universidade federal de mato grosso instituto de … · ajudou a consolidar melhor o ponto de vista...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ELIETE BORGES LOPES
NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE UMA COMUNIDADE EM
SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ.
CUIABÁ-MT
2016
ELIETE BORGES LOPES
NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE
UMA COMUNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ
CUIABÁ-MT
2016
ELIETE BORGES LOPES
NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE UMA
COMUNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação do Instituto de Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Doutora em Educação.
Área de concentração: Movimentos Sociais e Política
Educação Popular.
Orientador: Prof º Dr. Luiz Augusto Passos.
Co-orientador: Amilcar Martins
CUIABÁ-MT
2016
AGRADECIMENTOS
Meu primeiro e mais especial agradecimento se dirige ao meu
orientador, o Professor LUIZ AUGUSTO PASSOS. Com Passos aprendi a
potência de uma verdadeira relação pedagógica. Passos é desses orientadores
que te elevam e que te auxiliam de verdade. Meu agradecimento ao Professor
Amilcar Martins por ter aceitado a co-orientação do meu trabalho e o convite
de estar conosco em uma programação que inclui a qualificação de tese como
um processo de criação e de intercâmbio. Agradecimento especial a Lídia
Xavier que prontamente aceitou o convite para compor a banca de exame
desta tese e que se desloca de Brasilia até Cuiabá, mesmo sem planejamento
prévio. Agradecimento especial também à Professora Michele Sato, professora,
pesquisadora e grande intelectual, sensível e muito companheira e que
conheço há mais de uma década na luta pró-Ambiente e Direitos Humanos.
Meu agradecimento muito especial também à estimadíssima professora e
amiga Priscila Scudder, que aceitou ler e contribuir na partilha deste
momento tão especial para mim e certamente para todos nós. No processo de
elaboração da tese, preciso agradecer a toda equipe do Programa de Pós
Graduação em Educação, à Coordenação de Pedagogia, aos colegas de curso e
às professoras que ministraram disciplinas fundamentais para a consolidação
deste momento: professora Filomena Arruda e Ozerina Victor fica meu
agradecimento. Nessa caminhada atravessada por laços, encontros e
companheirismos agradeço a toda minha família, em especial minha mãe
Elizabete Borges Lopes, meu irmão Marcos Borges Lopes, minha tia Maria
Aparecida Borges, meu companheiro Yuri Kopcak e minhas filhas gêmeas
Irene Borges de Oliveira e Constantine Borges de Oliveira. Agradecimento
especial a todos os moradores e moradoras de rua com quem conversei e vivi
este processo. Um abraço àqueles que me ajudaram a alcançar esta etapa e
meu muito agradecido reconhecimento a Rui Leonardo Sousa Silveira, que me
auxiliou enquanto estive na Educação do Campo a estudar o tema e me
inseriu nos grupos de trabalho e pesquisa bem como na luta pela Terra. Meu
muito carinhoso abraço à Claudia Cristina, que me incentivou e me botou na
roda do Ruação e que foi fundamental para minha aproximação do Grupo
Pesquisador e da pesquisa em si. Claudia com sua generosidade e sua
autenticidade muito fez para que eu estivesse junto do Grupo e por isso lhe
sou muito grata. Agradecimento profundo a Maurília Valderez, Ana Amélia e
Eduardo Ferreira, Guilherme Rosa Almeida, Afonso Henrique Alves, João
Batista Alves dos Santos, Isaura Aço e Ariadne Marinho que tantas vezes
trocaram ideia comigo sobre o processo de vida e pesquisa. E meu
agradecimento indireto a todos que ofereceram resistência ao meu
pensamento e minha pesquisa, que acabaram por me fortalecer em meus
pensamentos e a gostar ainda mais de estar na rua, que me fizeram
compreender o quão importante é o valor da resistência. A todos aqueles que
criticaram e me fizeram ver o que eu não via e assim consolidaram uma
reflexão contrária ao meu pensamento, o que oi muito válido para o processo
de pensar-com.
Agradeço a Kayene Cupertino que foi até o Instituto Metrópolis para
pegar para mim o livro NOVAS FACES DA RUA, lançado recentemente e que
me colocou em contato com Mariana Menezes a quem fica meu abraço e forte
intenção de conhecê-la pessoalmente e que foi muito atenciosa em minha
interlocução.
Agradeço muito ao professor Amilcar Martins de maneira especial,
porque além de me trazer livros importantíssimo de Portugal também
destrinchou a primeira redação da tese comigo numa longa conversa e me
ajudou a consolidar melhor o ponto de vista de uma metodologia mais clara e
mais consistente e com quem aprendi e vivi muitos bons momentos em sua
interlocução conosco. Obrigada Arte-Nauta Amilcar, que prazer foi recebê-lo!
Também agradeço a todos que me indicaram livros, leituras, me
trouxeram notícias da rua, me enviaram fotos, me questionaram sobre o que
estava estudando, enfim... àqueles que passaram rapidamente e
acrescentaram uma inquietação. Meu mais profundo agradecimento in
memorian a Andréia, a Cheirosa, que se foi tão cedo e que marcou
profundamente essa pesquisa. Agradecimentos também a todos os grafiteiros,
especialmente: Góra, Siq, Babu e Amarelo. Com toda gratidão também
agradeço à Maria Yrigaray e Clovis Hirigaray pelas conversas, pelo convívio e
pelas belas imagens. Também agradeço a Fábio Pinheiro Saravy – Fábinho
Munduruku – pela revisão desta tese. A todos e todas: obrigada.
NO FRONT DA VIDA: ARTE-FATOS E AFETOS DE UMA
COMUNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ.
In Memorian
Foto: Dizão Gonçalves – Cheirosa.
Cuiabá, 2016
Me llaman calle
(Mano Chao)
Me llaman calle, pisando baldosa
La revoltosa y tan perdida
Me llaman calle, calle de noche, calle de dia
Me llaman calle, hoy tan cansada, hoy tan vacía
Como maquinita por la gran ciudad
Me llaman calle, me subo a tu coche
Me llaman calle de malegría, calle dolida
Calle cansada de tanto amar
Voy calle abajo, voy calle arriba
No me rebajo ni por la vida
Me llaman calle y ése es mi orgulloYo sé que un día llegará
Yo sé que un día vendrá mi suerte
Un día me vendrá a buscar, a la salida un hombre Bueno
Por toda la vida y sin pagar, mi corazón no es de alquilar
Me llaman calle, me llaman calle
Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar
Me llaman calle, calle más calle
Me llaman calle la sin futuro
Me llaman calle la sin salida
Me llaman calle, calle más calle
La que mujeres de la vida
Suben para bajo, bajan para arriba
Como maquinita por la gran ciudad
Me llaman calle, me llaman calle
Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar
Me llaman calle, calle más calle
Me llaman siempre, y a cualquier hora
Me llaman guapa siempre a deshora
Me llaman puta, también princesa
Me llaman calle, es mi nobleza
Me llaman calle, calle sufrida, calle perdida de tanto amar
Me llaman calle, me llaman calle
Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar
A la Puri, a la Carmen, Carolina, Bibiana, Nereida, Magda,
Marga, Heidi, Marcela, Jenny, Tatiana, Rudy, Mónica, María, María
Me llaman calle, me llaman calle
Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar
Me llaman calle, me llaman calle
Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar
Me llaman calle, me llaman calle
Calle sufrida, calle tristeza de tanto amar
Me llaman calle, me llaman calle
Foto: Amarelo – Cuiabá – 2014.
RESUMO
A tese aqui presente é a de que existe em Cuiabá uma comunidade em
situação de rua que habita a Ilha do Bananal no Centro da Cidade e que esta
comunidade possui uma auto-organização a partir dos arte-fatos e afetos que
mobilizam. Este fenômeno foi descrito a partir da pesquisa de campo
exploratória e contou com o diálogo com moradores em situação de rua e
descrição dos fenômenos que compõe a comunidade que habita a Ilha do
Bananal. Os arte-fatos e afetos são uma maneira de dizer de toda uma cultura
material e imaterial que envolve a vida da população em situação de rua que
habita a Ilha do Bananal. A principal interlocutora do trabalho foi Andreia, a
Cheirosa, que morreu este ano. A pesquisa revela que mesmo vivendo sob
égide da vulnerabilidade a comunidade da Ilha do Bananal consegue resistir
frente a fenômenos como a pobreza e a violência. O trajeto de pesquisa
desenvolveu-se a partir do fenômeno de interação entre a população em
situação de rua e os diversos elementos presentes na comunidade, quer seja,
a dimensão arquitetônica, os graffits e atos performativos da vida na rua. As
dimensões de apropriação e transformação da cultura e da própria vida
através dos arte-fatos e afetos presentes na comunidade garantem o habitar a
rua como processo de resistência e dão indicativos da possibilidade de uma
episteme nova para o entendimento da perspectiva da população em situação
de rua. Uma episteme das ruas e sobretudo uma episteme das ruas do Sul
começa a se insinuar numa trajetória em que a população em situação de rua
como protagonista do processo de habitar a rua deixa ver sua potência crítico-
educativa.
ABSTRACT
The thesis herein is the one that in Cuiabá there is a homeless
community that inhabits the Bananal Island downtown and that this
community possesses a self-organization whose starting point is the art-facts
and affections it mobilizes. This phenomenon was described from exploratory
field research and has recurred to dialogues with the homeless inhabitants
and the description of the phenomena that comprise the community that
inhabits the Bananal Island. The art-facts and affections are a means of
expression of an entire material and immaterial culture that involves the life
of a homeless population that inhabits the Bananal Island. The main
interlocutor in this research was Andreia, the Fragrant, who died this year.
The research reveals that even living under the auspices of vulnerability, the
Bananal Island community manages to resist phenomena like poverty and
violence. The research path has developed from the phenomenon of
interaction between the homeless population and the many elements present
in the community, be it the architectonic dimension, the graffiti and
performance acts of life on the streets. The appropriation dimensions and the
transformation of culture and of life itself through art-facts and affections
present in the community assure inhabiting the streets like a resistance
process and indicate the possibility of a new episteme for understanding the
perspective of a homeless population. A streets episteme and, above all, a
Southern streets episteme start insinuating a trajectory in which the
homeless population as a protagonist in the process of inhabiting the streets
reveals its critical-educative dimension.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................13
PARTE 1
NO FRONT DA VIDA .............................................................................. 16
1.1 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABA...........................16
1.2 A Pesquisa Junto Da População Em Situação De Rua ........................ 18
1.3 . Como A Pesquisa Se Desenvolveu .......................................................................... 26
1.4 . Cartografia e Descrição.....................................................................52
1.5 . Características da Pesquisa...............................................................56
1.6 . A Pesquisa e Suas Interfaces.............................................................58
1.7 . Leituras: Compreensão, Interpretação e Descrição.............................60
1.8 . A dimensão fenomenológica do trabalho............................................63
PARTE 2
A VIDA NO FRONT............................................................................68
2. COMUNIDADE DA ILHA DO BANANAL..............................................68
2.1. Uma Árvore Pode Ser Um Perigo?.....................................................70
2.2. Circulação Circular.........................................................................78
2.3. Ele Pula Numa Ilha De Calor...........................................................82
2.4. Uma Experiência De Como As Informações Chegam Antes...............87
2.5. Baculejo Nervoso (30 De Agosto De 2016)........................................90
2.6. Uma Festa no Beco do Candeeiro....................................................95
2.7. A Ilha Extrapola A Ilha...................................................................100
PARTE 3
DAS ILHAS.....................................................................................105
3. ILHAS NASCENTES, ILHAS EXTINTAS E ILHAS DESERTAS.........105
3.1. Das jangadas de pedra...................................................................106
3.2. Comunidade Nascente...................................................................114
3.3. Ilha do out-door..............................................................................119
3.4. Comunidade Extinta.......................................................................126
PARTE 4
POÉTICAS...........................................................................................132
4. DAS DESUTILIDADES, CRÍTICAS E POÉTICAS DAS ILHAS...........132
4.1. Da Lentidão Ou A Lentidão Como Resistência..................................138
4.2. Mina, Seus Cabelo É Da Hora..........................................................143
4.3. Das ilhas e margens – viver sem lugar.............................................153
4.4. A Praça Como Ilha...........................................................................161
4.5. A ilha do Maestro Das Máquinas Pulsantes.....................................165
4.6. Fila na Lapa. Uma ilha em um parêntese.........................................168
4.7. Uma ilha no meio do canteiro central..............................................172
4.8. A ilha dentro da ilha.......................................................................180
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................189
REFERÊNCIAS ..............................................................................192
13
INTRODUÇÃO
Existem duas ideias centrais divididas em quatro partes e
considerações que formam esta tese e que no arcabouço de uma pesquisa
exploratória e descritivo-interpretativa dimensionam todo o trajeto de
pesquisa.
A primeira ideia é a de que existe uma comunidade de rua vivendo no
Centro da Cidade de Cuiabá. Para se chegar a esta tese a pesquisa se
estruturou nas seguintes fases: cartografia das ruas1, pesquisa exploratória
e interpretação-descrição dos fenômenos. Nas etapas de cartografia,
pesquisa exploratória e pesquisa descritiva, descobrimos uma comunidade
composta por mais de sessenta (60) pessoas vivendo numa localidade
chamada de Ilha do Bananal. Essa região está situada geograficamente entre
o Morro da Luz e o Beco do Candeeiro no Centro Norte da Cidade de Cuiabá-
MT-BR.
A segunda ideia que compõe esta tese e que percebemos através da
observação e interação com a comunidade da Ilha do Bananal é a de que
esta possui uma auto-organização e que este aspecto é fundamental para
sua sobrevivência enquanto comunidade nômade.
Estes aspectos estão enunciados no título do trabalho como a da vida
no front; são abordados de maneira a circunscrevermos a comunidade da
Ilha do Bananal e a cidade de Cuiabá (Porto, Centro, CPA e Coxipó) para
dimensionar os arte-fatos e afetos das/nas ilhas.
Esta pesquisa também descobriu a existência de uma comunidade
nascente e rememorou uma comunidade extinta que será brevemente
mencionada.
A Ilha do Bananal possui um envoltório de temas crítico-reflexivos com
grande potencial educativo vinculados ao seu território e entorno dado
principalmente pelos grafittis; possui também um repertório de agentes e
ações que bebem em seus temas, quer seja, o tema da rua e da vida nas
1 Cartografia aqui é utilizada no sentido de criar mapas de imagens, uma perspectiva que coloca a centralidade,
portanto, nas imagens da cidade, no caso uma cartografia voltada para as imagens da população em situação de rua e suas relações com o urbano. Interessa a esta cartografia o registro da vida dessa população através da imagem das pessoas em seus contextos de vida e interação com o urbano, por isso ações como dormir, andar, comer, passear, transitar, pedir, cantar, chorar, gritar, surtar e defecar na rua interessam.
14
ruas – inspiração para este e outros trabalhos que certamente virão deste e
que portanto bebe nesta fonte a que me refiro.
Neste repertório de manifestações da cultura e da arte de rua, o graffiti
e as performances dos habitantes da ilha e de seus interlocutores forjam a
particularidade simbólico-comunicacional do vir-a-ser deste território.
A relação entre patrimônio arquitetônico, graffitis e performances da
população em situação de rua dá-nos o cenário da Ilha como um território
que, apesar da violência a ele relegada, também possui potencial educativo,
do ponto de vista de que a comunidade atua um teatro e pedagogia dos
oprimidos. As interlocuções com os moradores de rua revelam condição de
possibilidades educativas do território a partir do conjunto de imagens e de
interação que estas congregam. Apesar deste território estar legado ao
abandono pelo poder público sua organização enquanto moradias é
certamente um aspecto que revela a auto-organização e o potencial de
sociabilidade das pessoas que habitam os casarões da Ilha do Bananal.
Se complementa a tudo isso a perspectiva de que essa comunidade é
por sua vez interagente com este constructo da cultura material artística de
rua, ou seja, ela constitui junto desse amplo aspecto cultural um aspecto
sócio-político que relaciona território, habitação e cultura.
A Ilha do Bananal mobiliza todos esses elementos que chamamos aqui
de arte-fatos e de afetos e que são, em suas ligações com o contexto de vida
da cidade, o âmbito comunitário, vida comum ou vida compartilhada
presente na Ilha. Os afetos dizem respeito a toda interação e maneira de se
presentificar e de se conectar ao território, de sorte que também o meu afeto
de conexão analítico-descritivo e desejante forma com as pessoas do lugar e
a cultura um prisma das paisagens da ilha.
A ilha configura um território de saberes, presentes sobretudo em arte-
fatos e afetos que estão em devir e também os sentidos de vida da
comunidade.
Veremos que outras ilhas também integram o devir morar na rua,
habitar a rua. O patrimônio arquitetônico, os graffitis e as performances dos
moradores de rua presentes na Comunidade da Ilha do Bananal e seu
entorno constroem uma maneira de habitar a rua muito própria a estes
15
moradores, pois encontram entre o Morro da Luz, o Beco do Candeeiro e a
Ilha do Bananal complementaridades entre as representações da casa, do
quintal e da cidade ao mesmo tempo em que tudo foge a estas
representações.
Habitar a rua torce o sentido do urbano, e por isso o fenômeno é feito
de ambiguidades e ambivalências. Assim nos questionamos: Dentre as
ambiguidades das ilhas está a de ensinar a pensar sobre uma cidade
educadora? As ilhas dariam conta de falar sobre uma nova maneira de
ver/ser na/da cidade? Habitar a rua pode constituir, para além das táticas
de sobrevivência no front, um ponto de vista da educação que leve em conta
a vida dessas populações numa perspectiva de educação popular? Com
quem, quais personagens e autores, se pensaria tal aspecto da educação?
Compreender o urbano a partir de uma população que habita a rua é
um desafio que toca as pedagogias comprometidas com as lutas pela terra e
território e, neste sentido, mergulhar na cultura de rua, pensá-la como
comunidades pode trazer a tona uma episteme nova – uma episteme que se
configure como uma episteme do Sul e mais ainda como uma episteme das
ruas do Sul. Também poderíamos pensar em termos da consolidação de algo
realmente novo na arte pública, conceito que ganhou notabilidade a partir
da incursão dos movimentos tipicamente da rua. Como isso seria possível?
Foto: Eliete Borges Lopes – (Detalhes: Av. do CPA – 2015 e Rodoviária, 2015).
16
PARTE I
NO FRONT DA VIDA
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Bairro Bela Vista.
“Sem rua não há comunidade.” Bauman
1. 1 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM CUIABÁ
O termo “população em situação de rua” será aqui utilizado de maneira a
relevar a parcela da população que se encontra morando na rua, habitando
a rua. Quando não for possível utilizar esse termo, o mais adequado
contemporaneamente, usaremos “morador em situação de rua” ou “morador
de rua”, em contraponto ao uso de “mendigos” ou “andarilhos”.
Abordaremos no decorrer do trabalho que as pessoas em situação de rua
fazem parte dos grupos vulneráveis, em contrapartida a algumas
formulações que tratam a população em situação de rua como desvalidos,
fragilizados, débeis ou aqueles a quem sempre falta algo; traremos a
dimensão de uma população que se auto-organiza e que é ativa e rebelde.
A pesquisa realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, no período de agosto de 2007 a março de 2008, constatou
que em 71 cidades brasileiras com população superior a 300 mil habitantes
17
(exceto São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, que já possuíam
levantamentos próprios) existiam 31.922 pessoas que utilizam as ruas como
forma de moradia no país.
Os resultados dessa pesquisa foram divulgados em 20082.
A partir dos questionários aplicados com essas pessoas maiores de 18
anos, encontramos alguns dados relevantes no relatório que apresentamos
em síntese: 82% desta população são do sexo masculino; 53% dos
entrevistados possuem entre 25 e 44 anos; 39% se declararam pardas;
29,5% brancas e 27,9 negras; 52,6% recebiam entre R$ 20,00 e R$ 80,00
semanais; 74% dos entrevistados declararam saber ler e escrever; 17,1%
respondeu que não sabem escrever e 8,3% apenas disseram que assinam o
próprio nome.
Os dados deste levantamento são importantes no quesito trabalho, pois
70,9% declararam exercer algum tipo de atividade remunerada, das quais:
27,5% são catadores de materiais recicláveis; 14,1% são flanelinhas; 6,3%
trabalham na construção civil; 4,2% exercem atividades de limpeza; e 3,1%
são carregadores ou estivadores. É interessante que somente 15,7% dos
entrevistados declaram que pediam esmola como meio de obtenção de renda.
Outro dado interessante elucidativo da pesquisa é sobre a origem da
população em situação de rua, pois 4,8% dos pesquisados responderam que
sempre viveram no município em que moram atualmente. Considerando os
outros 54,2% dos entrevistados, temos que destes 56% vieram de municípios
do mesmo estado de moradia atual e 72% vieram de áreas urbanas. Conclui-
se que parte considerável da população em situação de rua é originária do
mesmo local em que se encontra ou de locais próximos, não sendo em
decorrência de deslocamentos ou de migração do campo para a cidade.
2 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília – DP: [s.n], 2008. Disponível em: http://www.criancanaoederua.org.br/pdf/Pesquisa%20Nacional%20Sobre%20a%20Popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Rua.pdf (Acessado em 07/11/2016).
18
1.2. A Pesquisa Junto da População em Situação de Rua
Meu lugar de pertencimento na pesquisa junto da população em
situação de rua é um lugar que está no coletivo; não é meu: é nosso. E nesse
lugar onde pesquisa e vida não se separam, o esforço é o de compreender,
por exemplo, como se constitui a Comunidade da Ilha do Bananal, com seus
traços particulares de bando e nomadismo e como estes articulam os arte-
fatos e os afetos relativos ao território.
Junto dessa população percebemos, por exemplo, o aprofundamento
dos laços sociais que criam pertencimentos e afetos que revelam uma
população ativa e rebelde que, em face do abandono, tem como estratégia de
defesa e de luta o 'bando' que, somado à afetividade, traz à tona
comunidades nascentes, e comunidades em Devir.
Trata-se de comunidades de sujeitos coletivos que se negam a um
coletivismo gregário, sujeitos políticos que destronam a política na crítica
que fazem enquanto aqueles que se sabem tornados vulneráveis e que essa
condição é, ao mesmo tempo, uma forma de existir e resistir, portanto de r-
existir.
R-existir ganha um sentido de vida, daquele que está lançado na
existência como sobrevivente, isto é, aquele que existe em combate com tudo
aquilo que o hostiliza, ou seja, que ameaça a sua própria existência e que no
combate pela sua manutenção encontra a existência como resistência por
isso R-existe.
Essas populações, que na vida estão como que na linha de frente, no
front mesmo de um combate travado em nome de uma suposta civilidade,
lida com aquilo tudo: Estado, Governo, Sociedade e Política, que os qualifica
como incivilizados, selvagens, sem alma, sujos, ladrões, imorais, doentes,
loucos e animais.
Aqui aparece uma colonialidade que surge como classes,
nomenclaturas, diagnósticos, avaliações vindas de várias áreas dos saberes e
que tratam a população em situação de rua muitas vezes na condição de um
rebaixamento de sua própria humanidade.
19
Assim, estar no front afirma por um lado uma alternativa, uma
escolha, mas também uma falta de opção, uma violência. Se por um lado
afirma uma potência, uma condição de possibilidade, uma vida nova, um
devir criança, um devir animal e um devir louco, por outro lado também
afirma a maneira colonial de tratar essa população em muitos gradientes de
normatividade que transforma a condição de diferença numa profunda
desigualdade como o sabemos a partir de Boaventura de Souza Santos e
todos os teóricos que tratam da colonialidade do ser, do saber, do poder e
porque não, do viver.
A manutenção da vida dessa população constitui uma luta contrária à
colonialidade do viver e do habitar. Por isso traz consigo uma afirmação da
vida. A afirmação da vida a partir da r-existência às violências forma parte
da auto-organização de comunidades em situação de rua e mostra a vida no
front a partir das tentativas de aniquilamento como constitutiva da própria
vida urbana.
Ao mesmo tempo, o urbano construído pela população de rua ganha a
tônica de processo de colonização pelo sistema-mundo-capitalista e também
de um habitat. Habitat não no sentido de encontrar um conjunto de
elementos e situações físicas, geográficas e territoriais que favoreçam o seu
desenvolvimento, mais ou menos como entende a biologia, mas um sentido
de habitat como lugar único e que projeta sobre o mundo sua unicidade, sua
imensa capacidade de continuar a ser único em sua manifestação e ao qual
se pode buscar como condição de possibilidade de um outro urbano, uma
outra cidade, um outro mundo possível.
Neste sentido o a população em situação de rua é justamente aquela
que consegue construir o fenômeno “morar” a partir dos detritos, destroços,
desperdícios e desusos, formando assim para usar uma expressão do poeta
Manoel de Barros, uma série de desutilidades poéticas.
O lado perverso disso tudo é a acumulação de alguns enquanto que
outros precisam viver do que foi descartado. Outro lado também muito
complexo do ponto de vista educacional é preconceito quanto a não
existência de dignidade em uma vida que se descole do consumismo e da
20
propriedade privada, no caso da vida na rua. Veremos como estes
preconceitos se veiculam a diversos discursos, dentre eles o de limpeza.
A comunidade de rua, ou comunidade no front, além de evidenciar que
o processo de Colonialidade do habitar e o silenciamento do r-existir dessas
populações são estratégias de um poder soberano, para lembrar Agambem,
também fazem ver que o silenciamento atinge seu ápice como marca do
processo civilizatório e que nos massacres, chacinas e assassinatos que
promovem o aniquilamento da população em situação de rua se tem a marca
de seu poder de destruir populações.
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”.3
Dizer da existência de uma população de rua organizada numa
comunidade como a comunidade da Ilha do Bananal é problematizar a
legitimidade da morte na rua, pois encarar que não é problema viver na rua
nos propõe uma visão nova da vida em sua manifestação, entendendo que o
problema da vida na rua não é propriamente a vida na rua e sim a morte na
rua, ou seja, a autorização da morte na rua e sua não autorização enquanto
manutenção da vida.
Esse dilema entre viver e morrer, onde ambos possam se tornar um o
sinônimo do outro, tem implicações sérias do ponto de vista de que se assim
assumimos como algo dado na realidade ou consequência das escolhas
feitas, estaremos tomando um ponto de vista de permissão para a morte
daquele que tem a sua vida nua, ou seja, aquele que, na condição de
matável, pode também morrer na rua, sem maiores implicações. Isso
também problematiza a rua enquanto território de morte e não como
3 AGAMBEM, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 13.
21
território de vida, o que enfraquece a própria noção de vida e de vida nas
cidades.
Se viver significa morrer, deixar morrer e ao mesmo tempo, fazer viver,
o que poderia nesta condições afirmar a vida?
Esta foi durante a pesquisa uma questão importante e por isso
entendemos que falar da comunidade de rua, de seus arte-fatos e afetos de
vida é a melhor maneira de afirmar a vida; é disso que se trata. Não uma
vida idealizada, ou que tenha dimensões prescritivas de como ela deva ser
vivida, nem mesmo uma vida que não deseje a morte, ou que não tenha a
morte como a espreita; sabemos que não se trata disso.
Se trata de afirmar a vida que é vivida, aquela que é presentificada e
que mesmo tendo sido deixada para morrer, no sentido do abandono, e por
isso se encontra no front, é ao mesmo tempo aquela que vive e deseja viver,
não aquela que se faz viver no sentido de legar a vida como condição, mas
aquela que encontrou uma saída que não é outra que não a própria vida em
suas contradições e ambiguidades, em suas existências e resistências, o
pulso que pulsa a vida que vive.
Colocar a questão da comunidade é colocar para este trabalho uma
questão central para pensar a Comunidade como Ilha, como uma
comunidade em devir, no sentido de que ela é e ao mesmo tempo está se
formando, se fazendo, e ainda mais se perguntar: o que pode significar ser
uma comunidade numa ilha? Que habitat é esse que integra o urbano sendo
ilha? Como uma população empobrecida e sem recurso financeiro ou de
investimento consegue organizar uma comunidade e sobreviver pairando
sobre si a permissão para a morte? Em que condições se forma essa
comunidade? O que é aqui uma comunidade e uma ilha?
“É possível pensar uma comunidade de mortais desde que ela seja de outra ordem. O filósofo francês Georges Bataille estabeleceu uma diferenciação, que me parece muito pertinente, entre uma ‘comunidade tradicional’ e uma ‘comunidade eletiva’. A ‘comunidade tradicional’ se funda na veneração da raça, solo ou tradição. A ‘comunidade eletiva’ é a comunidade desses que nada tem em comum, a não ser ‘uma escolha da parte dos elementos que a compõem’. Só que o ‘escolher’ refere-se menos à comunidade mesma do que à condição de mortal. É preciso primeiro escolher ser mortal. Trata-se de uma situação
22
ambivalente: não podemos perder a comunidade, pois ela nos constitui essencialmente; somos condenados a ela. Mas, ao mesmo tempo, a comunidade não é dada, impõe-se conquistá-la e tornar possível seu vir-a-ser”4.
É preciso dizer que estas populações resistem, como na Ilha do
Bananal, cercados e no interior da cidade como desorganizadoras das lógicas
urbanas, mas também como integrantes a elas como articuladoras de novas
possibilidades de vida e de vida na rua, mas também cerceadas e tolhidas
pelas mesmas políticas de controle.
O fenômeno do “habitar a ilha” neste sentido está composto de
ambiguidades e ambivalências que se mostraram durante o percurso de
pesquisa e que se mostram aqui nos fragmentos escolhidos como partes dos
relatos e das análises.
A ambiguidade dá-se no cruzamento de linhas de vida e de morte que
atravessam a vida dessa comunidade, na violência intrínseca ao processo de
manutenção da comunidade e na relação com o que é externo à ilha, na
própria conexão entre interior e exterior.
A ligação entre interior e exterior é pensada como trânsito, como troca,
como jogo entre todo e qualquer vir-a-ser da comunidade da Ilha do
Bananal, não encerrando-a num nome ou numa categoria,como pode querer
a ideia de ilha ou de comunidade.
Esse trânsito, jogo, esse intercâmbio diz de uma comunidade que,
respeitando a característica do conceito de comunidade em Agambem, não
tem nada de endógeno, de fechada em si mesma, de auto-excludente, nem
que se defina apenas a partir de si mesma. Ela é auto-referenciada, mas não
é autóctone. Ele é auto-referencial mas não fechada.
O jogo entre a comunidade da ilha do bananal e a sociedade
envolvente, o entorno ou como queiram chamar as outras pessoas que não
moram na comunidade da Ilha do Bananal, é dado por uma grande
quantidade de eventos que atravessa a vida dos moradores da ilha e que são
parte da população de rua.
4 LINS, Daniel (org.) Nietzsche/Deleuze: arte, resistência. Simpósio Internacional de Filosofia. Fortaleza – CE:
Forense Universitária, 2007.
23
Esses atravessamentos dão conta de uma vivência complexa e que ao
mesmo tempo trazem à tona essas ambiguidades próprias da vida humana
e, sobretudo, de uma vida no front. Estar entre é uma expressão interessante
e que pode ajudar a pensar a ilha como fronteira, uma ilha como uma faixa
limítrofe em que se conjugam tantos afetos diferentes que traçam sobre o
território tantas linhas que também ele deixa de existir como fronteira física
e passa a existir como fronteira que congrega, como fronteira pensada do
ponto de vista de uma linha fortemente marcada na experiência dos
moradores da ilha como moradores de rua, o que encerra uma dificuldade a
ser traçada conceitualmente, mas que dá a pensar a experiência da rua
como fronteira e a fronteira como rua.
A comunidade da Ilha do Bananal mobiliza espaços, temporalidades,
fatos e artefatos sociais e da cultura, de maneira a subverter o desejo de
pólis e consagrar-se ao desejo de Plaza (praça). Esse desejo de praça é desejo
do público, da própria fronteira, do contexto de uma vida limítrofe, entre o
aqui fora e o lá dentro, e sobretudo um entre passante, um entre nômades.
Esse desejo de plaza que é desejo de rua se constitui na
“inexpropriação”. O que é irredutível a essa população, o que lhes é
inexpugnável, é justamente não apenas a contingência da rua, mas o seu
desejo, tanto de amparo como de r-existência – desejo que é complexo e
ambíguo no sentido de que seus riscos configuram-se na mesma medida de
suas possibilidades.
Essa ambiguidade não apenas forja em grande medida o sentido da
comunidade que vem (Agambem); essas potências ensaiam as condições de
possibilidade de uma política da rua, de uma vida comum, no sentido de
uma vida compartilhada, isto é, o mesmo que a utopia de uma comunidade
nascente e de uma comunidade que ainda está vindo.
Para pensar uma pedagogia da rua, uma maneira de ensinar próprio
da rua, é evocativo pensar a vida compartilhada sendo aquela mesma vida
que resiste, que repensa e recria o urbano e portanto auto-organizada numa
nova urbanização, que revira, mexe com os sentidos comuns de habitação,
de habitat e de hábitos e que ao mesmo tempo coloca-se numa Guerra dos
Lugares, como diz Raquel Rolnik, ao abordar o tema.
24
A população em situação de rua possui um capital cultural urbano,
principalmente pela sua imersão no interior da própria dinâmica da cidade,
especificamente na dinâmica do centro da cidade.
Algumas experiências dão conta de entender esse saber da cidade
como um de importância para a própria cidade. É o caso da experiência em
que a população em situação de rua atua como guias turísticos, como
pesquisadores que fazem entrevistas e recolhem dados para um determinado
fim e em experiências como, por exemplo, a de Porto Alegre em que temos o
belo exemplo do jornal Boca do Lixo, um jornal que fala da cidade a partir
das notícias que os moradores de rua contam e que é distribuído como um
jornal que tem igual status de notícia como os jornais feitos por empresas de
comunicação.
Abaixo se encontram algumas fotos da Comunidade Ilha do Bananal,
que certamente conta com esse potencial de criação e que é já um grande
diferencial na paisagem urbana colonizada pela circulação de mercadorias
do sistema-mundo-capitalista.
A comunidade da Ilha do Bananal comporta um território que vai da
Avenida Prainha até o fim do Morro da Luz. São casarões que deveriam ter
sido desapropriados para a construção e passagem do VLT (Veículo Leve
sobre Trilhos), que deveria ter sido implementado para a Copa do Mundo de
Futebol que aconteceu no Brasil em 2014 e em que Cuiabá se tornou uma
das sedes do evento.
25
Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Vista da Comunidade da Ilha do Bananal.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Ilha do Bananal.
26
1.3. Como A Pesquisa Se Desenvolveu
Antes de iniciarmos a descrição do processo de cartografia da rua,
considero fundamental algumas imagens e por isso trago-as abaixo. Elas
proporcionam ver a cidade dando visibilidade à população em situação de
rua.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Maria Taquara, Centro.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Beco do Candeeiro, Centro.
27
Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Praça Ipiranga, Centro.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Praça do Porto.
28
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Boa Esperança.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Boa Esperança.
29
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Avenida do CPA.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Avenida do CPA.
30
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Avenida do CPA.
31
A pesquisa que se inscreve no quadro de uma pesquisa exploratória a
princípio se configurava como uma cartografia da situação de rua em Cuiabá
nomeada inicialmente por “Fronteiras de Vida: Cartografia Política da
Situação de Rua em Cuiabá – Projeto RuAção 2015-2018”.
Percebemos na cartografia a existência de territórios, habitações,
afetos, trajetos e laços sociais no funcionamento de uma política de ruação5;
essa política está imbuída de aspectos da produção da vida social e da
produção de uma cultura que mesmo na subalternidade possui grande
pertença aos movimentos sociais e de luta, pois cada auto-organização
nômade configura no espaço urbano maneiras de enfrentar as políticas mais
hostis. Essas maneiras de sobreviver e as táticas de luta são diferentes, por
exemplo, do Movimento dos Sem Terra, do Movimento dos Sem Teto e de
quaisquer outros movimentos.
A cartografia pensada numa perspectiva de pesquisa exploratória
proporcionou dimensionar o contexto mais amplo da cidade. Neste momento
foram importantes as fotografias, escolha de material bibliográfico de
pesquisa, escolha de lugares para observar, descoberta de quem eram os
moradores de cada região, traçado de quais lugares eram mais frequentados,
quais horários apareciam para pedir, para dormir, para passear.
Esse processo começa em um momento anterior ao curso de
doutorado na educação e durou ao todo em torno de um ano e meio.
Começou como uma pesquisa intuitiva em meados de 2014, e seguiu com
minha aprovação para o doutoramento no ano de 2015, ano este que
coincide com o primeiro ano de disciplinas e aprofundamento teórico e a
5 Ruação possui um sentido original de ruar, isto é, de fazer ruação, que consiste em tirar à volta da planta, folhas, gravetos e pequenos sedimentos para que o fogo não tenha como destruí-la. Na introdução do livro que é o resultado de diversas pesquisas feitas a partir do projeto RuAção assim escreve Solange T. de Lima Guimarães: RuAção: Das epistemologias da rua à Política da rua é o primeiro volume de uma série nominada PalavrAção: pesquisa e vulnerabilidades. Ele integra o conjunto de pesquisas do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e
Educação (GPMSE) e do Grupo de Estudos EducAção em Merleau-Ponty (GEMPO), vinculados ao Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE) – Mestrado e Doutorado – do Instituto de Educação (IE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Esta pesquisa, proposta pela Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, advém do Centro de Referência dos Direitos Humanos de Mato Grosso referido à Secretaria Nacional de Direitos Humanos vinculada ao Gabinete da Presidência da República no Brasil, órgão financiador.
O Centro de Referência em Direitos Humanos, como proponente da pesquisa, é uma unidade da Secretaria de Estado de Direitos Humanos de Mato Grosso, criado pelo Decreto nº 1.094/2011. Dentre suas finalidades, propõe-se: ser um espaço de promoção, defesa, garantia e ampliação dos direitos de grupos e pessoas em condição de vulnerabilidade social, nas quais se incluem as populações em situação de rua; além de ser um espaço dialógico de
articulação política dos movimentos sociais, de produção e difusão de conhecimentos relativos aos direitos humanos e à dimensão política dos cidadãos. RuAção: das epitemologias da rua à política da rua. Organizado por Solange T. L.Guimarães, Claudia Cristina Ferreira Carvalho, Luiz augusto Passos, José Marin. Cuiabá-MT: EdUFMT, Editora Sustentável, 2014. Série PalavrAção.
32
pesquisa cartográfica de teor exploratório. Anterior a estes dois processos,
meu desejo era o de fotografar os moradores e as coisas que levavam, como
na imagem abaixo, de 2011.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2011
33
Foto: Eliete Borges Lopes – 2011 – Morro da Luz.
A pesquisa de campo centrada no estudo exploratório proporcionou
entender o movimento nômade da população em situação de rua em grande
parte da cidade, sendo observadas também outras situações de interlocução
e registro em outros municípios.
Uma pequena observação é a de que o ponto de ônibus no qual me
situo para observar a comunidade da Ilha do Bananal é este da foto acima. E
que me localizo geralmente no banco de cimento onde o senhor de boné
34
vermelho está sentado, ou no banco de metal do ponto de ônibus onde o
rapaz também com boné em tom vermelho está sentado.
A pesquisa de campo contou com o registro sistemático de toda pessoa
em situação de rua que eu encontrasse, sendo que com algumas delas,
havendo a possibilidade de uma conversa informal, esta se dava
independentemente de seu registro através dos instrumentos de gravação em
áudio, ou audiovisual, transcrição ou notas em caderno de campo, sendo
estas reservadas a momentos imediatamente posteriores.
A pesquisa exploratória na qual nos focamos tem seu principal aporte
teórico em Gil (2008)6, no entanto, é preciso salientar que a pesquisa de
campo tem essa característica, mas possui um forte teor de pesquisa
descritiva, e neste sentido se liga à dimensão fenomenológica, embora não
seja trazido todo o aporte teórico da fenomenologia. No trabalho, nossa
filiação de leitura para a vida se encontra na fenomenologia Merleau-
Freireana, uma perspectiva de trabalho que une a filosofia Merleau-
Pontyana e a práxis da pedagogia freireana.
A pesquisa bibliográfica, as conversas com as pessoas que estudam o
assunto através de encontros, reuniões e grupos de trabalho foram uma
constante durante todo o trajeto de pesquisa e a busca por uma leitura que
una Merleau-Ponty e Paulo freire numa teoria merleau-freireana esteve
presente nas publicações que fazem parte da dimensão curricular e em
partes da exigência para o cumprimento dos créditos relativos ao curso de
doutoramento, de maneira que podem ser acessados através dos escritos e
das diversas intervenções em Encontros, Jornadas, Simpósios e Congressos,
porém este âmbito de leitura ainda é feito aqui com a reserva de uma
iniciante.
Os encontros e conversas não puderam ser gravados, todas as pessoas
com quem conversei não se encontram abrigadas, nem contam com
nenhuma proteção, a não ser a da Ilha e por isso mesmo raramente deixam-
se gravar. Essa dificuldade metodológica foi descrita em trabalhos como o de
6 GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
35
Kasper, que integra a bibliografia deste trabalho e que versa sobre as
moradias construídas a partir de caixotes de feira.
A perspectiva de uma singularidade qualquer7 acabou por se
transformar numa importante realidade de leitura, de interpretação e de
descrição. Entendemos que manter a possibilidade do anonimato quer dizer
potencializar os encontros e proteger as pessoas em situação de rua. Revelar
as pessoas que desejam passar sem serem notadas, portanto como
singularidades qualquer, para usar um termo de Agambem também
constitui uma questão ética muito séria do ponto de vista da pesquisa; me
ajudou pensar com Peter Pal Pelbart ao perguntar sobre o sentido do
comum:
“Como desafiar aquelas instâncias que expropriam o comum, e que o transcendentalizaram? É onde Agambem evoca uma resistência vinda, não como antes, de uma classe, um partido, um sindicato, um grupo, uma minoria, mas de uma singularidade qualquer, do qualquer um, como aquele que desafia um tanque de guerra na Praça Tienanmen, que já não se define por sua pertinência a uma identidade específica, seja de um grupo político ou um movimento social. É o que o Estado não pode tolerar a singularidade qualquer que o reusa sem constituir uma réplica espelhada do próprio Estado na figura de uma formação reconhecível. A singularidade qualquer, que não reivindica uma identidade, que não faz valer um liame social, que constitui uma multiplicidade inconstante, como diria Cantor. Singularidades que declinam toda identidade e toda condição de pertinência, mas manifestam seu ser comum – é a condição, diz Agambem, de toda uma política futura. Bento Prado Jr., referindo-se a Deleuze, utilizou uma expressão adequada a uma tal figura: o solitário solidário.”8
Toda esta pesquisa possui uma amplitude de pesquisa exploratória e
de campo realizada entre os meses de agosto de 2014 a dezembro de 2014 e
de março de 2015 a dezembro de 2015; contaram também como observação
e observação participante. A vivência junto da comunidade em situação de
rua da Ilha do Bananal foi proporcionada principalmente pela interlocutora e
moradora de rua Andreia, a Cheirosa, que morreu entre maio e junho de
2016.
7 A singularidade qualquer é um conceito agambenziano, contido em A Comunidade que vem (AGAMBEM, 2013, p.12). 8 PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 39.
36
A pesquisa centra-se, portanto, entre os movimentos de campo, como
pesquisa exploratória reveladora da população em situação de rua e mesmo
como o processo que levou ao descobrimento de uma população inteira
vivendo no interior da Ilha do Bananal e também como pesquisa de
interlocução, de observação e de participação principalmente através das
atividades de andanças e conversas no Centro Norte, de Atividades no Beco
do Candeeiro e da forte interlocução com a moradora de rua Cheirosa.
A pesquisa exploratória proporcionou familiaridade com o problema de
pesquisa, aproximação da população em situação de rua, envolvimento com
a rede de proteção às vulnerabilidades da rua, alem de contato com
materiais de pesquisa que vieram através de pesquisadores e profissionais
que lidam diariamente com o cuidado institucional ou não relativo a estas
populações.
Esse tipo de pesquisa se mescla o que Gil, 2008 chama de pesquisa
descritiva que é uma pesquisa que tem por objetivo descrever as
características, as dimensões identitárias das populações ou fenômenos.
Esta pesquisa, no entanto, possui técnicas padronizadas de coleta de
dados e de observação sistemática, o que nos faz relativizá-la no sentido da
primeira exigência quanto ao levantamento de dados sistemáticos, dado a
complexidade do campo e todas as dificuldades já mencionadas em relação à
população em situação de rua; levantar dados sistemáticos neste sentido se
torna praticamente inviável. No entanto, a pesquisa descritiva se aplica a
este contexto no sentido de descrever exaustivamente à maneira
fenomenológica o fenômeno sentido, visível e invisível.
Também podemos adotar a característica de uma pesquisa explicativa
– conforme Gil (2008) – que é aquele tipo de pesquisa que pensa a
identificação de fatores que contribuem para explicitar uma dada realidade,
que, em suma, agrega elementos da realidade para constituir um todo
conectado e que faz sentido do ponto de vista de uma lógica explicativa da
realidade.
Não nos detemos no período anterior ao curso, mesmo este fazendo
parte do processo de pesquisa; mesmo que seja referido em alguns
momentos, não constituem em si o núcleo de análise. Nele estão contidas as
37
conversas, os encontros informais que ocorreram de maneira não
intencional, o estudo relativo às questões de terra e território que já eram
uma intenção de pesquisa quando entrei para o curso.
Portanto, a existência de uma leitura e embasamento teórico anterior
proporcionou-me um rápido trânsito que foi das questões iniciais da Terra,
pois o meu projeto para o doutorado era sobre o Movimento dos Sem Terra
no assentamento Antônio Conselheiro MT para pensar as questões da terra,
da territorialidade e desterritorialização da população em situação de rua.
Também está contido neste período o trabalho de fotografia e
etnografia urbana realizado a partir do projeto Tão Incrível que Parece
Cuiabá, que tem uma página na rede social e que durante um período
anterior ao processo foi por mim alimentada e também o meu trabalho junto
à população do campo através da Superintendência de Diversidades
Educacionais na Coordenadoria de Educação do Campo da Secretaria de
Estado de Educação de Mato Grosso.
Deste modo, reforço o trajeto anterior ao ingresso no curso de
doutoramento como fundamental para constituir a minha vivência de
pesquisa com as populações em luta por terra e território, o que tornou meu
percurso relativamente mais aprofundado do ponto de vista do conhecimento
das teorias e do ponto de vista da militância política que por sua vez
proporcionou a entrada no campo muito cedo, o que correu em paralelo com
o desenvolvimento e aprofundamento das teorias e processos de pesquisa
exigidos como parte da formação no curso.
No citado acima – o Tão Incrível que Parece Cuiabá – foram realizadas
maratonas fotográficas, entrevistas e visitas a dois bordéis e visitas aos
moradores do bairro Porto, como é o caso da entrevista que fizemos ao Kid,
um antigo boxeador que sofre hoje de uma doença pulmonar e que vive em
condições de pobreza e falta de acesso à saúde.
Aquilo que se convenciona chamar entrevistas, que são conversas
informais, encontros, esbarrões e situações de rua vividas durante o período
de exploração do território, está diluído no trabalho de maneira a dar uma
condição de leitura a um fenômeno complexo e cheio de sobreposições,
reentrâncias, encavalamentos e de muitas ligações até certo ponto
38
emaranhadas e em certa medida aparentemente desconexas. Elas estão
vinculadas a acontecimentos e fazem parte daquilo que se configurou a
descoberta do território e da comunidade da Ilha do Bananal.
A interlocução com a comunidade, e principalmente com a Cheirosa,
não se deu de maneira sistemática nem com registro formal. A não ser os
momentos em que existem registros do entorno da Ilha do Bananal e do seu
interior, nenhum outro momento foi filmado ou gravado em áudio, pois não
recebi nenhuma autorização para tal. A única pessoa de quem eu tinha
autorização expressa para gravar em áudio e vídeo era da Cheirosa.
Também cheguei a receber autorização do Cigano, mas acabei por ficar
com as trocar de ideias e as discussões sobre a rua com ele porque descobri
por ele mesmo que ele possuía uma casa e que, portanto, não morava mais
na rua, permanecendo com uma forte ligação com a rua como seu lugar de
pertencimento, principalmente para estar enquanto trabalha ou se diverte,
mas que não passa mais as noites na rua e que efetivamente não é mais
morador de rua.
Cigano hoje foi deslocado da frente do shopping Pantanal por uma
batida da polícia que retirou todos os vendedores ambulantes do local.
Cigano voltou para o centro onde estende seu pano com artesanato e de
onde saiu há muitos anos por conta da retirada dos hippies da lateral da
igreja matriz em frente à Praça da República, onde a prefeitura da cidade
realocou vendedores que possam pagar por cada metro quadrado que sua
barraca ocupe.
A dificuldade enorme de encontros com a população de rua mesmo no
estudo exploratório inicial, o que culminou numa iconografia de análise que
é apresentada junto desta tese, é sempre uma questão a colocar aspectos de
limites da investigação junto da população em situação de rua por um lado e
a problematizar até que ponto as próprias pesquisas se tornam invasivas e
violentadoras, por outro.
O não consentimento em gravar a fala evidencia muito da maneira
como lidamos com a população em situação de rua e, ao evidenciar isso,
Cheirosa uma vez me disse: “Ô minha linda, mas o que você vai fazer com as
coisas que eu falar?” Eu expliquei tudo que eu pretendia, ela falou que tudo
39
bem, mas que precisava de um dinheirinho; eu achei justo e disse que
pagaria pelo seu trabalho. Neste dia tirei uma foto com a Cheirosa e fui para
casa com a promessa que jamais viria a se realizar.
Essas dimensões da pesquisa foram constantes durante todo o
processo de cartografia e mesmo no momento posterior, quando houve
interação junto à população em situação de rua a partir da Comunidade da
Ilha do Bananal, Beco do Candeeiro e seu entorno, o Centro Norte de
Cuiabá. Ao encontrar-me com a Hippie no Beco do Candeeiro num momento
de interação, ao conversar com ela descobri que eu poderia procurá-la na
Rodoviária; fui até a Rodoviária nos dias que se seguiram ao meu encontro
com a Hippie e não encontrei a Hippie na rodoviária – também não a vi mais.
Esse momento de pesquisa relatado aqui brevemente em que encontro
a Hippie, uma mulher de uns 35 anos, negra e grávida, me deram a certeza
de que eu poderia ter uma outra interlocutora. No entanto, quando fui à
rodoviária, não a encontrei. Desde lá, o mês de junho de 2015, não a
encontro mais. Isso torna a pesquisa implicada em dificuldades ainda
maiores: a de se perder a todo o tempo os seus interlocutores, os “sujeitos de
pesquisa”.
Neste momento, passa a ter importância a ideia contida no título: que
estes momentos são arte-fatos e afetos construídos junto dos moradores de
rua. Este arte-fato, este afeto, incorpora a pesquisa exploratória, a
cartografia, a pesquisa descritiva e analítica e todo o processo de vida que
acompanha o percurso do próprio curso.
O embrião da pesquisa está nos momentos de pesquisa em que
fotografava a população de rua pela cidade. Este momento é a própria
cartografia e marca a tentativa de passagem à interlocução com a população
de rua efetivamente, o que vem a ocorrer num curto período de tempo e que
corresponde ao tempo em que se deu a maior interação com Andréia, a
Cheirosa.
Este momento de pesquisa entre a cartografia e a interação junto da
comunidade da Ilha do Bananal marca a compreensão da existência de uma
auto-organização e maneira como se dão as relações com o entorno, o Beco
do Candeeiro e o Centro Norte.
40
É necessário dizer que essa população, diferentemente de outras
populações, não figura no rol do engajamento tal qual pensam aqueles que
lutam por direitos e que, por isso, sua legitimidade é muitas vezes
contestada, pois há também para todo movimento uma forma da
organização a ele característico e que precisa ser olhado, visto, notado. É
muito comum pensar que para se ter organização se precisa líderes,
bandeiras, palavras de ordem, pautas, discursos e maneiras de se fazer
ouvir.
Essa população neste sentido mais clássico da organização dos
movimentos sociais muitas vezes carece desses aspectos da luta. Isto os
coloca muitas vezes ainda mais distantes dos movimentos por direitos; mas,
de maneira igualmente inteligente, também por esse motivo não se deixam
governar, nem se deixam cooptar. Mas há que se ver o outro aspecto: que é
justamente por isso que muitas vezes são tidas pelo poder como intratáveis,
incuráveis, ou como libertinos misantropos incorrigíveis.
Para efeitos deste trabalho, investimos na ideia de comunidade. Ao
sentido mais usual do termo, contrapusemos outras ideias, principalmente
as de Agambem, quanto ao vir-a-ser do termo, que designa pessoas em uma
dada condição por comunidade.
Pensamos com ele que a comunidade é um conceito interessante se
leva em conta dimensões como a de uma comunidade de jogo, como diz Peter
Pal Pelbart ao falar sobre o “Bloom” – termo da língua francesa para designar
o que seria para um tipo específico de pessoa. “À vida sem forma do homem
comum, às condições do niilismo, o grupo de Tiqqun9 deu o nome de
Bloom.”10
“Recentemente uma publicação anônima inspirada em Agambem contrapunha à comunidade terrível que se anuncia por toda parte, feita de vigilância recíproca e frivolidade, uma comunidade de jogo. Uma tal comunidade baseia-se numa nova arte das distâncias, no espaço de jogo entre desertores e não elide à dispersão, o exílio, a separação, mas assume a seu modo, mesmo nas condições mais adversas do niilismo, mesmo nesta vida sem forma do homem comum, aquele que perdeu a experiência, e com ela a comunidade, mas a comunidade que nunca houve, como
9 Revista Tiqqun. Paris, 2001 10 Peter Pal Pelbart. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
41
disse Nancy, pois esta comunidade que ele supostamente perdeu é aquela que nunca existiu, a não ser sob as formas alienadas das pertinências, de classe, de nação, de meio, recusando sempre aquilo que a comunidade teria de mais próprio, a saber, a assunção da separação, da exposição e da finitude, como o havia postulado Bataille.11
Aqui alcançamos a afirmação da tese, a da existência de uma
comunidade de rua. Esta existência é ambígua, pois a ideia de comunidade
como a entendemos e como utilizamos neste escrito possui o sentido do
comum como aquele que não necessariamente é o sentido de um
agrupamento de pessoas que têm ideias e ideais em comum.
A dimensão que configura a comunidade é ao mesmo tempo a da sua
ligação organizada entre si e com a sociedade envolvente como um todo; não
é por acaso que pensamos numa ilha que se situa no centro da cidade de
Cuiabá; é porque esta ilha, esta comunidade no seio do urbano, rejeita a
condição de habitação do urbano e está para a cidade como a cidade está
para si, de maneira a não desertar do território, mas ao mesmo tempo fazer
o território diferir de si mesmo.
Dessa diferença, dessa diferenciação que a comunidade faz emergir,
surge o movimento da comunidade e os movimentos em torno desta, isto é, a
organização de uma rede por parte do Estado e da sociedade civil.
Existem vários movimentos articulados em torno dos direitos da
população em situação de rua – eu mesma faço parte dele – e o que está em
questão é justamente: como lidar com essas ambiguidades? Como viver-com
sem violentar o sujeito coletivo que ao mesmo tempo se nega ao coletivismo?
Como pensar a individualidade, que no interior da unidade chamada
população de rua, não se deixa aprisionar por nenhuma rede social e
nenhum discurso sobre si mesmo.
Poderíamos pensar numa espécie de cidadania daquele cidadão que,
não abrindo mão do urbano, o faz tecer-se à sua própria subjetividade e não
busca se enquadrar no urbano para nele permanecer, mas torcendo o
sentido posto de urbano?
11 Idem.
42
É certo que a presença dos sujeitos coletivos e solitários ao mesmo
tempo indica necessidades, mas como prevê-las no escopo das políticas
públicas sem tornar o morador de rua um tipo normativo?
Como entender que esse cidadão da cidade, com toda sua
redundância, leva à realidade o direito de estar no mundo e de viver onde se
quiser nele? São cidadãos que rejeitam a ideia da necessidade de uma
propriedade para se habitar, pois deseja habitar o “lugar qualquer”. Habitar
o público e o público. Tornando o público efetivamente público pelo seu uso,
esse morador “qualquer” é também uma forma da nova comunidade que
vem. E esta é uma questão ética, entender a possibilidade de que não haja
um destino traçado e que não haja uma via de regra para a própria vida é
pensar a possibilidade mesma da ética, como nos diz Agambem12:
“O fato de onde deve partir todo o discurso sobre a ética é o de que o homem não é nem terá de ser ou de realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico. É a única razão por que algo como uma ética pode existir: pois é evidente que se o homem fosse ou tivesse de ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não existiria nenhuma experiência ética possível – haveria apenas deveres a realizar”.
O que nos mostra Agambem é que as tentativas de controle das
populações, e especialmente da população em situação de rua, revela
questões éticas profundas que dizem respeito ao controle da própria
existência das pessoas no sentido de uma destinação da vida nua, isto é, da
impossibilidade de liberdade frente ao mundo determinado pela condição de
vida a rua.
Controlar essas populações é sempre intento de políticas de Estado ou
de governo que investem na ideia de que o controle sobre suas vidas lega à
sociedade um estatuto de social, uma ideia de coerência e de eficácia na
manutenção da vida. Isso pode ser posto em dúvida por todas as pessoas
que permanecem na rua a despeito da tentativa de controle. Também aqui se
encontra um ponto ambíguo para se pensar, que leva a um questionamento:
12 AGAMBEM, Giorgio. A Comunidade que vem. 1ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, 1993. p. 38.
43
o que seria necessário para ter uma vida digna e ao mesmo tempo se
conservar o direito de viver na rua? Como se poderia manter a vida como
potencia?
Agambem em seu livro Potencia do Pensamento, irá dizer que o
potente pode ser aquilo no que há falta, assim, recorre à tradição filosófica
para explicar que naquilo a que falta existe também uma potência, como o
músico que pode escolher tocar e escolher não tocar, sendo que sua potência
ao escolher não tocar está justamente no fato de que sabe tocar e escolhe
não tocar. Essa decisão também pode ser vista naquele que escolhe não
escrever, como Bartebly, o personagem de Herman Melville, que sendo um
escriturário, decide não mais escrever: a recusa à escrita é uma potência
mais potente que a própria escrita, dado que entre escrever e condenar ele
prefere não escrever e assim a potência reside justamente na negação, na
negação enquanto posicionamento ético, na negação enquanto negação da
automativa da escrita e na implicação do sujeito em seu fazer, questionado
de dentro pela liberdade em dizer não.
Aqui também existe a mesma potência da organização que rejeita
qualquer organização exógena ficando a cargo da auto-organização.
Uma das formas de organização mais recorrentes na organização da
população em situação de rua é a organização a partir de cooperativas de
catadores de materiais recicláveis e das redes de apoio que se formam em
torno da população em situação de rua, ambas com suas potencias e suas
limitações. São as práticas que mais têm sido implementadas
contemporaneamente em nosso país e são as de organização em torno da
população de rua. As práticas de rede, de formação de redes de atendimento
na cidade de São Paulo, por exemplo, são amplamente descritas no livro:
Corpos Urbanos Errantes de Simone Miziara Frangela 2009.
Outros escritos como os Relatórios Nacionais13, o Censo Nacional14,
Relatórios sobre Violação dos Direitos Humanos durante megaeventos15 dão
13 PARESCHI, A. C. C.; ENGEL, C. L.; BAPTISTA, G. C. Direitos Humanos, grupos vulneráveis e segurança pública (Coleção pensando a segurança pública, volume 6). Brasília – DF: Ministério da Justiça e Cidadania. Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2016. Disponível em http://www.justica.gov.br/sua-
seguranca/seguranca-publica/analise-e-pesquisa/download/pensando/pensando-a-seguranca-publica_vol-6.pdf (Acessado em 08/11/2006). 14 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília – DP: [s.n], 2008. Disponível em:
44
conta de falar sobre a rede em torno da população em situação de rua e as
violações em relação a esta população. As discussões bem como os Fóruns
que acontecem nas esferas Municipais, Estaduais e Nacionais também
figuraram uma dimensão importante.
Muitos projetos de vida comunitária e de engajamento na vida social
levam em conta o importante fato de que as pessoas que vivem em condição
de rua não necessariamente desejam outra condição, mas desejam por outro
lado que a condição de rua não se lhes imponha como consequência trágica
de sua alternativa de vida, por exemplo, a privação, a interdição, a prisão, a
violência e a morte.
A violência decorrente da intolerância quanto à legitimidade da
população da situação de rua em habitar a rua gera uma condição
absolutamente adversa e hostil pra quem vive na rua, mas entre a
diminuição da potência de vida e sua afirmação, a população em situação de
rua acaba por criar-se na afirmação, gerando novas potências mesmo que
pela falta, na falta, na indiferença e na quase impossibilidade. O
problemático está muitas vezes em ter de colocar a própria vida em risco
para poder gerar essa potencia de vida, o que torna a condição de rua
trágica. Morar na rua não é crime, mas no Brasil tem sido criminalizado
pelas políticas de higienização, de segurança e toda a política de gestão do
espaço público.
Toda a cartografia do nosso trabalho desembocou na circunscrição de
um território mais imediato que envolve a Ilha do Bananal, e levou-nos a
perceber a população de rua dispersa por toda a cidade e ao mesmo tempo
concentrada em algumas áreas formando pequenas comunidades ou ilhas,
como a Ilha do Bananal.
A existência da ilha impõe a existência de um território; o território é
poroso, cheio de rugosidades e essas rugosidades, para usar uma expressão
deleuzeana, criam a existência da habitação como um dado do território, um
http://www.criancanaoederua.org.br/pdf/Pesquisa%20Nacional%20Sobre%20a%20Popula%C3%A7%C3%A3o%20
em%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Rua.pdf (Acessado em 07/11/2016). 15 MEGAEVENTOS e violações de direitos humanos no Brasil: Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa. [S.l.: s.n., 20--]. Disponível em formato PDF em: http://www.apublica.org/wp-content/uploads/2012/01/DossieViolacoesCopa.pdf
45
estriamento do território, grosso modo colocado aqui, o território da ilha não
e liso, é estriado, é cheio de reentrâncias, de diferenças.
Abaixo selecionei do amplo material recolhido do campo algumas
imagens que dão conta de mostrar duas dimensões da ilha, o lado de dentro
e o lado de fora, que contextualizam a vida no seu interior, o patrimônio
arquitetônico e o arte-fatos presentes em sua configuração enquanto
território de rua – os graffitis que estão espalhados por toda a sua extensão e
a figura de um homem sentado retratado no interior da Ilha. Há também o
quintal e a parte interna da construção, que dão a dimensão de uma
habitação convencional e que, ao mesmo tempo, em seus novos usos pela
população em situação de rua, se tornam também não convencionais.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Interior da Ilha do Bananal.
46
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Interior da Ilha do Bananal.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Exterior da Ilha do Bananal.
47
F
o
t
o
:
E
l
i
e
t
e
B
o
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Exterior da Ilha do Bananal.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Graffiti Ilha do Bananal.
48
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Interior da Ilha do Bananal.
49
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Interior da Ilha do Bananal.
A adaptação de uma carcaça de ventilador a um pé de cadeira tornou o
objeto uma inteligente solução ao calor que em Cuiabá é intenso
praticamente todo o ano. Durante um curto período em que observei a
comunidade a noite, não consegui observar luzes acesas em seu interior,
sendo que sua iluminação vem dos postes de iluminação pública que nas
ruas do centro nesta região é bem intensa. Mesmo assim o ventilador indica
a existência de energia elétrica, ao menos na parte de baixo da construção, o
que também pode denotar uma opção por não se ter luz no interior dos
casarões, ou mesmo que talvez estas realmente não funcionem e devam
também permanecer dessa maneira.
O ventilador – que é como um ready-made, pois teve sua função
deslocada – cumpre ao mesmo tempo com a função de utilidade, também
como um arte-fato: uma invenção que cumpre com um misto de
intencionalidades, a de sua utilidade e de sua aparição enquanto um fato da
cultura, portanto um arte-fato no sentido que estamos nomeando.
50
Também pode se configurar como uma territorialização no sentido de uma
marca do território, uma marca de que este território é habitado e que além
de habitado é um espaço em que se pensa alternativas para a sobrevivência.
“O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções que nele se exercem são produtos da territorialização.” (DELEUZE & GUATTARI, 1997)
O território da Ilha do Bananal possui destes afetos, comunga desses
objetos arte-fatos.
A combinação é uma das táticas que se manifestam em diversas
culturas de rua. A combinação pode se mostrar também nos graffitis das
paredes do prédio onde se situa a população da comunidade Ilha do
Bananal, onde elementos da cultura pop se misturam a elementos da
cultura de rua e ícones consagrados tornam-se importantes indicadores de
leituras críticas.
Numa das paredes do casarão podemos ver, por exemplo, um
barquinho. O barquinho, representando o que é frágil em meio ao caos e
destruição do monumento, cria uma atmosfera em que a cultura de rua,
com seus artistas, poetas e moradores, configura um único movimento cheio
de re-entrâncias e desdobramentos de uns sobre os outros.
Um outro elemento que aparece também é um palhaço triste, que
situa-se na beira de uma janela que está ruindo. Este desenho coloca este
ser, que é um palhaço, aqui podendo ser aquele que é ludibriado, enganado
ou surrupiado e por isso está triste, em crise, ruindo junto com o casarão.
Além desses personagens, outros feitos por máscaras estão no interior e no
exterior do casarão, formando uma espécie de alegoria fantasmagórica que
representa os mesmos fantasmas que sobem com a fumaça do crack, dos
sonhos esvoaçantes dos moradores com seus fogões improvisados de latas,
com a fumaça que sobe do lixo que queimam, enfim... figurando como seus
próprios demônios e anjos que circulam como velhos conhecidos dos
moradores da Ilha.
51
Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Interior da Ilha do Bananal.
52
1.4. Cartografia e Descrição
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Andréia, a Cheirosa.
Ao mencionarmos, qualquer que seja o lugar de onde estamos falando,
da população em situação de rua ou dos “moradores de rua”, estamos já nos
referindo a uma realidade que possui um quê de impalpável, imaterial e
incorpóreo.
Com isso não estou negando a dura realidade dessa população, suas
dificuldades e as condições de possibilidade de Vida que ela representa; o
que digo é que estaremos falando, autorizadamente ou não, num alto grau
de generalidade a respeito de uma população heterogênea e ingovernável.
53
Ingovernável no sentido de que, como nômades, passam ao largo das
convenções sociais e ao mesmo tempo estão no coração da vida urbana, na
constituição mesma das comunidades nascentes.
A percepção de que o nomadismo é uma tática fundamental de vida
tem uma tônica forte em meu trabalho, principalmente em função de uma
série de desencontros e de encontros fortuitos, como é o caso do trabalho
junto da população em situação de rua desenvolvido aqui.
A pesquisa, que começa por uma cartografia da rua, relativa ao
primeiro ano do curso de doutorado, em que me dediquei a descobrir cada
vez mais as pessoas em situação de rua na cidade de Cuiabá, me mostrou
que muitos dos meus encontros provavelmente não se repetiriam, dado à
transitividade do contato e da não permanência das pessoas nos mesmos
locais.
Esse contato fugidio passou a ser problematizado do ponto de vista da
pesquisa como uma característica do trabalho com a população em situação
de rua.
Pensando essa dimensão da conversa informal, dos contatos não
planejados com essas pessoas, descobri que também minha pesquisa teria
de construir-se em meio à presença-ausência dessas pessoas; que a
abordagem não seria uma simples abordagem, que mesmo encontrar as
pessoas configurava um obstáculo a ser considerado na pesquisa.
Tendo em vista o percurso absolutamente imprevisível dos moradores
de rua, comecei a perceber que não poderia me fixar em algumas pessoas, e
que seria difícil, apesar de compreender a existência de territórios e rotas
afetivas, encontrá-las novamente ou, quando de um novo encontro, retomar
um encontro já acontecido. Por outro lado, como pesquisadora, não poderia
– nem deveria – me permitir minar a estratégia da vida nômade.
Não percorrer os mesmos lugares, não se deixar aprisionar por lugares
ou pessoas é uma tática de vida e de sobrevivência.
Aprendi com a população em situação de rua que cada dia é um dia, e
que não se deve esperar continuidade, ou ao menos não se deve nutrir
expectativas tal qual aquelas às quais estamos adaptados, a dos encontros
pedagógicos ou dos processos educativos no sentido mais formal deles.
54
As imagens que aparecem aqui quando falo da cartografia são da
Cheirosa, porque através da Cartografia foi que a conheci.
Ela já habitava o Centro da cidade e eu, no projeto cartográfico, jogava
as imagens na rede social. Ao jogar a imagem da Cheirosa, a quem eu ainda
não conhecia nem pelo apelido, uma amiga e colaboradora, filha de uma
grande artista chamado Clovis Irigaray, a Maria Hirigaray, falou comigo
dizendo que era tão bom saber da Cheirosa – o que logo me interessou.
Ela me contou um pouco da vida da Cheirosa, pois a conhecia antes
dela ir para a rua e nela morrer. Contou-me que Cheirosa fazia artesanato e
que tinha um pano estendido na mesma lateral da igreja Matriz, onde os
hippies foram retirados pela prefeitura, e que a partir do momento em que
passou a não ter mais lugar para vender os seus “trampos” passou a viver
pelo centro, perambulando e comendo do que pedia.
55
Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Andréia, a Cheirosa.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Andréia, a Cheirosa.
56
1.5. Características da Pesquisa
Percebo que qualquer referência a algum tipo de aprisionamento, seja
a palavras ou mesmo a um compromisso, a um novo encontro, qualquer que
seja a modalidade da socialização – planejada ou simulada como fortuita –
na maioria das vezes não dá resultados.
A complexidade da aproximação, da escuta ou da interação com a
população em situação de rua me levou a abrir mão de máquinas
fotográficas, gravadores, blocos de anotações ou qualquer coisa que me
identificasse como uma pesquisadora e passei a agradar-me dos encontros
totalmente fortuitos, sem pauta, sem nexo aparente e sem mesmo registro
formal.
Nem mesmo o nome é algo a ser dito. Quando reconheci Andréia numa
tarde quente em Cuiabá e a chamei pelo nome perto de outras pessoas ela
me repreendeu, disse que “num colava mais em mim” e que se eu quisesse
falar com que era pra chama-la de Cheirosa.
Comecei a entender que a interação de pessoa a pessoa, excluída a
“função social”, era a única alternativa para que eu pudesse ter uma
confiabilidade mínima de quem falava a mim, e que esta seria na verdade a
possibilidade mais potente de um encontro.
O desejo de morar na rua não é um desejo simples: ele releva uma
liberdade radical que para se deixar tocar é preciso se colocar de igual pra
igual, descer da condição de humanidade outra à qual você como
pesquisadora pode ser considerada segunda a ótica da rua; descer do
pedestal quer dizer falar com e ser toda ouvidos, entender que existe sim a
ideia de que nós somos nós e eles são os outros.
Nós e eles. Essa expressão fica clara na relação com os moradores de
rua. Nós somos aqueles aos quais eles aderem às regras apenas como uso
descartável e muito liquefeito, que usada essa regra uma vez ela se torna
como a própria vida na rua em toda sua intensidade de não repetição. Não
me reconhecer é típico. Fingir que não me viu, fingir que não se lembra, eu
também com isso jogo o jogo, sabendo que são eles quem dá as cartas; isso é
legítimo.
57
Entendo que jogam o tempo todo com os nossos pressupostos e
entendimentos sobre o mundo, que estão prontos a desconstruí-los com a
legitimidade de quem conhece tanto uma quanto a “outra vida” e que há, em
grande medida, muitas contingências, mas também há decisão – decisão
quanto ao modo de vida a se levar, decisão quanto ao que se escolhe.
Algumas dimensões importantes apareceram durante a cartografia e
serão apenas mencionados e demonstrados através de imagens escolhidas a
partir da cartografia, quer sejam: a presença do animal junto ao morador de
rua, a completa destituição de bens de consumo.
Foto e montagem: Eliete Borges Lopes – 2014-2015 – Cuiabá.
58
1.6. A Pesquisa e Suas Interfaces
Foto: Eliete Borges Lopes – Julho de 2016 – Rio de Janeiro.
Ao participar do Fórum Permanente da População em Situação de Rua
do Estado do Rio de Janeiro, um debate forte se deu em torno da rede de
assistência à pessoa em situação de rua e uma das preocupações é com uma
espécie de triagem – essa triagem é também uma espécie de rastreamento
em que a ideia de atender ao morador e tão logo identificada sua “origem”,
“recambiar” o paciente para sua unidade é o pressuposto da existência da
rede.
Esta estratégia pode ser justamente um dos principais motivos pelo
qual o morador de rua sai ou se ausenta do sistema, dado que mina sua
principal tática de sobrevivência, o não estar em lugar algum e ao mesmo
tempo em todo lugar como cidadão radical, como representante de uma
cidadania radical. Ao “recambiar” - palavra horrorosa - o morador para sua
59
“origem” o sistema o devolve ao próprio sistema ao qual ele está fugindo ou
fazendo fugir. O sistema de vida nômade consiste em fazer os problemas de
sobrevivência fugirem conforme se faça a vida seguir em outra e outra e
outra direção e por isso a andarilhagem como combate e como a saúde
assume uma função profilática.
Nada fere mais de morte um morador que problemas em seus pés;
notem que este problema de saúde também tende a ser recorrente, como
trabalhadores do campo que tem problemas com a não impressão de suas
digitais por conta do trabalho com as mãos que lhes arranca as marcas. O
cidadão radical, o morador de rua, pela sua necessidade de saúde, tende a
ter problemas nos pés dadas as suas longas caminhadas e sua condição
difícil de acesso à saúde social.
A rede de atendimento merece uma atenção especial no trabalho de
Simone Miziara Frangella. Da página 83 a 104 a autora aborda a questão,
falando das minúcias do atendimento, principalmente em albergues na
cidade de São Paulo.
Insistimos na tese do nomadismo como tática, e explicitamos que a
tática de deixar o território é tão importante quanto uma política de auto-
organização, mas que à diferença de um estabelecimento sedentário, um
morador pode durante muitos anos e, dependendo de seu objetivo, ter como
tática o constante caminhar.
Em Brasília, à época em que se tinha intensificado o policiamento,
ouvi de um morador de rua exatamente este relato: o de que era importante
sempre circular porque os canas estavam em todo lugar e uma maneira era
confundi-los, pois eles não conseguiam saber quem era quem com tanta
gente (moradora de rua) em circulação. Além disso, certa camuflagem
também se fazia necessária: andar parecendo transeunte normal pelas ruas
para ser identificado como qualquer trabalhador, não carregar suas coisas
em sacos de lixo, não usar gorro, não usar havaianas se possível, carregar o
mínimo como se fosse uma mochila de quem passa o dia fora. E como
guardar as suas coisas? Como dormir? Eu quis saber; ele disse que tem de
ficar “mocando” tudo, escondendo tudo.
60
1.7. Leituras (Compreensão, Interpretação e Descrição)
Para pensar em termos teóricos a construção do arcabouço de
pesquisa, as relações entre as teorias e a maneira como abordar a temática
proposta além das leituras fundantes no interior do grupo de pesquisa de
Movimentos Sociais (Seminário Avançado I - Movimentos Sociais, Política e
Educação Popular, Movimentos Sociais e Educação I e II), foi necessário o
cumprimento de uma série de disciplinas como Teorias e Práticas em
Pesquisa na Educação I, Seminário de Pesquisa em Educação I, Teorias e
Práticas em Pesquisa na Educação II, Teorias e Práticas em Pesquisa na
Educação II.
Além do cumprimento com as disciplinas programadas, ainda
realizamos dois cursos para discutir a Fenomenologia como aporte teórico-
metodológico, os cursos de Seminário Temático e um curso de Extensão com
carga horária de 60 horas sobre o tema “Educação e Fenomenologia:
Paradigma da Esferecidade versus Homogeneização”, organizado e
ministrado no interior do grupo de pesquisa. Além desse aprofundamento,
busquei em outro programa de pós graduação – o ECCO, Programa de Pós
Graduação em Estudos da Cultura – uma disciplina sobre Walter Benjamim
que se intitulou “Tópicos Especiais em Epistemes Contemporâneas:
Experiência, Mediação pelas Novas Tecnologias” com o professor Bernard
Fitcher, que esteve conosco num intercambio de uma semana, bem como
trabalhos de leituras e aprofundamentos junto dos programas de pós
graduação oferecidos pela UFMT.
Também realizei, como parte integrante de minha formação, dois
estágios docência no curso de Pedagogia, o primeiro foi numa disciplina de
Literatura Infantil e o segundo na disciplina de Fundamentos e Metodologia
da Linguagem II; ambas integram a dimensão dos estudos relativos à minha
formação continuada em docência e assim foram pensados para darem
conta da minha atualização profissional voltada para o magistério das séries
iniciais, onde se configura meu lócus de atuação profissional como
professora da Rede Estadual de Ensino.
61
Além desses aspectos, fiz uma disciplina optativa com carga horária de
60 horas que me proporcionou dimensionar a disciplina de didática não
apenas para o ensino fundamental, como é o caso de minha formação inicial,
mas agora para a Didática no Ensino Superior, no qual tenho experiência
apenas em instituições privadas.
Todas essas atividade somam-se a publicações que são resultantes dos
períodos de trabalho com a cartografia da rua e os momentos de interação
com a Comunidade da Ilha do Bananal, de maneira que estão aqui sendo
brevemente contextualizadas por fazerem parte desse escrito como a base
fundamental que sustenta a discussão mesma e para contextualizar uma
trajetória de leitura que neste momento está presente no trabalho mas que,
por desejar criar um estilo próprio, abandonou por vezes as citações, a
maneira mais clássica de divisão das partes do trabalho e uma série de
normativas que durante muitos anos se julgou necessárias à construção dos
trabalhos acadêmicos, mas que tem sido flexibilizadas pela própria academia
muitas vezes por entender que uma voz própria precisa ser pensada e
atualizada na dimensão dos escritos autorais.
A tese apresenta um estudo da cultura material, das dimensões de
vida cotidiana dos moradores de rua na cidade de Cuiabá, mais
especificamente na Ilha do Bananal. Aposta no ponto de vista do habitar
enquanto modo de ocupação do espaço, como criação de territórios e de
tecnologias, de modos de ser e de fazer, de modos novos de pensar o urbano.
Também desejou contar a história de vida de uma moradora de rua – a
Cheirosa. No entanto a pesquisa neste ponto foi interrompida por sua morte,
o que levou também ao seu término e encerrou a possibilidade de pesquisa
em uma pesquisa exploratória. Como projeção de continuidade podemos
pensar a pesquisa se fechando neste momento como um mapeamento da
comunidade em situação de rua, a descoberta dos arte-fatos e análise
preliminar de alguns desse arte-fatos, a marca forte da dimensão do afeto,
como afeto ao urbano, manifestado por um morador de rua que quando em
conversa comigo me disse que morar no Centro é a melhor coisa que existe.
Ele me perguntou: “Onde a senhora mora?” Eu disse: no Coxipó. E ele
respondeu: “Pois é... eu moro no Centro, e eu não saio daqui, daqui eu só
62
vou morto, aqui eu tenho tudo que eu preciso e eu não preciso de muita
coisa não, a senhora bem vê!”
Esse pequeno trecho que trago aqui serve para circunscrever um
pouco do que significa o afeto que os moradores tem pelo Centro. E também
serve para pensar as perspectivas de continuidade de um mapa afetivo a
partir dos moradores de rua. Pensar quais são os melhores lugares segundo
sua ótica, o que cada lugar apresenta como facilidade e conforto... Enfim...
pensar questões do ambiente e do social que se entrelaçam no fenômeno
morar na rua.
63
1.8. A Dimensão Da Fenomenologia Do Trabalho
Mesmo que de maneira bastante sintética, é importante mencionar
que o trabalho teve, durante o curso, a sua orientação voltada para a
concepção fenomenológica da pesquisa enquanto escopo teórico-
metodológico. Rapidamente poderíamos, numa breve contextualização, dizer
que o fenômeno é uma inscrição kantiana que em sua tradição enquanto
conceito filosófico tem na pergunta de Kant: o que é possível conhecer? Uma
de suas fundações. Kant se pergunta isso porque está absolutamente
abalado pela leitura que fez de Hume.
Hume que é um cético moderno diz: “Não podemos conhecer.” São os
hábitos mais a memória que criam os nexos entre causa e efeito, portanto, o
conhecimento são hábitos e memória conjugando nexos arbitrários, ou seja,
Causalidade, que por sua vez é uma importante questão para a filosofia na
Antiguidade e continuará ainda após Aristóteles.
O que se investigava antes de Kant era o Ser – ou o conhecer – desde
Parmênides, que identificava o Ser com o pensamento passando por Platão,
que acreditava que o mundo fenomênico, como nos referimos
modernamente, tinha sua essência no mundo das ideias até chegarmos ao
filósofo que é uma espécie de síntese dessas ideias: Aristóteles.
Aristóteles diz que a causalidade – ou a causa última – das coisas é
Deus, o primeiro motor imóvel. Aristóteles é síntese no sentido de que não
toma de todo nem as concepções de Parmênides quanto à imobilidade do Ser
nem as de Platão quanto ao mundo das essências imutáveis. Assim,
Aristóteles distingue substância de essência de acidente; ato de potência e
forma de matéria, como maneira de conciliar a imutabilidade e a mudança, o
acidental e o essencial e ainda o individual e o universal.
Durante a Idade Média – século 11 e 12 – ainda havia muita polêmica
em relação ao objeto, tanto que terei que resumidamente apenas mencionar
as três correntes mais conhecidas, sem entrar em pormenores; são elas: 1) o
realismo - que defendia que as coisas (ou o universal) têm realidade objetiva
- retomada de Platão; 2) Thomas de Aquino defendia um realismo moderado
que dizia que os universais só existem formalmente no espírito, no entanto
64
eles têm fundamento nas coisas e 3) o nominalismo - que dizia que o
universal é conteúdo de nossa mente expresso em nome, ou seja, o universal
é palavra sem realidade que a corresponda.
A revolução científica, o iluminismo do século 17 e o rompimento com
o aristotelismo põem em evidência a questão que é a do método. Temos
então duas correntes opostas: o racionalismo e o empirismo. Para a primeira
(René Descartes) a dúvida é uma dúvida do sujeito, obviamente; para a
segunda (John Locke), através da experiência é que apreendemos os
materiais e a razão.
Kant entre o racionalismo e o empirismo tem uma postura Crítica no
sentido de um certo rompimento com ambos; e pela influência de Hume, que
é quem diz que conhecemos apenas os fenômenos – o que aparece no tempo
e no espaço – que Kant falará em sua arquitetura filosófica como sendo
formas do entendimento.
Podemos dizer que na história da filosofia existe um a.K e um d.K, isso
para dizer que Kant assinala uma grande ruptura. É ele quem inverte a
busca pelo objeto e vai ao sujeito. Kant centraliza na razão a priori, que é por
assim dizer, a “estrutura inata” que constrói a ordem do universo, a questão
do conhecimento. Assim, em sua teoria estética ele diz que sei o que é o belo
antes porque o sinto do que por uma propriedade da coisa em si. Um quadro
que admiro em si não é belo. Belo é uma propriedade do sujeito e não a coisa
em si; o quadro do exemplo. Com isso Kant faz desmoronar o legado do
“conhecer da coisa em si”. Dizendo aproximada e resumidamente que o
conhecimento se dá no sujeito, isto é, nada mais próprio que: o fenômeno se
dá no sujeito.
Após Kant, quem levará a “bandeira do fenômeno” será Hegel.
Discordante do idealismo transcendental kantiano, Hegel dirá, grosso modo,
que se essa propriedade da qual Kant fala fosse de fato uma propriedade do
humano nada teria impedido Aristóteles, por exemplo, de já tê-lo dito de
forma que o que nos aparece – o fenômeno – está não numa propriedade do
humano, mas no espírito absoluto ou na razão absoluta, que Hegel chama
de História. Os fenômenos aparecem através da história e dialeticamente. A
65
dialética é o método que vai ter uma importância enorme para Marx,
Feuerbach e Engel.
Depois de Hegel, a ideia de fenômeno fica esquecida. Isto porque é um
momento de efervescência dos regimes democráticos e da urgência das
questões democráticas e socialistas, sendo da filosofia de Hegel resgatada
apenas o método dialético (Marx, Feuerbache e Engel).
Só no começo do século 20 o fenômeno tem retomada na proposta de
Husserl.
Ele é quem introduz no lugar da palavra razão a consciência, que é
então o sentido de um Ser.
Surgem as FENOMENOLOGIAS:
Influência direta de Bretano, Husserl, um filósofo matemático, através
da Lógica estabelece de uma vez por todas o “status” do fenômeno. A partir
dele, o estudo do fenômeno é “fenomenologia”.
A fenomenologia em Husserl tem seu começo ligado à psicologia
descritiva e mais tarde se desdobrará num método próprio.
A partir do trabalho de 1913 (Ideas), Husserl desenvolve então a
“fundação” da fenomenologia, primeiramente através do método epoché –
supensão do juízo, para os gregos – que para Husserl vem a ser o “entre
parênteses”, que por sua vez são proposições que advém da lida com os
fenômenos para vê-los em sua essência.
Para Husserl a consciência está nas coisas, quer dizer: no fluxo que
me lança ao objeto e o fluxo que este faz até mim, assim numa construção
absolutamente sintética: “quando olho para este copo minha consciência se
dá, e entre o olhar para o copo e o que me sugere o copo enquanto a sua
volta para mim e que se dá o fenômeno”.
Em Husserl a consciência é intencional. É a partir de sua filosofia que
surgem as diversas correntes fenomenológicas: a da Percepção de Merleau-
Ponty, a Hermenêutica de Paul Ricouer, com ênfase na interpretação, o
Existencialismo de Sartre e a “ontologia existencialista” de Heidegger.
A postura existencialista de Sartre em contraposição à tendência
universalista refere-se aos problemas particulares e à situação do indivíduo
66
em relação ao mundo. Sua filosofia brota de uma época conturbada e seu
sentido em parte é derivado disso.
Sartre foi influenciado por Heidegger – seus primeiros trabalhos
seguem a corrente fenomenológica. É de 1943 a obra o Ser e o Nada, onde a
ideia de consciência é identificada com o Nada. Esta ideia é uma distinção de
base entre para si e em si, que são ideias retiradas da filosofia
heideggeriana. As categorias “o ser-para-si” e o “ser-em-si” contém uma
repercussão hegeliana.
O ser-para-si – conceito hegeliano – é o mesmo que consciência em
Sartre e, em Heidegger, é o Daisein, “consciência de si mesmo”.
A consciência em Sartre é um nada no sentido de não ter essência. O
absurdo do mundo é sua função de contingência, e frente a isto o homem se
vê condenado a escolher, ou seja, condenado à liberdade.
Merleu-Ponty não diferencia o Ser do outro, do mundo. É como se eu
fosse o próprio tecido do tempo, as tramas das situações que vivi e o
entendimento ou a percepção sobre o que internalizei que me constituem,
isto é: sou constituído pelo meu tempo, porém sou também uma
individualidade, sou fruto das minhas relações.
Para Merleau-Ponty a realidade é a existência do mundo material
(cultural e espiritual) e nossa existência nele. Sua fenomenologia, que é
tanto método como fundamento teórico, trata basicamente do “texto”.
Entendamos, todavia, que o texto ultrapassa o que está escrito para o que
está representado.
É por esse viés que a fenomenologia se propõe a estudar a cultura, da
forma que a psicanálise, por exemplo, estuda o inconsciente: “o inconsciente
fala uma linguagem que é a dos sonhos”.
Assim esse brevíssimo percurso para dizer um pouco de como nos
filiamos à fenomenologia e de dois aspectos fundamentais para o trabalho, o
de que o ser, o mundo e o outro são inseparáveis, a de que a composição
disto que eu sou entrelaçado a tudo e todos é a dimensão mesma da vida e
que o atravessamento das outras existências na minha existência é a
condição de possibilidade de entendimento do mundo fenomênico. Essas
67
características estão presentes no trabalho enquanto trabalho de pesquisa e
por este motivo se fez necessária toda essa digressão.
68
PARTE 2
A VIDA NO FRONT
F
Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Lateral do Supermercado Conquista.
Casa de Papelão – Crioulo – 2015
Olhos nos olhos
Sem dar sermão
Nada na boca
E no coração
Seus amigos são
Um cachimbo e um cão
Casa de papelão
Olhos nos olhos
Preste atenção
Olha a ocupação
Só ficou você
Só restou você
Ruivo louco
Sangue em choro
Pra agradar a opressão
69
Não de foice ou faca
Esquartejada a alma
Amarga amassa a lata
Estoura pulmão
Toda pedra acaba
Toda brisa passa
Toda morte chega e laça
São pra mais de um milhão
Prédios vão se erguer
E o glamour vai colher
Corpos na multidão
Na minha mente varias portas
E em cada porta uma comporta
Que se retrai e às vezes se desloca
E quantos segredos não foram guardados nessa maloca
Flutuar no céu poluído dessa cidade e beber
Toda sua mentira
Esperança minha, torneira sem água
Moeda? É religião que alicia
Vamos cantar pra nossos mortos
Vamos chorar pelos que ficam
Orar por melhores dias
E se humilhar por um novo abrigo
Não de foice ou faca
Esquartejada a alma
Amarga amassa a lata
Estoura pulmão
Toda pedra acaba
Toda brisa passa
Toda morte chega e laça
São pra mais de um milhão
70
2. COMUNIDADE DA ILHA DO BANANAL
2.1. Uma Árvore Pode Ser Um Perigo?
Fragmento 1
Foto: Maria Irigaray – 2015 – Beco do Candeeiro.
71
Ao mencionarmos a população em situação de rua, estaremos já nos
referindo a uma realidade que possui algo de impensável. Com isso não
estou negando a dura realidade dessa população, suas mazelas, dificuldades
e as condições de possibilidade de Vida que ela representa e efetiva; o que
digo é que estaremos falando, autorizadamente ou não, num alto grau de
generalidade a respeito uma população de certo modo ingovernável e que,
além disso, falaremos sempre do ponto de vista de quem está “do outro
lado”.
A definição presente no decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de
200916, que institui a política da População em Situação de Rua, dá conta de
minimamente evidenciar uma espécie de definição quanto à População de
rua:
“Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
A generalidade aqui advém, por exemplo, da não definição de faixas
etárias, de sexo, classe e região geográfica. No entanto, a heterogeneidade
aparece como conceito para dizer que esta é uma população que inclui todas
as idades, sexos, gêneros e origens regionais. Uma característica dessa
população no Brasil é a de ser uma população empobrecida – isso é algo que
aparece no texto do decreto como algo admitido.
Trata-se de uma população heterogênea no sentido de que, como
nômades, passam ao largo das convenções sociais e ao mesmo tempo estão
no coração da vida urbana, na constituição mesma da sociedade e, portanto,
também interagem com a norma e a lei, compondo a ambiguidade entre
estar dentro e estar fora, como teoriza Agambem.
16 BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Decreto nº 7053 de
dezembro de 2009: Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Brasília – DF: [s.n.], 2009.
72
Essa percepção tem uma tônica forte neste trabalho, principalmente
em função de uma série de desencontros e de encontros fortuitos, como é o
caso do trabalho junto da população em situação de rua; o encontro-
desencontro se fez presente do começo ao fim da pesquisa.
A pesquisa começa por uma cartografia da rua, relativa
principalmente ao primeiro ano do curso de doutoramento. Nesse ano me
dediquei a descobrir, olhar e fotografar cada vez mais as pessoas em
situação de rua na cidade de Cuiabá, buscando registrar o quanto pudesse a
população de rua na capital. Esse primeiro ano me mostrou que muitos dos
meus encontros provavelmente não se repetiriam, dado à transitoriedade do
contato.
Isso coloca questões quanto ao método acadêmico e à maneira como
comumente se faz pesquisa em educação. O contato fugidio, a dificuldade de
citar fonte, a maneira como ouvir a população em situação de rua, passou a
ser problematizado como uma característica do trabalho e ao mesmo tempo
como um dado sobre essa população.
Pensando essa dimensão da conversa informal, dos contatos não
planejados com essas pessoas, descobri que também minha pesquisa teria
de construir-se em meio à presença-ausência dessas pessoas e que a
abordagem não seria uma simples abordagem, que mesmo encontrar as
pessoas seria já um problema de pesquisa.
Tendo em vista o percurso absolutamente imprevisível dos moradores
de rua, comecei a perceber que não poderia me fixar a algumas pessoas, e
que seria difícil encontrar duas vezes a mesma pessoa. Apesar de
compreender a existência de territórios e rotas afetivas, quando o contato
repete-se, no quando do novo encontro é quase certo a impossibilidade de
retomar um encontro já acontecido, uma conversa já dada; não raro o
morador em situação de rua fala como que pela primeira vez toda vez que
acontece uma nova conversa.
Aí reside a dificuldade da pesquisa em traçar uma linha de narrativa
à maneira tradicional relativamente grande, pois há sempre um recomeço e o
re-contar de memórias e vivências dos moradores de rua que atuam de
73
maneira a tecer e destecer a trama, de maneira a desdizer o que foi dito, ou
de contradizê-lo.
Isso torna complexo citar as narrativas ou a tentativa de sequenciá-
las. Isso aconteceu com Cheirosa, com quem tinha mais contato. Ou ela não
se lembrava de fato do que havia conversado comigo ou se lembrava e não
queria falar nele e assim preferia falar em outra coisa que não o já dito,
performatizando, assim, sempre um tema novo junto de um tema já
dialogado.
Ambas as coisas não me autorizaram a prosseguir na conversa, de
maneira que era sempre melhor falar sobre outra coisa, respeitar o discurso
de minha interlocutora e ao mesmo tempo entender uma lógica de
remetimentos que tinha sempre uma maneira nova de aparecer. Neste
sentido era sempre um acontecimento, aquilo que é o novo no velho, o
diferente no já dito, o que difere, o que remete a outro destino – a palavra
levada pela brisa das ruas, ou tocada de mansinho como uma folha que cai
de uma árvore, como uma folha de papel a quem se destinou a rua e não a
espiral do caderno...
Desta maneira, as histórias possuem outros elos de ligação que
dificultam muito a análise mais sistemática ao modo acadêmico de entender
o que pode vir-a-ser o sistema de uma entrevista, de uma conversa ou
interação.
Este aspecto da vida nômade é extremamente importante do ponto de
vista do entendimento de que as convenções dos laços sociais importam na
medida em que servem como fim em si mesmo; conhecer alguém não serve
como jogo que leva a um outro fim, como por exemplo o ganho de conhecer
alguém influente.
Ao mesmo tempo, existe uma profundeza do laço no sentido de
solidariedade; esse mesmo laço é questionado no mesmo termo. Assim, a
referência de laço sanguíneo passa a ser uma referência de grupo social, que
tanto implica na ligação de conexão afetuosa quanto na vinculação por um
questionamento, por uma reprovação ou contestação.
O tratamento “irmão” neste sentido passa a ser usual e de um
significado vinculado que traz sempre uma reflexão carregada de sentido,
74
principalmente quando usada em negativas, como por exemplo: “Aí não
irmão!” ou como no caso “Ah! Nem que me pague irmão!”, ou ainda com uma
conotação totalmente diferente que coloca a ideia de que “Como você pode
pensar isso ou fazer isso sendo meu irmão?”, vistas em expressões que
recolhi dos moradores nas interrogativas como: “Pô, tá me tirando irmão?”
“Quê que é isso irmão?”
É preciso dizer que a comunidade efetiva laços orgânicos em que,
para determinados usos, ações e compartilhamentos da vida comum, não se
tem uma censura, onde se entender com o outro independente do que ele é
ou onde os atos que tenha praticado não passam por um crivo de moral
cristã no sentido de dizê-lo como diferente de si, mesmo que as vivências
sejam absolutamente diferentes.
Em outro âmbito, uma certa moral também impregna os sentidos de
afirmar valores importantes, como, por exemplo, o que ouvi de um morador
ao dizer: “Ah, tá... eu uso mesmo essas porcarias, peço dinheiro pra comer,
vivo igual um cachorro mas roubar, eu não roubo, não”, o que denota um
pouco do que é a dimensão ética e ao mesmo tempo o que também pode ser
um jogo com os meus supostos valores. Fazer uma diferenciação entre si e o
outro também é comum, de maneira que uma vez mais a ambiguidade toca a
vida dos moradores de rua da mesma maneira que a nós e neste sentido ele
diz: “Eu sei que a vida é dura e que as vezes o camarada num tem outra
opção, mas eu mesmo eu, eu não roubo ninguém não, dona.”
As relações da comunidade não estão fechadas; elas tendem a se
expandir principalmente quando os moradores da Ilha do Bananal transitam
entre as avenidas que cercam a ilha e quando saem para pedir – é o
momento em que consigo mais interação com a comunidade, às vezes uma
boa prosa, como costumo dizer, mas estas relações são marcadas pela
maneira itinerante e descontinuada, como relata também Frangella17 em seu
livro Corpos Urbanos Errantes:
17 FRANGELLA, Simone Miziara. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. 361 f. 2004. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. p. 86.
75
“As relações de sociabilidade e as interações entre os habitantes de rua são igualmente construídas a partir do molde itinerante. Pessoas ou grupos reproduzem, muitas vezes, papéis familiares entre os demais que compartilham o mesmo espaço, seja por pouco ou muito tempo. Marcam também relações de vizinhança entre si e com outros segmentos que compartilham seu mundo. No mundo da rua, agrupamentos são formados usualmente de forma provisória temporal e espacialmente. Nestes, várias formas de sociabilidade se manifestam, tendo as formas ou trocas ou compras e comunhões dos objetos acumulados cotidianamente como base das alianças: comida, roupas, bebida, drogas, cobertor, potenciais “mercadorias” encontradas no lixo. Estas trocas efetivam uma particular rede de solidariedade que garante a circulação de objetos necessários à sobrevivência, e é descrita pelos moradores de rua como de ajuda, de fraternidade. O compartilhamento do álcool – elemento fundamental de sociabilidade neste segmento social –, as festas e fogueiras são fatos sociais que complementam essa malha de relações de mutualidade e solidariedade. Simultaneamente reiteram aquilo que Brognoli define como sistemas de trocas materiais que demarcam posições de igualdade, “em contraposição ao mundo hierarquizado e competitivo dos que têm” (1999:86).
Considerando esses aspectos uma vez mais como aspectos inerentes
à pesquisa de campo e ao conteúdo mesmo da experiência da rua, da
vivência junto da comunidade de rua e da imensa dificuldade de abordagem
encontrada no campo é que decidi então escolher um ponto de ônibus pra
sentar e ficar em meio às pessoas como uma observadora comum e uma
transeunte sem interesses maiores no contexto da comunidade que observo
e ao mesmo tempo como um visível-invisível, para pensar numa dimensão
dialética importante para Merleau-Ponty.
No centro histórico de Cuiabá, de frente para o Beco do Candeeiro, no
sopé do Morro da Luz, me situo na tentativa de conhecer e entender como se
processa a vida comunitária dos moradores de rua em sua comunidade. Lá
me coloquei várias vezes e mais, especificamente, uma sexta feira foi muito
marcante.
Este lugar me situa no meio de um fluxo da comunidade e, no
entanto, não sou percebida como uma pessoa que cause estranhamento ou
seja um perigo potencial, o que poderia dificultar-me ainda mais a pesquisa
já bastante difícil. Durante 6 meses fiquei ao menos uma vez a cada duas
semanas sentada neste ponto de ônibus por algumas horas. Devido a dias de
calor intenso, em alguns dias fiquei menos tempo – em torno de 2 horas.
76
Existiram durante a pesquisa muitos outros lugares de onde observei a
comunidade, incluindo a lateral da igreja de São Benedito, na rua Coronel
Escolástico.
Primeiro fiz um passeio de reconhecimento pelas imediações do
Centro. Contornei o Beco, subi o Morro e desci para o ponto de observação.
Desci e escolhi propositadamente o ponto que fica sem nenhum privilégio de
visão pra captar o que é subterrâneo, o que acontece perto da população que
passa pelo Centro. Escolhi ficar sentada e não em pé, me locomovendo a
partir do ponto em que começa minha observação, apenas na rota de quem
pega ônibus. Assim ou me coloco sentada observando ou me levanto e ando
pelo ponto a partir da linha de embarque dos ônibus.
Também escolhi ficar sem filmadoras, gravadoras, máquinas
fotográficas ou qualquer outro auxílio que não a experiência vivencial de
estar junto das pessoas com todos os meus sentidos.
Quando uso aparelho para filmagens, geralmente uso o celular,
que não chama atenção e me permite não ter que preparar a máquina, nem
que desmontar a máquina. E também evita o inconveniente de passar como
turista, ou de chamar a atenção sobre mim.
Meu primeiro estranhamento, nos primeiros dias de observação,
deu-se quando eu descobri o que estava faltando na paisagem. Havia uma
impressão de que faltava algo, mas não descobria imediatamente, como o
movimento é grande e preciso me concentrar nas rotas e nas interações dos
moradores da ilha, acabei por me dar conta de que faltava uma das únicas
árvores que ainda existia no Beco do Candeeiro porque a luz estava
diferente. Havia uma nítida diferença na luz.
Atrás da estátua erguida aos meninos assassinados na chacina do
Beco do Candeeiro, havia uma árvore. Essa árvore morreu, o que abriu uma
luminosidade ainda maior no espaço daquele lugar. À noite, com a morte da
árvore, não há mais sombras, o que configura para minha percepção como
algo desejado. A árvore foi morrendo aos poucos e não vi quando foi retirada,
mas muitas vezes presenciei pessoas residentes da comunidade urinarem
nela e colocarem vasilhames descartáveis pendurados nela, além de sofrer
uma poda que a fragilizou muito. A partir da poda, a árvore começou a ficar
77
mais e mais mirrada. A árvore era de grande porte, com vagens que ao
tremular faziam barulho. Ficava na lateral do Bar da Flávia, que mudou de
nome. Sei por experiência que a noite com o vento a árvore fazia barulho,
mas esse barulho em meio ao caos dos motores era quase imperceptível.
Ao estar no bar durante a noite, bebendo percebi este detalhe por seu
movimento quase fantasmagórico. Entendo a morte da árvore como um
fenômeno importante na vida da comunidade. Ela foi retirada aos poucos,
com muita paciência e muita perspicácia; foi sendo convencida a não ficar,
com quase tudo que cerca e trás perigo à comunidade.
A árvore passa a ser uma ameaça a partir do momento em que suas
sombras trazem o escuro para um lugar que – os habitantes sabem – é
muito frágil, exposto a violências e muito vulnerável. Trazer à luz o espaço
aberto ajuda na passagem dos habitantes. Não haver lugares escuros em
que possa se esconder o perigo ajuda a sobreviver na comunidade. A não
existência da árvore passa a ser necessária para abrir passagem e não
permitir “tocaias”. Logo atrás de onde existia a árvore agora existe um
grafite, parede ao fundo.
Assim foi durante várias semanas. Estive sentada no ponto de ônibus
que está de costas para o Morro da Luz, de Frente para o Beco do Candeeiro
e ao lado da Ilha do Bananal, de maneira que, a partir daí, elaborei através
da observação sistemática dos percursos que os moradores da Ilha fazem um
desenho cartográfico da região.
Neste desenho pude perceber os movimentos da Comunidade. O
primeiro aspecto que dou relevância e que saltou aos meus olhos, inclusive
num dia de muita agitação na comunidade, foi seu aspecto circular. O
segundo aspecto de que me dei conta é que, no interior de um sistema
circular, todo ponto do círculo pode se tornar uma tangente.
78
2.2. Circulação Circular
Fragmento 2
Foto: Eliete Borges Lopes – 2015 – Vista da comunidade para o Morro da Luz, da
subida da Avenida Coronel Escolástico pela Avenida Prainha e da lateral da Igreja São
Benedito.
Outro aspecto importante – e que, a saber, foi enunciado
propositalmente de maneira redundante neste subtítulo – é o da existência
de uma circularidade que compõe as ilhas.
Apesar do foco na Ilha do Bananal como o lugar de morada da
Comunidade, todo o círculo que vou descrever é composto não de uma ilha –
a Ilha do Bananal –, mas de um sistema de ilhas que compreende o Morro
da luz como uma ilha de descanso em meio à natureza, um refrigério por
assim dizer; o Beco do Candeeiro como uma Ilha de busca de tudo que a
comunidade precisa: alimento, água, drogas, álcool, sexo, lazer e dinheiro e
a própria Ilha do Bananal que é a ilha habitat e a que mais se aproximaria
da ideia da casa.
Os elementos casa, quintal e cidade estão todos presentes num único
círculo. Todos esses elementos constituem os arte-fatos e os afetos que
circulam no arquipélago e que tem sua proteção fechada principalmente na
79
Ilha do Bananal, mas que também conta com pontos cegos em todas as
ilhas.
O contato entre os moradores da Ilha do Bananal se dá no interior da
Ilha, entre as avenidas Prainha (Tenente Coronel Duarte), Historiador
Rubens de Mendonça, Coronel Escolástico e Voluntários da Pátria, sendo
que o entorno da ilha está circunscrito também à Rua Galdino Pimentel,
Candido Mariano e Voluntários da Pátria.
O percurso principal dos moradores que circulam entre na ilha pode
ser pensado também como pontos entre a Paróquia de Nossa Senhora do
Rosário, Igreja de São Benedito, Mesquita Islâmica e Igreja da Matriz. Sendo
que daí circulam entre a Igreja Bom Despacho, Universal do Reino de Deus,
Praça Ipiranga, Praça da República, Praça Alencastro e sinaleiros do início
da Avenida Historiador Rubens de Mendonça.
Esses pontos geográficos nos importam como um ponto de vista que é
o de que toda uma comunidade religiosa frequenta esta região, o que indica
um indício forte de que uma articulação entre elas poderia surtir efeito
positivo no acolhimento da população em situação de rua. Esta iniciativa era
efetiva na pastoral de rua situada no Beco do Candeeiro, ligada à Paróquia
Nossa Senhora do Rosário.
Vejamos que, na parte posterior ao morro e subindo apenas algumas
quadras, encontra-se a Igreja da Matriz e, seguindo pela Prainha em frente a
uma outra zona muito frequentada pelos moradores de rua, está a Igreja
Bom Despacho. Pensando apenas este aspecto, sei que os moradores
procuram ajuda nas igrejas e dormem em suas escadarias, como maneira de
proteger-se embaixo de algo que ainda possa ser sagrado, ou possa ser
respeitado.
Outro aspecto importante a salientar é que em frente, ao lado ou nas
imediações imediatas das igrejas encontram-se no arquipélago, bares,
prostíbulos e pontos de comercio de crack18 – dentre outras drogas –, de
maneira a entrelaçar essas dimensões numa única vivência do urbano na
região das ilhas.
18 Substância que geralmente é obtida através do aquecimento de uma mistura de cocaína, ou pasta-base de cocaína, água e bicarbonato de sódio, dente outras substâncias desconhecidas que podem ser adicionadas.
80
A circulação dos moradores da ilha está mais ou menos delimitada
neste circuito que marquei a partir dessas referências que são, para o
contexto, significativas do ponto de vista do enlace das dimensões da cultura
na qual está imersa a comunidade.
Mas para além da circulação tangencial dos moradores, um aspecto
mencionado anteriormente merece destaque. A circulação circular – por
assim dizer e de maneira até mesmo redundante – da comunidade vai,
basicamente, da casa para o quintal e do quintal para a cidade, sendo
comuns alguns percursos. Alguns dos percursos que mais me chamaram a
atenção foram os percursos de consumo de drogas, os percursos de busca
por drogas, os percursos de interação para se conseguir comida e água e
eventualmente roupas - também os percursos que visavam sexo e descanso.
O percurso mais usual da comunidade é o do Beco para a Ilha do
Bananal da Ilha para o Beco – este percurso é o de uso de drogas –, de
maneira que até chegarem a conseguir uma pedra de crack e a consumirem,
por vezes levam mais de 5 ou seis voltas em torno do contato, negociação,
compra, uso e fuga.
O segundo percurso mais usual dos que me interessam é o percurso
Ilha-Beco-Ilha-Morro. Esse percurso engloba uma meia lua em que a
comunidade se mobiliza indo até o Beco para buscar a pedra crack, de lá vão
para a Ilha e da Ilha saem depois do uso em busca de um lugar pra viagem
(efeito entorpecente do uso). No caso, o Morro da Luz oferece essa espécie de
tranquilidade junto da natureza, configura uma ilha de paz e é onde a onda
ou viagem pode bater sem nóia (mania de perseguição advinda do uso do
crack e do seu efeito de adição).
É muito comum ver principalmente os homens da comunidade
parados sós ou em grupos fumando um cigarro de maconha ou um careta
(cigarro industrializado) pra baixar a onda, geralmente sentados nas escadas
ou andando pelas trilhas do Morro da Luz.
Esse percurso, descrito de maneira simples, é relativo a um morador
solitário. Quando o consumo acontece no grupo, geralmente composto de
dois ou três integrantes, pode acontecer mais ou menos a mesma coisa, mas
81
com a desintegração do grupo no interior da Ilha, de maneira que cada um
sai pra um lado ou nem sai.
Ao observar uma cena de circulação em grupo, notei que o grupo foi
articulado da seguinte maneira: quem estava na rua, entre o sinal, o ponto
de ônibus onde me situo e o entorno dos bares, estava em busca da grana
(dinheiro); quem estava no Beco, estava esperando o avião (cara que entrega
a droga) e quem estava próximo da comunidade na ilha estava cuidando
(espreitando ações de outros moradores, polícia e qualquer eventual perigo
iminente ou impeditivo).
A informação entre os moradores só circula no boca-a-boca, de
maneira que iam e vinham de maneira frenética, pois além do sol quente e a
agitação da instiga (período de abstinência), existe um outro fator que é o de
negociar e apanhar a droga sem ser percebido, nem pelos outros moradores
nem pela polícia – não ser percebido pelos outros moradores para que não
precise dividir, pois geralmente quando em grupo, se faz uma cota ou uma
troca na qual cada um dá uma parte e a droga é calculada apenas pela
quantidade de pessoas que contribuiu, sendo que só se um “irmão” chegar e
não faltar é que permitem um trago, e geralmente apenas um. O que
também é comum e foi por mim presenciado é que o “irmão” que tá na
“instiga” dá um tapa e vaza, isto é, o morador que não colaborou dá um
trago na droga e já sai atrás da sua própria.
A lógica é a que não se abuse da boa vontade alheia e a de que aquele
que é “passado pra trás” acaba ficando com a fama de “Mané”, isto é, alguém
que se pode ludibriar – o que pode ser muito problemático no contexto de
vida na rua, se bem que também é aceitável e alguns lidam inclusive com
apelidos vexatórios por conta de situações com os ludibriados –, e isso acaba
virando uma situação engraçada sem a conotação muito séria de algo que a
pessoa tenha que carregar. Geralmente até o Mané ri-se da situação e acha
uma maneira de zoar o outro, o que é muito comum nas rodas de pinga e
nos momentos de descontração dos grupos.
82
2.3 Ele Pula Numa Ilha De Calor
Fragmento 3
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Visão do ponto de ônibus, Prainha, Beco do
Candeeiro.
83
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Visão do ponto de ônibus, Prainha, Beco do
Candeeiro.
Um outro arte-fato da circulação presente nos trajetos afetivos da
comunidade da Ilha do Bananal é o trajeto das rotas de mendicância. Faço
aqui apenas um breve parêntese sobre a questão do afeto para dizer que por
afeto estamos entendendo a ligação entre os moradores de rua com a rua em
uma dimensão de impregnação da cidade sobre os moradores, no sentido
daquilo que é escolhido como rota, território e lugar de ligação pela sua
imensa impregnação, pela sua impressão e forte relação com os moradores.
Neste sentido, certamente, comigo enquanto pesquisadora, a mesma
impregnação se dá como imã de grande atração. Ao buscar compreender os
percursos dos moradores da Ilha do Bananal, também considero meu
próprio fascínio pelo lugar.
A dimensão que então muito me importa enquanto arte-fato para a
comunidade é a do esmolar, mendigar ou pedir.
O dia estava tão quente que o mormaço que subia do asfalto na
Prainha gerava em minhas retinas uma lente ao mesmo tempo opaca e
também muito transparente por conta da quantidade de luz daquele dia
estalado de sol e calor. O asfalto realmente cria uma outra ilha, chamada de
ilha de calor. Junta-se agora às ilhas existentes uma ilha temporária que
84
envolve o dia e o fazer da comunidade. A ilha de calor pega principalmente
aproximados 500 metros entre a parte de baixo da comunidade, o semáforo
da Avenida historiador Rubens de Mendonça e a parte mais exposta da
entrada do Beco do Candeeiro.
Em meio à ilha de calor, atravessando-a como uma imagem borrada,
avisto ao longe um senhor que tem o pé machucado há mais de 6 meses e
que alguns meses antes estava com faixas sujas amarradas e andava
mancando e descalço e que agora não consegue pisar no chão. Por não
possuir uma bengala ou qualquer coisa que o valha, anda pulando.
Ele pula saindo da lateral da Voluntários da Pátria e entra no Beco do
Candeeiro. Meus olhos não querem acreditar na cena que vejo entre carros,
ônibus, fumaça e a cortina da ilha de calor, mas sim – na medida em que se
aproxima, qualquer possibilidade de que a cena não fosse real se torna
impossível. Ele entra no Beco. Perco-o de vista do ponto onde me encontro,
mas sei que em breve ele aparecerá entre o bar do Neto e o muro de um
estacionamento, na lateral do Beco. Assim acontece.
Ao chegar ali eu sabia que ele provavelmente não iria atravessar a
Prainha, seria muito difícil na condição dele, e este morador não costuma ir
em busca de amigos, nunca o vi acompanhado e nunca em relação com
qualquer outra pessoa, de maneira que supus que pudesse estar em busca
de uma pedra de crack. Sim ele estava. Deu a volta até a frente do mercado
gama, em frente dos meninos mortos na chacina pegou a droga. Pulando foi
até a calçada onde um pedaço de zinco pintado com a marca da gráfica Print
cobre parte da entrada do estacionamento.
Alí ele se sentou. Não carregava nenhum objeto, nenhuma sacola ou
algo além da roupa do corpo. Ao se sentar com imensa fadiga e o que me
parecia uma espécie de calma, tirou do bolso um papel. Enrolou a droga no
papel e fumou ali mesmo sem que nenhum transeunte se espantasse com a
cena. Na verdade não vi sequer uma pessoa que o tenha notado. Nem
mesmo quem passava por ele.
O uso se repetiu entre quatro ou cinco tragadas que demoraram mais
ou menos 3 minutos. Assim que terminou ele respirou, se levantou com
dificuldade pulou até o sinaleiro, tendo sentado no meio do caminho umas
85
duas vezes e começou a pedir nos carros, tendo sido quase atropelado pela
dificuldade de se locomover.
A Circulação É Uma Economia.
Uma economia é gerada constantemente pelos moradores de rua e
essa economia é micro se pensada individualmente, mas se pensada num
coletivo ela pode ser transformada num número significativo. Basta para
isso pegarmos um valor, por exemplo, o do censo nacional que identificou
em 2008 um contingente de 31.922 pessoas morando na rua. Pensando
apenas nesse número fixo, imaginemos que cada uma gaste em média 10
reais por dia em um ano essas pessoas fazem girar 116.515,30 reais ao ano.
Isso para pensarmos de maneira até simplória este aspecto da realidade, um
cálculo apenas, mas que não deixa de ter relevância quando se trata de
desmitificar a ideia de que essa é uma população improdutiva e que
economicamente ela não tem impacto sobre a economia da cidade.
A ideia de que a população de rua possa e deva ser excluída por
conta da sua não produtividade é um discurso comum e corrente no Brasil,
que atinge a todos – do discurso midiático ao senso comum –, mas atinge
principalmente àqueles que mais ferozmente se ligam ao sistema comercial,
isto é, lojistas, comerciantes, ambulantes e todo tipo de vendedores.
A ideia de que moradores de rua não façam parte da economia é
arraigada na maneira como pensam essa população, pois, acostumados com
os grandes lucros, grandes vendas, trânsito ininterrupto de mercadorias,
lógicas de cálculos e trocas pautadas apenas na mais valia em uma lógica
que repete a todo o momento que o bom e o mais esperto é especular, esses
comerciantes não conseguem enxergar a micro economia que os moradores
fazem girar e a grande afirmação de resistência existente no ato de
transformar informação.
A economia de quem mora na rua é a economia mais afetada pelas
condições sociais; na economia da rua as questões de classes se tornam
inegáveis. As discriminações e as diversas maneiras de segregar aparecem
como fato de empobrecimento e, ao mesmo tempo, aparecem uma vez mais
como maneira de r-existir dentro da lógica capitalista, dado que as falas são
de “desprendimento de questões materiais”, como aparece no discurso de
86
quem mora na rua. Existem maneiras diversas do aparecimento dessa
economia no discurso da rua: uma delas diz respeito à revolta, a outra diz
respeito à conformidade; a outra ainda diz respeito à não necessidade e
outra ainda como desejo.
De todos estes discursos, um dos mais evidentes é o do desejo. Este,
por sua vez, é também o mais contraditório, pois aparece como desejo não
realizado e que continua desejante, ao mesmo tempo em que a sua negação
é também a sua transformação em uma espécie de vitória da sobrevivência,
já que como sobreviventes a população em situação de rua geralmente se
refere à questão de viver com menos de 20 reais por dia como mais uma
dificuldade a ser driblada e que os transforma ao mesmo tempo em pessoas
menos apegadas ao dinheiro, pois percebem numa experiência radical que
esse é mais um jogo sujo em que sempre haverá jogadores de fora – que este
sistema em que se baseia a troca não é o único e que ele é apenas uma
alternativa e que quem prova que consegue de outra maneira viver pode
estar certo sobre a falência e a crueldade do mesmo sistema que escraviza
pelo trabalho e lucra pela mais valia sem escrúpulos e sem nenhuma
mediação que faça pensar isso como um problema.
87
2.4. Uma Experiência De Como As Informações Chegam Antes19
Fragmento 4
Foto: Babu 78 – 2016 – Várzea Grande.
Ao observar, no dia 10-06-16, a dinâmica da comunidade, percebi
que estava acontecendo algo que saía do cotidiano da cidade, mas não havia
como saber o que era no momento em que ocorria – só havia uma certeza de
que havia algo novo no ar.
O Morro da Luz estava completamente tomado por uma ruação de
pessoas da comunidade que iam e vinham ao que parece levando e
buscando coisas. Essas coisas eram informações e se faziam numa
economia de trocas mútuas e intensas. O que estava ocorrendo na cidade eu
viria a saber mais tarde.
O trânsito de informações da comunidade circula de modo que o
contato, o boca-a-boca, a troca de sinergia de encontros rápidos e furtivos se
dá na dinâmica do não deixar-se aprisionar pelo olhar do entorno – não se
deixar ver.
19Acesso em: http://muvucapopular.com.br/noticias/geral/87224-bandidos-tocam-o-terror-em-cuiaba-incendiam-
anibus-e-disparam-contra-agentes-prisionais.html e Acesso em: http://midianews.com.br/cotidiano/tres-onibus-sao-incendiados-em-cuiaba-e-vg-veja-o-video/265887
88
Isto ocorre o tempo todo e circula do Beco para a comunidade, da
comunidade para Morro, vai e volta, circunda e circula o tempo todo. Junto
com a informação, circulam outras mercadorias menos valiosas, como as
pedras de crack de 2, 5, 7, 10, 12 reais. As pedras circulam em todo o corpo
da comunidade e estão espalhadas como as mesmas pedras que calçam as
ruas.
O cheiro da pedra sai do Morro como um sinal em fumaça. O cheiro
da pedra sai do Beco como um sinal de fumaça. Os moradores atravessam a
rua no meio dos carros loucamente. Os moradores se arriscam sem medo,
são rápidos, velozes, são “ligados” em tudo.
Tudo aqui é movimento contínuo e contínuo, frenético e circular. A
circulação é parte da economia da comunidade. Não pode parar, não pode
moscar, dizem os moradores. “Dá um perdido”, “dá um role”, “pega um
bonde”, “dá um vaza”, “dá um raio” e “dá um rasgado” são comuns tanto na
conversa informal quanto nas advertências quando há perigo iminente.
As informações que circularam nesta semana davam conta de que
havia um grupo que mandava mensagem avisando que iria tacar o terror.
Isso viralizou no sistema de comunicação What’s app. Descobri que isso
estava ocorrendo porque, sentada no ponto de ônibus que é o ponto de
observação, ouvi a conversa de três adolescentes sobre a questão. Eles
chamavam o evento de cabulosão, muito louco e sinistro (todos os termos
significando “algo que provoca grande assombro”). Os adolescentes
comentavam e ouviam a suposta gravação que mandaram de dentro do
presídio para avisar a todo mundo que, como se diz na gíria, “o bicho vai
pegar”, no sentido de que iriam acontecer outros episódios como o da
queima do ônibus. Geralmente essas situações são arrastões, assaltos
orquestrados, ataques a bancos e lotéricas ou mesmo queima de delegacias e
ônibus. A questão toda girou em torno da dimensão do “poder de terror que
têm os bandidos”. Essa ideia foi massivamente divulgada pela mídia, que
usou de noticiários em que mostram as pessoas supostamente em pânico.
Geralmente escolhem duas ou três pessoas que representam bem a
dimensão do que seria o cuiabano pacífico e cheio de tolerância e o mostram
com voz suave falando do quanto sente medo. Aliado a isso também, os
89
jornais locais mostram as atividades das polícias; geralmente um delegado
desfia o marketing institucional da segurança e garante que pediu reforços.
A maneira de atuar da mídia local geralmente não é muito inventiva –
as polícias locais menos ainda –, de maneira que, depois de alguns dias,
evaporou-se a inquietação e o medo e tudo voltou ao normal. A comunidade
voltou ainda com mais força. Percebia que, na medida em que o tempo
passava, aumentavam o número de pessoas na comunidade, mas não havia
como checar porque o clima de insegurança. A falta da Cheirosa, que
entrava na comunidade comigo, e a dificuldade em encontrar novos
interlocutores me afastava do interior da Ilha.
90
2.5 Baculejo Nervoso (30 De Agosto De 2016)
Fragmento 5
Foto: Mídia News – Ilustra a matéria da nota de rodapé – 2016 – Ilha do
Bananal.
O dia 30 foi decisivo para a pesquisa e o afastamento da Ilha. No dia
30 de agosto aconteceu o que chamo neste trabalho de baculejo nervoso20,
porque já havia eu presenciado baculejos na região, um deles com polícia
fortemente armada. Na ocasião, prenderam 5 pessoas que eram acusadas de
roubo e que tinha se escondido no morro da luz.
Neste dia eu não estava no Centro; vi as notícias pelos jornais e senti-
me com medo.
Lembrei-me de um outro baculejo que presenciei e fiquei pensando
no risco que estava se tornando minha pesquisa. Algo que não podia ignorar.
Eu me dirigia ao meu ponto de observação chegando por traz do Beco
do Candeeiro, que nesse dia resolvi contornar. Ao invés de passar pelo meio
do Beco, fui pela Prainha, cortando o Beco pela lateral. Quando cheguei
perto do meu ponto de observação, percebi um alvoroço.
20 A gíria “baculejo” significa que a polícia passou para averiguar o local e abordar as pessoas suspeitas por crimes. Nervoso refere-se a algo muito extremado, ações de repressão com forte caráter violento. “Baculejo nervoso”, neste sentido, é então a ideia de uma operação truculenta e impiedosa.
91
Não entendi de imediato, mas quando botei a cara no Morro da Luz
me vi no meio do grande tumulto. Havia em torno de 7 carros de polícia na
imediação e muitos policiais. O baculejo levou mais de uma hora e vi
transformado em espetáculo para toda a população a prisão de cinco
homens, três deles negros descalços e maltrapilhos e dois deles pareciam
mais jovens e não tinham a aparência de moradores de rua como os outros
três.
O episódio em que percebi a quantidade de pessoas muito maior do
que vinha observando se deu no dia do “Salve Geral”, de maneira que, como
havia necessidade de transitar as informações, também havia mais pessoas
fazendo o trânsito dessas informações. Existia também ao que me parece um
outro fenômeno se sobrepondo a este e que também pode estar a ele ligado:
a chegada da droga. Não é incomum quando chega uma quantidade maior
de drogas em uma região haver movimentação no sentido de entrega e
consumo. Neste dia houve muito “corre”, “correria”, busca de drogas. Isso
ficou registrado por mim nas imagens dos homens que atravessam as
avenidas em círculo.
A ideia de que haja um movimento circular que envolve a maneira
como se movimentos os moradores da comunidade foi percebida numa das
observações em que um mesmo morador contornou o entorno da área por
completo, do Beco à Ilha, da Ilha ao Morro e deste de volta para o Beco. É
preciso ressaltar que do morro se tem visão panorâmica para ambos os
espaços. Da ilha se sai para os dois lados e do beco se entra para o “miolo”
da cidade (rua do meio e rua de cima).
De maneira que a Ilha tem grande poder a partir do interior e do
exterior. Percebi isso ao observar a Ilha à noite, da Igreja São Benedito, que
fica do lado oposto ao meu ponto de observação. A ilha não possui luz
elétrica em seu interior, de maneira que toda a luz que recebe vem da
iluminação pública, que na região é bastante eficaz; existem postes com
luzes muito fortes dos dois lados da Ilha, e existe a iluminação da Igreja que
também traz bastante claridade ao entorno da Ilha. Pelo lado do Morro da
Luz, a iluminação cai quando se atravessa a calçada para a parte do Morro
92
que é vegetação e, no seu interior, as luzes são luminárias diferentes dos
postes da rua da calçada onde fica a Ilha.
Do outro lado, pela rua Coronel Escolástico, a Ilha é iluminada com
luzes fortes do lado da calçada dos casarões e do lado da calçada da Igreja
São Benedito.
O que percebi foi que, de maneira muito tática, à noite a Ilha tende a
ser um bom lugar para se esconder do perigo, pois quem está dentro enxerga
muito bem quem está fora, como numa casa que tem as luzes de fora acessa
e as luzes de dentro apagadas. Percebi isso por observação a partir da Igreja.
A comunidade usa de uma presença-ausência de luz, pois pelo que consegui
perceber, algumas partes mais próximas da rua são mais iluminadas e o
interior, principalmente a parte de baixo, é mais escura. A parte de baixo
também configura uma das entradas e saídas mais usadas pela
comunidade.
A Operação Ártemis,21 como foi chamada pelos policiais, visava à
caça. Está implícita aí uma dimensão da predação daquele que pode ser
caçado. A dimensão da caça liga-se à ideia de que, por viver sob tais ou
quais parâmetros, essa vida possa então ser submetida a tais ou quais
operações, dentre elas operações de “limpeza”, as chacinas e assassinatos
que tiram de circulação as pessoas em situação de rua e que instauram
aquilo que Agambem nomeia por exceção.
A população em situação de rua constitui essa população a quem se
coloca o pressuposto de que sua vida valha menos que outras vidas e,
portanto, que esta vida possa ser matada, que esta vida possa encerrar uma
exceção – ela pode ser caçada, como na Operação Ártemis.
Assim, a Ilha do Bananal entrou naquilo que Agambem chama de estado de
exceção. Por mais longa que seja a citação, sua necessidade se faz presente
para explicarmos como estamos pensando este episódio de captura da vida
tornada nua, dentre outras maneiras, pelas operações de caça das polícias,
aqui representadas pela Operação Ártemis.
21 http://midianews.com.br/policia/operacao-da-policia-civil-detem-65-usuarios-de-drogas/273380
93
“Protagonista deste livro é a vida nua, isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar. Uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade), ofereceu assim a chave graças à qual não apenas os textos sacros da soberania, porém, mais em geral, os próprios códices do poder político, podem desvelar os seus arcanos. Mas, simultaneamente, esta talvez mais antiga acepção do termo sacer nos apresenta o estigma de uma figura do sagrado aquém ou além do religioso, que constitui o primeiro paradigma do espaço político do Ocidente. A tese foucaultiana devera, então, ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoe na pólis, em si antiquíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoe, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção”. (AGAMBEM, 2007, p.16.)
Copiei na íntegra a reportagem de jornal e aqui deixo como
testemunho para que fique o registro dado a possibilidade de não
permanência da matéria no ar22:
“30.08.2016 | 17h46: Uma operação da Polícia Civil, Perícia Oficial e Identificação Técnica (Politec) e Prefeitura de Cuiabá, deteve 65 pessoas, na chamada Ilha do Bananal, que fica entre o Morro da Luz e a igreja de São Benedito, no Centro de Cuiabá. Três pessoas que estavam com mandados de prisão em aberto tiveram as ordens judiciais cumpridas. A Operação Ártemis, deflagrada na segunda-feira (29), tinha como objetivo a retirada e cadastramento de dependentes químicos na região conhecida como ‘Ilha do Bananal’, que fica entre o Morro da Luz e a igreja de São Benedito. A região se tornou alvo da operação devido aos altos índices de roubos a pessoas e furtos em comércios, fomentados por dependentes químicos que circulam pela localidade. Na tarde de segunda-feira, policiais da Derf foram até a região, onde foi realizada a abordagem e detenções. Ao todo, 49 homens e 16 mulheres foram conduzidos à delegacia, onde foram fotografados e identificados, com apoio de peritos da Politec. Dois homens e uma mulher, que estavam com mandados de prisão em aberto, tiveram as ordens judiciais cumpridas. Três dos conduzidos já
22 Outros jornais possuem o mesmo teor, são eles: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=494664 http://www.hipernoticias.com.br/cidades/policia-civil-faz-operacao-no-morro-da-luz-e-detem-60-por-roubo-e-trafico/64005
94
eram monitorados por uso de tornozeleira eletrônica. A ação resultou na apreensão de armas brancas como facas e chuchos, além de vários objetos roubados e furtados de vítimas, como bolsas, carteiras e documentos. Segundo a delegada titular da Derf, Luciani Barros Pereira de Lima, os usuários ficam na região pela facilidade para consumir drogas e praticar os crimes. ‘Por estar na área central da cidade, a região tem um grande fluxo de pessoas, principais alvos dos assaltos praticados pelos dependentes químicos, além de bocas de fumo e receptadores, que fomentam ainda mais a criminalidade’, disse a delegada. A delegada explicou que o cadastramento dos usuários de drogas que circulam pela região visa auxiliar futuras investigações da delegacia. ‘As pessoas que foram vítimas de roubo naquela região devem procurar a Derf, para que, através da identificação dos autores, possamos reduzir os índices de criminalidade na área central da cidade”, destacou Luciani. A operação Derf será realizada em outros pontos da cidade, com objetivo de fazer a identificação de novos suspeitos e agilizar o trabalho de investigação da delegacia
95
2.6. Uma Festa no Beco do Candeeiro
Fragmento 6
Fotos: Eliete Borges – 2016 – Projeto Psicanálise na Rua: de Adriana Rangel.
Estávamos cursando a disciplina de Esfericidade e Fenomenologia –
uma disciplina optativa que organizamos e realizamos através do Grupo de
Pesquisa em Movimentos Sociais – quando meu orientador, professor
Passos, resolve junto de um grupo de tambor fazer uma festa no Beco do
Candeeiro.
Nós Fomos pra lá levando comida e água. Juntou-se à festa a
professora Adriana Rangel, que também faz seu doutoramento junto dos
moradores de rua e possui um projeto intitulado Psicanálise na Rua.
Este dia era um dia de observação no ponto de ônibus do Morro da
Luz. De lá fui até o Studio de tatuagem Galeria Tattoo, ponto de encontro de
grafiteiros, tatuadores, roqueiros e toda uma juventude que traça uma
cultura alternativa. Depois de uma sessão de conversa com todos,
resolvemos que desceríamos juntos pro Beco, mas primeiro os grafiteiros
Siq, Morto e Keka fariam um trabalho em uma das vielas ao lado do Beco do
Candeeiro.
96
Durante nossas conversas, falamos sobre política e, naquele mês,
estava acontecendo uma ocupação país afora reivindicando a não extinção
do Ministério da Cultura, o chamado Ocupa MinC.
À época ainda não puxávamos o FORA TEMER. Mas nossa
insatisfação era grande. Ouvi de Siq: “Ou vô pintar um Temer diabão lá no
Beco hoje cara! Ou isso não existe velho, agora o cara vai acabar com a
gente.”
Antes de chegarmos no Beco, entramos por uma lateral e começou o
processo que foi registrado abaixo. Vários graffitis, foram feitos neste noite
por Keka, Morto, Gora e Siq.
Foto: Eliete Borges Lopes e Siq – 2016 – Rua lateral do Beco do Candeeiro.
97
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 - Viela entre o Beco do Candeeiro e Prainha.
Com o trabalho pronto só depois da 1 da manhã, iluminados pelo
farol do carro de um amigo, os grafiteiros deixaram seu protesto junto do
povo da rua que seguiu noite adentro.
Enquanto acontecia o graffiti em uma viela, a roda de tambor do lado
da estátua dos Meninos do Beco e um filme do Projeto Psicanálise na Rua,
um grupo de Maracatu puxava um som no Ocupa Minc no patrimônio ao
lado e eu transitava entre um e outro evento e buscava “trocar uma ideia”.
Conversava com integrantes do nosso grupo, levava gente para ver o
processo de grafitagem e observava os moradores da Ilha do Bananal, que
nesta noite estavam mais concentrados junto de nós por conta da música,
da socialização, da comida e da água.
Conversei rapidamente com os moradores que observo do ponto de
ônibus do Morro da Luz, junto deles uma mulher com quem tentei traçar
uma conversa, mas que foi inútil, pois ela “não abriu” – não respondeu à
interlocução. Eu a chamo “a moça da rosa”. Cumprimentei alguns dos
moradores, observei uma senhora que fumava crack do lado de nossa amiga
de grupo – que se mostrou tranquila e conseguiu então lidar bem com a
situação e estar no território de maneira pacífica. Conversei com alguém que
puxou conversa comigo dizendo me conhecer, o que também é uma tática
98
recorrente em que nunca sei quando é verdade quando não, mas que diz
basicamente pra quem é estranho que você está na mira, ou seja que “estão
ganhando seu movimento”, vendo o que você está fazendo.
Tudo se desenrolou de maneira que inesperadamente fui atravessada
por um contato. Nossa conversa no encontro do Beco começou por conta da
rosa que trago tatuada no braço esquerdo.
Ela disparou de lá: “Eu gosto de rosa...”; e eu sabendo que era a
autorização para que eu falasse com ela, já respondi: “Você também tem
uma?”
E ela disse “Não não, mas eu gosto de rosa, a rosa é bonita. Eu gosto
da cor sabe”, pegou meu braço, passou a mão na rosa, perguntou sobre o
que estava escrito.
Havia por perto uma outra moradora, que tinha uma rosa tatuada na
perna e estava com ela à mostra, e com quem havia tentado um contato
anterior sem sucesso.
Falei para minha interlocutora: “Ela também tem uma rosa”, fazendo
um aceno para a outra moradora, que fingiu que não me viu e não me deu
atenção nenhuma.
Ela continuou falando da rosa, numa espécie delírio que a remitia
para toda a beleza desse ícone que é um dos mais retratados na história da
arte.
Eu ofereci água, porque estávamos perto da mesa com bolachas, um
chá e água que havíamos levado para os moradores naquele dia de festa no
Beco do Candeeiro.
Ela, em certa altura, entre meu movimento de servi-la e o movimento
dela em receber o copo, percebeu meu olhar para o cachimbo de crack na
sua mão.
Ela tinha numa das mãos o cachimbo e na outra umas coisas de
roupas e apetrechos; foi inevitável que aquele ato trouxesse aquele objeto
emblemático à cena, e ele veio com muita força, pois veio acompanhado de
uma mão sobre uma barriga já bastante grande.
Era uma mão de dedos queimados e marcados por uma espécie de
graxa da rua. Meio que escorada, meio que segurando o cachimbo para o
99
próximo trago em cima da barriga, grandemente grávida, ela dispara: “É... é
essa a minha situação e eu não consigo sair dela”, o que me quebra entre o
ato de servi-la e o de olhar para seus olhos e dizer “Calma, tome a água, um
dia de cada vez”. Não conseguia pensar em outra coisa pra dizer.
Ela tomou, não quis comer nada, não pediu nada, não falou sobre
nenhuma outra coisa, como se não houvesse mesmo mais o que ser dito, e
não havia.
Ela então perguntou sobre a festa e eu afirmei que era mesmo uma
festa. Ela disse: “Ah... legal, legal. Eu faço artesanato, vendo as minhas
coisas.” “É mesmo? Que bonito isso? Onde posso encontrar o seu trabalho?”,
eu disse. Ela disse: “Vai lá na rodoviária. Lá todo mundo me conhece. É só
você perguntar da Hippie e todo mundo sabe. Eu tô lá todo dia. Eu queria
muito conversar com você, vou passar lá na semana que vem.”
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Ao fundo, festa no Beco do Candeeiro.
100
2.7. A Ilha Extrapola A Ilha
Fragmento 5
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Avenida Prainha.
Ao enunciar a tese de que existe uma comunidade de rua, situar
geográfica e espacialmente esta comunidade na Ilha do Bananal e afirmar
que esta comunidade vive no front porque vive violências típicas de uma
situação análoga à da guerra, também enunciamos que existem arte-fatos e
afetos que perpassam os laços entre essas pessoas, e que estas constituem o
que chamamos comumente de população em situação de rua. Esses arte-
fatos constituem-se aqui de fragmentos da realidade que são percebidos
como fenômenos de produção cultural e artística e serão pensados como os
grandes articuladores da comunidade e o seu entorno.
Outro fragmento de realidade se apresenta da seguinte maneira: ao
fazer uma apresentação teatral intitulada “Nem Pés e Mil Cabeças”, na
Rodoviária Central de Cuiabá, constatei exatamente a mesma coisa que me
disse um morador de rua em Brasília, de uma maneira um pouco diferente.
Na época ainda não estudava de maneira sistemática a população em
situação de rua – isto foi no ano de 2013. Estando eu em hotel muito grande
e tendo por hábito caminhar só, eu ficava só sempre que possível, para tecer
contato com outras pessoas que não o meu grupo de viagem. Desci até rua
em frente do hotel onde eu me hospedava.
101
Queria ficar por ali, sem muito que fazer e ver as pessoas que
passavam, um pouco do movimento da cidade. Não demorou para perceber
um morador de rua que por ali recolhia copos de mesas de uma lanchonete,
juntava um lixinho aqui outro acolá e acabava por encostar em algum
pequeno grupo para pedir.
Fiquei em seu caminho de propósito e não demorou ele chegar até
mim. Nossa conversa foi tão agradável. Ele falava de maneira fluente, limpa,
desenrolada, sem nenhum medo ou vergonha das coisas que dizia, do seu
corpo maltratado e de suas roupas surradas. Nossa conversa foi como de
pessoas quaisquer. Senti-me tão à vontade, usei gírias, pensei com ele, com
ele critiquei toda a gente e Estado, como costumo dizer, e ouvi fragmentos de
seus percursos encadeados com uma lógica precisa e uma coerência interna
da narrativa que realmente me marcou. Tudo isso num fluxo de conversa
com vento e clima muito agradável.
Brasília ficou no tempo e a apresentação a que me referi está já no
ano de 2014. Ao chegar à rodoviária percebi que alguns moradores que
vivem no entorno guardam seus colchões a preço de 2 ou 3 reais por dia na
parte de desembarque de ônibus, onde existe uma sala para se deixar malas
e pertences.
Como precisava guardar parte do cenário do espetáculo naquela sala
e percebi aqueles colchões enrolados com “matulas”, sacos e pequenas
sacolas que já figuravam na minha experiência como uma tática nômade,
resolvi perguntar para a atendente sobre aquelas bagagens. Comecei a
conversa perguntando se muita gente deixava as coisas por ali. Logo em
seguida emendei a conversa querendo saber se só quem estava viajando
poderia deixar as coisas ali, de que horas a que horas tinha funcionamento e
outras coisas mais triviais. Uma coisa importante é o valor.
Quando perguntei pra ela se ela poderia me dar um desconto porque
eu não tinha muito dinheiro pra pagar, ela revelou que sim, que poderia,
porque ela faz desconto também “pro pessoal da rua”.
A partir desse momento entrei no tema e ela foi contanto que tinha
um moço que sempre deixava o colchão lá, que já tinha sido roubado na rua
e agora estava sempre deixando o colchão lá. Ela já nem cobrava mais dele e
102
ele o pegava durante o dia pra dormir e durante a noite deixava lá. Perguntei
sobre uma bagagem que tinha pinos e um monociclo e ela falou sobre os
donos, um casal de malabaristas que estava na cidade já algum tempo e
usavam o sinal pra sobreviver.
Sobre os moradores, ela disse que eles deixam e às vezes passam
dois ou três dias sem buscar “a traia” e que fazem isso para garantirem o
sono durante o dia e não serem roubados ou pelas polícias ou por outros
moradores em busca de lugar para dormir. Percebi que esse dado constituía
mais um dos tantos mais da cultura da rua e especificamente da cultura de
morar na rua; que morar na rua, é, sobretudo, uma maneira de viver que
tem características semelhantes em vários pontos do país, porque me dizia o
morador em Brasília: “Ah dona, eu fico de rastrear as policias; se vejo que
elas vão pra um lado eu vou pro outro. Agora as polícias estão fazendo um
revezamento. Antes a gente conseguia saber quem eram os policiais que
estavam, por exemplo, perto do shopping. Agora eles tão mudando todo dia
de lugar. Cada dia os caras tão num lugar diferente; eu descobri isso dona,
porque eu não paro sabe: se eu parar eu morro. Eu tava num lado da
cidade, vi que tava juntando muita polícia, resolvi sair logo dali. Fui pro
outro lado da cidade e encontrei do outro lado um policial que sempre via em
outro lado da cidade. Daí que eu vi que era verdade mesmo que eles tavam
cada dia num lugar. Enquanto isso, Dona, enquanto eles tão correndo atrás
de mim, os bandidos tão assaltando, tão matando e eles tão correndo atrás
da gente. Ontem mesmo teve assalto aí ó (refere-se a uma praça), eu tava lá,
as polícias tudo atrás da gente. Eu saí logo de lá porque se não ainda pegam
a gente e levam e dizem que foi a gente que assaltou, já tive um companheiro
meu apanhado assim. Ele tava lá na praça, rolou assalto no banco, levaram
ele e disseram que ele assaltou, Dona. Eu não, eu corro mesmo, prefiro ficar
assim ó, perto das pessoas, aqui embaixo no hotel, nos lugares onde as
pessoas estão, porque na praça os cana leva mesmo, ou larga o cacete sem
dó, ou mata, ou então prende e diz que você é ladrão. Ah Dona, num dá
não.” Ainda ficamos conversando. Ele tomou alguma coisa comigo e depois
eu me fui e ele também...
103
Existem sempre motivos muito fortes tanto para o caminhar quanto
para a fixação temporária dos moradores em determinados locais. Esses
motivos podem relacionar-se a ficar marcado no território, estar esgotada a
possibilidade de explorar o território, ter se cansado do mesmo ou a
quaisquer outros aspetos e dimensões subjetivas que levam ao impulso do
caminhar.
Insistimos que essa tática também se dá no interior das comunidades
de moradores de rua, que existe um movimento auto-organizativo no sentido
de garantir que a mobilidade se dê em função não apenas de um modo de
vida, mas também como um modo de sobreviver, um modo de lidar com a
morte sempre à espreita. Dentre a maneira “mais segura” de vida está então
a vida caminhante, a vida que não para e que não pode parar. Desta
maneira, alguns pontos para uma pausa são fundamentais, mas essas
pausas são imprevisíveis e incapturáveis, e assim o morador passa sem ser
visto – é visto como ser passante e ao mesmo tempo invoca uma presença-
ausência que só ele é capaz de gerar e dela obter lucro.
O lucro é um outro fator a ser pensado e na ordem do dia do
morador de rua ele praticamente desaparece, dado que ele não se insere no
sistema monetário comum do dinheiro que transita de uma mão a outra com
valores definidos. Para os moradores, cada coisa tem valores distintos; cada
moeda também é valorada em outro sistema e esse sistema de comunidade
revela uma importante economia e esta economia também forma parte de
arte-fatos e de afetos da população em situação de rua.
O lucro raramente figura como uma alternativa; geralmente o que é
mais comum é a troca e essas trocas não são entendidas por nós, por que as
coisas, os objetos têm valor de compra e não de uso. Assim, um objeto
conseguido é trocado por um prato de comida que teria um valor muito
inferior ao do objeto, mas é apenas o necessário naquele momento e por isso
assume aquele valor fundamental de troca.
O lucro como finalidade, quando ocorre, tem o sentido de garantir um
aumento do consumo de alguma substância ou comida. Assim, quando um
morador pega uma droga por um valor e vende por outra, geralmente usa
imediatamente o valor acrescido como valor de compra porque ou deseja
104
ingerir mais da substância ou deseja pagar algum favor recebido com o
bocado a mais que conseguiu.
105
PARTE 3
DAS ILHAS
3. ILHAS NASCENTES, ILHAS EXTINTAS E ILHAS DESERTAS
Foto: Eliete Borges Lopes – agosto de 2016 – Av. Miguel Sutil.
Foto: Eliete Borges Lopes – outubro de 2016 – Av. Miguel Sutil.
106
3.1. Das Jangadas De Pedra23
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Lateral do Big Lar.
O fenômeno de morar na rua possui muitas maneiras de acontecer,
maneiras acidentais e maneiras altamente calculadas, como tática de
sobrevivência ou como vida que ganha em potência, como contingência e
como saída, condição de possibilidade.
Para pensar o fenômeno da rua pensamos com o pequeno, o
insignificante, com as lógicas do que é ordinário (Certeau), não desejamos
invocar lógicas e exegeses a priori. O que acontece é dado em grande medida
pelo que passa, aquilo que nos atravessa – o que atravessa a pesquisa, de
maneira a pensar como somos impactados pelas vivências da rua e como
podemos impactá-las, mas não nos deixemos enganar crendo que apenas o
que aparece seja um dado a circunscrever o contexto local imediato.
23 Referência ao livro Jangada de Pedra de José Saramago, em que Saramago conta as peripécias dos moradores de
uma imensa lasca de pedra que começa a se desprender e navegar tal qual uma ilha flutuante; assim a história de Zé se inicia: Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cérbere começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se.
107
As imagens da rua: o que pensar sobre as imagens da rua? As
imagens são um perigo constante, advertia Walter Benjamin, um perigo
iminente a substituir a realidade mesma pela sua capacidade de valor de
verdade e de aderência à realidade. Sua advertência vai, sobretudo,
referindo-se às imagens da propaganda.
Nietzsche também irá advertir quanto ao estardalhaço dos grandes
acontecimentos, estes como uma dimensão audível, portanto uma dimensão
não da visão, mas da audição. O que se faz ouvir das ruas?
Nietzsche fará o seu alerta quanto aos grandes acontecimentos que
impregnam com a aura do grandioso, do esplendoroso e necessariamente
invoca a reificação das formas consagradas, e que, portanto. não permitem
vir o novo.
Acabamos por ter em mente essas advertências para pensarmos na
contramão delas – pensar a partir do que é o cotidiano –, o que até certo
ponto se mostra também muito adequado à vida que se leva na rua, jogando
duplamente como o aparecimento e com o apagamento, aparecimento do
fenômeno como fenômeno grandiloquente e apagamento do fenômeno
enquanto “esquadrinhável” ou “aprisionável”, assim funcionando como
pistas, rastros, que visam levar a muitos lugares e nunca a uma única
maneira de ver e sentir. Em um livro chamado Almoço Nu, o seu autor, um
maldito marginal beatnick conta sobre as muitas formas que tinham de se
comunicar para deixar passar drogas, marcar territórios e penetrar em zonas
intersticiais, como o caso da interzona24, de maneira que uma garrafa em
cima de um muro pelas ruas onde transitavam tinha um dado significado,
um pedaço de tecido outro significado, e assim codificavam todo o território.
Também aqui se trata disso, mas entendamos que não apenas disso,
também de como se chega a estar em uma interzona, no sentido de uma
zona sem território, ou em uma terceira margem de rio, ou mesmo numa
fronteira em seu sentido mais rico – numa jangada de pedra, flutuando pelo
mar à deriva... São todas metáforas para dizer da expropriação da terra e do
território.
24 BURROUGHS, W. S. Almoço Nu. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
108
Em sua tese “Habitar a rua”, Kasper25 diz da marca do território da
rua, que é o “quintal” varrido, como demarcando o seu espaço, o “quintal-
rua”, canteiro. Aquele pedaço de chão em que o morador de rua se encostou
passa a ter a marca do seu trabalho; passa a ter um traço de sua cultura e
passa a ser assim um estriamento do espaço liso do urbano, que se quer
sem marcas.
Para falar desses temas da rua, escolhemos essas poéticas,
escolhemos fragmentos, desusos, descartes, desterros em suma:
desutilidades poéticas.
A vida na rua em sua dimensão existencial, cultural, social,
ambiental se auto-organiza permeada de acontecimentos, acontecimentos
estes que não ganham a dimensão de eventos no sentido da indústria, mas
sim eventos no sentido filosófico daquilo que é o que funda o novo e que
podemos ver sua força em sua maneira de se manifestar, denotanto sempre
um estilo, sempre uma inscrição marcada pela intencionalidade, uma
maneira de produzir diferenças, de produzir marcas no urbano.
“Que o barulho e a profusão de sons, o estardalhaço dos grandes acontecimentos nem sempre são, diria, tão vitais assim, e que, pelo contrário, pode mesmo camuflar uma falta de vitalidade. Que vida e morte são um duplo e muitas vezes quando os discursos se prestam a uma pretensa defesa da vida, eles escondem um outro discurso, que é o discurso de morte. Ou, quando se pretende uma certa liberdade acadêmica, se desvela também um instinto de mando absoluto do Estado.” (Lopes, Otobiografias – Escuta-Estilo-Escrita Para a Autobiografia e a Autoformação, 2010)
Essa dimensão de mando do Estado, de organização, de
esquadrinhamento da vida nua é presente nas políticas e no modus operandi
das instituições. Uma das principais leis, no sentido de se fazer existir um
imperativo, é a da limpeza. A limpeza urbana historicamente é abordada do
ponto de vista da saúde, da organização coletiva, do direito etc., sendo este
um discurso que justificou a colonização, por exemplo, da cultura dos povos
nativos brasileiros.
25 KASPER, Christian Pierre. Habitar a rua. 2006. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Unicamp, Campinas,
2006.
109
Por cidade limpa, entende-se aquela que esconde as pessoas com
baixa renda e principalmente as que não possuem renda, aquelas que têm
na rua seu meio de existência, aquelas que sobrevivem do lixo, aquelas que
não servem aos ideais sépticos das instituições, pois, como salienta a
professora Ermínia Maricato, “Pobre não evapora”. É preciso escondê-los.
Este processo de limpar as cidades não é recente. Já no início do
século 20, a então capital do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro, passou por
uma transformação coordenada pelo poder municipal e federal que ficou
conhecido por Plano Pereira Passos.
Em Cuiabá, vários processos atingem a região do Porto e o Centro,
incluindo a região da Ilha do Bananal, que deveria ter sido destruída para a
passagem do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) projeto ao qual foi destinado
mais de 1 bilhão de reais e integrava as obras da Copa do Mundo 2014.
O higienismo promovido pela Copa de 2014 incorporou novas formas
e novos discursos e tem sua raiz nos processos de gentrificação como um
processo de dominação e apropriação do espaço, através da consagrada
união entre discurso desenvolvimentista, segurança e embelezamento.
Este processo redefine os grupos sociais que ocupam determinado
espaço da cidade e transforma os contextos e usos dos espaços legando
muitas vezes a quem habita o território apenas o vazio geográfico ou mesmo
a expulsão sistemática.
Estas ações são afinadas política, estética e eticamente com um
projeto elitista, que visa uma pobreza que seja inodora, incolor e insípida –
que esteja bem distante, enquanto não se pode ou enquanto não se
consegue eliminá-la. Lembremos que isso também ocorre com a chegada das
classes médias a bairros populares através principalmente de condomínio
fechados e que em todas as cidades médias e de grande porte tem sido uma
constante.
A vida no espaço possui uma série de dimensões: morfológicas,
culturais, políticas, socioeconômicas e todas estas entrelaçadas, e são estas
dimensões que diferenciam os lugares. Os lugares são assim constituídos
através das relações sociais projetadas no espaço e estão diretamente
relacionadas ao modo como vivenciamos os espaços por meio da experiência
110
pessoal e intransferível, que é o instrumento do nosso corpo e seus sentidos.
O espaço é visto, tocado, ouvido, cheirado e provado, quando se come uma
manga de uma mangueira nascida num canteiro ou num quintal, por
exemplo.
No processo de dominar e controlar os espaços pelas transformações
gentrificadoras, produzimos e reproduzimos a segregação espacial baseada
na condição socioeconômica. Isso leva a uma sociedade que não convive e
logo não tolera a diversidade, o diferente e as contradições do modo de
produção capitalista. Este aspecto figura nos discursos locais em relação aos
moradores de rua e mais especificamente em relação aos moradores de rua
do centro da cidade.
O conceito de lugar é um dos balizadores dentro da geografia.
Quando nos deparamos com a geografia cultural e humanista, este conceito
se torna importante, pois é no lugar em que vivem os/as homens/mulheres
que sua subjetividade é criada e valorizada, onde os laços sociais são
estabelecidos. A perspectiva que predomina é a do espaço vivido. Em outro
momento foi um conceito ligado a distâncias e localização; hoje está
associado à identidade.
O lugar é o espaço que possui determina função em relação ao bairro
no qual se insere, à cidade a que se insere e à vida individual dos moradores
e visitantes. Destacamos que este “espaço vivido” não é estático, mas
dinâmico. Lugares que outrora foram atrativos para o capital e mantiveram
uma rica vida social para a classe dominante já não o são mais em muitas
cidades.
Os pontos históricos de diversas cidades perderam o seu “campo de
força” para atrair e manter o aspecto de centro comercial. O bairro do Porto,
em Cuiabá, é um exemplo de lugar que se transformou com o tempo,
antigamente, único meio de circulação de bens, serviços e pessoas na
cidade, pois ainda não se contava com o Rio Cuiabá e sua vertente pela
Prainha, fora o eixo estrutural da cidade. Tornou-se com o tempo um espaço
marginalizado, excludente, carregado de simbolismos negativos aos olhos da
cultura hegemônica: fedido, sujo, imundo, inseguro, degradado, etc.
Observamos no bairro que existe um grande fluxo de pessoas, mas que, em
111
geral, estas não permanecem, apenas passam. Quem ali reside é quase
invisível aos olhos daqueles que por lá passam. Demograficamente, o bairro
vem decrescendo populacionalmente, ao menos as pessoas contabilizadas
pelo CUIABÁ (2007). Entre 2000 e 2007, o bairro perdeu 10% de sua
população, sendo este um dos grandes motivos. Isto significa que a
população de rua que resiste no Centro Norte de Cuiabá – que é também o
Centro Histórico e, no caso, a Ilha do Bananal –, é uma população que
resiste à exploração imobiliária, o que os moradores da região não
conseguiram fazer e cada vez conseguem menos, dadas as condições
adversas: IPTU, água e energia elétrica cobrados em valor diferenciado, falta
de conforto ambiental (sonoro e de tráfego), dificuldade com entrada e saída,
garagens, calçadas e passagens, dentro outros motivos.
Desde que comecei a observação da comunidade da Ilha do Bananal
havia percebido e comentado de maneira recorrente, com meu orientador,
amigos e nas disciplinas que cursava, que havia um crescimento da
população em situação de rua na cidade de Cuiabá.
Isto eu constatava diariamente pela observação, dado que algumas
pessoas que eu já conhecia estavam andando com outras que nunca tinha
figurado em minhas retinas. A questão é que em dois episódios percebi que
havia uma grande quantidade de pessoas na Ilha do Bananal, pois conto a
quantidade de vezes em que os moradores passam por carros correndo entre
a comunidade e o Beco do Candeeiro e deste para o Morro da Luz. Da última
vez em que estava no ponto de ônibus, houve 9 episódios do gênero.
O movimento que hoje percebo na cidade de Cuiabá é o da retirada
dos moradores de um lugar, enquanto erguem-se barracos em outro. Assim
percebemos um movimento de cair barraco dum lado e levantar barraco do
outro. Não conseguimos, porém, ainda descobrir se parte da população em
situação de rua está circulando por essas desapropriações e re-apropriações
do espaço, ou se são pessoas novas que estão chegando à rua, ou se mesmo
há um emaranhado de situações, em que se misturam novos e velhos
habitantes da rua.
O certo é que essa população tem sido constantemente desabrigada e
tem procurado cada vez mais lugares inusitados e suas alternativas têm se
112
tornado cada vez mais combatidas pelo Estado e mesmo por organizações
privadas, sejam elas de segurança, donos de propriedades, ou mesmo
invasores que possuem o aval do Estado para tal, como no caso da compra
de títulos de cartório de terras do Estado a preços irrisórios, política
mantida, por exemplo, pela oligarquia Campos na cidade vizinha a Cuiabá, a
cidade de Várzea Grande.
Tanto o desabrigamento quanto a despossessão da terra são motivos
pelos quais historicamente tem sido levada às ruas uma população de
pessoas pobres, negras e empobrecidos, que se tornam a população em
situação de rua.
O que queremos dizer é que existe uma maneira de pensar e viver a
rua que é derivada da conjugação de pelo menos dois aspectos que
convergem em muitas histórias de vida: a perspectiva de que ao se perder o
lugar a pessoa precise ir para a rua e a perspectiva de que a pessoa,
sentindo-se sem lugar, também necessita da mesma para viver.
Essas duas dimensões tentam ser exploradas neste trabalho, pois
acreditamos que as pessoas são levadas à rua não tão somente por questões
de falta de referência em seus vínculos subjetivos.
Sabemos que esses processos se implicam mutuamente e que os
determinismos de tipo social, a miséria, a fome, a falta de moradia leva as
pessoas à rua, mas fazemos uma ressalva de que geralmente essa dimensão
social está implicada no empobrecimento, na falta de acesso à educação, na
dificuldade em lidar com problemas de saúde e problemas de saúde mental,
bem como dependência química e a falta do emprego ou a perda dele.
A questão é que a pessoa em situação de rua pode ter seus laços, sua
história, sua vida fragmentada, partida e perpassada por todos esses fatores
e que há na estrutura social grande participação nesse processo – dentre
todos os processos, destacamos para além dos conflitos subjetivos, a questão
de conflito com o Estado.
Sabemos que diversos países do mundo passam por processos que
tornam os lugares uma disputa entre aqueles que habitam o lugar e os
projetos de Estado. Assim, vamos aqui caracterizar apenas a despossessão
113
da terra como um fator problemático a ser encarado do ponto de vista da
ocupação da terra e do território.
“Os mecanismos de aquisição das terras públicas, assim como o aparato jurídico (ou sua ausência) que sustenta os processos de expropriação, são profundamente dependentes das relações políticas estabelecidas entre o Estado – que expropria – e os indivíduos ou comunidades – que são expropriados. Em geral, as desapropriações ou eminent domain – ou seja, a capacidade soberana do Estado de requisitar terras para si, alegando razões de interesse público – estão estabelecidas nas leis e normas que regem a aquisição de terras públicas.” (ROLNIK, 2015, p. 228)
Em seguida a autora contextualiza as experiências da China e Índia,
países nos quais existe, como no Brasil, uma profunda assimetria entre os
expropriados e os promotores do projeto de expropriação, a começar pela
condição em que está colocada a população, comunidade ou as pessoas
expropriadas. A necessidade do dinheiro dada sua condição de
vulnerabilidade, somada à ignorância quanto aos seus direitos e ao valor que
pode ter a terra expropriada, cria um cenário de fácil apropriação pelos
donos do projeto de expropriação e que, no caso da China, soma-se ainda à
paramilitarização na negociação dos títulos.
Estes exemplos de como a nova burguesia planetária, com aporte do
Estado a partir dos projetos de financeirização da moradia e de expropriação
da terra, dão-nos o panorama daquilo que David Harvey26 fala sobre o
projeto de conexão mundial entre os novos donos das terras e dos territórios
das cidades, que cada vez avançam mais na expectativa da construção de
campos ilimitados da propriedade privada, com a urbanização planetária.
26 Para ver esta questão em minúcias, ver o vídeo do Encontro: Direito às cidades e resistências urbanas. Fortaleza, 2015. Acesso em : https://www.youtube.com/watch?v=TJ-fcdFnSAE
114
3.2. Comunidade Nascente
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do
Moinho, imediações do Bairro Pedregal.
O Bairro do Pedregal situa-se ao lado da Universidade Federal de
Mato Grosso e surgiu de uma ocupação popular. Houve várias tentativas de
retirada das pessoas desse local, mas como ele é bem localizado, também
houve bastante resistência. As pessoa7s sabem que o fato de ser do lado da
UFMT conta muito, além de ser um lugar estratégico do ponto de vista que
há saídas para todos os lados, o que torna o bairro um complexo repleto de
fluxos.
A população desta região teve constante interação com a
Universidade, seja por conta do grande parque que é a Universidade e pelo
que ela oferece em termos de serviços aos usuários, seja como passagem,
pois há algum tempo, para sair para a Avenida Fernando Correa era preciso
passar por dentro do campus.
Quando de sua construção, as pessoas do bairro iam até a
Universidade para apanhar restos das obras de construção, dado que a
115
população pobre cozinha à lenha e necessitava do que era rejeitado ou
descartado pelas obras. Não raro havia cenas em que mulheres com pedaços
de lenha na cabeça, entre pessoas a passear pelo campus, se misturavam a
homens que passavam de bicicleta com suas marmitas indo para o canteiro
de obras.
Nesta região uma das alternativas de vida das pessoas e que se
consolidou de maneira muito forte é o tráfico de drogas. O uso de drogas em
locais públicos do entorno da antiga Universidade Popular é uma cena
corriqueira, e por ali transitam muitas pessoas.
Figuras históricas como Juca do Guaraná Pai e Juca do Guaraná
Filho, que tiveram investigações perpetradas contra suas candidaturas por
acusações de tráfico de drogas e compra de votos com a mesma moeda,
residem no bairro e fazem, por exemplo, entregas de cadeiras de rodas em
época de campanha – se elegem da miséria que perpetuam.
As imagens acima, no entanto, dão conta de uma comunidade
nascente no bairro onde residem ambos os políticos locais citados.
Essa região é uma região que foi “limpa” recentemente para a
construção de um grande edifício na margem da Avenida das Torres. A
“limpeza” durou alguns meses e em meados do mês maio de 2016 as
pessoas começaram a voltar.
Hoje existe uma nova instalação no mesmo lugar onde antes havia os
outdoors que ironicamente falam sobre a soja do nosso Estado e sobre os
condomínios para a classe média, outdoors sobre soja e condomínio que
abrigam sem tetos, moradores de rua, desabrigados e pessoas com
sofrimentos psíquicos e dependência química. Essa é imagem que vemos na
entrada do bairro e que, segundo o Sr. João Emanuel, precisa ser “limpa”.
116
Foto: Google Maps – 2016 – Visão do Bairro Pedregal de uma lado e Jardim
Itália do outro.
Não são apenas os discursos de limpeza que circulam em torno da
população em situação de rua, mas, dentre eles, um dos que mais tem se
mostrado é o da limpeza.
Esses discursos, alguns mais preconceituosos passam como que
incontestáveis para o senso comum – discursos como os de que “morador de
rua escolheu morar na rua”, “morador de rua ‘enfeia’ a cidade”, “morador de
rua é sujo”, “morador de rua é alienado”, “morador de rua é lixo
contaminante”, “morador de rua não gera renda”, “morador de rua é
drogado”, “morador de rua é violento”, “morador de rua é inferior na escala
social” e “morador de rua improdutivo”.
A maneira como esses discursos estão impregnados na lei e na
maneira como se pensam as políticas públicas é um capítulo à parte na
história das ruas do Sul e das ruas brasileiras.
A sociedade brasileira, como bem observou Sergio Buarque de
Holanda, é heterogênea, segregacionista e elitista. Caso não tenhamos nosso
olhar sensível e sensibilizado, corremos o risco de reproduzir esta mesma
lógica e agir como opressores, mesmo sendo e estando entre oprimidos, e
mesmo de legitimar políticas que reforçam violência e discursos de morte.
117
Pensar políticas para a população em situação de rua neste sentido é
algo bastante delicado, pois é necessário levar em conta esses e outros
aspectos da vida e da vida na rua.
De maneira alguma queremos com isso dizer que não seja necessário
pensar uma política para a população em situação de rua; o que advertimos
é do perigo dessas políticas incorrerem nos mesmos erros das políticas das
instituições de repressão ou mesmo de inserção que reforçam estigmas ou
pensam a normatividade como regra para a ressocialização, re-integralização
ou qualquer outro termo usado neste mesmo sentido.
A vida nas cidades, do ponto de vista físico, arquitetônico e/ou das
relações sociais, constitui geralmente um espelhamento da sociedade e
cultura segregacionistas e esta compartilha uma visão de mundo
eurocêntrica e conivente com a destruição dos saberes-poderes-estéticas e
que, portanto, atuam na produção das subjetividades, como subjetividades
de lixo.
Essas oposições binárias e não complementares contrapõem a
subjetividade de lixo ao seu oposto, isto é, a subjetividade de luxo. Isto
significa, por outro lado, que, mesmo habitando o espaço geográfico e físico,
o lugar social que cada um ocupa é o que vai separar e escalonar a todos.
As práticas-discursivas e o controle das populações, no caso da
população em situação de rua, denotam que o fenômeno da produção das
“subjetividades da rua” possui gradientes que podem incorrer em aspectos
que vão da negação, invisibilização, segregação e opressão desse segmento a
crimes como a agressão, assassinato, estupros e chacinas, dentre outros
tipificados pelo Código Penal, e que colocam a sociedade brasileira em
permanente comprometimento quanto à garantia de Direitos e em uma
problemática reveladora da distância entre possuir uma das legislações mais
avançadas do mundo e penar socialmente quanto a sua não-implementação.
Além dos crimes, existe uma gama de prisões, internações e
interdições perpetradas pelo Estado e que coloca o projeto de cidadania
plena em xeque. Isto se soma à problemática dos Direitos Humanos
constituírem apenas um arcabouço teórico e não um aparato jurídico.
118
O modus operandi, calcado na visão eurocêntrica, pelo qual Estado e
Sociedade fundam as práticas-discursivas sobre a subjetividade de lixo e a
subjetividade de luxo, tem na cidade o ponto principal das relações de
dominação econômica e sociocultural.
Essas práticas têm na expropriação do território e do saber-poder, a
saber, daqueles que na cidade se organizam à margem, um ponto
fundamental de sua estratégia de extermínio. Uma das principais práticas
discursivas do ponto de vista do controle e que propiciam o extermínio e a
internação dos moradores de rua é a prática da limpeza.
Os moradores de rua sofrem duplamente o impacto absolutamente
brutal da expropriação como limpeza. Quando na rua, vivendo e
sobrevivendo (d)nela, pessoas nomeadas simplesmente por moradores de rua
– geralmente aquelas que já tiveram todos os seus bens simbólicos, culturais
e materiais expropriados – ainda sofrem a imposição de outra expropriação:
a expropriação de seu corpo (prisão, internação, interdição e morte):
expropriação da subjetividade, transformação da subjetividade em lixo, para
assim, através do estigma como processo, justificar o seu abandono,
desaparecimento, encarceramento, isolamento e morte. Essa expropriação
coloca em xeque a própria cidade em sua dimensão fundante, quer seja: a de
socialização, relação, interação e de vivência urbana.
119
3.3. Ilha Do Out-door
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do
Moinho, imediações do Bairro Pedregal.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do
Moinho, imediações do Bairro Pedregal.
120
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do
Moinho, imediações do Bairro Pedregal.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Comunidade moradora de rua na Estrada do
Moinho, imediações do Bairro Pedregal.
É interessante notar todo o valor simbólico e criativo guardado nas
imagens desta comunidade nascente. Primeiro, o fato de estarem sob placas
utilizadas para veicular propagandas, um símbolo do capitalismo. Outro
ponto importante é a forma de muro que tomam as placas.
121
Um muro que é ao mesmo tempo uma parede, uma parede que pelo
lado de fora veicula ideias além daquelas mesmas já expostas pelo uso de si
como um objeto do capitalismo que adquire um uso novo pela população em
situação de rua. Pensar no seu uso dá conta de pensar também o uso
mesmo do espaço, do território da comunidade que está situada numa
espécie de morro de terra feito a princípio para promover a “limpeza” dos
lotes situados imediatamente ao lado, ou mesmo proporcionado por um
corte no terreno, ou ambos os processos.
Do ponto de vista das imagens temos a propaganda de um grande
festival de música. No Cerrado Groove Festival, geralmente se paga a entrada
e moradores de rua não são toleráveis. Outro outdoor trás a frase: “A
COLHEITA DESSE ANO FOI A MELHOR QUE JÁ TIVEMOS”, insinuando por
um lado que o que mais importa no estado é o agronegócio e, por outro, que
o fogo é um perigo, já que o outdoor traz o meio dele com a imagem
esburacada, como se tivesse sido queimada. Abaixo, um alerta sobre o fogo
que pode queimar as plantações, mais um aspecto problemático do Estado
de Mato Grosso, pois sabemos que o agronegócio concentra o latifúndio,
portanto o monopólio da terra que lega às pessoas a impossibilidade de um
território para habitar, questões diretamente ligadas aos fenômenos de rua.
Outro, o mais irônico de todos os outdoors, é justamente o de um
condomínio. Propaganda de condomínio de classe média num outdoor em
que nasce embaixo de si uma comunidade de rua só pode ser uma ironia do
sistema capitalista.
122
Foto: Eliete Borges Lopes – 2013 – Lateral do córrego ao final da Av. das Torres.
Ironia trágica presente nesta imagem às margens de um córrego ao
final da Avenida das Torres, ela mostra um grande outdoor com a
propaganda de condomínios de casas com 2 quartos que traz ao lado do
escrito uma imagem de um playground, um parquinho. A comunidade da
lateral deste córrego não conta com nenhuma área de laser. O quintal
minúsculo de uma casa também minúscula e com o telhado de eternit –
telha de amianto hoje proibida pela legislação ambiental – não existe mais
pois a população foi retirada para a canalização do esgoto e não se tem
notícias de onde estão hoje. Como dizem os vizinhos, “cada um foi pra um
canto”.
Essa comunidade retratada nas fotos anteriores em meados de
setembro – e que passou por uma recente interdição em maio de 2016, pelo
fechamento com cerca de uma grande área vizinha destinada à construção
de um edifício – está passando por um novo processo de desagregação que
veio com a retirada dos outdoors.
As imagens abaixo feitas em 25 de outubro de 2016 mostram o
reordenamento:
123
Foto: Eliete Borges Lopes – Outubro de 2016 – Estrada do Moinho.
Foto: Eliete Borges Lopes - Outubro de 2016 - Estrada do Moinho.
124
Foto: Eliete Borges Lopes – outubro de 2016 – Estrada do Moinho.
Foto: Eliete Borges Lopes – outubro de 2016 – Vista da Estrada do Moinho.
As semanas que se seguem serão fundamentais para a
compreensão do devir dessa comunidade nascente. A dificuldade de acesso a
essa comunidade é grande dado que alguns barracos estão literalmente no
meio do mato e como não há nenhum conhecido nosso da pesquisa, ao
125
menos até o momento não localizamos nenhum, uma abordagem repentina
poderia incorrer em uma situação de perpetrar ainda mais violência a essas
pessoas.
126
3.4. Comunidade Extinta
Foto: Google Street View – 2014 – Lateral da Rodoviária.
Foto: Google Street View – 2014 – Lateral da Rodoviária.
127
Aqui mencionamos brevemente a comunidade extinta da lateral da
rodoviária, apenas para dizer do impacto das políticas públicas sobre a vida
da população em situação de rua.
Na lateral da Rodoviária Central de Cuiabá, existia uma comunidade
em situação de rua que desapareceu com a medida de internação
compulsória baixada pela prefeitura à época da Copa do Mundo. Como na
situação do “baculejo nervoso”, uma vez mais a justificativa para a
interdição e prisão da população em situação de rua concentra-se no uso de
drogas.
A indistinção proposital entre os que consomem drogas e os que
traficam drogas leva usuários à prisão por conta de uma seletividade, por
um lado, e uma indistinção, por outro.
Esta comunidade que se situava na lateral da Rodoviária Central foi
dissipada em parte pela internação compulsória e em parte por boatos de
que seriam eliminados. Agora a comunidade está nas proximidades desta
região, na rua Tereza Lobo, em frente ao Jornal Folha do Estado. Dentre esta
população, que é bastante grande a ponto de formar uma população de rua e
que conta com um contingente de usuários de crack, aconteceu um episódio
que há muito não presenciava. Encontrei dentre eles uma adolescente que
fumava crack e que consegui registrar. Há muito tempo não registrava
nenhum(a) adolescente na rua, dado que seu recolhimento ao Pomeri ou a
outro centro de internação para adolescentes, que funcionam como cadeias,
é imediato.
A declaração do autor da proposta, o vereador João Emanuel é a
seguinte:
“Quanto à internação compulsória, João Emanoel, ponderou que ‘é providencial agirmos rápido para resgatar esses semelhantes alienados pelas drogas. É preciso desenvolver uma grande ação de limpeza para extirpar as cracolândias instaladas em vários locais da capital, a exemplo das proximidades do jornal Folha do Estado, bairros Pedregal, Leblon, Terminal Rodoviário, Porto e em outros lugares. Retirar o dependente químico das ruas e tratá-lo é fazer um bem para todo o povo de Cuiabá’”27.
27http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?noticia=Internacao_compulsoria_podera_ser_adotada_em_Cui
aba_Camara_discute&id=315710 (Acessado em 08/11/2016)
128
Nas palavras do então presidente da Câmara dos vereadores de
Cuiabá, João Emanuel do PSD, aparecem todos os discursos que persistem
em torno dos moradores de rua – que é a sua vinculação ao uso de drogas
como uma dimensão da vida inconciliável com a própria vida e passível de
punição pelo poder público. É a ideia de que o morador de rua é um usuário
de drogas e que ele precisa, por isso e por outros motivos, certamente, ser
resgatado, o que também é uma dimensão presente no sistema de saúde,
nas casas e entidades de proteção e que é recorrente nos discursos
salvacionistas que entendem o dependente químico como aquele que sofre e
está condenado – por isso merece ser salvo. A ideia, dentre todas muito
problemática, é aquela que diz sem nenhum tipo de censura da necessidade
de limpar a cidade das “cracolândias”.
O discurso do vereador em questão encontra junto da população um
respaldo. Isto, sem sombra de dúvida, assusta, posto que, com o aval dado,
este tipo de político costuma a agir passando leis como a da internação
compulsória e as de recolhimento, prisão e interdição, o que significa que na
esfera política há um amplo combate a ser travado. No entanto, a questão
que se insinua é: quem poderá fazê-lo?
Vamos dar destaque a apenas à dimensão do higienismo, da limpeza
que o vereador João Emanuel propõe, para dizer que esta incorporou novas
formas e discursos, mas que continua sendo semelhante a processos
históricos que se deram tanto no Brasil quanto fora dele – processo chamado
por alguns teóricos de “gentrificação”, um processo de dominação e
apropriação do espaço através da consagrada união entre discurso
desenvolvimentista, segurança e embelezamento, redefinindo os grupos
sociais que ocupam determinados espaços da cidade. Estas ações são
afinadas política, estética e eticamente com um projeto elitista, que visa uma
pobreza que seja inodora, incolor e insípida – que esteja bem distante,
enquanto não se pode ou enquanto não se consegue eliminá-la.
A gentrificação é considerada um fenômeno agregado em quatro
processos similares e complementares: o primeiro é o de reorganização da
geografia social da cidade, com substituição, nas áreas centrais da cidade,
de um grupo social por outro – claramente uma questão de classe; o
129
segundo é um reagrupamento de pessoas com estilos de vida e
características culturais muito similares; o terceiro, a transformação do
ambiente construído e da paisagem urbana com a criação de novos serviços
e uma adequação residencial que prevê melhorias arquitetônicas e urbanas;
por último, uma mudança da ordem fundiária, o que, na maioria dos casos,
determina a elevação dos valores de venda das propriedades.
A vida no espaço possui uma série de dimensões: morfológicas,
culturais, políticas, socioeconômicas e todas estas entrelaçadas, e são estas
dimensões que diferenciam os lugares. Os lugares são assim constituídos
através das relações sociais projetadas no espaço, diretamente relacionadas
ao modo como vivenciamos os espaços por meio da experiência pessoal e
intransferível, que é o instrumento do nosso corpo e seus sentidos.
O espaço é visto, tocado, ouvido, cheirado e provado. Quando se come
uma manga de um pé numa rua, se prova a dimensão do espaço de maneira
que esta experiência é um todo de cultura e de uma política do espaço tudo
isso dado ao ambiente.
Como afirma Guattari, este processo leva a formação de identidade e
subjetividade:
“A cidade produz o destino da humanidade: suas promoções assim como suas segregações, a formação de suas elites, o futuro da inovação social, da criação em todos os domínios. Constata-se muito frequentemente um desconhecimento deste aspecto global das problemáticas urbanas como meio de produção da subjetividade.”28
No processo de dominar e controlar os espaços pelas transformações
gentrificadoras, produzimos e reproduzimos a segregação espacial baseada
na condição socioeconômica. Isso leva a uma sociedade que não convive e
logo não tolera a diversidade, o diferente e as contradições do modo de
produção capitalista.
Esse é um problema típico que atinge as populações e ainda mais
aquela em situação de rua. Configura, junto às questões ambientais, um
drama urbanístico, dentre muitos outros.
28 GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 173.
130
“O drama urbanístico que se esboça no horizonte deste fim
de milênio é apenas um aspecto de uma crise muito mais
fundamental que envolve o próprio futuro da espécie humana
neste planeta, sem uma reorientação radical dos meios e,
sobretudo, das finalidades da produção, e o conjunto da biosfera
que ficará desequilibrado e que evoluirá para um estado de
incompatibilidade total com a vida humana e, aliás, mais
geralmente, com toda forma de vida animal e vegetal. Essa
reorientação implica, com urgência, uma inflexão da
industrialização, particularmente a química e a energética, uma
limitação da circulação de automóveis ou a invenção de meios de
transportes não-poluentes, o fim dos grandes desflorestamentos...
Na verdade, é todo um espírito de competição econômica entre as
empresas e as nações que deve ser novamente posto em questão.
Existe aí um tipo de corrida de velocidade entre a consciência
coletiva humana, o instinto de sobrevivência da humanidade e
um horizonte de catástrofe e de fim do mundo humano dentro de
alguns decênios!” 29
29 Ibidem, p. 172.
131
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Rua Tereza Lobo.
132
PARTE 4
POÉTICAS
4. DAS DESUTILIDADES, CRÍTICAS E POÉTICAS DAS ILHAS
“(...) A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos que voam por dentro dessas ruínas. Dos restos humanos fazendo discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres que correm por dentro de nós e das casas. Aos poetas do futuro caberá a reconstrução - se houver reconstrução. Porém a nós, a nós, sem dúvida resta falar dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas - e está cego. Cego e torto e nutrido de cinzas (...)”
Manoel de Barros
Chegamos num momento em que passamos da observação e da
descrição do fenômeno circunscrito à Ilha do Bananal para conceber como
outras ilhas integram a paisagem da cidade de Cuiabá.
Partimos de pontos geográficos específicos situados na experiência
pessoal e na experiência do urbano como territórios afetivos30. Esses lugares
são praças e espaços públicos em geral, que são o suporte das intervenções
da população em situação de rua e também dos artistas de rua.
Neste momento a perspectiva é uma vez mais instaurar a dimensão
fundante desta tese no relevo daquilo que estamos chamando de vida no
front e pensar como essa vida no front cria desutilidades poéticas31, assim
como nas palavras de Manoel de Barros: “As coisas tinham para nós uma
desutilidade poética./Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso
dessaber.32”
Pensamos as ilhas que poderiam compor este desenho e chegamos à
conclusão de que alguns pontos da cidade mereciam um enfoque enquanto
lugares dos quais emergem ilhas, ilhas poéticas, ilhas que fazem o urbano
30 A ideia de território afetivo foi largamente debatida principalmente relativa às manifestações da cultura popular,
incorporada nas políticas do Governo Federal através do Programa Mais Cultura nas Escolas http://www.cultura.gov.br/educacao-e-cultura 31 O termo desutilidade poética foi roubado de Manoel de Barros. É o título de um dos seus livros de poesia. 32 BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 2001.
133
diferir, ilhas que tornam o contexto da cidade impregnado de significados da
cultura popular e que ensinam que a cidade pode sim pertencer a todos.
Alguns desses lugares são historicamente reconhecidos como uma
importante parte da cidade, como é o caso do bairro do Porto; outros nem
tanto. O Centro, por exemplo, apesar de sua importância histórica, não tem
ganhado muitos relevos de importância nas políticas de restauro do
patrimônio ou de acesso da população e acaba por figurar como centro
comercial, sendo restrito a algumas partes como a praça da mandioca e
algumas ruas que ganham o destaque de projetos de artistas locais e que
com o tempo, após estes processos que revitalizam as práticas, são tomados
pelos comerciantes que gananciosamente começam a cobrar por banheiros,
calçadas e praças.
Os trajetos, criações, diferenças, isto é, as performances dos
moradores de rua, compreendem uma série de fragmentos que mostram as
apropriações do espaço, a imensa força dessas apropriações e as variações
inventivas do espaço urbano a partir do território das comunidades ou das
ilhas.
Estes fragmentos criados, performatizados, inventados a partir da
intervenção da população em situação de rua, deu-nos a possibilidade de
pensar em ilhas compostas por desutilidades poéticas; desutilidades estas
que versam sobre a maneira poética que o urbano se apresenta, seja através
do graffiti, da palavra, dos textos nas paredes ou das performances de
andarilhagem, como aquela instalada em meio ao canteiro central da
Prainha.
A nossa atenção se volta tanto para a destruição de partes históricas
da cidade de Cuiabá como um fenômeno recorrente em outros centros
urbanos do país quanto para pensar como a população em situação de rua
se apropria desta destruição e cria nela um sentido novo para o urbano,
cheio de porosidades, nuances de uma vida que mesmo no front anuncia a
resistência que tornam as ilhas habitáveis – aquilo mesmo que é, por um
lado, indesejável ou inútil, por outro, é material de criação e valor intrínseco
ao viver.
134
Pensamos como a existência dessa ambiguidade faz existir também
dois movimentos contraditórios: por um lado uma população que ativa novos
modos de ser e por outro a tentativa de destruição desses saberes que
organizam modos de ser.
Nós sabemos que uma maneira muito eficaz de negar e destruir
saberes e identidades é a produção de um discurso sobre a alteridade, sobre
o Outro.
E neste sentido nada mais efetivo do que um discurso anti- pedagógico
sobre o que o Outro é. Neste sentido, a população em situação de rua sofre
imensamente, dada a sua vulnerabilidade, além de todas as outras,
simbólica, no sentido de que ao serem tratados como os mais fracos,
também tendem a ter seu modo de vida e sua subjetividade como inferior.
O Outro que somos, o Outro do discurso colonizador, é um outro
quando não invisível, invisibilizado, inferiorizado ou tido como sub-humano.
Ao determinar o Outro como sub-humano ou inferior, se produz um
mecanismo brutal do pensamento hegemônico, que operou e opera o
silenciamento de produções de saberes, de vivências, e que negou e nega a
alteridade dos povos e das populações.
No Brasil, se mutilou e segregou a cultura dos povos indígenas, dos
povos dos campos, das águas e das florestas - um mecanismo que atuou e
atua sobre as práticas culturais e as identidades das populações.
É preciso refletir até que ponto ainda assimilamos estas práticas aos
nossos fazeres e ao nosso cotidiano. As pedagogias de subalternização, de
criação de subalternos, subúrbios, periferias e latifúndios a partir da
empreitada colonizadora, perpassaram as especificidades e as diversidades,
as diferenças tão marcadas na forma de viver dos povos. As anti-pedagogias
colonialistas adentram cada vez mais as práticas e os saberes e a cultura e
se aprofundam em formas como a do capitalismo, da monocultura, do
agronegócio e do latifúndio e do discurso segregacionista que destroem as
formas de produção material, de vida e de existência de diversas populações.
Com as populações de rua e populações ditas periféricas não é diferente. A
tentativa de rebaixamento dessas populações é algo bastante impregnado
nos diversos discursos, e muitas vezes no próprio discurso acadêmico.
135
A esses mesmos processos que estão submetidas as favelas, morros,
periferias urbanas, em que as condições materiais de subsistência e de vida
chegam muitas vezes ao limite, também estão submetidas a população de
rua e existe uma anti-pedagogias bastante enraizada nas instituições e nos
discursos que destroçam a subjetividade, promovem o silenciamento, negam
a alteridade e operam a ruína de modos de vida e conhecimento, marcam os
processos de desumanização de tantas crianças, adolescentes, jovens, jovens
adultos e adultos das classes populares que chegam às ruas por condições
de pobreza e violência e que encontram pouca acolhida de sua diferença e
tende a ser incompreendida mesmo no interior da rede de proteção.
Essas anti-pedagogias, universalistas, generalistas e por via de regra
moralizantes estão cada vez mais presentes nos “currículos das instituições
de apoio” que atuam por vezes colonizando saberes e poderes da população
em situação de rua. Essa normatividade encarada de maneira salvacionista
e redentora é depositária de um instinto pouco potente, o instinto de
rebanho; representa dimensão da vida coletiva que só pode ser plenamente
vivida se partilhada de maneira a conciliar o individuo num grupalismo
gregário, o que é basicamente rejeitado pela população de rua e o motivo de
fundo que leva as pessoas para a rua.
José, um ex-morador de rua que vive na rua como missionário me
disse: “Eu tenho uma maneira diferente de trabalho, porque eu não digo pra
pessoa que ela tem fazer assim ou assado, porque é isso que leva as pessoas
pra rua, não querer fazer o que o outro quer. Eu digo pra ela, ‘vem comigo no
trabalho e aí você vai decidir’, e explico como que funciona, daí que você vê o
que você quer, porque isso de ficar pregando na cabeça das pessoas pode até
funcionar de um jeito, mas num é o meu jeito não. Eu trabalho com o Daime
e com o Daime a gente sabe que não é assim. Pra você ver, tem uma pessoa
que eu acompanho que eu fui agora a Brasília e levei ele pra fazer lá o
trabalho, ele tá tão bem que fui buscar duas garrafas de chá pra ele pra ele
fazer o acompanhamento e se recuperar.” José me deu o telefone e me
convidou pra ir conhecer o seu trabalho.
O ditar regras de conduta e vida é muito problemático do ponto de
vista da população em situação de rua, primeiramente porque muitos dos
136
moradores se encontram na rua justamente por contestar tais regras e
quando encontram, mesmo na perspectiva de uma suposta ajuda, uma regra
à qual devam seguir, desejam escapar pelo mesmo motivo que nós
desejamos. Nisto não somos tão diferentes: o motivo é o questionamento de
qualquer heteronomia que se queira impor, o não aceite ao estabelecimento
de hierarquia de mando ou de força sobre si.
Nisso reside uma problemática: quem quer que seja que questione os
padrões de normatividade incorre no risco de ter sua vida estigmatizada. O
estigma, classificação ou marca, mesmo o da população em situação de rua,
denota uma condição – condição esta que por ser diferente de pessoa para
pessoa e não poderia integrar uma categoria.
Neste sentido só podemos usar a ideia de uma população se pensamos
que nela está inscrita a ideia da heterogeneidade dessa população, e é
justamente deste ponto que entendemos o termo população em situação de
rua – que os saberes dessa população ligam-se ao contexto de urbano das
cidades, mas que podem ligar-se ao contexto de campo, no caso dos
trecheiros, por exemplo.
Pensar que essa população contestadora e inventiva em seus modos de
vida organiza saberes que são uma praxiologia é pensar um lugar para
contrapor a força hierarquizadora e segregadora das anti-pedagogias que no
escalonamento da hierarquia de saberes situa a população em situação de
rua como aquela que possui um saber deformado porque não se pronuncia
numa língua que seja compreensiva aos ouvidos da escola e da universidade,
um saber subalterno porque não atinge os círculos dos saberes sociais e
culturais – um saber subalterno porque no interior mesmo das culturas
subalternas as culturas de rua são aquelas que foram mais relegadas à
invisibilidade justamente porque consideradas analfabetas e, além de tudo,
inúteis.
Neste sentido, quando Miguel Arroyo diz “Só nos tornamos visíveis,
existentes em espaços, terra, território” (ARROYO, 2012, p. 76). Sabemos
que sim, como a população sem terra a população em situação de rua
também se tornam dia a dia, a partir das anti-pedagogias, cada vez mais
invisíveis e invisibilizados, cada vez mais subalternizados: viventes que
137
vivem na miséria, na violência, na fome, na dor, na penúria e que morrem da
mesma maneira dessas mesmas coisas.
A questão que se anuncia é: haveria outras pedagogias que dariam
conta de se contrapor a esses processos tão antipedagógicos de destruição
das formas de produção da vida? Quais seriam elas?
Com essas perguntas abrimos esta segunda parte. Não me creiam que
seja eu capaz de respondê-las aqui, mas creio que esta tese dê conta de ao
menos pensar uma maneira de inicializar o processo de visibilidade da
questão posta.
Nesta segunda parte do trabalho daremos conta de pensar as ilhas e
suas desutilidades poéticas; isso talvez indique algumas possibilidades.
Vamos tentar pular de ilha em ilha fazendo percursos líquidos,
percursos de navegantes que se lançam de uma ilha à outra.
138
4.1. Da Lentidão Ou A Lentidão Como Resistência
Foto: Eliete Borges Lopes – Novembro de 2014 – Praça da Alegria, Bairro Boa
Esperança.
O homem33 lento, aquele(a) de uma geografia mais sensível, mais
humana – também aquele que faz a cidade –, ao perfazer caminhos afetivos
ele palmilha, ele esquadrinha, conhece a cidade em seus detalhes. Ele
constitui-se da vivência da cidade em seus aspectos não experimentados por
seus outros habitantes.
A percepção do espaço e das relações do espaço urbano são percebidos
nos detalhes e o homem lento interage de maneira a criar sua existência e a
da cidade de maneira concomitante.
33 Façamos aqui um breve parêntese para dizer que quando escrevo “homem lento” estou me referindo ao ser humano e não apenas o ser humano do sexo masculino.
139
Este homem/mulher lento(a) do qual fala Milton Santos – que é claro
que não se restringe ao homem no sentido de gênero –, este homem lento
que ora regia a Prainha, o caso do maestro das máquinas pulsantes, que
regeu mesmo a minha passagem por ali em determinado momento, estas
pessoas possuem um sentido de experiência do urbano que as coloca na
condição de guardiãs da cidade, de uma espécie diferente de sensibilidade
daquela que é a sensibilidade passante, ou a sensibilidade da velocidade,
uma sensibilidade de flaneur, para usar um termo poético que quer dizer
mais ou menos que é como aquele que flana:
“Gostava de andar ao léu nas ruas da cidade, entrando nos jardins para fumar um cigarro sentado num banco, entrando nas igrejas para espiar a beleza do ouro velho, flanando pelas ruas calçadas de grandes pedras negras34.”
A população em situação de rua neste sentido são como guardiãs
por saberem das muitas passagens, dos lugares e labirintos das cidades, dos
encontros e fugas que eles permitem, seja eles os mais proibitivos, sejam
eles os mais sociáveis, todos figuram no sentido de vida da cidade e
permeiam a vivência da rua no que ela pode ter de poético.
Se a cidade pertence ao homem lento, essa parcela da população se
apropria dela não pelo seu valor de mercadoria ou de consumo, mas em sua
movimentação pela cidade como homem lento; aquele que, sendo desprovido
da velocidade, sobretudo a do automóvel, dinamiza o contexto social e
mostra que alguma coisa anda mal no modo como organizamos e pensamos
nosso desejo de praça (Plaza); ao mesmo tempo, também inaugura uma
maneira de se relacionar com o urbano, maneira que é nova no seu sentido
de percepção, afetos e sentidos individuais, mas que possui também um
longo lastro de experiências humanas, que vão desde as formações nômades
seculares até as atuais manifestações do nomadismo contemporâneo, visto
também pelo olhar da arte que cada vez mais faz percursos e incursões
inusitadas.
34 AMADO, Jorge. Capitães de Areia. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 107.
140
Parece não haver nada mais universal que a insatisfação com o
trabalho. Existe um ramo de comércio que lida exclusivamente com pesquisa
sobre a insatisfação dos consumidores e dos trabalhadores para formular
uma outra indústria, a da auto-ajuda. Esta categoria tão debatida e
historicamente calcada no solo marxista parece ser a “expiação de uma
culpa originária que nunca chegará ao seu fim”, mas para alguns ou para
muitos “qualquer”, ela pode ganhar contornos novos.
Quando pensado sob o ponto de vista da população em situação de
rua, o trabalho tem um sentido novo, diferente daquele daquela maneira
como o entendemos. O sentido de regular o tempo de vida pelo tempo
trabalhado é em grande medida inoperante.
Perspectivas como a de grande velocidade na produção e distribuição
do tempo de vida pelo tempo para o trabalho, ou seja, a maneira como se
mantém o modo de produção capitalista, não figuram como alternativas
viáveis ao modo de vida da rua. Daí a grande dificuldade de entendimento
quanto às alternativas da população em situação de rua a um trabalho que
gere mais potência de vida e menos trabalho no seu sentido mais estrito.
Desta forma emprego e renda não fazem uma correlação direta, de
maneira que a renda não necessariamente necessita vir do emprego e
trabalhar não possui o sentido de usar a sua força para gerar mais valia a
alguém ou alguma coisa.
“O trabalho edifica o homem, mas nos consideram o entulho dessa
construção.”35 Ao mencionar o drama de quem vive na e da rua sem trabalho
formal e os meandros de sua condição de morador de rua que o impede de
ter um trabalho nos moldes do emprego formalizado, O.S. toca uma
representação universal: a de que o morador de rua se constitui no entulho
dessa construção.
Em suas palavras, ele revela uma condição que é também a
compartilhada por prisioneiros, putas, garis, ciganos, esquizofrênicos e
travestis dentre outros grupos vulneráveis: a condição de subjetividade de
lixo.
35 O.S., mora há cinco anos na rua. Fonte: DIREITOS do Morador de Rua – um guia na luta por dignidade e cidadania. [S.l.]: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, [20--]. p.45.
141
Em algum momento, os movimentos de contracultura também foram
enquadrados como subjetividade de lixo. O próprio Presidente Lula
permaneceu durante anos sob o mesmo estigma em oposição à subjetividade
de luxo, aquela da linha clean: branca, sudestista, defensora de uma
“humanidade mais limpa”.
Basta olharmos para o estigma que os povos indígenas sofrem quanto
ao seu cheiro e à maneira como habitam os espaços nas comunidades para
percebermos que se trata de um embate econômico e sociocultural.
Atentar-se aos depoimentos dos moradores de rua é perceber a mesma
condição, pois, ao ser lhes negados, por exemplo, o atendimento de saúde, o
principal motivo é o de que vão contaminar o hospital porque são sujos.
Notem: são sujos – o Ser sujo como uma condição de existência. Da mesma
maneira são afastados das festas públicas, hostilizados pelos passantes,
espancados pelas forças de repressão e internados em manicômios ou
levados prisioneiros pelo crime-castigo de morarem na rua.
Dos exemplos clássicos de cidades e países que passaram pelo
higienismo urbano às políticas municipais de “limpeza” das cidades que
sediam mundiais de futebol ou que ganharam o status de “turística”, a lógica
que se impõe é a mesma: a de uma cidade “limpa”.
Uma cidade limpa quer dizer, neste sentido, uma cidade sem praça
(plaza), onde a rua não possa fazer parte da mesma como uma alternativa de
vida e sim como exclusividade para o trânsito de mercadorias e de
transeuntes-compradores que, segundo a mesma lógica, fazem girar as
mercadorias.
Uma cidade limpa significa, ainda por essa ótica, que o gestor da
política pública age como a dona de casa americana neurótica dos seriados
exportados a quilos ou como a mãe organizativa e controladora da prole no
espaço do lar estéril.
Cuiabá se inscreve neste contexto, principalmente a partir da política
de várias gestões municipais que, com o aval da população e na tentativa da
imposição de um ordenamento dos espaços públicos e um controle das
populações, têm promovido a cessão de espaços públicos a mecanismos de
toda ordem privada e têm procedido de maneira a criar periferias para onde
142
se quer destinar a população em situação de rua, sobretudo os que estão no
centro da cidade.
Um dos motivos que se alega para a retirada dos moradores é a de que
precisam ser tratados porque são dependentes químicos o outro motivo
principal é o de que é preciso embelezar as ruas – é preciso cuidar da cidade.
Um dos aspetos também importantes a serem salientados é o de que,
sendo a população em situação de rua uma população lenta, isto é, não
estando inseridas no interior da máquina de fabricar coisas muito
rapidamente, que costumamos chamar de indústria, essa população seja
lenta, não apenas lenta, mas improdutiva para o sistema capitalista. Como
improdutivas passam a essa lógica também como a ela inútil, ou seja,
podem e devem ser retiradas das ruas, pois sua presença traz uma feiura à
cidade que, em contraponto a estes, é produtiva, organizada e bonita. É
dessa maneira que se articulam políticas de higienismo pensando o outro
como lento, improdutivo, inútil e feio – uma desqualificação que segue os
padrões dos estigmas colonizadores e que reifica a ideia de progresso,
desenvolvimento e civilidade como justificativa para a eliminação dessas
pessoas.
143
4.2. Mina, Seus Cabelo É Da Hora
Encontrei-me com Cheirosa na praça da mandioca. Eu bebia em uma
roda de amigos e ela passou, fiquei olhando sua maneira de estar entre nós,
totalmente à vontade.
Cheirosa passou em um, passou em outro, pediu aqui, pediu acolá.
Além de beber, eu estava comendo e, por perceber que talvez ela quisesse
petiscar alguma coisa, peguei meu frango frito e fui sentar na calçada onde
ela poderia me acessar sem que os donos do bar se incomodassem, sem que
se constrangesse a sentar em minha mesa onde amigos riam alto e
“conversavam groselha.”36
Depois de um tempo Cheirosa me localizou comendo na calçada e já
veio ao meu encontro, sentou-se comigo, comeu, pediu um gole de algo pra
beber e peguei um refri. Ao final da nossa partilha foi-se embora sem me
pedir dinheiro.
Depois de um tempo voltou e então eu fui conversar com ela, aí sim ela
me pediu dinheiro, como se a cena ocorrida há menos de meia hora não
tivesse existido. Ela respeitou o fato que seria abusar pedir dinheiro depois
de ter ganhado comida. Saiu e voltou. Quando voltou já não havia mais o
mesmo termo de relação estabelecida e aí sim me pediu cinco reais... “Ôh
minha linda me arruma cinco reais.”
Dei o dinheiro a ela, mas pedi uma foto e pedi para que ela me desse
uma entrevista. Pedi se ela me autorizava gravar e ela me autorizou. Quando
pedi a entrevista, Cheirosa começou a falar do que sabia fazer e disse que
sabia cantar, ou melhor, ela não me disse que sabia cantar: ela começou a
cantar.
Cantou uma música dos Mamonas Assassinas. Durante muito tempo
fiquei pensando nesse fato; tentei interpretá-lo por todos os ângulos, por
nada ele saía da minha cabeça, pensei por todos os ângulos: pensei no
porque Cheirosa lembrava-se dessa música, quanto tempo fazia que havia
sido lançada essa música, pensei na atualização da mídia, de como as
pessoas acessam a cultura até perceber um dos aspectos que servem como
36 “Conversar groselha” é uma gíria que significa jogar conversa fora, conversar trivialidades.
144
rebaixamento do moradores em situação de rua: o de sua não-atualização.
Isso serve para toda subjetividade que não se enquadre nas atualizações da
indústria cultural.
Em suma, a ideia de que o morador de rua é o lixo do humano resume
a sua condição de “atraso” ou de sua “desatualização” em relação ao
consumo. Esse atraso diz respeito à lentidão. A rapidez e expansão da
conectividade, por exemplo, tão usual entre os objetivos das multinacionais
ávidas por consumidores configurados como novos acessos, praticamente
não alcança quem mora na rua. A ideia de que a lentidão dessas pessoas se
dá na maneira com que organizam a vida pode ser entendida também como
um fenômeno de resistência.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Os pés de Cheirosa.
145
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Cheirosa na Ilha do Bananal.
Assim se deu meu contato com Cheirosa (Andreia) que, no decorrer da
pesquisa, morreu de um ataque fulminante, deixando uma ausência
profunda em mim, pois posso dizer que o Centro não é mais o mesmo sem a
Cheirosa. Os encontros com Cheirosa eram fortuitos, totalmente ao acaso,
mas quando queria conversar com ela, de certa maneira sabia que teria de
ficar pelo Centro e acabaria por encontrá-la (imediações da Praça Alencastro
e da Praça da República). Já havia conseguido sua autorização para filmá-la
e para entrevistá-la, mas infelizmente sua morte veio antes d’eu poder
registrar suas palavras.
Essa impossibilidade reside no fato de que esta população situa-se
subterraneamente em redes de relações que as mantém mesmo sob
representação e tentativa de gerenciamento exógeno, ou de uma
heteronomia.
A possibilidade de criação, manutenção e de continuidade dos laços e
de vida “inaprisionável” se dá a partir dos discursos que não tentam
cristalizá-la ou categorizá-la. E isso acontece em medida porque tanto o
146
discurso oficial do Estado quanto nossas representações, ou nossos
discursos, são exatamente a matéria prima daquilo que se traz para o jogo
nas situações de interação; esse jogo de linguagem é muito importante para
se pensar como as subjetividades subalternizadas no contexto da rua
conseguem produzir todo um conjunto de práticas discursivas que vão na
contramão da edificação de um sujeito normativo.
O jogo que jogam conosco se dá de maneira a se apropriar das nossas
regras quando conveniente e tão logo descartá-las assim que tenham
cumprido sua função de passe, de golpe, de vez, isto é, cumprido sua função
de interação. Um dos lugares mais comuns desse jogo é exatamente a
linguagem.
A linguagem de minhas interações com os moradores do Centro – e
nomeadamente da Ilha do Bananal – me demonstrou a versatilidade e
astúcia em jogar com meus valores, em usar de meus princípios para
contrapô-los aos seus, para evidenciar o quanto se é diferente, o quanto
nossas vidas não se tocam apesar de meu esforço, o quanto posso ser objeto
de uso, e que não estou fora da mesma relação à qual estão submetidos.
Essa relação até certo ponto de espelhamento se deu em momentos de
interação quando Cheirosa me perguntou sobre o tempo que eu trabalhava
por dia, o tempo que eu estudava e ao responder ela falou: “E você não vive
não? Que hora que você não faz nada?” E acrescenta: “Eu fico de bobeira
quando eu quero, eu fico aí jogada, às vezes dois, três dias sem fazer nada,
mas nada mesmo minha linda: eu gosto é de ficar na praça.”
Também encontrei Cheirosa no pé da escada, no antigo bar da Juane,
onde costumava passar com os amigos pra beber, comer e conversar.
Estávamos numa roda de amigos e como Cheirosa já me conhecia, veio até
nós. A dona do bar, Juane, também a conhecia e sempre que podia ajudava
Cheirosa com algum dinheirinho ou um cigarro. Neste dia ela passou por
nós e parou um momento. Ficou conversando e então, quando a dona do bar
aparece de dentro do bar e diz “Êh Cheirosa! A Cheirosa tá apaixonada. Ei,
Cheirosa, conta aí pra nós...” Foi o suficiente pra Cheirosa “cair fora”.
Primeiro disse “Que nada minha linda, que nada.” Daí pediu água para
Juane. Juane arrumou um copo de água pra ela, ela tomou, ainda ficou por
147
ali um pouquinho, entre uma palavra e outra com os presentes e logo se
mandou quando Juane tocou novamente no assunto. Com um aceno de mão
como quem diz “Ah... esquece isso!”, saiu com o aceno deixando a roda para
trás, em liberdade de gesto e ação. “Deu um perdido na conversa”, dizendo
entre outras coisas, que ela sabia bem o que estava fazendo e que ninguém
deveria se “meter com isso”.
Pra lembrar os encontros e interações, lembro aqui um dia em que
encontrando Cheirosa no Gran Bazar, ela veio pedir um dinheiro, dessa vez
para comprar remédio. Achei estranho, pois ela não mentia e nunca havia
usado pedido voltado para o cuidado com a saúde como motivo para lhe
darem dinheiro. Falei para ela: “Ué Cheirosa, o que já aconteceu?” E ela
disse: “Ah minha linda, os policiais me bateram, olha aqui”, e virou as
costas, onde tinha uma vermelhidão e uns sinais de que havia como que
sido raspada num asfalto algo assim! Fiquei preocupada e quis saber o que
tinha havido. Ela não se explicou muito bem, parecendo estar com muita
vergonha. Cheirosa havia levado uma surra de policiais que lhe bateram com
cassetete e provavelmente a tenham jogado ou arrastado. Ela não deixou
entrar nos detalhes, provavelmente por medo, culpa ou vergonha; não
saberia dizer. Fui-me embora preocupada com Cheirosa, e com a profunda
revolta de quem se vê a si mesma violentada na carne daquele a quem tem
apreço; além da revolta, uma profunda dor em não poder fazer muita coisa
por Cheirosa me assolava.
Em um outro encontro com Cheirosa na frente da loja Riachuelo, entre
as praças Alencastro e Praça da República, assim que trocamos as primeiras
palavras ela já me pediu para que eu comprasse um short, pois estava
menstruada. No meio da conversa no calçadão em pé, abriu as pernas
indicando a vagina, como se eu devesse ver ali uma marca de sangue que
comprovasse o que ela dizia.
Sem nenhum pudor ela deu seu corpo à vista ainda mais para
comprovar o que dizia e conseguir o que queria. E eu não devia recusar olhá-
la. No entanto, a marca que ela queria que eu visse não estava ali: não havia
sangue, nenhuma marca nem mesmo na parte de traz da roupa, mas
148
também não me restava muita alternativa depois de tal exposição e pedido a
não ser confiar nela, e aceitar que ela estivesse mesmo menstruada.
O jogo posto era o de que eu não a questionaria, pois ela já teria ido
longe demais em elaborar uma mentira para me convencer e pedia com seu
corpo e seus olhos que eu não fosse deselegante ao ponto de dizer que ela
estava mentindo – eu não deveria duvidar dela, pois ela sempre foi honesta.
Minha relação com Cheirosa é de muitas interações, sempre no centro da
cidade. Nesse dia ela estava, por assim dizer, inspirada. Talvez desejasse
alguma outra coisa com aquele short, talvez não.
Sua entonação conhecida: “Ô minha linda!” Já me dizia que Cheirosa
queria me contar algo, pedir um dinheirinho ou mesmo um cigarro e sempre
ao perguntar pra que estava me pedindo dinheiro ela era honesta. Essa
dignidade estava presente nesse momento em que me pedia um short.
Cheirosa dizia pra quê era o dinheirinho: quando era pra comida ela dizia
que tava com fome e quando era pra comprar droga dizia “Ah... vou dar uma
pauladinha, eu não minto não!”
Naquele turbilhão de coisas que Cheirosa me falava apenas pude
ainda retrucar: “Ah Cheirosa você de onda comigo né?!” “Não minha linda...
eu preciso de um short, vamos comigo na loja comprar, é que eu quero ficar
bonita, vamos lá, compra um short jeans pra mim. Vou fazer uma
combinação com uma calça por baixo, aí você vai ver...”, e mudava o
discurso. “Unh... tá bom, Cheirosa. Vamos lá.” Chegamos à loja e ela,
eufórica, queria um short curto. Falei “Mas Cheirosa, onde você vai com esse
shortinho desse!?”
Ela, que não era de dar risada, me olhou sério e acrescentei como uma
provocação de amiga: “Unh... vai sair por aí pela rua mostrando as pernocas
é...?” Ela disse que não, que iria colocar uma calça por baixo do short, como
havia dito antes. “Vou fazer assim e assado”, e mostrava a combinação que
faria do short com a calça que usava...
Essa situação ilustra não uma situação estritamente de pesquisa, no
sentido mais formal, e sim uma situação de vida – o laço entre mim e
Cheirosa – em que minha vida é atravessada pela dela e ela, no seu cotidiano
de moradora da cidade, encontra em mim uma possibilidade de interação.
149
Essa mesma dinâmica é vivida pela população em geral,
principalmente por aquelas pessoas que convivem mais no Centro Histórico
de Cuiabá, onde está localizada a comunidade da Ilha do Bananal.
No geral, a população que mais tem contato com os lugares onde os
moradores de rua circulam e que dividem as mesmas ruas que os moradores
têm a respeito dessa população as mais variadas significações e
representações.
Os comerciantes representam uma classe que se organiza num
discurso único: moradores de rua são prejudiciais ao comércio local;
transeuntes e outros segmentos tendem a ter um discurso menos
aburguesado e menos mercantilista.
A população em situação de rua também intercambia bens simbólicos
e culturais, participa da vida da cidade, tem sua dinâmica junto da
população economicamente ativa e lança sobre esta também seus
entendimentos. Não raro ouvimos suas críticas ao trabalho que engole o
tempo das pessoas comuns, seus deboches quanto às “otoridades” e suas
maneiras sutis de desconstruírem a nós.
“Os moradores de rua constituem um segmento social particular
no espaço urbano. Trata-se de uma categoria que, em função de
inúmeras e diversas trajetórias de desvinculação social e
econômica, passa a habitar ‘cantos’ da cidade impensáveis ao
planejamento urbanístico e ao imaginário coletivo dos citadinos:
as ruas, os espaços vazios embaixo dos viadutos, as praças, as
calçadas, locais atualmente concebidos como de passagem,
esvaziados da produção de sociabilidades urbanas que
historicamente marcavam os espaços da cidade.” (FRANGELLA,
2004, p. 15)
Estive fora da cidade de Cuiabá durante duas semanas e quando voltei
a receber um amigo chamado João em minha casa, recebi também a notícia
de que a Cheirosa havia morrido. Minha dor foi grande, meu trabalho de
pesquisa encontrou um grande espaço em branco com o qual não aprendi a
150
lidar e que não está elaborado no corpo da minha escrita, ainda menos no
tecer dos meus novos trajetos.
Quando a Cheirosa morreu, me senti desamparada e esse desamparo
existencial ainda permanece em mim. Cheirosa morreu, pelo que me foi
contado, dentro do Mercado Gama, que se situa no Beco do Candeeiro –
morreu onde vivia. Algo nisso tudo me causou menos dor: é saber que
Cheirosa não foi morta por policiais, nem foi assassinada. Ela teve um
enfarte fulminante.
José Medeiros, um fotógrafo que fez uma exposição toda de fotografias
destinadas aos “pedreiros” do Beco do Candeeiro, fez um velório simbólico
para Cheirosa em sua exposição. As fotos se encontram abaixo. Na
exposição, me emocionei e chorei junto das velas acesas para Cheirosa. O
amigo Babu Seteoito fez o grafite da instalação em que Zé de Medeiros
homenageou a moradora de rua Andréia, a quem registro meu amor e minha
gratidão eterna. Obrigada Cheirosa.
Foto: Eliete Borges Lopes – Agosto de 2016 – Cheirosa, Exposição de Zé Medeiros.
151
Foto: Eliete Borges Lopes - Agosto de 2016 – Cheirosa, Exposição de Zé
Medeiros.
Foto: Babu Seteoito – Agosto de 2016 – Cheirosa, Exposição de Zé Medeiros.
152
Foto: Eliete Borges Lopes – Outubro de 2016 – Cheirosa, Arte Hélcio Luis
(Corvo).
“A auréola é este suplemento que se acrescenta à perfeição – algo
como um frêmito do que é perfeito, apenas uma irisação dos seus
limites”.37
37 AGAMBEM, Giorgio. A Comunidade que vem. 1ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, 1993. p.46.
153
4.3. Das ilhas e margens – viver sem lugar
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Porto, Cuiabá.
154
Foto: Guilherme Almeida. Tão incrível que parece Cuiabá – 2014 – Porto.
155
Foto: Guilherme Almeida. Tão incrível que parece Cuiabá – 2014 – Porto.
Voltemos nossa atenção a um fenômeno que diz respeito às estratégias
do poder público em abandonar pessoas e espaços históricos.
Quanto ao abandono das pessoas, é sempre muito delicado pensar
como agir: em um sentido pensarmos a não domesticação da subjetividade e,
portanto, no respeito às maneiras de ser e estar no mundo e, por outro lado,
a dimensão de acesso e direito que todos devem ter para uma vida digna.
Pensar de maneira a conjugar a vida comunitária e o espaço geográfico-físico
num sentido que revela a população e o sentido histórico de algumas regiões
que se desvalorizaram, como a região do Porto, por exemplo, dá-nos a
dimensão de quanto o controle do ambiente releva o condicionamento da
vida de comunidades inteiras.
Como esse acontecimento impacta diretamente a vida da comunidade
que habita o lugar? Com a desvalorização essa população fica à margem
também dos serviços? Será que, tendo de encarar a dura realidade da vida
num território que lhe dificulta a passagem e a permanência, não
abandonam seu território para seguir?
É necessário frisar que este processo acontece em Cuiabá com
diversos bairros populares que tiveram sua rotina mudada pelo corte de
grandes avenidas ou pela construção de condomínios fechados.
No caso do Porto, em Cuiabá, esse processo tende a ser bastante
contraditório, pois esta região histórica compreende uma população e
população de rua bastante ativa, que se recusa a deixar o território e, ao
mesmo tempo, apesar das investidas da prefeitura municipal, tem
conseguido resistir.
O que acontece hoje com o Bairro do Porto configura um abandono por
parte do poder público e ao mesmo tempo uma tentativa deste de investir
numa revitalização. Esta revitalização vem sendo descontinuada e, para
efeito de retirada dos moradores de rua, também ineficaz.
A ineficácia, no entanto, possui dois aspectos: a ineficácia na retirada
da população, pois esta resiste, criando maneiras de por um lado “se
esconder” e, ao mesmo tempo, de se mostrar a partir da vulnerabilidade; e a
156
ineficácia do poder público também de outro ponto de vista: o de trazer
benefícios à população do bairro, sobretudo à população de rua.
O que acontece ao Porto aconteceu com a região da Candelária em São
Paulo. Ambas as regiões foram abandonadas propositalmente pelo poder
público até o ponto de só lhe restar a alternativa da revitalização ligada à
especulação imobiliária e a projetos políticos de figuras historicamente
comprometidas com a elite local.
Os recursos de projetos de revitalização e de planejamento urbano
municipal geralmente destinados a empresas privadas ligadas aos políticos
da gestão municipal reorganizam o território onde habitam populações de
maneira que tende a não beneficiá-las.
Essa tem sido uma tendência forte na nova política de municipalização
das terras, e que é descrito por Raquel Ronilk da seguinte maneira:
“A literatura sobre o impacto do neoliberalismo nas políticas urbanas identificou a emergência do chamado ‘empreendedorismo municipal’ como resposta local à erosão da base econômica e fiscal das localidades em função dos processos de reestruturação produtiva e ajuste fiscal. Os governos das cidades abandonaram a visão administrativa predominantes nos anos 1960 em direção a uma ação ‘empreendedora’ nos aos de 1970 e 1980. De um lado, as cidades foram envolvidas por um ambiente geoeconômico marcado por caos monetário, movimentos especulativos do capital financeiro, estratégia globais de localização de corporações multinacionais e intensificação da competição entre localidades. Ao mesmo tempo o retraimento dos regimes de bem estar e de transferências intergovernamentais impôs limites ao financiamento das políticas urbanas. Por outro lado, os programas neoliberais de desregulação, privatização e reprodução do gasto público também penetraram nas agendas dos governos locais, o que transformou suas políticas urbanas em verdadeiros laboratórios com experimentos que vão do marketing de cidades a zonas especiais de promoção econômica, megaprojetos globais e organização de corporações locais de desenvolvimento urbano”.38
Os projetos acontecem de maneira arbitrária; em nenhum momento
existem consultas populares. Não se leva em conta nesses projetos a
dimensão de convivialidade das pessoas do lugar e sim a passagem para
turistas e visitantes ou o ordenamento que se quer dar ao espaço a partir
38 ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015. p.225.
157
das políticas privadas que incorporam o público sob a tutela das
famigeradas PPP’s (Parcerias Público Privadas). Um outro nicho dessas
parcerias são os presídios, mas este é um caso à parte aqui, já que abordar a
perspectiva dos “sem lugar” a partir da prisão de moradores de rua é algo
ainda apenas pensado como uma pesquisa interessante, mas que não figura
neste trabalho.
Tendo em vista a questão da destruição, apropriação e despossessão
das terras urbanas, no caso do bairro do Porto é preciso explicitar que em
momento algum se leva em conta as escolhas e a maneira como a população
entende que os aparelhos públicos devam funcionar e isso causa grande
descrença de que a realidade possa se alterar. Ouvi da boca de uma dona de
prostíbulo no Porto: “O que é que eu vou fazer? Eu faço o que posso, eu não
deixo as meninas transarem sem camisinha. Agora, se tem algum problema
de saúde eu não posso tratar elas, aqui no bairro nem postinho tem. Num
tem jeito de levar a vida assim minha, filha. Aqui ao menos as meninas num
precisam ficar aí jogada na rua...”
O cerceamento da população em relação aos serviços é claro e
denunciado nas falas dos moradores. Quando falamos com Kid, o boxeador
que tinha uma academia e treinou aí muita gente, entre pigarros, escarros e
tosse ele consegue contar sua cruel vida de doente jogado às traças; surgem
as mesmas queixas: falta saúde para o bairro. Ele esperava à época por um
exame que já havia meses tinha sido solicitado e não podia fazer porque
nunca o haviam chamado. Ele não podia pagar plano nem consulta, também
não podia trabalhar e assim, seriamente adoecido, contava com uma filha
segundo ele, problemática, pra cuidar dele; filha esta que também segundo
suas palavras, não conseguia cuidar nem de si mesma.
Esse cerceamento ao acesso de serviços de saúde não é o único, ele
começa pelo cerceamento a espaços. As mulheres reclamam principalmente
da falta de espaço para as crianças brincarem e os homens reclamam da
falta de serviço, da dificuldade em se conseguir emprego e manter a renda.
Uma outra política de cerceamento diz respeito ao de cerceamento da
população no que concerne o acesso ao rio na região do Porto.
158
O não acesso da população local ao rio tornou grandes partes do lugar
numa espécie de “esconderijo”, com aspectos de lugar abandonado e ao
mesmo tempo lugar ao qual se destina lixo e animais mortos. Um lugar que
está marcado com o uso de drogas, pela violência e pelo abandono.
Estes aspectos criam novas margens do rio. Estas margens tem a
característica da subalternidade, daquilo que está mesmo à margem. Este
lugar aonde a cidade não chega é um lugar por onde passam alguns
resistentes pescadores, fugitivos, ex-presidiários, dependentes químicos e,
claro, pessoas que moram na rua e que procuram a região como uma ilha
dentro da cidade, uma ilha que é uma margem, que está à margem, lugar
onde vigoram outras lógicas, outras regras e outras paisagens.
Este espaço entre a terra e água é um espaço que lembra o mangue. É
um território diferente daquele planificado pela urbanização imediatamente
acima dessa esfera. Um lugar do entre, que se mostra como um território
entre as regras e convenções sociais e a manutenção e criação de regras
novas de uso, tanto do espaço quanto de qualquer outra matéria.
Este lugar, que é o lugar de uma ilha-margem, que poderíamos
parafrasear de Ricardo Guilherme Dicke, é a terceira margem do rio.
Na planificação do bairro do Porto onde a prefeitura planeja diversas
obras, o acesso ao rio é totalmente bloqueado à população – é um lugar feito
para não se chegar.
Estas margens, principalmente entre a ponte Cuiabá e Várzea-Grande,
na região histórica do Porto, é habitada por um grande número pessoas em
situação de rua.
Em um trabalho realizado na região em 2013, que gerou o projeto
chamada Tão Incrível que Parece Cuiabá39, percebemos que, além dos
moradores que estão sem vínculo com suas famílias, sem uma moradia fixa
e os dependentes de álcool e/ou drogas, havia também um número
significativo de ex-presidiários que encontraram na margem do rio Cuiabá
uma margem de fuga, uma passagem de fuga não do sistema prisional, pois
deste já foram libertos, mas da família, da comunidade que os hostiliza pelo
“perigo” iminente que significam, sobretudo para os donos do comércio local.
39 https://www.facebook.com/incrivelcuiaba/?fref=ts Acessado em 08/11/16.
159
As populações que hoje residem entre a Orla (Beira-rio) e o Bairro
Porto vivem entre as condições precárias da infraestrutura em toda a
imediação da Orla e, ao mesmo tempo, habitam um espaço todo feito por
histórias de vida que incluem personagens que vão de boxeadores a
raizeiros, de donas de prostíbulos a presidente de bairro engajado, de figuras
esquizofrênicas aos chamados “craqueiros”, “cracudos” ou “pedreiros” (gírias
usadas para se referir aos usuários de crack), de catadores de latinha a
libertinos que vivem entre a rua e casas de passagem.
Todas essas pessoas convivem num espaço que, por sua historicidade,
está imerso numa dimensão muito peculiar da cidade de Cuiabá, o espaço
simbólico da gestação da cidade. O líquido amniótico da cidade de Cuiabá é
o Rio – seu fluxo que serviu ao comércio, suas águas que serviram o peixe da
mesa do cuiabano de onde nasceu o ditado “Quem come cabeça de pacú não
vai embora.”
Neste sentido, o Porto e o Rio Cuiabá são nossas mãe; começamos por
ali a gestar a cidade.
Raquel Rolnik, em seu trabalho intitulado Guerra dos Lugares, analisa
como os movimentos de organização pelos acampamentos urbanos tendem a
sofrer toda uma gama de ações que visam sua não efetivação, de maneira
que cada vez mais os espaços urbanos vão cedendo ao que ela caracteriza
em seu estudo como uma financeirização da moradia, onde o grande capital
internacional mobiliza sua força na tomada de territórios populares a partir
de Mundiais de Esporte como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.
No último capítulo de Guerra dos Lugares, Lia Rolnik de Almeida diz40:
“No entanto, a partir dos processos que procuramos descrever ao longo desta parte do livro, é possível identificar as raízes troncudas de um modelo de Estado capturado por interesses privados e conformado por uma cultura de opressão e exclusão, simultaneamente tensionado por um processo de combate à pobreza e inclusão via consumo e pela tomada da terra urbana e da moradia pelas finanças globais. Os pobres compram apartamentos, contratam planos de saúde e matriculam seus filhos em escolas e universidades privadas. Mas, para eles, o mercado lança novos produtos, de qualidade muito inferior, reiterando a geografia da desigualdade.”
40 ROLNIK, 2014 apud ROLNIK, 2015.
160
Assim, a cidade e suas ilhas vão sendo tomadas e dando lugar a
projetos que se passam como projetos de revitalização, mas que estão por
sua vez entregues a grandes empresários locais.
De igual maneira essa rede de financiadores, empresários,
empreiteiras e construtoras se incorpora a um burguesia planetária que
coloniza comunidades inteiras e, com isso, culturas e identidades.
Pontos históricos de diversas cidades perderam o seu “campo de força”
para atrair e manter o aspecto de centro comercial ou cultural. O bairro do
Porto, em Cuiabá, é um exemplo de lugar que se transformou com o tempo.
Antigamente, era o único meio de circulação de bens, serviços e pessoas na
cidade, pois ainda não se contava com o Rio Cuiabá e sua vertente pela
Prainha, fora o eixo estrutural da cidade.
Tornou-se com o tempo um espaço marginalizado, excludente,
carregado de simbolismos negativos aos olhos da cultura hegemônica:
fedido, sujo, inseguro e degradado.
Observamos no bairro que existe um grande fluxo de pessoas, mas, em
geral, estas não permanecem, apenas passam. Quem ali reside é quase
invisível aos olhos daqueles que por lá passam. Demograficamente, o bairro
vem decrescendo populacionalmente, ao menos as pessoas contabilizadas
pelo CUIABÁ (2007). Entre 2000 e 2007, o bairro perdeu 10% de sua
população, sendo este um dos grandes motivos.
As modificações no espaço não são homogêneas – elas são
heterogêneas e se confundem paradoxalmente no tempo e espaço. Estas
rugosidades são responsáveis pela dificuldade de racionalizarmos o espaço e
também por perpetuar a história e seus agentes nos lugares.
Nessas rugosidades, nesse estriamento do espaço, a população do
Bairro do Porto caminha com seus movimentos e fluxos próprios inventando
maneiras de sobreviver em mais uma ilha de exclusão, por um lado e, por
outro, atuando no nascimento do que é novo e híbrido.
161
4.4. A Praça Como Ilha
A Praça Ipiranga é um dos exemplos mais gritantes no que tange o
agenciamento do espaço da plaza pelo poder público. Na gestão do ex-
prefeito Wilson Santos, foram retirados todos os bancos e trocado o tijolinho
por cimento em toda sua extensão.
O dano estético é praticamente irreversível e a alteração da paisagem
urbana neste local foi drasticamente impactada de maneira a diminuir o
conforto das pessoas que por ali passam ou param: foram retirados os
bancos, os ornamentos e adornos, e o chafariz que continha água foi
interditado. A sequência de fotos abaixo revela o processo histórico de
diminuição da potência do espaço público.
A água como um elemento essencial à vida humana é cada vez mais
inacessível à população em situação de rua. Hoje são muitos os vendedores
na praça e todos eles vendem água. No entanto, a população de rua, que é
uma população empobrecida, fica à margem do acesso a este bem.
Os moradores de rua que por ali passam o dia, conforme minha
observação, são pessoas de lentidão: só andam a pé, demoram-se nas
praças, estabelecem laços afetivos com as paisagens, de maneira a preferir
uns lugares a outros e formam suas rodas de pinga e conversa com seus
companheiros conforme as afinidades que vão surgindo do convívio no
espaço público. Esses moradores de rua geralmente se apropriam da cidade
não por seu valor de mercadoria ou de consumo.
Sua movimentação pela cidade é a do homem lento; aquele que, sendo
desprovido da velocidade, sobretudo a do automóvel, dinamiza o contexto
social e mostra que alguma coisa anda mal no modo como organizamos e
pensamos a pólis ou a Plaza, pois eles, não conseguindo acesso aos bens
mais fundamentais para a sobrevivência, dormem sob as marquises de
grandes obras, sob o toldo de prédios que giram o comércio local e nacional,
estão em calçadas pelas quais passam os executivos com seus ternos e, no
entanto, não se integram nem ao contexto de participação como beneficiários
de qualquer que seja o serviço ou bem de consumo produzido nestes
162
mesmos lugares, de maneira que este lugar social que ocupam os restringe
como aquele que estão à margem estando no centro, isto é, dividem o mesmo
espaço geográfico sem, no entanto, jamais poder alcançar a divisão justa do
que é produzido socialmente.
O trabalho como categoria marxista – assim como as categorias
velocidade e tempo – perpassa a dinâmica de vida dos moradores em
situação de rua de maneira a não conjugar as categorias emprego e renda,
na medida em que sua força não se enquadra na mais valia gerada pelo
empregador formal ou pelo contrato do empresário que se utiliza do
trabalhador como força motriz de sua empresa.
“O trabalho edifica o homem, mas nos consideram o entulho dessa
construção.” (O.S, mora há cinco anos na rua) (Direitos do Morador de Rua –
um guia na luta por dignidade e cidadania, p.45 - Ministério Público do
Estado de Minas Gerais). Ao mencionar o drama de quem vive na e da rua
sem trabalho e os meandros de sua condição de morador de rua que o
impedem de ter um trabalho nos moldes do emprego formal, O.S. toca uma
representação universal: a de que o morador de rua se constitui no entulho
dessa construção. Em suas palavras, ele revela uma condição que é também
a compartilhada por prisioneiros, putas, garis, ciganos, esquizofrênicos e
travestis, dentre outros grupos vulneráveis: a condição de subjetividade de
lixo.
Atentar-se aos depoimentos dos moradores de rua é perceber a mesma
condição pois, ao ser lhes negados, por exemplo, o atendimento de saúde, o
principal motivo é o de que vão contaminar o hospital porque são sujos.
Notem: são sujos, o Ser sujo como uma condição de existência. Da mesma
maneira são afastados das festas públicas, hostilizados pelos passantes,
espancados pelas forças de repressão e internados em manicômios ou
levados prisioneiros pelo crime-castigo de morarem na rua.
Uma cidade limpa?
O que quer dizer uma cidade limpa? Quando observamos um centro
histórico ou uma cidade que é limpa, existe uma tendência mais geral de
aplaudir o poder público por uma ação como esta. Quando da existência de
uma crítica, ela nem sempre alcança um imediato poder de mudança.
163
É preciso observar que as cidades brasileiras – via de regra – tem
apenas um lugar muito delimitado que a chamada “limpeza urbana” chega –
a “limpeza urbana” como um setor ou parte das prefeituras que cobre a
retirada de lixo apenas nos centros da cidade, principalmente em função do
comércio. Essas ações, embora de grande visibilidade pela população, não se
destinam às periferias. Existem até mesmo jornais especializados em
“denunciar” esse tipo de descaso, o que em suma não se reverte em ação,
mas sim em uma espécie de lobby das empresas de comunicação que se
aproveitam desse tipo de jornalismo para lançar candidatos que se auto-
proclamam aptos a “lutar pelo povo”.
A ideia de que a cidade precisa estar limpa impregna de diversas
maneiras o olhar. A ideia de que os pedaços de chão estejam à vista ou a
terra descoberta muitas vezes são tratadas como sujeira.
Cuiabá se inscreve neste contexto, principalmente a partir da política
de várias gestões municipais que, com o aval da população e na tentativa da
imposição de um ordenamento dos espaços públicos, têm promovido a
cessão de espaços públicos a mecanismos de toda ordem privada e têm
procedido de maneira a criar periferias para onde se quer destinar os
moradores de rua, sobretudo os que estão no centro da cidade.
164
Foto: Cartão Postal disponível no Hotel Mato Grosso (sem data).
Foto: Retirado de http://www.panoramio.com/photo/102928411 – 2013 – Praça
Ipiranga.
165
4.5. A Ilha do Maestro Das Máquinas Pulsantes
Fonte: Site Olhar Direto – 2015 – Praça Bispo Dom José.
A cena que vejo é um calor de 40 graus, característico da nossa “hell
city”, na Praça Bispo Dom José. Enquanto estou assuntando a rua, vejo um
homem negro, de mais ou menos 35 anos, que em outras ocasiões já
encontrei perambulando, principalmente nas imediações da Praça Ipiranga.
Ele fala, gesticula, olha e vê, ao que parece, muito mais que nós, muito
mais que eu. Vem até mim, pede dinheiro e nem espera pela minha resposta,
assim, passa pelas outras pessoas, pedindo aceleradamente.
Depois que passa pelas pessoas vai até uma ponta da praça e começa
a gesticular para o ar. Fica assim muito tempo e eu tento compreender sua
performance debaixo de uma árvore. Ele ignora sol, calor e hostilidade do
cimento da praça.
Tem os pés descalços, os braços nus. Está de short e sem nenhuma
proteção na cabeça; também não carrega nada consigo: nenhuma sacola,
nenhum pertence, absolutamente nada. Mesmo em suas mãos, que ficaram
estendidas, não guardou nenhuma moeda, mas ele para, a despeito da
pressa que tinha na interação com as pessoas. Ele agora para e se deixa
ficar, embaixo do sol.
166
Naquele canto da praça, depois de um tempo, percebi o que fazia –
mas apenas quando comecei a prestar muita atenção, como ele, a tudo que
me cercava, e sobremaneira prestar atenção ao som, a todo o ruído e
barulho que havia naquele momento de pleno movimento de trânsito de
veículos e pessoas. E então percebi que ele orquestrava a cidade, ou ao
menos a principal avenida da cidade, a avenida da Prainha estava sob o
comando de alguém que sim, estava regendo tudo aquilo.
Acompanhei seus movimentos e sim, eles eram de um maestro
incrivelmente afiado; mas esse maestro sempre partia de um som que, ao
mesmo tempo em que existia previamente, também desaparecia em seu
gesto: o gesto era justamente o que finalizava o som e dava andamento a
outro novo som que se interpunha, mas que necessitava igualmente dele
para ter plena existência, do contrário passaria despercebido por todos, por
isso naquele momento aquela performance era reveladora.
Ela revelava o que estava ali e ninguém ouvia, apenas ele. Passei a
ouvir porque ele pedagogicamente me fez saber da existência de algo mais
naquele cotidiano – cotidiano veloz, mas que o homem lento faz parar. E,
naquele átimo de tempo ali congelado naquela bolha de existência
compartilhada comigo, ele me mostrou o quão lento pode ser o tempo em
meio ao caos daquele tumulto de carro e gente.
A tarde passou e ele esteve lá. Em dado momento, fui-me embora
correndo para os compromissos, e ele lá ficou; ainda o vi do ônibus que ele,
com o braço levantado, mandou num gesto ir-se embora.
Aqui, um elo singular une o maestro das máquinas pulsantes aos
atores do teatro de Esquizocenia, inspirado em Guatarri e levado a cabo
também por Peter Pal Pelbart41 em suas experiências com o manicômio. De
maneira que ao descrever o Esquizocenia, Peter o faz de maneira a se
adequar à maneira como nosso maestro pensou a sua ilha:
“Seria preciso ousar um salto extravagante: situar a relação entre ‘vida precária’ e ‘prática estética’ no contexto biopolítico contemporâneo. Partamos do mais simples. A matéria-prima
41 PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 146.
167
nesse trabalho teatral é a subjetividade singular dos atores, e nada mais. A tematização do trabalho imaterial nos últimos anos permite iluminar uma dimensão antes inteiramente insuspeitada nesta encenação.”
Na ideia de que se produz de maneira imaterial e que esta produção é
a própria subjetividade e que, portanto não diz respeito nem às
incorporações do capitalismo, nem à cooptação de uma indústria, ainda que
seja ela a cultural, figura uma importante noção de que o capitalismo não
incorpora todas as formas de vida, que na resistência a ditar ou incorporar
maneiras de ser, na fundação das subjetividades desviantes que o próprio
capitalismo não consegue vampirizar existe uma questão de possibilidade
colocada. Seria uma saída? Uma questão criadora? É saída ao problema da
liberdade que nunca é um em si, ou em si mesmo, circunscrito a si mesmo:
“o problema nunca é o da liberdade, mas o da saída, achar uma saída,
inventar uma saída”. (PELBART, 2003, p.165).
Será que o maestro das máquinas pulsantes não teria encontrado uma
saída estética possível? Será que ele, sem finalidade que difere de si mesmo e
de uma estética nômade, não estaria, mesmo no front, criando a condição de
possibilidade do nascimento de uma performance nova, absolutamente nova
e irrepetível?
168
4.6. Fila na Lapa. Uma ilha em um parêntese
A população em situação de rua varia em quantidade de lugar para
lugar: varia em idade, sexo, renda, origem etc. Há imensa dificuldade em
“quantificar” essa população e ela nem sempre está condicionada à cidade
ou ao êxodo. Pode estar perpassada por aspectos internacionais como o das
migrações, da destruição de comunidades indígenas e outras. A população
de rua costuma não fazer parte das pessoas que entendem a fronteira como
algo apenas físico, no sentido de demarcação tradicional dos territórios, de
maneira que também existe uma boa parte que trafega entre as BRs e que
anda de cidade em cidade, não se restringindo a circular na mesma cidade.
Geralmente esse tipo de comportamento dentre a população em situação de
rua é chamado de correr o trecho e, por isso, essas pessoas são chamadas
de “trecheiros”.
No interior das cidades, o número de pessoas em situação de rua,
obviamente depende do tamanho da cidade, mas uma espécie de equação,
simplificadora até certo ponto, pode ser pensada como característica das
cidades brasileiras, qual seja, a de que quanto mais riqueza concentrada,
maior o número de moradores de rua e, portanto, a ideia de que “quanto
maior a cidade mais moradores de rua” não é exatamente verdadeira.
Os grandes centros comerciais do país tendem a ter também os
maiores problemas em sanar desigualdades, como diz o poeta e cantor
rapper Crioulo em Casa de Papelão do álbum Convoque seu Buda/2015
"Prédios vão se erguer/ E o glamour vai colher/ corpos na multidão”, pra
falar justamente que quanto mais se acumula nos centros urbanos e se
criam espaços de glamour, também deles se colhem corpos na multidão.
Esta música é uma clara referência do engajamento político musical do país,
que é fortemente voltado à crítica social e que promove, além da crítica, uma
reflexão que toca as feridas sociais e que oportuniza uma veiculação do quão
problemática tem sido nossa alternativa frente ao chamado desenvolvimento.
Nos centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre,
Recife, dentre outros, podemos sempre ver a população em situação de rua
às vezes em grandes grupos. Esse foi o caso quando estive no Rio de Janeiro
169
no último julho: bem em frente aos Arcos da Lapa presenciei uma fila de pelo
menos 200 moradores de rua esperando para comer.
Percebi que havia grande incômodo em olhar para aquela fila de
homens maltrapilhos. Primeiro, porque eram praticamente todos negros e,
segundo, pelo tamanho da fila. Também causava uma espécie de impotência
profunda e, ao mesmo tempo, uma raiva sem tamanho.
A sensação de ver os carros de luxo com suas princesas de tamancos e
seus galantes playboys estacionarem para consumir durante a boemia da
Lapa e ver os descamisados bem ali no outro dia pela manhã a comer dos
seus restos ou esperando a boa vontade de alguma instituição a dar-lhe uma
marmita realmente bota um gosto amargo na boca.
Todo o povo que por ali passava desviava o olhar, evitava o contato de
qualquer natureza, separava-os mesmo do campo visual – eles todos em fila
no meio da praça central dos Arcos da Lapa. Quase ninguém os via e, por
outro lado, o Estado sabe que estão acampados ali, como os nômades de
Kafka em A Muralha da China.
Sabemos que as cidades pensadas para os carros, para os
consumidores, têm sua paisagem e morfologia montada como estrutura
fundiária. Como os lotes são pensados, suas dimensões, localizações, como
os equipamentos públicos estão distribuídos e como se dá a famigerada
mobilidade urbana – tudo isso obedece a uma lógica de exclusão que cria as
ilhas. E é disso que se trata aqui: da existência de todo o rol de legislações e
principalmente das possibilidades de infração às mesmas, que colocam em
questão o acesso à terra, ao espaço urbano e à moradia. Colocam em
questão o próprio urbano e a vida das populações, principalmente daquelas
que foram tiradas da sua terra ou que não tiveram acesso a ela.
O espaço registra e materializa a forma de produção na qual vivemos e,
para a compreensão deste complexo sistema, não basta o debate sobre a
estrutura fundiária. É preciso incluir uma série de elementos que permitam
pensar a terra e o espaço não apenas pelo seu viés de mercantilização, no
qual o capital a transforma, mas outras importantes dimensões, entre as
quais: a divisão de classes, a divisão racial, o desemprego, a pobreza, os
170
direitos humanos, a exclusão social, a invisibilidade de sujeitos e
instituições sociais, a criminalização da miséria e a delinquência.
Compreendemos que, despidos destas aproximações primárias
traçadas, a visão e a escuta podem se contaminar pelo mesmo colonialismo e
visão eurocêntrica impostos aos povos indígenas, à população negra
escravizada e trazida de África e, posteriormente, no pós-colonialismo, a
todas as formas de manifestação existencial e cultural à margem dos
mesmos padrões e referências.
Por isso é conveniente observarmos a existência de alguns discursos
de um simbolismo e de um imaginário da população de maneira mais ampla
sobre a população de rua, e afirmado por esses discursos, uma série de
políticas, posturas, e estratégias de controle sobre a população de rua que,
além de criar um estigma insolúvel, coloca muitas vezes os moradores de rua
na impossibilidade total, desta maneira, dispondo-os sob a lógica do homo
sacer de Agamben: pessoas excluídas de todos os direitos civis e que, ao
mesmo tempo, têm a vida considerada como algo "santo" em um sentido que
é o de que não se pode matar simplesmente. A sua morte é vista sempre
como sacrificial, e mesmo a vida é vista como sacrificial no sentido de que é
uma vida que expia, uma vida que precisa ser purificada, seja pelo
sofrimento enquanto em vida, seja pela morte expiadora última de todos os
pecados e desvios.
A pessoa nessa condição e, por isso mesmo vulnerável – o homo-sacer
–, pode ser morta por qualquer um, isto é, os moradores de rua são vistos e
ordenados pelo controle das populações, pelas políticas de Estado, como
matáveis, e são vistos pela sociedade como um todo como aquele que expia,
como o mais fraco que deve ser eliminado. No entanto, a lógica é “deixe viver
e faça morrer” e, neste sentido, o problema é viver na rua enquanto morrer
nela está autorizado.
A principal questão deste ensaio é a de que o Estado, em suas
instituições, forja e reforça junto ao imaginário todos os discursos
relacionados anteriormente e, apoiado nessas práticas simbólico-culturais,
sustenta ações de extermínio das populações de rua.
171
A questão suscitada e discutida é a de que esses discursos, reforçados
pelas ações do Estado e do governamento das populações, amplificam e
qualificam a negação, a invisibilização, a segregação e a opressão, bem como
dificultam a superação destas barreiras, criando e reforçando os mesmos
discursos.
172
4.7. Uma ilha no meio do canteiro central
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Canteiro central da Av. Prainha.
173
O sistema constituído das artes se configura como pouco aberto ao
surgimento do novo. Como interpretar, a partir dele, aparecimentos como,
por exemplo, a desta obra de arte que figurou durante meses no centro de
Cuiabá? Como entender o que fez esse artista de rua? Como aprender a obra
desse morador de rua? Como entender a rua a partir dessa manifestação?
Quando falamos no sistema excludente da arte, falamos de expressões
como a obra de arte do Sr. Amauri Cantor, que a arte mesma se nega a
captar, isto é, o sistema reprodutivo de indústria da arte se nega a captar
fenômenos de aparecimentos como este.
Isto requer uma análise no sentido de reconhecer que o sistema, em se
configurando desta maneira, pouco se distingue do próprio sistema
capitalista, do próprio sistema financeiro; onde o que não gera lucro, mais
valia ou, em suma, mais dinheiro não possuirá relevância,
independentemente de seu valor estético.
Em Vida e Capital, uma parte do livro Vida Capital, ensaio sobre
biopolítica42, Peter Pal Pelbart fala dos exemplos de vida que se deixa
aprisionar pelo capitalismo, daqueles que são vampirizados por ele e
daqueles que sobrevivem a ele apesar de:
“Três trajetos, três destinos: um bandido vira pop star dentro da cadeia, ou recusa justamente o mercado com o qual mantém uma distância crítica (gravadora independente etc.); o índio se indigna com o modo pelo qual os brancos empalham os signos de sua vida; o louco é catapultado para a esfera museológica, à sua revelia (Bispo do Rosário). Nesses exemplos todos, vem à tona a relação ambígua e reversível entre vida e capital. Ora a vida é vampirizada pelo capital – chame-se ele mercado, mídia ou sistema de arte –, ora a vida é o capital, isto é, fonte de valor, e é sempre tênue a fronteira entre um caso e outro. Quando a vida funciona como um capital, ele reinventa suas coordenadas e denunciação e faz variar suas formas. Quando vampirizada pelo capital ela é rebatida sobre sua dimensão nua, como diz Agamben, de mera sobrevida.”
A arte como forma de conhecer, como maneira de perpassar o caos
urbano, é o que propõe o Sr. Evercino Araújo Peixoto, o Amauri Cantor.
42 PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
174
Nesse sentido vamos buscar alguns dos elementos que dão
pregnância43 à obra que, por mais que esteja aqui retratada, não é vista por
completo.
A primeira observação a ser feita é a de que a obra do Sr. Amauri
Cantor pode ser vista de todos os ângulos e pode ser perpassada, justamente
por integrar um espaço branco da cidade, um espaço vazio, uma calçada que
não se destina a todos e a ninguém, posto que esta calçada fica entre duas
grandes avenidas, mas não liga nada, funcionando assim como uma ilha. É
importante saber que esta ilha construída a partir dos detritos e destroços
compõe sua obra flutuante com materiais que o próprio centro da cidade
produz e descarta, ou seja, temos já aí uma crítica.
Além da crítica, destacamos a concepção de seu trabalho como um
trabalho arqueológico, de desenterrar nas ruínas das ruas o que resta de
uma arqueologia urbana efêmera, de descobrir os indícios de como se
relacionam as pessoas dessa cidade – a tentativa de expor seus restos a fim
de que possamos ver, como num processo investigativo, a reconstrução de
seus fazeres –, como o detetive Sherlock Holmes, que utilizava o lixo do
assassino para descobrir como ele cometeu o crime ou, como o médico Dr.
House, que invadia as casas dos doentes para ver o que comiam e usavam, a
fim de descobrir o seu diagnóstico, ou mesmo como os tantos seriados de
investigação que examinam ossos, restos mortais, cenas de crime, para
chegar ao que “realmente aconteceu”.
“Na arte como processo estético e na obra como produto artístico, o artista entra em contato com um certo real – como no orgasmo ou no delírio. Mesmo nas chamadas criações coletivas, a equipe criativa deve encontrar uma visão comum, descobrir e revelar o insólito escondido pelo dia-a-dia”. (BOAL, 2009)
Tudo que é jogado fora pelas lojas e pelos comerciantes locais e que,
portanto, não tem valor algum, adquire para o senhor Amauri um status de
43 Conceito do campo artístico que é basicamente relacionado à maneira como as imagens se fixam para nós. Assim,
bem grosso modo, seria, por exemplo, a ideia de um sofá branco com uma almofada vermelha no centro: vermelho o formato da almofada no fundo branco de um sofá daria à almofada uma certa pregnância, esse fenômeno que fixa
uma determinada parte da obra em nossas retinas. Tudo o que está à volta e que envolve e que causa uma certa visualidade junto de nós é descrito pela análise crítica geralmente como elementos. Esses elementos podem ser analisados separadamente ou em conjunto, seccionado do todo ou integrante dele; depende muito de como o crítico aprendeu a fazer a análise e quais teorias e métodos adota para sua leitura.
175
objeto de arte, de objeto performático, inclusive seu próprio corpo, que
também integra a obra e é perpassada pelos olhares das pessoas como que
buscando entender o que faz ali sentado em meio a tanta coisa um senhor
que toca violão.
É preciso lembrar que vanguardas já descobriram esse trunfo que
Amauri também vê. O Dadá, a Pop Art, e toda a arte moderna a partir de
Matisse, investiram e investem em criar a partir do consumo. À diferença de
senhor Amauri, todos estão dentro do sistema de arte.
Presenciei o sr. Amauri tocando seu violão numa performance em meio
à ilha de desutilidades poéticas. Sentado num banquinho, o sr. Amauri
tocava, mas não cantava. Quando o vi na televisão, ele dizia que a prefeitura
devia fazer um espaço pra ele expor a sua arte, que ele era um artista que
precisava desse reconhecimento; isso denota que o artista sabe bem o que
está fazendo e o faz intencionalmente.
Sua atitude é de resistência e ao mesmo tempo de reivindicação de
legitimidade e ele ao mesmo tempo sabe que “A arte é a única coisa que
resiste à morte”. (Nietzsche – Deleuze – Simpósio internacional de Filosofia -
Arte e Resistência, 2004).
Esse morador de rua, o Sr. Amauri, destina sua obra a um povo, um
povo que ainda não existe – ele integra uma categoria chamada População
em Situação de Rua. No entanto, mais uma vez temos a negação do
coletivismo gregário em seu fazer. Ele projeta uma ilha que é, ao mesmo
tempo que só sua, feita para seu usufruto e deleite e ao mesmo tempo a
destina aos outros que não são seus pares, quer seja, os moradores de rua.
Ele está por dentro dela, está dentro da obra de arte, se configura
como parte de tudo isso, mesmo da produção do suposto lixo, como se
referiu a matéria jornalística do G1.
Amauri está no interior da ilha, no interior da obra. De lá ele comanda
tudo, comanda a música que deve tocar, comanda a organização espacial de
cada coisa e sua maneira de existir. A reportagem para a televisão pegou
propositalmente uma foto em que Amauri estava montando a sua obra,
portanto, enquanto ela ainda não possuía uma lógica interna. Quando
176
passei à noite e tirei as fotos, a obra estava pronta, e existem muitos pontos
de conexão expondo feridas abertas da sociedade de consumo.
A reportagem insiste que ele amontoa lixo. Nós insistimos que ele é um
artista e como tal, criou uma hierarquia de valores para organizar seu
trabalho, iluminou sua obra com sua experiência para inclusive chegar a
uma síntese, que é a permanência de alguém no interior da obra quando se
dá a sua ausência – no caso, este é um jogador: um jogador, também uma
importante ideia dentro da obra, já que este lida com performances.
A opinião da mídia é basicamente elitista. Primeiramente chama de
morador de rua ao Sr. Amauri, na tentativa de clara desqualificação: não é
um artista, é um morador de rua. Segundo, se utiliza da ideia muito
presente na sociedade de que este morador de rua está sujando a rua,
sujando a cidade. Esse tipo de lógica é muito comum e já exaustivamente
debatida e por isso aqui ela importa bem pouco, importa apenas para
marcar o lugar de preconceito da mídia local, o que não é em nada a nós
surpreendente.
Nossa mídia44 é uma das mais violentas. Apenas a título de
informação, havia um apresentador local que se referia aos presos como
“raça infame” e isso era veiculado no horário do almoço na TV local.
Pensemos neste artista e sua resistência. Pensemos em como ele fez
girar uma crítica que alcançou um grande segmento social, pois ele foi visto
e, numa reportagem, ao entrevistar alguém, um transeunte disse que
entendia aquela manifestação como arte – que para ele aquilo era uma obra
de arte.
Certamente o estatuto de arte ajuda a entender uma manifestação
como esta, em que um artista dispõe de sua energia criativa para tirar do
escondido tudo que o centro da cidade produz e que, ao jogar fora, torna-se
um problema ambiental e que, além do problema ambiental da produção e
do consumo, engloba o problema do acesso de um segmento da população.
O artista, enquanto morador de rua, serve-se das mercadorias que não
têm mais utilidade – portanto são desutilidades. Essas desutilidades formam
44 http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2016/04/morador-de-rua-espalha-lixo-em-canteiro-de-avenida-
central-de-cuiaba.html Acessado em 08/11/2016.
177
em sua mão a matéria da poesia, pois a sua organização dá conta de
mostrar que em sua ilha existem lugares diferentes, lugar para sentar-se,
lugar para caminhar entre, e para passar por.
O respeito ao trabalho de outro artista está registrado no quando de
não apagar o que está escrito num grande quadrado de cimento no meio do
canteiro e que se destinava a árvores. Ele coloca ali, formando uma nova cor,
uma tábua, que junto com o branco do quadrado de cimento proporciona
um contraste visual que destaca o que está escrito ainda mais. Mesmo que
não seja uma mensagem clara, a mensagem está preservada.
Ele também joga com pedaços de outra obra no solo. Essa obra é a
marca do território. Mesmo retirados todos os outros elementos, ela
permanece por ser pintada no solo. Não temos certeza de que esta obra do
solo também tenha sido feita pelo sr. Amauri, mas é certo que em um ponto
da avenida do CPA existe uma marca do mesmo tipo. Não consegui ver obra
do Amauri instalada no lugar, de maneira que pode ser ou não uma obra
sua, restando como parte da obra a sua dúvida.
Neste sentido podemos dizer que o artista, o Sr. Amauri, é como um
surfista – e nada mais apropriado para a metáfora da ilha –, um surfista no
seguinte sentido:
“A atitude de resistência corresponde à sabedoria do surfista, que não se deixa levar passivamente pela onda nem tenta lutar contra ela, mas aproveita sua energia e explora criativamente suas possibilidades”45.
E ainda:
“O surfista incorpora a imagem do amor fati, aquele que tem a capacidade de dizer não para os impasses tradicionais da revolução e da revolta, mas também sabe dizer sim para as surpresas do acaso, condição de possibilidade do gesto de criação na arte e na vida.”46
45 LINS, Daniel (org.) Nietzsche/Deleuze: arte, resistência. Simpósio Internacional de Filosofia. Fortaleza – CE: Forense Universitária, 2007. 46 Ibidem.
178
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Canteiro central da Av. Prainha.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Canteiro central da Av. Prainha.
179
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Canteiro central da Av. Prainha.
180
4.8. A ilha dentro da ilha
A rua como lugar de criação tem tanto a oferecer que mesmo artistas
mais conservadores, em um ou outro momento de sua vida, se rendem aos
seus desafios e possibilidades de levar sua arte, seu fazer, ao público
transeunte. O fluxo da rua constitui em si uma possibilidade a mais para o
fazer artístico.
Em Cuiabá a situação de rua é compartilhada por uma população
ativa e que cria constantemente intervenções das mais diversas. Junto dessa
população existem vários artistas que criam alternativas para sua arte,
justamente por sua identidade com a rua e também por não conseguirem
lugar no mercado de arte. Este é o caso do graffiti, das intervenções, das
performances e de um segmento do audiovisual (o audiovisual underground,
trash).
Compreender a importância dessas manifestações da cultura popular
é pensar este patrimônio como gerador de consciência estética. Esses bens
culturais, por vezes muito efêmeros, são fontes de transformações
cotidianas. No contexto da rua e da contra-cultura, eles se transformam em
instrumentos de formação, logo, em uma educação estética, uma educação
sem currículo formal, mas que será longamente debatida por exemplo pelos
culturalistas. Essas manifestações perpassam o território e dão significado a
muitas das maneiras de viver o urbano, sobretudo para a população em
situação de rua. Essa dimensão da arte – a dimensão da criação estética
como invenção cidadã e de novas possibilidades de rua, da arte de rua –
configura uma maneira de vivenciar a cidade que não sucumbe ao ambiente
privado, seja ele o espaço das galerias, museus ou o espaço particular da
habitação convencional.
O espaço público como alvo de intervenções é uma tendência
crescente, devido, principalmente, à democratização dos meios culturais e
artísticos, em grande medida provocados pelo fenômeno da conexão
planetária em rede. Antes disso, porém, nos fixemos apenas nos Estados
Unidos como exemplo: o uso do espaço público como suporte às mais
diversas modalidades artísticas funda-se principal e inicialmente na
181
arquitetura e nos projeto sociais. Como exemplo disto, temos a chamada arte
pública que, com sua aderência às questões sociais, toca em feridas como
classe, questões raciais, de gênero, de protesto, pra dizer o mínimo.
O rap, o grafite, o hip-hop, a arte popular em seu sentido mais
genuíno – e não o da Indústria Cultural –, falam da perspectiva do oprimido.
Paulo Freire, quando exilado pela ditadura militar, desenvolveu, na
construção de um dos tantos edifícios nos Estados Unidos, um dos projetos
de alfabetização de jovens e adultos que foi finalizado com um balé de
máquinas concebido, organizado e realizado pelos trabalhadores. Os círculos
de cultura foram durante os anos 60 um bom exemplo das possibilidades da
cultura e das artes a partir de uma ótica popular.
Os bens culturais ou patrimônios podem ser um importante estímulo
à integração da cultura popular à cultura erudita. Através dos patrimônios
material e imaterial, consequentemente à produção contemporânea, a
possibilidade de diálogo se alarga.
Em espaços como jardins históricos, igrejas e palácios, com a
realização de concertos, peças teatrais, eventos de performance, dança,
exposições de artes visuais, intervenções urbanas, artes digitais, artesanato
e oficinas de criação, pode-se promover um entendimento maior do que é
patrimônio e ainda conectar a política pública às dimensões históricas da
cidade.
Esta é uma perspectiva para a cultura e a arte, mas esta ótica
conciliatória, dialogada e que busca a intersecção entre o popular e o erudito
é uma postura geralmente institucionalizada; é a postura do discurso
politicamente correto da inclusão. Este discurso está distante da
radicalidade da arte popular e marginal das ruas. Estamos falando da vida
feita na rua, das dimensões vivenciais e de profundo enlace com o urbano,
onde o combate ideológico se acirra quando se trata da defesa dos princípios
da arte de rua.
Essa arte que mapeamos como uma arte marginal e totalmente ligada
aos movimentos de protesto contra o atual estado de coisas se faz no
subterrâneo da produção local, de maneira que não mantém relação com
nenhuma política institucional e ao mesmo tempo é crítica dela. Divulga um
182
movimento crítico em relação aos bens culturais e às entidades
governamentais e não governamentais; demonstra que há condições de
possibilidades de discussões críticas e de fazeres artísticos para além dos
próprios financiamentos. Critica o vício das instituições em financiar apenas
os “tubarões”, como o graffitti de Babu Seteoito que denuncia exatamente
isso.
Os limites orçamentários são sempre os limites das margens, de
maneira que os orçamentos contemplam apenas aqueles que se inserem no
mercado e esse mercado, sendo muito restrito, gera um círculo vicioso em
que quem produz sem financiamento acaba nunca alcançando o mesmo,
porque nunca entra no circuito. Quando este, por muita insistência,
consegue entrar no sistema, os “tubarões” o engolem.
183
184
Foto: Jean Siqueira – 2016 – Graffiti de SIQ, Cuiabá.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2014 – Ponto de ônibus ao lado da UFMT.
185
Foto: Jean Siq. – 2014 – Ponto de ônibus ao lado da UFMT.
O graffiti em Cuiabá é uma expressão das efetivas na denúncia contra
as violações de direitos na Cidade de Cuiabá. Seu recado cumpre
pedagogicamente com a intencionalidade da reflexão sobre o que acontece no
cenário político. O Governador do Estado – Pedro Taques, filiado ao PSDB –
reuniu uma equipe composta por marqueteiros e alguns artistas e financiou,
no ano de 2016, mais especificamente entre os meses de julho e agosto, uma
espécie de encobrimento da cena crítica proposta pelo graffiti em toda a
cidade. A tática de apagar o protesto foi denunciada por SIQ, um importante
grafiteiro e tatuador que já está na estrada há algum tempo.
O fotógrafo Rai Reis cedeu suas obras ao Governo do Estado para
“encobrir” os grafites de protesto e os principais e mais críticos foram
afetados pelas colagens de Rai Reis. Nesse caso os graffittis mais afetados
foram os graffittis de Siq, pois todos têm forte denúncia, principalmente
contra as violações de direitos humanos durante o período da Copa do
Mundo. Alguns dos graffittis de Babu Seteoito foram destruídos de maneira
186
diferente e serão abordados mais adiante na parte em que falamos
especificamente sobre a Copa do Mundo em Cuiabá.
Esta tentativa de apagamento da arte de rua foi um dos poucos
episódios que ganhou uma repercussão, pois a tendência é que não haja
manifestações, até porque não se tem muito espaço nas mídias para esse
tipo de denúncia ou de reivindicação.
Uma outra questão como esta se dá em torno das questões relativas ao
patrimônio cultural, que também sofre com o descaso do poder público, seja
através da falta de incentivo, seja através das destruição do que forma um
conjunto crítico de arte urbana como o caso do graffitti.
Apesar do panorama pouco favorável, existe bastante resistência.
Babu Seteoito e Cleiton Soares, por exemplo, pintaram este painel que tem
mais de 7 metros em um ponto da cidade.
Foto: Eliete Borges Lopes – 2016 – Grafite de Babu 78 e Amarelo.
O patrimônio em que se encontram os moradores da Ilha do Bananal
faz parte de um conjunto de ações que teve seu início, em Cuiabá, com as
obras da Copa de 2014. Denúncias recentes revelaram fraude no parecer
187
técnico do Ministério das Cidades para definição do modal de transporte a
ser adotado nas obras de mobilidade para a Copa, o que fez com que se
interrompesse o processo de construção num momento em que o
Governador à época – Silval Barbosa – já havia comprado o local para a
retirada das construções para a passagem do VLT.
A decisão pelo VLT implicou em um orçamento de R$700 milhões a
mais do que o orçado inicialmente para o BRT (R$500milhões). Segundo
investigação conduzida pelo jornal O Estado de São Paulo, a diretora da
Secretaria de Mobilidade Urbana, atendendo à pressão política
governamental, teria alterado o parecer técnico contrário dos analistas.
A situação foi relatada em diversos documentos que constituem os
relatórios e análises em que se diz, por exemplo, das decisões tomadas sem a
participação da população, nem audiências públicas, nem estudos prevendo
impactos. Essas informações são negadas à população e também mantidas
como secretas até mesmo para os órgãos de controle do próprio Estado,
como o Ministério Público47.
47 MEGAEVENTOS e violações de direitos humanos no Brasil: Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês
Populares da Copa. [S.l.: s.n., 20--]. p. 46. Disponível em fomato PDF em: http://www.apublica.org/wp-
content/uploads/2012/01/DossieViolacoesCopa.pdf
188
Foto (abaixo): População de rua retratada pelo livro 12 Cidades em Tensão.
189
CONSIDERAÇÕES
1. Nossas reflexões vêm no sentido de considerar que a população em
situação de rua represente de fato uma população que possa escolher aquilo
que, segundo seu desejo, é o melhor para si e que isso não seja impeditivo
para sua permanência entre nós e para a manutenção de uma vida digna –
que possamos entender o fenômeno “morar na rua” como uma possibilidade
a mais da manifestação da vida, que afirmar a vida em sua potência e
aceitar a diferença entre as pessoas é a marca da civilidade e da grandeza de
uma cultura; que possamos entender também que a população de rua,
apesar de vulnerável, possui tantos aspectos de luta como qualquer outra
população que resiste ao modo de organizar e controlar a vida do sistema-
mundo capitalista.
Nossas considerações também vão no sentido de que, se falamos de
ilhas em que se produzem essas dinâmicas sociais da vida da população em
situação de rua, também podemos falar de ilhas de paz onde esta população
possa usufruir de direitos pelos quais ela mesmo luta, empurrando o campo
dos Direitos Humanos e mobilizando para pensar a potência do pensamento
e da auto-organização nômade.
Que possamos entender que também é parte do processo de
reconhecimento da população em situação de rua a possibilidade de em
determinados momentos “deixá-los em paz”, no sentido que ouvi de um
morador de rua: “Me deixe em paz!”, “Me erra!”– ou seja, precisamos
entender que o controle sobre a vida do outro não é desejado e buscar isso a
todo custo pode ser bem pouco político, bem pouco educativo.
Compreender que a gestão do tempo das pessoas, de sua força de
trabalho é um processo do sistema-mundo capitalista ao qual a população
em situação de rua pode resistir, e ao qual deveríamos nós também
podermos.
Mais uma vez vem-nos o sentido da criação das ilhas de paz, como
uma condição de possibilidade – ilhas de cuidado em que se possa
efetivamente ser o que se é, sem, no entanto, que com isso inviabilizar a
própria vida, colocando-a numa condição de vulnerabilidade.
190
Pensar que lugares reconhecidos como casa, podem sim, trazer o bem
estar e a tranquilidade da casa, de laços diferentes daqueles que os fizeram
deixar a própria casa e entender que o território da cidade pode ser um
território de vida, portanto dessa casa arcaica que funciona como ninho,
como abrigo, como espaço de produção e reprodução da vida.
2. Alguns Estados da Federação já se organizaram no sentido de
garantir atendimento à População em Situação de rua. O Estado de São
Paulo tem uma política estruturada ao longo dos anos e conta com um
movimento histórico iniciado na década de 50 do século passado, sua
história está melhor detalhada em livros como o de Frangela e no recente
livro organizado por Mariana Menezes (et all) “Novas Faces da Rua” citado na
bibliografia desta tese. Na cidade de Cuiabá a iniciativa a partir da
instituição do Grupo de Trabalho Intersetorial ainda é uma iniciativa tímida.
Ela conta atualmente com o apoio da Secretaria de Estado de Trabalho e
Assistência Social (SETAS-MT) para iniciar uma política a partir de um
trabalho que deverá congregar Secretarias como a Secretaria Estadual de
Saúde (SES-MT), Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH-MT),
dentre outras, mas ainda se configura como um trabalho inicial.
Esse processo nascente é vivido por um grupo no qual nos inserimos e
para o qual certamente levaremos os pensamentos desse escrito.
Sobre a estruturação da rede de apoio à população em situação de rua
apenas lembraríamos um momento do livro de Frangela que relata:
“Há vários méritos nesta gradual construção da rede política que
projeta o morador de rua como sujeito de direito: ela reduziu a
violência institucional, abriu caminho para ocupações de trabalho
– que creio estarão mais bem sistematizadas com o decorrer do
tempo –, tem proporcionado a pessoas que há muito estão
mergulhadas nas dinâmicas desnorteantes e excludentes das
ruas da cidade de São Paulo uma referência mínima de cidadania
e a sensação de ter a quem recorrer.” (FRANGELLA, 2004,
p.95)
191
3. As últimas palavras para este momento, vem no sentido de
denunciar que o espaço estudado, a Ilha do Bananal, tem sido vista
pela política pública como o próximo ponto a ser higienizado na cidade
de Cuiabá. Isto está começando a circular dentro dos gabinetes e por
informações dos próprios envolvidos com o trabalho junto aos
moradores da ilha, chegou-nos a notícia de que a intenção é a de
transformar o lugar onde hoje se encontram os casarões em uma
grande praça, e retirar do território toda a comunidade da Ilha do
Bananal.
4. Além dessa denúncia recebida junto à Defensora Pública, também
existem as denúncias dos profissionais de saúde quanto ao
espancamento e violência sistemática que se está sendo impetrada
contra a população em situação de rua da região da Rodoviária e
Jardim Leblon. Essa ação está ocorrendo há mais ou menos 2 meses a
mando dos Coronéis da Polícia Militar responsáveis pelas unidades
“Crack é possível vencer” situadas nessas regiões. Essa ação tem
ocasionado a ida da população em situação de rua para a Ilha do
Bananal e a perspectiva é a de que em breve a polícia realize na Ilha
um novo “Baculejo Nervoso” desta vez para a retirada da comunidade
para a demolição dos casarões e higienização do Centro da Cidade de
Cuiabá.
192
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEM, Giorgio. A Comunidade que vem. 1ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
________. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002.
AMADO, Jorge. Capitães de Areia. Rio de Janeiro: Record, 2003.
ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. 2ª ed. Petrópolis:
Vozes, 2011.
________. Imagens quebradas: trajetórias e tempos de alunos e mestres. 7ª
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
________. Outros sujeitos outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012.
________. Por um tratamento público da educação do campo. In MOLINA,
Mônica.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução Antônio de Pádua Danesi. Revisão da tradução Alain Marcel Mouzat, Mário Laranjeira. 3ª ed.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 2001.
BRASIL. Estatuto da cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos: Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, 2001.
BRASIL. Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília – DP: [s.n], 2008. Disponível em: http://www.criancanaoederua.org.br/pdf/Pesquisa%20Nacional%20Sobre%
20a%20Popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Rua.pdf (Acessado em 07/11/2016).
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Decreto nº 7053 de dezembro de 2009: Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
193
Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Brasília – DF: [s.n.], 2009.
BOAL, Augusto. A estética do Oprimido: reflexões errantes sobre o pensamento o ponto de vista estético e não significativo. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
BURROUGHS, W. S. Almoço Nu. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. Cidade de muros, crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2000.399p.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DIREITOS do Morador de Rua – um guia na luta por dignidade e cidadania. [S.l.]: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, [20--]. p.45.
FRANGELLA, Simone Miziara. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da
corporalidade de moradores de rua em São Paulo. 361 f. 2004. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. p. 86.
FREIRE, Paulo. A educação como prática da liberdade. 23ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
_______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2011.
_______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do
oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 245 p.
_______. Pedagogia do oprimido. 42ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2005.
_______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. 1ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
_______. Política e educação: ensaios. 5. ed - São Paulo: Cortez, 2001. (Coleção Questões de Nossa Época, v. 23).
194
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 5ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
GEERTZ, Clifford. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1982.
________. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1999.
________. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.
LIMA, S. T. et al. (Org.) RUAÇÃO: das epistemologias da rua à política da rua. Cuiabá: EdUFMT, 2014.
MEGAEVENTOS e violações de direitos humanos no Brasil: Dossiê da
Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa. [S.l.: s.n., 20--]. Disponível em fomato PDF em: http://www.apublica.org/wp-content/uploads/2012/01/DossieViolacoesCopa.pdf
MERLEAU-PONTY. Maurice. A natureza: curso no Collège de France. Tradução de Álvaro Cabral. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
_________________. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
_________________. O olho e o espírito. Tradução Paulo Neves e Maria
Ermantina Galvão Gomes Pereira. 1ª ed. São Paulo, Cosac Naify, 2013.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo:
Atlas, 2008.
KASPER, Christian Pierre. Habitar a rua. 2006. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Unicamp, Campinas, 2006.
LINS, Daniel (org.) Nietzsche/Deleuze: arte, resistência. Simpósio Internacional de Filosofia. Fortaleza – CE: Forense Universitária, 2007.
195
PARESCHI, A. C. C.; ENGEL, C. L.; BAPTISTA, G. C. Direitos Humanos, grupos vulneráveis e segurança pública (Coleção pensando a segurança
pública, volume 6). Brasília – DF: Ministério da Justiça e Cidadania. Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2016. Disponível em http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/analise-e-
pesquisa/download/pensando/pensando-a-seguranca-publica_vol-6.pdf (Acessado em 08/11/2006).
PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo:
Iluminuras, 2003.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia
na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
RUI, T.; MARTINEZ, M.; FELTRAN, G. (Org.) Novas faces da vida nas ruas.
São Carlos: EdUFSCAR, 2016.