilha e da Ilha saem depois do uso em busca de um lugar pra viagem

(efeito entorpecente do uso). No caso, o Morro da Luz oferece essa espécie de

tranquilidade junto da natureza, configura uma ilha de paz e é onde a onda

ou viagem pode bater sem nóia (mania de perseguição advinda do uso do

crack e do seu efeito de adição).

É muito comum ver principalmente os homens da comunidade

parados sós ou em grupos fumando um cigarro de maconha ou um careta

(cigarro industrializado) pra baixar a onda, geralmente sentados nas escadas

ou andando pelas trilhas do Morro da Luz.

Esse percurso, descrito de maneira simples, é relativo a um morador

solitário. Quando o consumo acontece no grupo, geralmente composto de

dois ou três integrantes, pode acontecer mais ou menos a mesma coisa, mas

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com a desintegração do grupo no interior da Ilha, de maneira que cada um

sai pra um lado ou nem sai.

Ao observar uma cena de circulação em grupo, notei que o grupo foi

articulado da seguinte maneira: quem estava na rua, entre o sinal, o ponto

de ônibus onde me situo e o entorno dos bares, estava em busca da grana

(dinheiro); quem estava no Beco, estava esperando o avião (cara que entrega

a droga) e quem estava próximo da comunidade na ilha estava cuidando

(espreitando ações de outros moradores, polícia e qualquer eventual perigo

iminente ou impeditivo).

A informação entre os moradores só circula no boca-a-boca, de

maneira que iam e vinham de maneira frenética, pois além do sol quente e a

agitação da instiga (período de abstinência), existe um outro fator que é o de

negociar e apanhar a droga sem ser percebido, nem pelos outros moradores

nem pela polícia – não ser percebido pelos outros moradores para que não

precise dividir, pois geralmente quando em grupo, se faz uma cota ou uma

troca na qual cada um dá uma parte e a droga é calculada apenas pela

quantidade de pessoas que contribuiu, sendo que só se um “irmão” chegar e

não faltar é que permitem um trago, e geralmente apenas um. O que

também é comum e foi por mim presenciado é que o “irmão” que tá na

“instiga” dá um tapa e vaza, isto é, o morador que não colaborou dá um

trago na droga e já sai atrás da sua própria.

A lógica é a que não se abuse da boa vontade alheia e a de que aquele

que é “passado pra trás” acaba ficando com a fama de “Mané”, isto é, alguém

que se pode ludibriar – o que pode ser muito problemático no contexto de

vida na rua, se bem que também é aceitável e alguns lidam inclusive com

apelidos vexatórios por conta de situações com os ludibriados –, e isso acaba

virando uma situação engraçada sem a conotação muito séria de algo que a

pessoa tenha que carregar. Geralmente até o Mané ri-se da situação e acha

uma maneira de zoar o outro, o que é muito comum nas rodas de pinga e

nos momentos de descontração dos grupos.

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2.3 Ele Pula Numa Ilha De Calor

Fragmento 3

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Visão do ponto de ônibus, Prainha, Beco do

Candeeiro.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Visão do ponto de ônibus, Prainha, Beco do

Candeeiro.

Um outro arte-fato da circulação presente nos trajetos afetivos da

comunidade da Ilha do Bananal é o trajeto das rotas de mendicância. Faço

aqui apenas um breve parêntese sobre a questão do afeto para dizer que por

afeto estamos entendendo a ligação entre os moradores de rua com a rua em

uma dimensão de impregnação da cidade sobre os moradores, no sentido

daquilo que é escolhido como rota, território e lugar de ligação pela sua

imensa impregnação, pela sua impressão e forte relação com os moradores.

Neste sentido, certamente, comigo enquanto pesquisadora, a mesma

impregnação se dá como imã de grande atração. Ao buscar compreender os

percursos dos moradores da Ilha do Bananal, também considero meu

próprio fascínio pelo lugar.

A dimensão que então muito me importa enquanto arte-fato para a

comunidade é a do esmolar, mendigar ou pedir.

O dia estava tão quente que o mormaço que subia do asfalto na

Prainha gerava em minhas retinas uma lente ao mesmo tempo opaca e

também muito transparente por conta da quantidade de luz daquele dia

estalado de sol e calor. O asfalto realmente cria uma outra ilha, chamada de

ilha de calor. Junta-se agora às ilhas existentes uma ilha temporária que

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envolve o dia e o fazer da comunidade. A ilha de calor pega principalmente

aproximados 500 metros entre a parte de baixo da comunidade, o semáforo

da Avenida historiador Rubens de Mendonça e a parte mais exposta da

entrada do Beco do Candeeiro.

Em meio à ilha de calor, atravessando-a como uma imagem borrada,

avisto ao longe um senhor que tem o pé machucado há mais de 6 meses e

que alguns meses antes estava com faixas sujas amarradas e andava

mancando e descalço e que agora não consegue pisar no chão. Por não

possuir uma bengala ou qualquer coisa que o valha, anda pulando.

Ele pula saindo da lateral da Voluntários da Pátria e entra no Beco do

Candeeiro. Meus olhos não querem acreditar na cena que vejo entre carros,

ônibus, fumaça e a cortina da ilha de calor, mas sim – na medida em que se

aproxima, qualquer possibilidade de que a cena não fosse real se torna

impossível. Ele entra no Beco. Perco-o de vista do ponto onde me encontro,

mas sei que em breve ele aparecerá entre o bar do Neto e o muro de um

estacionamento, na lateral do Beco. Assim acontece.

Ao chegar ali eu sabia que ele provavelmente não iria atravessar a

Prainha, seria muito difícil na condição dele, e este morador não costuma ir

em busca de amigos, nunca o vi acompanhado e nunca em relação com

qualquer outra pessoa, de maneira que supus que pudesse estar em busca

de uma pedra de crack. Sim ele estava. Deu a volta até a frente do mercado

gama, em frente dos meninos mortos na chacina pegou a droga. Pulando foi

até a calçada onde um pedaço de zinco pintado com a marca da gráfica Print

cobre parte da entrada do estacionamento.

Alí ele se sentou. Não carregava nenhum objeto, nenhuma sacola ou

algo além da roupa do corpo. Ao se sentar com imensa fadiga e o que me

parecia uma espécie de calma, tirou do bolso um papel. Enrolou a droga no

papel e fumou ali mesmo sem que nenhum transeunte se espantasse com a

cena. Na verdade não vi sequer uma pessoa que o tenha notado. Nem

mesmo quem passava por ele.

O uso se repetiu entre quatro ou cinco tragadas que demoraram mais

ou menos 3 minutos. Assim que terminou ele respirou, se levantou com

dificuldade pulou até o sinaleiro, tendo sentado no meio do caminho umas

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duas vezes e começou a pedir nos carros, tendo sido quase atropelado pela

dificuldade de se locomover.

A Circulação É Uma Economia.

Uma economia é gerada constantemente pelos moradores de rua e

essa economia é micro se pensada individualmente, mas se pensada num

coletivo ela pode ser transformada num número significativo. Basta para

isso pegarmos um valor, por exemplo, o do censo nacional que identificou

em 2008 um contingente de 31.922 pessoas morando na rua. Pensando

apenas nesse número fixo, imaginemos que cada uma gaste em média 10

reais por dia em um ano essas pessoas fazem girar 116.515,30 reais ao ano.

Isso para pensarmos de maneira até simplória este aspecto da realidade, um

cálculo apenas, mas que não deixa de ter relevância quando se trata de

desmitificar a ideia de que essa é uma população improdutiva e que

economicamente ela não tem impacto sobre a economia da cidade.

A ideia de que a população de rua possa e deva ser excluída por

conta da sua não produtividade é um discurso comum e corrente no Brasil,

que atinge a todos – do discurso midiático ao senso comum –, mas atinge

principalmente àqueles que mais ferozmente se ligam ao sistema comercial,

isto é, lojistas, comerciantes, ambulantes e todo tipo de vendedores.

A ideia de que moradores de rua não façam parte da economia é

arraigada na maneira como pensam essa população, pois, acostumados com

os grandes lucros, grandes vendas, trânsito ininterrupto de mercadorias,

lógicas de cálculos e trocas pautadas apenas na mais valia em uma lógica

que repete a todo o momento que o bom e o mais esperto é especular, esses

comerciantes não conseguem enxergar a micro economia que os moradores

fazem girar e a grande afirmação de resistência existente no ato de

transformar informação.

A economia de quem mora na rua é a economia mais afetada pelas

condições sociais; na economia da rua as questões de classes se tornam

inegáveis. As discriminações e as diversas maneiras de segregar aparecem

como fato de empobrecimento e, ao mesmo tempo, aparecem uma vez mais

como maneira de r-existir dentro da lógica capitalista, dado que as falas são

de “desprendimento de questões materiais”, como aparece no discurso de

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quem mora na rua. Existem maneiras diversas do aparecimento dessa

economia no discurso da rua: uma delas diz respeito à revolta, a outra diz

respeito à conformidade; a outra ainda diz respeito à não necessidade e

outra ainda como desejo.

De todos estes discursos, um dos mais evidentes é o do desejo. Este,

por sua vez, é também o mais contraditório, pois aparece como desejo não

realizado e que continua desejante, ao mesmo tempo em que a sua negação

é também a sua transformação em uma espécie de vitória da sobrevivência,

já que como sobreviventes a população em situação de rua geralmente se

refere à questão de viver com menos de 20 reais por dia como mais uma

dificuldade a ser driblada e que os transforma ao mesmo tempo em pessoas

menos apegadas ao dinheiro, pois percebem numa experiência radical que

esse é mais um jogo sujo em que sempre haverá jogadores de fora – que este

sistema em que se baseia a troca não é o único e que ele é apenas uma

alternativa e que quem prova que consegue de outra maneira viver pode

estar certo sobre a falência e a crueldade do mesmo sistema que escraviza

pelo trabalho e lucra pela mais valia sem escrúpulos e sem nenhuma

mediação que faça pensar isso como um problema.

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2.4. Uma Experiência De Como As Informações Chegam Antes19

Fragmento 4

Foto: Babu 78 – 2016 – Várzea Grande.

Ao observar, no dia 10-06-16, a dinâmica da comunidade, percebi

que estava acontecendo algo que saía do cotidiano da cidade, mas não havia

como saber o que era no momento em que ocorria – só havia uma certeza de

que havia algo novo no ar.

O Morro da Luz estava completamente tomado por uma ruação de

pessoas da comunidade que iam e vinham ao que parece levando e

buscando coisas. Essas coisas eram informações e se faziam numa

economia de trocas mútuas e intensas. O que estava ocorrendo na cidade eu

viria a saber mais tarde.

O trânsito de informações da comunidade circula de modo que o

contato, o boca-a-boca, a troca de sinergia de encontros rápidos e furtivos se

dá na dinâmica do não deixar-se aprisionar pelo olhar do entorno – não se

deixar ver.

19Acesso em: http://muvucapopular.com.br/noticias/geral/87224-bandidos-tocam-o-terror-em-cuiaba-incendiam-

anibus-e-disparam-contra-agentes-prisionais.html e Acesso em: http://midianews.com.br/cotidiano/tres-onibus-sao-incendiados-em-cuiaba-e-vg-veja-o-video/265887

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Isto ocorre o tempo todo e circula do Beco para a comunidade, da

comunidade para Morro, vai e volta, circunda e circula o tempo todo. Junto

com a informação, circulam outras mercadorias menos valiosas, como as

pedras de crack de 2, 5, 7, 10, 12 reais. As pedras circulam em todo o corpo

da comunidade e estão espalhadas como as mesmas pedras que calçam as

ruas.

O cheiro da pedra sai do Morro como um sinal em fumaça. O cheiro

da pedra sai do Beco como um sinal de fumaça. Os moradores atravessam a

rua no meio dos carros loucamente. Os moradores se arriscam sem medo,

são rápidos, velozes, são “ligados” em tudo.

Tudo aqui é movimento contínuo e contínuo, frenético e circular. A

circulação é parte da economia da comunidade. Não pode parar, não pode

moscar, dizem os moradores. “Dá um perdido”, “dá um role”, “pega um

bonde”, “dá um vaza”, “dá um raio” e “dá um rasgado” são comuns tanto na

conversa informal quanto nas advertências quando há perigo iminente.

As informações que circularam nesta semana davam conta de que

havia um grupo que mandava mensagem avisando que iria tacar o terror.

Isso viralizou no sistema de comunicação What’s app. Descobri que isso

estava ocorrendo porque, sentada no ponto de ônibus que é o ponto de

observação, ouvi a conversa de três adolescentes sobre a questão. Eles

chamavam o evento de cabulosão, muito louco e sinistro (todos os termos

significando “algo que provoca grande assombro”). Os adolescentes

comentavam e ouviam a suposta gravação que mandaram de dentro do

presídio para avisar a todo mundo que, como se diz na gíria, “o bicho vai

pegar”, no sentido de que iriam acontecer outros episódios como o da

queima do ônibus. Geralmente essas situações são arrastões, assaltos

orquestrados, ataques a bancos e lotéricas ou mesmo queima de delegacias e

ônibus. A questão toda girou em torno da dimensão do “poder de terror que

têm os bandidos”. Essa ideia foi massivamente divulgada pela mídia, que

usou de noticiários em que mostram as pessoas supostamente em pânico.

Geralmente escolhem duas ou três pessoas que representam bem a

dimensão do que seria o cuiabano pacífico e cheio de tolerância e o mostram

com voz suave falando do quanto sente medo. Aliado a isso também, os

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jornais locais mostram as atividades das polícias; geralmente um delegado

desfia o marketing institucional da segurança e garante que pediu reforços.

A maneira de atuar da mídia local geralmente não é muito inventiva –

as polícias locais menos ainda –, de maneira que, depois de alguns dias,

evaporou-se a inquietação e o medo e tudo voltou ao normal. A comunidade

voltou ainda com mais força. Percebia que, na medida em que o tempo

passava, aumentavam o número de pessoas na comunidade, mas não havia

como checar porque o clima de insegurança. A falta da Cheirosa, que

entrava na comunidade comigo, e a dificuldade em encontrar novos

interlocutores me afastava do interior da Ilha.

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2.5 Baculejo Nervoso (30 De Agosto De 2016)

Fragmento 5

Foto: Mídia News – Ilustra a matéria da nota de rodapé – 2016 – Ilha do

Bananal.

O dia 30 foi decisivo para a pesquisa e o afastamento da Ilha. No dia

30 de agosto aconteceu o que chamo neste trabalho de baculejo nervoso20,

porque já havia eu presenciado baculejos na região, um deles com polícia

fortemente armada. Na ocasião, prenderam 5 pessoas que eram acusadas de

roubo e que tinha se escondido no morro da luz.

Neste dia eu não estava no Centro; vi as notícias pelos jornais e senti-

me com medo.

Lembrei-me de um outro baculejo que presenciei e fiquei pensando

no risco que estava se tornando minha pesquisa. Algo que não podia ignorar.

Eu me dirigia ao meu ponto de observação chegando por traz do Beco

do Candeeiro, que nesse dia resolvi contornar. Ao invés de passar pelo meio

do Beco, fui pela Prainha, cortando o Beco pela lateral. Quando cheguei

perto do meu ponto de observação, percebi um alvoroço.

20 A gíria “baculejo” significa que a polícia passou para averiguar o local e abordar as pessoas suspeitas por crimes. Nervoso refere-se a algo muito extremado, ações de repressão com forte caráter violento. “Baculejo nervoso”, neste sentido, é então a ideia de uma operação truculenta e impiedosa.

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Não entendi de imediato, mas quando botei a cara no Morro da Luz

me vi no meio do grande tumulto. Havia em torno de 7 carros de polícia na

imediação e muitos policiais. O baculejo levou mais de uma hora e vi

transformado em espetáculo para toda a população a prisão de cinco

homens, três deles negros descalços e maltrapilhos e dois deles pareciam

mais jovens e não tinham a aparência de moradores de rua como os outros

três.

O episódio em que percebi a quantidade de pessoas muito maior do

que vinha observando se deu no dia do “Salve Geral”, de maneira que, como

havia necessidade de transitar as informações, também havia mais pessoas

fazendo o trânsito dessas informações. Existia também ao que me parece um

outro fenômeno se sobrepondo a este e que também pode estar a ele ligado:

a chegada da droga. Não é incomum quando chega uma quantidade maior

de drogas em uma região haver movimentação no sentido de entrega e

consumo. Neste dia houve muito “corre”, “correria”, busca de drogas. Isso

ficou registrado por mim nas imagens dos homens que atravessam as

avenidas em círculo.

A ideia de que haja um movimento circular que envolve a maneira

como se movimentos os moradores da comunidade foi percebida numa das

observações em que um mesmo morador contornou o entorno da área por

completo, do Beco à Ilha, da Ilha ao Morro e deste de volta para o Beco. É

preciso ressaltar que do morro se tem visão panorâmica para ambos os

espaços. Da ilha se sai para os dois lados e do beco se entra para o “miolo”

da cidade (rua do meio e rua de cima).

De maneira que a Ilha tem grande poder a partir do interior e do

exterior. Percebi isso ao observar a Ilha à noite, da Igreja São Benedito, que

fica do lado oposto ao meu ponto de observação. A ilha não possui luz

elétrica em seu interior, de maneira que toda a luz que recebe vem da

iluminação pública, que na região é bastante eficaz; existem postes com

luzes muito fortes dos dois lados da Ilha, e existe a iluminação da Igreja que

também traz bastante claridade ao entorno da Ilha. Pelo lado do Morro da

Luz, a iluminação cai quando se atravessa a calçada para a parte do Morro

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que é vegetação e, no seu interior, as luzes são luminárias diferentes dos

postes da rua da calçada onde fica a Ilha.

Do outro lado, pela rua Coronel Escolástico, a Ilha é iluminada com

luzes fortes do lado da calçada dos casarões e do lado da calçada da Igreja

São Benedito.

O que percebi foi que, de maneira muito tática, à noite a Ilha tende a

ser um bom lugar para se esconder do perigo, pois quem está dentro enxerga

muito bem quem está fora, como numa casa que tem as luzes de fora acessa

e as luzes de dentro apagadas. Percebi isso por observação a partir da Igreja.

A comunidade usa de uma presença-ausência de luz, pois pelo que consegui

perceber, algumas partes mais próximas da rua são mais iluminadas e o

interior, principalmente a parte de baixo, é mais escura. A parte de baixo

também configura uma das entradas e saídas mais usadas pela

comunidade.

A Operação Ártemis,21 como foi chamada pelos policiais, visava à

caça. Está implícita aí uma dimensão da predação daquele que pode ser

caçado. A dimensão da caça liga-se à ideia de que, por viver sob tais ou

quais parâmetros, essa vida possa então ser submetida a tais ou quais

operações, dentre elas operações de “limpeza”, as chacinas e assassinatos

que tiram de circulação as pessoas em situação de rua e que instauram

aquilo que Agambem nomeia por exceção.

A população em situação de rua constitui essa população a quem se

coloca o pressuposto de que sua vida valha menos que outras vidas e,

portanto, que esta vida possa ser matada, que esta vida possa encerrar uma

exceção – ela pode ser caçada, como na Operação Ártemis.

Assim, a Ilha do Bananal entrou naquilo que Agambem chama de estado de

exceção. Por mais longa que seja a citação, sua necessidade se faz presente

para explicarmos como estamos pensando este episódio de captura da vida

tornada nua, dentre outras maneiras, pelas operações de caça das polícias,

aqui representadas pela Operação Ártemis.

21 http://midianews.com.br/policia/operacao-da-policia-civil-detem-65-usuarios-de-drogas/273380

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“Protagonista deste livro é a vida nua, isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar. Uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade), ofereceu assim a chave graças à qual não apenas os textos sacros da soberania, porém, mais em geral, os próprios códices do poder político, podem desvelar os seus arcanos. Mas, simultaneamente, esta talvez mais antiga acepção do termo sacer nos apresenta o estigma de uma figura do sagrado aquém ou além do religioso, que constitui o primeiro paradigma do espaço político do Ocidente. A tese foucaultiana devera, então, ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoe na pólis, em si antiquíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoe, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção”. (AGAMBEM, 2007, p.16.)

Copiei na íntegra a reportagem de jornal e aqui deixo como

testemunho para que fique o registro dado a possibilidade de não

permanência da matéria no ar22:

“30.08.2016 | 17h46: Uma operação da Polícia Civil, Perícia Oficial e Identificação Técnica (Politec) e Prefeitura de Cuiabá, deteve 65 pessoas, na chamada Ilha do Bananal, que fica entre o Morro da Luz e a igreja de São Benedito, no Centro de Cuiabá. Três pessoas que estavam com mandados de prisão em aberto tiveram as ordens judiciais cumpridas. A Operação Ártemis, deflagrada na segunda-feira (29), tinha como objetivo a retirada e cadastramento de dependentes químicos na região conhecida como ‘Ilha do Bananal’, que fica entre o Morro da Luz e a igreja de São Benedito. A região se tornou alvo da operação devido aos altos índices de roubos a pessoas e furtos em comércios, fomentados por dependentes químicos que circulam pela localidade. Na tarde de segunda-feira, policiais da Derf foram até a região, onde foi realizada a abordagem e detenções. Ao todo, 49 homens e 16 mulheres foram conduzidos à delegacia, onde foram fotografados e identificados, com apoio de peritos da Politec. Dois homens e uma mulher, que estavam com mandados de prisão em aberto, tiveram as ordens judiciais cumpridas. Três dos conduzidos já

22 Outros jornais possuem o mesmo teor, são eles: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=494664 http://www.hipernoticias.com.br/cidades/policia-civil-faz-operacao-no-morro-da-luz-e-detem-60-por-roubo-e-trafico/64005

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eram monitorados por uso de tornozeleira eletrônica. A ação resultou na apreensão de armas brancas como facas e chuchos, além de vários objetos roubados e furtados de vítimas, como bolsas, carteiras e documentos. Segundo a delegada titular da Derf, Luciani Barros Pereira de Lima, os usuários ficam na região pela facilidade para consumir drogas e praticar os crimes. ‘Por estar na área central da cidade, a região tem um grande fluxo de pessoas, principais alvos dos assaltos praticados pelos dependentes químicos, além de bocas de fumo e receptadores, que fomentam ainda mais a criminalidade’, disse a delegada. A delegada explicou que o cadastramento dos usuários de drogas que circulam pela região visa auxiliar futuras investigações da delegacia. ‘As pessoas que foram vítimas de roubo naquela região devem procurar a Derf, para que, através da identificação dos autores, possamos reduzir os índices de criminalidade na área central da cidade”, destacou Luciani. A operação Derf será realizada em outros pontos da cidade, com objetivo de fazer a identificação de novos suspeitos e agilizar o trabalho de investigação da delegacia

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2.6. Uma Festa no Beco do Candeeiro

Fragmento 6

Fotos: Eliete Borges – 2016 – Projeto Psicanálise na Rua: de Adriana Rangel.

Estávamos cursando a disciplina de Esfericidade e Fenomenologia –

uma disciplina optativa que organizamos e realizamos através do Grupo de

Pesquisa em Movimentos Sociais – quando meu orientador, professor

Passos, resolve junto de um grupo de tambor fazer uma festa no Beco do

Candeeiro.

Nós Fomos pra lá levando comida e água. Juntou-se à festa a

professora Adriana Rangel, que também faz seu doutoramento junto dos

moradores de rua e possui um projeto intitulado Psicanálise na Rua.

Este dia era um dia de observação no ponto de ônibus do Morro da

Luz. De lá fui até o Studio de tatuagem Galeria Tattoo, ponto de encontro de

grafiteiros, tatuadores, roqueiros e toda uma juventude que traça uma

cultura alternativa. Depois de uma sessão de conversa com todos,

resolvemos que desceríamos juntos pro Beco, mas primeiro os grafiteiros

Siq, Morto e Keka fariam um trabalho em uma das vielas ao lado do Beco do

Candeeiro.

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Durante nossas conversas, falamos sobre política e, naquele mês,

estava acontecendo uma ocupação país afora reivindicando a não extinção

do Ministério da Cultura, o chamado Ocupa MinC.

À época ainda não puxávamos o FORA TEMER. Mas nossa

insatisfação era grande. Ouvi de Siq: “Ou vô pintar um Temer diabão lá no

Beco hoje cara! Ou isso não existe velho, agora o cara vai acabar com a

gente.”

Antes de chegarmos no Beco, entramos por uma lateral e começou o

processo que foi registrado abaixo. Vários graffitis, foram feitos neste noite

por Keka, Morto, Gora e Siq.

Foto: Eliete Borges Lopes e Siq – 2016 – Rua lateral do Beco do Candeeiro.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 - Viela entre o Beco do Candeeiro e Prainha.

Com o trabalho pronto só depois da 1 da manhã, iluminados pelo

farol do carro de um amigo, os grafiteiros deixaram seu protesto junto do

povo da rua que seguiu noite adentro.

Enquanto acontecia o graffiti em uma viela, a roda de tambor do lado

da estátua dos Meninos do Beco e um filme do Projeto Psicanálise na Rua,

um grupo de Maracatu puxava um som no Ocupa Minc no patrimônio ao

lado e eu transitava entre um e outro evento e buscava “trocar uma ideia”.

Conversava com integrantes do nosso grupo, levava gente para ver o

processo de grafitagem e observava os moradores da Ilha do Bananal, que

nesta noite estavam mais concentrados junto de nós por conta da música,

da socialização, da comida e da água.

Conversei rapidamente com os moradores que observo do ponto de

ônibus do Morro da Luz, junto deles uma mulher com quem tentei traçar

uma conversa, mas que foi inútil, pois ela “não abriu” – não respondeu à

interlocução. Eu a chamo “a moça da rosa”. Cumprimentei alguns dos

moradores, observei uma senhora que fumava crack do lado de nossa amiga

de grupo – que se mostrou tranquila e conseguiu então lidar bem com a

situação e estar no território de maneira pacífica. Conversei com alguém que

puxou conversa comigo dizendo me conhecer, o que também é uma tática

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recorrente em que nunca sei quando é verdade quando não, mas que diz

basicamente pra quem é estranho que você está na mira, ou seja que “estão

ganhando seu movimento”, vendo o que você está fazendo.

Tudo se desenrolou de maneira que inesperadamente fui atravessada

por um contato. Nossa conversa no encontro do Beco começou por conta da

rosa que trago tatuada no braço esquerdo.

Ela disparou de lá: “Eu gosto de rosa...”; e eu sabendo que era a

autorização para que eu falasse com ela, já respondi: “Você também tem

uma?”

E ela disse “Não não, mas eu gosto de rosa, a rosa é bonita. Eu gosto

da cor sabe”, pegou meu braço, passou a mão na rosa, perguntou sobre o

que estava escrito.

Havia por perto uma outra moradora, que tinha uma rosa tatuada na

perna e estava com ela à mostra, e com quem havia tentado um contato

anterior sem sucesso.

Falei para minha interlocutora: “Ela também tem uma rosa”, fazendo

um aceno para a outra moradora, que fingiu que não me viu e não me deu

atenção nenhuma.

Ela continuou falando da rosa, numa espécie delírio que a remitia

para toda a beleza desse ícone que é um dos mais retratados na história da

arte.

Eu ofereci água, porque estávamos perto da mesa com bolachas, um

chá e água que havíamos levado para os moradores naquele dia de festa no

Beco do Candeeiro.

Ela, em certa altura, entre meu movimento de servi-la e o movimento

dela em receber o copo, percebeu meu olhar para o cachimbo de crack na

sua mão.

Ela tinha numa das mãos o cachimbo e na outra umas coisas de

roupas e apetrechos; foi inevitável que aquele ato trouxesse aquele objeto

emblemático à cena, e ele veio com muita força, pois veio acompanhado de

uma mão sobre uma barriga já bastante grande.

Era uma mão de dedos queimados e marcados por uma espécie de

graxa da rua. Meio que escorada, meio que segurando o cachimbo para o

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próximo trago em cima da barriga, grandemente grávida, ela dispara: “É... é

essa a minha situação e eu não consigo sair dela”, o que me quebra entre o

ato de servi-la e o de olhar para seus olhos e dizer “Calma, tome a água, um

dia de cada vez”. Não conseguia pensar em outra coisa pra dizer.

Ela tomou, não quis comer nada, não pediu nada, não falou sobre

nenhuma outra coisa, como se não houvesse mesmo mais o que ser dito, e

não havia.

Ela então perguntou sobre a festa e eu afirmei que era mesmo uma

festa. Ela disse: “Ah... legal, legal. Eu faço artesanato, vendo as minhas

coisas.” “É mesmo? Que bonito isso? Onde posso encontrar o seu trabalho?”,

eu disse. Ela disse: “Vai lá na rodoviária. Lá todo mundo me conhece. É só

você perguntar da Hippie e todo mundo sabe. Eu tô lá todo dia. Eu queria

muito conversar com você, vou passar lá na semana que vem.”

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Ao fundo, festa no Beco do Candeeiro.

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2.7. A Ilha Extrapola A Ilha

Fragmento 5

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Avenida Prainha.

Ao enunciar a tese de que existe uma comunidade de rua, situar

geográfica e espacialmente esta comunidade na Ilha do Bananal e afirmar

que esta comunidade vive no front porque vive violências típicas de uma

situação análoga à da guerra, também enunciamos que existem arte-fatos e

afetos que perpassam os laços entre essas pessoas, e que estas constituem o

que chamamos comumente de população em situação de rua. Esses arte-

fatos constituem-se aqui de fragmentos da realidade que são percebidos

como fenômenos de produção cultural e artística e serão pensados como os

grandes articuladores da comunidade e o seu entorno.

Outro fragmento de realidade se apresenta da seguinte maneira: ao

fazer uma apresentação teatral intitulada “Nem Pés e Mil Cabeças”, na

Rodoviária Central de Cuiabá, constatei exatamente a mesma coisa que me

disse um morador de rua em Brasília, de uma maneira um pouco diferente.

Na época ainda não estudava de maneira sistemática a população em

situação de rua – isto foi no ano de 2013. Estando eu em hotel muito grande

e tendo por hábito caminhar só, eu ficava só sempre que possível, para tecer

contato com outras pessoas que não o meu grupo de viagem. Desci até rua

em frente do hotel onde eu me hospedava.

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Queria ficar por ali, sem muito que fazer e ver as pessoas que

passavam, um pouco do movimento da cidade. Não demorou para perceber

um morador de rua que por ali recolhia copos de mesas de uma lanchonete,

juntava um lixinho aqui outro acolá e acabava por encostar em algum

pequeno grupo para pedir.

Fiquei em seu caminho de propósito e não demorou ele chegar até

mim. Nossa conversa foi tão agradável. Ele falava de maneira fluente, limpa,

desenrolada, sem nenhum medo ou vergonha das coisas que dizia, do seu

corpo maltratado e de suas roupas surradas. Nossa conversa foi como de

pessoas quaisquer. Senti-me tão à vontade, usei gírias, pensei com ele, com

ele critiquei toda a gente e Estado, como costumo dizer, e ouvi fragmentos de

seus percursos encadeados com uma lógica precisa e uma coerência interna

da narrativa que realmente me marcou. Tudo isso num fluxo de conversa

com vento e clima muito agradável.

Brasília ficou no tempo e a apresentação a que me referi está já no

ano de 2014. Ao chegar à rodoviária percebi que alguns moradores que

vivem no entorno guardam seus colchões a preço de 2 ou 3 reais por dia na

parte de desembarque de ônibus, onde existe uma sala para se deixar malas

e pertences.

Como precisava guardar parte do cenário do espetáculo naquela sala

e percebi aqueles colchões enrolados com “matulas”, sacos e pequenas

sacolas que já figuravam na minha experiência como uma tática nômade,

resolvi perguntar para a atendente sobre aquelas bagagens. Comecei a

conversa perguntando se muita gente deixava as coisas por ali. Logo em

seguida emendei a conversa querendo saber se só quem estava viajando

poderia deixar as coisas ali, de que horas a que horas tinha funcionamento e

outras coisas mais triviais. Uma coisa importante é o valor.

Quando perguntei pra ela se ela poderia me dar um desconto porque

eu não tinha muito dinheiro pra pagar, ela revelou que sim, que poderia,

porque ela faz desconto também “pro pessoal da rua”.

A partir desse momento entrei no tema e ela foi contanto que tinha

um moço que sempre deixava o colchão lá, que já tinha sido roubado na rua

e agora estava sempre deixando o colchão lá. Ela já nem cobrava mais dele e

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ele o pegava durante o dia pra dormir e durante a noite deixava lá. Perguntei

sobre uma bagagem que tinha pinos e um monociclo e ela falou sobre os

donos, um casal de malabaristas que estava na cidade já algum tempo e

usavam o sinal pra sobreviver.

Sobre os moradores, ela disse que eles deixam e às vezes passam

dois ou três dias sem buscar “a traia” e que fazem isso para garantirem o

sono durante o dia e não serem roubados ou pelas polícias ou por outros

moradores em busca de lugar para dormir. Percebi que esse dado constituía

mais um dos tantos mais da cultura da rua e especificamente da cultura de

morar na rua; que morar na rua, é, sobretudo, uma maneira de viver que

tem características semelhantes em vários pontos do país, porque me dizia o

morador em Brasília: “Ah dona, eu fico de rastrear as policias; se vejo que

elas vão pra um lado eu vou pro outro. Agora as polícias estão fazendo um

revezamento. Antes a gente conseguia saber quem eram os policiais que

estavam, por exemplo, perto do shopping. Agora eles tão mudando todo dia

de lugar. Cada dia os caras tão num lugar diferente; eu descobri isso dona,

porque eu não paro sabe: se eu parar eu morro. Eu tava num lado da

cidade, vi que tava juntando muita polícia, resolvi sair logo dali. Fui pro

outro lado da cidade e encontrei do outro lado um policial que sempre via em

outro lado da cidade. Daí que eu vi que era verdade mesmo que eles tavam

cada dia num lugar. Enquanto isso, Dona, enquanto eles tão correndo atrás

de mim, os bandidos tão assaltando, tão matando e eles tão correndo atrás

da gente. Ontem mesmo teve assalto aí ó (refere-se a uma praça), eu tava lá,

as polícias tudo atrás da gente. Eu saí logo de lá porque se não ainda pegam

a gente e levam e dizem que foi a gente que assaltou, já tive um companheiro

meu apanhado assim. Ele tava lá na praça, rolou assalto no banco, levaram

ele e disseram que ele assaltou, Dona. Eu não, eu corro mesmo, prefiro ficar

assim ó, perto das pessoas, aqui embaixo no hotel, nos lugares onde as

pessoas estão, porque na praça os cana leva mesmo, ou larga o cacete sem

dó, ou mata, ou então prende e diz que você é ladrão. Ah Dona, num dá

não.” Ainda ficamos conversando. Ele tomou alguma coisa comigo e depois

eu me fui e ele também...

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Existem sempre motivos muito fortes tanto para o caminhar quanto

para a fixação temporária dos moradores em determinados locais. Esses

motivos podem relacionar-se a ficar marcado no território, estar esgotada a

possibilidade de explorar o território, ter se cansado do mesmo ou a

quaisquer outros aspetos e dimensões subjetivas que levam ao impulso do

caminhar.

Insistimos que essa tática também se dá no interior das comunidades

de moradores de rua, que existe um movimento auto-organizativo no sentido

de garantir que a mobilidade se dê em função não apenas de um modo de

vida, mas também como um modo de sobreviver, um modo de lidar com a

morte sempre à espreita. Dentre a maneira “mais segura” de vida está então

a vida caminhante, a vida que não para e que não pode parar. Desta

maneira, alguns pontos para uma pausa são fundamentais, mas essas

pausas são imprevisíveis e incapturáveis, e assim o morador passa sem ser

visto – é visto como ser passante e ao mesmo tempo invoca uma presença-

ausência que só ele é capaz de gerar e dela obter lucro.

O lucro é um outro fator a ser pensado e na ordem do dia do

morador de rua ele praticamente desaparece, dado que ele não se insere no

sistema monetário comum do dinheiro que transita de uma mão a outra com

valores definidos. Para os moradores, cada coisa tem valores distintos; cada

moeda também é valorada em outro sistema e esse sistema de comunidade

revela uma importante economia e esta economia também forma parte de

arte-fatos e de afetos da população em situação de rua.

O lucro raramente figura como uma alternativa; geralmente o que é

mais comum é a troca e essas trocas não são entendidas por nós, por que as

coisas, os objetos têm valor de compra e não de uso. Assim, um objeto

conseguido é trocado por um prato de comida que teria um valor muito

inferior ao do objeto, mas é apenas o necessário naquele momento e por isso

assume aquele valor fundamental de troca.

O lucro como finalidade, quando ocorre, tem o sentido de garantir um

aumento do consumo de alguma substância ou comida. Assim, quando um

morador pega uma droga por um valor e vende por outra, geralmente usa

imediatamente o valor acrescido como valor de compra porque ou deseja

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ingerir mais da substância ou deseja pagar algum favor recebido com o

bocado a mais que conseguiu.

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PARTE 3

DAS ILHAS

3. ILHAS NASCENTES, ILHAS EXTINTAS E ILHAS DESERTAS

Foto: Eliete Borges Lopes – agosto de 2016 – Av. Miguel Sutil.

Foto: Eliete Borges Lopes – outubro de 2016 – Av. Miguel Sutil.

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3.1. Das Jangadas De Pedra23

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Lateral do Big Lar.

O fenômeno de morar na rua possui muitas maneiras de acontecer,

maneiras acidentais e maneiras altamente calculadas, como tática de

sobrevivência ou como vida que ganha em potência, como contingência e

como saída, condição de possibilidade.

Para pensar o fenômeno da rua pensamos com o pequeno, o

insignificante, com as lógicas do que é ordinário (Certeau), não desejamos

invocar lógicas e exegeses a priori. O que acontece é dado em grande medida

pelo que passa, aquilo que nos atravessa – o que atravessa a pesquisa, de

maneira a pensar como somos impactados pelas vivências da rua e como

podemos impactá-las, mas não nos deixemos enganar crendo que apenas o

que aparece seja um dado a circunscrever o contexto local imediato.

23 Referência ao livro Jangada de Pedra de José Saramago, em que Saramago conta as peripécias dos moradores de

uma imensa lasca de pedra que começa a se desprender e navegar tal qual uma ilha flutuante; assim a história de Zé se inicia: Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cérbere começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se.

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As imagens da rua: o que pensar sobre as imagens da rua? As

imagens são um perigo constante, advertia Walter Benjamin, um perigo

iminente a substituir a realidade mesma pela sua capacidade de valor de

verdade e de aderência à realidade. Sua advertência vai, sobretudo,

referindo-se às imagens da propaganda.

Nietzsche também irá advertir quanto ao estardalhaço dos grandes

acontecimentos, estes como uma dimensão audível, portanto uma dimensão

não da visão, mas da audição. O que se faz ouvir das ruas?

Nietzsche fará o seu alerta quanto aos grandes acontecimentos que

impregnam com a aura do grandioso, do esplendoroso e necessariamente

invoca a reificação das formas consagradas, e que, portanto. não permitem

vir o novo.

Acabamos por ter em mente essas advertências para pensarmos na

contramão delas – pensar a partir do que é o cotidiano –, o que até certo

ponto se mostra também muito adequado à vida que se leva na rua, jogando

duplamente como o aparecimento e com o apagamento, aparecimento do

fenômeno como fenômeno grandiloquente e apagamento do fenômeno

enquanto “esquadrinhável” ou “aprisionável”, assim funcionando como

pistas, rastros, que visam levar a muitos lugares e nunca a uma única

maneira de ver e sentir. Em um livro chamado Almoço Nu, o seu autor, um

maldito marginal beatnick conta sobre as muitas formas que tinham de se

comunicar para deixar passar drogas, marcar territórios e penetrar em zonas

intersticiais, como o caso da interzona24, de maneira que uma garrafa em

cima de um muro pelas ruas onde transitavam tinha um dado significado,

um pedaço de tecido outro significado, e assim codificavam todo o território.

Também aqui se trata disso, mas entendamos que não apenas disso,

também de como se chega a estar em uma interzona, no sentido de uma

zona sem território, ou em uma terceira margem de rio, ou mesmo numa

fronteira em seu sentido mais rico – numa jangada de pedra, flutuando pelo

mar à deriva... São todas metáforas para dizer da expropriação da terra e do

território.

24 BURROUGHS, W. S. Almoço Nu. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

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Em sua tese “Habitar a rua”, Kasper25 diz da marca do território da

rua, que é o “quintal” varrido, como demarcando o seu espaço, o “quintal-

rua”, canteiro. Aquele pedaço de chão em que o morador de rua se encostou

passa a ter a marca do seu trabalho; passa a ter um traço de sua cultura e

passa a ser assim um estriamento do espaço liso do urbano, que se quer

sem marcas.

Para falar desses temas da rua, escolhemos essas poéticas,

escolhemos fragmentos, desusos, descartes, desterros em suma:

desutilidades poéticas.

A vida na rua em sua dimensão existencial, cultural, social,

ambiental se auto-organiza permeada de acontecimentos, acontecimentos

estes que não ganham a dimensão de eventos no sentido da indústria, mas

sim eventos no sentido filosófico daquilo que é o que funda o novo e que

podemos ver sua força em sua maneira de se manifestar, denotanto sempre

um estilo, sempre uma inscrição marcada pela intencionalidade, uma

maneira de produzir diferenças, de produzir marcas no urbano.

“Que o barulho e a profusão de sons, o estardalhaço dos grandes acontecimentos nem sempre são, diria, tão vitais assim, e que, pelo contrário, pode mesmo camuflar uma falta de vitalidade. Que vida e morte são um duplo e muitas vezes quando os discursos se prestam a uma pretensa defesa da vida, eles escondem um outro discurso, que é o discurso de morte. Ou, quando se pretende uma certa liberdade acadêmica, se desvela também um instinto de mando absoluto do Estado.” (Lopes, Otobiografias – Escuta-Estilo-Escrita Para a Autobiografia e a Autoformação, 2010)

Essa dimensão de mando do Estado, de organização, de

esquadrinhamento da vida nua é presente nas políticas e no modus operandi

das instituições. Uma das principais leis, no sentido de se fazer existir um

imperativo, é a da limpeza. A limpeza urbana historicamente é abordada do

ponto de vista da saúde, da organização coletiva, do direito etc., sendo este

um discurso que justificou a colonização, por exemplo, da cultura dos povos

nativos brasileiros.

25 KASPER, Christian Pierre. Habitar a rua. 2006. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Unicamp, Campinas,

2006.

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Por cidade limpa, entende-se aquela que esconde as pessoas com

baixa renda e principalmente as que não possuem renda, aquelas que têm

na rua seu meio de existência, aquelas que sobrevivem do lixo, aquelas que

não servem aos ideais sépticos das instituições, pois, como salienta a

professora Ermínia Maricato, “Pobre não evapora”. É preciso escondê-los.

Este processo de limpar as cidades não é recente. Já no início do

século 20, a então capital do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro, passou por

uma transformação coordenada pelo poder municipal e federal que ficou

conhecido por Plano Pereira Passos.

Em Cuiabá, vários processos atingem a região do Porto e o Centro,

incluindo a região da Ilha do Bananal, que deveria ter sido destruída para a

passagem do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) projeto ao qual foi destinado

mais de 1 bilhão de reais e integrava as obras da Copa do Mundo 2014.

O higienismo promovido pela Copa de 2014 incorporou novas formas

e novos discursos e tem sua raiz nos processos de gentrificação como um

processo de dominação e apropriação do espaço, através da consagrada

união entre discurso desenvolvimentista, segurança e embelezamento.

Este processo redefine os grupos sociais que ocupam determinado

espaço da cidade e transforma os contextos e usos dos espaços legando

muitas vezes a quem habita o território apenas o vazio geográfico ou mesmo

a expulsão sistemática.

Estas ações são afinadas política, estética e eticamente com um

projeto elitista, que visa uma pobreza que seja inodora, incolor e insípida –

que esteja bem distante, enquanto não se pode ou enquanto não se

consegue eliminá-la. Lembremos que isso também ocorre com a chegada das

classes médias a bairros populares através principalmente de condomínio

fechados e que em todas as cidades médias e de grande porte tem sido uma

constante.

A vida no espaço possui uma série de dimensões: morfológicas,

culturais, políticas, socioeconômicas e todas estas entrelaçadas, e são estas

dimensões que diferenciam os lugares. Os lugares são assim constituídos

através das relações sociais projetadas no espaço e estão diretamente

relacionadas ao modo como vivenciamos os espaços por meio da experiência

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pessoal e intransferível, que é o instrumento do nosso corpo e seus sentidos.

O espaço é visto, tocado, ouvido, cheirado e provado, quando se come uma

manga de uma mangueira nascida num canteiro ou num quintal, por

exemplo.

No processo de dominar e controlar os espaços pelas transformações

gentrificadoras, produzimos e reproduzimos a segregação espacial baseada

na condição socioeconômica. Isso leva a uma sociedade que não convive e

logo não tolera a diversidade, o diferente e as contradições do modo de

produção capitalista. Este aspecto figura nos discursos locais em relação aos

moradores de rua e mais especificamente em relação aos moradores de rua

do centro da cidade.

O conceito de lugar é um dos balizadores dentro da geografia.

Quando nos deparamos com a geografia cultural e humanista, este conceito

se torna importante, pois é no lugar em que vivem os/as homens/mulheres

que sua subjetividade é criada e valorizada, onde os laços sociais são

estabelecidos. A perspectiva que predomina é a do espaço vivido. Em outro

momento foi um conceito ligado a distâncias e localização; hoje está

associado à identidade.

O lugar é o espaço que possui determina função em relação ao bairro

no qual se insere, à cidade a que se insere e à vida individual dos moradores

e visitantes. Destacamos que este “espaço vivido” não é estático, mas

dinâmico. Lugares que outrora foram atrativos para o capital e mantiveram

uma rica vida social para a classe dominante já não o são mais em muitas

cidades.

Os pontos históricos de diversas cidades perderam o seu “campo de

força” para atrair e manter o aspecto de centro comercial. O bairro do Porto,

em Cuiabá, é um exemplo de lugar que se transformou com o tempo,

antigamente, único meio de circulação de bens, serviços e pessoas na

cidade, pois ainda não se contava com o Rio Cuiabá e sua vertente pela

Prainha, fora o eixo estrutural da cidade. Tornou-se com o tempo um espaço

marginalizado, excludente, carregado de simbolismos negativos aos olhos da

cultura hegemônica: fedido, sujo, imundo, inseguro, degradado, etc.

Observamos no bairro que existe um grande fluxo de pessoas, mas que, em

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geral, estas não permanecem, apenas passam. Quem ali reside é quase

invisível aos olhos daqueles que por lá passam. Demograficamente, o bairro

vem decrescendo populacionalmente, ao menos as pessoas contabilizadas

pelo CUIABÁ (2007). Entre 2000 e 2007, o bairro perdeu 10% de sua

população, sendo este um dos grandes motivos. Isto significa que a

população de rua que resiste no Centro Norte de Cuiabá – que é também o

Centro Histórico e, no caso, a Ilha do Bananal –, é uma população que

resiste à exploração imobiliária, o que os moradores da região não

conseguiram fazer e cada vez conseguem menos, dadas as condições

adversas: IPTU, água e energia elétrica cobrados em valor diferenciado, falta

de conforto ambiental (sonoro e de tráfego), dificuldade com entrada e saída,

garagens, calçadas e passagens, dentro outros motivos.

Desde que comecei a observação da comunidade da Ilha do Bananal

havia percebido e comentado de maneira recorrente, com meu orientador,

amigos e nas disciplinas que cursava, que havia um crescimento da

população em situação de rua na cidade de Cuiabá.

Isto eu constatava diariamente pela observação, dado que algumas

pessoas que eu já conhecia estavam andando com outras que nunca tinha

figurado em minhas retinas. A questão é que em dois episódios percebi que

havia uma grande quantidade de pessoas na Ilha do Bananal, pois conto a

quantidade de vezes em que os moradores passam por carros correndo entre

a comunidade e o Beco do Candeeiro e deste para o Morro da Luz. Da última

vez em que estava no ponto de ônibus, houve 9 episódios do gênero.

O movimento que hoje percebo na cidade de Cuiabá é o da retirada

dos moradores de um lugar, enquanto erguem-se barracos em outro. Assim

percebemos um movimento de cair barraco dum lado e levantar barraco do

outro. Não conseguimos, porém, ainda descobrir se parte da população em

situação de rua está circulando por essas desapropriações e re-apropriações

do espaço, ou se são pessoas novas que estão chegando à rua, ou se mesmo

há um emaranhado de situações, em que se misturam novos e velhos

habitantes da rua.

O certo é que essa população tem sido constantemente desabrigada e

tem procurado cada vez mais lugares inusitados e suas alternativas têm se

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tornado cada vez mais combatidas pelo Estado e mesmo por organizações

privadas, sejam elas de segurança, donos de propriedades, ou mesmo

invasores que possuem o aval do Estado para tal, como no caso da compra

de títulos de cartório de terras do Estado a preços irrisórios, política

mantida, por exemplo, pela oligarquia Campos na cidade vizinha a Cuiabá, a

cidade de Várzea Grande.

Tanto o desabrigamento quanto a despossessão da terra são motivos

pelos quais historicamente tem sido levada às ruas uma população de

pessoas pobres, negras e empobrecidos, que se tornam a população em

situação de rua.

O que queremos dizer é que existe uma maneira de pensar e viver a

rua que é derivada da conjugação de pelo menos dois aspectos que

convergem em muitas histórias de vida: a perspectiva de que ao se perder o

lugar a pessoa precise ir para a rua e a perspectiva de que a pessoa,

sentindo-se sem lugar, também necessita da mesma para viver.

Essas duas dimensões tentam ser exploradas neste trabalho, pois

acreditamos que as pessoas são levadas à rua não tão somente por questões

de falta de referência em seus vínculos subjetivos.

Sabemos que esses processos se implicam mutuamente e que os

determinismos de tipo social, a miséria, a fome, a falta de moradia leva as

pessoas à rua, mas fazemos uma ressalva de que geralmente essa dimensão

social está implicada no empobrecimento, na falta de acesso à educação, na

dificuldade em lidar com problemas de saúde e problemas de saúde mental,

bem como dependência química e a falta do emprego ou a perda dele.

A questão é que a pessoa em situação de rua pode ter seus laços, sua

história, sua vida fragmentada, partida e perpassada por todos esses fatores

e que há na estrutura social grande participação nesse processo – dentre

todos os processos, destacamos para além dos conflitos subjetivos, a questão

de conflito com o Estado.

Sabemos que diversos países do mundo passam por processos que

tornam os lugares uma disputa entre aqueles que habitam o lugar e os

projetos de Estado. Assim, vamos aqui caracterizar apenas a despossessão

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da terra como um fator problemático a ser encarado do ponto de vista da

ocupação da terra e do território.

“Os mecanismos de aquisição das terras públicas, assim como o aparato jurídico (ou sua ausência) que sustenta os processos de expropriação, são profundamente dependentes das relações políticas estabelecidas entre o Estado – que expropria – e os indivíduos ou comunidades – que são expropriados. Em geral, as desapropriações ou eminent domain – ou seja, a capacidade soberana do Estado de requisitar terras para si, alegando razões de interesse público – estão estabelecidas nas leis e normas que regem a aquisição de terras públicas.” (ROLNIK, 2015, p. 228)

Em seguida a autora contextualiza as experiências da China e Índia,

países nos quais existe, como no Brasil, uma profunda assimetria entre os

expropriados e os promotores do projeto de expropriação, a começar pela

condição em que está colocada a população, comunidade ou as pessoas

expropriadas. A necessidade do dinheiro dada sua condição de

vulnerabilidade, somada à ignorância quanto aos seus direitos e ao valor que

pode ter a terra expropriada, cria um cenário de fácil apropriação pelos

donos do projeto de expropriação e que, no caso da China, soma-se ainda à

paramilitarização na negociação dos títulos.

Estes exemplos de como a nova burguesia planetária, com aporte do

Estado a partir dos projetos de financeirização da moradia e de expropriação

da terra, dão-nos o panorama daquilo que David Harvey26 fala sobre o

projeto de conexão mundial entre os novos donos das terras e dos territórios

das cidades, que cada vez avançam mais na expectativa da construção de

campos ilimitados da propriedade privada, com a urbanização planetária.

26 Para ver esta questão em minúcias, ver o vídeo do Encontro: Direito às cidades e resistências urbanas. Fortaleza, 2015. Acesso em : https://www.youtube.com/watch?v=TJ-fcdFnSAE

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3.2. Comunidade Nascente

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do

Moinho, imediações do Bairro Pedregal.

O Bairro do Pedregal situa-se ao lado da Universidade Federal de

Mato Grosso e surgiu de uma ocupação popular. Houve várias tentativas de

retirada das pessoas desse local, mas como ele é bem localizado, também

houve bastante resistência. As pessoa7s sabem que o fato de ser do lado da

UFMT conta muito, além de ser um lugar estratégico do ponto de vista que

há saídas para todos os lados, o que torna o bairro um complexo repleto de

fluxos.

A população desta região teve constante interação com a

Universidade, seja por conta do grande parque que é a Universidade e pelo

que ela oferece em termos de serviços aos usuários, seja como passagem,

pois há algum tempo, para sair para a Avenida Fernando Correa era preciso

passar por dentro do campus.

Quando de sua construção, as pessoas do bairro iam até a

Universidade para apanhar restos das obras de construção, dado que a

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população pobre cozinha à lenha e necessitava do que era rejeitado ou

descartado pelas obras. Não raro havia cenas em que mulheres com pedaços

de lenha na cabeça, entre pessoas a passear pelo campus, se misturavam a

homens que passavam de bicicleta com suas marmitas indo para o canteiro

de obras.

Nesta região uma das alternativas de vida das pessoas e que se

consolidou de maneira muito forte é o tráfico de drogas. O uso de drogas em

locais públicos do entorno da antiga Universidade Popular é uma cena

corriqueira, e por ali transitam muitas pessoas.

Figuras históricas como Juca do Guaraná Pai e Juca do Guaraná

Filho, que tiveram investigações perpetradas contra suas candidaturas por

acusações de tráfico de drogas e compra de votos com a mesma moeda,

residem no bairro e fazem, por exemplo, entregas de cadeiras de rodas em

época de campanha – se elegem da miséria que perpetuam.

As imagens acima, no entanto, dão conta de uma comunidade

nascente no bairro onde residem ambos os políticos locais citados.

Essa região é uma região que foi “limpa” recentemente para a

construção de um grande edifício na margem da Avenida das Torres. A

“limpeza” durou alguns meses e em meados do mês maio de 2016 as

pessoas começaram a voltar.

Hoje existe uma nova instalação no mesmo lugar onde antes havia os

outdoors que ironicamente falam sobre a soja do nosso Estado e sobre os

condomínios para a classe média, outdoors sobre soja e condomínio que

abrigam sem tetos, moradores de rua, desabrigados e pessoas com

sofrimentos psíquicos e dependência química. Essa é imagem que vemos na

entrada do bairro e que, segundo o Sr. João Emanuel, precisa ser “limpa”.

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Foto: Google Maps – 2016 – Visão do Bairro Pedregal de uma lado e Jardim

Itália do outro.

Não são apenas os discursos de limpeza que circulam em torno da

população em situação de rua, mas, dentre eles, um dos que mais tem se

mostrado é o da limpeza.

Esses discursos, alguns mais preconceituosos passam como que

incontestáveis para o senso comum – discursos como os de que “morador de

rua escolheu morar na rua”, “morador de rua ‘enfeia’ a cidade”, “morador de

rua é sujo”, “morador de rua é alienado”, “morador de rua é lixo

contaminante”, “morador de rua não gera renda”, “morador de rua é

drogado”, “morador de rua é violento”, “morador de rua é inferior na escala

social” e “morador de rua improdutivo”.

A maneira como esses discursos estão impregnados na lei e na

maneira como se pensam as políticas públicas é um capítulo à parte na

história das ruas do Sul e das ruas brasileiras.

A sociedade brasileira, como bem observou Sergio Buarque de

Holanda, é heterogênea, segregacionista e elitista. Caso não tenhamos nosso

olhar sensível e sensibilizado, corremos o risco de reproduzir esta mesma

lógica e agir como opressores, mesmo sendo e estando entre oprimidos, e

mesmo de legitimar políticas que reforçam violência e discursos de morte.

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Pensar políticas para a população em situação de rua neste sentido é

algo bastante delicado, pois é necessário levar em conta esses e outros

aspectos da vida e da vida na rua.

De maneira alguma queremos com isso dizer que não seja necessário

pensar uma política para a população em situação de rua; o que advertimos

é do perigo dessas políticas incorrerem nos mesmos erros das políticas das

instituições de repressão ou mesmo de inserção que reforçam estigmas ou

pensam a normatividade como regra para a ressocialização, re-integralização

ou qualquer outro termo usado neste mesmo sentido.

A vida nas cidades, do ponto de vista físico, arquitetônico e/ou das

relações sociais, constitui geralmente um espelhamento da sociedade e

cultura segregacionistas e esta compartilha uma visão de mundo

eurocêntrica e conivente com a destruição dos saberes-poderes-estéticas e

que, portanto, atuam na produção das subjetividades, como subjetividades

de lixo.

Essas oposições binárias e não complementares contrapõem a

subjetividade de lixo ao seu oposto, isto é, a subjetividade de luxo. Isto

significa, por outro lado, que, mesmo habitando o espaço geográfico e físico,

o lugar social que cada um ocupa é o que vai separar e escalonar a todos.

As práticas-discursivas e o controle das populações, no caso da

população em situação de rua, denotam que o fenômeno da produção das

“subjetividades da rua” possui gradientes que podem incorrer em aspectos

que vão da negação, invisibilização, segregação e opressão desse segmento a

crimes como a agressão, assassinato, estupros e chacinas, dentre outros

tipificados pelo Código Penal, e que colocam a sociedade brasileira em

permanente comprometimento quanto à garantia de Direitos e em uma

problemática reveladora da distância entre possuir uma das legislações mais

avançadas do mundo e penar socialmente quanto a sua não-implementação.

Além dos crimes, existe uma gama de prisões, internações e

interdições perpetradas pelo Estado e que coloca o projeto de cidadania

plena em xeque. Isto se soma à problemática dos Direitos Humanos

constituírem apenas um arcabouço teórico e não um aparato jurídico.

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O modus operandi, calcado na visão eurocêntrica, pelo qual Estado e

Sociedade fundam as práticas-discursivas sobre a subjetividade de lixo e a

subjetividade de luxo, tem na cidade o ponto principal das relações de

dominação econômica e sociocultural.

Essas práticas têm na expropriação do território e do saber-poder, a

saber, daqueles que na cidade se organizam à margem, um ponto

fundamental de sua estratégia de extermínio. Uma das principais práticas

discursivas do ponto de vista do controle e que propiciam o extermínio e a

internação dos moradores de rua é a prática da limpeza.

Os moradores de rua sofrem duplamente o impacto absolutamente

brutal da expropriação como limpeza. Quando na rua, vivendo e

sobrevivendo (d)nela, pessoas nomeadas simplesmente por moradores de rua

– geralmente aquelas que já tiveram todos os seus bens simbólicos, culturais

e materiais expropriados – ainda sofrem a imposição de outra expropriação:

a expropriação de seu corpo (prisão, internação, interdição e morte):

expropriação da subjetividade, transformação da subjetividade em lixo, para

assim, através do estigma como processo, justificar o seu abandono,

desaparecimento, encarceramento, isolamento e morte. Essa expropriação

coloca em xeque a própria cidade em sua dimensão fundante, quer seja: a de

socialização, relação, interação e de vivência urbana.

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3.3. Ilha Do Out-door

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do

Moinho, imediações do Bairro Pedregal.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do

Moinho, imediações do Bairro Pedregal.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do

Moinho, imediações do Bairro Pedregal.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do

Moinho, imediações do Bairro Pedregal.

É interessante notar todo o valor simbólico e criativo guardado nas

imagens desta comunidade nascente. Primeiro, o fato de estarem sob placas

utilizadas para veicular propagandas, um símbolo do capitalismo. Outro

ponto importante é a forma de muro que tomam as placas.

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Um muro que é ao mesmo tempo uma parede, uma parede que pelo

lado de fora veicula ideias além daquelas mesmas já expostas pelo uso de si

como um objeto do capitalismo que adquire um uso novo pela população em

situação de rua. Pensar no seu uso dá conta de pensar também o uso

mesmo do espaço, do território da comunidade que está situada numa

espécie de morro de terra feito a princípio para promover a “limpeza” dos

lotes situados imediatamente ao lado, ou mesmo proporcionado por um

corte no terreno, ou ambos os processos.

Do ponto de vista das imagens temos a propaganda de um grande

festival de música. No Cerrado Groove Festival, geralmente se paga a entrada

e moradores de rua não são toleráveis. Outro outdoor trás a frase: “A

COLHEITA DESSE ANO FOI A MELHOR QUE JÁ TIVEMOS”, insinuando por

um lado que o que mais importa no estado é o agronegócio e, por outro, que

o fogo é um perigo, já que o outdoor traz o meio dele com a imagem

esburacada, como se tivesse sido queimada. Abaixo, um alerta sobre o fogo

que pode queimar as plantações, mais um aspecto problemático do Estado

de Mato Grosso, pois sabemos que o agronegócio concentra o latifúndio,

portanto o monopólio da terra que lega às pessoas a impossibilidade de um

território para habitar, questões diretamente ligadas aos fenômenos de rua.

Outro, o mais irônico de todos os outdoors, é justamente o de um

condomínio. Propaganda de condomínio de classe média num outdoor em

que nasce embaixo de si uma comunidade de rua só pode ser uma ironia do

sistema capitalista.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2013 – Lateral do córrego ao final da Av. das Torres.

Ironia trágica presente nesta imagem às margens de um córrego ao

final da Avenida das Torres, ela mostra um grande outdoor com a

propaganda de condomínios de casas com 2 quartos que traz ao lado do

escrito uma imagem de um playground, um parquinho. A comunidade da

lateral deste córrego não conta com nenhuma área de laser. O quintal

minúsculo de uma casa também minúscula e com o telhado de eternit –

telha de amianto hoje proibida pela legislação ambiental – não existe mais

pois a população foi retirada para a canalização do esgoto e não se tem

notícias de onde estão hoje. Como dizem os vizinhos, “cada um foi pra um

canto”.

Essa comunidade retratada nas fotos anteriores em meados de

setembro – e que passou por uma recente interdição em maio de 2016, pelo

fechamento com cerca de uma grande área vizinha destinada à construção

de um edifício – está passando por um novo processo de desagregação que

veio com a retirada dos outdoors.

As imagens abaixo feitas em 25 de outubro de 2016 mostram o

reordenamento:

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Foto: Eliete Borges Lopes – Outubro de 2016 – Estrada do Moinho.

Foto: Eliete Borges Lopes - Outubro de 2016 - Estrada do Moinho.

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Foto: Eliete Borges Lopes – outubro de 2016 – Estrada do Moinho.

Foto: Eliete Borges Lopes – outubro de 2016 – Vista da Estrada do Moinho.

As semanas que se seguem serão fundamentais para a

compreensão do devir dessa comunidade nascente. A dificuldade de acesso a

essa comunidade é grande dado que alguns barracos estão literalmente no

meio do mato e como não há nenhum conhecido nosso da pesquisa, ao

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menos até o momento não localizamos nenhum, uma abordagem repentina

poderia incorrer em uma situação de perpetrar ainda mais violência a essas

pessoas.

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3.4. Comunidade Extinta

Foto: Google Street View – 2014 – Lateral da Rodoviária.

Foto: Google Street View – 2014 – Lateral da Rodoviária.

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Aqui mencionamos brevemente a comunidade extinta da lateral da

rodoviária, apenas para dizer do impacto das políticas públicas sobre a vida

da população em situação de rua.

Na lateral da Rodoviária Central de Cuiabá, existia uma comunidade

em situação de rua que desapareceu com a medida de internação

compulsória baixada pela prefeitura à época da Copa do Mundo. Como na

situação do “baculejo nervoso”, uma vez mais a justificativa para a

interdição e prisão da população em situação de rua concentra-se no uso de

drogas.

A indistinção proposital entre os que consomem drogas e os que

traficam drogas leva usuários à prisão por conta de uma seletividade, por

um lado, e uma indistinção, por outro.

Esta comunidade que se situava na lateral da Rodoviária Central foi

dissipada em parte pela internação compulsória e em parte por boatos de

que seriam eliminados. Agora a comunidade está nas proximidades desta

região, na rua Tereza Lobo, em frente ao Jornal Folha do Estado. Dentre esta

população, que é bastante grande a ponto de formar uma população de rua e

que conta com um contingente de usuários de crack, aconteceu um episódio

que há muito não presenciava. Encontrei dentre eles uma adolescente que

fumava crack e que consegui registrar. Há muito tempo não registrava

nenhum(a) adolescente na rua, dado que seu recolhimento ao Pomeri ou a

outro centro de internação para adolescentes, que funcionam como cadeias,

é imediato.

A declaração do autor da proposta, o vereador João Emanuel é a

seguinte:

“Quanto à internação compulsória, João Emanoel, ponderou que ‘é providencial agirmos rápido para resgatar esses semelhantes alienados pelas drogas. É preciso desenvolver uma grande ação de limpeza para extirpar as cracolândias instaladas em vários locais da capital, a exemplo das proximidades do jornal Folha do Estado, bairros Pedregal, Leblon, Terminal Rodoviário, Porto e em outros lugares. Retirar o dependente químico das ruas e tratá-lo é fazer um bem para todo o povo de Cuiabá’”27.

27http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?noticia=Internacao_compulsoria_podera_ser_adotada_em_Cui

aba_Camara_discute&id=315710 (Acessado em 08/11/2016)

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Nas palavras do então presidente da Câmara dos vereadores de

Cuiabá, João Emanuel do PSD, aparecem todos os discursos que persistem

em torno dos moradores de rua – que é a sua vinculação ao uso de drogas

como uma dimensão da vida inconciliável com a própria vida e passível de

punição pelo poder público. É a ideia de que o morador de rua é um usuário

de drogas e que ele precisa, por isso e por outros motivos, certamente, ser

resgatado, o que também é uma dimensão presente no sistema de saúde,

nas casas e entidades de proteção e que é recorrente nos discursos

salvacionistas que entendem o dependente químico como aquele que sofre e

está condenado – por isso merece ser salvo. A ideia, dentre todas muito

problemática, é aquela que diz sem nenhum tipo de censura da necessidade

de limpar a cidade das “cracolândias”.

O discurso do vereador em questão encontra junto da população um

respaldo. Isto, sem sombra de dúvida, assusta, posto que, com o aval dado,

este tipo de político costuma a agir passando leis como a da internação

compulsória e as de recolhimento, prisão e interdição, o que significa que na

esfera política há um amplo combate a ser travado. No entanto, a questão

que se insinua é: quem poderá fazê-lo?

Vamos dar destaque a apenas à dimensão do higienismo, da limpeza

que o vereador João Emanuel propõe, para dizer que esta incorporou novas

formas e discursos, mas que continua sendo semelhante a processos

históricos que se deram tanto no Brasil quanto fora dele – processo chamado

por alguns teóricos de “gentrificação”, um processo de dominação e

apropriação do espaço através da consagrada união entre discurso

desenvolvimentista, segurança e embelezamento, redefinindo os grupos

sociais que ocupam determinados espaços da cidade. Estas ações são

afinadas política, estética e eticamente com um projeto elitista, que visa uma

pobreza que seja inodora, incolor e insípida – que esteja bem distante,

enquanto não se pode ou enquanto não se consegue eliminá-la.

A gentrificação é considerada um fenômeno agregado em quatro

processos similares e complementares: o primeiro é o de reorganização da

geografia social da cidade, com substituição, nas áreas centrais da cidade,

de um grupo social por outro – claramente uma questão de classe; o

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segundo é um reagrupamento de pessoas com estilos de vida e

características culturais muito similares; o terceiro, a transformação do

ambiente construído e da paisagem urbana com a criação de novos serviços

e uma adequação residencial que prevê melhorias arquitetônicas e urbanas;

por último, uma mudança da ordem fundiária, o que, na maioria dos casos,

determina a elevação dos valores de venda das propriedades.

A vida no espaço possui uma série de dimensões: morfológicas,

culturais, políticas, socioeconômicas e todas estas entrelaçadas, e são estas

dimensões que diferenciam os lugares. Os lugares são assim constituídos

através das relações sociais projetadas no espaço, diretamente relacionadas

ao modo como vivenciamos os espaços por meio da experiência pessoal e

intransferível, que é o instrumento do nosso corpo e seus sentidos.

O espaço é visto, tocado, ouvido, cheirado e provado. Quando se come

uma manga de um pé numa rua, se prova a dimensão do espaço de maneira

que esta experiência é um todo de cultura e de uma política do espaço tudo

isso dado ao ambiente.

Como afirma Guattari, este processo leva a formação de identidade e

subjetividade:

“A cidade produz o destino da humanidade: suas promoções assim como suas segregações, a formação de suas elites, o futuro da inovação social, da criação em todos os domínios. Constata-se muito frequentemente um desconhecimento deste aspecto global das problemáticas urbanas como meio de produção da subjetividade.”28

No processo de dominar e controlar os espaços pelas transformações

gentrificadoras, produzimos e reproduzimos a segregação espacial baseada

na condição socioeconômica. Isso leva a uma sociedade que não convive e

logo não tolera a diversidade, o diferente e as contradições do modo de

produção capitalista.

Esse é um problema típico que atinge as populações e ainda mais

aquela em situação de rua. Configura, junto às questões ambientais, um

drama urbanístico, dentre muitos outros.

28 GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 173.

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“O drama urbanístico que se esboça no horizonte deste fim

de milênio é apenas um aspecto de uma crise muito mais

fundamental que envolve o próprio futuro da espécie humana

neste planeta, sem uma reorientação radical dos meios e,

sobretudo, das finalidades da produção, e o conjunto da biosfera

que ficará desequilibrado e que evoluirá para um estado de

incompatibilidade total com a vida humana e, aliás, mais

geralmente, com toda forma de vida animal e vegetal. Essa

reorientação implica, com urgência, uma inflexão da

industrialização, particularmente a química e a energética, uma

limitação da circulação de automóveis ou a invenção de meios de

transportes não-poluentes, o fim dos grandes desflorestamentos...

Na verdade, é todo um espírito de competição econômica entre as

empresas e as nações que deve ser novamente posto em questão.

Existe aí um tipo de corrida de velocidade entre a consciência

coletiva humana, o instinto de sobrevivência da humanidade e

um horizonte de catástrofe e de fim do mundo humano dentro de

alguns decênios!” 29

29 Ibidem, p. 172.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Rua Tereza Lobo.

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PARTE 4

POÉTICAS

4. DAS DESUTILIDADES, CRÍTICAS E POÉTICAS DAS ILHAS

“(...) A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos que voam por dentro dessas ruínas. Dos restos humanos fazendo discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres que correm por dentro de nós e das casas. Aos poetas do futuro caberá a reconstrução - se houver reconstrução. Porém a nós, a nós, sem dúvida resta falar dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas - e está cego. Cego e torto e nutrido de cinzas (...)”

Manoel de Barros

Chegamos num momento em que passamos da observação e da

descrição do fenômeno circunscrito à Ilha do Bananal para conceber como

outras ilhas integram a paisagem da cidade de Cuiabá.

Partimos de pontos geográficos específicos situados na experiência

pessoal e na experiência do urbano como territórios afetivos30. Esses lugares

são praças e espaços públicos em geral, que são o suporte das intervenções

da população em situação de rua e também dos artistas de rua.

Neste momento a perspectiva é uma vez mais instaurar a dimensão

fundante desta tese no relevo daquilo que estamos chamando de vida no

front e pensar como essa vida no front cria desutilidades poéticas31, assim

como nas palavras de Manoel de Barros: “As coisas tinham para nós uma

desutilidade poética./Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso

dessaber.32”

Pensamos as ilhas que poderiam compor este desenho e chegamos à

conclusão de que alguns pontos da cidade mereciam um enfoque enquanto

lugares dos quais emergem ilhas, ilhas poéticas, ilhas que fazem o urbano

30 A ideia de território afetivo foi largamente debatida principalmente relativa às manifestações da cultura popular,

incorporada nas políticas do Governo Federal através do Programa Mais Cultura nas Escolas http://www.cultura.gov.br/educacao-e-cultura 31 O termo desutilidade poética foi roubado de Manoel de Barros. É o título de um dos seus livros de poesia. 32 BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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diferir, ilhas que tornam o contexto da cidade impregnado de significados da

cultura popular e que ensinam que a cidade pode sim pertencer a todos.

Alguns desses lugares são historicamente reconhecidos como uma

importante parte da cidade, como é o caso do bairro do Porto; outros nem

tanto. O Centro, por exemplo, apesar de sua importância histórica, não tem

ganhado muitos relevos de importância nas políticas de restauro do

patrimônio ou de acesso da população e acaba por figurar como centro

comercial, sendo restrito a algumas partes como a praça da mandioca e

algumas ruas que ganham o destaque de projetos de artistas locais e que

com o tempo, após estes processos que revitalizam as práticas, são tomados

pelos comerciantes que gananciosamente começam a cobrar por banheiros,

calçadas e praças.

Os trajetos, criações, diferenças, isto é, as performances dos

moradores de rua, compreendem uma série de fragmentos que mostram as

apropriações do espaço, a imensa força dessas apropriações e as variações

inventivas do espaço urbano a partir do território das comunidades ou das

ilhas.

Estes fragmentos criados, performatizados, inventados a partir da

intervenção da população em situação de rua, deu-nos a possibilidade de

pensar em ilhas compostas por desutilidades poéticas; desutilidades estas

que versam sobre a maneira poética que o urbano se apresenta, seja através

do graffiti, da palavra, dos textos nas paredes ou das performances de

andarilhagem, como aquela instalada em meio ao canteiro central da

Prainha.

A nossa atenção se volta tanto para a destruição de partes históricas

da cidade de Cuiabá como um fenômeno recorrente em outros centros

urbanos do país quanto para pensar como a população em situação de rua

se apropria desta destruição e cria nela um sentido novo para o urbano,

cheio de porosidades, nuances de uma vida que mesmo no front anuncia a

resistência que tornam as ilhas habitáveis – aquilo mesmo que é, por um

lado, indesejável ou inútil, por outro, é material de criação e valor intrínseco

ao viver.

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Pensamos como a existência dessa ambiguidade faz existir também

dois movimentos contraditórios: por um lado uma população que ativa novos

modos de ser e por outro a tentativa de destruição desses saberes que

organizam modos de ser.

Nós sabemos que uma maneira muito eficaz de negar e destruir

saberes e identidades é a produção de um discurso sobre a alteridade, sobre

o Outro.

E neste sentido nada mais efetivo do que um discurso anti- pedagógico

sobre o que o Outro é. Neste sentido, a população em situação de rua sofre

imensamente, dada a sua vulnerabilidade, além de todas as outras,

simbólica, no sentido de que ao serem tratados como os mais fracos,

também tendem a ter seu modo de vida e sua subjetividade como inferior.

O Outro que somos, o Outro do discurso colonizador, é um outro

quando não invisível, invisibilizado, inferiorizado ou tido como sub-humano.

Ao determinar o Outro como sub-humano ou inferior, se produz um

mecanismo brutal do pensamento hegemônico, que operou e opera o

silenciamento de produções de saberes, de vivências, e que negou e nega a

alteridade dos povos e das populações.

No Brasil, se mutilou e segregou a cultura dos povos indígenas, dos

povos dos campos, das águas e das florestas - um mecanismo que atuou e

atua sobre as práticas culturais e as identidades das populações.

É preciso refletir até que ponto ainda assimilamos estas práticas aos

nossos fazeres e ao nosso cotidiano. As pedagogias de subalternização, de

criação de subalternos, subúrbios, periferias e latifúndios a partir da

empreitada colonizadora, perpassaram as especificidades e as diversidades,

as diferenças tão marcadas na forma de viver dos povos. As anti-pedagogias

colonialistas adentram cada vez mais as práticas e os saberes e a cultura e

se aprofundam em formas como a do capitalismo, da monocultura, do

agronegócio e do latifúndio e do discurso segregacionista que destroem as

formas de produção material, de vida e de existência de diversas populações.

Com as populações de rua e populações ditas periféricas não é diferente. A

tentativa de rebaixamento dessas populações é algo bastante impregnado

nos diversos discursos, e muitas vezes no próprio discurso acadêmico.

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A esses mesmos processos que estão submetidas as favelas, morros,

periferias urbanas, em que as condições materiais de subsistência e de vida

chegam muitas vezes ao limite, também estão submetidas a população de

rua e existe uma anti-pedagogias bastante enraizada nas instituições e nos

discursos que destroçam a subjetividade, promovem o silenciamento, negam

a alteridade e operam a ruína de modos de vida e conhecimento, marcam os

processos de desumanização de tantas crianças, adolescentes, jovens, jovens

adultos e adultos das classes populares que chegam às ruas por condições

de pobreza e violência e que encontram pouca acolhida de sua diferença e

tende a ser incompreendida mesmo no interior da rede de proteção.

Essas anti-pedagogias, universalistas, generalistas e por via de regra

moralizantes estão cada vez mais presentes nos “currículos das instituições

de apoio” que atuam por vezes colonizando saberes e poderes da população

em situação de rua. Essa normatividade encarada de maneira salvacionista

e redentora é depositária de um instinto pouco potente, o instinto de

rebanho; representa dimensão da vida coletiva que só pode ser plenamente

vivida se partilhada de maneira a conciliar o individuo num grupalismo

gregário, o que é basicamente rejeitado pela população de rua e o motivo de

fundo que leva as pessoas para a rua.

José, um ex-morador de rua que vive na rua como missionário me

disse: “Eu tenho uma maneira diferente de trabalho, porque eu não digo pra

pessoa que ela tem fazer assim ou assado, porque é isso que leva as pessoas

pra rua, não querer fazer o que o outro quer. Eu digo pra ela, ‘vem comigo no

trabalho e aí você vai decidir’, e explico como que funciona, daí que você vê o

que você quer, porque isso de ficar pregando na cabeça das pessoas pode até

funcionar de um jeito, mas num é o meu jeito não. Eu trabalho com o Daime

e com o Daime a gente sabe que não é assim. Pra você ver, tem uma pessoa

que eu acompanho que eu fui agora a Brasília e levei ele pra fazer lá o

trabalho, ele tá tão bem que fui buscar duas garrafas de chá pra ele pra ele

fazer o acompanhamento e se recuperar.” José me deu o telefone e me

convidou pra ir conhecer o seu trabalho.

O ditar regras de conduta e vida é muito problemático do ponto de

vista da população em situação de rua, primeiramente porque muitos dos

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moradores se encontram na rua justamente por contestar tais regras e

quando encontram, mesmo na perspectiva de uma suposta ajuda, uma regra

à qual devam seguir, desejam escapar pelo mesmo motivo que nós

desejamos. Nisto não somos tão diferentes: o motivo é o questionamento de

qualquer heteronomia que se queira impor, o não aceite ao estabelecimento

de hierarquia de mando ou de força sobre si.

Nisso reside uma problemática: quem quer que seja que questione os

padrões de normatividade incorre no risco de ter sua vida estigmatizada. O

estigma, classificação ou marca, mesmo o da população em situação de rua,

denota uma condição – condição esta que por ser diferente de pessoa para

pessoa e não poderia integrar uma categoria.

Neste sentido só podemos usar a ideia de uma população se pensamos

que nela está inscrita a ideia da heterogeneidade dessa população, e é

justamente deste ponto que entendemos o termo população em situação de

rua – que os saberes dessa população ligam-se ao contexto de urbano das

cidades, mas que podem ligar-se ao contexto de campo, no caso dos

trecheiros, por exemplo.

Pensar que essa população contestadora e inventiva em seus modos de

vida organiza saberes que são uma praxiologia é pensar um lugar para

contrapor a força hierarquizadora e segregadora das anti-pedagogias que no

escalonamento da hierarquia de saberes situa a população em situação de

rua como aquela que possui um saber deformado porque não se pronuncia

numa língua que seja compreensiva aos ouvidos da escola e da universidade,

um saber subalterno porque não atinge os círculos dos saberes sociais e

culturais – um saber subalterno porque no interior mesmo das culturas

subalternas as culturas de rua são aquelas que foram mais relegadas à

invisibilidade justamente porque consideradas analfabetas e, além de tudo,

inúteis.

Neste sentido, quando Miguel Arroyo diz “Só nos tornamos visíveis,

existentes em espaços, terra, território” (ARROYO, 2012, p. 76). Sabemos

que sim, como a população sem terra a população em situação de rua

também se tornam dia a dia, a partir das anti-pedagogias, cada vez mais

invisíveis e invisibilizados, cada vez mais subalternizados: viventes que

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vivem na miséria, na violência, na fome, na dor, na penúria e que morrem da

mesma maneira dessas mesmas coisas.

A questão que se anuncia é: haveria outras pedagogias que dariam

conta de se contrapor a esses processos tão antipedagógicos de destruição

das formas de produção da vida? Quais seriam elas?

Com essas perguntas abrimos esta segunda parte. Não me creiam que

seja eu capaz de respondê-las aqui, mas creio que esta tese dê conta de ao

menos pensar uma maneira de inicializar o processo de visibilidade da

questão posta.

Nesta segunda parte do trabalho daremos conta de pensar as ilhas e

suas desutilidades poéticas; isso talvez indique algumas possibilidades.

Vamos tentar pular de ilha em ilha fazendo percursos líquidos,

percursos de navegantes que se lançam de uma ilha à outra.

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4.1. Da Lentidão Ou A Lentidão Como Resistência

Foto: Eliete Borges Lopes – Novembro de 2014 – Praça da Alegria, Bairro Boa

Esperança.

O homem33 lento, aquele(a) de uma geografia mais sensível, mais

humana – também aquele que faz a cidade –, ao perfazer caminhos afetivos

ele palmilha, ele esquadrinha, conhece a cidade em seus detalhes. Ele

constitui-se da vivência da cidade em seus aspectos não experimentados por

seus outros habitantes.

A percepção do espaço e das relações do espaço urbano são percebidos

nos detalhes e o homem lento interage de maneira a criar sua existência e a

da cidade de maneira concomitante.

33 Façamos aqui um breve parêntese para dizer que quando escrevo “homem lento” estou me referindo ao ser humano e não apenas o ser humano do sexo masculino.

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Este homem/mulher lento(a) do qual fala Milton Santos – que é claro

que não se restringe ao homem no sentido de gênero –, este homem lento

que ora regia a Prainha, o caso do maestro das máquinas pulsantes, que

regeu mesmo a minha passagem por ali em determinado momento, estas

pessoas possuem um sentido de experiência do urbano que as coloca na

condição de guardiãs da cidade, de uma espécie diferente de sensibilidade

daquela que é a sensibilidade passante, ou a sensibilidade da velocidade,

uma sensibilidade de flaneur, para usar um termo poético que quer dizer

mais ou menos que é como aquele que flana:

“Gostava de andar ao léu nas ruas da cidade, entrando nos jardins para fumar um cigarro sentado num banco, entrando nas igrejas para espiar a beleza do ouro velho, flanando pelas ruas calçadas de grandes pedras negras34.”

A população em situação de rua neste sentido são como guardiãs

por saberem das muitas passagens, dos lugares e labirintos das cidades, dos

encontros e fugas que eles permitem, seja eles os mais proibitivos, sejam

eles os mais sociáveis, todos figuram no sentido de vida da cidade e

permeiam a vivência da rua no que ela pode ter de poético.

Se a cidade pertence ao homem lento, essa parcela da população se

apropria dela não pelo seu valor de mercadoria ou de consumo, mas em sua

movimentação pela cidade como homem lento; aquele que, sendo desprovido

da velocidade, sobretudo a do automóvel, dinamiza o contexto social e

mostra que alguma coisa anda mal no modo como organizamos e pensamos

nosso desejo de praça (Plaza); ao mesmo tempo, também inaugura uma

maneira de se relacionar com o urbano, maneira que é nova no seu sentido

de percepção, afetos e sentidos individuais, mas que possui também um

longo lastro de experiências humanas, que vão desde as formações nômades

seculares até as atuais manifestações do nomadismo contemporâneo, visto

também pelo olhar da arte que cada vez mais faz percursos e incursões

inusitadas.

34 AMADO, Jorge. Capitães de Areia. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 107.

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Parece não haver nada mais universal que a insatisfação com o

trabalho. Existe um ramo de comércio que lida exclusivamente com pesquisa

sobre a insatisfação dos consumidores e dos trabalhadores para formular

uma outra indústria, a da auto-ajuda. Esta categoria tão debatida e

historicamente calcada no solo marxista parece ser a “expiação de uma

culpa originária que nunca chegará ao seu fim”, mas para alguns ou para

muitos “qualquer”, ela pode ganhar contornos novos.

Quando pensado sob o ponto de vista da população em situação de

rua, o trabalho tem um sentido novo, diferente daquele daquela maneira

como o entendemos. O sentido de regular o tempo de vida pelo tempo

trabalhado é em grande medida inoperante.

Perspectivas como a de grande velocidade na produção e distribuição

do tempo de vida pelo tempo para o trabalho, ou seja, a maneira como se

mantém o modo de produção capitalista, não figuram como alternativas

viáveis ao modo de vida da rua. Daí a grande dificuldade de entendimento

quanto às alternativas da população em situação de rua a um trabalho que

gere mais potência de vida e menos trabalho no seu sentido mais estrito.

Desta forma emprego e renda não fazem uma correlação direta, de

maneira que a renda não necessariamente necessita vir do emprego e

trabalhar não possui o sentido de usar a sua força para gerar mais valia a

alguém ou alguma coisa.

“O trabalho edifica o homem, mas nos consideram o entulho dessa

construção.”35 Ao mencionar o drama de quem vive na e da rua sem trabalho

formal e os meandros de sua condição de morador de rua que o impede de

ter um trabalho nos moldes do emprego formalizado, O.S. toca uma

representação universal: a de que o morador de rua se constitui no entulho

dessa construção.

Em suas palavras, ele revela uma condição que é também a

compartilhada por prisioneiros, putas, garis, ciganos, esquizofrênicos e

travestis dentre outros grupos vulneráveis: a condição de subjetividade de

lixo.

35 O.S., mora há cinco anos na rua. Fonte: DIREITOS do Morador de Rua – um guia na luta por dignidade e cidadania. [S.l.]: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, [20--]. p.45.

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Em algum momento, os movimentos de contracultura também foram

enquadrados como subjetividade de lixo. O próprio Presidente Lula

permaneceu durante anos sob o mesmo estigma em oposição à subjetividade

de luxo, aquela da linha clean: branca, sudestista, defensora de uma

“humanidade mais limpa”.

Basta olharmos para o estigma que os povos indígenas sofrem quanto

ao seu cheiro e à maneira como habitam os espaços nas comunidades para

percebermos que se trata de um embate econômico e sociocultural.

Atentar-se aos depoimentos dos moradores de rua é perceber a mesma

condição, pois, ao ser lhes negados, por exemplo, o atendimento de saúde, o

principal motivo é o de que vão contaminar o hospital porque são sujos.

Notem: são sujos – o Ser sujo como uma condição de existência. Da mesma

maneira são afastados das festas públicas, hostilizados pelos passantes,

espancados pelas forças de repressão e internados em manicômios ou

levados prisioneiros pelo crime-castigo de morarem na rua.

Dos exemplos clássicos de cidades e países que passaram pelo

higienismo urbano às políticas municipais de “limpeza” das cidades que

sediam mundiais de futebol ou que ganharam o status de “turística”, a lógica

que se impõe é a mesma: a de uma cidade “limpa”.

Uma cidade limpa quer dizer, neste sentido, uma cidade sem praça

(plaza), onde a rua não possa fazer parte da mesma como uma alternativa de

vida e sim como exclusividade para o trânsito de mercadorias e de

transeuntes-compradores que, segundo a mesma lógica, fazem girar as

mercadorias.

Uma cidade limpa significa, ainda por essa ótica, que o gestor da

política pública age como a dona de casa americana neurótica dos seriados

exportados a quilos ou como a mãe organizativa e controladora da prole no

espaço do lar estéril.

Cuiabá se inscreve neste contexto, principalmente a partir da política

de várias gestões municipais que, com o aval da população e na tentativa da

imposição de um ordenamento dos espaços públicos e um controle das

populações, têm promovido a cessão de espaços públicos a mecanismos de

toda ordem privada e têm procedido de maneira a criar periferias para onde

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se quer destinar a população em situação de rua, sobretudo os que estão no

centro da cidade.

Um dos motivos que se alega para a retirada dos moradores é a de que

precisam ser tratados porque são dependentes químicos o outro motivo

principal é o de que é preciso embelezar as ruas – é preciso cuidar da cidade.

Um dos aspetos também importantes a serem salientados é o de que,

sendo a população em situação de rua uma população lenta, isto é, não

estando inseridas no interior da máquina de fabricar coisas muito

rapidamente, que costumamos chamar de indústria, essa população seja

lenta, não apenas lenta, mas improdutiva para o sistema capitalista. Como

improdutivas passam a essa lógica também como a ela inútil, ou seja,

podem e devem ser retiradas das ruas, pois sua presença traz uma feiura à

cidade que, em contraponto a estes, é produtiva, organizada e bonita. É

dessa maneira que se articulam políticas de higienismo pensando o outro

como lento, improdutivo, inútil e feio – uma desqualificação que segue os

padrões dos estigmas colonizadores e que reifica a ideia de progresso,

desenvolvimento e civilidade como justificativa para a eliminação dessas

pessoas.

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4.2. Mina, Seus Cabelo É Da Hora

Encontrei-me com Cheirosa na praça da mandioca. Eu bebia em uma

roda de amigos e ela passou, fiquei olhando sua maneira de estar entre nós,

totalmente à vontade.

Cheirosa passou em um, passou em outro, pediu aqui, pediu acolá.

Além de beber, eu estava comendo e, por perceber que talvez ela quisesse

petiscar alguma coisa, peguei meu frango frito e fui sentar na calçada onde

ela poderia me acessar sem que os donos do bar se incomodassem, sem que

se constrangesse a sentar em minha mesa onde amigos riam alto e

“conversavam groselha.”36

Depois de um tempo Cheirosa me localizou comendo na calçada e já

veio ao meu encontro, sentou-se comigo, comeu, pediu um gole de algo pra

beber e peguei um refri. Ao final da nossa partilha foi-se embora sem me

pedir dinheiro.

Depois de um tempo voltou e então eu fui conversar com ela, aí sim ela

me pediu dinheiro, como se a cena ocorrida há menos de meia hora não

tivesse existido. Ela respeitou o fato que seria abusar pedir dinheiro depois

de ter ganhado comida. Saiu e voltou. Quando voltou já não havia mais o

mesmo termo de relação estabelecida e aí sim me pediu cinco reais... “Ôh

minha linda me arruma cinco reais.”

Dei o dinheiro a ela, mas pedi uma foto e pedi para que ela me desse

uma entrevista. Pedi se ela me autorizava gravar e ela me autorizou. Quando

pedi a entrevista, Cheirosa começou a falar do que sabia fazer e disse que

sabia cantar, ou melhor, ela não me disse que sabia cantar: ela começou a

cantar.

Cantou uma música dos Mamonas Assassinas. Durante muito tempo

fiquei pensando nesse fato; tentei interpretá-lo por todos os ângulos, por

nada ele saía da minha cabeça, pensei por todos os ângulos: pensei no

porque Cheirosa lembrava-se dessa música, quanto tempo fazia que havia

sido lançada essa música, pensei na atualização da mídia, de como as

pessoas acessam a cultura até perceber um dos aspectos que servem como

36 “Conversar groselha” é uma gíria que significa jogar conversa fora, conversar trivialidades.

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rebaixamento do moradores em situação de rua: o de sua não-atualização.

Isso serve para toda subjetividade que não se enquadre nas atualizações da

indústria cultural.

Em suma, a ideia de que o morador de rua é o lixo do humano resume

a sua condição de “atraso” ou de sua “desatualização” em relação ao

consumo. Esse atraso diz respeito à lentidão. A rapidez e expansão da

conectividade, por exemplo, tão usual entre os objetivos das multinacionais

ávidas por consumidores configurados como novos acessos, praticamente

não alcança quem mora na rua. A ideia de que a lentidão dessas pessoas se

dá na maneira com que organizam a vida pode ser entendida também como

um fenômeno de resistência.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Os pés de Cheirosa.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Cheirosa na Ilha do Bananal.

Assim se deu meu contato com Cheirosa (Andreia) que, no decorrer da

pesquisa, morreu de um ataque fulminante, deixando uma ausência

profunda em mim, pois posso dizer que o Centro não é mais o mesmo sem a

Cheirosa. Os encontros com Cheirosa eram fortuitos, totalmente ao acaso,

mas quando queria conversar com ela, de certa maneira sabia que teria de

ficar pelo Centro e acabaria por encontrá-la (imediações da Praça Alencastro

e da Praça da República). Já havia conseguido sua autorização para filmá-la

e para entrevistá-la, mas infelizmente sua morte veio antes d’eu poder

registrar suas palavras.

Essa impossibilidade reside no fato de que esta população situa-se

subterraneamente em redes de relações que as mantém mesmo sob

representação e tentativa de gerenciamento exógeno, ou de uma

heteronomia.

A possibilidade de criação, manutenção e de continuidade dos laços e

de vida “inaprisionável” se dá a partir dos discursos que não tentam

cristalizá-la ou categorizá-la. E isso acontece em medida porque tanto o

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discurso oficial do Estado quanto nossas representações, ou nossos

discursos, são exatamente a matéria prima daquilo que se traz para o jogo

nas situações de interação; esse jogo de linguagem é muito importante para

se pensar como as subjetividades subalternizadas no contexto da rua

conseguem produzir todo um conjunto de práticas discursivas que vão na

contramão da edificação de um sujeito normativo.

O jogo que jogam conosco se dá de maneira a se apropriar das nossas

regras quando conveniente e tão logo descartá-las assim que tenham

cumprido sua função de passe, de golpe, de vez, isto é, cumprido sua função

de interação. Um dos lugares mais comuns desse jogo é exatamente a

linguagem.

A linguagem de minhas interações com os moradores do Centro – e

nomeadamente da Ilha do Bananal – me demonstrou a versatilidade e

astúcia em jogar com meus valores, em usar de meus princípios para

contrapô-los aos seus, para evidenciar o quanto se é diferente, o quanto

nossas vidas não se tocam apesar de meu esforço, o quanto posso ser objeto

de uso, e que não estou fora da mesma relação à qual estão submetidos.

Essa relação até certo ponto de espelhamento se deu em momentos de

interação quando Cheirosa me perguntou sobre o tempo que eu trabalhava

por dia, o tempo que eu estudava e ao responder ela falou: “E você não vive

não? Que hora que você não faz nada?” E acrescenta: “Eu fico de bobeira

quando eu quero, eu fico aí jogada, às vezes dois, três dias sem fazer nada,

mas nada mesmo minha linda: eu gosto é de ficar na praça.”

Também encontrei Cheirosa no pé da escada, no antigo bar da Juane,

onde costumava passar com os amigos pra beber, comer e conversar.

Estávamos numa roda de amigos e como Cheirosa já me conhecia, veio até

nós. A dona do bar, Juane, também a conhecia e sempre que podia ajudava

Cheirosa com algum dinheirinho ou um cigarro. Neste dia ela passou por

nós e parou um momento. Ficou conversando e então, quando a dona do bar

aparece de dentro do bar e diz “Êh Cheirosa! A Cheirosa tá apaixonada. Ei,

Cheirosa, conta aí pra nós...” Foi o suficiente pra Cheirosa “cair fora”.

Primeiro disse “Que nada minha linda, que nada.” Daí pediu água para

Juane. Juane arrumou um copo de água pra ela, ela tomou, ainda ficou por

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ali um pouquinho, entre uma palavra e outra com os presentes e logo se

mandou quando Juane tocou novamente no assunto. Com um aceno de mão

como quem diz “Ah... esquece isso!”, saiu com o aceno deixando a roda para

trás, em liberdade de gesto e ação. “Deu um perdido na conversa”, dizendo

entre outras coisas, que ela sabia bem o que estava fazendo e que ninguém

deveria se “meter com isso”.

Pra lembrar os encontros e interações, lembro aqui um dia em que

encontrando Cheirosa no Gran Bazar, ela veio pedir um dinheiro, dessa vez

para comprar remédio. Achei estranho, pois ela não mentia e nunca havia

usado pedido voltado para o cuidado com a saúde como motivo para lhe

darem dinheiro. Falei para ela: “Ué Cheirosa, o que já aconteceu?” E ela

disse: “Ah minha linda, os policiais me bateram, olha aqui”, e virou as

costas, onde tinha uma vermelhidão e uns sinais de que havia como que

sido raspada num asfalto algo assim! Fiquei preocupada e quis saber o que

tinha havido. Ela não se explicou muito bem, parecendo estar com muita

vergonha. Cheirosa havia levado uma surra de policiais que lhe bateram com

cassetete e provavelmente a tenham jogado ou arrastado. Ela não deixou

entrar nos detalhes, provavelmente por medo, culpa ou vergonha; não

saberia dizer. Fui-me embora preocupada com Cheirosa, e com a profunda

revolta de quem se vê a si mesma violentada na carne daquele a quem tem

apreço; além da revolta, uma profunda dor em não poder fazer muita coisa

por Cheirosa me assolava.

Em um outro encontro com Cheirosa na frente da loja Riachuelo, entre

as praças Alencastro e Praça da República, assim que trocamos as primeiras

palavras ela já me pediu para que eu comprasse um short, pois estava

menstruada. No meio da conversa no calçadão em pé, abriu as pernas

indicando a vagina, como se eu devesse ver ali uma marca de sangue que

comprovasse o que ela dizia.

Sem nenhum pudor ela deu seu corpo à vista ainda mais para

comprovar o que dizia e conseguir o que queria. E eu não devia recusar olhá-

la. No entanto, a marca que ela queria que eu visse não estava ali: não havia

sangue, nenhuma marca nem mesmo na parte de traz da roupa, mas

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também não me restava muita alternativa depois de tal exposição e pedido a

não ser confiar nela, e aceitar que ela estivesse mesmo menstruada.

O jogo posto era o de que eu não a questionaria, pois ela já teria ido

longe demais em elaborar uma mentira para me convencer e pedia com seu

corpo e seus olhos que eu não fosse deselegante ao ponto de dizer que ela

estava mentindo – eu não deveria duvidar dela, pois ela sempre foi honesta.

Minha relação com Cheirosa é de muitas interações, sempre no centro da

cidade. Nesse dia ela estava, por assim dizer, inspirada. Talvez desejasse

alguma outra coisa com aquele short, talvez não.

Sua entonação conhecida: “Ô minha linda!” Já me dizia que Cheirosa

queria me contar algo, pedir um dinheirinho ou mesmo um cigarro e sempre

ao perguntar pra que estava me pedindo dinheiro ela era honesta. Essa

dignidade estava presente nesse momento em que me pedia um short.

Cheirosa dizia pra quê era o dinheirinho: quando era pra comida ela dizia

que tava com fome e quando era pra comprar droga dizia “Ah... vou dar uma

pauladinha, eu não minto não!”

Naquele turbilhão de coisas que Cheirosa me falava apenas pude

ainda retrucar: “Ah Cheirosa você de onda comigo né?!” “Não minha linda...

eu preciso de um short, vamos comigo na loja comprar, é que eu quero ficar

bonita, vamos lá, compra um short jeans pra mim. Vou fazer uma

combinação com uma calça por baixo, aí você vai ver...”, e mudava o

discurso. “Unh... tá bom, Cheirosa. Vamos lá.” Chegamos à loja e ela,

eufórica, queria um short curto. Falei “Mas Cheirosa, onde você vai com esse

shortinho desse!?”

Ela, que não era de dar risada, me olhou sério e acrescentei como uma

provocação de amiga: “Unh... vai sair por aí pela rua mostrando as pernocas

é...?” Ela disse que não, que iria colocar uma calça por baixo do short, como

havia dito antes. “Vou fazer assim e assado”, e mostrava a combinação que

faria do short com a calça que usava...

Essa situação ilustra não uma situação estritamente de pesquisa, no

sentido mais formal, e sim uma situação de vida – o laço entre mim e

Cheirosa – em que minha vida é atravessada pela dela e ela, no seu cotidiano

de moradora da cidade, encontra em mim uma possibilidade de interação.

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Essa mesma dinâmica é vivida pela população em geral,

principalmente por aquelas pessoas que convivem mais no Centro Histórico

de Cuiabá, onde está localizada a comunidade da Ilha do Bananal.

No geral, a população que mais tem contato com os lugares onde os

moradores de rua circulam e que dividem as mesmas ruas que os moradores

têm a respeito dessa população as mais variadas significações e

representações.

Os comerciantes representam uma classe que se organiza num

discurso único: moradores de rua são prejudiciais ao comércio local;

transeuntes e outros segmentos tendem a ter um discurso menos

aburguesado e menos mercantilista.

A população em situação de rua também intercambia bens simbólicos

e culturais, participa da vida da cidade, tem sua dinâmica junto da

população economicamente ativa e lança sobre esta também seus

entendimentos. Não raro ouvimos suas críticas ao trabalho que engole o

tempo das pessoas comuns, seus deboches quanto às “otoridades” e suas

maneiras sutis de desconstruírem a nós.

“Os moradores de rua constituem um segmento social particular

no espaço urbano. Trata-se de uma categoria que, em função de

inúmeras e diversas trajetórias de desvinculação social e

econômica, passa a habitar ‘cantos’ da cidade impensáveis ao

planejamento urbanístico e ao imaginário coletivo dos citadinos:

as ruas, os espaços vazios embaixo dos viadutos, as praças, as

calçadas, locais atualmente concebidos como de passagem,

esvaziados da produção de sociabilidades urbanas que

historicamente marcavam os espaços da cidade.” (FRANGELLA,

2004, p. 15)

Estive fora da cidade de Cuiabá durante duas semanas e quando voltei

a receber um amigo chamado João em minha casa, recebi também a notícia

de que a Cheirosa havia morrido. Minha dor foi grande, meu trabalho de

pesquisa encontrou um grande espaço em branco com o qual não aprendi a

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lidar e que não está elaborado no corpo da minha escrita, ainda menos no

tecer dos meus novos trajetos.

Quando a Cheirosa morreu, me senti desamparada e esse desamparo

existencial ainda permanece em mim. Cheirosa morreu, pelo que me foi

contado, dentro do Mercado Gama, que se situa no Beco do Candeeiro –

morreu onde vivia. Algo nisso tudo me causou menos dor: é saber que

Cheirosa não foi morta por policiais, nem foi assassinada. Ela teve um

enfarte fulminante.

José Medeiros, um fotógrafo que fez uma exposição toda de fotografias

destinadas aos “pedreiros” do Beco do Candeeiro, fez um velório simbólico

para Cheirosa em sua exposição. As fotos se encontram abaixo. Na

exposição, me emocionei e chorei junto das velas acesas para Cheirosa. O

amigo Babu Seteoito fez o grafite da instalação em que Zé de Medeiros

homenageou a moradora de rua Andréia, a quem registro meu amor e minha

gratidão eterna. Obrigada Cheirosa.

Foto: Eliete Borges Lopes – Agosto de 2016 – Cheirosa, Exposição de Zé Medeiros.

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Foto: Eliete Borges Lopes - Agosto de 2016 – Cheirosa, Exposição de Zé

Medeiros.

Foto: Babu Seteoito – Agosto de 2016 – Cheirosa, Exposição de Zé Medeiros.

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Foto: Eliete Borges Lopes – Outubro de 2016 – Cheirosa, Arte Hélcio Luis

(Corvo).

“A auréola é este suplemento que se acrescenta à perfeição – algo

como um frêmito do que é perfeito, apenas uma irisação dos seus

limites”.37

37 AGAMBEM, Giorgio. A Comunidade que vem. 1ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, 1993. p.46.

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4.3. Das ilhas e margens – viver sem lugar

Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Porto, Cuiabá.

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Foto: Guilherme Almeida. Tão incrível que parece Cuiabá – 2014 – Porto.

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Foto: Guilherme Almeida. Tão incrível que parece Cuiabá – 2014 – Porto.

Voltemos nossa atenção a um fenômeno que diz respeito às estratégias

do poder público em abandonar pessoas e espaços históricos.

Quanto ao abandono das pessoas, é sempre muito delicado pensar

como agir: em um sentido pensarmos a não domesticação da subjetividade e,

portanto, no respeito às maneiras de ser e estar no mundo e, por outro lado,

a dimensão de acesso e direito que todos devem ter para uma vida digna.

Pensar de maneira a conjugar a vida comunitária e o espaço geográfico-físico

num sentido que revela a população e o sentido histórico de algumas regiões

que se desvalorizaram, como a região do Porto, por exemplo, dá-nos a

dimensão de quanto o controle do ambiente releva o condicionamento da

vida de comunidades inteiras.

Como esse acontecimento impacta diretamente a vida da comunidade

que habita o lugar? Com a desvalorização essa população fica à margem

também dos serviços? Será que, tendo de encarar a dura realidade da vida

num território que lhe dificulta a passagem e a permanência, não

abandonam seu território para seguir?

É necessário frisar que este processo acontece em Cuiabá com

diversos bairros populares que tiveram sua rotina mudada pelo corte de

grandes avenidas ou pela construção de condomínios fechados.

No caso do Porto, em Cuiabá, esse processo tende a ser bastante

contraditório, pois esta região histórica compreende uma população e

população de rua bastante ativa, que se recusa a deixar o território e, ao

mesmo tempo, apesar das investidas da prefeitura municipal, tem

conseguido resistir.

O que acontece hoje com o Bairro do Porto configura um abandono por

parte do poder público e ao mesmo tempo uma tentativa deste de investir

numa revitalização. Esta revitalização vem sendo descontinuada e, para

efeito de retirada dos moradores de rua, também ineficaz.

A ineficácia, no entanto, possui dois aspectos: a ineficácia na retirada

da população, pois esta resiste, criando maneiras de por um lado “se

esconder” e, ao mesmo tempo, de se mostrar a partir da vulnerabilidade; e a

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ineficácia do poder público também de outro ponto de vista: o de trazer

benefícios à população do bairro, sobretudo à população de rua.

O que acontece ao Porto aconteceu com a região da Candelária em São

Paulo. Ambas as regiões foram abandonadas propositalmente pelo poder

público até o ponto de só lhe restar a alternativa da revitalização ligada à

especulação imobiliária e a projetos políticos de figuras historicamente

comprometidas com a elite local.

Os recursos de projetos de revitalização e de planejamento urbano

municipal geralmente destinados a empresas privadas ligadas aos políticos

da gestão municipal reorganizam o território onde habitam populações de

maneira que tende a não beneficiá-las.

Essa tem sido uma tendência forte na nova política de municipalização

das terras, e que é descrito por Raquel Ronilk da seguinte maneira:

“A literatura sobre o impacto do neoliberalismo nas políticas urbanas identificou a emergência do chamado ‘empreendedorismo municipal’ como resposta local à erosão da base econômica e fiscal das localidades em função dos processos de reestruturação produtiva e ajuste fiscal. Os governos das cidades abandonaram a visão administrativa predominantes nos anos 1960 em direção a uma ação ‘empreendedora’ nos aos de 1970 e 1980. De um lado, as cidades foram envolvidas por um ambiente geoeconômico marcado por caos monetário, movimentos especulativos do capital financeiro, estratégia globais de localização de corporações multinacionais e intensificação da competição entre localidades. Ao mesmo tempo o retraimento dos regimes de bem estar e de transferências intergovernamentais impôs limites ao financiamento das políticas urbanas. Por outro lado, os programas neoliberais de desregulação, privatização e reprodução do gasto público também penetraram nas agendas dos governos locais, o que transformou suas políticas urbanas em verdadeiros laboratórios com experimentos que vão do marketing de cidades a zonas especiais de promoção econômica, megaprojetos globais e organização de corporações locais de desenvolvimento urbano”.38

Os projetos acontecem de maneira arbitrária; em nenhum momento

existem consultas populares. Não se leva em conta nesses projetos a

dimensão de convivialidade das pessoas do lugar e sim a passagem para

turistas e visitantes ou o ordenamento que se quer dar ao espaço a partir

38 ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015. p.225.

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das políticas privadas que incorporam o público sob a tutela das

famigeradas PPP’s (Parcerias Público Privadas). Um outro nicho dessas

parcerias são os presídios, mas este é um caso à parte aqui, já que abordar a

perspectiva dos “sem lugar” a partir da prisão de moradores de rua é algo

ainda apenas pensado como uma pesquisa interessante, mas que não figura

neste trabalho.

Tendo em vista a questão da destruição, apropriação e despossessão

das terras urbanas, no caso do bairro do Porto é preciso explicitar que em

momento algum se leva em conta as escolhas e a maneira como a população

entende que os aparelhos públicos devam funcionar e isso causa grande

descrença de que a realidade possa se alterar. Ouvi da boca de uma dona de

prostíbulo no Porto: “O que é que eu vou fazer? Eu faço o que posso, eu não

deixo as meninas transarem sem camisinha. Agora, se tem algum problema

de saúde eu não posso tratar elas, aqui no bairro nem postinho tem. Num

tem jeito de levar a vida assim minha, filha. Aqui ao menos as meninas num

precisam ficar aí jogada na rua...”

O cerceamento da população em relação aos serviços é claro e

denunciado nas falas dos moradores. Quando falamos com Kid, o boxeador

que tinha uma academia e treinou aí muita gente, entre pigarros, escarros e

tosse ele consegue contar sua cruel vida de doente jogado às traças; surgem

as mesmas queixas: falta saúde para o bairro. Ele esperava à época por um

exame que já havia meses tinha sido solicitado e não podia fazer porque

nunca o haviam chamado. Ele não podia pagar plano nem consulta, também

não podia trabalhar e assim, seriamente adoecido, contava com uma filha

segundo ele, problemática, pra cuidar dele; filha esta que também segundo

suas palavras, não conseguia cuidar nem de si mesma.

Esse cerceamento ao acesso de serviços de saúde não é o único, ele

começa pelo cerceamento a espaços. As mulheres reclamam principalmente

da falta de espaço para as crianças brincarem e os homens reclamam da

falta de serviço, da dificuldade em se conseguir emprego e manter a renda.

Uma outra política de cerceamento diz respeito ao de cerceamento da

população no que concerne o acesso ao rio na região do Porto.

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O não acesso da população local ao rio tornou grandes partes do lugar

numa espécie de “esconderijo”, com aspectos de lugar abandonado e ao

mesmo tempo lugar ao qual se destina lixo e animais mortos. Um lugar que

está marcado com o uso de drogas, pela violência e pelo abandono.

Estes aspectos criam novas margens do rio. Estas margens tem a

característica da subalternidade, daquilo que está mesmo à margem. Este

lugar aonde a cidade não chega é um lugar por onde passam alguns

resistentes pescadores, fugitivos, ex-presidiários, dependentes químicos e,

claro, pessoas que moram na rua e que procuram a região como uma ilha

dentro da cidade, uma ilha que é uma margem, que está à margem, lugar

onde vigoram outras lógicas, outras regras e outras paisagens.

Este espaço entre a terra e água é um espaço que lembra o mangue. É

um território diferente daquele planificado pela urbanização imediatamente

acima dessa esfera. Um lugar do entre, que se mostra como um território

entre as regras e convenções sociais e a manutenção e criação de regras

novas de uso, tanto do espaço quanto de qualquer outra matéria.

Este lugar, que é o lugar de uma ilha-margem, que poderíamos

parafrasear de Ricardo Guilherme Dicke, é a terceira margem do rio.

Na planificação do bairro do Porto onde a prefeitura planeja diversas

obras, o acesso ao rio é totalmente bloqueado à população – é um lugar feito

para não se chegar.

Estas margens, principalmente entre a ponte Cuiabá e Várzea-Grande,

na região histórica do Porto, é habitada por um grande número pessoas em

situação de rua.

Em um trabalho realizado na região em 2013, que gerou o projeto

chamada Tão Incrível que Parece Cuiabá39, percebemos que, além dos

moradores que estão sem vínculo com suas famílias, sem uma moradia fixa

e os dependentes de álcool e/ou drogas, havia também um número

significativo de ex-presidiários que encontraram na margem do rio Cuiabá

uma margem de fuga, uma passagem de fuga não do sistema prisional, pois

deste já foram libertos, mas da família, da comunidade que os hostiliza pelo

“perigo” iminente que significam, sobretudo para os donos do comércio local.

39 https://www.facebook.com/incrivelcuiaba/?fref=ts Acessado em 08/11/16.

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As populações que hoje residem entre a Orla (Beira-rio) e o Bairro

Porto vivem entre as condições precárias da infraestrutura em toda a

imediação da Orla e, ao mesmo tempo, habitam um espaço todo feito por

histórias de vida que incluem personagens que vão de boxeadores a

raizeiros, de donas de prostíbulos a presidente de bairro engajado, de figuras

esquizofrênicas aos chamados “craqueiros”, “cracudos” ou “pedreiros” (gírias

usadas para se referir aos usuários de crack), de catadores de latinha a

libertinos que vivem entre a rua e casas de passagem.

Todas essas pessoas convivem num espaço que, por sua historicidade,

está imerso numa dimensão muito peculiar da cidade de Cuiabá, o espaço

simbólico da gestação da cidade. O líquido amniótico da cidade de Cuiabá é

o Rio – seu fluxo que serviu ao comércio, suas águas que serviram o peixe da

mesa do cuiabano de onde nasceu o ditado “Quem come cabeça de pacú não

vai embora.”

Neste sentido, o Porto e o Rio Cuiabá são nossas mãe; começamos por

ali a gestar a cidade.

Raquel Rolnik, em seu trabalho intitulado Guerra dos Lugares, analisa

como os movimentos de organização pelos acampamentos urbanos tendem a

sofrer toda uma gama de ações que visam sua não efetivação, de maneira

que cada vez mais os espaços urbanos vão cedendo ao que ela caracteriza

em seu estudo como uma financeirização da moradia, onde o grande capital

internacional mobiliza sua força na tomada de territórios populares a partir

de Mundiais de Esporte como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

No último capítulo de Guerra dos Lugares, Lia Rolnik de Almeida diz40:

“No entanto, a partir dos processos que procuramos descrever ao longo desta parte do livro, é possível identificar as raízes troncudas de um modelo de Estado capturado por interesses privados e conformado por uma cultura de opressão e exclusão, simultaneamente tensionado por um processo de combate à pobreza e inclusão via consumo e pela tomada da terra urbana e da moradia pelas finanças globais. Os pobres compram apartamentos, contratam planos de saúde e matriculam seus filhos em escolas e universidades privadas. Mas, para eles, o mercado lança novos produtos, de qualidade muito inferior, reiterando a geografia da desigualdade.”

40 ROLNIK, 2014 apud ROLNIK, 2015.

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Assim, a cidade e suas ilhas vão sendo tomadas e dando lugar a

projetos que se passam como projetos de revitalização, mas que estão por

sua vez entregues a grandes empresários locais.

De igual maneira essa rede de financiadores, empresários,

empreiteiras e construtoras se incorpora a um burguesia planetária que

coloniza comunidades inteiras e, com isso, culturas e identidades.

Pontos históricos de diversas cidades perderam o seu “campo de força”

para atrair e manter o aspecto de centro comercial ou cultural. O bairro do

Porto, em Cuiabá, é um exemplo de lugar que se transformou com o tempo.

Antigamente, era o único meio de circulação de bens, serviços e pessoas na

cidade, pois ainda não se contava com o Rio Cuiabá e sua vertente pela

Prainha, fora o eixo estrutural da cidade.

Tornou-se com o tempo um espaço marginalizado, excludente,

carregado de simbolismos negativos aos olhos da cultura hegemônica:

fedido, sujo, inseguro e degradado.

Observamos no bairro que existe um grande fluxo de pessoas, mas, em

geral, estas não permanecem, apenas passam. Quem ali reside é quase

invisível aos olhos daqueles que por lá passam. Demograficamente, o bairro

vem decrescendo populacionalmente, ao menos as pessoas contabilizadas

pelo CUIABÁ (2007). Entre 2000 e 2007, o bairro perdeu 10% de sua

população, sendo este um dos grandes motivos.

As modificações no espaço não são homogêneas – elas são

heterogêneas e se confundem paradoxalmente no tempo e espaço. Estas

rugosidades são responsáveis pela dificuldade de racionalizarmos o espaço e

também por perpetuar a história e seus agentes nos lugares.

Nessas rugosidades, nesse estriamento do espaço, a população do

Bairro do Porto caminha com seus movimentos e fluxos próprios inventando

maneiras de sobreviver em mais uma ilha de exclusão, por um lado e, por

outro, atuando no nascimento do que é novo e híbrido.

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4.4. A Praça Como Ilha

A Praça Ipiranga é um dos exemplos mais gritantes no que tange o

agenciamento do espaço da plaza pelo poder público. Na gestão do ex-

prefeito Wilson Santos, foram retirados todos os bancos e trocado o tijolinho

por cimento em toda sua extensão.

O dano estético é praticamente irreversível e a alteração da paisagem

urbana neste local foi drasticamente impactada de maneira a diminuir o

conforto das pessoas que por ali passam ou param: foram retirados os

bancos, os ornamentos e adornos, e o chafariz que continha água foi

interditado. A sequência de fotos abaixo revela o processo histórico de

diminuição da potência do espaço público.

A água como um elemento essencial à vida humana é cada vez mais

inacessível à população em situação de rua. Hoje são muitos os vendedores

na praça e todos eles vendem água. No entanto, a população de rua, que é

uma população empobrecida, fica à margem do acesso a este bem.

Os moradores de rua que por ali passam o dia, conforme minha

observação, são pessoas de lentidão: só andam a pé, demoram-se nas

praças, estabelecem laços afetivos com as paisagens, de maneira a preferir

uns lugares a outros e formam suas rodas de pinga e conversa com seus

companheiros conforme as afinidades que vão surgindo do convívio no

espaço público. Esses moradores de rua geralmente se apropriam da cidade

não por seu valor de mercadoria ou de consumo.

Sua movimentação pela cidade é a do homem lento; aquele que, sendo

desprovido da velocidade, sobretudo a do automóvel, dinamiza o contexto

social e mostra que alguma coisa anda mal no modo como organizamos e

pensamos a pólis ou a Plaza, pois eles, não conseguindo acesso aos bens

mais fundamentais para a sobrevivência, dormem sob as marquises de

grandes obras, sob o toldo de prédios que giram o comércio local e nacional,

estão em calçadas pelas quais passam os executivos com seus ternos e, no

entanto, não se integram nem ao contexto de participação como beneficiários

de qualquer que seja o serviço ou bem de consumo produzido nestes

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mesmos lugares, de maneira que este lugar social que ocupam os restringe

como aquele que estão à margem estando no centro, isto é, dividem o mesmo

espaço geográfico sem, no entanto, jamais poder alcançar a divisão justa do

que é produzido socialmente.

O trabalho como categoria marxista – assim como as categorias

velocidade e tempo – perpassa a dinâmica de vida dos moradores em

situação de rua de maneira a não conjugar as categorias emprego e renda,

na medida em que sua força não se enquadra na mais valia gerada pelo

empregador formal ou pelo contrato do empresário que se utiliza do

trabalhador como força motriz de sua empresa.

“O trabalho edifica o homem, mas nos consideram o entulho dessa

construção.” (O.S, mora há cinco anos na rua) (Direitos do Morador de Rua –

um guia na luta por dignidade e cidadania, p.45 - Ministério Público do

Estado de Minas Gerais). Ao mencionar o drama de quem vive na e da rua

sem trabalho e os meandros de sua condição de morador de rua que o

impedem de ter um trabalho nos moldes do emprego formal, O.S. toca uma

representação universal: a de que o morador de rua se constitui no entulho

dessa construção. Em suas palavras, ele revela uma condição que é também

a compartilhada por prisioneiros, putas, garis, ciganos, esquizofrênicos e

travestis, dentre outros grupos vulneráveis: a condição de subjetividade de

lixo.

Atentar-se aos depoimentos dos moradores de rua é perceber a mesma

condição pois, ao ser lhes negados, por exemplo, o atendimento de saúde, o

principal motivo é o de que vão contaminar o hospital porque são sujos.

Notem: são sujos, o Ser sujo como uma condição de existência. Da mesma

maneira são afastados das festas públicas, hostilizados pelos passantes,

espancados pelas forças de repressão e internados em manicômios ou

levados prisioneiros pelo crime-castigo de morarem na rua.

Uma cidade limpa?

O que quer dizer uma cidade limpa? Quando observamos um centro

histórico ou uma cidade que é limpa, existe uma tendência mais geral de

aplaudir o poder público por uma ação como esta. Quando da existência de

uma crítica, ela nem sempre alcança um imediato poder de mudança.

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É preciso observar que as cidades brasileiras – via de regra – tem

apenas um lugar muito delimitado que a chamada “limpeza urbana” chega –

a “limpeza urbana” como um setor ou parte das prefeituras que cobre a

retirada de lixo apenas nos centros da cidade, principalmente em função do

comércio. Essas ações, embora de grande visibilidade pela população, não se

destinam às periferias. Existem até mesmo jornais especializados em

“denunciar” esse tipo de descaso, o que em suma não se reverte em ação,

mas sim em uma espécie de lobby das empresas de comunicação que se

aproveitam desse tipo de jornalismo para lançar candidatos que se auto-

proclamam aptos a “lutar pelo povo”.

A ideia de que a cidade precisa estar limpa impregna de diversas

maneiras o olhar. A ideia de que os pedaços de chão estejam à vista ou a

terra descoberta muitas vezes são tratadas como sujeira.

Cuiabá se inscreve neste contexto, principalmente a partir da política

de várias gestões municipais que, com o aval da população e na tentativa da

imposição de um ordenamento dos espaços públicos, têm promovido a

cessão de espaços públicos a mecanismos de toda ordem privada e têm

procedido de maneira a criar periferias para onde se quer destinar os

moradores de rua, sobretudo os que estão no centro da cidade.

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Foto: Cartão Postal disponível no Hotel Mato Grosso (sem data).

Foto: Retirado de http://www.panoramio.com/photo/102928411 – 2013 – Praça

Ipiranga.

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4.5. A Ilha do Maestro Das Máquinas Pulsantes

Fonte: Site Olhar Direto – 2015 – Praça Bispo Dom José.

A cena que vejo é um calor de 40 graus, característico da nossa “hell

city”, na Praça Bispo Dom José. Enquanto estou assuntando a rua, vejo um

homem negro, de mais ou menos 35 anos, que em outras ocasiões já

encontrei perambulando, principalmente nas imediações da Praça Ipiranga.

Ele fala, gesticula, olha e vê, ao que parece, muito mais que nós, muito

mais que eu. Vem até mim, pede dinheiro e nem espera pela minha resposta,

assim, passa pelas outras pessoas, pedindo aceleradamente.

Depois que passa pelas pessoas vai até uma ponta da praça e começa

a gesticular para o ar. Fica assim muito tempo e eu tento compreender sua

performance debaixo de uma árvore. Ele ignora sol, calor e hostilidade do

cimento da praça.

Tem os pés descalços, os braços nus. Está de short e sem nenhuma

proteção na cabeça; também não carrega nada consigo: nenhuma sacola,

nenhum pertence, absolutamente nada. Mesmo em suas mãos, que ficaram

estendidas, não guardou nenhuma moeda, mas ele para, a despeito da

pressa que tinha na interação com as pessoas. Ele agora para e se deixa

ficar, embaixo do sol.

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Naquele canto da praça, depois de um tempo, percebi o que fazia –

mas apenas quando comecei a prestar muita atenção, como ele, a tudo que

me cercava, e sobremaneira prestar atenção ao som, a todo o ruído e

barulho que havia naquele momento de pleno movimento de trânsito de

veículos e pessoas. E então percebi que ele orquestrava a cidade, ou ao

menos a principal avenida da cidade, a avenida da Prainha estava sob o

comando de alguém que sim, estava regendo tudo aquilo.

Acompanhei seus movimentos e sim, eles eram de um maestro

incrivelmente afiado; mas esse maestro sempre partia de um som que, ao

mesmo tempo em que existia previamente, também desaparecia em seu

gesto: o gesto era justamente o que finalizava o som e dava andamento a

outro novo som que se interpunha, mas que necessitava igualmente dele

para ter plena existência, do contrário passaria despercebido por todos, por

isso naquele momento aquela performance era reveladora.

Ela revelava o que estava ali e ninguém ouvia, apenas ele. Passei a

ouvir porque ele pedagogicamente me fez saber da existência de algo mais

naquele cotidiano – cotidiano veloz, mas que o homem lento faz parar. E,

naquele átimo de tempo ali congelado naquela bolha de existência

compartilhada comigo, ele me mostrou o quão lento pode ser o tempo em

meio ao caos daquele tumulto de carro e gente.

A tarde passou e ele esteve lá. Em dado momento, fui-me embora

correndo para os compromissos, e ele lá ficou; ainda o vi do ônibus que ele,

com o braço levantado, mandou num gesto ir-se embora.

Aqui, um elo singular une o maestro das máquinas pulsantes aos

atores do teatro de Esquizocenia, inspirado em Guatarri e levado a cabo

também por Peter Pal Pelbart41 em suas experiências com o manicômio. De

maneira que ao descrever o Esquizocenia, Peter o faz de maneira a se

adequar à maneira como nosso maestro pensou a sua ilha:

“Seria preciso ousar um salto extravagante: situar a relação entre ‘vida precária’ e ‘prática estética’ no contexto biopolítico contemporâneo. Partamos do mais simples. A matéria-prima

41 PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 146.

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nesse trabalho teatral é a subjetividade singular dos atores, e nada mais. A tematização do trabalho imaterial nos últimos anos permite iluminar uma dimensão antes inteiramente insuspeitada nesta encenação.”

Na ideia de que se produz de maneira imaterial e que esta produção é

a própria subjetividade e que, portanto não diz respeito nem às

incorporações do capitalismo, nem à cooptação de uma indústria, ainda que

seja ela a cultural, figura uma importante noção de que o capitalismo não

incorpora todas as formas de vida, que na resistência a ditar ou incorporar

maneiras de ser, na fundação das subjetividades desviantes que o próprio

capitalismo não consegue vampirizar existe uma questão de possibilidade

colocada. Seria uma saída? Uma questão criadora? É saída ao problema da

liberdade que nunca é um em si, ou em si mesmo, circunscrito a si mesmo:

“o problema nunca é o da liberdade, mas o da saída, achar uma saída,

inventar uma saída”. (PELBART, 2003, p.165).

Será que o maestro das máquinas pulsantes não teria encontrado uma

saída estética possível? Será que ele, sem finalidade que difere de si mesmo e

de uma estética nômade, não estaria, mesmo no front, criando a condição de

possibilidade do nascimento de uma performance nova, absolutamente nova

e irrepetível?

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4.6. Fila na Lapa. Uma ilha em um parêntese

A população em situação de rua varia em quantidade de lugar para

lugar: varia em idade, sexo, renda, origem etc. Há imensa dificuldade em

“quantificar” essa população e ela nem sempre está condicionada à cidade

ou ao êxodo. Pode estar perpassada por aspectos internacionais como o das

migrações, da destruição de comunidades indígenas e outras. A população

de rua costuma não fazer parte das pessoas que entendem a fronteira como

algo apenas físico, no sentido de demarcação tradicional dos territórios, de

maneira que também existe uma boa parte que trafega entre as BRs e que

anda de cidade em cidade, não se restringindo a circular na mesma cidade.

Geralmente esse tipo de comportamento dentre a população em situação de

rua é chamado de correr o trecho e, por isso, essas pessoas são chamadas

de “trecheiros”.

No interior das cidades, o número de pessoas em situação de rua,

obviamente depende do tamanho da cidade, mas uma espécie de equação,

simplificadora até certo ponto, pode ser pensada como característica das

cidades brasileiras, qual seja, a de que quanto mais riqueza concentrada,

maior o número de moradores de rua e, portanto, a ideia de que “quanto

maior a cidade mais moradores de rua” não é exatamente verdadeira.

Os grandes centros comerciais do país tendem a ter também os

maiores problemas em sanar desigualdades, como diz o poeta e cantor

rapper Crioulo em Casa de Papelão do álbum Convoque seu Buda/2015

"Prédios vão se erguer/ E o glamour vai colher/ corpos na multidão”, pra

falar justamente que quanto mais se acumula nos centros urbanos e se

criam espaços de glamour, também deles se colhem corpos na multidão.

Esta música é uma clara referência do engajamento político musical do país,

que é fortemente voltado à crítica social e que promove, além da crítica, uma

reflexão que toca as feridas sociais e que oportuniza uma veiculação do quão

problemática tem sido nossa alternativa frente ao chamado desenvolvimento.

Nos centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre,

Recife, dentre outros, podemos sempre ver a população em situação de rua

às vezes em grandes grupos. Esse foi o caso quando estive no Rio de Janeiro

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no último julho: bem em frente aos Arcos da Lapa presenciei uma fila de pelo

menos 200 moradores de rua esperando para comer.

Percebi que havia grande incômodo em olhar para aquela fila de

homens maltrapilhos. Primeiro, porque eram praticamente todos negros e,

segundo, pelo tamanho da fila. Também causava uma espécie de impotência

profunda e, ao mesmo tempo, uma raiva sem tamanho.

A sensação de ver os carros de luxo com suas princesas de tamancos e

seus galantes playboys estacionarem para consumir durante a boemia da

Lapa e ver os descamisados bem ali no outro dia pela manhã a comer dos

seus restos ou esperando a boa vontade de alguma instituição a dar-lhe uma

marmita realmente bota um gosto amargo na boca.

Todo o povo que por ali passava desviava o olhar, evitava o contato de

qualquer natureza, separava-os mesmo do campo visual – eles todos em fila

no meio da praça central dos Arcos da Lapa. Quase ninguém os via e, por

outro lado, o Estado sabe que estão acampados ali, como os nômades de

Kafka em A Muralha da China.

Sabemos que as cidades pensadas para os carros, para os

consumidores, têm sua paisagem e morfologia montada como estrutura

fundiária. Como os lotes são pensados, suas dimensões, localizações, como

os equipamentos públicos estão distribuídos e como se dá a famigerada

mobilidade urbana – tudo isso obedece a uma lógica de exclusão que cria as

ilhas. E é disso que se trata aqui: da existência de todo o rol de legislações e

principalmente das possibilidades de infração às mesmas, que colocam em

questão o acesso à terra, ao espaço urbano e à moradia. Colocam em

questão o próprio urbano e a vida das populações, principalmente daquelas

que foram tiradas da sua terra ou que não tiveram acesso a ela.

O espaço registra e materializa a forma de produção na qual vivemos e,

para a compreensão deste complexo sistema, não basta o debate sobre a

estrutura fundiária. É preciso incluir uma série de elementos que permitam

pensar a terra e o espaço não apenas pelo seu viés de mercantilização, no

qual o capital a transforma, mas outras importantes dimensões, entre as

quais: a divisão de classes, a divisão racial, o desemprego, a pobreza, os

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direitos humanos, a exclusão social, a invisibilidade de sujeitos e

instituições sociais, a criminalização da miséria e a delinquência.

Compreendemos que, despidos destas aproximações primárias

traçadas, a visão e a escuta podem se contaminar pelo mesmo colonialismo e

visão eurocêntrica impostos aos povos indígenas, à população negra

escravizada e trazida de África e, posteriormente, no pós-colonialismo, a

todas as formas de manifestação existencial e cultural à margem dos

mesmos padrões e referências.

Por isso é conveniente observarmos a existência de alguns discursos

de um simbolismo e de um imaginário da população de maneira mais ampla

sobre a população de rua, e afirmado por esses discursos, uma série de

políticas, posturas, e estratégias de controle sobre a população de rua que,

além de criar um estigma insolúvel, coloca muitas vezes os moradores de rua

na impossibilidade total, desta maneira, dispondo-os sob a lógica do homo

sacer de Agamben: pessoas excluídas de todos os direitos civis e que, ao

mesmo tempo, têm a vida considerada como algo "santo" em um sentido que

é o de que não se pode matar simplesmente. A sua morte é vista sempre

como sacrificial, e mesmo a vida é vista como sacrificial no sentido de que é

uma vida que expia, uma vida que precisa ser purificada, seja pelo

sofrimento enquanto em vida, seja pela morte expiadora última de todos os

pecados e desvios.

A pessoa nessa condição e, por isso mesmo vulnerável – o homo-sacer

–, pode ser morta por qualquer um, isto é, os moradores de rua são vistos e

ordenados pelo controle das populações, pelas políticas de Estado, como

matáveis, e são vistos pela sociedade como um todo como aquele que expia,

como o mais fraco que deve ser eliminado. No entanto, a lógica é “deixe viver

e faça morrer” e, neste sentido, o problema é viver na rua enquanto morrer

nela está autorizado.

A principal questão deste ensaio é a de que o Estado, em suas

instituições, forja e reforça junto ao imaginário todos os discursos

relacionados anteriormente e, apoiado nessas práticas simbólico-culturais,

sustenta ações de extermínio das populações de rua.

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A questão suscitada e discutida é a de que esses discursos, reforçados

pelas ações do Estado e do governamento das populações, amplificam e

qualificam a negação, a invisibilização, a segregação e a opressão, bem como

dificultam a superação destas barreiras, criando e reforçando os mesmos

discursos.

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4.7. Uma ilha no meio do canteiro central

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Canteiro central da Av. Prainha.

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O sistema constituído das artes se configura como pouco aberto ao

surgimento do novo. Como interpretar, a partir dele, aparecimentos como,

por exemplo, a desta obra de arte que figurou durante meses no centro de

Cuiabá? Como entender o que fez esse artista de rua? Como aprender a obra

desse morador de rua? Como entender a rua a partir dessa manifestação?

Quando falamos no sistema excludente da arte, falamos de expressões

como a obra de arte do Sr. Amauri Cantor, que a arte mesma se nega a

captar, isto é, o sistema reprodutivo de indústria da arte se nega a captar

fenômenos de aparecimentos como este.

Isto requer uma análise no sentido de reconhecer que o sistema, em se

configurando desta maneira, pouco se distingue do próprio sistema

capitalista, do próprio sistema financeiro; onde o que não gera lucro, mais

valia ou, em suma, mais dinheiro não possuirá relevância,

independentemente de seu valor estético.

Em Vida e Capital, uma parte do livro Vida Capital, ensaio sobre

biopolítica42, Peter Pal Pelbart fala dos exemplos de vida que se deixa

aprisionar pelo capitalismo, daqueles que são vampirizados por ele e

daqueles que sobrevivem a ele apesar de:

“Três trajetos, três destinos: um bandido vira pop star dentro da cadeia, ou recusa justamente o mercado com o qual mantém uma distância crítica (gravadora independente etc.); o índio se indigna com o modo pelo qual os brancos empalham os signos de sua vida; o louco é catapultado para a esfera museológica, à sua revelia (Bispo do Rosário). Nesses exemplos todos, vem à tona a relação ambígua e reversível entre vida e capital. Ora a vida é vampirizada pelo capital – chame-se ele mercado, mídia ou sistema de arte –, ora a vida é o capital, isto é, fonte de valor, e é sempre tênue a fronteira entre um caso e outro. Quando a vida funciona como um capital, ele reinventa suas coordenadas e denunciação e faz variar suas formas. Quando vampirizada pelo capital ela é rebatida sobre sua dimensão nua, como diz Agamben, de mera sobrevida.”

A arte como forma de conhecer, como maneira de perpassar o caos

urbano, é o que propõe o Sr. Evercino Araújo Peixoto, o Amauri Cantor.

42 PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

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Nesse sentido vamos buscar alguns dos elementos que dão

pregnância43 à obra que, por mais que esteja aqui retratada, não é vista por

completo.

A primeira observação a ser feita é a de que a obra do Sr. Amauri

Cantor pode ser vista de todos os ângulos e pode ser perpassada, justamente

por integrar um espaço branco da cidade, um espaço vazio, uma calçada que

não se destina a todos e a ninguém, posto que esta calçada fica entre duas

grandes avenidas, mas não liga nada, funcionando assim como uma ilha. É

importante saber que esta ilha construída a partir dos detritos e destroços

compõe sua obra flutuante com materiais que o próprio centro da cidade

produz e descarta, ou seja, temos já aí uma crítica.

Além da crítica, destacamos a concepção de seu trabalho como um

trabalho arqueológico, de desenterrar nas ruínas das ruas o que resta de

uma arqueologia urbana efêmera, de descobrir os indícios de como se

relacionam as pessoas dessa cidade – a tentativa de expor seus restos a fim

de que possamos ver, como num processo investigativo, a reconstrução de

seus fazeres –, como o detetive Sherlock Holmes, que utilizava o lixo do

assassino para descobrir como ele cometeu o crime ou, como o médico Dr.

House, que invadia as casas dos doentes para ver o que comiam e usavam, a

fim de descobrir o seu diagnóstico, ou mesmo como os tantos seriados de

investigação que examinam ossos, restos mortais, cenas de crime, para

chegar ao que “realmente aconteceu”.

“Na arte como processo estético e na obra como produto artístico, o artista entra em contato com um certo real – como no orgasmo ou no delírio. Mesmo nas chamadas criações coletivas, a equipe criativa deve encontrar uma visão comum, descobrir e revelar o insólito escondido pelo dia-a-dia”. (BOAL, 2009)

Tudo que é jogado fora pelas lojas e pelos comerciantes locais e que,

portanto, não tem valor algum, adquire para o senhor Amauri um status de

43 Conceito do campo artístico que é basicamente relacionado à maneira como as imagens se fixam para nós. Assim,

bem grosso modo, seria, por exemplo, a ideia de um sofá branco com uma almofada vermelha no centro: vermelho o formato da almofada no fundo branco de um sofá daria à almofada uma certa pregnância, esse fenômeno que fixa

uma determinada parte da obra em nossas retinas. Tudo o que está à volta e que envolve e que causa uma certa visualidade junto de nós é descrito pela análise crítica geralmente como elementos. Esses elementos podem ser analisados separadamente ou em conjunto, seccionado do todo ou integrante dele; depende muito de como o crítico aprendeu a fazer a análise e quais teorias e métodos adota para sua leitura.

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objeto de arte, de objeto performático, inclusive seu próprio corpo, que

também integra a obra e é perpassada pelos olhares das pessoas como que

buscando entender o que faz ali sentado em meio a tanta coisa um senhor

que toca violão.

É preciso lembrar que vanguardas já descobriram esse trunfo que

Amauri também vê. O Dadá, a Pop Art, e toda a arte moderna a partir de

Matisse, investiram e investem em criar a partir do consumo. À diferença de

senhor Amauri, todos estão dentro do sistema de arte.

Presenciei o sr. Amauri tocando seu violão numa performance em meio

à ilha de desutilidades poéticas. Sentado num banquinho, o sr. Amauri

tocava, mas não cantava. Quando o vi na televisão, ele dizia que a prefeitura

devia fazer um espaço pra ele expor a sua arte, que ele era um artista que

precisava desse reconhecimento; isso denota que o artista sabe bem o que

está fazendo e o faz intencionalmente.

Sua atitude é de resistência e ao mesmo tempo de reivindicação de

legitimidade e ele ao mesmo tempo sabe que “A arte é a única coisa que

resiste à morte”. (Nietzsche – Deleuze – Simpósio internacional de Filosofia -

Arte e Resistência, 2004).

Esse morador de rua, o Sr. Amauri, destina sua obra a um povo, um

povo que ainda não existe – ele integra uma categoria chamada População

em Situação de Rua. No entanto, mais uma vez temos a negação do

coletivismo gregário em seu fazer. Ele projeta uma ilha que é, ao mesmo

tempo que só sua, feita para seu usufruto e deleite e ao mesmo tempo a

destina aos outros que não são seus pares, quer seja, os moradores de rua.

Ele está por dentro dela, está dentro da obra de arte, se configura

como parte de tudo isso, mesmo da produção do suposto lixo, como se

referiu a matéria jornalística do G1.

Amauri está no interior da ilha, no interior da obra. De lá ele comanda

tudo, comanda a música que deve tocar, comanda a organização espacial de

cada coisa e sua maneira de existir. A reportagem para a televisão pegou

propositalmente uma foto em que Amauri estava montando a sua obra,

portanto, enquanto ela ainda não possuía uma lógica interna. Quando

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passei à noite e tirei as fotos, a obra estava pronta, e existem muitos pontos

de conexão expondo feridas abertas da sociedade de consumo.

A reportagem insiste que ele amontoa lixo. Nós insistimos que ele é um

artista e como tal, criou uma hierarquia de valores para organizar seu

trabalho, iluminou sua obra com sua experiência para inclusive chegar a

uma síntese, que é a permanência de alguém no interior da obra quando se

dá a sua ausência – no caso, este é um jogador: um jogador, também uma

importante ideia dentro da obra, já que este lida com performances.

A opinião da mídia é basicamente elitista. Primeiramente chama de

morador de rua ao Sr. Amauri, na tentativa de clara desqualificação: não é

um artista, é um morador de rua. Segundo, se utiliza da ideia muito

presente na sociedade de que este morador de rua está sujando a rua,

sujando a cidade. Esse tipo de lógica é muito comum e já exaustivamente

debatida e por isso aqui ela importa bem pouco, importa apenas para

marcar o lugar de preconceito da mídia local, o que não é em nada a nós

surpreendente.

Nossa mídia44 é uma das mais violentas. Apenas a título de

informação, havia um apresentador local que se referia aos presos como

“raça infame” e isso era veiculado no horário do almoço na TV local.

Pensemos neste artista e sua resistência. Pensemos em como ele fez

girar uma crítica que alcançou um grande segmento social, pois ele foi visto

e, numa reportagem, ao entrevistar alguém, um transeunte disse que

entendia aquela manifestação como arte – que para ele aquilo era uma obra

de arte.

Certamente o estatuto de arte ajuda a entender uma manifestação

como esta, em que um artista dispõe de sua energia criativa para tirar do

escondido tudo que o centro da cidade produz e que, ao jogar fora, torna-se

um problema ambiental e que, além do problema ambiental da produção e

do consumo, engloba o problema do acesso de um segmento da população.

O artista, enquanto morador de rua, serve-se das mercadorias que não

têm mais utilidade – portanto são desutilidades. Essas desutilidades formam

44 http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2016/04/morador-de-rua-espalha-lixo-em-canteiro-de-avenida-

central-de-cuiaba.html Acessado em 08/11/2016.

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em sua mão a matéria da poesia, pois a sua organização dá conta de

mostrar que em sua ilha existem lugares diferentes, lugar para sentar-se,

lugar para caminhar entre, e para passar por.

O respeito ao trabalho de outro artista está registrado no quando de

não apagar o que está escrito num grande quadrado de cimento no meio do

canteiro e que se destinava a árvores. Ele coloca ali, formando uma nova cor,

uma tábua, que junto com o branco do quadrado de cimento proporciona

um contraste visual que destaca o que está escrito ainda mais. Mesmo que

não seja uma mensagem clara, a mensagem está preservada.

Ele também joga com pedaços de outra obra no solo. Essa obra é a

marca do território. Mesmo retirados todos os outros elementos, ela

permanece por ser pintada no solo. Não temos certeza de que esta obra do

solo também tenha sido feita pelo sr. Amauri, mas é certo que em um ponto

da avenida do CPA existe uma marca do mesmo tipo. Não consegui ver obra

do Amauri instalada no lugar, de maneira que pode ser ou não uma obra

sua, restando como parte da obra a sua dúvida.

Neste sentido podemos dizer que o artista, o Sr. Amauri, é como um

surfista – e nada mais apropriado para a metáfora da ilha –, um surfista no

seguinte sentido:

“A atitude de resistência corresponde à sabedoria do surfista, que não se deixa levar passivamente pela onda nem tenta lutar contra ela, mas aproveita sua energia e explora criativamente suas possibilidades”45.

E ainda:

“O surfista incorpora a imagem do amor fati, aquele que tem a capacidade de dizer não para os impasses tradicionais da revolução e da revolta, mas também sabe dizer sim para as surpresas do acaso, condição de possibilidade do gesto de criação na arte e na vida.”46

45 LINS, Daniel (org.) Nietzsche/Deleuze: arte, resistência. Simpósio Internacional de Filosofia. Fortaleza – CE: Forense Universitária, 2007. 46 Ibidem.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Canteiro central da Av. Prainha.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Canteiro central da Av. Prainha.

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Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Canteiro central da Av. Prainha.

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4.8. A ilha dentro da ilha

A rua como lugar de criação tem tanto a oferecer que mesmo artistas

mais conservadores, em um ou outro momento de sua vida, se rendem aos

seus desafios e possibilidades de levar sua arte, seu fazer, ao público

transeunte. O fluxo da rua constitui em si uma possibilidade a mais para o

fazer artístico.

Em Cuiabá a situação de rua é compartilhada por uma população

ativa e que cria constantemente intervenções das mais diversas. Junto dessa

população existem vários artistas que criam alternativas para sua arte,

justamente por sua identidade com a rua e também por não conseguirem

lugar no mercado de arte. Este é o caso do graffiti, das intervenções, das

performances e de um segmento do audiovisual (o audiovisual underground,

trash).

Compreender a importância dessas manifestações da cultura popular

é pensar este patrimônio como gerador de consciência estética. Esses bens

culturais, por vezes muito efêmeros, são fontes de transformações

cotidianas. No contexto da rua e da contra-cultura, eles se transformam em

instrumentos de formação, logo, em uma educação estética, uma educação

sem currículo formal, mas que será longamente debatida por exemplo pelos

culturalistas. Essas manifestações perpassam o território e dão significado a

muitas das maneiras de viver o urbano, sobretudo para a população em

situação de rua. Essa dimensão da arte – a dimensão da criação estética

como invenção cidadã e de novas possibilidades de rua, da arte de rua –

configura uma maneira de vivenciar a cidade que não sucumbe ao ambiente

privado, seja ele o espaço das galerias, museus ou o espaço particular da

habitação convencional.

O espaço público como alvo de intervenções é uma tendência

crescente, devido, principalmente, à democratização dos meios culturais e

artísticos, em grande medida provocados pelo fenômeno da conexão

planetária em rede. Antes disso, porém, nos fixemos apenas nos Estados

Unidos como exemplo: o uso do espaço público como suporte às mais

diversas modalidades artísticas funda-se principal e inicialmente na

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arquitetura e nos projeto sociais. Como exemplo disto, temos a chamada arte

pública que, com sua aderência às questões sociais, toca em feridas como

classe, questões raciais, de gênero, de protesto, pra dizer o mínimo.

O rap, o grafite, o hip-hop, a arte popular em seu sentido mais

genuíno – e não o da Indústria Cultural –, falam da perspectiva do oprimido.

Paulo Freire, quando exilado pela ditadura militar, desenvolveu, na

construção de um dos tantos edifícios nos Estados Unidos, um dos projetos

de alfabetização de jovens e adultos que foi finalizado com um balé de

máquinas concebido, organizado e realizado pelos trabalhadores. Os círculos

de cultura foram durante os anos 60 um bom exemplo das possibilidades da

cultura e das artes a partir de uma ótica popular.

Os bens culturais ou patrimônios podem ser um importante estímulo

à integração da cultura popular à cultura erudita. Através dos patrimônios

material e imaterial, consequentemente à produção contemporânea, a

possibilidade de diálogo se alarga.

Em espaços como jardins históricos, igrejas e palácios, com a

realização de concertos, peças teatrais, eventos de performance, dança,

exposições de artes visuais, intervenções urbanas, artes digitais, artesanato

e oficinas de criação, pode-se promover um entendimento maior do que é

patrimônio e ainda conectar a política pública às dimensões históricas da

cidade.

Esta é uma perspectiva para a cultura e a arte, mas esta ótica

conciliatória, dialogada e que busca a intersecção entre o popular e o erudito

é uma postura geralmente institucionalizada; é a postura do discurso

politicamente correto da inclusão. Este discurso está distante da

radicalidade da arte popular e marginal das ruas. Estamos falando da vida

feita na rua, das dimensões vivenciais e de profundo enlace com o urbano,

onde o combate ideológico se acirra quando se trata da defesa dos princípios

da arte de rua.

Essa arte que mapeamos como uma arte marginal e totalmente ligada

aos movimentos de protesto contra o atual estado de coisas se faz no

subterrâneo da produção local, de maneira que não mantém relação com

nenhuma política institucional e ao mesmo tempo é crítica dela. Divulga um

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movimento crítico em relação aos bens culturais e às entidades

governamentais e não governamentais; demonstra que há condições de

possibilidades de discussões críticas e de fazeres artísticos para além dos

próprios financiamentos. Critica o vício das instituições em financiar apenas

os “tubarões”, como o graffitti de Babu Seteoito que denuncia exatamente

isso.

Os limites orçamentários são sempre os limites das margens, de

maneira que os orçamentos contemplam apenas aqueles que se inserem no

mercado e esse mercado, sendo muito restrito, gera um círculo vicioso em

que quem produz sem financiamento acaba nunca alcançando o mesmo,

porque nunca entra no circuito. Quando este, por muita insistência,

consegue entrar no sistema, os “tubarões” o engolem.

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Foto: Jean Siqueira – 2016 – Graffiti de SIQ, Cuiabá.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Ponto de ônibus ao lado da UFMT.

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Foto: Jean Siq. – 2014 – Ponto de ônibus ao lado da UFMT.

O graffiti em Cuiabá é uma expressão das efetivas na denúncia contra

as violações de direitos na Cidade de Cuiabá. Seu recado cumpre

pedagogicamente com a intencionalidade da reflexão sobre o que acontece no

cenário político. O Governador do Estado – Pedro Taques, filiado ao PSDB –

reuniu uma equipe composta por marqueteiros e alguns artistas e financiou,

no ano de 2016, mais especificamente entre os meses de julho e agosto, uma

espécie de encobrimento da cena crítica proposta pelo graffiti em toda a

cidade. A tática de apagar o protesto foi denunciada por SIQ, um importante

grafiteiro e tatuador que já está na estrada há algum tempo.

O fotógrafo Rai Reis cedeu suas obras ao Governo do Estado para

“encobrir” os grafites de protesto e os principais e mais críticos foram

afetados pelas colagens de Rai Reis. Nesse caso os graffittis mais afetados

foram os graffittis de Siq, pois todos têm forte denúncia, principalmente

contra as violações de direitos humanos durante o período da Copa do

Mundo. Alguns dos graffittis de Babu Seteoito foram destruídos de maneira

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diferente e serão abordados mais adiante na parte em que falamos

especificamente sobre a Copa do Mundo em Cuiabá.

Esta tentativa de apagamento da arte de rua foi um dos poucos

episódios que ganhou uma repercussão, pois a tendência é que não haja

manifestações, até porque não se tem muito espaço nas mídias para esse

tipo de denúncia ou de reivindicação.

Uma outra questão como esta se dá em torno das questões relativas ao

patrimônio cultural, que também sofre com o descaso do poder público, seja

através da falta de incentivo, seja através das destruição do que forma um

conjunto crítico de arte urbana como o caso do graffitti.

Apesar do panorama pouco favorável, existe bastante resistência.

Babu Seteoito e Cleiton Soares, por exemplo, pintaram este painel que tem

mais de 7 metros em um ponto da cidade.

Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Grafite de Babu 78 e Amarelo.

O patrimônio em que se encontram os moradores da Ilha do Bananal

faz parte de um conjunto de ações que teve seu início, em Cuiabá, com as

obras da Copa de 2014. Denúncias recentes revelaram fraude no parecer

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técnico do Ministério das Cidades para definição do modal de transporte a

ser adotado nas obras de mobilidade para a Copa, o que fez com que se

interrompesse o processo de construção num momento em que o

Governador à época – Silval Barbosa – já havia comprado o local para a

retirada das construções para a passagem do VLT.

A decisão pelo VLT implicou em um orçamento de R$700 milhões a

mais do que o orçado inicialmente para o BRT (R$500milhões). Segundo

investigação conduzida pelo jornal O Estado de São Paulo, a diretora da

Secretaria de Mobilidade Urbana, atendendo à pressão política

governamental, teria alterado o parecer técnico contrário dos analistas.

A situação foi relatada em diversos documentos que constituem os

relatórios e análises em que se diz, por exemplo, das decisões tomadas sem a

participação da população, nem audiências públicas, nem estudos prevendo

impactos. Essas informações são negadas à população e também mantidas

como secretas até mesmo para os órgãos de controle do próprio Estado,

como o Ministério Público47.

47 MEGAEVENTOS e violações de direitos humanos no Brasil: Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês

Populares da Copa. [S.l.: s.n., 20--]. p. 46. Disponível em fomato PDF em: http://www.apublica.org/wp-

content/uploads/2012/01/DossieViolacoesCopa.pdf

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Foto (abaixo): População de rua retratada pelo livro 12 Cidades em Tensão.

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CONSIDERAÇÕES

1. Nossas reflexões vêm no sentido de considerar que a população em

situação de rua represente de fato uma população que possa escolher aquilo

que, segundo seu desejo, é o melhor para si e que isso não seja impeditivo

para sua permanência entre nós e para a manutenção de uma vida digna –

que possamos entender o fenômeno “morar na rua” como uma possibilidade

a mais da manifestação da vida, que afirmar a vida em sua potência e

aceitar a diferença entre as pessoas é a marca da civilidade e da grandeza de

uma cultura; que possamos entender também que a população de rua,

apesar de vulnerável, possui tantos aspectos de luta como qualquer outra

população que resiste ao modo de organizar e controlar a vida do sistema-

mundo capitalista.

Nossas considerações também vão no sentido de que, se falamos de

ilhas em que se produzem essas dinâmicas sociais da vida da população em

situação de rua, também podemos falar de ilhas de paz onde esta população

possa usufruir de direitos pelos quais ela mesmo luta, empurrando o campo

dos Direitos Humanos e mobilizando para pensar a potência do pensamento

e da auto-organização nômade.

Que possamos entender que também é parte do processo de

reconhecimento da população em situação de rua a possibilidade de em

determinados momentos “deixá-los em paz”, no sentido que ouvi de um

morador de rua: “Me deixe em paz!”, “Me erra!”– ou seja, precisamos

entender que o controle sobre a vida do outro não é desejado e buscar isso a

todo custo pode ser bem pouco político, bem pouco educativo.

Compreender que a gestão do tempo das pessoas, de sua força de

trabalho é um processo do sistema-mundo capitalista ao qual a população

em situação de rua pode resistir, e ao qual deveríamos nós também

podermos.

Mais uma vez vem-nos o sentido da criação das ilhas de paz, como

uma condição de possibilidade – ilhas de cuidado em que se possa

efetivamente ser o que se é, sem, no entanto, que com isso inviabilizar a

própria vida, colocando-a numa condição de vulnerabilidade.

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Pensar que lugares reconhecidos como casa, podem sim, trazer o bem

estar e a tranquilidade da casa, de laços diferentes daqueles que os fizeram

deixar a própria casa e entender que o território da cidade pode ser um

território de vida, portanto dessa casa arcaica que funciona como ninho,

como abrigo, como espaço de produção e reprodução da vida.

2. Alguns Estados da Federação já se organizaram no sentido de

garantir atendimento à População em Situação de rua. O Estado de São

Paulo tem uma política estruturada ao longo dos anos e conta com um

movimento histórico iniciado na década de 50 do século passado, sua

história está melhor detalhada em livros como o de Frangela e no recente

livro organizado por Mariana Menezes (et all) “Novas Faces da Rua” citado na

bibliografia desta tese. Na cidade de Cuiabá a iniciativa a partir da

instituição do Grupo de Trabalho Intersetorial ainda é uma iniciativa tímida.

Ela conta atualmente com o apoio da Secretaria de Estado de Trabalho e

Assistência Social (SETAS-MT) para iniciar uma política a partir de um

trabalho que deverá congregar Secretarias como a Secretaria Estadual de

Saúde (SES-MT), Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH-MT),

dentre outras, mas ainda se configura como um trabalho inicial.

Esse processo nascente é vivido por um grupo no qual nos inserimos e

para o qual certamente levaremos os pensamentos desse escrito.

Sobre a estruturação da rede de apoio à população em situação de rua

apenas lembraríamos um momento do livro de Frangela que relata:

“Há vários méritos nesta gradual construção da rede política que

projeta o morador de rua como sujeito de direito: ela reduziu a

violência institucional, abriu caminho para ocupações de trabalho

– que creio estarão mais bem sistematizadas com o decorrer do

tempo –, tem proporcionado a pessoas que há muito estão

mergulhadas nas dinâmicas desnorteantes e excludentes das

ruas da cidade de São Paulo uma referência mínima de cidadania

e a sensação de ter a quem recorrer.” (FRANGELLA, 2004,

p.95)

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3. As últimas palavras para este momento, vem no sentido de

denunciar que o espaço estudado, a Ilha do Bananal, tem sido vista

pela política pública como o próximo ponto a ser higienizado na cidade

de Cuiabá. Isto está começando a circular dentro dos gabinetes e por

informações dos próprios envolvidos com o trabalho junto aos

moradores da ilha, chegou-nos a notícia de que a intenção é a de

transformar o lugar onde hoje se encontram os casarões em uma

grande praça, e retirar do território toda a comunidade da Ilha do

Bananal.

4. Além dessa denúncia recebida junto à Defensora Pública, também

existem as denúncias dos profissionais de saúde quanto ao

espancamento e violência sistemática que se está sendo impetrada

contra a população em situação de rua da região da Rodoviária e

Jardim Leblon. Essa ação está ocorrendo há mais ou menos 2 meses a

mando dos Coronéis da Polícia Militar responsáveis pelas unidades

“Crack é possível vencer” situadas nessas regiões. Essa ação tem

ocasionado a ida da população em situação de rua para a Ilha do

Bananal e a perspectiva é a de que em breve a polícia realize na Ilha

um novo “Baculejo Nervoso” desta vez para a retirada da comunidade

para a demolição dos casarões e higienização do Centro da Cidade de

Cuiabá.

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