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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA MARIA LÍVIA FERREIRA DOS SANTOS ENTRE O ANONIMATO E A VISIBILIDADE: MORADORES DE RUA PORTADORES DE SOFRIMENTO MENTAL E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO SALVADOR 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

MARIA LÍVIA FERREIRA DOS SANTOS

ENTRE O ANONIMATO E A VISIBILIDADE: MORADORES DE RUA

PORTADORES DE SOFRIMENTO MENTAL E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO

URBANO

SALVADOR 2015

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MARIA LÍVIA FERREIRA DOS SANTOS

ENTRE O ANONIMATO E A VISIBILIDADE: MORADORES DE RUA

PORTADORES DE SOFRIMENTO MENTAL E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO

URBANO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Geografia, da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Cristovão Brito

SALVADOR 2015

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MARIA LÍVIA FERREIRA DOS SANTOS

ENTRE O ANONIMATO E A VISIBILIDADE: MORADORES DE RUA

PORTADORES DE SOFRIMENTO MENTAL E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO

URBANO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Geografia, da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Cristovão Brito

Banca Examinadora: ___________________________________________________________________

Prof. Dr. Cristovão de Cássio da Trindade de Brito – IGEO/UFBA

Profa. Dra. Liliane Ferreira Mariano da Silva – DCET/UNEB

Prof. Dr. Ricardo Bahia Rios – DAG/IFBA

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A meu Deus e Senhor pela força que

me sustenta. Aos meus pais,

familiares e amigos pelo incentivo e

carinho.

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RESUMO

A proposta de análise apresentada neste estudo revela as diferentes formas que a

população em situação de rua portadora de sofrimento mental produz o seu lugar de

vida dentro do espaço urbano, apropriando-se para tal da cidade enquanto espaço e

lócus das relações sociais não sendo representada somente por formas construídas.

As ações condicionadas por um modo de produção econômico chamado capitalista

são validadas por um Estado passivo e subserviente ao grande capital. Este por sua

vez reconfigura a cidade e suas formas de vida por meio das suas implicações que

recaem, sobretudo na geração de concentração de renda e desigualdades

socioeconômicas. Os moradores de rua portadores de sofrimento mental vivem na

cidade como parte constituinte de uma complexa rede de sociabilidades que se

desenvolvem e ganham relevância no processo de produção do espaço urbano na

medida em que são produzidas. Esses sujeitos escolhem seus lugares na produção

de formas de vida na cidade considerando as dificuldades ou facilidades para a

obtenção de recursos para sobrevivência, criam estratégias de resistência contra os

esforços que a sociedade civil e seus representantes legais realizam para tentar

retirá-los dos locais que habitam. O estudo busca compreender como esses sujeitos

vivem nas ruas da cidade do Salvador, em meio à invisibilidade social que lhes é

imposta. Concluo o trabalho abordando as consequências de se adotar um modo de

vida que viva ao mesmo tempo da ética do trabalho e da sociabilidade das pessoas

pobres portadoras de transtornos mentais em ambiente familiar numa sociedade

capitalista e urbana, afirmando ainda que fatores como pobreza, desemprego,

migração, deficiências físicas e mentais, o alcoolismo e o consumo de drogas ilícitas

não são suficientes para levar esses indivíduos a viver nas ruas.

Palavras – chave: Cidade, pobreza urbana, moradores de rua, desigualdades

sociais, transtornos mentais.

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ABSTRACT

The proposed analysis presented in this study shows the different ways that people

in the street with mental distress situation presents his place of life in the urban

environment, appropriating for this city as space and locus of social relations not

being represented only by built forms. The actions conditioned by a capitalist called

economic mode of production are validated by a passive state and subservient to big

business. This in turn sets the city and its life forms through the implications that fall,

especially in the generation of concentration of income and socioeconomic

inequalities. Patients suffering from mental street residents living in the town as a

constituent part of a complex network sociability that develop and become more

important in the production process of the urban space to the extent that they are

produced. These guys choose their places in the production of forms of life in the city

considering the difficulties or facilities to obtain resources for survival, create

strategies of resistance against efforts that civil society and its legal representatives

undertake to try to take them places that live. The study seeks to understand how

these guys live on the streets of the city of Salvador, in the midst of social invisibility

that is imposed on them. Conclude the work addressing the consequences of

adopting a way of life to live while the work ethic and sociability of poor people with

mental disorders in family environment in a capitalist and urban society, further

stating that factors such as poverty, unemployment, migration, physical and mental

disabilities, alcoholism and illicit drug use are not enough to bring these individuals to

live on the streets.

Keywords: City, urban poverty, homeless, social differences, mental disorders.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, pelo amor incondicional.

Aos meus pais pelo amor, carinho e cuidado que sempre e incansavelmente me

dedicaram.

Ao orientador, Professor Cristóvão, pela atenção e contribuição no desenvolvimento

deste trabalho.

A todos (as) moradores em situação de rua que se mostraram solícitos e amigos,

sempre disponíveis a contribuir com suas vidas e com suas histórias.

Aos meus companheiros, amigos e colegas de curso e de vida, pela presença nesta

longa jornada.

A todos que fizeram parte deste trabalho e que contribuíram verdadeiramente para a

sua concretização.

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Um homem se humilha

Se castram seu sonho

Seu sonho é sua vida

E vida é trabalho...

E sem o seu trabalho

O homem não tem honra

E sem a sua honra

Se morre, se mata...

Gonzaguinha

A arte de ser louco é jamais

cometer a loucura de ser um sujeito normal

Raul Seixas.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Imagem aérea de Salvador que evidencia a segregação socioespacial,

2015 .......................................................................................................................... 25

Figura 2: Vista do bairro do Corredor da Vitória na década de 1950, 2015 ............. 27

Figura 3: Internos do Hospital Colônia de Barbacena, em situação de maus

trato,2015 .................................................................................................................. 33

Figura 4: Moradores em situação de rua improvisam abrigo sob o viaduto Marta

Vasconcelos, no terminal rodoviário do Aquidabã, 2015 ........................................... 38

Figura 5: Imagem registrada no filme Bicho de sete cabeças em que Neto (Rodrigo

Santoro) é submetido a supostas seções de tratamento, 2015................................. 53

Figura 6: Moradora em situação de rua no bairro do Comércio, em frente à

Agência dos Correios, 2015 ...................................................................................... 56

Figura 7: Habitação improvisada de moradores de rua em baixo do viaduto próximo

a Ladeira da Água Brusca, 2015 ............................................................................... 62

Figura 8: Morador em situação de rua dormindo no Vale de Nazaré, 2015 ............. 63

Figura 9: Praça Marechal Deodoro (Praça das Nações), durante o período do dia

em que apresenta grande circulação de pessoas, 2015 ........................................... 64

Figura 10: Moradores em situação de rua banhando-se na Fonte da Bica,

Localizada no bairro no Comércio, 2015 ................................................................... 72

Figura 11: Centro POP local utilizado para higienização pessoal e realização de

refeições gratuitas, 2015 ........................................................................................... 73

Figura 12: Jovens moradores em situação de rua consumindo a pedra do crack,

2015 .......................................................................................................................... 75

Figura 13: Praça das Nações, localizada no bairro do Comércio é utilizada para

entretenimento e uso de drogas e bebidas, 2015 ..................................................... 76

Figura 14: Morador em situação de rua dormindo durante o dia na Rua Cônego

Pereira, 2015 ............................................................................................................. 78

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LISTA DE MAPAS

Mapa 1: Localização do recorte geográfico para análise do fenômeno, referente ao

bairro do Comércio, 2015 .......................................................................................... 67

Mapa 2: Localização do recorte geográfico para análise do fenômeno referente à

Avenida J. J. Seabra até a rua Cônego Pereira, altura do antigo Terminal Rodoviário

de Salvador, 2015 ..................................................................................................... 68

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Salvador: evolução da população residente entre 1960 – 2010 ............... 28

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9

1.1 A CIDADE ........................................................................................................... 12

1.1 SALVADOR, UM FENÔMENO URBANO ........................................................... 22

1.3 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA LOUCURA ................................................. 29

1.4 O LUGAR ONDE A VIDA ACONTECE: A RUA QUE REVELA O MUNDO ........ 35

2. QUEM É O POVO DA RUA? ................................................................................ 40

2.1 POBREZA E LOUCURA: ENTRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS .................... 46

2.2 DESVANTAGENS ECONÔMICAS E SOCIAIS APONTAM VULNERABILIDADE

DAS CONDIÇÕES DE SAÚDE MENTAL ................................................................. 50

2.3 REFORMA PSIQUIÁTRICA, RESPONSABILIDADE FAMILIAR E SEUS

DILEMAS................................................................................................................... 52

3. A VIDA NAS RUAS .............................................................................................. 56

3.1 SOCIABILIDADE E MODERNIDADE NA CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS NA

RUA ........................................................................................................................... 58

3.2 ESPAÇOS DE RUA, ESPAÇOS DE VIDA .......................................................... 62

4. O ESPAÇA DE VIDA PRODUZIDO NAS RUAS .................................................. 66

4.1 COMO CHEGARAM AS RUAS? ......................................................................... 69

4.2 COMO SE ALIMENTAM? .................................................................................... 70

4.3 COMO REALIZAM OS CUIDADOS DE HIGIENE PESSOAL? ........................... 72

4.4 POR ONDE ANDAM? ......................................................................................... 74

4.5 COMO SE ESTABELECEM AS RELAÇÕES COM ENTORPECENTES? .......... 75

4.6 COMO É DORMIR NAS RUAS? ......................................................................... 77

4.7 POR QUE AQUI? ................................................................................................ 79

4.8 DENTRE TANTAS HISTÓRIAS... O RELATO DE UMA VIDA ............................ 80

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 84

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 87

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1. INTRODUÇÃO

Em contextos de desigualdade social extrema, circunstâncias de vida

particulares e em consonância com um contingente populacional de miseráveis, os

moradores de rua portadores de sofrimento mental, assumem uma posição

particular na paisagem urbana. Transformada pela ciência médica e assumida pela

sociedade como doença, alienação, desajuste, irracionalidade e perversão, a

loucura carrega consigo uma série de práticas e conhecimentos que possuem uma

moralidade avaliada a luz da tradição, bons costumes, ordem social, pelo trabalho

como produto, desligando violentamente os tantos laços de construção e

pertencimentos sociais.

Em qualquer lugar ou qualquer horário do dia ou da noite os moradores de

rua aparecem na cidade, geralmente nos cantos mais escuros, sujos e esquecidos,

eles de fato existem, são reais, e pertencem ao corpo social, por mais triste e

repulsiva que possa ser essa condição. Considerando o fato de habitarem

logradouros públicos, praças, viadutos, construções abandonadas, entre outros

espaços, estes sujeitos interagem com os demais segmentos sociais dentro da

dinâmica das cidades. Pensar nas relações que a comunidade social estabelece

com esse segmento particular, que são os das pessoas em situação de rua, é

realizar um exercício em que se reavalia valores pessoais a partir da manifestação

escancarada do produto de um sistema de exclusão e de desigualdade.

O olhar debruçado sobre as pessoas em situação de rua é quase sempre

acompanhado pelo medo, temor de uma agressão, do roubo, do infortúnio do pedido

de dinheiro, ou ainda pelo oferecimento de algum serviço prestado seja o de limpar

os vidros do carro na sinaleira ou cuidar de carros estacionados em via pública. Fato

é que nos sentimos incomodados com sua presença ou aproximação. Sujos, mal

cheirosos, maltrapilhos, desprovidos de laços familiares, simbólicos e materiais, é

comum sentir compaixão, revolta, ou não sentir nada. Algumas pessoas os

enxergam com raiva, proferem ofensas, os violentam verbalmente, moralmente,

simbolicamente, e os mais exaltados agridem e matam, como se verifica em

lamentáveis casos noticiados nos veículos de comunicação a exemplo do índio

Galdino que foi queimado vivo na cidade de Brasília na década de 1990 por cinco

jovens de classe média.

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Por mais que a sociedade esteja habituada com sua presença, os moradores

de rua serão sempre estranhos e alheios a nós, se apresentam como uma lacuna na

sociedade moderna, sendo ignorados em vez de assistidos. No caso do morador em

situação de rua portador de sofrimento mental essa condição o torna ainda mais

vulnerável. Como essas pessoas são tornadas invisíveis, no Brasil não há qualquer

tipo de preocupação com elas, muito menos sobre sua quantidade. Nos Estados

Unidos, cerca de 39% da população em situação de rua apresenta alguma forma de

deficiência mental, sendo que 22% apresentam deficiência mental severa, ou seja,

no mínimo um a cada quatro moradores em situação de rua não tem condição de se

manter empregado, mesmo se tivesse oportunidade de trabalhar (GOFFMAN, 2008).

A pessoa em situação de rua com transtorno mental, além de estar sujeito à fome,

ao frio e mais vulnerável a violência, terá ainda mais dificuldade de interagir e

produzir seu espaço.

Apesar de existirem muitos estudos que debatem a questão, sobretudo, fora

da geografia, ao se avaliar o fenômeno de morar nas ruas pode-se perceber a

urgência em se compreender os processos e promover discussões sobre a temática.

Espera-se que este estudo sirva de subsídio para reflexão, que fomentará a

possibilidade de compreendermos uma realidade que se amplia a cada dia, que

invade o debate acadêmico, a atividade policial, e principalmente vidas carentes de

intervenções rápidas, eficazes e reais, por parte dos Governos e das entidades de

gestão pública, uma vez que as condições precárias, insalubres e violentas das ruas

requerem ações e formas de tratamento orientadas, segundo as suas

especificidades.

Com o objetivo de se compreender a lógica que condiciona a produção do

espaço urbano pelos moradores em situação de rua, a abordagem metodológica

desenvolvida no trabalho tem seu ponto de partida em representações e fatos

empíricos, considerando a análise do discurso. Ao delimitar o tema sugerido em

orientação, optou-se por desenvolver a pesquisa na cidade do Salvador. Na procura

de lugares que tem como característica significativa a presença de moradores de

rua, as observações empíricas assinalaram a evidência. O primeiro setor

corresponde ao do bairro do Comércio, o segundo setor equivale a porções da

Avenida Joaquim José Seabra, incluindo parte da Baixa dos Sapateiros, Aquidabã e

Sete Portas. Áreas não residências, imersas em um tecido que continua seu

processo de expansão, reestruturação e ressignificação urbana, dentro de seus

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limites, localizam-se edifícios, centros comerciais formais e informais, pontos

turísticos, intenso fluxo de veículos e pedestres, entre outros fatores de atração. Os

aspectos comportamentais frente a dinâmica urbana do agir dos adultos em situação

de rua e sua relação com as funções desenvolvidas nos recortes escolhidos são o

foco da pesquisa.

A pesquisa de campo foi basilar para o desenvolvimento do trabalho

objetivado que é a produção de espaço urbano pelos moradores em situação de rua

portadores de sofrimento mental. Na pesquisa a principal técnica para a obtenção

das informações ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas. A elaboração de

um roteiro de entrevista, a coleta de informações complementares com os

moradores e trabalhadores dos lugares onde essas pessoas vivem, e a coleta de

informações adicionais junto aos familiares, quando localizados, foram essenciais

para o fenômeno ser revelado.

O principal instrumento de coleta de dados utilizado para a pesquisa foi

entrevistas semiestruturadas, realizadas durante o período dia, sobretudo nos

horários pela manhã, ao longo do trajeto de cada um dos lugares definidos como

campo empírico, com questionamentos que permitiram identificar como esses

sujeitos produzem seu espaço de vida, dentro da cidade. A mesma compõe-se de

tópicos guia considerados relevantes para a compreensão do fenômeno, tais como:

1. Dados pessoais 2. Como chegou às ruas, há quanto tempo está nessa condição?

3. Como se alimenta? 4. Onde realiza sua higiene pessoal? 5. Como se desloca pela

cidade? 6. Como se relaciona com entorpecentes? 7. Como é dormir nas ruas? 8.

Quais fatores condicionam a escolha do lugar de permanência na cidade?

Essas perguntas foram realizadas com 20 pessoas abordadas no decorrer da

pesquisa, no bairro do Comércio e na área correspondente a Avenida Joaquim José

Seabra (a partir do terminal rodoviário da Barroquinha , abarcando parte da Avenida

Cônego Pereira até o antigo terminal rodoviário).

A população a ser pesquisada – o chamado “louco de rua” – foi identificado

em meio a um universo de moradores de rua por meio da observação de pessoas de

hábitos ou vestimentas “estranhas”, com linguagem aparentemente incompreensível,

habitando terrenos baldios, sob viadutos, pontes, casas abandonadas,

eventualmente, observação aberta, não sistematizada, do cotidiano desses sujeitos,

por ocasião dos contatos com eles. A pesquisa qualitativa, contou com relatos de

histórias de vida dos entrevistados, o que proporcionou maior conhecimento,

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visibilidade e compreensão dessa categoria social.

No primeiro capítulo o estudo discute acerca do fenômeno da população em

situação de rua portadora de sofrimento mental, apreendendo a relação que esses

indivíduos estabelecem com a cidade, em um processo dialético constante em que

organizam e produzem o espaço e como isso interfere em suas vidas. A cidade

aparece como lócus do acontecimento cotidiano, assim como saúde, pobreza,

loucura, políticas públicas e violência. Neste capítulo é discutida a categoria

geográfica do lugar que se apresenta como um conceito capaz de explicar as

dimensões das sociabilidades no cotidiano. O lugar revela-se como o lócus da

identidade, do pertencimento, articulando as vivências e experiências no espaço

(SANTOS, 1996).

No segundo capítulo buscou-se identificar o perfil das pessoas em situação

de rua e os contextos socioeconômicos que contribuem para o desenvolvimento de

transtornos mentais, dos processos de desvinculação de padrões sociais e

rompimento de vínculos familiares que culmina em ter as ruas como local de

moradia. Observa-se como a organização social baseada na propriedade privada,

na distribuição desigual e excludente contribui para a construção do fenômeno de

pessoas se obrigarem a morar nas ruas.

Os terceiro e quarto capítulos se debruçam sobre a apresentação e análise

dos dados coletados sobre a população em situação de rua com o objetivo de

compreender como são produzidos os espaços de vida desses sujeitos, por meio

das relações que estabelecem com esses espaços e com os sujeitos que junto com

eles, compõem a realidade urbana soteropolitana.

1.1. A CIDADE

A cidade é revelada por meio dos objetos e formas urbanas e pelo modo de

vida, das pessoas citadinas e suas relações entre si e com os objetos. Suas vias,

ruas, vielas, diversidade de serviços, atividades comerciais, cores, cheiros e

significados em coexistência com as pessoas e suas demandas urbanas, aparecem

como ponto de partida para a compreensão de um fenômeno que se apresenta entre

a vulnerabilidade social e a resistência corporal materializada nos moradores em

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situação de rua portadores de sofrimento mental.

Fica evidente mesmo a partir de análises mais casuais, que a cidade

moderna é capaz de agregar e desempenhar uma série de funções. Lojas,

shoppings, estabelecimentos reservados ao lazer como teatros, testemunham um

papel da prestação de serviços; oficinas e fábricas realçam a importância da

atividade de montagem e manufatura, enquanto os edifícios públicos e escritórios

fornecem evidência visual das responsabilidades administrativas e gerenciais

(CLARK, 1991). Embora atualmente presentes em muitas cidades, essas funções

urbanas desenvolveram-se em diferentes épocas do passado e variam em sua

importância contemporânea. Por exemplo, a economia pré-industrial estava

orientada para servir as necessidades de agricultura, de modo que as localidades

preferidas para o povoamento eram aqueles lugares que combinavam segurança e

acessibilidade aos mercados mais amplos (CLARK, 1991).

Similarmente, a manufatura desenvolveu-se em locais que apresentavam as

melhores oportunidades para se conseguir o custo mínimo da produção e onde

esses locais coincidiam com o povoamento pré-industrial existente, a cidade

desenvolveu-se tanto como centro de serviços, como centro industrial. Só

recentemente foi que a atividade gerencial surgiu como fonte importante de

empregos nos negócios e no governo, e ao expressar uma preferência pelas áreas

centrais das grandes cidades deu a esses locais um perfil ocupacional bem mais

amplo (CLARK, 1991).

A cidade nasce com o processo de sedentarização e seu aparecimento

delimita uma nova relação homem/natureza: para fixar-se em um ponto para plantar

é preciso garantir o domínio permanente de um território. Imbricada à natureza da

cidade, está à organização social e consequentemente a necessidade de gestão da

produção coletiva e indissociável à existência material da cidade está sua existência

política (ROLNIK, 1988). A cidade então aparece como centro e expressão de

domínio sobre um território, sede do poder e da administração, lugar da produção de

mitos e símbolos, estando essas características também presentes nas metrópoles

contemporâneas (ROLNIK, 1988).

No momento em que o homem deixa de ser nômade, fixando-se no solo

como agricultor é dado o primeiro passo para a formação das cidades. Quando o

homem começa a dominar um elenco de técnicas menos rudimentares que lhe

permitem extrair algum excedente agrícola, alcança um segundo impulso para o

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surgimento das cidades, visto que ele pode agora dedicar-se a outra função que não

a de plantar (CARLOS, 1993).

A construção do local cerimonial corresponde a uma transformação na maneira de os homens ocuparem o espaço. Plantar o alimento, ao invés de coletá-lo ou caça-lo, implica definir o espaço vital de forma mais permanente. A garantia de domínio sobre este espaço está na apropriação material e ritual do território. E assim, os templos se somam a canteiros e obras de irrigação para constituir as primeiras marcas do desejo humano de modelar a natureza (ROLNICK, 1988, p. 13).

Por volta de 8000 a. C. o homem aprofunda suas relações com o meio

circundante aproveitando a terra para o plantio, iniciando um rudimentar princípio de

organização. Aproximadamente no ano 6000 a. C, já se nota inovações técnicas,

tais como o arado de relha, aliados aos deslocamentos dos vales fluviais

(inicialmente Tigre, Eufrates e Nilo). As inovações tecnológicas prosseguem e no

ano 5000 a. C já se podia notar a presença de diques, canais e vales de irrigação

(CARLOS, 1992).

Foi em torno de 5000 a. C. que surgem, junto ao Eufrates e em outros pontos

da Ásia, as primeiras povoações às quais se pode dar o nome de cidade. Tinha no

artesanato, de boa técnica, e na atividade bancária, dirigida pelos sacerdotes, suas

principais atividades. A sociedade era dividida em três classes: sacerdotes, homens

livres e escravos (CARLOS, 1992).

Na Antiguidade, se podia encontrar cidades basicamente comerciais, situadas

ao longo dos rios e mais tarde às margens do Mediterrâneo, vinculando Oriente e

Ocidente. À medida que a navegação marítima foi se tornando mais segura, as

cidades foram sendo construídas nas costas marítimas cercadas de muralhas,

localização esta fundamental para o desenvolvimento de atividade comercial que se

tornou basilar para o sustento da vida urbana. Todavia, o bloqueio do Mar

Mediterrâneo, provocado por invasões no século VII, inviabilizou o comércio e

consequentemente, as cidades entraram em rigoroso declínio que se estendeu até o

século XI (CARLOS, 1992).

No feudalismo, como consequência de um modo de produção diverso do

anterior, surge uma nova estrutura de classes sociais, onde a terra passa a ser

sinônimo de riqueza. Enquanto na Antiguidade o comércio impulsionava o

crescimento das cidades e produzia um determinado espaço, no feudalismo, dentro

do feudo produzia-se e consumiam-se os próprios produtos, numa economia

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autossuficiente, sem mercados externos e sem ligações. Tudo que se precisava, que

na alimentação, no vestuário ou no mobiliário era produzido no feudo, não havendo

excedentes, capazes de permitir a troca e com isso as relações entre populações e

lugares (CARLOS, 1992).

A cidade, desaparecida em função do fechamento do comércio mediterrâneo,

começa a renascer a partir do século XI, no momento em que a economia

autossuficiente do feudo do início da Idade Média se transforma em uma economia

monetária, com um comércio em expansão. Como a vida de relações é fundamental

para a existência da cidade, as primeiras vão ressurgir onde o comércio tem

expansão mais rápida: na Itália e Holanda (CARLOS, 1992).

A partir do século XI, com o surgimento das cruzadas, o comércio amplia seu

alcance diversificando seus produtos, visando atender uma população que começa a

crescer a taxas mais acentuadas. A mudança na forma espacial da agricultura

autossuficiente feudal para as cidades deveu-se em particular ao comércio como

fonte de riqueza. Com a introdução da economia monetária surge uma nova divisão

do trabalho que acompanha o crescimento das cidades.

Existe nitidamente, com o desenvolvimento do comércio e consequentemente

das cidades e das populações urbanas, uma mudança de valores. A terra passa a

dividir com o comércio o papel de fonte de riquezas. O comércio começa a se impor

e a organizar um espaço compatível com seus valores e modo de vida.

Para Rolnik (1988) a cidade é sempre uma organização dinâmica, de alto

poder concentracional, que cria, no entanto, a cada momento, uma produção

espacial que lhe seja peculiar. A cidade vai ganhando expressão à medida que nela

vai se desenvolvendo a manufatura e para ela vai convergindo a grande massa de

trabalhadores expulsos do campo. Essa massa de trabalhadores possui um duplo

sentido. Para o modo de produção nascente vão fornecer mão de obra barata

trabalhando nas manufaturas; ao tornarem-se assalariados, permitem a criação de

um mercado interno (ROLNIK, 1988).

A indústria que antes era caseira, ganha agora maior especialização. A

produção excedente, a possibilidade da troca e o uso do dinheiro dão aos artesãos a

oportunidade de abandonar a agricultura e viver do seu ofício, porém a diminuição

da população agrícola ocorre, sobretudo em função das inovações tecnológicas tais

como: cavalo no lugar de bovinos e a introdução do arado pesado.

O desenvolvimento da indústria, as grandes descobertas científicas e o

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consequente avanço tecnológico criam especialização espacial e uma divisão do

trabalho muito mais ampla. A cidade como ponto de concentração da indústria e de

grande massa populacional atrai não só o poder econômico como o político,

passando a comandar espaços maiores, de acordo com o seu poder (CARLOS,

1992).

A luta por novos mercados levava as cidades mais poderosas a conquistar

cidades mais fracas para suprir um mercado rival. Ao mesmo tempo, havia um inicio

de centralização da autoridade com a criação de uma capital que passa a

desempenhar um papel tanto social quanto político. O próprio território nacional

passou a ser o elo de ligação entre grupos, corporações e cidades diversas

(ROLNIK, 1988).

A relação morador cidade/poder pode variar infinitamente em cada caso, mas o certo é que desde sua origem cidade significa, ao mesmo tempo, uma maneira de organizar o território e uma relação política. Assim, ser habitante da cidade significa participar de alguma forma de vida pública, mesmo que em muitos casos esta participação seja apenas de submissão a regras e regulamentos (ROLNIK, 1988, p. 22).

A cidade é capaz de ser analisada sobre uma infinidade de perspectivas. A

cidade para Carlos (1994) pode ser definida como aglomeração. Aparece como

lócus da produção, concentração dos meios de produção, do capital, da mão de

obra, mas é também concentração de população e bens de consumo coletivo.

Aglomeração e concentração são duas características constantemente vinculadas à

ideia de cidade. A autora afirma que a cidade tem sido analisada como concentração

de população, instrumento de produção, atividades de serviço, infraestrutura,

reserva de mão de obra, trabalhadores e, sobretudo, mercadorias (CARLOS, 1992).

Para Rolnik (1988) construir cidades significa também uma forma de escrita.

Na história, os dois fenômenos, escrita e cidade, ocorrem quase que

simultaneamente, impulsionados pela necessidade de memorização, medida e

gestão do trabalho coletivo.

Na cidade - escrita, habitar ganha uma dimensão completamente nova, uma vez que se fixa em uma memória que ao contrário da lembrança, não se dissipa com a morte. Não são somente os textos que a cidade produz (documentos, ordens, inventários) que fixam está memória, a própria arquitetura urbana cumpre também este papel. O desenho das ruas e das casas, das praças e dos templos, além de contar a experiência daqueles que os construíram, denota o seu mundo (ROLNIK, 1988, p. 16).

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É por isto que as formas e tipologias arquitetônicas desde quando se

definiram enquanto habitat permanente nas cidades. Podem ser lidas e decifradas,

como se lê e decifra um texto. Sob outra abordagem Rolnick (1988) atribui a cidade

vestes de mercado, o criando ao aglomerar num espaço limitado uma numerosa

população, estabelecendo assim não apenas a divisão do trabalho entre campo e

cidade, mas também uma especialização do trabalho no interior da cidade.

O modo como à sociedade vive hoje é determinado pelo modo como o capital

se reproduz, em seu estágio de desenvolvimento. Isso quer dizer também, que o

trabalhador não foge ao “controle” do capital, nem quando está longe do local de

trabalho, pois o espaço de moradia tende a submeter-se às necessidades e

perspectivas da acumulação do capital.

A cidade enquanto espaço da reprodução do capital se impõe como condição geral para produção, e este fato impõe uma determinada configuração ao urbano, aparecendo enquanto fenômeno concentrado, fundamentado numa complexa divisão espacial do trabalho, formando uma aglomeração que, no capitalismo, tem em vista o processo de acumulação. Um aglomerado que busca diminuir as distâncias (medida pelo tempo) entre processo de produção da mercadoria e seu processo de consumo. Nessa perspectiva, a cidade é o lócus da concentração dos meios de produção, serviços, mercadorias, infraestrutura, trabalhadores e reserva de mão de obra (CARLOS, 1992, p. 73).

Compreende-se a cidade como uma grande organização edificada para

atender as demandas dos que nela habitam ou chegam. São as instituições e

formações políticas, econômicas e sociais que determinarão quais formas assumirá,

assim como influenciará na produção espacial ali percebida. Na cidade se manifesta

uma miríade de fenômenos diferentes e igualmente complexos que podem variar a

partir das limitações morfológicas existentes em seu sítio urbano até a forma como

lhes são impostas suas construções.

Ao visitante, ela mostra a face sedutora, que convida ao turismo e à

descoberta, mas ao mesmo tempo pode apresentar um aspecto atemorizante, uma

entrada em um universo desconhecido no qual cada esquina representa um desafio

a ser vencido, um perigo iminente. Pequenas mudanças que acompanham o ritmo

próprio do envelhecer, com a diferença que o tempo da cidade é outro, por vezes

mais lento, outras mais rápido que aquele do homem, onde o seu pertencer à

cidade, também ocorre de formas distintas.

Os moradores das cidades desenvolvem rotinas de reconhecimento e

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pertencimento aos lugares, contribuem ou contestam a mudança da paisagem

urbana. A cidade lhes pertence na medida em que, mesmo sem ser percebida,

constroem ali suas vidas, estabelecem as mais diversas relações e atividades.

Vivem, morrem, partem e por vezes, voltam para aquele local. A organização das

relações que se configuram nas cidades formam os mais diversos murais, em que

cenas urbanas constituem momentos de vida e de morte, às vezes reveladas, outras

vezes ocultas, perceptíveis apenas aos transeuntes que compõem o cenário.

A apropriação da cidade pauta-se cada vez mais pelas regras do consumo.

Aqueles que não possuem meios para consumir bens e serviços são afastados dos

lugares, pois não têm porque estarem ali, já que o consumo passa a ser a razão da

existência do espaço, em detrimento de outros valores. Consumir transforma-se em

um exercício de inserção social. Assim também a cidade é preparada cada vez mais

para vender, em cada esquina surge um apelo de venda, aos locais se atribuem

valores, não mais aqueles de uso, mas aqueles do status. Frequentar um

determinado espaço na cidade revela-se um sinônimo de poder de consumo.

Já é bem conhecido o duplo caráter da centralidade capitalista: lugar de consumo e consumo de lugar. [...] Nesses lugares privilegiados, o consumidor também vem consumir o espaço; o aglomerado dos objetos nas lojas, vitrinas, mostras, torna-se razão e pretexto para reunião das pessoas; elas vêem, olham, falam, falam-se. E é o lugar do encontro, a partir do aglomerado das coisas. Aquilo que se diz e se escreve é antes de mais nada o mundo da mercadoria, a linguagem das mercadorias, a glória e a extensão do valor de troca. Este tende a reabsorver o valor de uso na troca e no valor de troca. No entanto, o uso e o valor de uso resistem obstinadamente: irredutivelmente (LEFEBVRE, 2001, p. 130 e 131).

A lógica da maximização da renda da terra finalmente reduz parcelas da

cidade à condição de uma mera mercadoria, com valor de troca e de uso no

imobiliário. E a expulsão paulatina das famílias de baixos ou moderados recursos

para as margens da cidade é apenas uma das maneiras pelas quais a cidade vai

ganhando os contornos, consolidando e alterando as formas e as funções urbanas.

O processo de reprodução do capital domina a cidade e lhe impõe novas

configurações, sobretudo através do seu modo de distribuição e consumo de

mercadorias e do trabalho. Fato que comumente carrega consigo inúmeras

anomalias sociais como a fome, o desemprego, a violência e o aumento crescente

da concentração de renda e por consequência das desigualdades, para parcela

significativa da população, contingentes que ao não serem absorvidos e adaptados

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pelo sistema através das leis e regras de controle social, pagam o preço da exclusão

dos serviços básicos e fundamentais para a prática de condições adequadas de

vida.

Sobre a estrutura interna da cidade, pode-se afirmar que elas se manifestam

de diversas e diferenciadas formas. Entre as variadas visões sobre a lógica da

configuração espacial nas cidades, é assinalada por (CLARK, 1991, p. 208) a

correspondente à abordagem “conflito – administração” que aponta para a

ocorrência de efeitos espaciais indicativos da existência de poderosos mecanismos

alocativos dentro da cidade, capazes de criar e reforçar as tradicionais disparidades

e injustiças. Sugerindo uma situação de conflito mais de que consenso, para onde

quer que a cidade se estenda o resultado de tensões e fricções inerentes à

competição por espaço na cidade aparecerão.

A evidência na abordagem do conflito - administração é colocada sobre as

tensões locacionais e sobre os papéis dos que dirigem, controlam e manipulam os

usos do solo na cidade. É visto como consequência inerente da competição por

espaço na cidade.

Cada unidade de tomada de decisões tem um conjunto de recursos tais como pessoal, capital e solo, que são alocados para suas atividades de maneira a maximizar a utilidade. Assim, preenchendo as necessidades de seus membros, uma moradia oferece dentro de um limite fixado somas e recursos para abrigar, alimentar, transportar e assim por diante. Uma característica importante desse processo de alocação é que as utilidades individuais não são independentes: o que é de interesse para alguns vai em detrimento de outros. Por exemplo, a compra de um carro pode trazer benefícios a um lar em termos de mobilidade, mas gera poluição e obstrução, provocando inconveniências e problemas a outros. Reconhecem-se dois tipos efeitos externos. O primeiro é a “externalidade do comportamento público”, que cobre os níveis de manutenção da propriedade, delito, comportamento público de nossas crianças: o segundo é a “externalidade do status”, que é aquela gerada pela posição social e ética das famílias. Para Cox, tais efeitos colaterais estabelecem um conjunto de atrações e aversões na cidade. É em resposta a essas qualidades que a estrutura espacial urbana se torna aplicada (CLARK, 1991, p. 209).

Santos (1981) afirma que a política de organização interna programada e

autoritária acarreta sérias implicações na cidade de maneira direta e indireta,

conduzindo comumente, nas cidades dos países subdesenvolvidos, ao agravamento

da tendência à segregação econômica, paralela à segregação social.

A segregação econômica deriva, dentre outras razões, dos preços dos

aluguéis e dos terrenos. Somente as camadas um pouco mais privilegiadas da

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cidade podem pagar pela compra ou locação de habitação ou imóvel comercial

criando áreas de bairros favorecidos dotados de ampla oferta de serviços e

infraestrutura e áreas de bairros pobres que contam quase sempre com a

inexistência ou ineficiência de recursos e serviços básicos.

Clark (1991) corrobora com Marx (1995) ao compreender a estrutura interna

da cidade pela abordagem chamada de análise Marxista, parte para sua

interpretação a partir dos ganhos do capital e das contradições nas relações sociais

e de produção. Em cada sociedade, exceto a mais primitiva, o grosso da população

está engajada diretamente na produção, enquanto uma minoria controla seu

trabalho e os bens que eles produzem.

Como o valor urbano disponível é limitado em quantidade, ele tem um valor econômico. Para a maioria das mercadorias, os economistas distinguem duas medidas de valor. O primeiro é o valor de uso é uma medida de valor derivado do fato de se colocar a mercadoria para funcionar; o segundo é o valor de troca, sendo realizado quando a mercadoria é vendida (CLARK, 1991, p. 220).

A municipalidade com outros mecanismos de gestão e controle em sintonia

com a elite privilegiada pela organização e produção de áreas, disponibilização de

serviços variados e infraestrutura urbana, beneficiam esses espaços reproduzindo

as relações hegemônicas: políticas, econômicas e sociais.

Representado por planos, projetos e discursos que promovem a desigualdade

social em função da sua denotação pejorativa o que por consequência aumenta a

situação de vulnerabilidade social da parcela pobre e excluída, as medidas

saneadoras representam por um lado à hegemonia da elite, por outro, potencializam

o próprio capitalismo, como divisor das relações sociais de trabalho na cidade,

modelo e símbolo da modernidade. A estruturação interna das cidades obedece,

prioritariamente, à lógica de localização das camadas de mais alta renda. Estas

procuram se localizar em áreas com boa acessibilidade aos subcentros funcionais e,

ao fazê-lo, interferem na acessibilidade das outras áreas.

O processo de urbanização torna-se então a expressão, em nível do espaço,

desta dinâmica social, isto é, da penetração pelo modo de produção capitalista

historicamente formado nos países ocidentais, capaz de orientar o resto das

formações sociais existentes, situadas em níveis diferentes do ponto de vista

técnico, econômico e social, partindo da análise macro da organização das

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estruturas urbanas em nível global.

Smith (1988) considera em profundidade a afirmação de que o espaço global

é produzido como espaço relativo. E a luz de Marx (1995) analisa tal constatação

sob a ótica do processo de circulação do capital, salientando que a circulação é

contínua no espaço e no tempo. Ainda nessa reflexão Marx juntamente com Engels,

inclusive, verifica que a necessidade que o capital tem de expandir-se

constantemente, por meio dos mercados de produtos, faz com que a burguesia se

espraie por todas as localidades, vinculando-se em toda parte (SMITH, 1988).

O capital se desloca, como processo oscilatório, em todas as escalas sociais,

movendo-se geograficamente de forma a explorar constantemente as oportunidades

de desenvolvimento, sem ter que arcar com os custos da pobreza e das

desigualdades sociais. Mas, não é possível negar que ao deslocar-se o capital

propicia o surgimento de paisagens que traduzem a contradição geográfica entre

desenvolvimento e subdesenvolvimento. Sendo assim, é na esfera urbana que o

capital obtém maior potencial de circulação, e por conseguinte, onde observa-se o

estágio mais avançado de desenvolvimento desigual (SMITH, 1988).

Para Castells (1972) o essencial, do ponto de vista analítico, não é a

subordinação política dos países “subdesenvolvidos” às metrópoles imperialistas (o

que é apenas a consequência de uma dependência estrutural), mas a expressão

desta dependência na organização interna das sociedades em questão e, mais

concretamente, na articulação do sistema de produção e das relações de classes.

O processo de urbanização torna-se então a representação, no espaço, desta

dinâmica social, isto é da manipulação pelo modo de produção capitalista

historicamente formado nos países ocidentais, de resto, das formações sociais

existentes, situadas em níveis diferentes do ponto de vista técnico, econômico e

social.

A cidade está envolvida diretamente nos processos existenciais das pessoas

que abriga e sustenta. Ela representa o lugar da coexistência e da liberdade, é ao

mesmo tempo, o lugar da vigilância, da disciplina, das normas e da exclusão, cabe a

ela a função de abrigo, da vizinhança, dos vínculos, do fato cultural e histórico,

espaço do sujeito em toda sua plenitude, imaginação, corpo e alma.

As cidades são uma criação humana, resultado do processo histórico-

geográfico inacabado, representa um espaço em constante dinamismo e sempre em

construção. Em uma entrevista dada ao jornal norte-americano em janeiro de 2015,

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Harvey afirma que a realidade material deste capitalismo internacional brutalmente

neoliberalizador manifesta-se numa crise da vida na cidade. O capitalismo se

apresenta hoje não apenas como um sistema econômico, mas também como uma

forma de organização do território e do nosso modo de habitá-lo, é algo que, cada

vez mais, se torna visível na acelerada transformação das cidades.

A cidade do Salvador, como as demais capitais brasileiras, não foge muito ao

padrão de urbanização, com grandes desafios para a efetividade do controle,

ordenamento do uso e ocupação do solo e com dificuldades para assegurar a

prestação de serviços públicos a um conjunto considerável de seus habitantes,

sobretudo os mais pobres (CORSO, 2008).

Nesse contexto em uma condição de absoluta instabilidade financeira,

vulnerabilidades morais, emocionais e simbólicas, aparecem os moradores de rua

portadores de sofrimento mental como retrato escancarado da fragilidade e

complexidade organizacional inerente as grandes cidades como é o caso de

Salvador receptora do fenômeno estudado neste trabalho.

1. 2. SALVADOR, UM FENÔMENO URBANO

O núcleo inicial escolhido pelo governo português para a fundação da cidade

de Salvador caracterizava uma “cidade de dois andares”, separados por uma

escarpa com cerca de sessenta metros de altura. Estava localizado “no trecho

compreendido entre a atual Praça Castro Alves e a Misericórdia, na parte alta, e sua

correspondente projeção na praia, do ponto em que agora está a Praça Cairu até a

atual Ladeira da Preguiça” (FERREIRA, 1998, p. 31).

A cidade de Salvador concentrava, entre os séculos XVII e XIX, “[...] os

recursos financeiros, econômicos, sociais e políticos de toda a Província”

(MATTOSO, 1992, p. 79), e isso se dava devido à melhoria das condições de

circulação de mercadorias provenientes do exterior e do interior, fosse por meio

terrestre ou por meio hidroviário. E o Comércio era o ponto de convergência dos

fluxos de exportação de pau-brasil, açúcar, algodão e fumo, e entreposto para os

produtos manufaturados vindos de Portugal e do Extremo Oriente e de escravos

trazidos da África (MATTOSO, 1992). Seu porto era sendo considerado um dos mais

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importantes da América portuguesa no período.

O trecho da história soteropolitana entre 1945 e 1969 é marcado pela pré

metropolização, pelas migrações e grande expansão industrial e urbana. As cidades,

após o período da revolução industrial, atraíram as indústrias em decorrência da

existência de um mercado propício e da oferta de mão de obra, fator de produção

primordial para a contemplação de uma linha de produção. Por outro lado, a

indústria trouxe à cidade novas possibilidades e expectativas, como a diversificação

dos serviços e a criação de outros postos de trabalho (CASTELLS, 2000, p.45).

Castells (2000) destaca que a indústria provocou e provoca até os dias

atuais a urbanização da cidade, ademais a indústria também fomenta um processo

inverso, pois agrega a especialização e a utilização dos fatores de produção,

principalmente do fator de produção e mão de obra. Nestes dois casos o elemento

dominante para a urbanização da cidade e para a organização da paisagem urbana

é a alocação da indústria. Nos casos em que a indústria participou como entidade

inserida no processo histórico de desenvolvimento da cidade, como pode ter

acontecido em Salvador, percebe-se que a existência da indústria também provocou

a organização – ou reorganização - da paisagem urbana, ou seja, provocou o

próprio movimento de urbanização.

O processo histórico de crescimento das cidades brasileiras tem levado à

configuração de um quadro de extremas desigualdades sociais e concentração de

renda, tendo como resultado um cenário urbano de intensa segregação espacial.

Esta segregação se traduz em termos físicos pelos fortes contrastes entre o que se

pode considerar áreas com boa oferta de infraestrutura, reguladas pelo mercado

imobiliário e normalmente atendendo a legislação urbanística no que diz respeito às

condições de edificação e ao uso do solo - e, por outro lado, pela cidade

caracterizada pela implantação de loteamentos irregulares e clandestinos, bem

como invasões de áreas públicas e privadas e por aqueles que diante do desamparo

conjuntural moram nas ruas, locais ocupados pela população de baixa renda em

decorrência da impossibilidade de acesso ao mercado imobiliário por esta parcela da

população e da pouca efetividade das políticas habitacionais de interesse social.

O resultado atual do processo de produção do espaço urbano é a

desigualdade. Segundo Gottidiener (1993), esta desigualdade é o produto final dos

processos atuais de crescimento econômico e a sua manifestação no espaço se

traduz na geração de favelas, pobreza, desemprego e crise ambiental.

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Paralelamente, produz-se o surgimento de áreas exclusivas reservadas aos grupos

de maior poder aquisitivo, que contrastam fortemente das associadas aos grupos

pobres.

Assim, a segregação da população de acordo com seus níveis

socioeconômicos surge. Para Castells (1972) a segregação é um efeito da

distribuição do produto entre pessoas e da distribuição do produto – habitação no

espaço, elementos que obedecem a estratégia de reprodução da força do trabalho,

em articulação com o conjunto de instâncias da estrutura social.

Para Corrêa (1995) a segregação residencial é uma expressão espacial das

classes sociais que surge da localização diferenciada destas classes no espaço

urbano, devido a capacidade também diferenciada destas classes no espaço

urbano, de quanto cada grupo social tem para pagar pela sua residência, que se

diferem em termos de localização e características.

A cidade do Salvador como uma grande cidade, também reproduz a lógica do

mercado imobiliário e mesmo preservando a imagem de cidade antiga e litorânea,

de casas coloniais, igrejas barrocas, praia ensolarada não retrata nas imagens

associadas a ela todo o panorama da capital e da sua região metropolitana, onde

também se encontram algumas ilhas da modernidade e vastas áreas marcadas pela

precariedade, pela pobreza e pela escassez de serviços básicos ligados a

alimentação, moradia, saúde, educação, entre outros. Ao espelhar diferenças

econômicas, étnicas, sociais ou culturais segue uma tendência das cidades

contemporâneas.

Conforme assinala Lefebvre (1999), a segregação destrói o urbano, já que ele

é resultado da complexidade social. Esta complexidade se fundamenta na diferença,

que dá a possibilidade a cada lugar de informar aos outros. Contrária a esta

dinâmica, a segregação corta a informação e conduz a uniformidade, ou seja,

impede a convivência entre os diferentes grupos sociais e entre as distintas áreas da

cidade.

Desta forma a segregação espacial representa uma contradição para o

sentido da cidade. A cidade significa concentração de pessoas e atividades,

complexidade funcional e convivência entre os grupos sociais. É evidente que a

segregação elimina este último elemento, ao negar as trocas e o convívio entre os

grupos de diferentes níveis socioeconômicos. Deste modo a cidade atual, onde se

verifica o processo de segregação socioespacial, fragmenta-se física e socialmente

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a unidade e a coesão do espaço urbano.

A cidade do Salvador não para de crescer em números populacionais

absolutos, a organizar seu espaço regional e a especializar funções como a

portuária, industrial, comercial e administrativa que desenharia dia após dia uma

paisagem urbana rica em seu legado histórico, cultural e simbólico, assim como

cheia de limitações econômicas e contradições sociais e espaciais que materializam-

se imbricadas uma na outra como na imagem a seguir.

Figura 1 – Imagem aérea de Salvador que evidencia a segregação socioespacial,

2015

Fonte: Google imagens, 2015.

De acordo com CASTELLS (2000, p.40) entende-se por urbano: “uma forma

especial de ocupação do espaço por uma população, a saber, o aglomerado

resultante de uma forte concentração e de uma densidade relativamente alta, tendo

como correlato previsível uma diferenciação funcional e social maior”.

A cidade urbana passou a ser o ponto estratégico de desenvolvimento de

uma economia inserida em um permanente processo de globalização. As empresas

e as unidades manufatureiras necessitam adquirir fatores de produção cada vez

mais especializados, a necessidade de infraestrutura avançada somente pode ser

suprida pela cidade. A cidade urbana contempla a integração de culturas, a troca

permanente de experiências, o desenvolvimento social e a divisão do trabalho, desta

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forma as grandes cidades podem ser vistas como o centro de decisão do mundo

capitalista (SASSEN, 1998).

Em um contexto de globalização, as políticas intervencionistas são

homogeneizadas e definidas, em todas as partes do mundo, por agências de

financiamento internacionais que, são tanto mais incisivas quanto menos capacidade

de autofinanciamento as cidades possuem. Deste modo, termos como “qualidade de

vida” e “sustentabilidade” são usados como pontos chave das políticas declaradas

de desenvolvimento, e que necessitam aparecer nos escopos de planos, programas

e projetos como pressupostos para receberem financiamento.

Por isso, é possível ouvir o mesmo discurso de desenvolvimento por meio de

um planejamento estratégico, com propostas praticamente idênticas, em cidades

como: Manhattan, Baltimore, Los Angeles, São Francisco, Detroit, Londres,

Barcelona, Bilbao, Paris, Sidney, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Porto Alegre,

Salvador, São Paulo, Recife, Belém, e até Abu Dhabi, que localizam-se em países

com contextos socioeconômicos e culturais completamente diferentes.

Entre estas propostas, observam-se intervenções urbanas que procuram, na

inovação cultural e na elevação da qualidade do meio urbano, modos de agregação

de novos valores ao espaço. São intervenções como estádios esportivos, centros de

convenções, shoppings, marinas, praças de alimentação exóticas, capazes de

fomentar o consumo; ou a organização de espetáculos urbanos temporários ou

permanente, como opções de entretenimento. Os valores históricos e culturais

aparecem como meios utilizados para criar vantagens competitivas, que são

vendidas como parte da imagem da cidade (COMPANS, 2005).

Os centros tradicionais são exaltados como partes fundamentais do espaço

urbano, demandando ações para sua preservação, aparentemente, em razão de seu

valor histórico cultural. Para Clark (1991), isto ocorre pelo fato destes consistirem

nos espaços mais visitados pela população de uma cidade, tornando-se os marcos

mais fortes para a orientação tanto de quem vive na cidade, quanto de quem está

apenas visitando-a.

Este é um dos principais períodos de desenvolvimento dos bairros populares

em Salvador devido às grandes migrações regionais ocorridas e o consequente

crescimento demográfico. Pode ser adicionado o impacto positivo causado pelo

início das atividades da Petrobrás na região, seguido pela implantação do Centro

Industrial de Aratu. Em 1950, Salvador contou com 417.235 habitantes, sendo

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41,5% pardos e 24,7% negros e 41,5% analfabetos (BRITO, 2005).

O crescimento foi migratório, em 70%. Pesquisas publicadas em 1953

mostram que 50% dos negros e 40% dos mestiços eram analfabetos. Quanto aos

estudantes universitários os mestiços alcançavam um percentual de 33%, enquanto

os negros atingiam apenas 2,9%. As “classes mais abastadas” residiam na Vitória

como mostra a figura 2, Graça, Barra, Barra Avenida e ao longo das praias

atlânticas; as “classes médias” residiam em Nazaré, Barbalho, Santo Antônio e

Soledade; enquanto que a “população pobre” se concentrava na Liberdade, São

Caetano, Uruguai, Massaranduba e Penha. Em 1960 a população de Salvador

atinge 655.735 habitantes, sendo 61% de origem migratória (BRITO, 2005).

Em 1958, o município de Salvador foi desmembrado com a emancipação de

Candeias, seguido pela de Simões Filho (1961) e de Lauro de Freitas (1962). Os

dois primeiros municípios receberam posteriormente novos parques industriais. Em

1960, a população passou para 655.000 habitantes (um aumento de 238.000 em 10

anos), dos quais 61% eram de origem migratória, e 51 % se concentravam no norte

Figura 2: Vista do bairro do Corredor da Vitória na década de 1950, 2015

Fonte: Google imagens, 2015.

Em 1968, a Prefeitura alienou 4.680 ha de terras públicas, o que permitiu a

expansão (e especulação) imobiliária da cidade nas décadas seguintes. O Estado, a

partir de 1964, implantou o Banco Nacional de Habitação, responsável pela

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habitação popular planejada e pelo saneamento (BRITO, 2005).

No decorrer da década de 1960 já começava a manifestar-se na cidade de

Salvador, com maior intensidade que no período anterior, certa pressão por

habitação em decorrência da continuidade do crescimento da população resultante

da imigração e do crescimento natural, que se tornava cada vez mais importante.

Assim, cerca de 380 mil novos habitantes passaram a residir na cidade entre

1960 e 1970, e aproximadamente mais 495 mil pessoas entre 1970 e 1980; de 1980

para 1991 houve um acréscimo de quase 590 mil novos habitantes, e, já no último

período entre os censos, entre 1991 e 2000, mais 370 mil novos habitantes

passaram a residir em Salvador (BRITO, 2005), conforme assinalado na tabela a

seguir.

Tabela 1 - Evolução da população residente em domicílios particulares, por década – Salvador – no período de 1960/2010

Período População

1960 629.772

1970 1.007.195

1980 1.502.013

1991 2.075.273

2000 2.443.107

2010 2.675.656

Fonte: IBGE, vários anos.

Uma grande parcela da população excedente e sem emprego em Salvador,

permanecia solucionando seus problemas de moradia através das “invasões” de

terrenos mal localizados, em áreas de encostas, terrenos encharcados e na maré,

públicos ou privados. Paralelamente a Prefeitura Municipal de Salvador, durante a

década de 1960, executou obras de infraestrutura com a abertura de estradas,

sobretudo as avenidas de vale e outras estradas que permitiram a abertura da

cidade (BRITO, 2005).

Na década de 1970 surge em Salvador à versão mais atualizada do seu

lucrativo mercado imobiliário, que foi forjado pela combinação de: ações locais

desenvolvidas pela Prefeitura Municipal de Salvador, originando um processo de

concentração da propriedade urbana nas mãos de poucos privilegiados, os quais se

beneficiaram de informações importantes e da disponibilidade de capital; ações do

Governo federal, com a criação de condições para prover o aporte financeiro e

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crédito de longo prazo, bem como as possibilidades de valorização diferencial de

áreas da cidade com a adoção dos programas de habitação, urbanização,

saneamento e transporte coletivo; e pela própria dinâmica do processo de

industrialização nos municípios contíguos e próximos a Salvador induzidos pelos

Governos federal e estadual (BRITO, 2005).

A cidade do Salvador termina o século XX como uma das cidades com

maiores contrastes nos tocantes econômicos, culturais e sociais no Brasil: uma forte

expansão imobiliária ao lado do crescimento dos loteamentos irregulares e invasões.

Centros comerciais modernos se implantam em várias partes da cidade. A prioridade

dada aos automóveis nas avenidas de vale começa a chegar a seu limite, com

enormes engarrafamentos, tendo o transporte público o conceito de um dos piores

das metrópoles brasileiras, ainda apresenta problemas com a coleta de lixo,

enchentes, segurança pública e um grande déficit habitacional que entre outros

fatores contribui para o aumento e agravamento dos problemas sociais e das más

condições de sobrevivência de grande parte da sua população.

1. 3. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA LOUCURA

O enfoque sobre a loucura como doença e da psiquiatria como especialidade

médica é recente na história da humanidade, tem pouco mais de 200 anos, apesar

da loucura sempre ter existido, bem como o lugar para tratar os loucos: templos,

domicílios, prisões, instituições de caridade, somente foi enfocada pela ciência,

assumindo a psiquiatria como especialidade médica, a partir do século XVIII, quando

em 1793, o médico francês Philipp Pinel, libertou os doentes mentais que estavam

acorrentados no Hospital Bicêtre. Desde então, a abordagem de cunho científico,

passou a fazer parte do tratamento da doença mental (PERES; BARREIRA, 2009).

Ao analisarmos documentos referentes a este período, é possível observar a

contradição entre duas versões assumidas por uma mesma sociedade: a primeira

estava sensibilizada com a situação dos alienados e a segunda estaria procurando

uma forma de segregar grupos que não se adequassem aos padrões sociais

estabelecidos na época. Posturas que se interpunham entre a questão da

solidariedade e a questão de uma possível “limpeza” social. Foucault (2007) vai mais

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além afirmando que:

Existe em nossa sociedade outro princípio de exclusão: não mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição. [...] Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão o corpo [...] (FOUCAULT, 2007, p. 10 e 11).

Podemos analisar o fenômeno da segregação dos transviados sociais,

inserido num discurso próprio daquilo que Foucault (1996) chama de sociedade

disciplinadora, pois, “[...] a disciplina é um princípio de controle da produção do

discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma entidade que tem a forma de uma

reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 1996, p. 36). A trajetória dos

alienados no Brasil – séc. XIX esteve inserida numa relação de poder. Poder este

que disciplina de acordo com os parâmetros “legais” do Direito constituído. Poder

que age de maneira imposta, que vem de cima para baixo e que interfere

diretamente nas relações sociais. Desta forma:

O poder não deve ser pensado como fundamentalmente emanado de um ponto (em geral identificado com o Estado). Deve-se ter, pois, em mente na procura de uma compreensão da dinâmica das relações de poder, a ideia de uma rede. Rede esta que permeia todo o campo social, articulando e integrando os diferentes focos de poder (Estado, escola, prisão, hospital, asilo, família, vila operaria, etc.) que se apoiam uns nos outros (MAIA, 1995, p. 88).

A partir dessa forma de vivenciar a condição humana, estabeleceu-se “o

diferente”, para o doente mental. A pessoa portadora de doença mental é distinta

das demais em razão de não seguir o padrão de comportamento e discernimento

que a sociedade define como sã. O doente mental, o excluído do convívio dos

iguais, dos ditos normais, foi então afastado dos donos da razão, dos produtivos e

dos que não ameaçavam a sociedade.

No século XIX o Brasil passava por transformações no campo da esfera

política, econômica, social e cultural. Entre 1841 e 1889 ocorreu a consolidação do

Estado Monárquico conhecido como Segundo Reinado. Seus objetivos principais

eram reforçar a figura do Imperador – D. Pedro II, recém coroado – e restaurar o

Poder Moderador criado outrora por seu pai D. Pedro I. Dessa forma, o Império

brasileiro almejava a implementação de novas práticas políticas e institucionais, uma

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vez que nas cidades a população aumentava de forma desordenada. Com o

crescimento das cidades aumentava também os seus problemas de ordem social.

Era preciso, portanto, uma série de transformações por parte das autoridades a fim

de sanar tais problemas.

Diante das novas e complexas relações sociais e de poder, passam a surgir

práticas de recenseamento e separação entre os cidadãos produtivos e os não

produtivos, entre os “com razão” e os “sem razão”. Esse período exigiu um novo

reordenamento, um esquadrinhamento espacial e social, uma estratificação e uma

qualificação das populações na cidade. É no século XIX que se destacaram na

cidade, entre os miseráveis, crianças, vagabundos, pestilentos e leprosos, uma

população até então despercebida, os denominados loucos, os andarilhos

improdutivos, os vagantes e sem moradia.

Em Foucault (1999) podemos encontrar as pistas para que se descortine a

construção de uma arquitetura material e conceitual de encarceramento específico

da loucura, a partir do século XIX. Aí vemos o modelo das casas de internação,

concebido por uma exigência moral da razão iluminista, patrocinado por

governantes, pela Igreja e pelo nascente poder de jurisdição médica, sobre os

loucos. É possível também apreender a posição do Estado, em relação à loucura:

esta passa a ser um problema de polícia, ligado à ordem dos indivíduos na cidade.

Vagantes, sem trabalho, andarilhos sem rumo, pobres e loucos passam,

indistintamente, a serem percebidos como perturbadores da ordem estabelecida.

Nesse momento, a loucura se torna, a um só tempo, uma questão social e médica,

pois traz um problema especial às formas de submissão ao trabalho obrigatório,

numa sociedade que se tornava progressivamente mais exigente de especialização

e da submissão da mão de obra.

É neste contexto do século XIX que a medicina, inspirada no ideal positivista

e pelas práticas médicas surgidas na França, vai servir como meio neste processo

de transformação, defendendo a moral e o progresso dessa sociedade. Em meio a

tantas transformações, uma delas acabou sendo a produção de um discurso que

qualificaria e excluiria aqueles que estivessem fora do padrão social da época,

identificando-os como loucos. “[...] O doente mental, o excluído do convívio dos

iguais, dos ditos normais, foi então afastado dos donos da razão, dos produtivos e

dos que não ameaçavam a sociedade” (GONÇALVES; SENA, 2001, p. 49).

A configuração do capitalismo, a partir da Revolução Industrial estabelece

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paulatina e decisivamente uma mentalidade fundada no individualismo e na

responsabilidade de que o indivíduo se integre a uma rede intensiva de trocas

comerciais, baseada na competência do mais eficaz e no trabalho remunerado que

alimenta o fluxo de consumo daquilo que ele mesmo produz. Essa é uma equação

aparentemente simples, porém, agrega uma série de consequências nas

modalidades de constituição do Estado de Direito do mundo ocidental, no qual o

louco é resguardado no espaço restrito da alienação.

Em 1882 o escritor brasileiro Machado de Assis publica em papéis avulsos, o

conto “O Alienista”. Nesta obra o autor lança uma crítica ao cientificismo, à

sociedade da época e às relações de poder, sobretudo naquilo que diz respeito à

loucura. A narrativa se passa numa vila brasileira do século XIX, chamada Itaguaí.

Conta à história do Dr. Simão Bacamarte, um grande estudioso brasileiro, que após

realizar estudos fora do país, retorna ao Brasil para se dedicar totalmente às

atividades científicas. Ao chegar às terras brasileiras, continua com seus estudos

sobre a loucura. Percebendo que em Itaguaí os doentes mentais são afastados da

sociedade e vivendo no mais completo isolamento em suas residências, Simão

Bacamarte tem a ideia de construir uma casa especial onde toda população com

problemas de loucura pudesse ser assistida. Com o passar do tempo, qualquer

atitude suspeita dos moradores de Itaguaí é motivo para conduzi-los ao asilo.

Nunca nenhuma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí – a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu a captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas – duas ou três de consideração – foram recolhidas à casa verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito (ASSIS, 2010, p. 39 e 40).

Podemos relacionar a obra machadiana, bem como os acontecimentos

ocorridos no Brasil, a um processo social permeado pelo discurso psiquiátrico. A

obra marca a época em que este discurso (Séc. XIX) levava a cabo um novo modo

de exclusão e de inserção do louco no hospital psiquiátrico. A loucura como um

empecilho deveria ser erradicada da esfera social e escamoteada para além da sua

presença. No livro, Assis (2010) deixa perceptível a construção de identidades em

torno de um discurso no qual estão presentes as relações de poder. Afinal, Simão

Bacamarte não teria ido além do seu projeto se não fosse a partir de um discurso

que identificasse as pessoas “diferentes” como loucas.

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No estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, os alienados eram remetidos

para o Hospício São Pedro, dirigido pela Santa Casa de Misericórdia que também

tinha como atividade criar menores abandonados, acolher pessoas pobres,

providenciar burocracias funerais aos menos favorecidos e realizar curativos nos

presos. Em 1859, do total de 860 enfermos atendidos, apenas 48 eram doentes

mentais (ODA; DALGALARRONDO, 2005).

A situação nos hospícios era tão precária que devido à falta de acomodações

dignas para os hóspedes, estes eram enviados às cadeias públicas, o que não trazia

benefícios em relação ao tratamento, uma vez que as condições das cadeias

públicas não disponibilizavam as prerrogativas necessárias para abrigarem e

assistirem com dignidade esta demanda. Apenas retirava os doentes das ruas e do

convívio social (ODA; DALGALARRONDO, 2005).

Um dos casos mais famosos de desrespeito aos direitos humanos em

manicômios é o do Hospital Colônia de Barbacena (MG). Lá morreram mais de 60

mil pessoas, sendo que 70% destas não possuíam nenhum tipo de doença mental

diagnosticada, segundo reportagem de 2011 do jornal Tribuna de Minas. Os

pacientes não tinham remédio, comida ou leito. Por isso, muitos comiam as próprias

fezes e morriam de infecções. Eram esquecidos, malcuidados e sofriam torturas.

Outro registro histórico é o livro “Colônia: uma tragédia silenciosa”, que reúne

fotografias do fotógrafo Luiz Alfredo publicadas na revista “O Cruzeiro”, em 1961.

Figura 3: Internos do Hospital Colônia de Barbacena, sofrendo maus tratos, 2015

Fonte: Google imagens, 2015.

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Os doentes eram semelhantes aos moradores de rua, aos ladrões e

criminosos que aos olhos dos administradores públicos, precisavam ser tirados da

sociedade. Quanto ao tratamento dado aos doentes mentais nos hospícios, este não

era dos melhores. Na Província de Pernambuco os alienados eram separados dos

demais doentes, ficando em cubículos com pouca higiene e solidão. Ainda em 1883,

o hospício da Tamarineira (Pernambuco), abrigava 244 internos que eram

acompanhados por apenas dois médicos e sete guardas. Neste lugar, o único

motivo de saída do doente era o óbito. Em 1884, o Hospício apresentou problemas

sanitários, ficando seus hóspedes infeccionados pelo mau cheiro advindo do

depósito de dejetos fecais e pela água contaminada retirada da cacimba (ODA;

DALGALARRONDO, 2005).

Aquele que não seguia o padrão comportamental que a sociedade

determinava como uma pessoa de “bem”, que trabalha, que possuía uma casa e

uma família dentro dos modelos tradicionais passou a ser “diferente” e caracterizado

como louco. O louco, a partir dos discursos de poder e saber estipulado pela

religião, política e ciência foi excluído do convívio social e afastado daqueles que

eram ditos normais, racionais, os que não ameaçavam a ordem da sociedade, fato

que se perpetuou nas formações sociais e ainda hoje é comumente verificado.

É importante, aqui, considerar uma contradição no Estado de Direito vigente

na sociedade ocidental orientada pelo modo capitalista de produção, consumo e

normatização social: há um nexo contraditório entre um discurso recheado de

ideologia humanista, libertária e racionalizadora e por outro lado, a existência de

instituições tais como o hospital psiquiátrico que sacramenta a segregação social e

formas de dominação sobre o indivíduo (CASTEL, 1978).

Essa contradição torna-se mais incômoda na medida em que o capitalismo

avança no mundo ocidental em meados do século XX até os dias atuais, difundindo

a retórica da “oportunidade igual para todos” como promessa de sociedades

modeladas pela competência individual e livre-iniciativa, parâmetros não possíveis

para o portador de doença mental. A loucura como doença psicossomática não é

uma adversidade contraída pelo homem apenas na modernidade. Entretanto, o seu

tratamento ao longo da história foi deveras questionável. Sua cura muitas vezes

estava ligada até mesmo a rituais religiosos e cerimônias de exorcismo e, sobretudo

à segregação, diferenciação social e extrema exclusão.

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1.4. O LUGAR ONDE A VIDA ACONTECE: A RUA QUE REVELA O MUNDO

O lugar ao ser compreendido como uma construção social é basilar nas

relações espaciais concretas recorrentes e na articulação entre a cooperação e o

conflito. No contexto atual em que a fluidez e simultaneidade são aliadas e a

informação assume a condição de elemento central, o lugar se apresenta tanto

como expressão de resistência como de adequação a ordem global. A globalização

da economia, em vez de proporcionar a homogeneização dos lugares, ressaltou

suas singularidades. O lugar desnuda-se como conceito fundamental para a

compreensão do acontecimento. No lugar verifica-se a diversidade e as

possibilidades de abstrações de um mundo que ao mesmo tempo é

compartimentado e articulado, múltiplo e hierarquizado, mas na medida em que

evoca o plural, tende a unificar o planeta em velocidades cada vez maiores.

Atualmente a sociedade depara-se com um conjunto de acontecimentos que

ultrapassam as fronteiras do local, pois são eventos globais, mas que tem sua

repercussão materializada no lugar. Aliás, o lugar é o depositário final dos eventos

(SANTOS, 2003). O local, o regional, o nacional e o global, articulados se mostram

como uma das facetas do período técnico-científico-informacional e isso decorre da

rapidez da informação e da fluidez da comunicação. Longe de levar à

homogeneização dos lugares, a globalização da economia permitiu reforçar a

diferenciação e as especificidades locais, sem se desvincular da ordem global.

O lugar possibilita a compreensão do funcionamento de um sistema

condicionado por meio da racionalidade homogeneizante do capital, que funciona

fundamentalmente com base da premissa da produção de serviços e mercadorias. O

processo de acumulação capitalista dita às regras para produção de um novo

espaço, de uma nova divisão e organização do trabalho, além de estabelecer

padrões ideais de comportamento que estimulam o consumo e dirigem a vida

corrente (CARLOS, 2007).

O conceito de lugar é fundamental para a compreensão do espaço de vida da

população, em especial dos moradores em situação de rua, ao combinarem diversas

histórias e personagens nos logradouros das cidades, desde a formação do mundo

urbano ocidental, esse seguimento social vive cotidianamente se contrapondo às

estratégias econômicas e políticas que idealizam a cidade na atualidade, sobretudo

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nas metrópoles dos países pobres como acontece com o Brasil e com a cidade a

metrópole soteropolitana.

Por um lado, a corrente da Geografia Humanista identificará o lugar como

base da própria existência humana através de uma experiência profunda e imediata

do mundo ocupado com significados (RELPH, 1980), buscando uma aproximação

com a fenomenologia e o existencialismo (HOLZER, 1996), ou abordando o espaço

através do modo como ele é vivenciado pelos seres humanos (HOLZER, 1999) e

propondo uma Geografia que dê relevância às questões referentes às pessoas em

vários contextos (BUTTIMER, 1974).

O conceito de lugar presente na abordagem humanística, conforme assinala

Buttimer, (1982), reconhece suas bases metodológicas associadas à fenomenologia

e ao existencialismo, pelo diálogo estabelecido entre o homem e seu meio, através

da percepção, do pensamento, dos símbolos e da ação. Por sua vez, a visão da

chamada Geografia Crítica, de base marxista, compreenderá o lugar como uma

perspectiva regional sobre o global (JOHNSTON, 1991), uma construção social

sobre o pano de fundo da relação entre espaço, tempo e ambiente (HARVEY, 1996),

um local criado para atender a determinadas funções (SANTOS, 1996) a partir do

qual estabelecemos nossa revisão e interpretação do mundo, onde “[...] o

permanente, o real, triunfam, afinal sobre o movimento, o passageiro, o imposto de

fora” (CARLOS ,1992, p. 20).

A abordagem crítica ou radical compreende o lugar como expressão da

singularidade. Na visão de Harvey (1996), o lugar é uma construção social que deve

ser compreendida como uma localização e como uma configuração, de

permanências relativas internamente heterogêneas, dialéticas, contidas na dinâmica

geral de espaço-tempo de processos socioecológicos. A concepção de lugar, na

geografia crítica, passou a valorizar mais as questões políticas e econômicas. O

lugar é analisado como campo de embate, arena de combate entre as classes

sociais. Na década de 1970, a Geografia Humanística e a Geografia Crítica surgem

como oposições ao positivismo, com posturas metodológicas, filosóficas e

epistemológicas diferentes, mas com um ponto em comum, a compreensão do

mundo e a busca de explicações sobre a relação sociedade natureza e os

elementos intrínsecos a esta troca (HOLZER, 1999).

Dessa forma, temos duas perspectivas teórico-metodológicas que tratam o

lugar com características diferentes, mas, nem por isso invalidam uma a outra, pelo

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contrário, tornam-se complementares. O lugar é o campo do particular, estando

presentes os elementos históricos, culturais e a identidade, revelando as

especificidades. É no lugar que se materializam as contradições da globalização,

conforme suas particularidades e suas possibilidades (CAVALCANTE, 2008).

De acordo com Fonseca (2001) e para abstração do fenômeno almejado,

entenderemos o lugar como lócus da experiência, compreendido por meio das

formas pelas quais a realidade é construída e assimilada pelos sujeitos sociais. A

visão, o paladar, a audição, o tato e o olfato são maneiras diretas de experienciar a

realidade que cede espaço e que descortinará a subjetividade de um mundo único e

particular, o mundo das praças, dos viadutos, da itinerância, do frio, da noite, da

chuva, da solidariedade, dos acontecimentos que dão forma e sentido à vida

daqueles que sem escolha fazem das ruas seu espaço de sobrevivência. A

importância de analisarmos a espacialidade da rua está na possibilidade de

identificarmos a magnitude da vida cotidiana que aparece nas diversas formas e

ações ali estabelecidas.

Para Carlos (2007), nas ruas o presente nos assedia, traz a marca dos

itinerários às vezes dispersos, difusos ou mesmo concentrados. Podemos afirmar

que a vida aí é inesgotavelmente rica e plena de energia, é a escala do vivido. Na

rua encontra-se não só a vida, mas os fragmentos de vida é o lugar onde o homem

comum aparece ora como vítima, ora como figura intransigente e subversiva.

A rua se coloca como dimensão concreta da espacialidade das relações

sociais num determinado momento histórico, revelando nos gestos, olhares e rostos,

as pistas das diferenças sociais. E assim os usos da rua, o entendimento de como

se organiza a sociedade em seus hábitos e costumes, pois a rua se liga à ideia da

construção dos caminhos que junto com a casa criam o quadro de vida. Mas na

metrópole o caminho vira rua, depois se transforma em avenida, e nesse ponto da

história das formas de apropriação da cidade, a rua deixa de ser extensão da casa

para se contrapor a ela pela vida cotidiana conforme se verifica na próxima imagem.

Para Carlos (2007), a rua guarda a vida, mas não somente, contém também

seus desdobramentos, é o lugar onde o homem comum é percebido, às vezes como

vítimas, às vezes como algozes. Nas ruas o mundo ganha movimento, nos mostra a

concretude do espaço e das relações sociais, divulga o gesto, o jeito, as

preferências, o olhar que revela onde se está, em qual momento da história e qual

patrimônio coletivo por meio da atuação da comunidade ali foi construído.

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Figura 4: Moradores em situação de rua improvisam abrigo sob o viaduto Marta

Vasconcelos, no terminal rodoviário do Aquidabã, 2015

Fonte: Google imagens, 2015.

(CARLOS, 2007) elenca algumas possibilidades associadas ao conceito de

rua:

A rua pode ter o sentido do mercado/aquele vinculado à troca com destino — aqui é o lugar da feira que reúne pessoas, a rua ocupada pelos camelôs, como podemos ver no caso do centro de São Paulo. A rua pode ter o sentido da festa ao final dos campeonatos esportivos mundiais de que o Brasil participa, ou mesmo nas finais do campeonato paulista ou brasileiro de futebol, quando os torcedores tomam as ruas da metrópole para comemorar. A rua pode ter o sentido da reivindicação — é na cidade que emergem as lutas que se manifestam enquanto movimentos que ganham visibilidade quando tomam os espaços públicos, principalmente os pontos de centralidade. A rua no caso da cidade do Salvador também tem o sentido do morar — os moradores em situação de rua. É cada vez maior o número de pessoas desempregadas ou que vivem de “biscate” e que não podem alugar sequer um barraco numa favela, e que vivem pela cidade em baixo dos viadutos e pontes que lhes servem de abrigo (CARLOS, 2007, p. 53).

No caso da população em situação de rua portadora de sofrimento mental, a

rua também ganha usos, dimensões e tempos particulares. Para esses indivíduos a

rua não é somente o local de passagem, o itinerário percorrido em direção a casa,

ao trabalho ou ao lazer; para eles a rua é seu abrigo, sua casa, local onde

estabelecem relações familiares e de vizinhança.

Nas ruas essa população tira seu sustento, faz suas refeições, seu asseio,

descansam, sofrem, criam seus filhos, amam, e desenvolvem redes de

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sociabilidades específicas. Logo, ganha outra conotação, agora passa a ser lócus da

produção do seu espaço de vida; é ali que encontram as formas espaciais e

representações sociais que nortearão a maneira que coexistirão com o meio,

produzindo, sendo produzidos e resistindo a seu tempo e à sua maneira.

Para o morador de rua portador do sofrimento mental, a rua é seu refúgio, sua

casa, seu habitat. Revela-se como palco do seu acontecimento, da sua existência,

ela é revelada constantemente de maneiras diferenciadas, e também os revela,

força novas adequações, apropriações e temporalidades, pois guarda o lugar da

vida dentro do espaço que mesmo sendo público torna-se privado.

A diferenciação entre espaço público e espaço privado esconde e revela uma

série de tensões derivadas do fato de cada um destes termos corresponder a

universos de significações singulares e contrastantes. As tensões são em parte

administráveis por esta mesma classificação, denotativa de códigos sociais

diferenciados de direitos e deveres. O espaço dito público acolhe inúmeras

atividades orientadas por interesses convergentes e divergentes, algumas exaltadas,

outras camufladas. Sua denominação referencia mais que tudo, os modos possíveis

de gestão da concorrência e da possibilidade de imposição abusiva de controles

privados (NEVES, 1999).

A rua, concebida como espaço público, não é, como recorrentemente se

pensa, o lugar do desgarrado e do abandonado. Enquanto espaço social, ela não

pode ser compreendida tão somente pelo olhar externo que descreve o vaivém dos

usuários e definem direitos e deveres. O entendimento das relações que aí se

desenrolam depende da compreensão das instituições e do sistema de hierarquias

que definem e legitimam os papéis que neste espaço vão sendo construídos e

reconhecidos. Ainda conforme assinala NEVES (1999) A rua é perigosa, lugar da

vigilância inescapável, mas também do prato quase sempre alcançado e variado, da

camaradagem no infortúnio, da reconquista de novas sociabilidades, da

intensificação da experiência humana, capaz de promover o prazer imediato não

deve ser a referência principal. Ao contrário, o prazer sempre protelado é um prêmio

aos previdentes, aos gregários, aos crentes nos valores que definem papéis sociais

orientados para a vitória da poupança e do investimento no futuro.

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2. QUEM É O POVO DA RUA?

A população que se apropria dos espaços públicos como locais de moradia e

manutenção da vida, apesar de possuírem trajetos e motivos diferentes para

estarem ali, partilham a realidade das ruas como cenário comum. As conjunturas de

instabilidade e deriva social que contribuem para o fenômeno são inúmeras e podem

está vinculadas à questão de ordem familiar, profissional ou a questões relacionadas

à representação social que estão submetidos.

Jodelet (2005) aponta a eficácia das representações na elaboração das

condutas sociais e também na orientação das comunicações interpessoais. Na obra

Loucuras e Representações Sociais, a autora questiona-se sobre como as

representações sociais da loucura explicam a relação com os portadores de

sofrimento psíquico. Para ela, as produções mentais estão diretamente relacionadas

às dimensões materiais da vida das comunidades as quais pertencem.

Faz-se necessário tornar claro o lugar das representações nas práticas

sociais, visto que elas podem transformar a organização estrutural dos indivíduos e

das sociedades. De acordo com Sá (1998), Jodelet (2005) enfatiza em seu trabalho

os suportes que veiculam as representações sociais na vida cotidiana: além dos

discursos dos grupos que mantêm as representações, que se manifestam em

comportamentos e atitudes.

[...] as representações sociais, enquanto “teorias” socialmente criadas e operantes, se relacionam com a construção da realidade cotidiana, com as condutas e comunicações que ali se desenvolvem, e também com a vida e a expressão dos grupos no seio dos quais elas são elaboradas (JODELET, 2005, p. 40).

A concepção apresentada pela dialética marxista é percebida claramente

dentro da lógica capitalista que vivemos em que as representações e as ideias são

conteúdos da consciência, determinadas pela base material, pelo intercâmbio

material existente entre os homens. Para Marx (1995), as ideias estão

comprometidas com as condições de classe, de modo que as ideias da classe

dominante são as ideias dominantes na sociedade (MINAYO, 2007).

Uma das funções das representações sociais é a imposição de determinado

modelo de ações e comportamentos sobre os sujeitos. Embora sejam partilhadas

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por muitos e influenciem cada um, elas não são pensadas individualmente, mas sim,

“[...] impostas sobre nós, transmitidas e são produto de uma sequência completa de

elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo e são o resultado de

sucessivas gerações” (MOSCOVICI, 2007, p. 37).

A população que mora nas ruas por influência das representações sociais,

pode assumir variadas designações como: mendigo, pedinte, louco, andarilho,

sacizeiro, drogado, trombadinha, porém sob a perspectiva sociológica a seguir

compreenderemos o fenômeno como:

[...] todo indivíduo migrante, imigrante ou nascido em uma grande metrópole, que tem o seu “fundo de consumo [completamente] dilapidado” [...] e não consegue mais repor tal fundo e promover o seu bem-estar. Após atravessar um momento em que ocorre o afastamento do mercado de trabalho, a desestruturação familiar e o rompimento com as antigas relações que compunham sua rede de sociabilidade (sem falar, na maioria dos casos, da dolorosa experiência do preconceito social), esses indivíduos passam a depender da rede pública de proteção social, quando não se apropriam do espaço público, transformando-o em moradia (GIORGETTI, 2006, p. 25).

Existe distinção entre os termos “moradores de rua” e “pessoas em situação

de rua”, diferença que consiste na existência de um grupo cuja condição é

irreversível, ou seja, indivíduos que tem como habitat o ambiente inóspito das ruas,

e outro grupo em situação transitória que tem a rua, de uma forma geral, como um

endereço dentre os diversos durante toda a vida. Entendemos neste estudo a

condição de morar nas ruas desses sujeitos como uma circunstância passageira,

desta forma, os consideramos como um grupo populacional heterogêneo que possui

em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares fragilizados ou rompidos e a

inexistência de moradia convencional regular.

Essa população se caracteriza, ainda, pela utilização de logradouros públicos

e áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou

permanente, bem como unidades de serviços públicas e acolhimento para pernoite

temporário ou moradia provisória.

Ao ir para as ruas o sujeito normalmente ainda preserva alguns vínculos com

o modo de vida que antecedeu essa nova configuração, o que lhes permite

conseguir trabalho, mantendo contatos com alguns colegas e também com alguns

parentes. Estabelecendo-se em albergues, pensões e alojamentos, neste primeiro

momento em que o indivíduo fica na rua, ainda preserva uma rede de relações de

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suporte. Com o passar do tempo, a relação com o espaço das ruas é transformada

num processo de progressiva identificação com outros sujeitos cujas rotinas lhe são

semelhantes permitindo que se estabeleça uma nova rede de relações que vai, aos

poucos, substituir as antigas redes sociais.

O desejo de se reinserir as práticas sociais comuns, geralmente expressadas

com a necessidade de um emprego que seria o caminho para a saída da rua, em

muitos casos concretos não tem condição de tornar-se realidade, diante da

fragilidade da condição pessoal decorrente da situação de rua. Cumprir horários,

não usar álcool e drogas, apresentar-se adequadamente, readquirir a condição de

planejamento de despesas dentro de um mês, são desafios que não estão ao

alcance de quem já está na rua há algum tempo. Dificuldades apontadas pelos

sujeitos moradores em situação de rua observados revelaram, inclusive, o

sentimento de desconfiança na sociedade, nos provedores externos e na própria

capacidade para enfrentar suas necessidades e desejos mais urgentes.

A familiaridade é progressiva com o novo ambiente, diminui o sentimento

inicial de ameaça e vulnerabilidade na medida em que o cotidiano e as alternativas

de sobrevivência do espaço urbano vão compondo o dia a dia do sujeito. A rua e

seus moradores tornam-se progressivamente mais importantes como referências

para o sujeito e dessa forma, um novo cotidiano se estrutura a partir desse novo

referencial. Pode-se dizer, então, que este sujeito está na rua. A desvinculação

gradativa das redes sociais de suporte e a adesão aos códigos das ruas permitem

uma articulação do cotidiano em torno desta nova realidade.

O pobre desabrigado e o mendigo durante a Idade Média eram vistos como

pessoas passíveis de receber caridade. Para Marx, o mendigo dos primórdios da

modernidade era fruto de dois processos: expropriação e legislação. Isto é, os

mendigos dos séculos XIV ao XVI eram ex-camponeses que perderam suas terras e

migraram para as cidades e então, foram enquadrados em leis que regulavam suas

condutas nesse novo meio social. Dessa forma, o século XIV representou uma

reviravolta na questão da mendicância em relação ao auge do período feudal,

quando a questão era interpretada pela moral religiosa, porque foi o primeiro

momento na história ocidental em que a ‘vagabundagem’ passou a ser crime. As leis

estabeleciam quem podia mendigar e quando. Estava em jogo a distinção entre o

trabalhador e o vagabundo.

De acordo com Marx (1995) todo e qualquer trabalhador que não possui os

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meios de subsistência para além das relações de compra e venda da sua força de

trabalho não deve ser considerado como parte integrante da classe trabalhadora.

Desta forma seriam exclusos desta relação os trabalhadores expulsos do mercado

de trabalho ou aqueles que sequer foram incluídos no mercado de trabalho como

acontece com a maioria dos sujeitos que se encontram em situação de rua. A

ausência de uma definição do papel que estes trabalhadores desempenham na

ordem burguesa tem deixado à margem um grande número de trabalhadores que

não encontram espaço de organização e representação nas associações de classe.

Marx é taxativo ao delegar ao lúmpen a condição mais desprezível dentro de uma

hierarquia social.

[...] vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzaroni, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus, donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos – em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada [...] (MARX, 1995, p. 366).

O lumpemproletariado desagrega todos aqueles que não se somam aos

desempregados que formam o exército industrial de reserva e que estão mobilizados

para serem consumidos pelo capital, quando este tiver necessidade. O fato de estar

“à disposição” do capital no mercado de trabalho, é o que diferencia o exército

industrial de reserva do lumpemproletariado, sendo que este último, não se insere

no mercado e não tem intenção de fazê-lo, como mostra Marx (1995), ao “listar” as

ocupações daqueles que o compõe. São elementos importantes para a definição do

sentido do lumpemproletariado para Marx (1995), a desvalorização moral do

trabalho, a utilização de formas de sobrevivência imediata e o individualismo

extremo. Em outras passagens, Marx (1995) deixa clara a conotação de atividades

de pilhagem, roubo e crime que envolvem o lumpemproletariado:

[...] tanto em seus métodos de aquisição como nos seus prazeres, não passa do renascimento do lumpemproletariado nas culminâncias da sociedade burguesa [...] repetia-se em todas as esferas, [...] a mesma prostituição, a mesma fraude descarada, o mesmo afã de enriquecimento, não mediante a produção, mas por meio da escamoteação da riqueza

alheia, já criada (MARX, 1995, p.114).

Desde pelo menos a segunda metade do século XVIII e de todo o século XIX,

predomina no imaginário coletivo europeu, especificamente na Inglaterra e França, o

crescente temor e pânico das classes dominantes diante das inúmeras

possibilidades de sublevações das classes desempregadas e miseráveis, em outras palavras,

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do proletariado e do lumpemproletariado em geral. Tal estado de pânico coletivo não

é gratuito, basta perceber em que condições viviam a maioria da população pobre

das principais cidades industriais europeias, Londres e Paris, por exemplo, para

constatarmos que as condições materiais degradantes e desumanas eram mais do

que suficientes para alimentar protestos, rebeliões, saques, roubos e todo tipo de

motins populares violentos.

Além dessa postura temerosa diante das possíveis e previsíveis ações que o

lumpemproletariado se via coagido a realizar, as classes capitalistas e suas classes

auxiliares, inspiradas nos seus valores e perspectivas que lhes são próprios,

construíram diversas representações pejorativas dos míseros proletários e,

principalmente, dos lumpemproletários e das sensações e sentimentos que a

existência, comportamentos e hábitos dessas classes lhes geravam. Dentre os

principais termos alguns se destacam pela repulsa que os mesmos provocavam e

que nos possibilita apreender a forma como tal classe era expressa pelos valores

aristocrático-burgueses da época. Dentre vários podemos citar: vagabundos,

mendigos, vadios, maltrapilhos, esfarrapados, escória, ralés, desajustados sociais

etc.

O lumpemproletariado segundo Viana (2011), é considerado uma classe

social composta pela totalidade do exército industrial de reserva e não apenas pelos

extratos mais baixos dessa superpopulação relativa.Viana (2011) destaca ainda a

importância de ressignificar o lumpemproletariado para melhor compreendê-lo no

interior da dinâmica do modo de produção capitalista.

O primeiro ponto é ressignificar o lumpemproletariado, que não pode ser

considerado apenas os extratos mais baixos da superpopulação relativa e sim ela

em sua totalidade. Assim, o lumpemproletariado abarca o conjunto do exército

industrial de reserva. É composto, portanto, pelos trabalhadores potenciais do

capitalismo, com suas subdivisões, e pelos subempregados e em trabalhos

precários, não produtores direto de mais-valia. Ou seja, inclui tanto aqueles que

estão na fronteira com o proletariado (desempregados temporários, subempregados,

etc.) quanto os que sobrevivem sob outras formas (prostituição, mendicância, etc.)

(VIANA, 2011).

O próprio processo de criminalização do lumpemproletariado revela, tanto no

século XIX, quanto na contemporaneidade, à impossibilidade da construção de uma

solução eficaz para essa ampla marginalização de milhares de indivíduos da divisão

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social do trabalho. Afinal, a raiz da expansão da criminalidade se encontra na própria

dinâmica da produção capitalista de mercadorias que para promover a reprodução

ampliada do capital depende da existência de um contingente, cada vez maior, de indivíduos

marginalizados na divisão social do trabalho. Com esta caracterização, Marx (1995)

não atribuía ao lumpemproletariado qualquer força revolucionária, pelo contrário,

desconfiava de sua instabilidade política que tendia às forças conservadoras e

reacionárias devido à sua condição miserável.

Berman (2008) mostra uma imagem síntese da visão de Marx (1995), do que

seria moderno; um mundo em que tudo é pervertido ou passível de perversão, tudo

está sujeito às transformações que desmancha tudo que é sólido, mesmo o que

parece ser mais sagrado. A burguesia, agente da modernidade, tornou tudo

vendável, dessacralizou a família e a religião, tornou profano tudo que era sacro,

tudo virou mercadoria, tudo pode ser vendido ou comprado e gerar lucro. Até mesmo

a propaganda anticapitalista pode ser capitalizável se rentável.

Dentro do discurso ideológico burguês, a contradição social pode ser

apagada, silenciada, esquecida e isso é feito pela apologia à realização individual,

como se a riqueza fosse obra de indivíduos desassociados da esfera produtiva

social, na medida em que o pertencimento a camadas mais favorecidas é resultado

do mérito pessoal.

E Marx (1995) – com os valores de sua época – aponta para certa propensão

à vagabundagem. O lúmpen, afinal, não tinha as condições materiais para agirem

como membros da classe trabalhadora. O termo lumpemproletariado tem sua

origem no alemão, em que significa seção degradada e desprezível do proletariado,

trapo, farrapo. Para Marx (1995) o lúmpen, correspondia à população situada

socialmente abaixo do proletariado, do ponto de vista das condições de vida e de

trabalho, era formada por frações miseráveis, não organizadas do proletariado, não

apenas destituídas de recursos econômicos, mas também desprovidas de

consciência política e de classe, sendo, portanto, suscetíveis de servir aos

interesses da burguesia. Desta forma o autor privilegia o trabalho produtivo em

detrimento das outras atividades humanas.

Na modernidade, tanto a ociosidade quanto o trabalho são ressignificados,

transformando-se este último em principal fonte geradora de riqueza, e a burguesia,

estimulada por essa concepção procura inserir os homens pobres no mundo.

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2.1. POBREZA E LOUCURA: ENTRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS

A pobreza de parte da população de Salvador e sua trajetória histórica de

acúmulo de carências é tema de discurso que cerca os movimentos sociais. É

justificativa para a busca de financiamentos internacionais, é objeto de intervenção

nas falaciosas propostas políticas, e ainda, campo especial de pesquisa do discurso

sociológico e acadêmico em geral.

A pobreza e seus índices são transformados nas últimas décadas em

palavras legitimadoras da necessidade de reafirmação e de luta pelos direitos

sociais, pela igualdade e justiça. Segundo Paugam (1996, p. 64), “[...] nas

sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que

carece de bens materiais; ela corresponde, igualmente, a um status social

específico, inferior e desvalorizado”. O conceito de indivíduo pobre está associado

ao de “fracassado socialmente” (individualização e culpabilização da pobreza), de

excluído por não ter acesso em termos espaciais e temporais à cidade e seus

benefícios, às mercadorias e serviços, à tecnologia, ao conhecimento etc.

A questão da pobreza remete também à exclusão urbana e à construção

cotidiana de um desequilíbrio social que se desdobra em privação de renda estável,

desqualificação profissional e social, a falta de acesso aos serviços básicos etc. A

pobreza em seu quadro de “despossessões” não possui impacto apenas econômico,

mas também subjetivo, social e político.

As reproduções da pobreza e da exclusão social geram uma desqualificação

social, que se manifesta nas cidades brasileiras com força implacável no processo

de urbanização, criando um conjunto de precariedades que submetem as

populações de baixa renda a uma condição de segregação que aniquilam a

cidadania e o alcance a direitos básicos de sobrevivência: saúde física e mental,

educação, moradia, emprego etc. A pobreza e a precariedade das condições de

subsistência são determinadas pelas condições de trabalho e renda; a pobreza não

pode ser analisada de forma dissociada de fatores como o perfil educacional e os

processos de segregação socioespacial e segmentação urbana.

A dupla face estabelecida pelo processo de urbanização brasileiro:

concentração de riqueza e de pobreza, esta configurada pela segregação

socioespacial instalada nas favelas e periferias das metrópoles, o que Kowarick

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(1979) denominou de “espoliação urbana”. No que se refere aos aspectos

socioespaciais, manifestam-se na ocupação de áreas impróprias e inadequadas à

moradia: as denominadas favelas, assentamentos precários ou localizados nas

periferias, distantes dos centros urbanos; ou mesmo localizadas em áreas centrais,

próximos a bairros valorizados pelo mercado imobiliário, mas em áreas de topologia

imprópria à construção, em situações de risco geológico ou de alagamentos.

A localização das favelas tendeu a seguir a trilha da industrialização, amontoando-se em áreas próximas ao mercado de mão de obra não qualificada. Quando a pressão imobiliária ou congelamento de certas áreas tornam-se mais vigorosas numa cidade ou região, novas favelas surgem ou são transferidas para municípios vizinhos, onde os negócios imobiliários ainda não se apresentam tão lucrativos (KOWARICK, 1979, p.38).

Nas áreas habitadas pelos despossuídos de capital, a inexistência de

infraestrutura urbana: serviços básicos como rede de esgoto, coleta de lixo e

abastecimento de água; associada à irregularidade fundiária, a precariedade do

transporte público e de equipamentos comunitários de atendimento social é latente e

fica evidenciada na produção do espaço urbano. Ao que se soma o permanente

estado de insegurança físico-ambiental e social.

São áreas de concentração de pobreza, segregação espacial e exclusão

social, traduzindo a dualidade urbana: a cidade informal, contrapondo-se à cidade

formal, esta recebedora dos benefícios da urbanização e do desenvolvimento:

atendimento de bens e serviços em infraestrutura básica e equipamentos públicos

condizentes, legalidade fundiária, ambiente natural preservado.

[...] uma das principais expressões da pobreza no Brasil está relacionada à deterioração das metrópoles [.... .] Se a cidade é o lugar por excelência do exercício da cidadania, materializado no acesso aos direitos sociais e coletivos, vemos que essa cidadania é negada à grande parte da população através de processos sociais onde se combinam segregação urbana e exclusão social [...] Com efeito, a pobreza urbana é a expressão mais perversa da ausência da cidadania. (SILVA JR, 2006, p.34).

A ocupação do espaço geográfico urbano brasileiro não se deu de forma

socialmente justa e includente. O forte papel concentrador de oportunidades e

riquezas, motivado pelo desenvolvimento econômico localizado nos centros

urbanos, não produziu pessoas residentes que se beneficiassem igualitariamente.

Pelo contrário, a desigualdade e a exclusão se manifestam de forma contundente e

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sob variados aspectos.

O conceito de espoliação urbana permitiu inverter a lógica da culpabilidade da

questão social atribuída a indivíduos, presente na ideia de que a cidade seria

concebida como tela em aberto a partir da qual todos poderiam tecer a sua história

livremente. A espoliação urbana revela, portanto, a matriz da desigualdade

espalhada nas práticas rotineiras do ir e vir ao trabalho, no despertar precoce para

evitar o enfrentamento de filas, enfim, em todos os sentidos de alerta e fadiga não

computados no “tempo que conta” – o do emprego formal remunerado (KOWARICK,

1979).

Santos (2009) chama a atenção para o fato de que a cidade em si, como

relação social e materialidade humana, torna-se criadora da pobreza, tanto pelo

modelo socioeconômico, quanto por sua estrutura física, que faz dos habitantes das

periferias e favelas pessoas ainda mais pobres. A pobreza não é apenas o fato do

modelo socioeconômico vigente, mas também do modelo espacial (SANTOS, 2009).

Uma publicação da revista online Carta Capital de 2013 registra a ocorrência

de estudos que estabelecem relação direta entre a desigualdade social e a

incidência de doenças mentais nos desassistidos. Trás o relato de que na Londres

do século XIX, Charlie Chaplin viveu uma infância atormentada pela pobreza e a

instabilidade familiar. O ícone do cinema mudo perdeu o pai para o alcoolismo e

acompanhou o declínio mental da mãe em meio à miséria. Embora evidências

recentes sugiram que a “loucura” de Hannah Chaplin tenha sido causada pela

doença sífilis, o comediante registrou em autobiografia que os problemas mentais da

sua mãe, surgiram porque ela passava fome para que os filhos pudessem comer.

Ainda que cientificamente incerto, o caso é um exemplo longínquo da relação

entre pobreza e transtornos mentais, estudado ao menos a partir dos anos 1930.

Desde então, surgiram pesquisas mais contemporâneas, entre elas uma análise

desse fato no Brasil. Feita em 2013 com dados do Censo do IBGE de 2010, um

levantamento da ONG Meu Sonho Não Tem Fim, indica que das mais de 2,4

milhões de pessoas acima de 10 anos de idade com problemas mentais

permanentes no Brasil, 82,32% são pobres. Dentro desta proporção é possível

verificar que doenças mentais são mais frequentes na população mais pobre: sem

rendimento mensal ou recebendo até um salário mínimo por mês.

Nesse sentido é possível corroborar com a declaração de Alex Cardoso de

Melo, responsável pela pesquisa e idealizador da ONG, focada em trabalhos

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educativos com populações carentes, “[...] É preciso considerar que esses

problemas também são causados por aspectos como a genética, mas a falta de uma

alimentação mínima pode contribuir para o aparecimento de doenças que afetam o

desempenho mental”. Segundo Saraceno (1997), a pobreza que diante de uma

perspectiva epidemiológica significa baixo status socioeconômico (medido por classe

social ou renda), desemprego, baixo nível de escolaridade e de suporte familiar,

permeia muitos domínios da qualidade de vida em família. Cavalcante (2008) aponta

seis domínios que sofrem interferência da pobreza. São eles:

1. Ambiente físico (falta de saneamento, superlotação, poluição, preocupações com

segurança, falta de apoio comunitário e transporte);

2. Saúde (má nutrição na gravidez, limitado acesso a serviços de saúde);

3. Bem–estar emocional (estresse, baixa autoestima, problemas saúde mental);

4. Educação (desenvolvimento cognitivo e acadêmico, habilidades sociais);

5. Produtividade (formação profissional, oportunidades de emprego);

6. Interação familiar (interação entre pais e filhos, conflitos conjugais motivados por

dinheiro, impacto sobre a rotina, papéis, comportamento).

No caso dos moradores em situação de rua todos os domínios citados se

apresentam em diferentes graus, mas de maneira constante, determinantes e bem

mais significativas que nos demais segmentos sociais. As ruas são ambientes

normalmente sujos e de intenso mau cheiro devido a uma higienização falha e uma

coleta de lixo deficiente que permite a existência de resíduos, animais nocivos à

saúde e por consequência a proliferação de doenças, além do frio, da chuva, da falta

de acompanhamento médico adequado e da fome.

O histórico de violência, perdas, a estima dilacerada, baixa escolaridade,

pouca qualificação profissional, todos esses fatores associados à pobreza que

alcança o limite extremo nas ruas, contribuem para o surgimento ou potencialização

de transtornos mentais. Estas são tidas como condições clinicamente significativas

caracterizadas por alterações do modo de pensar e do humor ou por

comportamentos associados com angústia e/ou deterioração do funcionamento

pessoal, em uma ou mais esferas da vida, envolvendo aspectos econômicos,

sociais, políticos e culturais, presentes nas diferentes classes sociais e nas relações

de gênero (LUDERMIR, 2008).

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2.2. DESVANTAGENS ECONÔMICAS E SOCIAIS APONTAM A

VULNERABILIDADE DAS CONDIÇÕES DE SAÚDE MENTAL

A condição de loucura é naturalmente uma disposição genética ao

adoecimento das propriedades de conhecimentos intelectuais e cognitivas do ser

humano de fato, porém é possível afirmar que condições de insalubridade e

vulnerabilidade diversas contribuem significativamente para o desenvolvimento e

agravamento de doenças mentais. A população em situação de rua alcança a

extrema pobreza, representando o nível final de um processo crônico de

empobrecimento. Essa população é altamente vulnerável a múltiplos fatores de

riscos para a saúde, os quais estão associados à sua condição extrema de pobreza.

Seus problemas físicos e mentais podem, em parte, ser explicados pela sua

condição desfavorável de vida. Os indivíduos que moram nas ruas estão vulneráveis

a vários fatores que poderão desencadear doenças, tais como: a fome; a exposição

a condições precárias de higiene, ao frio e ao calor; a falta de privacidade etc.

Lovisi (2000) corrobora que esses fatores aumentam a propensão dessa

população ao desenvolvimento e agravamento de doenças, fazendo com que a sua

taxa de mortalidade seja quatro vezes superior à da população em geral. As

principais causas de morte são os acidentes provocados pelo uso de bebidas

alcoólicas, tuberculose, outras doenças respiratórias, AIDS etc. (LOVISI, 2000).

Uma vez que o indivíduo está só e vivendo num ambiente totalmente

insalubre, onde o consumo, especialmente de álcool e drogas como o crack é

frequente, tudo é potencializado frente às condições de vida nas ruas. A grande

prevalência de alcoolismo na população de moradores de rua, em comparação à

população em geral, torna-os mais vulneráveis a acidentes, a problemas físicos e

mentais relacionados ao abuso/dependência de álcool e drogas. Esses fatores

podem levar esses indivíduos a negligenciar em atenção à sua saúde e não

procurarem ajuda a tempo quando possível (SHANKS, 1983).

As condições adversas de sobrevivência dos moradores de rua podem,

também, desencadear problemas mentais orgânicos. Esses indivíduos podem

manifestar distúrbios psicóticos agudos e também outros sintomas como apatia,

retardo psicomotor e déficit de memória, decorrentes de toda a adversidade que

estão submetidos (ARCE; VERGARE, 1984). Viver nas ruas por vezes requer um

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grau tão elevado de resistência física e mental, que muito raramente encontraremos

um morador em situação de rua, que não faça uso do álcool ou do crack para

amenizar a dor, o frio, o medo, o cansaço, o mal-estar trazido pela indiferença e pelo

descaso.

Na medida em que morar nas ruas contribui para o desenvolvimento e

agravamento de doenças relacionadas à saúde mental, a própria doença pode

contribuir para a ruptura de vínculos familiares e a culminância nas ruas. Em

contrapartida, a perda de seus lares pode atuar como um evento estressante,

desencadeando, nesses indivíduos, as doenças físicas e mentais.

O próprio distúrbio mental quando considerado mais forte, ou seja, aquele

que implica um grau de comprometimento da saúde mental ainda mais relevante

torna-se um importante fator de predisposição, que pode levar os indivíduos a se

tornarem moradores de rua. A própria condição financeira da família pode cair, em

consequência do cuidado constante que se deve ter com uma pessoa portadora de

distúrbio mental crônico. Essas pessoas necessitam de maior atenção de seus

familiares. A situação se agrava quando não há familiares com o devido suporte

econômico para suprir as necessidades do portador da enfermidade mental

(PEREIRA; PEREIRA JR, 2003).

Outros fatores como severidade dos sintomas, morbidade com dependência

de álcool/drogas, não cooperação com o tratamento e falta de apoio social podem

contribuir para tal condição. Os distúrbios mentais mais graves aparecem com maior

prevalência no grupo de moradores de rua solteiros. Em comparação a outros

subgrupos, ele tem um maior período de vivência nas ruas, aumentando o risco de

agravamento de doenças físicas e mentais. Na maioria dos estudos é apresentado

que nesses indivíduos os distúrbios mentais maiores antecedem a condição de

morar nas ruas. A condição precária de existência nas ruas pode exacerbar os seus

sintomas anteriores, assim como favorecer o aparecimento de outros distúrbios,

levando a uma alta prevalência de morte nesses indivíduos, tornando os casos ainda

mais graves (BROWN et al, 1977).

Estudos colocam que os transtornos mentais estão diretamente relacionados

a fatores socioeconômicos e inversamente relacionados à quantidade de instituições

disponíveis na rede de apoio social. Deste modo, quanto mais baixo o nível

socioeconômico de uma população, mais altas tendem ser as taxas de prevalência

desses transtornos, assim como, quanto mais densa a rede de apoio social, menor o

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índice das ocorrências com o diagnóstico das doenças mentais.

2.3. REFORMA PSIQUIÁTRICA, RESPONSABILIDADE FAMILIAR E SEUS

DILEMAS

A reforma psiquiátrica no Brasil constitui um movimento histórico de caráter

político, social e econômico influenciado, sobretudo, pela ideologia de grupos

dominantes, empresariado, latifundiários, políticos etc. Tem como uma das vertentes

principais a desinstitucionalização com consequente desconstrução do manicômio e

dos paradigmas que o sustentam.

A substituição progressiva dos manicômios por outras práticas terapêuticas e

a cidadania do doente mental vem sendo objeto de discussão não só entre os

profissionais de saúde, mas também na sociedade. O modelo de assistência

psiquiátrica ainda predominante no Brasil, com base na legislação de 1934, propõe,

fundamentalmente, a hospitalização e o asilamento do doente mental, visando

atender, sobretudo, a segurança da ordem e da moral pública. Embora

predominante, este modelo é atualmente considerado falido e sua base ideológica,

desmistificada (MOURA, 1987). Um novo modelo vem sendo edificado a partir da

contribuição de vários segmentos da sociedade e implica na desconstrução literal do

modelo hegemônico.

O processo de reforma psiquiátrica no Brasil teve início há décadas, mais

precisamente a partir do final dos anos 1970. O movimento aponta as

inconveniências do modelo que fundamentou os paradigmas da psiquiatria clássica

e tornou o hospital psiquiátrico a única alternativa de tratamento, implicando a

cronicidade da doença e exclusão dos doentes mentais do convívio social em todo o

país. A reforma psiquiátrica, hoje defendida, é fruto de maior maturidade teórica e

política, alcançada ao longo das últimas décadas, com maior conscientização da

sociedade civil organizada (AMARANTE, 1996).

No percurso da reforma psiquiátrica brasileira houve um momento em que as

denúncias sobre a precariedade da assistência psiquiátrica desencadearam estudos

e trouxeram a público dados e informações de órgãos públicos como, por exemplo,

do Ministério da Saúde, antes não valorizados, tais como número de leitos, custos e

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qualidade da assistência.

Ao analisar as condições de tratamento realizado nos manicômios brasileiros

na construção deste estudo, chegou-se ao filme Bicho de Sete Cabeças, um drama

lançado no ano 2000, que trás uma reflexão crítica a partir de duas perspectivas: a

primeira é uma ficção sobre um quadro familiar extremamente desgastado; o

segundo, um documentário a respeito da situação dos internos nas instituições

manicomiais que ainda funcionam à base de supostos métodos de tratamento - na

prática, extremamente desumanos e cruéis.

O filme conta a história de Neto (Rodrigo Santoro), um jovem que é internado

em um hospital psiquiátrico após seu pai descobrir um cigarro de maconha em seu

casaco. Lá, Neto é submetido a situações abusivas. O filme aborda de maneira

escancarada e sem rodeios a questão das drogas, a relação de intolerância dentro

do ambiente familiar e a questão dos abusos feitos pelos hospitais psiquiátricos,

como verificado na imagem a seguir registrada em uma das cenas no filme.

Figura 5: Imagem registrada no filme Bicho de sete cabeças em que Neto (Rodrigo

Santoro) é submetido a supostas seções de tratamento, 2015

Fonte: Google imagens, 2015.

A psiquiatria manicomial retratada no filme não está muito longe da situação

nos hospícios de Paris, que Pinel tentou combater no fim do século XVIII na

Sarpetriére. Pinel encontrou pessoas torturadas por serem loucas, presas em

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correntes de ferro, como se ainda no século XVIII permanecesse a visão demoníaca

para doença mental, que vinha da Idade Média (PERES; BARREIRA, 2009). A

reforma psiquiátrica atuou transformando valores, entre eles, os valores sociais. No

filme Bicho de Sete Cabeças fica bem clara a atitude da sociedade com qualquer

pessoa que demonstra algum comportamento diferente, ou seja, que está fora

daquilo que a mesma considera normal.

A reforma psiquiátrica no Brasil vem se configurando como um movimento

com diferentes graus de adesão e entendimento por parte dos profissionais e de

alguns segmentos da sociedade. Em um país como o Brasil, de dimensões

continentais e enorme diversidade cultural, não é possível construir um modelo

assistencial que sirva igualmente para as metrópoles e para as pequenas cidades do

interior, para regiões com grandes concentrações populacionais e para regiões de

população escassa, como em certas áreas amazônicas. Desta forma, não podem

ser pensadas de forma idêntica em contextos socioculturais tão diferentes como os

pequenos municípios do interior do Nordeste e os muito densos bairros nas cidades.

A Revista Latina de Enfermagem, em publicação de março de 2004, veicula

um artigo que discute as consequências da reforma para as famílias dos doentes,

sobretudo as famílias de renda baixa. Nesse sentido são relatadas entrevistas com

cuidadores e familiares de sujeitos que com a reforma foram trazidos para o seio

familiar, mesmo que estes, não possuíssem subsídios afetivos, financeiros ou

assistenciais para tal. Segue o depoimento de algumas cuidadoras, os quais são

esclarecedores na análise.

“Eu já tentei muito levá a Laura pra um hospital pra ela ficá definitivo, mas eu sei que é difícil. Eles diz que precisava ela tá muito pior”. [...] “As fôias lá do hospital tem tudo escrito, eu interno o Joel lá desde que ele tinha 18 anos. Já cunversei com eles, mais eu sei que se dependê daquela assistente social, ele não vai. É sujeito uma hora ele me matá ou a polícia matá ele”. “Os vizinhos já fez abaixo assinado pra levá ele. Tem um policial aí, que conhece ele de muito tempo que já falô que lugar dele é num hospital definitivo. Só que o hospital não dá apoio ”(Depoimento de uma mãe sobre os cuidados médicos de seus filhos, 2004).

Na verdade, os serviços de saúde, muitas vezes, funcionam com a ideia de

uma família idealizada. Pois ocorre que as condições da família para ficar com o

paciente não são explicitadas, nem consideradas. Parte-se na maioria das vezes, do

pressuposto de que a família possui as condições econômicas, estruturais e

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emocionais necessárias para lidar com a presença do familiar portador de doença

mental que na realidade exige cuidados e tratamentos específicos.

A superação das contradições presentes no imaginário e no concreto das

cuidadoras acerca das concepções sobre a doença, o tratamento e reabilitação, bem

como a internação e os serviços de saúde mental, significam um processo de

revisão e reconstrução do conceito de “ser” e “estar” doente mental. A revisão e a

reconstrução deste conceito implicam numa mudança de postura por parte de toda a

sociedade, inventando e recriando novas formas de cuidar do sujeito portador de

doença mental.

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3. A VIDA NAS RUAS

Os moradores em situação de rua são sujeitos que integram uma realidade

capaz de expressar fisicamente à imagem de um ser desprovido de direitos sociais,

que sofrem cotidianamente desprezo, preconceito e violências de vários tipos por

parte de seus iguais, pelos não loucos e pelo Estado enraizados culturalmente na

realidade social. Observa-se que os indivíduos que se encontram em situação de

vida nas ruas, vão estabelecendo novos vínculos nas várias situações adversas, tais

como: hora de dormir, na parceria durante as horas de ingerir bebida alcoólica, na

solidariedade em repartir o alimento e até mesmo na partilha do dinheiro obtido no

trabalho informal.

É possível visualizar na figura a seguir uma moradora em situação de rua,

criando vínculos de sobrevivência, com seu bebê nos braços, ao pedir dinheiro na

sinaleira em frente à Agência dos Correios, ainda no fundo da imagem nota-se

lençóis que foram utilizados durante as horas de descanso estendidos nas grades

de proteção do prédio.

Figura 6: Moradora em situação de rua no bairro do Comércio, em frente à Agência dos Correios, 2015

Fonte: Levantamento de campo - Elaborada pela autora, 2015.

Muitas pessoas que moram nas ruas acabam por se envolver com drogas

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lícitas e ilícitas, prostituição, marginalidade e violência.

O ato desviante dos moradores de rua está constituído por morar na rua, transgredindo um pilar da organização social que é a separação entre público e privado, e por fazer uso de modalidades de sobrevivência que são desviantes em relação aos mecanismos legítimos e convencionados [...]. Os restritos ofícios que exercem são de baixa reputação social e rentabilidade. [...] o morador de rua deve conseguir legitimar sua condição de quem precisa ser ajudado. Deve demonstrar a sua impossibilidade de suprir de maneira convencional suas necessidades básicas, através do trabalho, e de certa forma, ser considerado como uma ‘exceção à regra’. A exposição das deficiências – físicas,mentais ou carências – é um modo (eficaz) de legitimar o pedido (ESCOREL, 1999, p. 237 e 238).

A população de rua traz na maioria das vezes uma vasta experiência de

sentimentos que foram perdidos ao longo do tempo. As rupturas são muitas, as

perdas são imensuráveis marcando suas trajetórias de vida nas ruas. Como já

discutimos anteriormente, é este tipo de repulsa disseminada e cultivada pela

sociedade e por seus representantes, que favorece a criação de políticas higienistas

observadas em várias das maiores cidades brasileiras e do mundo, utilizando-se de

diversos dispositivos de afastamento de categorias indesejadas, dificultando a

permanência desses indivíduos.

Os sujeitos que habitam as ruas possuem outro olhar sobre a cidade,

atribuem novas funções aos espaços, esse processo acontece de forma qualitativa

no qual se privatiza o que é público, fato gerador de conflitos para os outros usuários

dos espaços da cidade. Mesmo que o espaço ocupado seja de domínio público, ao

ser o espaço de moradia da população em situação de rua, torna-se privado. É na

rua que criam um modo de vida particular, onde ocorre a incorporação de novos

códigos e novas sociabilidades.

Os centros econômicos de cidades de médio ou grande porte como Salvador,

costumam se mostrar o local mais visado por pessoas em situação de rua, o que cria

uma constante rotatividade de indivíduos sem espaço fixo dentro do ambiente

urbano. As cidades brasileiras que estejam passando ou tenham passado por um

processo que culmina em dispor de diversos dispositivos de afastamento de grupos

sociais marginalizados, ainda são marcadas pela concentração de mendigos e

moradores de rua – categorias extremamente malvistas pela sociedade em geral –

nas ruas dos maiores centros urbanos.

Para De Certeau (1994), enquanto o poder público se esforça no sentido de

minimizar ou impossibilitar as reapropriações do espaço urbano, os habitantes

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deste, contrarreagem ao permanecerem em seus lugares ou nas proximidades

disputando-os com outros moradores de rua, administradores, comerciantes,

proprietários e inquilinos de imóveis.

Reduzir a criatividade do indivíduo ao obedecer a regras geradas pelo

aparelho normalizador torna-se pouco viável em um ambiente onde esta

ressignificação constante cria novas formas de desvio. Se quaisquer indivíduos, em

seus cotidianos, reinventam o espaço para possibilitar ou facilitar sua permanência

no espaço, os moradores de rua utilizam-se dessas reinvenções quase que

incessantemente para obter formas de subsistência. As táticas que aparecem neste

cenário ficam muitas vezes à margem dos códigos da sociedade “[...] a mendicância,

o roubo, a vigilância de automóveis, a prostituição” (FRANGELLA, 2009, p.37). Estas

atividades também representam uma adaptação dos habitantes de rua às condições

espaciais e sociais, especialmente nos centros das cidades.

3.1. SOCIABILIDADE E MODERNIDADE NA CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS NA

RUA

Os vínculos sociais em nossa sociedade alicerçam a base da própria

existência e reprodução da vida humana. O lar, as relações familiares, relações de

trabalho e na comunidade, de maneira geral, são a base na qual a sociedade é

sustentada. Não é somente a ausência de recursos materiais que definem grupos

sociais como vulneráveis, a instabilidade de suas relações sociais também os

fragiliza. Este é o contexto e a realidade socioespacial que marca a trajetória dos

moradores em situação de rua portadores de sofrimento mental, tidos como

invisíveis.

É nos limites, nos extremos, na periferia da realidade social que a indagação sociológica se torna fecunda, quando fica evidente que a explicação de todo concreto é incompleta e pobre se não passa pela mediação do insignificante. É nesses momentos e situações de protagonismo oculto e mutilado dos simples, das pessoas comuns, dos que foram postos à margem da História, do homem sem qualidade que a sociedade propõe ao sociólogo suas indagações mais complexas, seus problemas mais ricos, sua diversidade teoricamente mais desafiadora. São os simples que nos libertam dos simplismos, que nos pedem a explicação científica mais consistente, a melhor e mais profunda compreensão da totalidade concreta que reveste de sentido o visível e o invisível. O relevante está também no ínfimo. É na vida cotidiana que a História se desvenda ou se oculta (MARTINS, 2011, p.11).

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Nesse contexto capitalista industrial em processo de mundialização, a própria

pobreza ficou “sem lugar” na sociedade moderna. Foi então renegada e depositada

no residual urbano: nas periferias, nas favelas e nas ruas. A chamada modernidade

segundo Martins (2011), ditada pelos ritmos desiguais do desenvolvimento

econômico e social; pelo acelerado avanço tecnológico; pela compulsiva,

desproporcional e desigual acumulação de capital; pela imensa e crescente miséria

globalizada dos que tem fome e sede, não somente do que é essencial à reprodução

da vida humana, mas também de justiça, trabalho, sonhos e direitos.

A racionalidade capitalista baseia – se na acumulação do lucro em todos os

níveis da vida social, é imposta a todos de maneira sistemática, o que implica a

conversão do ser humano de sujeito em objeto, em vítima da racionalidade

modernizante quando não consegue atingir determinado nível de desenvolvimento.

Martins (2011) prossegue na argumentação explicando que no Brasil as construções

positivistas republicanas tentaram sempre “civilizar” a nova nação capitalista,

tentando renegar o passado escravista. Por essa razão, a realidade complexa da

escravidão, suas expressões socioculturais e sua memória foram colocadas à

margem da sociedade que se buscava imaginar e edificar. Em vez de tentar

solucionar o déficit social criado pela colonização escravista, com relação à

população, sobretudo afro-brasileira, os políticos brasileiros, em nome do progresso

e do lucro capitalista, relegaram para a marginalidade a cultura popular e a pobreza,

bem como as suas memórias. No entanto, apesar dessas tentativas civilizatórias, as

desigualdades se expressam na dialética do cotidiano social do homem moderno.

Desse modo, as tradições e os costumes populares, bem como as históricas

questões sociais, persistiram, sempre incomodando os planos das ideologias

liberais.

Historicamente a quantidade e o grau da pobreza se acentuaram a cada dia

nos novos tempos. As manifestações do capital foram se revelando mais

globalizadas e difusas, reproduzindo a exploração dos trabalhadores incorporados

ao sistema e excluindo cada vez mais parcelas da população descartadas pelo

sistema de produção de lucros. Na imbricação das contradições históricas da

modernidade, os seres humanos foram seletivamente se tornando sujeitos fora dos

padrões e desarmônicos, ou seja, mantiveram-se alienados dos mecanismos

econômicos e sociais (e muitas vezes políticos) de seu próprio tempo.

Nesta nova conjuntura, novas formas de sociabilidade são desenvolvidas, e

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consequentemente novos vínculos sociais são estabelecidos, dentre eles o vínculo

com a própria rua, abrigos, hospitais e com as comunidades que compõem esses

espaços. A ruptura de vínculos é gradual e pode-se dizer que este processo chega à

última etapa quando há ruptura com a família, a vizinhança e o trabalho. Enquanto

local de moradia a rua designa aspectos do campo material e objetivo relacionados

à sobrevivência e ao trabalho e às dimensões subjetivas relacionadas à fuga,

solidão e liberdade.

A população de rua é considerada desgarrada da sociedade, portadora de um

modo de vida marcado pela perda e rompimento de vínculos sociais. Para

(FALEIROS, 1996, p.3), essa ordem social se sustenta na lógica que supera a

sociedade “[...] em grupos de capazes e incapazes, dotados ou não-dotados, limpos

ou sujos, sem fundamento na própria realidade biológica, e com referência apenas

ao preconceito, na intolerância e na razão irracional da superioridade”. Com efeito,

ao atribuir as causas de violência à própria vítima, negam a complexidade do

fenômeno, que se inscreve num contexto de desemprego, fragilização da cidadania

e dos laços sociais e comunais.

A concepção de um grupo “excluído” da sociedade, alheio aos códigos que os

outros cidadãos compartilham, não os fazem esse sujeitos que vivem nas ruas,

ignorarem uma série de relações construídas constantemente por outras pessoas

que compõem o espaço social da rua – vendedores ambulantes, taxistas,

flanelinhas, prostitutas, policiais, michês, agentes públicos, famílias, habitantes de

imóveis próximos, transeuntes -. Estas sociabilidades são permeadas por códigos

que transformam a categoria dos moradores em situação de rua, sobretudo os

portadores de sofrimento mental, em “inimigos”, e a utilização de diversos

dispositivos que dificultam a permanência ou passagem dessas pessoas por

determinados locais é iminente. É explícita a ideia de recolher, higienizar, isolar os

moradores de rua, através de ações que atrapalham e dificultam a sobrevivência dos

mesmos nos espaços públicos.

O Brasil vem apresentando duas tendências de uso de forças coercitivas que

impedem a ampliação da cidadania da população de rua. De um lado, há a

passagem de um estado de intolerância mascarada para intolerância explícita,

recrudescendo a prática pública de truculência na eliminação do sujeito vulnerável,

nisso converge às ações de agentes públicos e as de grupos privados organizados.

Assim, a intolerância e a tortura passam a ser tratadas, no discurso do senso

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comum, como formas legítimas de lidar com (e reforçar) a desigualdade social,

sendo expressões de uma forma de dominação política tirânica que se naturaliza.

Desta forma, conforme De Lucca, “[...] a experiência de rua deixa gradativamente de

ser uma experiência de sofrimento, transformando-se em situação de risco e

insegurança” (DE LUCCA, 2007, p. 229). Posições de poder cristalizadas

promovem, sobretudo, por meio de instrumentos midiáticos, a eficácia na rotulação

que inferioriza o grupo e o estigmatiza, contribuindo para que haja evitação do

dialogo e aproximação com os que estão em desvantagem.

O imaginário social condiciona que o risco de ressentimento e frustração dos

considerados à margem, contribuiria para o seu potencial para delinquir, o que

exigiria medidas preventivas e antecipatórias ao crime que o grupo estaria propenso

a realizar. Medidas, tais como as que providenciam radicalmente sua negação, seja

com a expulsão da rua, do bairro, do município, ou em casos extremos, seu

extermínio, passam a ser requeridas e vão constituindo representações sociais nas

quais a destituição material da população em situação de rua corresponde à

ausência de valores morais e éticos do grupo.

No momento que estão frente à realidade das ruas os moradores em situação

de rua começam a se organizar como coletivo assumem a condição que lhes é

imputada, surgindo a partir daí uma ressignificação de sua sociabilidade, o que

permite a construção de novos laços e o estabelecimento de novas relações na

produção do seu espaço de vida. Nesta conjuntura, novas formas de sociabilidade

são estabelecidas e consequentemente novos vínculos são desenvolvidos, dentre

eles os vínculos com a própria rua, abrigos e hospitais. Sociabilidades que

aparecem no ato de se alimentarem juntos, trocando alimentos entre si, no consumo

de drogas, no abrigo para a chuva, no surgimento de problemas de saúde com a

socialização de medicamentos doados, entre outras situações e códigos.

Como explica Neves (1999), os habitantes de rua expressam constantemente

duas formas de inserção social contraditórias nestes espaços de sociabilidade, a

discrição e a exibição, de modo que consigam ser incorporados a uma rede de

sociabilidades dentro dos limites estabelecidos pela convivência na cidade “O adulto

para sobreviver cotidianamente na rua, deve fazer prova de sua passividade e não

periculosidade – caso dos mendigos que teatralizam doença, fome, desolação e que

solicitam auxílio pela impotência em assegurar sobrevivência” (NEVES, 1999,

p.128).

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Na figura abaixo percebemos alguns barracos construídos em baixo de um

viaduto localizado na região da Cidade Baixa, onde algumas famílias de moradores

em situação de rua criam sociabilidades, coexistindo e compartilhando não apenas

aquele espaço, mas também a rotina associada ao cuidado da “casa”, dos filhos e

da família.

Figura 7: Habitação improvisada de moradores de rua em baixo do viaduto próximo a Ladeira da Água Brusca, 2015

Fonte: Levantamento de campo - Elaborada pela autora, 2015.

A autora (NEVES, 1999), ainda elenca uma série de ferramentas com as

quais o pedinte se utiliza para reforçar a sua imagem, tais como se vestir de maneira

a parecer “miserável” ou construir a relação por explicações de razões pessoais

pelas quais se tornou vítima de sua situação.

São diversas, complexas, plurais e absolutamente mutáveis as sociabilidades

construídas pelos sujeitos que vivem na rua e que constantemente considerando

sua criatividade e perseverança pela sobrevivência, recriam suas atividades

cotidianas como comer, beber, trabalhar, cuidar dos filhos etc.

3.2. ESPAÇOS DE RUA, ESPAÇOS DE VIDA

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A situação de habitar vivida pelo morador de rua se distancia de um lar fixo

baseado em fronteiras e medidas planejadas. Vivendo nas ruas as fronteiras se

dissolvem e os sistemas de sociabilidades, antes restritos aos círculos de

vizinhança, trabalho, educação, lazer etc. geograficamente localizados deixam de

existir. Todas e quaisquer ações ou atividades realizadas dentro do resguardo do lar

passam a se dar ao ar livre na rua e na frente de todos. Sua existência ocorre no

espaço, de forma passageira, e suas ações modificam, moldam e ressignificam o

espaço urbano em locais que não são atingidos por cidadãos comuns.

O espaço de vida dos moradores de rua não é o espaço da sociedade, mas

sim um espaço no qual ninguém mais, além deles, percorre no seu momento.

Momentos diferentes porque estes espaços têm as suas temporalidades, e em

conformidade com o turno do dia pode ser um espaço de uso comum, ou um espaço

exclusivo destes indivíduos em situação de rua.

Eles reproduzem a sua realidade de rua em espaços não habitados por

pessoas socialmente estabelecidas e quando transitam pelos espaços de uso

comum, são ignorados. Na imagem a seguir identifica-se um morador em situação

de rua dormindo durante o dia, ressignificando o seu espaço, lhe dando uma nova

função de acordo as suas possibilidades naquele momento.

Figura 8: Morador em situação de rua dormindo no Vale de Nazaré, 2015

Fonte: Levantamento de campo - Elaborada pela autora, 2015.

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Um exemplo dessa apropriação do espaço conforme o período do dia ou da

noite foi observada em uma das áreas de estudo escolhida na Cidade Baixa, na

Praça Marechal Deodoro conhecida como Praça das Nações. A Praça das Nações

localizada no bairro do Comércio na Cidade Baixa é ocupada intensamente durante

o dia por pessoas que trabalham, estudam na vizinhança, utilizam os serviços,

movimentam o comércio, além de alguns vendedores ambulantes de mercadorias

usadas, artesãos, músicos de rua e por aqueles que aguardam no ponto de ônibus

que se estende ao longo da extensão da praça, voltada para a principal rua do bairro

do Comércio, a Avenida Miguel Calmon. É comum encontrar pessoas trajando

camisetas, gravatas ou uniformes, o que indica ser a praça um local de grande fluxo

de pessoas e transportes por funcionar também como parada de ônibus.

Figura 9: Praça Marechal Deodoro (Praça das Nações), durante o período do dia em

que apresenta grande circulação de pessoas, 2015

Fonte: Google imagens, 2015.

À noite, por outro lado, o mesmo espaço é simbolicamente esvaziado e

ocupado apenas ocasionalmente por moradores em situação de rua, de acordo com

possibilidades percebidas dentro do terreno das políticas que visam controlar a área,

de forma a tentar evitar situações de coerção ou repúdio. Ainda assim os moradores

em situação de rua circulam, consomem entorpecentes, conversam, recebem

donativos, interagindo com o espaço conforme as possibilidades que apareceram no

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transcorrer da noite e madrugada.

As relações que os indivíduos que se encontram vivendo nas ruas

desenvolvem com o espaço urbano variam significativamente ao considerarmos

seus usos, suas funções que funcionam em temporalidades particulares em que dia

e noite definem usos e comportamentos, muitas vezes invertidos e diferenciados dos

demais sujeitos sociais. Seguramente não são as relações comuns, que se

alicerçam nos padrões domiciliares vigentes, do núcleo familiar, do trabalho, da

produção e da propriedade particular.

Todas essas relações são rompidas quando estes sujeitos deixam de morar

em uma casa, deixam de se relacionar com sua família, deixam de trabalhar

formalmente e produzir, deixam de ser consumidores em potencial e estabelece

novas relações com o espaço e com a sociedade, baseadas na mobilidade

constante, no uso temporalizado do espaço urbano e na formação de famílias

alternativas, onde as raízes estão vinculadas aos companheiros que convivem na

rua. Além disso, quebra-se o conceito máximo de que para participar da sociedade é

preciso produzir e também, principalmente, consumir; consumo esse que é movido

por um sistema de valores burgueses que compra¹ e que para fazer parte desse

sistema é preciso dobrar-se à imposição do consumo corriqueiro, que é, em última

instância, o que determina o indivíduo dentro de um sistema: o que ele aparenta ser

de acordo com o que ele consome e ostenta. O morador de rua não se adéqua a

nenhum desses preceitos e de certa forma, está fora do sistema², porém, nem por

isso está fora da sociedade. Pelo contrário, está talvez na colocado na sociedade,

sobrevivendo de acordo com o que o espaço lhe provê.

É um ser em sobrevivência na cidade e justamente por representar uma

contradição contrária em relação às normas de convivência que vigoram, é muitas

vezes perseguido e reprimido não só pela sociedade comum, mas principalmente

pelos mecanismos orientados pelo Estado. Isto se dá também pelo fato de ele

representar uma maneira alternativa de relação com o espaço, maneira essa não

representada pela propriedade permanente, mas sim pela ocupação diária e ao

mesmo tempo provisória.

¹ Existem outras formas para obtenção de recursos como através de doações, furtos, roubos, trocas e transferência. ² Os moradores em situação de rua ainda utilizam-se de dinheiro para aquisição de alimentos, drogas e objetos pessoais.

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4. O ESPAÇO DE VIDA PRODUZIDO NAS RUAS

De acordo com as informações coletados com o objetivo de contabilizar o

número, traçar o perfil e as condições de vida dos moradores de rua da cidade de

Salvador foram realizadas pesquisas de ordem quantitativa. Neste estudo serão

consideradas duas: a primeira do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à

Fome realizada entre outubro de 2007 e janeiro de 2008, que possui informações

mais detalhadas sobre o perfil dos sujeitos em situação de rua, e a segunda,

realizada pela Prefeitura Municipal de Salvador através da Secretaria Municipal de

Promoção Social e Combate à Pobreza (SEMPS) em 2013, que estimou em toda a

cidade cerca de 3.500 pessoas vivendo em situação de rua.

Na estatística levantada pelos órgãos foi possível perceber o perfil dessa

população, por apresentarem dados representativos para análise, como resultado foi

constatado através de entrevistas com os moradores de rua realizada pelos órgãos

de gestão citados que em sua maioria, as pessoas são homens (79,8%), negros

(50%), pardos (30%), brancos (20%) e com idades entre 18 a 39 anos (70,2%).

Mulheres, crianças e adolescentes somam (10,5%). Grande parte desses moradores

tem origem urbana, pois nasceram na capital ou na Região Metropolitana de

Salvador (89,6%). Foi constatado ainda que (80%) desses moradores trabalham, em

sua maioria, catando materiais recicláveis. Outro fator revelado e preocupante é que

a maioria desses moradores não tem documentos básicos para identificação e

acesso mais fácil a serviços como atendimento médico, acesso a serviços de

assistência ou trabalho de carteira assinada.

Entre os pesquisados, 44% possuem carteira de identidade, 29% tem CPF,

52,7% possuem certidão de nascimento, 27,4% tem título de eleitor e 22,8%

possuem carteira de trabalho. Os motivos que levam essas pessoas a viverem em

situação de rua são inúmeros, mas três destacaram-se na pesquisa: 1) as drogas e

o álcool; 2) os conflitos familiares; 3) o desemprego, todos apresentaram taxas de

15%.

Ao delimitar o tema, optou-se por desenvolver a pesquisa em dois recortes

geográficos da cidade do Salvador, o primeiro diz respeito ao bairro do Comércio,

começando no final da Avenida Contorno até a Praça Marechal Deodoro, também

conhecida como Praça das Nações devido ao monumento nas Nações instalado em

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seu centro. Em Salvador, o bairro do Comércio, na cidade Baixa, ainda concentra

um grande número de instituições financeiras, empresas comerciais e de prestação

de serviço.

Mapa 1: Localização do recorte geográfico para análise do fenômeno, referente ao

bairro do Comércio, 2015

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

Com o processo de migração de empresas para o novo distrito de negócios no

Vale do Rio Camarajipe (área atualmente conhecida como Iguatemi), no início dos

anos de 1980, o bairro do Comércio, entrou em decadência e deterioração, mas,

atualmente, está em processo de reestruturação. Já se pode notar a reforma de

alguns prédios e o retorno das atividades comerciais e de serviços variados, como

bancos, restaurantes, lojas, faculdades, a reforma do próprio porto da cidade etc.,

além de abrigar importantes pontos turísticos como o Elevador Lacerda e o Mercado

Modelo.

Este local que mantém características pontuais e importantes na paisagem da

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cidade, tais como: ser uma área predominantemente comercial que à noite e nos fins

de semana perde parte significativa do funcionamento dessas atividades e

consequentemente do fluxo de automóveis e pessoas, atuam como condicionantes

para atração e ocorrência de um contingente significativo de indivíduos em situação

de rua. O segundo recorte espacial selecionado correspondente à parte da Avenida

Joaquim José Seabra, desde a porção da conhecida Baixa dos Sapateiros, até a Rua

Cônego Pereira na altura do antigo terminal rodoviário de Salvador, atual

supermercado Cesta do Povo.

Mapa 2: Localização do recorte geográfico para análise do fenômeno referente à

Avenida J. J. Seabra até a rua Cônego Pereira, altura do antigo Terminal Rodoviário

de Salvador, 2015

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

O perfil dos entrevistados foi definido entre as pessoas que apresentaram

transtornos mentais visíveis, percebidos através do comportamento, da aparência, de

falas emitidas e testemunho dos outros sujeitos com os quais convivem direta e

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indiretamente. Foram identificadas e entrevistadas 20 pessoas, das quais 12 são

homens e 8 mulheres. Apresentam idade entre 19 e 64 anos, sendo 10 naturais de

Salvador, 7 vindos de diferentes municípios do estado da Bahia e 3 de fora do estado,

mas da região do Nordeste.

4. 1. COMO CHEGARAM ÀS RUAS?

As condições sociais, econômicas, culturais e políticas de cada um dos

entrevistados, permitem compreender a situação dos indivíduos adultos moradores

em situação de rua, que hoje vivem na condição de excluídos, ou seja, produtos da

indiferença social. São inúmeros os motivos que podem levar o indivíduo à condição

de viver em situação de rua, como por exemplo, o uso excessivo de álcool ou

drogas; decepção amorosa; perda de familiares; violência doméstica, incidentes

relacionados a intempéries ambientais como enchentes, deslizamentos de terra, em

que perdem todos pertences; eventos que trazem como consequência a perda de

referências e a própria história familiar, agravada pelas dificuldades econômicas,

devido à perda do emprego entre outros fatores.

É notório que a perda dos vínculos empregatícios contribuem para a

desorganização não somente financeira mas também emocional desses indivíduos.

Entre os entrevistados, 14 afirmaram ter ido para as ruas após perderem suas

ocupações formais e não conseguiram mais colocação profissional. Sem trabalho

formal esses sujeitos realizam pequenos serviços, sobretudo para transeuntes e

comerciantes nos locais por onde andam, visando à obtenção de dinheiro, entre

esses serviços se destacam o de limpar de para-brisas nas sinaleiras, o tomar conta

de carros estacionados nas vias públicas, o catar e vender materiais recicláveis

como latinhas, objetos plásticos, papelão, alguns se prostituem, outros cometem

pequenos furtos, praticam a mendicância considerada trabalho por eles, entre outras

atividades.

Foi identificado que na medida em que os transtornos mentais se manifestam

e se agravam as perdas ganham dimensão bem maior e ainda mais prejudicial para

esses sujeitos. Um exemplo deste fato é a perda do emprego, capaz de deixar a

pessoa sem referência, é como se ela perdesse a identidade. A relação com o

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mundo do trabalho fica notória na fala de Antônio, de 32 anos, morador em situação

de rua, ao dizer: [..] “Me sinto eliminado por não ter trabalho, sem chance, sem

esperanças. Quando a pessoa trabalha se sente normal, valorizado, fazendo parte

da sociedade, levando uma vida normal”.

Os entrevistados que se encontram em situação de rua, vivem o processo de

desqualificação social, que não se caracteriza apenas pela origem econômica, mas

também pela falta de pertencimento social, de perspectivas, dificuldades de acesso

a medidas assistencialistas e perda de autoestima. Esse sentimento de não

pertencimento, o restabelecimento de vínculos tornam-se mais difíceis naqueles que

se encontram a mais tempo nessa realidade de vida na rua. Todos os sujeitos

sociais entrevistados estavam há mais de cinco anos na rua, sendo que 4 deles,

desde a adolescência. Em cinco dos casos o sujeito já habitava as ruas há mais de

20 anos.

4.2. COMO SE ALIMENTAM?

A partir do contexto de viver nas ruas, surgem estratégias variadas para

sobreviver e uma delas é usufruir da solidariedade da população da cidade, que

pode ser observada fortemente quando se trata da garantia de necessidades

básicas, como vestuários e alimentação das pessoas que vivem em situação de rua.

São vários os meios pelos quais os moradores de rua conseguem se

alimentar. Alguns usam como recurso o ato de pedir, seja em casas, restaurantes ou

lanchonetes nas imediações de onde se encontram, catam alimentos dos lixos

desses mesmos estabelecimentos, outros, quando não conseguem pedindo,

acabam comprando algo para poderem se alimentar com o dinheiro das atividades

que realizam. No entanto, merece destaque a existência de ações coletivas de

distribuição de alimentos por entidades assistenciais ou de caridade não

governamentais.

Dessa forma, todos os dias da semana, tanto no bairro do Comércio quanto

na Avenida J. J. Seabra, ocorre à distribuição de alimentação geralmente

“quentinhas” ou o chamado sopão. Outro exemplo de solidariedade segundo os

entrevistados são inúmeros grupos de voluntários que saem à noite para auxiliá-los

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com alimentação, água, remédios e agasalhos nos tempos.

Instituições de caridade e filantrópicas, mantidas por grupos religiosos ou

associações humanitárias, mobilizam-se para o atendimento do que seria da

responsabilidade do Estado, que não apresentam medidas que atendam de maneira

suficiente a população em situação de rua.

Em campo foi possível conhecer o trabalho desenvolvido por duas instituições

de segmentos e propostas diferentes, mas preocupadas com os moradores em

situação de rua: a primeira delas sediada no Pelourinho chama - se Movimento da

População de Rua, que consiste em um grupo político, apartidário que desenvolve

funções de assistência e orientação direta aos indivíduos moradores em situação de

rua de todo o país.

Lutando por benfeitorias para esses sujeitos por meio de articulações bem

definidas e representativas inclusive diretamente junto ao governo federal, como

formação profissional e escolar, prestação de serviço de profissionais: assistentes

sociais, terapeutas e psicólogos, o direito a garantia de refeições, encaminhamento

para projetos e programas sociais como o Minha Casa Minha Vida³, criado e

mantido pelo Governo Federal, além de outras medidas assistencialistas, tirar

documentos extraviados ou que nunca existiram, promovendo além de oferecer

palestras com o intuito de fomentar uma consciência crítica e política nos sujeitos

moradores em situação de rua.

A segunda instituição corresponde à Comunidade da Trindade, sediada na

Igreja Católica da Ordem Terceira da Santíssima Trindade, na Cidade Baixa, no

início da Ladeira da Água Brusca. Nesta Igreja, no final da década de 1980, o Padre

Henrique começou sua missão, ainda recém chegado a Salvador, ele decidiu morar

nas ruas por um tempo para experienciar as dificuldades e dramas das pessoas que

vivem esta realidade. O Padre Henrique consegue autorização para utilizar o espaço

da igreja abandonada, que após ser reformada por ele, engenheiro em sua

formação, com a ajuda de colaboradores, passa a desenvolver um trabalho louvável

³ O programa Minha Casa Minha Vida é uma iniciativa do Governo Federal que oferece condições

atrativas para o financiamento de moradias nas áreas urbanas para famílias de baixa renda.

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de cuidado, ressociabilização e atenção aos moradores em situação de rua,

promovendo ajuda para a recuperação da identidade e autoestima desses sujeitos.

A Comunidade da Trindade acolhe hoje mais de 30 pessoas. Destas, três

compõem um grupo responsável na manutenção do espaço, sendo os ex-moradores

em situação de rua que auxiliam no trabalho com outras pessoas carentes de ajuda

e proteção. A maioria dos sujeitos assistidos possui histórico de dependência

química e contam com o apoio de psicólogos, terapeutas, assistentes sociais e

voluntários que colaboram com este projeto desafiador, corajoso e admirável.

4.3 COMO REALIZAM OS CUIDADOS DE HIGIENE PESSOAL?

Os dias de chuva contribuem para o acesso mais facilitado a água, que

quando possível é reservada em baldes, vasilhames e garrafas plásticas. Outra

alternativa nem sempre disponível é a doação de água por residentes ou

comerciantes das áreas habitadas. Em linhas gerais a higiene pessoal nem sempre

é realizada com frequência, no caso dos moradores em situação de rua

entrevistados que circulam pelo bairro do Comércio, a “higienização” é realizada na

Figura 10: Moradores em situação de rua banhando-se na Fonte da Bica, localizada

no bairro no Comércio, 2015

Fonte: Levantamento de campo - Elaborada pela autora, 2015.

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praia, no contêiner da prefeitura que atende ao Projeto intitulado Ponto de

Cidadania, localizado na Praça das Nações, ou ainda na Fonte da Bica, no final da

Avenida Contorno, conforme ilustra a figura abaixo.Na Avenida J. J. Seabra a

higiene quando ocorre, segundo os moradores em situação de rua, acontece no

Centro POP localizado na Baixa do Sapateiro e nos postos de combustíveis

existentes nessa área.

Figura 11: Centro POP local utilizado para higienização pessoal e realização de

refeições gratuitas, 2015

Fonte: Levantamento de campo - Elaborada pela autora, 2015.

A dificuldade na manutenção da higiene pessoal é uma questão revelada por

mais da metade dos informantes como cuidado a saúde. Em geral, não são usados

produtos higiênicos. No cotidiano das ruas, os cuidados higiênicos como banho,

escovação de dentes, raspagem de barba, lavagem de roupas são realizados

geralmente de maneira precária, sem regularidade e em locais improvisados como

fontes, torneiras e praias.

O Centro Pop corresponde a um Centro de Referência Especializado para população de rua, é um espaço de referência para o convívio, social e o desenvolvimento de relações de solidariedade. Trata-se de uma unidade pública estatal, de referência e atendimento especializado à população adulta em situação de rua, sejam eles portadores de transtornos mentais ou não.

4

4

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4. 4. POR ONDE ANDAM?

A condição de morar nas ruas condiciona estes indivíduos a assumirem a

condição de itinerantes e de se movimentarem pelos espaços da cidade conforme

as melhores condições que estes possam oferecer. O dia a dia dessa população

gira basicamente em torno de dois eixos: a busca por meios de sobrevivência (locais

para alimentação, associações para cuidados com a higiene pessoal, albergues para

descanso e segurança à noite, por exemplo) e a busca por trabalhos temporários,

como bicos na construção civil, cuidando de automóveis estacionados em via

pública ou o recolhimento de materiais recicláveis para venda.

O deslocamento por estes percursos são realizados quase sempre a pé, por

vários quilômetros, o que deixam os pés marcados e feridos, raras vezes é realizado

em transportes coletivos, quando é efetuado o pagamento da passagem com

rendimentos, ou até mesmo na “carona”, se assim consentirem os motoristas. O

deslocamento ocorre por vontade própria ou em razão de repressão da comunidade

ou da polícia torna-se uma questão de subsistência. Nas entrevistas com os

informantes é possível notar certa polaridade nos perímetros identificados em

amarelo nos mapas 1 e 2, permanecendo estes nas mesmas intermediações pelo

período máximo de tempo, desenvolvendo assim relações familiares e de

solidariedade entre si.

A forma itinerante assumida pelos moradores de rua não permite que passem

horas seguidas fixados em um mesmo ponto, os motivos são vários: proteção

pessoal, a procura de um local mais calmo e seguro para dormir, durante o dia ou à

noite, a fome, a necessidade de materiais para construir seus barracos o movimento

continuo caracteriza-se como uma condição para sobrevivência frente à hostilidade

presente nas ruas. Quando estão circulando são menos notados, dessa forma

“incomodam” menos evitando a expulsão que quase sempre é realizada de maneira

abrupta pela polícia, transeuntes ou por outros moradores de rua, caso se sintam

ameaçados, o que também condiciona esses deslocamentos. Motivados pelo

instinto de sobrevivência, deslocam-se de um lugar a outro com seus pertences,

mas geralmente permanecem em áreas próximas à procura de um local mais calmo

e seguro para dormir, durante o dia ou à noite, busca de alimentos e objetos que

possam ser úteis.

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4.5. COMO SÃO ESTABELECIDAS AS RELAÇÕES COM ENTORPECENTES?

No tocante aos entorpecentes, em muitos casos, estão associadas às

motivações que os levaram à condição de rua e ao mesmo tempo é fator decisivo

para a permanência na rua. Foram identificadas por meio das entrevistas possíveis

vantagens em viver nas ruas, quais sejam: amigos e a ociosidade ou o fato de não

fazer nada, álcool e o uso livre e indiscriminado de drogas, apresentando-se como

uma das “vantagens” de viver na rua no entender dos sujeitos que a habitam

permanentemente. Embora sejam em menor número do que as desvantagens, as

vantagens são mais significativas para os moradores de rua.

A ideia de que esses sujeitos vão para as ruas em sua maioria pelas drogas é

contrariada quando é percebido que se tornaram usuários abusivos justamente pelo

fato de estarem nas ruas. Entre outros fatores relacionados ao uso de drogas, estão

o frio, a compensação do estresse da vida nas ruas e da degradação dessa situação

e mesmo para sociabilização com outras pessoas nessa situação por questões de

sobrevivência e segurança. Na imagem a seguir é possível ver jovens moradores em

situação de rua consumindo deliberadamente.

Figura 12: Jovens moradores em situação de rua consumindo a pedra do crack,

2015

Fonte: Google imagens, 2015

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Os ciclos percorridos pelo morador de rua desde o momento em que ele sai

de casa até alcançar uma instituição de acolhimento é perpassado pelo vício. Antes

mesmo que ele chegue à condição de morador de rua, em sua maioria, o uso de

drogas ou do álcool já é presente em sua vida, ainda que minimamente. Dos 20

entrevistados 18 afirmaram fazer uso de algum tipo de droga, entre as mais

utilizadas então o crack, o álcool, cigarro, fumo, cola-de-sapateiro e maconha.

Dentre as drogas citadas, uma ganha maior margem de alcance, o crack, sua

introdução do na década de 1990 mudou a vida na rua em muitos países; por ser

uma substância mais acessível, cujos efeitos são mais imediatos, adaptou-se à

necessidade daqueles que queriam uma fuga da realidade. Existem, sobretudo nas

grandes cidades como em Salvador, áreas conhecidas pela venda, compra e

consumo livre de drogas principalmente no período da noite.

Figura 13: Praça das Nações, localizada no bairro do Comércio é utilizada para

entretenimento e uso de drogas e bebidas, 2015

Fonte: Levantamento de campo - Elaborada pela autora, 2015.

O crack, por exemplo, chega custar R$5,00 e R$10,00 o preço de uma

“pedra”; a maconha pode ter um cigarro vendido a partir de R$3,00, e a cola de

sapateiro que custa uma média de R$12,00 a lata pequena, são as drogas mais

utilizadas, todas podem ser comprados livremente por moradores de rua ou outros

transeuntes, como aparece na figura 13, na Praça das Nações, um dos recortes de

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análise da pesquisa, que não por coincidência, agrega números significativos de

moradores em situação de rua cuja estratégia de sobrevivência se baseiam em

ações como prostituição, roubos ou venda de substâncias ilícitas, tornando-se

conhecidos pela população em geral.

O consumo de drogas, especialmente o crack, se insere neste cenário como

uma atividade sempre ligada à utilização do espaço urbano pelos moradores em

situação de rua. Ao se dirigir para debaixo das placas de cimento que cobrem o

córrego na Avenida Cônego Pereira para fumar a droga, meus interlocutores estão

se aproveitando de uma possibilidade de ressignificação daquele local, e o próprio

ato de se estabelecer um círculo onde todos se identificam como usuários, pode ser

tratado como uma forma de sociabilidade situacional. Por ser uma atividade ilícita e

malvista pela população em geral, é geralmente feita em pequenos grupos e em

locais escondidos ou afastados das vias públicas como quando acompanhei.

Os sujeitos moradores de rua afirmam também sobre a necessidade que

sentem de se manterem sob o efeito das substâncias o máximo de tempo possível,

pois encontram nelas o refúgio contra a realidade a qual estão submetidos.

Geralmente as razões para o uso abusivo de drogas e álcool é a mesma que os

levou para as ruas. Estão relacionadas às dificuldades de afirmação no mercado de

trabalho e experiências desestruturantes, como a violência doméstica exploração,

abusos, abandono e prisão.

4.6. COMO É DORMIR NAS RUAS?

Os moradores de rua destacam como desvantagem de está nas ruas o fato

de não possuírem condições adequadas ou satisfatórias para descansarem ou

dormirem. Muitas vezes, relatam que não conseguem dormir tranquilamente porque

têm medo de serem mortos ou atacados. Alguns esperam amanhecer para poder

dormir, já que durante o dia há mais movimento, o que, para eles, significa maior

segurança. A violência aparece como uma grande preocupação para essas

pessoas, principalmente à noite. Foram relatados vários casos de agressões e

mortes quando estes indivíduos estão dormindo; o medo de ataques noturnos

trazido em várias entrevistas.

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Outros se referiram ao ato de dormir sem se desligar completamente, estando

sempre em vigilância, optando sempre que possível dormir em locais diferentes dos

que estiveram durante o dia ou perto de postos policiais, cerca da metade dos

entrevistados preferiam utilizar o horário da noite para atividades como comer, beber

e até mesmo realizar de coleta de objetos e comida nos lixos, reservando o dia

como momento de descanso por considerarem mais seguro. Na falta de dinheiro e

de albergues, os centros comerciais, livres do trânsito de pedestres à noite, com

amplas marquises para a proteção contra a chuva, próximos a bares e restaurantes,

que oferecem as sobras de comida e banheiro, caso esteja com boa apresentação,

limpo, livre de odores, com papelão para improvisar uma cama, são uma boa opção

para passar a noite. Fora dos horários comerciais, esses lugares oferecem os

melhores locais para o pernoite sem o incômodo de residências cujos moradores

poderiam acionar a polícia ou os serviços de resgate da prefeitura.

Como estratégias de proteção, algumas pessoas relataram dormir em grupo

ou durante parte do dia (quando há mais movimento de pessoas), ficando acordadas

à noite, período em que as ruas estão vazias, como mostra a imagem a seguir em

que um morador em situação de rua dorme entre carros estacionados, e em baixo

da marquise no outro lado da avenida como indica a seta, durante o dia, na Avenida

Cônego Pereira.

Figura 14: Morador em situação de rua dormindo durante o dia na Rua Cônego Pereira, 2015

Fonte: Levantamento de campo - Elaborada pela autora, 2015.

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Em alguns casos a presença de moradores de rua na porta de

estabelecimentos comerciais pode servir como uma segurança adicional contra a

violência urbana. A chuva também é outro aspecto muito mencionado nas

entrevistas. Dormir ao relento sobre papelões ou embaixo de marquises em tempos

de chuva é quase impossível.

A noite já é considerada fria e insalubre para aqueles que passam expostos e

muitas vezes sem a proteção de agasalhos, quando chove na cidade por um longo

período de tempo, as possibilidades de circulação ou de permanência desses

sujeitos é prejudicada, pois fica muito difícil se deslocar a pé ou ficar em áreas que

normalmente represam água e alagam como acontece na Avenida Cônego Pereira

em função do córrego que a divide em toda sua extensão e no bairro do Comércio

pelo seu histórico de aterramentos em sua construção. Alguns buscam lugares bem

escondidos, prédios abandonados albergues e centros de acolhimento para dormir

com um pouco mais de segurança e proteção.

4. 7. POR QUE AQUI

Permanece mais que atestado que as condições insalubres e de

vulnerabilidade chegam ao ponto máximo para os indivíduos que buscam nas ruas a

possibilidade de ter um local de moradia e sobrevivência. O local mais apropriado

para procurar abrigo, em um ambiente sem proteção, fronteiras físicas e entre o

limiar do público e privado certamente não é facilmente encontrado na realidade

hostil e violenta das ruas.

O espaço na rua habitado por moradores compreende locais situados sob

pontes, marquises, viadutos, frente de prédios privados e públicos, postos de

gasolina, parques, praças, calçadas, praias não utilizadas à noite; cascos de barcos

na areia, embarcações não utilizadas, portos, estações de trem, terminais

rodoviários, margens das rodovias, dentro de construções com áreas internas

ocupáveis, galerias subterrâneas, becos, áreas próximas aos depósitos de lixo, à

reciclagem de material, às feiras, dentre outros locais protegidos do frio e da

exposição à violência. Muitos moradores vivem em barracos de papelão e plástico,

construídos com o sentido de “esconderijo”. Nos centros urbanos, aparecem como

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moradias improvisadas à beira de calçadas, próximas a barrancos, em praças

públicas, sob viadutos e postos de gasolina.

Os viadutos são muito utilizados como locais de abrigo, são componentes do

sistema viário urbano que permitem a passagem de veículos em dois níveis. A

estrutura que garante a sustentação dos viadutos e a rampa que permite aos

veículos transpor o nível da rua apresenta em sua parte inferior a forma de teto e

parede, que assume esta função para os moradores de rua que dele se apropriam.

Os postos de gasolina representam uma sombra, um teto que abriga da chuva, um

lugar sossegado para dormir, quando não funcionam durante a noite e são também

fonte de água e álcool.

Os Muros servem como encosto, os caixotes encontrados nas feiras servem

como banco ou mesa, carretel de fio ou mangueira servem também como mesa.

Constata-se assim que viver na rua é compor uma existência a partir dos meios que

a rua dispõe, recriando e adaptando o lar. Os condicionantes espaciais que

favorecem a escolha por parte do morador em situação de rua em parte das

respostas adquiridas no transcorrer das entrevistas.

Estes sujeitos buscam um local que possam encontrar menos dificuldades no

acesso à comida, por meio da coleta no lixo, do pedido, compra, ou doações,

buscam o alcance curto e rápido a drogas e bebida, local para higiene pessoal, de

grande movimentação no fluxo de pessoas e transporte coletivo, o que lhes

oferecem mais segurança. Lugares em que possam desenvolver atividades

rentáveis, que possibilitem seu sustento e que os permitam dormir com o mínimo de

tranquilidade, ainda que mergulhados em fatores e estigmas sociais que lhes pesam

em uma vida já carregada de rompimentos, traumas, sofrimentos e desesperanças.

4. 8. DENTRE TANTAS HISTÓRIAS... O RELATO DE UMA VIDA

No município de Teixeira, microrregião da Serra do Teixeira no estado da

Paraíba, no ano de 1987 nasce o sujeito protagonista de uma história muito

particular, que aqui será chamado de Rafael. Segundo filho de quatro irmãos, residia

com sua família, sustentado apenas por sua mãe, pequena agricultora que tirava da

terra os recursos para manutenção de sua vida e dos seus filhos, sem ajuda do seu

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cônjuge que faleceu devido a complicações pulmonares.

Rafael ainda criança já era notado em função da incompatibilidade do seu

gênero em relação a sua identidade sexual, o que lhe trouxe conflitos por não ser

aceito em sua comunidade e entre familiares. Em muitas situações a não aceitação

da orientação sexual do sujeito pode contribuir para uma possível fuga da condição

de rejeição que poderá culminar na ida para as ruas.

Lidando com o preconceito sexual, com a pobreza e com a falta de

perspectivas profissionais e pessoais, Rafael migra aos dezessete anos em direção

a cidade de Aracaju no Estado de Sergipe, na busca por oportunidades de emprego

e de maior aceitação. Em uma cidade grande onde as diferenças sociais se

manifestam de forma mais evidente, não demorou, em busca de renda, a chegar à

prostituição e ao crack, morar nas ruas foi o próximo passo. É comum observarmos

situações de pessoas que migram para centros urbanos em busca de oportunidades

e que ao não serem absorvidas pelo mercado de trabalho e por não contarem com o

apoio da família e de amigos por estarem longe, vão encontrar nas ruas a principal

alternativa para sobrevivência.

Ao se confrontar com a situação de viver nas ruas, recorreu a ajuda e apoio

da família. De volta à terra natal, contando com o cuidado da mãe conseguiu se

afastar do vício e reconstruir alguns dos vínculos sociais perdidos nesta primeira

experiência. Fato que corrobora com a importância da família no resgate e no

posterior processo de ressocialização desses indivíduos que ao contarem com o

apoio emocional e material de seus familiares, possuem maiores chances de

superar os vícios e a condição de vulnerabilidade presente nas ruas.

Em agosto de 2011 sua mãe morreu devido à leucemia e com isso foi criado

um novo trauma que o desestabilizou emocionalmente, perturbou e o remeteu para

uma nova experiência nas ruas. A morte de familiares e parentes próximos traz

muitas vezes desestabilidade financeira e emocional a sujeitos que ao se sentirem

desamparados e sós, chegam as ruas como ponto ápice das perdas e traumas.

Rafael viajou de carona até chegar à cidade do Salvador, voltando a se

prostituir e se drogar nas ruas. Escolheu ficar na área conhecida como Sete Portas,

inicialmente o motivo para a escolha foi onde fora recebido com menos hostilidade.

Lá tinha acesso fácil a pontos de venda de drogas, sendo o crack a droga mais

utilizada, uma “pedrinha” de crack pode ser conseguida facilmente por R$5,00 e

consumida de individualmente ou de forma compartilhada.

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Os pertences são poucos, os documentos foram perdidos recentemente,

ficando restritos a objetos de higiene pessoal, recipientes para se alimentarem e

algumas peças de roupa doadas ou encontradas no lixo. Estes utensílios ficam

guardados em sacolas plásticas por ali mesmo, em algum canto, escondido para

não serem roubado ou levado pela empresa de recolhimento de lixo.

O acesso às refeições é conseguido por meio da ação de caridade de

instituições religiosas que distribuem refeições, remédios, roupas e cobertores para

o frio. Para se alimentar conta quase sempre com o serviço assistencial da igreja ou

instituições ligadas à ajuda assistencial voluntária. Rafael relata que a visita de

representas de igrejas é diária e aguardada com certa expectativa: [...] “Todos os

dias a igreja passa, faça chuva ou sol, é o que nos deixa viver, a bondade dessas

pessoas é um presente de Deus”, a ajuda dessas pessoas é decisiva para

sobrevivência de Rafael e de muitos outros moradores que vivem nas ruas, quando

não está no ponto de coleta no horário da distribuição do alimento, busca os mais

próximos que dividem o que têm, quando têm.

Quando não pode contar com os companheiros recorre ao lixo, na feira da

Sete Portas quase sempre consegue algumas frutas em má estado de conservação,

ou sobras das refeições dos feirantes. Rafael fala também do Centro POP como um

lugar de apoio, lá, afirma poder tomar banho, se alimentar, lavar suas roupas. O

Centro Pop corresponde a um Centro de Referência Especializado para população

de rua, é um espaço de referência para o convívio, social e o desenvolvimento de

relações de solidariedade. Trata-se de uma unidade pública estatal, de referência e

atendimento especializado à população adulta em situação de rua, sejam eles

portadores de transtornos mentais ou não.

O corpo exposto sempre sofre com o maltrato de viver nas ruas, os pés às

vezes descalços sofrem com os percursos diários. Rafael não consegue ter acesso

aos ônibus, ele caminha normalmente pela Rua J. J. Seabra até a Rua Cônego

Pereira todos os dias, as vezes até o Terminal Rodoviário da Barroquinha, caminha

para não ficar parado, afirma se sentir incomodado. Gosta de caminhar, observar as

pessoas, interagir com outros moradores em situação de rua, acompanhar o

movimento dos carros e dos estabelecimentos. A socialização com pessoas que não

são de rua ou de centros de caridade ou referência não costuma acontecer com

frequência, os comerciantes se incomodam com sua presença, o tangem como a um

cachorro, o expulsa sob ameaças, xingamentos e difamações.

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São poucas as pessoas que lhe dão atenção, normalmente os proprietários

dos pequenos comércios, vendedores ambulantes, há exemplo de D. Cecília que

vende mingau no terminal do Aquidabã. Às vezes ela guarda um pouco para ele, diz

a ele que lembra o seu filho e o pede para sair dessa vida.

Rafael afirma quase sempre estar doente em função do frio das noites nas

ruas, que associado a uma alimentação deficiente e ao consumo do crack, tornam-

se quase sempre presentes, este último é seu maior inimigo e seu melhor aliado. Ele

diz que o uso do crack é fundamental para conseguir suportar a realidade das ruas,

que ao consumir crack não sente fome, nem dor, nem frio, nem medo, nem

saudade.

O crack não o deixa pensar, lembrar, ou compreender sua real situação, o

consumo é compulsivo e condiciona a maior parte do seu tempo e de suas ações.

Quando o efeito passa, ele usa novamente, é como se a sobrevivência nas ruas

para ele estivesse ligado diretamente ao uso contínuo, incessante da droga. Para

consegui-lo não tem dificuldade, é barato e se encontra em toda parte, os outros

moradores em situação de rua também compartilham.

Sua única preocupação em ganhar dinheiro é para o consumo de drogas,

para isso ele pede esmola na sinaleira e às vezes se prostitui na própria região.

Normalmente cobra por um programa uma média de R$10,00 a R$15,00. Há cerca

de dois meses Rafael após realizar o consumo demasiado e compulsivo de crack, foi

atropelado na rua. O acidente foi grave e o levou ao coma, ficando internado durante

quinze dias no Hospital Geral do Estado, após se recuperar disse à assistente social

do hospital ter para onde ir, porém, voltou para as ruas, ele diz que o crack o

adoeceu, está o deixando louco e que gradativamente está perdendo a razão.

Esse é o lugar onde Rafael acontece, onde produz seu espaço, sua vida, sua

existência que mesmo marginalizado, negado, destituído de bens materiais e

discriminado, permite não ser olhado apenas por esse ângulo, ele aos seus 28 anos

e com uma bagagem repleta de experiências dolorosas, traumas e rompimentos é

pleno em sua condição humana, não perderá sua capacidade de ação persistindo a

resistir.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parte considerável da sociedade está doente, seccionada e infelizmente não

há perspectiva de cura próxima. Os meios de comunicação brasileiros exibem a todo

o momento ao vivo, em cores e em tempo real a dinâmica desse corpo social

fragmentado de maneira desigual. Esses retratos dinâmicos são oferecidos nos

jornais diários televisivos aos cidadãos que olham tudo chocados e respiram

aliviados quando o foco passa para cenas mais brandas.

Em uma visão aérea, a cidade do Salvador transforma-se numa imensa

favela, construções que assumem grande parte da paisagem como conglomerados

residenciais edificados de maneira desordenada, quase sempre em desacordo com

o padrão residencial urbano. Seu crescimento escapa a qualquer forma de

planejamento e apreensão tanto qualitativa quanto quantitativa. Sua geografia

(política, social, econômica etc.) em permanente estado de conflito, movimento e

crescimento, fazem da cidade um objeto complexo e distante de concepções ou

modelo de representações urbanas definitivas.

A realidade brasileira embora com suas características próprias, está

integrada à tendência de fragmentação mundial. O modelo econômico implantado no

país produziu subjugados, pessoal e socialmente, com difícil perspectiva de

transposição social. De outra parte, as políticas sociais adotadas pelos diferentes

governos tiveram como opção a implementação de ações de caráter nitidamente

emergenciais, rasas e que não atendem de maneira eficiente todo contingente

populacional de rua, o que reflete a tendência de enfrentar os problemas sociais

como fatos isolados. A consequência é que tais políticas não trouxeram resultados

efetivos na condição de vida da população. Os resultados da análise indicam que as

condições de vida das pessoas em situação de rua portadoras e sofrimento mental

em Salvador são extremamente precárias.

Durante o trabalho de campo foi possível observar e ouvir relatos de pessoas

vivendo em viadutos, calçadas, praças, estações de ônibus ou dentro de automóveis

abandonados. A imagem do morador em situação de rua como alguém

simplesmente inapto ao convívio social sempre se apresentou baseada em valores

morais. O discurso sobre este segmento social demonstrou ser persuasivo e

convincente para endossar julgamentos e práticas discriminatórias.

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A necessidade da população de moradores em situação de rua portadores de

sofrimento mental não se baseia somente em demandas básicas, como moradia,

alimentação e vestuário e sim, em uma política que se volte a essa categoria, que

tem sua origem na pobreza, na desigualdade e desfiliação. Os estudos mostraram

ser a desigualdade social no Brasil um fator associado a problemas de saúde mental

na população, fato que se deve segundo aos estudos referidos, a sentimentos e

experiências vividas pela população excluída, com fome, dores, traumas, distúrbios,

violências domésticas, estresses pós-traumáticos, humilhações e vergonha.

Os moradores em situação de rua carregam confundidos com suas

bagagens, dramas, marcas, queixas, mas também trazem poesia, música, sorrisos

fáceis, sonhos, beleza e histórias de vida ricas em experiências adquiridas lida diária

pela manutenção da existência. Diante da oportunidade de serem entrevistados,

percebidos e ouvidos, falam da vida e do que fazem para resistir aos impasses com

criatividade e instinto de sobrevivência, relatam alegrias, tristezas, sucessos e

fracassos. São sujeitos invisíveis, ideologicamente ocultados, em uma sociedade

que transita entre o que quer ver e o que finge não conhecer.

São vários os mecanismos de interferência no cotidiano dos moradores de

rua. Dispositivos físicos como fechamento de banheiros públicos ou interdição de

vias e praças para passar as noites materializam representações de ameaças

criadas a respeito desse segmento sobre a legibilidade da cidade que se pretende

funcional e hegemônica (DE CERTEAU, 1994).

Foi possível no resultado final do trabalho compreender de quais formas e

maneiras os sujeitos que habitam as ruas produzem seu lugar de vida, dentro do

espaço urbano, concebendo como a cidade e a sociedade que lhe atribui sentido

interage com eles numa construção dita dialética e constante.

Concluo o trabalho abordando as consequências de se adotar um modo de

vida que viva ao mesmo tempo da ética do trabalho e da sociabilidade das pessoas

pobres portadoras de transtornos mentais em ambiente familiar numa sociedade

capitalista e urbana, afirmando ainda que fatores como pobreza, desemprego,

migração, deficiências físicas e mentais, o alcoolismo e o consumo de drogas ilícitas

não são suficientes para levar esses indivíduos a viver nas ruas. A “entrega” dos

indivíduos social e economicamente vulneráveis à rua ocorre mediante uma prévia

ruptura com os vínculos familiares e com os padrões estabelecidos pela vida social,

e que ainda em frente todas as sanções, violências físicas, simbólicas e morais,

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esses sujeitos conseguem sobreviver a dura realidade das ruas.

É necessário mobilizar meios, propor políticas, dar visibilidade a essa tragédia

contemporânea, o desemprego associado à condição de estar nas ruas, que

marginaliza o cidadão, afronta os direitos humanos básicos, na medida em que não

permite aos sujeitos, por seus meios, ultrapassar essas barreiras e o pior, a cada

dia, alimenta sua condição de descarte até que, num improvável futuro, o

capitalismo possa identificar neles alguma utilidade. Morar na rua também

significava fraturar fronteiras, desalinhar as escalas e trazer a tona, novos trajetos,

fluxos, lugares, novos espaços e formas de produzir a vida.

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