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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS FABIO NUNES DE JESUS DA ROÇA AO TERRITÓRIO: IDENTIDADE E PRÁTICA SOCIOESPACIAL QUILOMBOLA DE CIRCULARIDADE COSMOGÔNICA NO PIEMONTE DA DIAMANTINA, BAHIA CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

FABIO NUNES DE JESUS

DA ROÇA AO TERRITÓRIO:

IDENTIDADE E PRÁTICA SOCIOESPACIAL QUILOMBOLA DE

CIRCULARIDADE COSMOGÔNICA NO PIEMONTE DA DIAMANTINA, BAHIA

CAMPINAS

2019

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FABIO NUNES DE JESUS

DA ROÇA AO TERRITÓRIO:

IDENTIDADE E PRÁTICA SOCIOESPACIAL QUILOMBOLA DE

CIRCULARIDADE COSMOGÔNICA NO PIEMONTE DA DIAMANTINA, BAHIA

TESE APRESENTADA AO INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM GEOGRAFIA NA ÁREA DE ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL.

ORIENTADOR: PROF. DR. VICENTE EUDES LEMOS ALVES

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO FABIO NUNES DE JESUS E ORIENTADA PELO PROF. DR. VICENTE EUDES LEMOS ALVES.

CAMPINAS

2019

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Ficha catalográficaUniversidade Estadual de CampinasBiblioteca do Instituto de Geociências

Marta dos Santos - CRB 8/5892

Jesus, Fábio Nunes de, 1971- J499d JesDa roça ao território : identidade e prática socioespacial quilombola de

circularidade cosmogônica no Piemonte da Diamantina, Bahia / Fábio Nunesde Jesus. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

JesOrientador: Vicente Eudes Lemos Alves. JesTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Geociências.

Jes1. Lugar. 2. Vida rural - Brasil, Nordeste. 3. Diáspora Africana. 4.

Quilombos. 5. Territorialidade - Brasil. I. Alves, Vicente Eudes Lemos, 1967-. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Geociências. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: From "roça" to territory : identity and quilombola sociospatialpractics of cosmogonic circularity in the Diamantina´s Piedmont, BahiaPalavras-chave em inglês:PlaceRural life - Brazil, NortheastAfrican diasporaQuilombosTerritoriality - BrazilÁrea de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica TerritorialTitulação: Doutor em GeografiaBanca examinadora:Vicente Eudes Lemos Alves [Orientador]Eduardo José Marandola JrRoberto Donato da Silva JuniorLourdes de Fátima Bezerra CarrilAlessandro DozenaData de defesa: 30-07-2019Programa de Pós-Graduação: Geografia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)- ORCID do autor: 0000-0003-2170-0252- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1742685076978352

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

AUTOR: Fabio Nunes de Jesus

DA ROÇA AO TERRITÓRIO:

IDENTIDADE E PRÁTICA SOCIOESPACIAL QUILOMBOLA DE CIRCULARIDADE

COSMOGÔNICA NO PIEMONTE DA DIAMANTINA, BAHIA

ORIENTADOR: Prof. Dr. Vicente Eudes Lemos Alves

Aprovado em: 30 / 07 / 2019

EXAMINADORES:

Prof. Dr. Vicente Eudes Lemos Alves - Presidente

Prof. Dr. Eduardo Jose Marandola Junior

Prof. Dr. Roberto Donato da Silva Júnior

Profa. Dra. Lourdes de Fátima Bezerra Carril

Prof. Dr. Alessandro Dozena

A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se

disponível no SIGA - Sistema de Fluxo de Tese e na Secretaria de Pós-

graduação do IG.

Campinas, 30 de julho de 2019.

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AGRADECIMENTOS

Para Terezinha Alves Nunes, Maria Ceci Sampaio Nunes, Fernanda

Sampaio Nunes, Rita de Cássia Nascimento Sampaio Nunes, Celeste Alves Nunes,

Maria Alves Nunes, Fabiana Nunes de Jesus, João Nunes de Jesus, Carlos

Glerdiston Nunes da Silva, Florisilvia Alves Nunes, Diego Alves Nunes dos Santos,

Hector Nunes dos Santos, Joelia Barbosa Alves de Jesus, Neuza Nunes do

Nascimento, Robson Nunes do Nascimento, Prof. Dr.Vicente Eudes Lemos Alves,

Prof. Dr. Eduardo Marandola Jr.,Prof. Dr. Antônio Carlos Vitte, Jamille da Silva Lima,

Jacy Bandeira Nunes, Maria Dalva de Lima Macêdo, Américo Oliveira Júnior,

Emanuel Tarciano Santana da Fonseca, Cristiane Kampf , Paulo Botaro, Daniel

Carneiro Reis, Fernanda Caroline Silva dos Santos, Jotta Esse, Silvânia Mota

Magalhães, João Edson Rufino, Maria Assunção Alves Borges, Dayvid Sena, Miriam

Geonisse de Miranda, José Orlando Silva Sampaio Júnior, Rita de Cássia Bastos

Arantes, Gerlane Lima Silva Dourado, Sandra Gama, Welliton da Silva Santos, Keilla

P. Santos Lopes, Jariete Machado, Adenivaldo de Jesus Pereira, Célia Santana,

Moema Sampaio Tavares, Ricardo Alves Oliveira Rosa, Marcos Mascarenhas,

Rogério Silva Santos, João Paulino da Silva Neto, Zeni Rocha de Miranda, Joelma

Ferreira, Maria Aparecida de Jesus Ferreira Souza, Jean César Moreira da Silva,

Verônica Melo Pastor.

A José Jesus dos Santos, sua família e toda a Comunidade Quilombola

de Várzea Queimada, em Caém, na Bahia, pela solidariedade acadêmica de

vivência, conhecimento e produção de mundos.

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Nasci no brejo gelado e fui arrancada pela mão

forte de um mulato

Fui posta ao sol, onde sequei, fui arrumada e

amarrada

E agora Taboa já não me chamava

No mercado repousei ao lado de ervas frescas

Meu nome agora era Esteira

Valia pouco, mas logo fui levada

Senti a água fria

O sangue quente

E as lágrimas salgadas

Ouvi o paó que rompia a madrugada

Ouvi o som do adjá

Ouvi o bater forte do coração

Apoiei o medo do desconhecido

Apoiei cabeças raspadas

E cuidadosamente pintadas

Sobre mim repousam homens

Sobre mim repousam deuses

Sobre mim repousam a vida e a morte

Fui Taboa

Virei Esteira

E eternamente serei Enin

(Autor desconhecido)

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RESUMO

A roça quilombola está em circularidade, com ela nos deslocamos em seu sentido diante do tempo e espaço de vivência. É um caminhar longo de descobertas e afirmações que reivindicam sua validade geográfica. Chamamos aqui de lugaridade este processo de significância e movimento, que permite ao sujeito conectar-se aos outros espaços e/ou lugares e também compor os novos lugares que, por necessidade, sejam necessários compreendê-los. Os territórios estariam assim conectados por redes de lugares experienciados e vividos que dialogam entre si em diferentes escalas espaciais. A roça é um desses lugares/territórios de mediação e redefinição dos sentidos, capaz de promover uma relação transtemporal, que pode acionar o lugar ou lugares, independente de sua força de localização geográfica, já que, na memória cultural, as distâncias reavivam e aproximam os indivíduos, além de redirecionarem suas ações e/ou deslocamentos. Terreiros, quintais, roças e quilombos não serão simples representações espaciais diante da força propulsora e cosmogônica que ultrapassara as estruturas clássicas do território brasileiro, estes constituíram espaços capazes de viabilizar um mundo marcado pela dimensão afro do pertencer. Tratando-se da origem quilombola no Brasil, a produção de lugares negros, invariavelmente, dependia da sua memória cosmogônica, cuja relação com o espaço territorial significava definir lugares de sociabilidade e resistência, ao dialogar com a temporalidade em curso, visto que a permanência e a alteridade simbólica significavam quebrar a rigidez cronológica do pensamento europeu instalado na produção e execução forçada da materialidade presente. São tramas de sentidos que nos remetem à circularidade de uma cosmogonia na busca do "remapeamento" das relações culturais. Entender a movimentação dos espaços negros mediante sua cosmovisão africana de prática socioespacial identitária de roça e quilombola significa colocar o território dos quilombos como um espaço social dinâmico e legado histórico que reside na memória e espacialidade de uma convivência coletiva marcada por vínculos identitários étnicos, culturais e religiosos, com fortes laços solidários, inclusive política e territorialmente distribuídos. Nos deslocamos e vivenciamos sobre o que conhecemos, o novo será real na medida em que experiencio ou vivo a experiência de tantos outros através da validade ou aceitação dos significados estabelecidos ou produzidos. Esta existência do indivíduo diante de fenômenos diversos, naturais e ou sociais, revela a busca presente nas geografias e seus diversos significados pensados e produzidos pelos negros brasileiros.

Palavras-chave: Lugar; Vida rural – Brasil, Nordeste; Diáspora Africana; Quilombos; Territorialidade - Brasil.

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ABSTRACT

The quilombola “roça” is in circularity, it moves us towards the time when and space where they lived. It is a walk along side discoveries and statements which claims their geographic validation. We call Sense of Place this process of significance and movement, which allows the subjects to connect with other places or locations as well as to compose new places. Hence, the territories would be connected by a net of experienced places, related to each other in various degrees of spatial scale. The “roça” is one of this places/spaces of mediation and redefinition of meaning. It has the capacity to promote a transtemporal relationship, regardless of its geographical location, since, in the cultural memory, distances can renew the individuals, as well as bring them closer together. “terreiros”, “quintais”, lands and quilombos will not be ordinary spatial representations in front of the cosmogonist driving force, which surpasses the classic structures of Brazilian territories; instead, they will constitute spaces capable of making possible a world marked by the African feeling of belonging. Regarding the quilombola origins in Brazil, the production of black people’s places depended on their cosmogonist memory. Such places based their relationship with the territory on the formation of social places as well as places of resistance by relating to its own time. This ancestral african places are a network of meanings which remind us of the circularity of a cosmogony in the search for “remapping” the cultural relations. To understand the movement of black people’s spaces regarding their African cosmovision of sociospatial identity practices from the quilombola “roça” means to regard the quilombola territories as social and dynamic spaces as well as historical legacy, which resides in the memory of a community characterized by their ethnical, cultural, religious and identity ties. We live, move and think, based on what we know, hence, something new will only become real as we experience it by ourselves or as we access this experience through others. This existence of an individual in the face of various phenomena, social or natural, reveals the search of the geographies and its many meaning produced by black Brazilians.

Key-words: Place; Rural life – Brazil, Northeast; African Diaspora; Quilombos; Territoriality -

Brazil.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Territórios de Identidade do Estado da Bahia - 2017 ............................... 28

Figura 2 - Localização do povoado de Várzea Queimada em Caém, no Estado da Bahia ......................................................................................................................... 29

Figura 3 - Localização da área de estudo no Território de Identidade do Piemonte da Diamantina ................................................................................................................ 30

Figura 4 - Certificação de Reconhecimento como Comunidade Quilombola de Várzea Queimada em 15 de agosto de 2004 ............................................................ 35

Figura 5 - Certificação de Reconhecimento como Comunidade Quilombola de Várzea Queimada em 15 de agosto de 2004. ........................................................... 36

Figura 6 - Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017 ............ 43

Figura 7 - Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017 ............ 44

Figura 8 - Inauguração da Casa de Farinha Comunitária de Várzea Queimada, 2015 .................................................................................................................................. 48

Figura 9 - Inauguração do Minha Casa Minha Vida Rural na Comunidade, 2018 .... 49

Figura 10 - Inauguração do Minha Casa Minha Vida Rural na Comunidade, 2018 .. 50

Figura 11 - Seminário Estadual de Mulheres Camponesas e Quilombolas, dezembro de 2016. .................................................................................................................... 51

Figura 12 - Mapa da Diáspora Africana para o Piemonte e Chapada Diamantina,2019 ....................................................................................................... 70

Figura 13 - Mapa Roteiro de Ouro Fino adaptado,2019 ........................................... 81

Figura 14 - Joaquim Pereira dos Santos, 2017 ....................................................... 93

Figura 15 - Mata Secundária preservada, 2019 ....................................................... 95

Figura 16 - Agricultor em Várzea Queimada ,2019 .................................................. 96

Figura 17 - Comunidade de Várzea Queimada, 2019 .............................................. 97

Figura 18 - Extração e coleta do licuri em Várzea Queimada, 2019 ......................... 98

Figura 19 - Senhor Henrique, agricultor da comunidade de Várzea Queimada, 2019 .................................................................................................................................. 99

Figura 20 - A agricultora Janailde Santos de Jesus - Planta manivas, 2019 .......... 101

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Figura 21 – Gildásio de Sena, morador da comunidade tecendo tarrafa , 2019 .... 103

Figura 22 - Moradia na Comunidade de Várzea Queimada, 2019..........................121

Figura 23 - Barriguda sagrada (Ceiba speciosa) do quintal de Raimunda dos Santos,

2019 .................................................................................................................123

Figura 24 - Maria de Jesus, rezadeira da comunidade, 2019 ................................. 125

Figura 25 - Maria Helena (Lena), moradora da Comunidade de Várzea Queimada, 2019 ........................................................................................................................ 127

Figura 26 - Maria Luiza, parteira, V. Queimada, 2019............................................128

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Comunidades quilombolas certificadas e Identificadas no TI Piemonte da

Diamantina - 2015 .................................................................................................... 31

Quadro 2 - Entrevistados na Comunidade de Várzea Queimada, Caém – BA (2019)

.................................................................................................................................. 37

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LISTA DE SIGLAS

ACQVQ Associação Quilombola da Comunidade de Várzea Queimada

APAMC Associação da Comunidade de Várzea Queimada

CAR Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional

COFASPI Cooperativa de Assistência à Agricultura Familiar Sustentável do

Piemonte

DAP Declaração de Aptidão ao Pronaf

FCP Fundação Cultural Palmares

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

MPA Movimento dos Pequenos Agricultores

PBQ Programa Brasil Quilombola

PNHR Programa Nacional de Habitação Rural

RTID Relatório Técnico de Identificação e Delimitação

SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

SEPROMI Secretaria de Promoção da Igualdade Racial

STF Supremo Tribunal Federal

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15

1 ITINERÁRIOS GEOGRÁFICOS NEGROS NO PIEMONTE DA DIAMANTINA .... 24

1.1 ECOS DE QUILOMBO NO SERTÃO BAIANO: UMA REFLEXÃO EM AFROESPACIALIDADE /VÁRZEA QUEIMADA -CAÉM .............................. 26

1.2 RELATOS E ATOS: UMA LEITURA ASSOCIATIVISTA DO COTIDIANO DA COMUNIDADE ............................................................................................. 41

1.3 ESTRUTURAÇÃO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DA COMUNIDADE: PRÁTICA DE DECISÕES ............................................................................. 46

1.3.1 Liderança e Participação das Mulheres na Política Quilombola de Várzea Queimada ................................................................... 50

1.4 INSTRUMENTALIZAÇÃO, EQUIPAMENTOS E BUSCA POR POLÍTICAS PÚBLICAS .................................................................................................... 52

2 A FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO E A ESPACIALIDADE AFRICANA NA BAHIA ............................................................................................. 56

2.1 NEGROS NOS "SERTÕES": DIÁSPORA E DESLOCAMENTO .................. 63

2.1.1 Piemonte e Interiorização: Caminhos e Lugares na Ocupação .......................................................................................................... 64

2.2 DINÂMICA SOCIAL DOS “POVOS NEGROS” NA LUTA PELO ESPAÇO NO BRASIL ......................................................................................................... 74

3 A ROÇA COMO UM CONSTRUCTO GEOGRÁFICO DA RURALIDADE NEGRA E QUILOMBOLA ...................................................................................................... 86

3.1. MATO, ROÇA E DIMENSIONAMENTO DA VIDA EM CURSO ................... 87

4 CIRCULARIDADE, IDENTIDADE E LUGARIDADE COSMOGÔNICA NEGRA . 108

4.1 CIRCULARIDADE E LUGARIDADE GEOGRÁFICA AFRO: ENTRE ESPAÇOS, ENTRE LUGARES .................................................................. 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 133

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 138

ANEXOS ................................................................................................................. 148

ANEXO A - Criação da Fundação Palmares .................................................... 148

ANEXO B – Ata de reunião ocorrida em 20/10/2011 na Associação Quiolmbola de Várzea Queimada , 2019 ....................................................................... 151

ANEXO C – Ata de reunião ocorrida em 17/08/2013 na Associação Quilombola de Várzea Queimada , 2019 ....................................................................... 152

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ANEXO D – Ata de reunião ocorrida em 24/10/2015 na Associação Quiolmbola de Várzea Queimada , 2019 ....................................................................... 154

ANEXO E – Festival do Licuri em Várzea Queimada , 2017 ............................ 155

ANEXO F – Participação no Fórum Social Mundial discutindo quilombos do Piemonte da Diamantina, 2018 .................................................................. 157

ANEXO G – Repente Várzea Queimada .......................................................... 158

ANEXO H – Carta do Pres. Lula aos grevistas de fome repercutida no movimento social na comunidade em agosto de 2018 ............................... 159

ANEXO I – Convite ao Grupo Jovem da comunidade para uma roda de conversa, 2019 ........................................................................................... 160

ANEXO J – Imagens da Comunidade de Várzea Queimada,2019 ................... 161

ANEXO K - Caminhos negros do Piemonte. Terreiro no município de Saúde/Celebração para Oxóssi, 2019...............................................................169

ANEXO L - Memórias de roça e vivência no povoado de Roçado, Jacobina -BA......................................................................................................................171

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INTRODUÇÃO

“Quando eu vim pra aqui, o meu pai me trouxe... mais minha mãe. Eu era... cheguei [...] com quatro anos de idade aqui. Eu tava nessa idade, não tinha ninguém aqui, não morava ninguém, não tinha...[...]E aqui... pa pa Piaba e pra ir por um matão que aqui ficava um matão, não tinha caminho. E a casa que eu morava de noite tinha que levantar pra trazer o galo do terreiro que puxava as paia da casa tudo.”

(Joaquim Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

O Sr. Joaquim Pereira dos Santos é ancião e morador da comunidade

quilombola de Várzea Queimada. Ele é considerado pelos membros do grupo uma

referência histórica, familiar e social, com status de autoridade responsável pela

orientação, manutenção e organização da comunidade. Ao representar uma

geografia do seu mundo de vivência acima, o Sr. Joaquim aciona elementos

fundamentais para o entendimento e o valor da experiência na produção da vida

sendo negro no Brasil. Ao acionar os termos ninguém e mato, ele demonstra que o

espaço geográfico seria a garantia e o elo necessário para a sua própria existência e

também da comunidade ao qual pertence. Para este intento, a família e a

comunidade representam, por sua vez, a territorialidade do grupo, o porto seguro

(lugar de reafirmação) e onde se desenvolverá as sociabilidades necessárias. O

vazio (ninguém) como simbolismo retrata de certa forma uma exigência anterior,

propositadamente definida sobre ampla área territorial nacional, também

condicionadora das formas de ocupação. Muniz Sodré (2004, p. 60) observa que:

Ao desbravar uma mata e construir uma casa com suas próprias mãos, o homem faz a experiência originária de um território, isto é, de um espaço por ele marcado, ganhando a autoridade de quem foi sujeito de uma ação e pode dela falar transitivamente. Em outras palavras, de modo operativo e diretamente relacionado a um complemento real-histórico.

Esta aventura da relação espacial no lugar diaspórico negro exigirá uma

projeção de mundo transplantada em seu corpo que, junto com ele, realizar –se- á

nas formas visíveis e presentes recriadas em seu cotidiano de luta.

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Assim, o Sr. Joaquim e a comunidade estabelecerão laços cujo

significado encontra lugar na memória e história do grupo, como registros e

potenciais marcadores futuros, avaliado por Sodré (2004), ao definir o valor histórico

do corpo negro sobre sua presença neste território.

Este mundo do praticado como experiência, tanto simbólica como de

sentido territorial ilustrado acima, pode nos revelar tanto proposições como avaliar

ações estabelecidas na produção e configuração dos espaços geográficos, inclusive

do mundo que se sonha. É através destas interações humanas, carregadas também

na subjetividade e objetividade do mundo, que os lugares e territórios vão adquirindo

conformidades, ao estabelecer deslocamentos, limites e sentidos. A vida em

comunidade é o mundo do praticado, mas também do imaginado, precedido de

saberes e conhecimentos responsáveis pelo guia e reafirmação cotidiana dos

códigos e valores responsáveis pelas atividades, tanto laborais, como do intelecto,

através também da cultura. O quilombo é, sobretudo, uma espacialidade referencial

e que, ao se projetar sobre o cotidiano da vida, aciona mecanismos validados (ou

não), através da pertença cotidiana e dialética do grupo ao qual representa.

No entanto, este movimento perpassa pelo diálogo entre escalas,

mundos, formas e extemporalidade do território, já que se trata de um processo

histórico diaspórico, envolvendo o Brasil, a África e a Europa. Reside nisso a

complexa estrutura territorial do Estado brasileiro, regido sobretudo pela

manutenção e permanência de um patrimonialismo protegido no legalismo

institucional com forte herança colonial. As comunidades quilombolas ou

remanescentes, na Bahia, encontram-se diante de enormes desafios, já que o seu

reconhecimento e titulação esbarram na própria lógica estatal nacional, em que, ao

mesmo tempo que lhe permite o reconhecimento, também cria limites burocráticos

que impedem a legitimidade ou o direito a autonomia territorial através da sua

titulação. O imbróglio jurídico-político exige etapas que passam dos órgãos

competentes à leniência de interesse ou não do Estado.

São desafios que colocam em cheque os critérios exigidos e a forma de

inferência, conceituação ou certificação das próprias comunidades.

Neste estudo, envolvendo comunidades rurais negras na Bahia, tendo

como referência e lócus de pesquisa a comunidade de Várzea Queimada, no

município de Caém, no Território do Piemonte da Diamantina na Bahia, busca-se

identificar, na prática socioespacial negra e rural de roça, a legitimidade e a

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alteridade espacial, levando em consideração a existencialidade manifesta, tanto na

ocupação quanto na vivência e memória, responsáveis pela atualização do presente,

quanto da permanência da comunidade no território e, consequentemente, seu

direito à pertença como valoração cultural e direcionadora da produção de sentidos

dos lugares.

O reconhecimento das comunidades quilombolas no Piemonte da

Diamantina é um processo em curso recente. Dezesseis anos após a constituição de

1988, ocorre o reconhecimento em sua etapa inicial, marcada sobretudo pela

autoidentificação e certificação. O reconhecimento das comunidades negras, no

âmbito do território, representou o início de um processo, que vai culminar na

ampliação e incessante busca por municípios vizinhos e outras comunidades rurais,

pela inserção política e cultural presentes no processo de reconhecimento. Ao

mesmo tempo, na Bahia, este reconhecimento já envolve um grande contingente de

lugares que, posteriormente, poderão ser alçados à categoria de territórios, cujas

titulações representam em termos legais a garantia oficial destas mesmas

comunidades no acesso à legitimidade e direitos na ocupação territorial do ponto de

vista identitário, étnico e cultural.

A titulação acaba por se tornar mais que a autoidentificação tornando,

convertendo-se num dos maiores desafios para estas comunidades, visto que um

emaranhado jurídico, envolvendo instâncias e políticas públicas, que sofrerão

variações, tanto em âmbito governamental como jurisdicional, contribuirão para o

congelamento e interrupção no avanço e inserção real das comunidades negras

rurais e urbanas.

Surge, assim, para além do conteúdo racial exigido pelo Estado, o maior

desafio para estas comunidades: o reconhecimento de sua terra de vivência, uma

vez que se encontra fortemente atrelada ao componente identitário e étnico, na

prática socioespacial de sua ocupação em roças, terreiros, vias, quintais e

manifestações simbólicas objetivadas na externalidade de sua cultura em

movimento. No entanto, um outro componente muito importante e que não é novo

nestas comunidades, mas que fundamenta e alimenta suas ações e projetos de

vida, está no espaço geográfico, o da roça.

Na maioria das comunidades negras rurais e até urbanas do Piemonte da

Diamantina, a roça é o elo e o lugar que permitirá estabelecer ligação com o

território, o mundo, a ancestralidade manifesta na sua religiosidade, a cultura e o

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trabalho. Ela possibilitará, também, que sua identidade opere e dialogue entre

variâncias, escalas e projeções diante da hegemônica territorialidade nacional.

A roça é o lugar, o território e o principal espaço africano no Brasil,

referenciado historicamente na territorialidade do quilombo. Estes múltiplos sentidos

acolhem seu significado, mesmo em uma provável transição na busca de sua

oficialidade através de uma titulação, o que permitiria, de certa forma, a obtenção da

autonomia que lhe impulsiona. No entanto, é na sua geograficidade que poderemos

entender o seu papel na configuração territorial brasileira, caracterizado na sua

permanência e imanência, independente do contexto político e social em que nos

deparamos no país.

O território não nasce com a colonização, mas dele mesmo se dissocia,

ao desconsiderar os aspectos presentes antes deste processo, inclusive a prática de

roça (roçagem) comum aos grupos indígenas. No entanto, reside neste, entre

tempos e mundos, o sentido que o termo vai adquirir ao longo da invasão colonial

como mata e, ao mesmo tempo, espaço, extensão geográfica ou substrato de uma

“ocupação” dos sertões. De certa forma, sua condição de fresta aparece como limiar

entre a fronteira produtiva, o sonho e o alcance almejado pelos explorados e,

consequentemente, uma reserva territorial do trabalho compulsório diante da

dimensão e configuração colonial (vide as relações resultantes do escravismo e

revestida de legalidades atuais, inclusive no rural).

A abordagem metodológica nesta pesquisa apresenta uma tríade na

análise, cujos temas principais envolvem a materialidade e a imaterialidade do

território brasileiro, mediante as visões sobre sua formação socioespacial, levando

em consideração autores como: Moura (1994), Moraes (2002), Reis (1996), Carril

(2006) e Neves (2007). A dimensão da lugaridade e consequente possibilidade de

desconstrução epistêmica presentes na objetividade hegemônica da representação

geográfica instaurada tem como enfoque principal autores presentes na

geograficidade dos fenômenos culturais, envolvendo a prática e a apropriação

geográfica dos lugares, através do pensamento de Relph (2012), Seamon (1996),

Casey (1993) e Massey (2008). Na etapa seguinte, serão destacados os passos da

espacialidade negra sob o âmbito da filosofia e cosmogonia africana e afro-

brasileira, reconhecendo na prática socioespacial de sua movimentação sobre o

território da ocupação colonial, tendo como referência o processo diáspórico africano

no Brasil e a ocupação espacial através dos rios, dos caminhos coloniais e das

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fugas, além da transtemporalidade da ancestralidade africana em povos de roças,

fundamentado em Ngoenha (1994), Sodré (2005 ) Fiabani (2005), Wanderley

(1998), Flavio Gomes (2015) e Walter (2009), na busca e entendimento sobre os

conhecimentos importantes presentes nas comunidades rurais negras e

quilombolas.

A inserção dos quilombos na formação territorial brasileira com base no

papel da materialidade na apropriação geográfica dos espaços rurais e o

reposicionamento conceitual dos significados operacionalizados para o

entendimento da espacialidade negra frente aos contextos estabelecidos leva em

consideração o lugar em movimento e junto com ele também nos deslocamos em

seu sentido diante do tempo e espaço de vivência. É um caminhar longo de

descobertas e afirmações, que ratificam sua validade geográfica. Chamamos aqui

de lugaridade este processo de significância e movimento, que permite ao sujeito

conectar-se aos outros espaços e/ou lugares, e também compor os novos lugares

que, por necessidade, caracterize o fenômeno da lugaridade na movimentação dos

espaços negros, mediante, principalmente, sua cosmovisão africana e prática

socioespacial identitária de roça e quilombola.

Os estudos que fundamentam esta pesquisa pautam-se nos conceitos de

Território e Lugar. O primeiro como multiescalar, o segundo como recorte categórico

que fundamenta o lugar de uma territorialidade marcada fortemente pelos elementos

identitários.

Este espaço de articulação presente nas relações socioterritoriais negras

do Piemonte da Diamantina é caracterizado por um cenário desafiador por expor, ao

mesmo tempo, as contradições dos modelos de desenvolvimento na Bahia e

também o impacto de políticas públicas de valorização e inclusão territorial das

comunidades remanescentes de quilombo e autoreferenciadas.

Segundo Moraes (2009), é nos estudos sobre a Geografia Histórica que

encontraremos elementos essenciais para uma abordagem que possa suprir o

vácuo existente nos estudos coloniais propriamente geográficos.

Hissa (2017) observa que nos “modos de fazer” ciência a ação e o sentido

da pesquisa acadêmica invariavelmente passa pelo sujeito e as interrogações que

lhe acompanham. Estas também estão presentes na vida e no cotidiano onde somos

confrontados e questionados pela forma como aceitamos ou recusamos os códigos

necessários para participar e questionar o mundo, interrogando a si próprio através

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de uma reinvenção criadora e cuja ciência terá o papel de desvendar. Evidente

dentro de uma sociedade que opera sobre a égide de um tempo cronometrado de

produção acadêmica e que segue uma lógica de ranking quase fabril, teremos

consequentemente uma limitação prática da criação, invenção e reflexão que serão

submetidos e /ou impossibilitados diante da força dos eventos operacionais,

envolvendo também uma totalidade operacional ameaçadora e que insiste em se

manifestar nas desigualdades e contradições que tentam impedir uma leitura crítica

da realidade.

É dentro deste contexto, de uma realidade onde o reconhecimento destas

comunidades e de uma legalidade estatal com forte caráter geográfico (definições,

limites, propriedade e dimensões), que os embates políticos e sociais emergem,

provocando disputas e interesses, o que exige da investigação um caráter sócio-

histórico e dialético da realidade, com base nas contradições do objeto pesquisado,

no âmbito das construções sociais.

Tratando-se de um grupo social com fortes traços culturais e identitários,

legitimadores de práticas espaciais que dialogam com a imaterialidade, a simbologia

e a ancestralidade, dentro de um território predominantemente hegemônico e

materialmente cristalizado, destaca-se o enfoque etnográfico, cuja espacialidade da

cultura cotidiana constitui um registro sistemático de modo de vida dos sujeitos

investigados e que acontece a partir de um processo interpretativo, como afirma

Ghedin e Franco (2008), tornando-se então fundamental para o entendimento da

espacialidade negra. Neste paradigma, a dicotomia entre sujeito e objeto, coleta e

análise de dados acabam por compor um processo de interação e simultaneidade

substanciado na reflexão.

Ainda sobre a abordagem metodológica, esta buscou superar dicotomias

e reposicionar nossa preocupação geográfica com a representação de um espaço

complexo e diverso que possa nos conduzir ao encontro das teorias. Sem dúvida, o

estabelecimento de novas concepções e abordagens dinâmicas, não estáticas e que

incluíssem os temas da diferença e da alteridade, da imagem, da estética e as

dimensões do espaço e do tempo instituíram grandes desafios.

Partindo do princípio que toda mudança pressupõe apropriação do

espaço e que no seu bojo está o fundamento social que lhe dá significado, a

garantia de participação da comunidade na discussão e a produção da análise

territorial concernente passam pelos instrumentos qualitativos, cujo tratamento

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permita que os comportamentos que impulsionam a busca por reconhecimento,

alteridade e direito ao espaço sejam revelados.

Desta forma, o caráter metodológico qualitativo da investigação amparou-

se na observação participante, reflexão, narrativas (oralidade), escuta sensível e

referenciada nas comunidades investigadas. A interpretação dos dados levou

também em consideração os resultados obtidos nos outros instrumentos da

pesquisa (questionários, entrevistas), objetivando a compreensão da realidade

frente aos diversos aspectos que caracterizam uma dada totalidade.

Neste sentido, a história dos povos e o presente como continuidade de

um pretenso progresso técnico unificador demonstram que as intenções e

propósitos, invariavelmente, passam pela ideia objetivada onde somente se realizará

na materialidade do espaço geográfico. Logo, os processos históricos demonstram

que há um conjunto de possibilidades de entendimento da organização social dos

espaços através de combinações reveladoras de caminhos a serem trilhados cuja

validade dará sentido à realidade constituída.

Inicialmente, traçando itinerários em capítulo inicial, situamos a linha

visível e que nos apontam conexões posteriores que ampliam e alimentam esta

análise mediante a estrutura apresentada, discutindo-se na sequência estruturas

que representam escalas de apropriação e que se manifestam em categorias

geográficas. No capítulo intitulado A Formação do Território Brasileiro e a

Espacialidade Africana na Bahia fundamenta a ocupação territorial brasileira, tendo

como pressuposto a ocupação e a configuração territorial sob a perspectiva e a

influência da diáspora africana no Brasil e na Bahia. Esta preocupação ocorre em

função de um questionamento aparentemente simples, mas que significa na verdade

uma lacuna aos estudos geográficos que tratam da questão quilombola. Qual a

origem destes povos africanos que vivem nas comunidades e povoados negros

quilombolas no interior do Piemonte da Diamantina já que a questão racial se

movimenta na direção da questão étnica? Como a roça e o negro aparecem e

fundamentam estudos envolvendo a formação territorial brasileira?

O capítulo intitulado A Roça como um Constructo Geográfico da

Ruralidade Negra e Quilombola discutiu o surgimento da roça e sua distribuição

espacial presente na sociabilidade rural baiana. Para tanto, destacaram-se os traços

fundantes relacionados aos deslocamentos da comunidade de Várzea Queimada, o

processo histórico de redefinição da comunidade, o movimentar-se politicamente e o

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diálogo do rural com o urbano, através dos moradores da roça e seu modo de vida,

no entorno de Jacobina e municípios vizinhos, além das diferentes assimilações

históricas do sentido espacial atribuído na vivência local.

O capítulo final discutiu A Circularidade, Identidade e Lugaridade

Cosmogônica Negra, que tem como referência principal o conhecimento griot e

cosmogônico vinculado a ancestralidade africana presente na cultura e nas

manifestações religiosas. O pressuposto da análise está vinculado ao pensamento

filosófico africano e aspectos presentes no pan-africanismo, calcada nas identidades

manifestas, considerando a diáspora negra dentro de um espaço fragmentário e

territorialmente delineado cujo processo identitário se constrói a partir de uma

territorialidade marcada fortemente pela imaterialidade e simbolismo. Aqui, o vivido

também surge como negação ou afirmação dos parâmetros institucionais

hegemônicos, dialoga com o sentido da permanência cultural e material,

reinventando-se na espacialidade transtemporal. A circularidade faz da

geograficidade quilombola e negra o mecanismo direcionador que dialoga com o

passado de seus ancestrais e o presente de sua prática socioespacial.

A identidade como referência e autodeclaração se constitui na base

fundamental para o reconhecimento das comunidades remanescentes quilombolas.

É o início de um processo cuja característica principal recorrerá ao início da

formação social brasileira resultante, neste caso, da retirada dos povos africanos

dos seus locais de origem e como contingente populacional determinante para a

configuração social do país. De comunidades isoladas e à margem das políticas

públicas, teremos a busca pela inserção e inclusão das mesmas, processo este que

será de grande preocupação para as instituições formativas e grupos sociais

preocupados com a discriminação racial, marginalização negra e situação de

vulnerabilidade social marcantes. A preocupação com a autoafirmação gerou a

necessidade de compreensão histórica, documental, geográfica e antropológica que

permitiriam a estas comunidades a inclusão e o direito legitimado pelo

reconhecimento. No entanto, o seu maior desafio está na questão da legalidade e

oficialidade do direito à terra, etapa final do processo de demarcação através da

titulação.

Neste sentido, do reconhecimento até à titulação, um díspare resultado

acaba por congelar o processo e reduzir às comunidades apenas a primeira etapa, a

de certificação. Ocorre que, as comunidades remanescentes quilombolas rurais

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ocupam espaços caracterizados como de roças. Esta “categoria” espacial está

fortemente ligada ao estar /permanecer e viver nestes lugares, o que remonta de

certa forma ao conteúdo cultural e prático social destas comunidades.

A questão ou tese desta proposta, motivo desta investigação, é identificar

e entender como a prática socioespacial de roça quilombola negra e rural estão

relacionadas com a identidade e a referência que legitimam sua ocupação e direito

ao território, a pertença. Assim, o caminho escolhido para esta tese parte da ideia de

uma formação social diaspórica na ocupação do sertão e surgimento do quilombo

como território de resistência, da roça como espaço da prática socioespacial, que vai

absorver o contingente populacional negro rural, a cosmogonia ou o conhecimento

referencial da identidade negra na ocupação dos espaços e finalmente a prática

socioespacial referente de um cotidiano e reafirmação negra na consolidação e

validação do seu território como grupo social. Desta forma, e mediante participação

em reuniões, seminários, entrevistas, celebrações, colheitas e ações políticas e

culturais realizadas pela comunidade, registramos pensamentos e sonhos, sempre

associados ao dimensionamento da prática de mundo elaborada

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“Ói, eu ando qualquer hora aqui. [...] Ando qualquer hora, pra qualquer canto, aqui se eu vim de lá pra cá, quantas vezes eu já dormi no mato, sozinho! Agora só não gosto de dormir sabe cuma é no relento. Se é de noite eu entro pra umas moita dessa aí, cava aí o barro ali, e num sendo fogo, num sendo nada, encosto ali, quando os galo começa me acordar, eu vivo e saio pra fora e vou fazer meu serviço”.

(Henrique Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

Os caminhos da colonização na Bahia não se resumem aos oficiais

(Estrada Real, rotas imperiais, caminhos do bandeirantismo) envolvendo somente o

interesse da coroa portuguesa, mas também muitas comunidades, vilas e povoados

acabaram compondo e se estabelecendo em virtude da inserção no sertão e a partir

da viabilidade de sobrevivência e dos diferentes papéis exercidos nas práticas

sociais estabelecidas sobre distintas regiões. O controle no movimento mediado

pelas terras coloniais e seus representantes outorgados, também, estariam sob um

complexo sistema de dispersão populacional conflitivo e ameaçador ao sistema

opressor com suas fugas e a eleição de nós ou redes conectivas com a metrópole, a

África e os sertões, ou interior do país. Neste sentido, o recôncavo baiano, a cidade

de Salvador e o oeste da África se constituíam em caminhos além fronteiras, cujo

limiar representava tanto o interesse de uma economia colonial como também a

negação da mesma em uma ordem paralela e produtora de novas comunidades ou

agrupamentos. Neste sentido, a diáspora representava não só a retirada e a

distribuição dos negros sobre o território, mas também o surgimento de novas

apropriações originadas na fuga e resistência, que posteriormente se destacariam

pela unidade comunitária de interesse comum e sobrevivência.

O movimento sobre rios, mata e estradas foram se multiplicando na

medida em que o território em formação ia avançando e as novas relações impostas

se tornariam mecanismos que justificassem a regulação social, através tanto de um

legalismo em instauração, como de sua redefinição. Este ponto, movimento,

deslocamento e regulação junto com os fluxos que lhe caracterizam coloca a

ocupação sob o viés de um internacionalismo à própria formação diaspórica deste

território e que acompanha paralelamente a costa africana de oeste a leste do

continente.

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A área geográfica do atual Território do Piemonte da Diamantina (Figura

1) torna-se de fato importante neste cenário por volta do século XVII, através dos

caminhos (estradas imperiais, entrepostos, rios) da ocupação e da mineração,

envolvendo também a Chapada Diamantina através das rotas de Vilas de Jacobina

e Rio de Contas para as regiões das Minas Gerais (IVO, 2012), representando

assim, a nova ordem de movimentação colonial, que gera deslocamentos em massa

ao interior da Bahia. Ao mesmo tempo, este interesse vai se constituir em uma

ordem comercial e social cujas relações de produção e trabalho tornariam algumas

vilas e povoações em pequenos centros nucleares de distribuição e consumo de

produtos fundamentais, tanto para manutenção do sistema colonial metropolitano

como para a alimentação e o funcionamento da população na própria colônia.

Assim, a agricultura, a pecuária e a manufatura se tornaram o apoio e também a

sustentação dos quilombos em franca expansão por todo o território colonial.

1.1 ECOS DE QUILOMBO NO SERTÃO BAIANO: UMA REFLEXÃO EM AFROESPACIALIDADE /VÁRZEA QUEIMADA –CAÉM

A comunidade remanescente quilombola de Várzea Queimada (Figuras 2 e

3) está localizada no município de Caém, estado da Bahia. Ela pertence ao Território

de Identidade Piemonte da Diamantina1, definido geograficamente como área onde

1 Nesta pesquisa, o território de identidade situa a localização da área geográfica denominada

Piemonte da Diamantina, onde está localizado o município de Caém e a comunidade remanescente quilombola de Várzea Queimada. Com forte presença das bases sociais, o território de identidade na Bahia se caracteriza pela corresponsabilidade e tomada de decisões voltadas para políticas públicas, objetivando a regionalização de ações conjuntas integrados por decisões descentralizadas e implementação de práticas de transformação e necessidades dos territórios a partir de representações extraídas da sociedade civil. No âmbito federal, estava atrelado aos territórios de Cidadania designados como: “O Territórios da Cidadania é uma estratégia de desenvolvimento regional sustentável e garantia de direitos sociais voltado às regiões do país que mais precisam, com objetivo de levar o desenvolvimento econômico e universalizar os programas básicos de cidadania. Trabalha com base na integração das ações do Governo Federal e dos governos estaduais e municipais, em um plano desenvolvido em cada território, com a participação da sociedade. Em cada território, um Conselho Territorial composto pelas três esferas governamentais e pela sociedade determinará um plano de desenvolvimento e uma agenda pactuada de ações.[...]Foram definidos conjuntos de municípios unidos pelas mesmas características econômicas e ambientais que tenham identidade e coesão social, cultural e geográfica. Maiores que o município e menores que o estado, os territórios conseguem demonstrar, de uma forma mais nítida, a realidade dos grupos sociais, das atividades econômicas e das instituições de cada localidade, o que facilita o planejamento de ações governamentais para o desenvolvimento dessas regiões. [...]Por sua concepção e gerenciamento, o Territórios da Cidadania não se limita em atacar problemas específicos com ações dirigidas. Ele combina diferentes ações de ministérios e governos estaduais e municipais, consolidando as relações

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estão agrupados os municípios por perfil social, político e cultural no centro norte do

Estado.

federativas, tornando mais eficiente a ação do poder público nos territórios. Por exemplo: serão desenvolvidas ações combinando os financiamentos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) com a ampliação da assistência técnica; a construção de estradas com a ampliação do Programa Luz para Todos; a recuperação da infraestrutura dos assentamentos com a ampliação do Bolsa Família; a implantação de Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) com a ampliação dos programas Saúde da Família, Farmácia Popular e Brasil Sorridente; e a construção de escolas com obras de saneamento básico e a construção de cisternas. A integração do conjunto de políticas públicas e dos investimentos previstos contribuirá para melhorar o IDH, evitar o êxodo rural e superar as desigualdades regionais. http://www.mda.gov.br/sitemda/sites/sitemda/files/ceazinepdf/3638408.pdf

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Figura 1: Territórios de Identidade do Estado da Bahia - 2017

Fonte: SEI, 2017, adaptado pelo autor.

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Figura 2: Localização do povoado de Várzea Queimada em Caém, no Estado da Bahia

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Figura 3: Localização da área de estudo no Território de Identidade do Piemonte da Diamantina

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Nesta área de representação geográfica e política referencial, temos as

seguintes comunidades reconhecidas como remanescentes quilombolas:

Município Comunidade

Caém

Piabas Pias Bom Jardim Monteiro Pau Seco Várzea Queimada

Capim Grosso

Barro Vermelho Cambueiro Volta

Jacobina

Cafelândia Quilombo urbano da Bananeira Baraúnas de Dentro Lages do Batata

Miguel Calmon

Covas / Mocambo dos Negros Saco

Mirangaba

Lagedo Coqueiros Dionísia Jatobá Nuguaçu Olhos D’água Palmeira Ponto Alegre Santa Cruz Solidade

Saúde

Gruta dos Paulos Lagedo

Várzea Nova Mulungu

Quadro 1 - Comunidades quilombolas certificadas e Identificadas no TI Piemonte da Diamantina - 2015

Fonte: Geografar (2011); Brasil (2015).

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Com cerca de 10.000 habitantes, o município de Caém2 está localizado

na unidade federativa do estado da Bahia, no Território de Identidade Piemonte da

Diamantina. O distrito de Caém, segundo o IBGE3, surgiu em função da

aglomeração de operários com suas famílias que trabalhavam na via férrea

instalada, em 1910, e concluída em 1918. Foi alçado à categoria de município em

1950, tornando-se emancipado do território de Jacobina.

A presença negra em Caém remonta ao período de ocupação e formação

do município de Jacobina, com o fluxo humano resultante dos caminhos da

mineração pelo outrora denominado rio da Prata, atual rio Caém, pertencente à

bacia hidrográfica do Rio Itapicuru. No município, predomina a agricultura de

subsistência e pecuária tradicional, onde várias comunidades se estabeleceram e se

organizaram através do trabalho exercido nas propriedades rurais, e que

caracterizam a estrutura fundiária local.

A Comunidade Quilombola (Figura 4) de Várzea Queimada em Caém

possui uma área geográfica correspondente a 3.481 km² e seu território situa-se no

semi-árido. No local vivem cerca de 120 famílias, com aproximadamente 800

moradores, cujas atividades produtivas envolvem o plantio da mandioca, feijão de

corda, criação de animais e extrativismo do licuri (palmeira).

Segundo José de Jesus, representante da Associação Comunitária, a

origem da comunidade ocorreu no século XIX, por volta de 1855, com a chegada

dos seus bisavós e antepassados.

2 O município apresenta índices de desenvolvimento social entre os mais baixos do estado da Bahia e

do Brasil com uma economia sobretudo rural. Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil, “A Bahia ocupa a 22ª posição entre as 27 unidades federativas brasileiras segundo o IDHM. [...]. Caém ocupa a 5253ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros segundo o IDHM.[...]. A renda per capita média de Caém cresceu 168,86% nas últimas duas décadas, passando de R$ 83,12, em 1991, para R$ 121,08, em 2000, e para R$ 223,48, em 2010. Isso equivale a uma taxa média anual de crescimento nesse período de 5,34%. A taxa média anual de crescimento foi de 4,27%, entre 1991 e 2000, e 6,32%, entre 2000 e 2010. A proporção de pessoas pobres, ou seja, com renda domiciliar per capita inferior a R$ 140,00 (a preços de agosto de 2010), passou de 85,84%, em 1991, para 70,39%, em 2000, e para 49,42%, em 2010. A evolução da desigualdade de renda nesses dois períodos pode ser descrita através do Índice de Gini, que passou de 0,45, em 1991, para 0,57, em 2000, e para 0,54, em 2010”. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/caem_ba. Acesso em: 08 mar. 2019. 3 Como caracterizado pelo IBGE (2018), “Em divisão territorial datada de 1-VII-1950, o distrito já

denominado Caém, figura no município de Jacobina e elevado à categoria de município com a denominação de Caém, pela lei estadual nº 1709, de 12-07-1962, desmembrado de Jacobina. Sede no antigo distrito de Caém. Constituído do distrito sede. Instalado em 07-04-1963 em divisão territorial datada de 31-XII-1963, o município é constituído do distrito sede”. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/bahia/caem.pdf. Acesso em: 09 set. 2017.

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Esta referência de temporalidade demonstra que a espacialidade negra,

sobretudo a quilombola, está na memória do/em movimento, justamente na busca

por lugares diante de uma sociedade, cuja "libertação" escrava significou na prática

a ausência de direito ao espaço, o que se constitui para a comunidade em uma luta

constante pelo acesso e legitimidade da terra, além de uma reafirmação da

resistência negra e quilombola.

A mobilização política da comunidade é um dos pontos mais importantes

frente ao alto grau de distorção social presente no município. Logo após o

reconhecimento em 2004 (Figuras 4 e 5), a comunidade passa a referenciar e

destacar os seus membros, deslocando o olhar predominantemente externo,

passando a se ver dentro do processo como agentes políticos responsáveis pela

busca de políticas públicas através das constantes mobilizações junto com o

Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).

1.2 QUESTÕES DE RESSEMANTIZAÇÃO E ASSIMILAÇÃO IDENTITÁRIA NEGRA E QUILOMBOLA

A regulamentação das terras ocupadas por quilombolas e o uso dos

termos definidores e classificatórios que permitem ou autorizam as comunidades

participarem deste processo demonstram que enormes contradições e distorções na

definição e adequação ao sistema classificatório jurídico vigente colocam estas

comunidades do Piemonte diante de enormes dificuldades na validação e finalização

dos processos e consequente julgamento, tanto político quanto dos interesses

econômicos dos municípios, pois ultrapassam a própria limitação das políticas

públicas presentes, cujo trato com estas comunidades remanescentes ainda não

estão estruturadas ou embasadas culturalmente e historicamente nos município

onde ocorrem. Assim, munidos da certidão que autoconfere o reconhecimento como

"remanescentes quilombolas", a comunidade de Várzea Queimada começa a trilhar

caminhos que redefinem sua condição diante das regras e limites legais, que tanto

exigirão redefinições dos sentidos na projeção futura e também nas ações imediatas

do presente.

Segundo a certificação (Figura 4) publicada em 15 de agosto de 2014, a

comunidade passa a ter a denominação de " remanescentes" e "quilombolas". Trata-

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se de termos cujo teor ultrapassam a origem de sua regulação presentes na

Constituição de 1988. Para Santos (2015, p.95), " o termo quilombo que antes era

imposto como uma denominação de uma organização criminosa reaparece agora

como uma organização de direito, reivindicada pelos próprios sujeitos quilombolas”.

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Figura 4 - Certificação de Reconhecimento como Comunidade Quilombola de Várzea Queimada em 15 de agosto de 2004. Fonte: Associação Quilombola da Comunidade de Várzea Queimada em Caém – BA.

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Figura 5 - Certificação de Reconhecimento como Comunidade Quilombola de Várzea Queimada, em 15 de agosto de 2004. Fonte: Blog Voz Camponesa – MPA, 2015.

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ENTREVISTADOS

Joaquim Pereira dos Santos

Luzia Maria de Jesus Avelino

Henrique Pereira dos Santos

Maria de Jesus

Antônio Rosa de Jesus

Maria Vitalina dos Reis

Maria de Liquinha

Ilário de Jesus Cruz

Maria Helena dos Santos da Cruz

Leonídia Jesus dos Santos

Gildásio de Sena

Felipe Nery de Jesus dos Santos

José Jesus dos Santos

Ronivaldo Alves de Oliveira

IDADE

90

88

82

78

78

72

66

59

54

53

50

49

46

41

LOCALIZAÇÃO

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Várzea Queimada

Km 30

Quadro 2 - Entrevistados na Comunidade de Várzea Queimada, Caém – BA (2019)

Fonte: Fábio Nunes de Jesus, 2019.

Uma vez que os processos históricos e políticos do Estado brasileiro

caracterizados sobretudo pela marginalizaçao da população negra gerou formas

malabaristas de naturalizar o racismo estruturalmente no pais, através da pretensa

ideia de miscigenação e identidade nacional, dentro destas mesmas violentas

representações, o reconhecimento pelo estado da existência negra e quilombola

demonstram ainda, como afirma Santos:

Ao acatarmos essas denominações, por reinvindicação nossa, mesmo sabendo que no passado elas nos foram impostas, nós só o fizemos porque somos capazes de ressignifcá-las. Tanto é que elas se transformaram do crime para o direito, do pejorativo para o afirmativo. Isso demonstra um refluxo filosófico que é um resultado direto da nossa incapacidade de pensar e de elaborar conceitos

circulantes. (SANTOS, 2015, p.95)

Ainda sobre os conceitos representativos acatados pelo Estado, o que na

verdade é uma condicionalidade negociada politicamente diante de um Congresso

Nacional conservador e mantenedor de práticas colonizadoras ainda presentes na

sociedade brasileira, Arruti (2005) faz um resgate do termo remanescentes e

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observa que ele inicialmente era usado para designar os indígenas , mas que, ao ser

usado para referenciar quilombos, apresenta mudança de sentido, visto que o

processo histórico e político apresenta distinção na forma como o Estado reconhece,

caracteriza e regula os grupos.

Ao apontar para os seus laços com o passado dessa linha mutacional, o termo ‘remanescentes’ reserva ou resgata para aqueles grupos indígenas alguma positividade, sem romper com a narrativa básica, fatalista e linear. No caso dos agrupamentos negros rurais, é possível reconhecer função semelhante. No ‘artigo 68’, o termo ‘remanescentes’ também surge para resolver a difícil relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico, em que a descendência não parece ser um laço suficiente. De forma semelhante à dos grupos indígenas, o emprego do termo implica a expectativa de encontrar, nas comunidades atuais, formas atualizadas dos antigos quilombos, mesmo que em função do lugar espelhado que o negro ocupa com relação ao índio inverta o valor atribuído àquelas ‘sobras’ e ‘restos’ de formas antepassadas. (ARRUTI, 2005, p.81)

Os termos remanescentes e quilombos, por sua vez, associados ao

cotidiano da comunidade, ultrapassaram o sentido conceitual, justamente a partir de

sua apropriação e prática política de uso pela própria comunidade. O sentido exigido

pelo Estado para o reconhecimento dos mesmos produzirá formas variadas de

encaixes e desencaixes necessários, atuando como forças que irão tensionar as

normatizações diante das relações políticas presentes no contexto de cada

comunidade.

O uso dos dois termos presentes na Constituição de 1988, apesar de

limitações que remontam a uma forma de controle social e político do Estado diante

dos povos alijados de políticas públicas e inserção social, amarram e envolvem

estas comunidade diante das várias instâncias (jurídicas e institucionais). Nas

comunidades, esses termos serão reinterpretados e vinculados a novas formas que

ampliam a organização social e política das mesmas.

Esta busca e reapropriação do sentido diante da imposição de

classificação e formatação de determinados grupos sociais ou povos excluídos pelo

Estado, segundo Arruti (2005, p. 81): "Mais do que isso, diz respeito, na prática, aos

grupos que estejam se organizando politicamente para garantir esses direitos e, por

isso, reivindicando tal nominação por parte do Estado".

José Jesus dos Santos, líder quilombola de Várzea Queimada, expressa

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muito bem este significado, mediante a condição social e política a qual a

comunidade estava submetida. Segundo ele, e por volta dos anos 1990, as

condições extremas de vivência na comunidade já reclamava uma necessidade de

mudança do quadro vivido.

Cada um por si e Deus por todos. [...] Aqui chegou energia em dois mil e seis. [...] ... a partir de muita luta ai[...]Não tinha água, não tinha energia elétrica, é... o que mais? [...]Não tinha transporte que hoje alguns tem carro, tem moto, né? Que naquela época, ou era animal ou então na perna...[...] É... noventa e oito. [...]Recente...[...]Olha, aqui o problema social era assim, no caso é... os pais tinham as crianças mas, não sabia se[...]ia viver. Porque era muito difícil, ou seja, não tinha agua, a agua que tinha era os tanques, né? Que você sabe como é no caso agua dos tanques, mesmo assim a gente tinha que agradecer quando tinha, quando não era isso, era o rio, o rio secava dai você ficava comprando carro pipa aqui sem saber de onde estava vindo essa água. Né? Então isso foi muito difi... dificultoso, né? E eu sempre tive essa, esse... essa consciência, né? Esse negocio de alguém tem que fazer alguma coisa Vendo acontecerem, né? [...]E observando, né? [...]Alguém tem que fazer... só que eu não tinha alguém que me estimulasse aquilo. [...]A escola não estimulava a luta, você lutar para desenvolver. A escola te ensina a ler e escrever. [...]A escola naquela época era para você aprender a ler e escrever... E isso eles faziam muito bem. (José Jesus dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

A ausência das condições mínimas, levando em consideração o tempo de

existência da comunidade, chega a ultrapassar um século, como atesta José de

Jesus e outros membros da comunidade. Levando em consideração que estas

políticas públicas muitas vezes emanam de ações federais, muito mais do que

municipais, observando- se o tempo destas ações em localidades vizinhas, até

demonstram que o isolamento não estava associado ao "ilhamento" da comunidade,

cujo deslocamento constante , diante da própria manutenção e sobrevivência, era

comuns, mas a um papel definido por atores sociais municipais que lhes colocavam

como "reservas de subserviência política eleitoreira", algo muito comum nos

municípios do interior da Bahia . Arruti (2005) observa que na ressemantização,

mesmo diante de um sentido constitucional que cria limites, a operacionalidade dos

sentidos que ela vai ter será amparada, sobretudo, pelas demandas sociais e luta

pelo reconhecimento de seus territórios.

O uso do termo, em ambos os casos, implica, para a população que o assume ( indígena ou negra ), a possibilidade de ocupar um novo lugar na relação com seus vizinhos, na política local, frente aos órgãos e às políticas governamentais no imaginário nacional [...].Em

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ambos os casos, trata-se de reconhecer, naqueles grupos - até então marginalizados -, um valor cultural absolutamente novo que, por ter origem em outro quadro de referências, era, até então, desconhecido deles mesmos[...] o termo " remanescente, no caso dos quilombos, pôde servir, ao final, como expressão formal da idéia [sic] de contemporaneidade dos quilombos. (ARRUTI, 2005, p.82).

O caráter mobilizador do processo encontrava cenário político federal

favorável, no entanto, em termos locais, distinções aparecem através das

comparações imediatas com as localidades vizinhas, inclusive reforçando o

preconceito de lugar (inferiorização), racial (negros metidos) e político (alvo de

campanhas e candidatos no entorno). Fica evidente que o parâmetro definidor do

autorreconhecimento ultrapassara o ato de definição racial/étnica e transformaria a

certificação em um manifesto e passaporte para a conquista e o acesso também aos

níveis e direitos de cidadania, que deveriam atender a todos os brasileiros

indistintamente.

É, não foi nem quando viu quando a água e nem quando teve a energia, eles vieram a partir de que nos conseguimos que a comunidade fosse certificada enquanto quilombola foi que dai saiu de lá e vieram para cá. [...]Ai quando foi em [...] vinte de agosto de dois mil e quatorze a comunidade foi reconhecida enquanto quilombo e que dai o pessoal falou assim, ó [...]saíram tudo daqui e vieram para cá. (José Jesus dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

Este interesse e movimentação manifestado por José de Jesus não

exprime ainda a real força destes eventos institucionais responsáveis pela mediação

ou execução dos processos envolvendo a certificação. Ao observar o interesse

político causado pelo reconhecimento, novas interações são estabelecidas ou

ampliadas e até confrontadas, o que de certa forma será uma luta permanente da

própria comunidade, uma vez que o contexto da política pode limitar ou ampliar,

dependendo do nível de mobilização do próprio grupo.

Desenha-se neste momento as atenções para a comunidade pelo fato de

ser rural e de roça, cujo papel político e caráter mobilizador terá destaque.

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1.2 RELATOS E ATOS: UMA LEITURA ASSOCIATIVISTA DO COTIDIANO DA COMUNIDADE

“Quando foi nos anos oitenta, oitenta e cinco pra cá, é, na época da ditadura vem aqui, veio aqui do Brasil, e vem com aqueles... naquela época nem sabia nem... era outro nome que se dava né, os programas de crédito que hoje seria o PRONAF, né? Disse “Ó, se vocês desmatar tanto, né? Tantos hectares então vocês vão ter é... tantos mil e vocês vão produzir mumuna” Então o banco é que dizia...[...]A farinha, aqui sempre foi farinha [...]Era o único dinheiro. [...]Nada, nada, nada, não tinha nada. Só que tem um, porém, que nessa época aqui chovia bastante então tudo que você plantava você ganhava a safra. [...]Ai você tinha abóbora, tinha o aipim, tinha banana tinha tudo né... Tinha muita caça né? O pessoal criava muita cabra, só minha vó, na época, só minha avó ela tinha não sei quantas cabeças né... acho que em torno de quinhentas cabeças. [...]Criava aqui nessa época aqui era parecido com fundo de pasto o pessoal criava tudo coletivo, não tinha cerca. [...] É, família então não tinha cerca. Então você ficava e criava tudo ai né... Que no fundo de pasto que é assim né? Nas praticas coletivas não tem cerca [...] veio aparecer aqui aposentados oitenta e oito para cá... O primeiro que chama Petronílio. [...] Com idades avançadas, e muitos, entendeu?”

(José Jesus dos Santos, Várzea Queimada 2019)

A preocupação do líder da comunidade, o Senhor José Jesus dos Santos,

ilustra, de forma aparentemente confusa, uma sobreposição de tempos capazes de

revelar as dificuldades ampliadas em função de uma organização social,

caracterizada sobretudo pelas limitações e condicionantes da subsistência, o que

aparecerá como resultado de superação nos anos 2000, quando a comunidade

passa a se organizar coletivamente.

O autorreconhecimento expresso e declarado, transcrito da Ata (Figura 4),

registrada em reunião, ocorrida em 17 de agosto de 2013, revela as dimensões

exigidas e /ou interpretadas como necessárias para o acesso à certificação. São

elas: a memória de senzala e escravidão, a fuga ou deslocamento para o mato, e na

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contemporaneidade, o direito à inclusão social através de políticas públicas e

amparo salvaguardado no documento de certificação.

O deslocamento dos casais que deram origem aos moradores e às

condições envolvendo posse, propriedades e o escravo como um bem patrimonial

reforçam e demonstram que as relações coronelistas nos sertões também estavam

estruturadas com base no próprio sistema escravista, como aponta Dantas (2007)

sobre bens e propriedades, na Comarca de Itapicuru, e também nos registros oficiais

que orientavam as relações de negócios diante da posse destes "bens ".

No índice analítico publicado em 1989 e intitulado Documentação jurídica

sobre o negro no Brasil , 1800-1888 (1989, p 63), produzido com base na Colleção

das Leis do Brazil, editorado pela Empresa Gráfica da Bahia, há relatos que

demonstram um controle judicial e normativo legal intenso, tanto envolvendo o negro

escravo como um bem ou propriedade negociável quanto como um ser marginal,

incapaz de responder por seus atos, cada vez mais "selvagens" e "ameaçadores",

levando inclusive seus donos a responderem nos tribunais sobre suas ações

tuteladas. Em torno da população negra e escrava no Brasil, uma série de

instrumentos jurídicos que lhes dizia respeito, mas sem que, necessariamente, os

próprios tivessem voz ou fossem consultados.

A condição negra como um bem "semovente" demonstra que a ordem

jurídica alimentava também uma ordem econômica e de valor ao negro como

propriedade, na qual inclusive os bancos aceitavam escravos " em pagamento

conciliatória ou judicialmente “, sendo que o "Banco poderia emprestar sobre

hipoteca". Desta forma e diante de um território ameaçador e imprevisível para o

negro, já que como objeto seria desprovido de valor humano, portanto, sem voz e

sem existência. As fugas para mocambos, quilombos ou áreas de matas tornaram-

se constantes e fundamentais para sua manutenção e sobrevivência no país.

Do final do século XIX para meados do século XX, era muito comum o

estabelecimento ou a organização de povoados negros em torno de famílias

agrupadas e frutos destes movimentos e relações. No entanto, os conflitos em torno

dos escravos como propriedade passaram também a ser relacionados ao valor e à

posse das terras, cujas autenticação e validade tornaram-se uma ameaça para estes

grupos, sendo a ocupação fruto da fuga e ou deslocamento através da grilagem e

dos latifúndios. Assim, a organização da comunidade em torno das relações

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familiares garantiriam um suporte na organização social e controle diante das

ameaças constantes, muitas vezes conduzidas pelos próprios agentes do Estado.

Passado mais de um século, a certificação e a titulação em Várzea

Queimada, de certa forma, também ocasiona um reencontro do Estado brasileiro

sob um outro viés temporal e de reconhecimento da sua negligência e perseguição

jurídica, envolvendo a história e a cultura dos povos negros no Brasil.

Em 20 de outubro de 2011, foi criada a Associação da Comunidade de

Várzea Queimada (APAMC), em Caém - BA, sendo José Jesus dos Santos seu

primeiro diretor presidente. Inicialmente, apresentava 18 (dezoito) membros, o que

posteriormente segue um curso de crescimento dos associados até o período atual.

Consta na Ata de abertura4 o propósito inicial do grupo e os princípios norteadores

do propósito:

Após aclamação dos eleitos, a diretoria e o conselho fiscal foram impossados, ficou decidido que a associação não terá distinção partidária, nem de cor e nem de religião e que todos os sócio vão trabalhar de forma coletiva sem fim lucrativos. (ANEXO B)

Figura 6 - Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017

Fonte: Fábio Nunes, 2017.

4 Ver em Anexo B.

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Figura 7- Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017

Fonte: Fábio Nunes, 2017.

Segue uma sequência de estruturação, adequação ao normativo

estabelecido pelo grupo, horários das reuniões, conselho fiscal, membros e

obrigações dos associados. Em 17 de agosto de 2013, a comunidade se reúne para

discutir autodefinição como comunidade negra remanescente quilombola.

O diretor presidente o senhor José Jesus dos Santos fez abertura da reunião dando boas vindas, a todos os presentes e pediu que todos se manifestassem sobre o assunto. Daí foi feito um rápido histórico sobre a comunidade de Várzea Queimada fundada em 1885 quando[...] aqui chegaram os casais Domingos Pereira dos Santos e Inês Maria de Jesus, vindos de uma senzala pertencente à fazenda Morro Redondo no município de Tanquinho de Feira Bahia na qual seu proprietário se chamava Coronel João Barbosa, as outras duas famílias fundadora, José Maurício dos Santos e Ricarda Maria de Jesus, Vigília Maria de Jesus e Manoel Maurício dos Santos vinheram das senzalas de fazendas de Caldeirão Grande, que na época pertencia ao território de Jacobina. Portanto nós moradores somos descendentes dessas três famílias que foram escravizadas pelo sistema, por tudo isso relatado, nós moradores queremos nosso auto reconhecimento Quilombola onde nossa história nos dá esse direito constitucional de afirmar e defender nossa identidade, seja na cultura, nas formas de trabalhos, nos modos de produção e de vida .Entendemos que com a garantia de direito conquistado neste caso, a nossa certificação podemos avançar dentro das políticas públicas por exemplos. Educação, saúde da família, posse da terra, lazer, e outras políticas do governo federal, como: Bolsa família, habitação, etc. Para concluir a reunião o diretor presidente perguntou para todos os presentes vocês se [...] auto define como negros, ou seja, como

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comunidade quilombola? todos responderam que sim, então segue em anexo a lista com as assinaturas de todos os presentes. Por tudo isso relatados pedimos da fundação cultural palmares nosso auto reconhecimento quilombolas. Nada mais havendo a tratar encerra-se a reunião e a presente ata onde eu Girleide Jesus dos Santos diretora administrativa lavrei -a e assino junto com todos. (ANEXO C)

Este manifestar-se através da autoidentificação (ANEXO C) tornou-se

fundamental, pois a comunidade passa a buscar nas políticas públicas, nos âmbitos

estadual e federal, formas de acesso aos bens e serviços públicos até então restritos

às esferas institucionais municipais, cujo acesso a comunidade encontrava

dificuldades. Esta mobilização por associativismo tornou-se fundamental no

momento em que parcela da comunidade dirigente começa a circular por outras

comunidades e socializar meios e informações via trâmites políticos de inserção.

Em 02 de abril de 2016, a comunidade manifesta preocupação com o

golpe que atingiu a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, identificando no processo

um ataque que prejudica aos mais pobres.

A mobilização política e social em torno da busca por inserção e pleito

das políticas públicas em âmbitos municipal, estadual ou federal, atrelada a uma

preocupação constante com a prática socioespacial na comunidade, permeia toda a

periodização e o registro das atas acessadas durante a pesquisa na comunidade.

Estas, em seus conteúdos e demonstrativos, sob efeito de registros entre os anos de

2011 e 2018, revelam frentes principais na luta por acesso ao Estado, através do

atendimento, melhoria e acolhimento das necessidades sociais da comunidade via

políticas públicas.

A forma como o Estado brasileiro se manifesta em Várzea Queimada e

nas comunidades rurais e quilombolas no território do Piemonte da Diamantina é, no

mínimo, do ponto de vista técnico –científico, caracterizado por ausências e

interrompimentos que contribuem muitas vezes para o esvaziamento de sentido dos

projetos aplicados. José Jesus dos Santos expõe dois momentos importantes no

âmbito da formação da comunidade e sua relação diante da improvável presença do

Estado. No primeiro momento, o estímulo ao desmatamento e à ampliação das

áreas de pasto no discursos dos agentes do Estado a partir das suas instituições

financeiras. Neste momento, o próprio capitalismo em curso criava e condicionava o

sistema produtivo na área , gerando incluídos e excluídos .A inserção em programas

ligados ao PRONAF e o acesso aos recursos financeiros e de investimentos

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estabeleciam limites envolvendo o quantitativo de hectares e que, muitas vezes,

impossibilitava a própria comunidade de participar , já que o padrão estabelecido

para a aquisição não contemplava as características do próprio sistema comunitário

e familiar de produção e organização econômica do grupo.

Abóbora, aipim, farinha e criação de cabras e galinhas, dentro de um

sistema comunitário familiar, cuja produção coletiva se destacava. As mercadorias

tornavam-se a própria moeda que regularia a vida dos seus moradores: a farinha. O

apego à terra como única entidade confiável e as constantes desconfianças para

com os agentes do Estado impediram que muitas vezes os membros da comunidade

tivessem acesso ao próprio Estado, cuja representação ameaçadora era

externalizada também a partir dos agentes latifundiários responsáveis pela grilagem

e ampliação da área de pasto no entorno da comunidade.

1.3 ESTRUTURAÇÃO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DA COMUNIDADE: PRÁTICA DE DECISÕES

Sobre o primeiro aspecto caracterizador presente, temos a busca pela

estrutura da Associação em que se busca a sua regularização, visando atender aos

padrões e normas de validação para sua funcionalidade, surgindo inicialmente como

Associação Comunitária, em outubro de 2011. Durante o ano de 2012, a

preocupação será com o estatuto e o registro da Associação. Em 2013, a pauta

Comunidade Remanescente de Quilombo começa a aparecer sob forma de

processo continuado, avançando consequentemente na medida em que a

comunidade se insere politicamente e concorre aos editais vigentes. Em 17 de

agosto de 2013, a comunidade já busca na autoidentificação o reconhecimento de

sua história quilombola e origem negra. Neste momento, o processo se intensifica e

a mobilização política passa a ter significado também como ethos cultural e valor

simbólico nas reivindicações do grupo, o que irá se revelar na medida em que o

processo de reconhecimento avança. A Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP)

torna-se uma preocupação constante em praticamente todas as reuniões, cujos

associados são lembrados da necessidade de regularização para que a Associação

possa concorrer ou ter acesso aos editais e programas lançados pelos governos.

Nesta estrutura, o apoio do MPA permite a troca de informações sobre a estrutura e

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funcionamento dos trâmites associativos e ao mesmo tempo coloca a comunidade

em uma rede, tanto formativa quanto de circulação e busca por autonomia. Em 15 de

agosto de 2014, a Fundação Palmares reconhece a comunidade como

remanescente quilombola e, em 07 de maio de 2016, a comunidade altera o seu

estatuto da Associação dos Pequenos Agricultores do Município de Caém para

Associação Quilombola da Comunidade de Várzea Queimada.

Os associados escolhem por aclamação para presidir os trabalhos, o Sr.Felipe Nery Jesus dos Santos. Aberta a sessão, após verificação do quorum, o presidente apresentou a ordem do dia da assembleia geral ordinária. A ordem do dia compete sob objetivo único tratar da alteração do estatuto da associação da comunidade de Várzea Queimada. Aos quinze de agosto de dois mil e quatorze a comunidade de Várzea Queimada situada no município de Caém Bahia, foi certificada como comunidade remanescente de quilombo pela fundação cultural palmares, órgão do Governo Federal e por este motivo é que os associados moradores da comunidade acima citada reunidos em assembleia geral ordinária para alterar o estatuto da associação que antes se chamava Associação da Comunidade de Várzea Queimada - APAMC, agora passando a se chamar Associação Quilombola da Comunidade de Várzea Queimada denominada (ACQVQ), e com o novo estatuto descrevem-se os artigos de acordo com as necessidades básica da comunidade e dos associados , autodefinido como remanescente de quilombo e assim segundo a legislação vigente. (ANEXO D)

Com a certificação, um cenário de articulação e protagonismo reposiciona

a comunidade, que passa a fazer parte dos interesses e disputas políticas no

município, e até mesmo do Estado.

Neste sentido, a formação política e social via associativismo permitiu que

a comunidade interagisse com outros lugares, povos e troca de experiências, que

possibilitaram uma participação política crítica e acionadora dos poderes

institucionais. Ainda, em 2012, surgem os primeiros cursos de formação e eventos

divulgados na comunidade. Entre eles, o curso de Agroecologia Regional via MPA e

Fórum da Água, na sede do município em Caém.

Em 2013, entre os eventos anunciados para a comunidade, está o curso

de Teoria Política Latino- Americana, em São Paulo, e também o anúncio da

Jornada dos Trabalhadores, em Brasília, no mesmo ano. Em 2015, o grupo participa

de Encontro do MPA, na cidade de Feira de Santana- BA.O líder José de Jesus vai a

São Paulo e participa do curso de Teoria Política Latino- Americana, com viagem

para a Bolívia, visando intercâmbio e troca de experiências.

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Em 2016, a preocupação centrou-se na busca pelo mapeamento e

demarcação territorial da área quilombola da comunidade, com debate sobre a

questão em evento ocorrido em Capim Grosso – BA, discutindo os trâmites

processuais necessários. Este processo implicará na validação e na construção das

habitações rurais via Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). Neste mesmo

ano, a comunidade manifesta preocupação com o prosseguimento dos programas

sociais em função do risco de deposição da presidenta Dilma Rousseff, o que

posteriormente vai ocorrer, de fato, junto com a aludida suspensão e cortes no

programa. Em função da adequação ao reconhecimento e certificação da

comunidade como quilombo remanescente, o estatuto é alterado, adequando-se aos

critérios da nova realidade e denominação. Além disso, a formação política da

juventude e as novas pautas atreladas ao ambientalismo (a questão dos resíduos e

a preservação do rio Itapicuru-Mirim), a paralisação dos programas sociais e a

Reforma da Previdência no governo Temer foram os principais pontos debatidos.

Figura 8 - Inauguração da Casa de Farinha Comunitária de Várzea Queimada, 2015

Fonte: Blog Voz Camponesa – MPA, 2015

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Em 2017, lideranças políticas estaduais e municipais participam da

inauguração das casas do PNHR (Figura 8), além de ampliar a conexão do grupo

com outras comunidades, como a do quilombo da Bananeira, no município de

Jacobina –BA, e participação de D. Maria Dalva, na reunião de 01/07/2017,

liderança da Grota do Brito. Neste mesmo ano, ocorre o Festival do Licuri (ANEXO

E), evento realizado pela COOPES, CAR e Governo do Estado da Bahia, junto com

o MPA.

Figura 9 - Inauguração do Minha Casa Minha Vida Rural na Comunidade, 2018

Fonte: Fábio Nunes, 2018.

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Figura 10 - Inauguração do Minha Casa Minha Vida Rural na Comunidade, 2018

Fonte: Fábio Nunes, 2018.

A questão mineral e o julgamento do STF sobre o processo, que

questiona a validade do reconhecimento das comunidades remanescentes

quilombolas, geram sua anulação, através de recurso impetrado pelo Partido

Democratas (DEM), tornando-se objeto de preocupação na comunidade.

Em 2018, a comunidade avança no processo de demarcação e envia

membro para participar na capital, Brasília, das discussões no Fórum Mundial da

Água. Em reunião, o grupo conjectura sobre o que está por trás da greve dos

caminhoneiros.

1.3.1 Liderança e Participação das Mulheres na Política Quilombola de Várzea Queimada

A participação cada vez maior das mulheres envolvendo o campo político

de discussão e ação é um ponto-chave e importante na formação e no

amadurecimento do movimento político de Várzea Queimada. Em 2014, o Dia da

Mulher começa a ser destacado e lembrado sequencialmente nos anos posteriores.

Este ponto é fundamental para o entendimento do processo de mobilização da

comunidade, já que as mulheres de Várzea Queimada serão as responsáveis pela

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produção de eventos e decisões alusivas ao papel da mulher negra, quilombola e

rural. Em 15 de março de 2015, o grupo reitera a participação no Encontro de

Mulheres Feministas, em Vitória da Conquista. O grupo menciona preocupação com

a questão da intolerância religiosa e propõe ainda uma reunião com o Secretário de

Educação de Caém- BA para discutir a implantação de uma creche na comunidade.

Figura 11 - Seminário Estadual de Mulheres Camponesas e Quilombolas, dezembro de 2016.

Fonte: Saiane Moreira dos Santos, 2016.

É neste processo de reafirmação e legitimidade que, em 2016, a

comunidade organiza conjuntamente com outras comunidades e MPA o I Seminário

Estadual de Mulheres Camponesas (Figura 11). O evento envolveu as comunidades

de Várzea Queimada, em Caém, o quilombo Tijuaçu, de Senhor do Bonfim, e o

quilombo urbano da Bananeira, através de sua associação Quilombo-Erê. Foi

sediado na comunidade de Cambueiro, pertencente ao município de Capim Grosso.

Envolveu ainda os municípios próximos a Cáem e objetivou problematizar a onda

conservadora e o aumento dos casos de feminicídios no Estado da Bahia. Realizado

entre os dias 03,04 e 05 de dezembro de 2016, foi discutido o risco social em que se

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encontram as mulheres negras, principalmente diante do atual quadro em que se

encontra a Bahia:

A escolha dos temas foi baseada nos altos índices de feminicídio por exemplo, em que, hoje no Brasil, cerca de 61% das mulheres que são mortas nestas condições são negras, bem como, podemos ver que esses dados vão para 87% quando se refere a região Nordeste. No caso da Bahia, estes dados sobre mortes por conflitos de gênero, são bem assustadores, pois, este é o segundo Estado no ranking nacional de mais mortes, que tem é o 1º a nível de nordeste. Como diz o ditado, “contra fatos não há argumentos” e nestes casos especifico podemos notar que não há coincidência nestes números e sim o caráter machista e racista desta sociedade, pois, facilmente pode ser detectado na realidade que a opressão e a exploração violenta vivida por estas mulheres (negra, quilombola e camponesa) se dá, de modo em geral, de forma mais acentuada e é invisibilizada pelas condições sociais de pauperização em que estás enfrentam no seu dia a dia. (O MPA,2019)

O combate ao machismo e ao patriarcado é uma das pautas destacadas

nas palestras e debates. O risco social nestas comunidades está atrelado fortemente

aos níveis de carências resultantes da falta de investimentos públicos e segurança

social resultantes.

Em 2016, o MPA e a Associação anunciam um projeto de proteção das

mulheres contra a violência doméstica e participam de evento na cidade de Juazeiro

– BA, visando participação em curso de formação sobre o Dia Internacional da

Mulher. Ainda em 2016, foi destacado um curso de formação para as mulheres

quilombolas.

1.4 INSTRUMENTALIZAÇÃO, EQUIPAMENTOS E BUSCA POR POLÍTICAS PÚBLICAS

A ocupação espacial e produtiva do território quilombola de Várzea

Queimada demonstra que os longos períodos de estiagem exigem uma busca

constante no manejo da produção e uso dos seus recursos naturais agrícolas,

limitados tanto ao sustento familiar como de promoção econômica e social da

própria comunidade. O acionamento do Estado via instâncias é uma constante,

principalmente diante do quadro de abandono e ausência de projeto político

municipal que implemente projetos e ações de melhorias, sem uma situação de

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dependência política clientelista e partidária. O quadro de autonomia diante do

próprio município gera um impacto político onde a comunidade torna-se alvo de

interesses e disputas e, ao mesmo tempo, de receios quanto ao uso político da

mesma pelas figuras centrais da política em seu entorno. O vínculo com o MPA

deslocou o papel secundário da comunidade na área para um papel central cuja

importância para os membros do quilombo ultrapassam os limites do povoado, o que

amplia a postura de cobrança e exigência contínua sobre as autoridades no direito

ao acesso e atendimento de seus reclames. Entre as pautas e projeções por

período, temos em 2013 uma preocupação com a estrutura da Casa de Farinha e

aquisição de equipamentos industriais para a produção, um projeto de instalação de

uma padaria e construção de uma garagem para o trator que beneficia a

comunidade. Em 2015, em parceria com a COFASP, a comunidade adquire 22

(vinte e duas) cisternas (bica e produção) e assina contrato com a Caixa Econômica

Federal para a construção de casas rurais pelo Programa Nacional de Habitação

Rural (PNHR) do governo federal.

Em 2016, é anunciada a instalação de uma cooperativa em Capim

Grosso, onde os produtos das comunidades poderão ser expostos e negociados.

Neste mesmo ano, é anunciada a conclusão da Casa do Mel e a aquisição de uma

empacotadeira de farinha. Em 2017, a comunidade é beneficiada junto com outras

pelo ganho no Edital do Licuri via CAR e com recursos que somam R$ 283 000,00

(duzentos e oitenta e três mil reais) para os projetos. A inauguração das casas

construídas via PNHR ocorreu em 19 de maio de 2017.Em 2018, a Associação

concorre aos Editais de interesse em mandiocultura, oleaginosas e também do

Edital Sementes Crioulas.

A busca pela inserção nas políticas públicas e a apreensão dos processos

envolvendo o reconhecimento da comunidade como protagonista de suas próprias

demandas colocam Várzea Queimada diante de grandes desafios, envolvendo o

sentido do reconhecimento, o que vai exigir também uma mudança social, cultural e

política, ao se adequar aos parâmetros exigidos pelo próprio Estado, que negara o

direito de seus membros como cidadãos durante sua formação. Estes processos

envolvem também uma reavaliação das territorialidades no enfrentamento político

diante de um território hegemonicamente excludente e hierarquicamente

estruturado, uma vez que a história do território, abrangendo o Piemonte da

Diamantina, é marcada por centralidades políticas, envolvendo as atividades

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produtivas tanto comerciais , como da mineração e da pecuária, o que de certa

forma restringe a uma discussão envolvendo a questão das práticas agrícolas e

consequente importância nas pautas sobre o desenvolvimento regional e das

próprias comunidades rurais.

Entre o Estado e os cidadãos há barreiras institucionalizadas que colocam

os indivíduos diante de uma estrutura burocrática, mantenedora de um sistema que

naturaliza a exclusão e define pelo lugar o valor de cada comunidade ou indivíduo a

partir destes processos.

As comunidades quilombolas da Bahia apresentam dentro do parâmetro

exigido pelo Estado segregador, historicamente definido, índices alarmantes de

analfabetismo e abandono escolar, além de sofrerem com a ausência de políticas

públicas que possam amparar o risco social constante a que são submetidas.

Professor Ronivaldo faz uma reflexão importante:

Toda a comunidade. Toda a comunidade reclamava. Toda a comunidade passava por, até por essa necessidade, hoje não. Porque eles se organizaram. [...]A, a associação deles aqui muito organizada [...]Muito organizada, eles buscam, eles não ficam parados. [...] Agora assim, eu vejo um pecado, um pecado por parte do poder público municipal de todos que passam, eu não estou culpando essa gestão agora. [...]Todos que passam. Tem um olhar diferenciado para, para a questão de emprego e renda também [...]Né? Da comunidade [...]É. Eu não estou falando só apenas do assistencialismo[...] As pessoas precisam ter a sua dignidade [...] Para se manter. [...] Vamos supor o que é que tem que a comunidade está recebendo por parte do governo estadual, do governo federal. [...] O municipal entrar com complemento de algo, entendeu? Pra aquelas famílias que não foram atendidas pelo estado ou pela federação. [...]Ser atendidas pelo munícipio, entendeu? [...] Porque está na roça, eu vou comprar por barganha sabendo que tem qualidade, mas na frente vender o dobro, né? [...] Mas, [...] Seus produtos estão aqui, você vai expor seus produtos aqui, você produziu? Vai expor seu produto no mercado do produtor. [...]Né? Para que não chegue a absurdos, a gente, por exemplo, eu já presenciei absurdos de uma mãe de família ir pra feira com bocapiu ou um cesto que a gente chama aqui bocapiu, sacola com quatro, cinco dúzia de ovos e no meio do caminho a fiscalização pegar e quebrar essas quatro, cinco dúzias de ovos... [...] O Estado cria uma lógica de fiscalização que não se adequa a lógica de vivencia, né? Da...[...] Do campo. [...] Pegar e levar um pra beiju roça, da roça, pra rua e se estiver ocorrendo ai fiscalização da, da ADAB lá os outros órgãos do governo, aquilo ali é complicado [...] Porque tem que passar por, por, por vigilância sanitária por isso, por aquilo, não tem que acontecer tudo isso porque o governo nunca participa ou não, não, não regulariza [...]Para que o produtor possa trabalhar [...] Se a roça não produzir a cidade não come (risos) se a roça não produz

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como é que gente vai comer? (Ronivaldo Alves de Oliveira, Km 30, 2019)

Podemos destacar a partir da visão do Prof. Ronivaldo Alves de Oliveira

uma preocupação que caracteriza a comunidade de Várzea Queimada e

circunvizinhança, a busca por uma inserção no mercado levando em consideração

às necessidade das próprias comunidades e seus limites operacionais. Para isso, é

importante destacar que a excludência econômica gera também a inviabilidade

produtiva, promovendo distorções sociais e o aumento da pobreza. Um dos

principais problemas enfrentados por Várzea Queimada e que seus moradores

objetivam superar é justamente o escoamento e a participação maior no mercado

interno da região.

Neste sentido, quando estas comunidades ultrapassam estas barreiras,

elas contribuem por expor a própria lógica definidora de tal configuração. Os

moradores de Várzea Queimada, ao tentarem ocupar estes espaços ultrapassando

estes limites, possibilitam reposicionar-se diante do lugar geográfico na formação

socioespacial que ocupam ou criam, da discussão histórica envolvendo identidades

de referência e afirmação, além do papel que desejam ter diante da produção

socioeconômica rural.

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"Tinha um um um homem que morava aqui que era mais véi do que eu, que cantava uma cantiga dos escravo [...] Que tinha um escravo [...] Que era esperto[...] Quando a escrava... vendia muita coisa tinha... Sinhá nego que também qué [...] Tudo que era...[...]Nego também qué [...] Nego também tinha, vocês não, vocês não... “esse nego é ousado, tudo que via ele qué” [...] E amarrado no porão [...] Mais uma surra e falava “canta, nego”. “Óia nego qué, óia nego qué. Quando eu vê... quando eu vejo muié bunita, fico todo saracutico de tanto que ela me qué” E lhape lhape lhape “Canta, nego”. [...] e o nego ganhava lá amarrado [...] Ele cantando e apanhando [...] Um de lá e o outro de cá [...] Num é "

(Joaquim Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

A presença negra na formação socioespacial brasileira possui uma forte

caracterização vinculada ao processo escravista. Esta construção referenda um

imaginário constituído nos valores nacionais, que contribuiu por deslocar o sentido

da real participação negra na produção material do território brasileiro.

Alia-se a isso o simbolismo da escravidão dentro deste processo, gerando

também representações acerca do imaginário brasileiro sobre o negro. O senhor

Joaquim Pereira dos Santos nos lembra, a partir de seu relato acima, que havia um

julgamento moral atrelado ao lugar ocupado por este negro, o que também limitava e

condicionava o seu existir cotidianamente. Por sua vez, revela também neste plano

do corpo negro, no espaço geográfico, a dimensão prisional da circulação sobre o

território de práticas coloniais que lhe seguia. Portanto, o seu papel já estava pré-

definido a partir das marcas seculares impressas em seus antepassados pelos

escravocratas, também instituído pelo futuro Estado brasileiro que omitia

consequentemente sua existência como membro desta sociedade em construção.

Esta espacialidade negra não poderá ser compreendida mediante o olhar

fragmentado sobre seu estabelecimento como grupo humano no Brasil desvinculado

de uma dinâmica socioespacial com características híbridas e dialógicas, visto que,

frente ao padrão e modelo hegemônico de normatização imposta, exigia-lhes a

operacionalização imediata de técnicas e consequentemente uma avaliação do seu

sentido e apropriação.

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Para isto, torna-se necessário reavaliar esta construção territorial à luz

dos processos vinculantes e nacionalmente instituídos. Neste sentido, a produção

agrícola, a urbanização, a produção econômica e os aparelhos institucionais

tornaram-se motores de uma funcionalidade adequada ao ideário pujante de um

espaço nacional através da eleição de um aparato técnico, que representava

também os ideais de uma modernidade anunciadora, cuja redenção seria além da

continuidade da participação brasileira no sistema capitalista em expansão, do

fortalecimento da industrialização e, consequentemente, do território em formação.

Se o território apresenta um caráter extremamente funcionalista, o seu

sentido e oficialidade representa também a simulação de uma ordem política e

econômica condutora de sua delimitação, já que a centralidade e os limites

operacionais da época tinham como ponto inicial as cidades brasileiras e as

metrópoles europeias.

Portanto, a ocupação exigia uma produção de espacialidades e

construção de objetos simbólicos para dotar o território de uma aparência e

naturalmente permitir o seu imediato reconhecimento e poder. Se a cidade

protagonizava a produção de um “acontecer” sobre o território ou nos diversos

territórios, já que na prática havia uma confusa administração das elites locais frente

aos ditames oficiais, o que nos indica especificidades na configuração territorial

brasileira, as áreas rurais não pareciam estar totalmente submissas às orientações,

já que no seu interior emergiam constantes conflitos e ao mesmo tempo

representava também a sustentação econômica da colônia.

Este ir e vir entre uma litoralização e interiorização constituía o cerne de

todo um fluxo vinculado ao movimento de negros, colonos e indígenas em torno de

ciclos produtivos. A circulação resultante permitirá que os objetos culturais

materializados através do projeto europeu de ocupação no território brasileiro,

apresente uma fixação dos agrupamentos humanos ao espaço. Evidente, a

mobilidade e o tráfego indicavam os entraves e avanços desta ocupação.

Por sua vez, é no entre espaços (rurais e urbanos, sertão e litoral, cidades

e vilas, capitanias e metrópole), entre relações (negros, indígenas e brancos,

colonos e escravos, ricos e pobres, intelectuais, políticos e o povo) que podemos

encontrar uma territorialidade reveladora da reificação e cristalização dos limites

espaciais definidos.

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Neste cenário conflituoso, o território brasileiro colonial e capitalista será

palco de insatisfações dos grupos sociais subalternos já que, tanto no campo como

na cidade, estavam alijados de direitos e representatividades. A elite brasileira

estabelecerá o território como prioridade equipando as instituições mediadas por

agentes políticos e jurídicos que se apropriaram e criaram determinações legalistas

que fortaleciam seus interesses.

Segundo Carril:

A análise da formação territorial capitalista brasileira é fundamental para a compreensão da segregação espacial e racial. Partimos da premissa de que a condição social do negro brasileiro, instituída no processo de escravidão, manteve -se sendo parte contínua das bases de produção e de reprodução do capital na agricultura e, mais tarde, no espaço urbano (CARRIL, 2006, p. 54)

A formação dos quilombos no Brasil acompanha a ocupação territorial e a

designação produtiva das diversas áreas do país em momentos distintos ou

simultâneos num contexto capitalista fortemente marcado pelo escravismo. O termo

denota espacialidade nas ações e territorialidade na efetivação de uma ordem social

pautada num conjunto de valores coletivos e de busca legitima de alteridade.

Podemos destacar na visão de Fiabani (2005, p. 253), entre os fatores

determinantes para o seu surgimento, “o assinalado desejo latente de autonomia do

cativo, que jamais deixou de se opor à apropriação de sua liberdade-força de

trabalho” e as “condições geográficas” vigentes onde havia:

[...] território com relevo favorável – densas matas, presença de rios, montanhas escarpadas, pântanos e mangues – facilitava o estabelecimento e a estabilidade de um quilombo, dificultando sua identificação-repressão (FIABANI,2005, p. 254).

Aqui, a localização e o caráter estratégico de uma prática espacial

revelavam a busca de uma outra representação socioespacial calcada no domínio

de técnicas e conhecimento sobre o território necessários a defesa do grupo.

No entanto, a organização territorial do quilombo apresentava em seu

interior cativos e não cativos, visto que estava amparado na rejeição aos maus tratos

e esforços produtivos constantes nas fazendas. Fiabani (2005) destaca ainda que o

contingente populacional se dividia entre negros, indígenas, soldados deserdados e

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ex-colonos, numa síntese conjunta dos problemas no interior da colônia.

Segundo Reis:

A fuga que levava à formação de grupos escravos fugidos, aos quais frequentemente se associavam outras personagens sociais, aconteceu nas Américas onde vicejou a escravidão. Tinha nomes diferentes: na América espanhola, palenques, cumbes etc.; na inglesa, marrons; na francesa grand marronage (para diferenciar da pett marronage, a fuga individual, em geral temporária). No Brasil esses grupos eram chamados principalmente quilombos e mocambos e seus membros, quilombolas, calhambolas ou mocambeiros (REIS, 1996, p. 10).

A presença negra no Brasil historicamente remonta ao século XVI e na

medida em que se estruturava o sistema produtivo ampliava-se o contingente

humano a ponto de representar uma maioria populacional em algumas capitanias;

Bahia, Ilhéus e Pernambuco.

Moraes (2005) afirma que o trabalho compulsório fundamentou o projeto

hegemônico europeu e a consequente instauração do sistema capitalista no Brasil.

Técnica e produção ao mesmo tempo instaladas sobre uma base espacial

escravocrata geraria invariavelmente distinções quanto à sua interpretação e

validação, já que desprovido de liberdade, o negro participava como objeto na

produção de objetos espaciais sobre o território e paralelamente recriava seu espaço

africano por aqui.

Para Reis (1996), o lugar de formação de uma sociedade afro-brasileira

passava também pela senzala. O que seria a senzala no arranjo do espaço colonial

senão um espaço reserva do casarão colonial?

As resistências oferecidas pelos escravos vão sendo compreendidas por sua relação com os níveis de tensões encontrados no período escravista e entre as regiões onde a economia se dinamizara pela maior utilização da mão-de-obra negra. Analisa-se, também, a contribuição da formação de quilombos para a ruína do sistema. No próprio bojo do processo de crise da instituição escravista haveria uma teia de embates que se constituíam à medida que se ampliavam: o apoio aos movimentos abolicionistas, o crescimento das fugas e as investidas dos escravos contra seus senhores tornavam-se constantes (CARRIL, 2006, p. 46).

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Sem dúvida, a projeção material do espaço colonial nos revela em suas

entranhas o sentido de um território que objetivado no controle, funcionalidade e

hierarquia social possui uma ambiguidade no seu cerne. Reis nos lembra que:

Para criação dessa nova sociedade, decerto contribuíram fundamentalmente instituições e sobretudo visões de mundo trazidas pelos africanos, os quais não eram tabula rasa sobre a qual o senhor, governo e igreja coloniais inscreviam seus desejos de dominação. As trocas culturais as alianças sociais foram feitas intensamente entre os próprios africanos, oriundos de diversas regiões da África, além é claro, daquelas nascidas das relações que desenvolveram com os habitantes locais, negros e mestiços aqui nascidos, brancos e índios (REIS, 1996, p.12).

Santos (1997), observando a geograficidade presente no espaço

marcadamente híbrido e potencializador das “ações humanas”, destaca a

intencionalidade e a perspectiva relacional “na contemplação do processo de

produção e de produção das coisas, considerados como um resultado da relação

entre o homem e o mundo, entre o homem e o seu entorno (SANTOS, 1997, p. 73).

Esta ação potencializadora produz no território cisões e relocamentos de sentidos,

transformando seu conjunto de objetos em peças fundamentais de um determinado

sistema e ou arranjo geográfico. Sodré (2002) identifica no espaço da extensão

cartesiano um “positivismo” através de uma corporalidade consequente que se

manifesta no homem. Este princípio fundamentará o olhar das ocupações europeias,

cuja base material revelaria o poder cultural espacializado globalmente mostrando a

pretensão universalista dos referidos projetos. Se do ponto de vista material “as

coisas” e “os seres” parecem se confundir, do ponto de vista existencial, elas

coexistem, já que não poderemos retirar a valoração dos sentidos estabelecidos

para a funcionalidade de qualquer coisa, inclusive o espaço racionalizado pelo

sistema capitalista. O “espaço coisa”, apropriado e reprodutor do capital fornecerá

ao europeu instrumentos técnicos de transformação e adequação dos lugares ao

seu julgo.

Assim é que, a partir do século XV, a objetivação das coisas e dos seres é realizada por um sujeito que constitui o seu olhar como soberano num espaço homogeneizado. Os planos políticos passam necessariamente pelas estratégias ‘oculares’, que levaram ao remanejamento dos cadastros e dos territórios (SODRÉ, 2002, p. 28)

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O surgimento do quilombo está situado neste momento dentro de eventos

geradores de práticas hegemônicas, ao mesmo tempo que se torna outro evento.

Para Santos (1997), o “evento é o resultado de um feixe de vetores, conduzido por

um processo, levando uma nova função ao meio preexistente”, ou seja, o quilombo

num contexto de escravismo, industrialização e internacionalização, infraestrutura,

delimitações de fronteiras e formação do Estado-Nação.

No entanto, uma avaliação se faz necessário. Os eventos não são forças

externas que controlam e conduzem intencionalidades e referendam projetos

hegemônicos de mundo, reside aí o hibridismo espacial destacado por Santos, ao

demonstrar que os atores sociais permitem, legitimam ou se apropriem da sua

funcionalidade. Se os quilombos rurais estavam amplamente estruturados entre

áreas, fronteiras agrícolas, os instrumentos utilizados para sua efetivação eram

redefinidos a partir do olhar do outro (do negro, do indígena) na composição

socioespacial dos sítios. Neste sentido, não há somente um redimensionamento das

técnicas, mas sua apropriação para a utilização de outra espacialidade que, na

contemporaneidade, representará “os de baixo”.

A racionalidade como cânone e parâmetro de compreensão da realidade

produzida na sociedade moderna contribuiu para a reificação de um território cujos

fundamento e escalas de apropriação sedimentassem um projeto de poder

representado, sobretudo na materialidade do espaço geográfico. Esta materialidade

dominante e geradora de práticas espaciais fragmentárias permitiu que uma cisão se

estabelecesse na interpretação e compreensão da realidade constituída,

promovendo nas grandes estruturas sistêmicas o papel de mediação e finalismo na

interpretação e sentido da totalidade/mundo que se anunciava.

O controle, a padronização e os modelos estabelecidos encerravam

assim o papel determinante do Estado-nação clássico, constituído por um sistema

territorial/espacial funcionalista, cujo finalismo amparava-se na produção de um

arranjo espacial fortemente centralizador, hierárquico e dominante. Ao mesmo

tempo, este espaço permitia a eleição dos lugares, possibilitando, assim, a ascensão

de pessoas ou grupos na construção e na apropriação das diversas escalas

geográficas configuradoras de uma dada formação territorial.

De acordo com Santos (2019, p. 60), é necessário "buscar através da

análise as formas de sugerir outras maneiras de combinar o que aí está". Para isto,

é necessário perceber que no quadro da modernidade configuradora dos espaços

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formalizados pelo processo global esboça-se também uma reação ao universalismo

global através de proposições das sociedades envolvidas, revelando nas

contradições presentes nas vozes, nos silêncios e nas reações. Assim, a

importância desta força geradora e ressignificadora propiciará que o Estado, cuja

temporalidade legitimadora das projeções políticas parece ser colocada em cheque,

possa redefinir o seu sentido territorial, tarefa complicada, tratando-se do Brasil onde

a cidadania ainda precisa ser construída.

Eu creio que isso vai se dar no Brasil também com um pouco mais de dificuldade em função da história do próprio Brasil. Quer dizer, um país que nunca pode construir uma ideia de cidadania, que nunca teve uma cidadania. Então, essa ausência de cidadania tem uma implicação na produção de um projeto nacional (SANTOS,2019, p. 60)

Uma vez inseridos na composição de uma modernidade tardia, cujas

ações formuladoras de um projeto de nação, de Estado, pensado e "tutorado" pelas

elites que o moldaram estruturalmente, a formação do território brasileiro expõe uma

ambiguidade que retrata o utilitarismo de seu uso e funcionalidade, já que sua

origem remonta à inserção de seu papel nesta mundialidade, bem como à

apropriação social de seu quadro e busca permanente e duradoura de significado.

O reconhecimento dos territórios de quilombos (sejam urbanos ou rurais) representa importante movimentação histórica, cultural, identitária e geográfica da sociedade brasileira no sentido de dar visibilidade a diversidade espacial vivenciada por grupos sociais marginalizados do direito ao espaço e ao mesmo tempo inventores e recriadores de lugares referenciais de sua memória e costumes (JESUS, 2013, p.18)

O quilombo surge dentro deste contexto histórico que revela onde a

configuração espacial realiza e potencializa as práticas sociais. Em seu bojo, todas

as contradições de uma sociedade paradoxal cuja permanência exigirá o

entendimento do hibridismo espacial presente.

2.1 NEGROS NOS "SERTÕES": DIÁSPORA E DESLOCAMENTO

“[..] a gente compreendia, a gente sempre, sempre nos aceitando enquanto negro mas nós não conseguia associar, né? Essa negritude é com a

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raça, com identidade, com a África ate então... eu comecei entender de África a partir de quando eu comecei estudar...[...] Nem sabia o que era isso. Ninguém sabia o que era isso aqui. “O que e África mesmo?” Entendeu?”

(José Jesus dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

2.1.1 Piemonte e Interiorização: Caminhos e Lugares na Ocupação

Os caminhos resultantes da colonização na Bahia não se resumem aos

oficiais (estradas, rios, entrepostos, vilas, propriedades), envolvendo somente o

interesse da coroa portuguesa, pois como já dito anteriormente, muitas

comunidades, vilas e povoados acabaram compondo e se instalando em virtude da

inserção no sertão e a partir da viabilidade de sobrevivência e dos diferentes papéis

exercidos nas práticas sociais estabelecidas sobre distintas regiões. Este controle no

movimento mediado pelas terras coloniais e seus representantes outorgados,

também estariam sob um complexo sistema de dispersão populacional quilombola e

negra conflitivo e ameaçador através das fugas constantes e a instauração de redes

conectivas com a metrópole, a África e os sertões, ou interior do país.

Neste sentido, o recôncavo baiano, a cidade de Salvador e o oeste da

África se constituiriam em caminhos além fronteiras, cujo limiar representava tanto o

interesse de uma economia colonial como também a negação da mesma em uma

ordem paralela e produtora de novas comunidades ou agrupamentos. Assim, a

diáspora representava não só a retirada forçada e a distribuição dos diferentes

grupos étnicos africanos sobre o território brasileiro, mas também o surgimento de

novas apropriações originados na fuga e resistência, o que posteriormente se

destacariam pela unidade comunitária de interesse comum e sobrevivência. O

movimento sobre rios, mata e estradas foram se multiplicando, na medida em que o

território em formação ia avançando e as novas relações impostas se tornariam

mecanismos que justificassem a regulação social, através, tanto de um legalismo em

instauração como de sua redefinição. Este ponto, movimento, deslocamento e

regulação junto com os fluxos que lhe caracterizam, coloca a ocupação sob o viés

de um internacionalismo através da própria formação diaspórica deste território, e

que acompanha paralelamente a costa africana de oeste a leste do continente.

Desta forma, a ênfase nesta análise será o espaço geográfico diaspórico africano no

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Brasil e sua contribuição para o entendimento da dispersão populacional negra

sobre os sertões da Bahia.

O atual Território do Piemonte da Diamantina, já no século XVII povoação

de Jacobina e no século XVIII como Vila de Santo Antônio de Jacobina, era

importante cenário por conta dos caminhos da mineração, onde a rota Jacobina -

Rio de Contas, via estrada Real para as regiões das Minas Gerais representaria a

nova ordem de movimentação colonial, gerando deslocamentos em massas ao

interior da Bahia.

Ao mesmo tempo, este interesse vai se constituir em uma ordem

comercial e social cujas relações de produção e trabalho tornariam algumas vilas e

povoações em pequenos centros nucleares de distribuição e consumo de produtos

fundamentais, tanto para a manutenção do sistema colonial metropolitano, como

para a alimentação e o funcionamento da população na própria colônia. Assim, a

agricultura, a pecuária e a manufatura se tornarão o apoio e também a sustentação

dos quilombos em franca expansão por todo o território colonial. Vale ressaltar que

as fugas diante do bandeirantismo e das estratégias de sobrevivência e

permanência produziriam novas rotas, tanto para indígenas como para negros

durante a ocupação do Piemonte. Os muitos povoados e distritos com população

majoritariamente negra mais do que pela dispersão territorial, sugerem um

agrupamento por interesses coletivo e de fortalecimento do grupo, demonstrando

muitas vezes que as fugas e ou fixação sobre o território eram processos de

reapropriação contínuos diante da oficialidade e controle impeditivo da metrópole

sob seu próprio sistema administrativo.

A disputa por espaços no território em formação e diante do centralismo

latifundiário dos seus agentes administradores designados, permitiu que o Brasil

transformasse o espaço geográfico em valor de uso capitalista e patrimônio que será

usado como moeda e forma operatória de inserção e controle das relações

tornando-se fundamento condicionador da criação do trabalho compulsório.

De mão-de-obra escrava rural e urbana, aos povos originados da África

no Brasil, a luta pelo direito a terra envolvia o enfrentamento, a negociação ou a

disputa com os grandes proprietários e a consequente herança latifundiária

envolvendo os respectivos familiares dos mesmos. Ao mesmo tempo propriedade e,

ao mesmo tempo um sujeito de si e de seu grupo representativo, o negro brasileiro

produzirá novas geografias simuladoras de territorialidades fundamentais para a sua

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manutenção como grupo social e cultural, justamente através das revoltas e

produção de espacialidades contraofensivas ao hegemônico território em que se

encontra. O quilombo e o espaço negro acabam sendo o lócus principal de uma

futura sociedade onde a terra colocaria o negro como alvo principal do controle

social estabelecido.

Os conflitos pelo uso e apropriação das terras em comunidades negras e

quilombolas são constantes, visto que o legalismo estatal condiciona a validade de

sua ocupação fora do quadro de reconhecimento, o que de certa forma produz ilhas

de comunidades e até mesmo um certo isolamento e fechamento destes grupos. O

Estado brasileiro é ainda uma ameaça constante diante de seu quadro configurador,

marcado sobretudo pelo amparo aos sistemas repressores que criminalizam os mais

pobres.

Ninguém falava em política ... Aqui o pessoal só falava de política aqui quando era para ir votar de quatro em quatro anos...[...]Não, o pessoal não sentava para discutir. [...] Isso aconteceu, é... mas, eu acho que não foi muito a frente em dois mil, não, em noventa, noventa não, em oitenta e seis, oitenta e seis, mais ou menos foi quando Pedro Franco tomou as terras do pessoal daqui[...]Entendeu? Mas assim, mas o pessoal foi no impulso não foi assim em uma coisa planejada, que se fosse hoje a gente fazia, né? [...]Mobilizava, você fazia planejamento pra montar estratégias, no caso né? [...] Então o pessoal foi no impulso e quando viram que Pedro Franco estava bem recuaram. Não houve assim uma coligação, não. Não tinha assim um líder assim para conduzir... (José Jesus dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

Este acontecimento descrito por José Jesus dos Santos revela que a

situação de conflito envolvendo as comunidades quilombolas marcam ainda em

pleno século XXI a negligência institucional e proposital do Estado sobre a questão

da regularização fundiária e no acesso à terra pelos povos tradicionais e de

quilombos, em que o próprio sistema se torna ameaçador e arma contra seus

cidadãos a partir de seus agentes.

Em Várzea Queimada, é comum o relato da tentativa de invasão do

território da comunidade no passado pela produção pecuarista, através da

derrubada de licurizeiros e palmeiras, além de impactar o ecossistema da área,

interferindo e impedindo que a comunidade se apropriasse da mata e continuasse

desenvolvendo atividades extrativas, como atesta o Senhor Joaquim Pereira dos

Santos:

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Aqui eu vi aqui, teve uma briga aqui cum bucado de de gente aqui cum cum um povo que cumprô umas fazenda aí, aí pra tirar o povo aí [...] Não... Não tinha nada no Brasil não [...] Não... Não tinha nada no Brasil não [...] o outro era médico [...] Judiou muito do povo aqui[...]Sabe quantas vez ele botou nós pra comer na roça dos outro? [...] Duas mil cabeça de gado [...] Botou dois trator [...] Novo. Uma uma concha, um trator lá e de uma concha lá pro outro que num rival uma uma concha daquela do chão. É... Eu tava na casa de farinha, na casa de farinha que tinha. Só vi o pau quebrar, trouxe dezesseis puliça (Joaquim Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019).

Segundo José de Jesus, o ato em defesa do território da comunidade

diante do invasor naquele momento revelou, ao mesmo tempo, a dificuldade de

organização e resistência da comunidade diante da ausência de uma liderança

política local que representasse os anseios da comunidade. Ao criticar a forma como

a política se revelava na localidade eventualmente e por período eleitoral, José de

Jesus acaba questionando o fazer político revestido de práticas que geram

submissão, impedem o avanço e a coletividade na discussão e tratam os membros

da comunidade como objetos de interesse e manipulação política.

A ocupação do sertão revela esta disputa e a dinâmica da ocupação

territorial na colônia, mas também o fluxo econômico, social e político impresso no

transatlântico cotidiano envolvendo a Europa, a África e as Américas. Moraes (2011)

destaca a expansão ultramarina como fundamental importância para a acumulação

e sedimentação do empreendimento colonial na inserção do capitalismo na América.

Dos fatores de produção ao monopólio das terras e do trabalho.

O fato é que o comércio crescente e a abundante exploração das novas

terras envolvendo países europeus, como Espanha, Portugal, Holanda, França e

Inglaterra, exigia cada vez mais um quantitativo populacional que atendesse ao

desejo europeu de ampliar e dominar mais terras. O aumento do tráfico e sua

instalação estavam atreladas também ao deslocamento e a criação de centros de

produções no novo mundo. Em franca concorrência e disputa econômica, estes

centros alternam a mão- de- obra de suas colônias entre o colono designado, o

colono do trabalho compulsório, indígenas escravizados e os negros africanos, cujo

continente sofre expressivamente com o comércio lucrativo e escravista.

Cabe destacar que a escravidão europeia na África fundamentará a

instalação de um capitalismo visando a maximização do lucro com a exploração do

Novo Mundo.

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Moraes (2001) chama atenção para os dados envolvendo o contingente

de negros vítimas do tráfico escravo:

[...] Segundo Klein, até 1500 eram embarcados de quinhentos a mil escravos por ano na zona do Senegal - Gâmbia, passando após essa data a dois mil por ano [...]. Após 1530, o principal ponto de embarque português é São Tomé, que mantém sempre uma ‘reserva’ estocada de 5.000 a 6.000escravos (p.31). No último quartel do século, Angola vai ganhando espaço, até tornar-se no século XVII a ‘base essencial do comércio de escravos’ português (K. Q. Mattoso [...]. Segundo Mannix & Cowley, entre 1575 e 1590, cerca de 52.000 escravos foram enviados de Angola para a América ibérica (cerca de 5.000 ao ano na última data), e só em 1617 foram embarcados 28.000 [...]. F. Browser estima cerca de 15.000 o número de escravos embarcados em Angola por ano no início do XVII [...] (MORAES, 2011, p. 246-247)

Para Moraes (2011), os milhões de africanos “transplantados” via tráfico

negreiro estavam vinculados ao fator produtivo e o mercado mundo, tornando-se

fundamentais para a emergência da configuração territorial capitalista e produtiva

definidoras do espaço geográfico colonial. Junte-se a isso a distribuição e a

movimentação populacional5 de africanos “transplantados” via tráfico negreiro.

O cálculo da quantidade de africanos transplantados do continente conhece relativa concordância: Herbert Klein estima uma cifra entre dez e quinze milhões de imigrantes escravos, sendo 2,2 milhões antes de 1700.Frederick Bowser dá um número mais preciso: seriam 9.566.100 escravos embarcados entre 1451 e 1870, destes 1,5 milhões para a América hispânica. Katia Mattoso se aproxima desses valores, falando em 9,5 milhões de escravos existentes na América entre 1502 e 1860, sendo 6,2 milhões só no século XVIII. E Octávio Ianni também acata este último número, estabelecendo a seguinte distribuição 38% localizados no Brasil, 17% no Caribe Francês, outro tanto no inglês, também 17% na América hispânica, e 6% no sul dos Estados Unidos. Nota-se que havia um estoque populacional disponível, o que torna inútil a discussão de se foi a demanda que criou o tráfico negreiro ou se foi este que criou a opção escravista na América (MORAES, 2011, p. 246-247).

O fator produtivo e o mercado mundo tornaram-se fundamentais para a

emergência da configuração territorial capitalista e produtiva definidoras do espaço

5 “Segundo Klein, até o final do século XVII, o Brasil havia recebido entre 500.000 e 600.000

africanos; o caribe não ibérico cerca de 450.000; a América hispânica entre 330.000 e 400.000; e a América do Norte extra-espanhola cerca de 30.000 (MORAES, 2011, p. 247)

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geográfico colonial. Ademais, a formação e a efervescência populacional6 tocante,

que de fato revelava a dimensão do processo escravista na diáspora africana na

América pelos portugueses.

6Analisando os dados produzidos por Artur Ramos, Moura observa que na “Bahia, com irradiação

para Sergipe, onde os escravos negros africanos foram redistribuídos para os campos de plantação de cana-de-açúcar, fumo, cacau e para os serviços domésticos urbanos e, especialmente, em época posterior para os serviços de mineração na zona diamantina" (MOURA, 1994, p. 142).

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Figura 12 - Mapa da Diáspora Africana para o Piemonte e Chapada Diamantina,2019

Fonte: Adaptado com base nas obras de: Anjos, 2006; Neves, 2011 e Vieira Filho, 2010.

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O Mapa da Diáspora Africana para o Piemonte e Chapada, representado

na Figura 12, mostra como em três séculos diferentes a movimentação do tráfico

negreiro seguiu a costa litorânea africana de oeste para sul e leste do continente,

paralelamente abastecendo o território brasileiro de norte a sul. Com base nos

estudos de Anjos (2006), Neves (2011 ) e Vieira Filho (2010) sobre os possíveis

grupos étnicos e nações africanas procedentes, além dos registros oficiais que

demonstram a compra/venda e, ao mesmo tempo, a chegada e a dispersão na Vila

de Santo Antônio de Jacobina e Rio de Contas. Este contingente será uma

preocupação constante diante do grau de escravismo que sustentará o nascente

empreendimento colonial e capitalismo brasileiro.

Em muitos lugares, a população negra dobrava o volume da presença

branca europeia, como atesta ainda Moura:

Essa escravia africana que chegava aos portos brasileiros durante o século XVI E XVII era praticamente enviada ao Nordeste e Leste do Brasil, especialmente ao Nordeste açucareiro. O auge da prosperidade açucareira, por outro lado, fez com que a Holanda ocupasse o Nordeste e praticamente monopolizasse o tráfico naquela região durante o tempo em que aqui permaneceu. Vieira afirmava, definindo essa situação de acordo com os interesses dos senhores de engenhos, ‘sem negros não há Pernambuco e sem Angola não há negros’ (MOURA, 1994, p.143).

Se a preocupação com a produção aumentava, também ocorria

paralelamente a necessidade de aparato humano para o empreendimento colonial,

desta forma, o trabalho e a mão-de-obra negra serão deslocados junto com a

técnica e a necessidade do próprio sistema produtivo. Moura (1994) observa que, na

Bahia,

[...] seus engenhos do interior a proporção era de 100 escravos para seis brancos no início do século XIX, índice que bem demonstra a prosperidade dos senhores de engenhos locais, e, ao mesmo tempo, a sua insegurança latente face à desproporção entre a população branca livre e a escrava negra. Em Salvador, no mesmo período a proporção era de 14 a 27 negros para cada homem branco (MOURA, 1994, p.143)

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De certa forma, a composição social e étnica negra da sociedade

brasileira estava vinculada direta ou indiretamente ao continente africano,

justamente na ligação transatlântica entre os dois continentes7.

Sodré (2005) chama atenção para os conteúdos diaspóricos do

conhecimento negro transpostos na empreitada colonial e o real significado da

cultura e civilização negra na emergência do território colonial brasileiro:

[...] é preciso deixar bem claro que não se tratou jamais de uma cultura negra fundadora ou originária que aqui se tenha instalado para, funcionalmente, servir de campo de resistência. Para cá vieram dispositivos culturais correspondentes às várias nações ou etnias de escravos arrebatados da África entre os séculos XVI e XIX. Tais culturas já conheciam mudanças no próprio continente africano em função das reorganizações territoriais e das transformações civilizatórias (substituições de antigos reinos e impérios por novos dispositivos políticos de natureza estatal), precipitadas pelas estruturas de tráfico de escravo montadas pelos europeus. (SODRÉ,2005, p.92)

Portos e feiras nas vilas seriam as conexões ou ponto de ligação e

dispersão entre estes negros sobre vastas áreas territoriais, suprindo fazendas,

comércio e trabalhos domésticos, dentro de um sistema produtivo e mercantil para o

litoral brasileiro e, consequentemente, a metrópole.

O processo de mundialização aqui considerado refere-se às ações resultantes das ambições planetárias experimentadas por um conjunto político sob o poder do rei Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal), a partir de 1580, quando a união das duas Coroas ibéricas acrescentou Portugal e suas possessões de além-mar à herança de Carlos V. As monarquias católicas, sob controle de um único soberano, edificaram um gigantesco Império que perdurou até 1640, abrigando uma diversidade de lugares, costumes, línguas e os mais distintos diálogos em espaços não -europeus: católicos e seguidores de Confúcio, em Macau; judeus; anglicanos e calvinistas em Pernambuco; negros islamizados e católicos em Salvador, na Bahia. (IVO, 2012, p. 29).

7 O espaço africano dos séculos XV e XVI, metamorfoseado pelos portugueses em um espaço para

estas vivências, foi o locus das primeiras imersões europeias. Foram os mulatos e os brancos, sendo alguns destes deportados, outros aventureiros ou cristãos novos, denominados "lançados", os primeiros encarregados europeus de imergirem no universo tropical africano. De acordo com Boulégue (VENÂNCIO apud LOUREIRO, GRUZINSKI, 1999) eram, em sua maioria provenientes da ilha de Santiago, em Cabo Verde; outros seriam europeus, não- portugueses, mas assimilados à cultura lusitana. Esse deslocamento já ocorria em todo o continente africano e foram expandidos com as conquistas oceânicas e comerciais daquele momento (IVO, 2012, p.30).

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Esta estrutura social e de fluxo não impedia, entretanto, a busca pela

liberdade e fuga, como fundamento.

A conformação social diante de uma sociedade escravista e, ao mesmo

tempo de trabalho compulsório baseada na mão-de-obra livre, torna complexo o

entendimento destas relações no âmbito da estrutura social que se instalara diante

de uma formação social em curso. Joaquim dos Santos (2019) relata, em sua

memória, registros do lugar ocupado por sua mãe nesta estrutura social

escravocrata:

Quem criou ela foi uma mulher que criou ela não tinha a mãe, a mãe morreu e ela criou ela e... meu pai... O pai de meu pai saiu daqui, não era o daqui era nim nim nim no Japipe[...]Coisa rapaz é nu. Sem calçola e as muié e as moça cum os pano marrado na cintura, tudo nu, má rapaz...[...]É só minha mãe que falava [...]Que ela... morava mais a a mãe que criou ela tinha seis fazendas [...]Ela falava que... ôh... “Oh Dona Chiquinha..” ela disse “fale”... “e a Princesa Isaber? Vai passar alforria?” [...] Ela disse “Quem num deu, rapaz...” e ela disse “Passar alforria o quê?” Mãe disse que cum quinze dias chegou [...]Cum quinze dias chegou [...] Pra sortar... pra sortar os escravo tudo. Aí despachou e disse que os escravo ficou tudo trabaiando lá pra eles [...]Que eles... que eles num tinham nada né? Ficou aí [...] Na propriedade ficou bom pra eles[...]Mas aí... a a mulher também era muito boa. O genro dela chama o Doutô João Barbosa [...] Era um homem que mandava né? Se se jogasse um chapéu e caísse em cima dele e falasse “Bora, Doutô?” ele ia pra Salvador buscar [...]E nesse tempo fazia frio né?[...] Mãe disse que morreu um monte [...] ela quem criou quem criou [...] mãe, [...] era uma mulher que tinha cheia de escravo (Joaquim dos Santos, Várzea Queimada, 2019).

Esta condição do ser negro onde Joaquim dos Santos referencia Dona

Chiquinha, invariavelmente determinava o lugar compreendido pela lógica e

determinação escravista, inclusive pelo fato do Brasil ser um dos últimos países na

abolição da escravatura na América.

A alforria e o distanciamento do seus entes resultantes do próprio

escravismo tornavam o escravo dependente de um mecanismo perverso de

permanência na fazenda, ao mesmo tempo como morador e ocupante, mas também

como propriedade regido por uma relação social ainda com traços coloniais.

Logo, não ter para onde ir transformava o ato de libertação limitado, já

que do ponto de vista legal, não significava para o negro acesso ou garantias de

sobrevivência a não ser um sonhado retorno para a África distante, mas presente na

memória de muitos.

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Neste sentido, a geografia demonstra ter sido também fundamental para

esta almejada liberdade e sobrevivência do negro brasileiro, mesmo diante do

sistema opressivo e de controle vigente .Ao mesmo tempo aprisionamento e

também espaço aberto possível de fuga e retorno, o território brasileiro será o lugar

de uma disputa e revelação sobre os meandros do empreendimento colonialista

escravista e também de suas limitações como referência formativa, ao buscar

desconsiderar a existência de povos e culturas no seu interior e periferias nucleares

(vilas e/ou cidades) de sua projeção.

2.2 DINÂMICA SOCIAL DOS “POVOS NEGROS” NA LUTA PELO ESPAÇO NO BRASIL

“Trabalhar de firma, em faxina...[...] como empregada doméstica, de carteira fichada. Eu morava na zona leste e ia trabalhar na zona sul. Saia 4 horas da manhã, ia pra firma, trabalhava na saúde, com a criança no braço de noite. Teve uma noite mermo que eu me assombrei, um cidadão... que quando eu cheguei lá tinha um cara acabando de morrer, que tinham matado. Eu me assombrei tanto, com um filhinho no braço. Sofri também por causa dessa criança, porque o menino era branco. E eu fui pra casa de minha patroa um dia de semana e ela disse, Lena, traz o Lucas pra eu conhecer, eu panhei o minino e levei. Viuge, quando eu cheguei na Sé as polícia me rodaram, sua negra, pra onde você vai com essa criança? Essa criança é robada. Eu não gosto nem de mim alembrar disso. Eu falei, não, é meu filho. Ele falou, uma negra qui nem você com uma criança dessa no braço, mostra o documento da criança aí. Aí eu corria, andava com tudo, aí peguei meu documento, o documento do Lucas, eu tinha tirado a identidade dele, aí, corri e mostrei pra ele. Aí ele, é, tem que ser negra mermo pra tá com uma criança dessa, nem assenta. Aí, eu virei pra ele e falei, mas ele é meu filho, eu não roubei, não. Se eu to com ele nos braço é porque Deus me deu, eu segui meu caminho e passei”.

(Maria Helena dos Santos da Cruz, Várzea Queimada, 2019)

Uma geografia do em movimento /deslocamento e circunstâncias

moldadas pelos eventos condutores de novas configurações sobre diversos

territórios e diversas espacialidades. Como representar o deslocamento forçado, a

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imposição da ocupação para os viventes mediante regras externas estranhas ao

mundo que conhecia, além de uma ocupação formada por povos e nações africanos

forçadamente transportados?

A experiência vivida por Maria Helena dos Santos Cuz a partir de sua

visão sobre viver em Várzea Queimada e São Paulo nos indica possíveis

interpretações necessárias em pleno século XXI, cuja presença geográfica do corpo

negro demonstra ser fator de preocupação e controle através de sua marginalização

como cidadão brasileiro, marcado sobretudo por um racialismo institucionalizado que

se materializa no próprio espaço geográfico.

Estes condicionantes operatórios, inclusive das relações sociais e de

trabalho estabelecidos, colocam o negro brasileiro diante de constantes geografias,

também ameaçadoras, visto que tanto o espaço urbano como o rural estão cada vez

mais sendo instrumentalizados por sistemas de segurança, aparentemente,

protetores de uma “ordem social”, mas que na prática tem como alvo principal os

povos das margens e periferias destas centralidades geográficas.

Assim, o território brasileiro mantem seu status ameaçador, violento e,

junto com ele, promove também um racismo complexo diluído na sua

aparentemente normalidade legalista, cujo legado histórico do escravismo e

racialismo brasileiro encontra porto seguro.

Este racismo revestido de ordem social e legal não só envolve sua

contemporaneidade na ocorrência , mas coloca o negro diante de seu passado

ancestral vivido sob uma ordem opressora no Brasil e que também se fazia

geográfica, resultando em uma história constantemente acionada por trágicos

eventos da história social brasileira , que vai do escravismo, dos massacres e

perseguições aos quilombos, da segregação social e urbana, do ataque aos povos

da floresta, da agricultura familiar e das comunidades tradicionais.

Maria Helena dos Santos Cruz, negra, quilombola e mulher do sertão,

carrega consigo várias camadas geográficas do pertencer ao “mundo” brasileiro. E

estas, quando interpretadas pela sua mulltiescalaridade relacional , nos revela que

as geografias das narrativas e as experiências no plano do vivido e do mundo

prático desafiam o nosso olhar sobre formas de classificações e generalizações

sobre a frívola sociedade em que estamos .Pensar essa geografia que se

estabelece na forma de acontecimentos e ocorrências múltiplas, levando em

consideração os explorados de um mundo cuja velocidade da técnica e do capital se

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apropriam do fazer geográfico mediados pelas novas e limitadas regras definidas por

grupos que exercem hegemonia, poder e controle, torna-se um processo extenuante

e complexo, visto que a voz e o pensar sobre o mundo a partir destes povos não

encontra regra ou parâmetro lógico diante da oficialidade e voz nos dominantes.

A presença negra no sertão, aqui caracterizado pelo centro- norte baiano,

inevitavelmente estava atrelada a um conjunto de práticas laborativas

fundamentadas no projeto europeu de ocupação. No entanto, a experiência colonial

de ocupação e sua exclusiva metropolização tornava a geografia transatlântica em

caminho ou estrada que alimentaria este processo. Técnica e deslocamento

fundamentarão a configuração territorial da estrutura colonial, cujos indivíduos ou

grupos de alinhamento promoverão o surgimento de vilas, colônias e povoados.

Esta configuração social não impedirá que os grupos sociais alijados de

participação nos reclames e decisões e posicionamentos diante do poder central,

produzissem suas próprias interpretações sobre esta mesma conjuntura opressora.

Uma vez deslocado, a extensão territorial exigia reinterpretações geográficas

necessárias para a condição efetiva de ocupação.

Agricultura, pecuária e mineração permitirão a entrada no sertão e

promoverá uma sustentação da colônia regidos pelo controle e manutenção da terra

produtiva, o que não impedia, por sua vez, disputas e conflitos constantes em função

das orientações e fiscalização contínua exercida pela metrópole. Estas unidades

produtivas eram estabelecidas ao longo das margens dos rios, em matas e áreas

vinculadas aos donatários e agregados.

Moraes (2002-2003) recorre ao sertão para além de uma materialidade na

ocupação. Desta forma:

[...] o sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e diferenciados lugares. Trata-se de um símbolo imposto - em certos contextos históricos - a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como um qualificativo local básico no processo de sua valoração. Enfim, o sertão não é uma materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica: uma ideologia geográfica. Trata-se de um discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica os lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses vigentes neste processo. (MORAES, 2002- 2003, p.13).

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É certo que este empreendimento não estava desprovido paralelamente

de reinterpretações deste mesmo sertão pelos negros usados como instrumentos ou

bens de propriedade na instalação territorial em andamento.

Neves (2007) identifica o sertão:

[...] tanto na condição de categoria geográfica como na perspectiva socioantropológica, ‘sertão' revela-se polissêmico, carregado de novos e velhos sentidos. Mais que uma alteridade negativa de litoral, firma-se como referente do regional e se expressa como representação da cultura nacional. De espaço vazio do imaginário colonial converteu-se, quase de súbito, no eldorado de ávidos aventureiros na corrida do ouro. Esse movimento promoveu maior demanda por terras para a pecuária, associada à policultura agrícola, produtoras do suprimento das unidades pecuaristas, que evoluiu para o abastecimento regional e deste para o comércio interprovincial, responsável pela formação do mercado colonial e reforço das exportações (NEVES, 2007, p. 22).

Ivo (2012) observa que:

Assim como os espaços rurais, os núcleos urbanos centrais do Brasil não abrigaram o pleno estabelecimento das instituições do Estado durante o século XVIII. A linha tênue que separava o mundo urbano do rural nesse período exige cautela na instrumentalização de conceitos excludentes que categorizam e pouco explicam os universos culturais que os constituíram distantes das áreas litorâneas. Os sertões guardavam singularidades múltiplas, trânsitos e mobilidades e, assim como as cidades coloniais, abrigavam movimentos de pessoas e de produtos das mais diferentes partes do Império ultramarino português, tal como se verifica nas áreas urbanas. Os sertanejos forjaram situações de interpretação e de reconstrução de variadas formas de trabalho e de vida, ações condicionadas pelas leis, pela justiça e pelos costumes, constantemente reinventados e reinterpretados. As culturas múltiplas criaram novos espaços de vida econômica para além da vocação puramente agropecuária. Abrindo caminhos e conectando-se ao mundo ultramarino, os sertanistas, ao buscarem riquezas e acumularem grandes propriedades rurais, foram os responsáveis pelo ir e vir de práticas culturais num trânsito até então desconhecido para os sertões (IVO, 2012, p.33).

É certo que a organização social em curso e aqui, na incursão sobre o

sertão, representava uma aventura geográfica8 em que uma vez propriedade, o

8 [...] o sertão para ser identificado demanda o levantamento do seu oposto: o não-sertão, visto como

o lugar que possui as características de positividade ali inexistentes. Vale salientar que é sempre a partir dessa oposição oposta que o sertão é qualificado enquanto tal. Isto é, o lugar a partir do qual se

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contingente negro se apresentará com papeis definidos no processo. Em atividades

domésticas, na lavoura e também fabril, a prática exercida pelos mesmos

designarão o valor e o sentido estabelecido pelos seus “donos” sobre a permanência

ou não na propriedade e em outras paragens negociais.

Segundo Neves e Miguel (2007) a configuração geográfica se

estabelecerá sobre estes moldes relacionais:

Como resultado do entrelaçamento deste conjunto de lugares, caracterizado pela existência de minas, fazenda de gado e aglomerações humanas, os sertões encontram-se parcialmente conquistados, repartidos e explorados no século XVIII. Sesmarias (sítios e fazendas), minas, e currais distribuíam-se por toda a área, à exceção dos territórios ainda dominados pelos botocudos, aimorés e outros povos nativos. Arraiais, povoados, vilas, "capões" e vendas, distribuíam-se ao longo dos rios, nos fundos de vales e nos altiplanos. Descrições de viagens e expedições não deixam dúvidas de que, casas, taperas ou mocambos não se encontravam distantes mais de quatro ou cinco léguas uns dos outros (NEVES & MIGUEL, 2007, p. 207).

Neves e Miguel (2007) observam que este movimento é caracterizado

como um intercâmbio que:

[...] evoluiu da dimensão local para a regional, a provincial e a colonial, na proporção em que precárias trilhas nas matas, abertas por agentes de todos os tipos de negócio, inclusive o ilícito, transformavam-se em caminhos palmilhados regularmente por mineradores tropeiros e boiadeiros, responsáveis pela ocupação e povoamento dos sertões e por essa dinâmica mercantil colonial (NEVES & MIGUEL, 2007, p. 207)

O deslocamento negro no Piemonte revela os caminhos tanto do

processo de ocupação como também da conflituosa posse sobre os mesmos pelo

colonos ou proprietários das terras. Ao mesmo tempo que o sertão se constituía em

uma possibilidade para o colono de manutenção e sustentação, transformava-se

paralelamente no vetor principal de recusa ao escravismo através das fugas e

conflitos revelados na sua ocupação. É importante observar que a manutenção da

qualifica uma localidade como um sertão está sempre localizado no campo contraposto. Neste sentido trata-se de uma imagem construída por um olhar externo, a partir do qual se qualifica uma localidade como um sertão está sempre localizado sempre no campo do contraposto (MORAES, 2002-2003, p.15)

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posse sobre o negro representava a garantia de valor agregado ao processo

produtivo de cada propriedade atendendo ao interesse do sistema colonial, assim,

“No século XVII " os caminhos dos sertões foram efetivamente abertos a partir da

necessidade do deslocamento de gado, de escravos, de ouro e outras mercadorias”

(NEVES & MIGUEL, 2007, p. 77).

Segundo Vasconcelos:

Desde os tempos coloniais, considerado ‘inculto e cheios de façanhas barbarescas’, o sertão foi concebido como o abrigo da pobreza, da desordem e do isolamento, características opostas à forma de viver das regiões litorâneas, considerados espaços privilegiados para a ‘civilização’, para a diversidade econômica e para o exercício da política (VASCONCELOS,1999, p. 92)

E, a Villa de S. Antônio de Jacobina surgirá como lugar central, tanto na

ocupação como na organização da sociedade, que se estabelecerá sobre aquele

território. A posição do sítio geográfico da Villa9 diante do ciclo de exploração do

ouro fez deslocar o interesse da metrópole para o sertão. Neste relato destacado por

Neves e Miguel (2007), Joaquim Quaresma Delgado destaca passagem pela Villa de

S. Antônio de Jacobina (Figura 15) destacando as características da área:

Da Tapera à villa há nesta viagem, andando uma légua, umas casas com moradores e, algumas roças ; daqui um quarto de légua se passa o rio Tapicurú-mirim e depois à mão esquerda e já daqui para cima se larga elle, até mais adiante desta passagem há outro riacho e uma casa e este riacho chamam de Casa da Telha, mais adiante outra casa com um riacho que chamam a Taboca e até aqui 2 leguas do caminho de toda a jornada.[...]Mais adiante um quarto de legua ou mais está o riacho da Bananeira e mais outro quarto de legua adiante o riacho do Ouro Fino que é já dentro da villa e já desde a Tapera vem o caminho por entre as serras que são bastantes altas.[...]Tem esta uma rua arruada leste oeste, com casa de uma banda e da outra , ficando-lhe o rio á parte de sudoeste e terá desde o rio de Ouro Fino até a Missão dos Padres e metade e um quarto de legua, desta villa ao arraial das Figueiras há 4 leguas e por distância recta 2 e tres quartos ao norte quarta de nordeste . Aqui se tira ouro em um riacho daqui ao norte uma legua e meia e por estrada 3 aonde se está trabalhando com boas esperanças e chamam Sacomã que também está tirando ouro. [...]

9 Ao longo da Estrada Real, " constituíam-se vias de ligação entre fazendas e povoações, que

entabulavam pequenos comércios entre si e estabeleciam redes de intercâmbio que deram origem e implementaram o mercado interno " (NEVES & MIGUEL, 2007, p. 79), integrando o fluxo mediante caminhos vicinais. Quaresma Delgado (apud NEVES & MIGUEL, 2007) destacou em seu relato de viagem Jacobina para Rio de Contas a presença de roças na altura da serra do Tombador indo para Morro do Chapéu.

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Da villa para o sul quarta do sudoeste está um sítio aonde vive o coronel Manoel Figueiredo Mascarenhas, aqui chamado de Jaboticabas em distância de 2 e meia e por estrada 3 e meia. Neste sitio se tem tirado bastante ouro e tirará havendo Água por toda esta distância até a villa em vários corregos de Serras que o tem.[...] Cerca esta Villa um cordão de Serras que corre norte sul mais uma quarta para o sudeste, a estese encostam outras, que em umas partes são três cordões e em outras quatro e também cinco ficando a parte de oeste da Villa uma Serra que chamam o Tombadouro, que é bastante alta para a parte de Leste a da Bananeira que não é menos e para a parte de sudoeste em distância de duas leguas o sitio chamado Brejo que tem seus moradores e roças e deste a Serra do Timbó uma legoa de distância ao rumo do sul quarta do sudoeste, ficando estas duas jornadas de três legoas : ao pé desta serra se tem tirado muito ouro e por todo este continente desde o Jacomoá até Jabuticabas e ainda mais abaixo há ouro descoberto em muitas e várias partes: É o que se me offereceu desta (NEVES & MIGUEL, 2007, p.72-73)

A conformação do território mostra que o caminho de Ouro Fino (Figura

13) e o roteiro de observação no século XVIII com sua “geografia colonial”, já

indicava um movimento em direção ao atual Território do Piemonte da Diamantina,

levando em consideração a extração de ouro, utilizando para isso o percurso dos

atuais rios Itapicuru- Mirim e do Ouro. Note-se a presença de roças no entorno das

vilas, cuja função posteriormente será também o abastecimento das áreas urbanas e

dos seus principais centros na época. Neste contingente humano e social envolvido

através da mineração, novas relações provenientes ocorrerão, inclusive aparecendo

também como ameaça política diante da ordem agrária tradicionalmente posta.

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Figura 13 - Mapa Roteiro de Ouro Fino adaptado,2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Segundo Ivo (2012), este processo desencadeará preocupações para os

proprietários locais, que poderiam perder também seus escravos e se verem

prejudicados com a ausência dos mesmos na lavoura, engenho e produção

correlata10.

Nos primeiros anos do século XVIII, a denúncia de Rocha Pita, assim como as preocupações de Dom João de Lencastre, colocavam em pólos excludentes a lavoura e a mineração, já que desta deslocava a mão de obra da produção do açúcar e do tabaco: ‘o ouro das Minas do sul foi a pedra- irmã da gente do Brasil, e com tão veemente atração, que muita parte dos moradores das suas capitanias (principalmente da província da Bahia) correram a buscá-lo, levando os escravos que ocupavam em lavouras’. Seu discurso desnudara o imaginário negativo do ouro: ‘se a ambição não trocara quase sempre o mais útil pelo mais vão” e esclarece que a demanda de cativos para a região das Minas, além de aumentar o preço de aquisição dos escravos ‘do gentio da Guiné’, afetaria diretamente a produção de mantimentos (IVO, 2012, p. 42).

Assim, entre fortes interesses e dissonâncias, uma economia em

mutação, cujos interesse e foco atendiam a um mercado internacional sobretudo, vai

se desenhando na colônia as primeiras insatisfações que sinalizam a produção de

um território em trânsito e ao mesmo tempo em conformação11.

Jacobina tornou-se uma área estratégica diante da emergência da

exploração mineral no século XVII na rota entre a Bahia e as Minas Gerais, e sua

criação passa efetivamente pelo controle e pela arrecadação dos quintos das minas

da serra.

Portanto, através dela tornou-se possível a fiscalização das minas da serra da Tromba, a cobrança do quinto e o efetivo escoamento do ouro com a segurança e a rapidez possíveis. Por ter sido uma obra determinada pelo rei de Portugal, a primeira estrada aberta no interior da Bahia, ligando as duas minas, ficou conhecida como Estrada Real (NEVES & MIGUEL, 2007, p.79).

10

“A descoberta de minas de ouro em Jacobina aumentou o fluxo de pessoas para as margens dos rios de acesso ao sertão no limiar do século XVIII. [...] Domingos Neto Pinheiro fora nomeado por Dom Rodrigo da Costa para capitão das entradas de Jacobina e Carinhanha” (IVO, 2012, p.39). 11

“A crença nos males e vícios que o ouro traria aos povos da conquista e a certeza de que o metal já produzia problemas em outros reinos, orientaram o governo português a ter cautela em relação às minas da Bahia” (IVO, 2012, p.41).

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O espaço geográfico da Villa de S. Antônio de Jacobina estará ligado a

uma nova rota ligando a Bahia as Minas Gerais através da produção do ouro

envolvendo o Piemonte e a Chapada Diamantina.12

Ao longo da Estrada Real "constituíam-se vias de ligação entre fazendas

e povoações, que entabulavam pequenos comércios entre si e estabeleciam redes

de intercâmbio que deram origem e implementaram o mercado interno" (NEVES &

MIGUEL, 2007, p. 79), integrando o fluxo mediante caminhos vicinais.

Durante todo o século XVIII, as comarcas do Serro do Frio e de Jacobina, Alto Sertão da Bahia - foram territórios de conflitos de interesses privados em função de uma ordem pública distante e pouco definida para estes lugares. De outro modo, o domínio político exercido pelos potentados locais escapava ao controle das iniciativas públicas de governantes que pouco sabem acerca dos limites e fronteiras de suas atribuições, a exemplo, os conflitos de jurisdição existentes entre as Capitanias da Bahia e de Ilhéus sobre questões referentes à política colonizadora de João Gonçalves da Costa no Sertão da Ressaca (IVO, 2012, p. 32-33)

Por conta destas relações envolvidas na complexidade estrutural de uma

sociedade forjada sobre padrões e normas externas aos grupos envolvidos, a

questão negra passa a ser uma preocupação na redefinição do ideal de nação, o

que vai recair sobre os mesmos limites impositivos e definidores do lugar a ser

ocupado. Moura (1994) destaca a condição destes como “semoventes”, visto que

eram objetos de troca e venda, destacando ainda o sistema de controle.

O sistema escravista aqui implantado para ordenar, desenvolver ou regular quer econômica, quer social e culturalmente, tinha de estabelecer um aparelho ideológico de dominação que o garantisse quer simbólica, quer estruturalmente, da mesma forma que tinha de estabelecer um aparelho de repressão material com a mesma função (MOURA, 1994, p. 151).

Era uma sociedade de modelo classificatório e seletivo cuja ideia principal

passava pela manutenção da estrutura social e econômica com a criação de

barreiras para indígenas e negros em detrimento do branco.

O sistema de valores propagado representava:

12

No século XVII "os caminhos dos sertões foram efetivamente abertos a partir da necessidade do deslocamento de gado, de escravos, de ouro e outras mercadorias" (NEVES & MIGUEL 2007, p. 77).

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[...] uma estrutura social na qual se ordem hierarquicamente, através de níveis de pressão e controle variáveis, e com diferenças relevantes ou pouco significativas, os membros das etnias na estrutura de estratificação social das mesmas. O fato de estar a sociedade brasileira em uma área cujos pólos [sic] iniciais de poder e dominação situaram-se na metrópole colonizadora, determinou que a população requisitada na Colônia, dentro do modelo escravista imposto, passasse a ser considerada coisa, semovente, estabelecendo distâncias sociais intransponíveis ou excepcionalmente transpostas, assim mesmo em níveis individuais. O sistema escravista aqui implantado para ordenar, desenvolver ou regular quer econômica, quer social e culturalmente, tinha de estabelecer um aparelho ideológico de dominação que o garantisse quer simbólica quer estruturalmente, da mesma forma que tinha de estabelecer um aparelho de repressão material com a mesma função (MOURA, 1994, p. 151).

Estava assim, estabelecido os processos definidores do que futuramente

o território brasileiro iria revelar, as contradições resultantes dos papeis designados

e definidos por limites coloniais para a população negra e povo brasileiro não-

branco. Uma vez multifacetada, o significado de cada papel estará no grau de

legitimidade auferida pela classe senhorial, jurídica e militar criando uma

hierarquização étnica (MOURA, 1994) ao promover um discurso de unidade entre o

seus e que gerava invisibilidade negra na condução dos processos decisórios sobre

o país13.

Sodré destaca:

Entretanto, nesse espaço permitido, porque inofensivo na perspectiva branca, os negros reviviam clandestinamente os ritos, cultuavam deuses e retomavam a linha do relacionamento comunitário. Já se evidencia aí a estratégia africana de jogar com as ambiguidades do sistema, de agir nos interstícios da coerência ideológica. A cultura negro- brasileira emergia tanto de formas originárias quanto dos vazios suscitados pelos limites da ordem ideológica vigente. (SODRÉ, 2005, p. 93)

13

“Os escravos, quer negros quer pardos, só podiam conseguir mobilidade social (vertical ou horizontal) de modo significativo e socialmente relevante através das fugas, dos quilombos, das insurreições ou do bandoleirismo quilombola. Somente através desses movimentos radicais eles reconquistavam a liberdade, ou através de alforrias compradas ou concedidas, muitas vezes quando o escravo já havia chegado quase ao fim da existência ou ficava incapacitado para o trabalho. Mesmo os libertos tinham uma série de restrições ao exercício da cidadania. Se africanos, eram considerados estrangeiros, se crioulos (nascidos no Brasil) podiam participar das eleições primárias, mas lhe eram vedadas as dignidades clássicas, o acesso ao Poder Judiciário, o direito ao porte de armas e a livre locomoção noturna”. (MOURA, 1994, p.152)

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É diante desta conformação que a roça irá surgir, não como modelo, mas

como uma representação geográfica que foi se constituindo ao longo da formação

brasileira em espaços complementares aos processos de ocupação e que

representava ao mesmo tempo “frestas” diante do ideário geográfico intento no

colonialismo português. O seu sentido vai muito além de tal complementaridade e o

seu aprofundamento nos permite buscar compreender qual o seu papel diante do

modelo agrário instaurado na Bahia, um espaço de representação quilombola e de

sustentação das famílias negras, diante de uma sociedade fortemente marcada pelo

escravismo na configuração e apropriação material do território, mas também de

uma tecnologia (conhecimento) cosmogônica negra que dá ressignificado ao se

incorporar neste espaço geográfico diaspórico, contraposição ao produzir

movimentos de resistência ao escravismo e sustentação das comunidades rurais

quilombolas movidos pelos próprios conhecimentos e orientações orais ancestrais.

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“Na minha infância A gente brincava na esteira

Um bebê era colocado sobre a esteira enquanto a mãe realizava a tarefa

Medito sobre uma esteira “E a sensação de estar sentada sobre a esteira é

como se a natureza viesse até nós ou a gente sente a nossa minoridade de ser humano

Se enrestava alho após colheita sentados na esteira

Na minha infância...”

(Maria Alves Nunes, 2019)

3.1. MATO, ROÇA E DIMENSIONAMENTO DA VIDA EM CURSO

As rotas e/ou deslocamentos a partir dos rios com a prática da pecuária

na Bahia significam, a partir do movimento, a presença de núcleos populacionais e

também o traçado futuro do fluxo produtivo colonial. Ao mesmo tempo, por estas

mesmas rotas, o “fluxo de lugares” através das informações e processos

comunicativos permitiam também a configuração das vilas e funcionamento da

economia vigente num sistema de trocas que envolvia tanto objetos de consumo,

como também o corpo negro, parte técnica e compulsória do sistema colonialista em

voga. Assim, como prótese espacial, se confunde um território em formação que

desconsidera o indivíduo como parte indissociável do processo. A separação entre o

negro (objeto) e o espaço (território hegemônico e de poder) tornou-se o mecanismo

fundamental para a negação da cultura e dificuldade para reconhecimento do

mesmo como membro da sociedade brasileira. Uma vez objeto, ele será

naturalmente desprovido de sentido humano.

O Senhor Gildásio de Sena observa na questão da escassez algo que

impressiona pela resistência, mesmo diante da ausência do Estado:

E aí, nós chegava com a jiboia, mãe não tava em casa, nois botava no terreiro, a bicha fuava, rodava, aí nois ia, vamos cortar os espetos pra nois muquiar ela, e a bixa rodando no terreiro, e aí matava, maquiava no fogão lá, quando mãe chegava nois tava com as torona de cobra assada comendo sem farinha que não tinha farinha, que é o que eu disse, que nois comia tapaia de forno, tinha farinha, mas, era

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uma faria seca, aquela massa de tapá a pedra e nós ficava comendo no terreiro, mãe chegava de noite com um sacão de feijão, aí botava no terreiro, a lua bunita, vamos debuiá pra botar pra cozinhar, aí mãe sentada no canto e os sete filhos ali debulhando e mãe contando as histórias com tanta coisa que a gente não sabia e nós debulhando, pouca hora dava a quantidade e bota no fogo, botava no fogo, praticamente não tinha tempero, mas mesmo assim nós comia, no outro dia mãe ganhava o mundo de novo, trabalhar pro povo. (Gildásio de Sena, Várzea Queimada, 2019)

Que estrutura social reside na memória e orienta o mundo que se

configura diante de uma comunidade quilombola rural do sertão? Sem dúvida, esta

memória é uma cartografia de um Brasil que se revela a partir de cada indivíduo,

mas que muitas vezes se dilui ou se afirma na medida em que a comunidade ou o

grupo reforça este sentido avaliado e consentido pela comunidade. Por sinal, a

mesma coloca em cheque o valor de sua representação diante da totalidade, o que,

de certa forma, aparecerá no fracasso da modernidade e desenvolvimento seletivo

nacional como fundamentos generalizadores.

Este Brasil onde o espaço relacional (grupo, família, comunidade)

sustenta e produz uma geografia no plano da memória será instrumentalizado pela

experiência na busca de garantias da existência e fundamentará o ajuntamento e

sustentação material e territorial quilombola revelada pelo Senhor Gildásio de Sena.

É importante destacar que a existência de um Estado autoritário consiste também na

invisibilidade que ele provoca justificando assim sua ausência e responsabilidade

sobre o tipo de sociedade ao qual consiste. Esta violenta exclusão e negação atinge

gerações e artificializa os direitos sociais, confundindo muitas vezes políticas

mínimas estruturantes em premiações políticas no acesso.

Assim, mediante esta lógica estrutural social colonial, a cultura e o outro

como negação, neste caso, não ocorrerá somente no âmbito das diferenças, mas

também da eliminação. Ela se justificará também na ausência do “espaço como

propriedade legítima, material para os negros oprimidos, onde este lugar será

ocupado e também disputado com as forças coloniais opressoras no território

através da roça.

A roça como símbolo de vida e sustento familiar é uma garantia não só de

trabalho, mas também de existência e projeções futuras para estas comunidades. O

sentido que ela vai adquirir apresenta variações e significados que ultrapassam o

limite geográfico a ela atribuído no sentido de propriedade. Os entrevistados em

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seus relatos identificam pontos que são comuns quanto a sua importância, mas

também um grande desafio posto diante do seu entendimento e inclusão ao sistema

socioeconômico brasileiro.

O Senhor Ilário de Jesus Cruz, cujos pais também trabalhavam na roça e

tiveram 13 filhos, reclama da vida sofrida onde cada dia seria uma grande batalha,

ao "trabalhar vinte e quatro hora pra arrumar o pão de cada dia" (ILÁRIO DE JESUS,

2019), inclusive trabalhando na roça dos outros também. Roçar ao mesmo tempo é

uma atividade de limpar e preparar o terreno para o plantio, mas também o

movimento que garante o hoje e o amanhã. Para o Senhor Henrique, o ato de

praticar a roça está vinculado a uma série de atividades envolvendo o plantio e o

cuidado com a terra, constantemente, em que primeiro está o alimento e em seguida

o que da produção permitir adquirir outros bens de consumo.

O excedente mínimo é limitado, mas também dependente da satisfação e

da necessidade do grupo como sustento e manutenção alimentar através da roça.

Almeida (2011) observa que:

As terras das comunidades quilombolas cumprem sua função social precípua, quando o grupo étnico, manifesto pelo poder da organização comunitária, gerencia os recursos no sentido de sua reprodução física e cultural, recusando-se a dispô-los às transações comerciais. Representada como forma ideológica de imobilização que favorece a família, a comunidade ou a uma etnia determinada em detrimento de sua significação mercantil, tal forma de propriedade impede que imensos domínios venham a ser transacionados no mercado de terras, vinculadas a bancos e entidades financeiras, do mesmo modo que contraria os interesses latifundiários, os especuladores, os ‘grileiros’ e os que detém o monopólio dos recursos naturais. (ALMEIDA, 2011, p. 123)

A pressão exercida pelo mercado sobre as comunidades remanescentes

quilombolas e suas atividades produtivas ameaçam a existência e a sobrevivência

das próprias comunidades, ao desconsiderar as regras próprias e o valor cultural

embutido nos processos de atividades prático socioespacial envolvidos.

Neste sentido, Almeida (2011) observa que a não titularidade se tornou

um recurso comum e até pormenorizado pelos últimos governos, em que se

consideram:

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[...] as práticas de uso comum seriam vestígios de um passado a ser superado, ou seja, seriam práticas ‘rudimentares e primitivas’, características de ‘economias arcaicas’, marcadas por ‘irracionalidades’, que se contrapõem ao desenvolvimento tecnológico. (ALMEIDA, 2011, p.177)

O objetivo atende ao grande capital e seu interesse na manutenção do

sistema latifundiário brasileiro, objetivando o estoque de terras e satisfazendo a

concentração e atuação do latifúndio no país.

É importante observar que a definição do conceito de roça, assim como

de quilombo, também são esferas de embates no seu sentido e definição do ponto

de vista historiográfico, geográfico e linguístico. No entanto, será no modo de vida,

de ser e praticar a roça, que teremos manifestações expressivas da sua importância,

sentidos e projeções futuras que movem e alimentam indivíduos e comunidades.

Santos (2015) destaca a roça como um espaço da biointeração, que

precisa sobretudo superar o caráter autoritário do Estado brasileiro, através da sua

guerra de territorialidades presentes desde a colonização:

Por exemplo: as sucessivas ressignificações das nossas identidades em meio aos mais perversos contextos de racismo, discriminação e estigmas: a readaptação dos nossos modos de vida em territórios retalhados, descaracterizados e degradados; a interlocução das nossas linguagens orais com a linguagem escrita dos colonizadores (SANTOS, 2015, p.97)

Ao falar de sua vivência no Piauí, destaca a roça, a partir da sua

espacialidade como um conjunto de ações que leva em consideração as interações

presentes na capacidade de cultivar e compartilhar, sendo que a roça seria o elo,

cujo sentido estaria no nível da sociabilidade e interação, o que ele caracteriza como

“roça de todo mundo”, uma interação definida a partir do próprio grupo social na

comunidade.

Macêdo (2011) segue em um outro movimento de avaliação e definição

do que seria a roça que, segundo ele, manifesta-se identitariamente e se reforça na

dinâmica do contexto e afirmação da sua existência.

Mas, o que significa ser da roça? A elucidação desta questão depende da análise das representações que, em tempos e lugares diferentes, forjaram esses sujeitos. Portanto, ‘o ser da roça’ é, antes de mais nada, uma construção histórica. O sentido que lhe é

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conferido está sempre em consonância com o tempo e com o espaço. O ser da roça, através do olhar externo, pode ser representado: de forma romantizada, como um ser puro, ingênuo e dócil; como o tabaréu, ignorante, analfabeto e incivilizado; como “um cabra macho’, valente, que ‘não leva desaforo pra casa’; como o roceiro, pobre, sujo, vítima da fome e, por isso, incapaz de aprender; como o messiânico, ruidoso das procissões e caravanas para fontes de milagres; etc. De acordo com a representação escolhida, ele pode ser discriminado a partir de estereótipos e/ou vitimado através de discursos que o estigmatiza como ‘pobre coitado’. (MACÊDO, 2011, p.83)

Na sua análise, podemos observar que já existem pré- definições

classificatórias que designam o lugar do ser da roça diante do olhar

predominantemente limitador do seu papel e, consequentemente, na tentativa de

reforçar sua invisibilidade como membro e cidadão nesta sociedade.

O reforço ao tradicionalismo no olhar, tanto pode ocorrer na

representação que lhe vincula a um passado de ausência de recursos, como

também na comparação com o urbano, cujo ideal de modernidade fortemente

pautado na estética da técnica se instalara como algo visto por muitos como não

pertencente ao mundo rural.

Macêdo (2011) demonstra que a cultura da roça se insere nessa

discussão como movimento contínuo de relacionamento com o real, ao tentar

quebrar a linearidade de processos de produção da verdade que não exprime, pois

não permite ainda que estas vozes apareçam:

O sentido de roça, aqui, vai além de lugar de pequenas propriedades onde se pratica a agricultura de subsistência. Pensamos que dar esse significado à roça é, de certa forma, retornar ao binarismo agrícola/industrial, atrasado/desenvolvido. E isso é negar a roça enquanto território, ou seja, é não atentar para o movimento dos seus sujeitos, para a forma de estes lidarem com o real. [...]São as interações realizadas entre homens/mulheres e natureza, o movimento dos atores sociais, a reinvenção de valores, cosmovisões e atitudes que desestabilizam verdades absolutas, ressignificam a roça e lhe conferem sentidos (no plural). (MACÊDO, 2011, p.28)

A senzala, a roça, o terreiro e o quilombo como espaços de resistências,

empreenderão a força motriz desafiadora da objetividade mecânica e produtiva que

calculava o comportamento social e colonial.

Esta força ancestral vai sustentar a operacionalidade da resistência

quilombola mediada pela africanidade que lhe guiará:

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Em meio a esta teia de relações materializadas, os povos africanos movidos pela cosmogonia, presente na interpretação cultural e geográfica de mundo, criavam e reinterpretavam os sentidos estéticos e ideológicos predominantes na América à luz de conhecimentos transoceânicos e diastólicos, produzindo assim, espaços culturais territoriais de auto-referências [sic] (JESUS, 2013, p. 9).

Esta cosmogonia residente na memória e na oralidade transportam

geografias e conhecimentos africanos para o Brasil, além de representarem a

principal força de oposição ao colonialismo português através dos quilombos e

diferentes formas de reações.

A linguagem temporal, a visão sobre a paisagem e o quadro social que

ultrapassa a linearidade ou sequência de uma hierarquia geográfica encontram lugar

que subverte a lógica dominante generalizadora de classificações. O Senhor

Joaquim (Figura 14) expõe um mundo de experiências e ensaios, visando sobretudo

manter o sustento vivendo da roça.

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Figura 14 - Joaquim Pereira dos Santos, 2017

Fonte: Fábio Nunes, 2017.

Chegou a seca, a seca grande foi três anos de seca, deu três chuva, mas tinha... mas tinha um veio aqui que plantava e não ficou nada. Se acabou tudo. Batia o varão da porteira e mataram foi muito. Aí a condição não tinha porque porque... tinha uma chuva hoje e aí plantava, quandi quando vinha dá a outra em dezembro. Só ia chover em dezembro. O... com fome, os menino saía magrin... E a gente saia nos terreiros procurando aqueles ossos veios bão, cozinhava pra beber um cardo. Emagrecia que não sentava, se num tinha... hum nada [...] Plantava feijão, plantava mandioca, plantava abacate, plantava a... o... tsc... Fava, plantava andu. [...] Não vendia, sabe porquê? Num tinha comércio. Sabe um dia vender uma caixa de farinha? [...] Daqui a quinze léguas, então ni... Bonfim [...]Dava pra vender no Bonfim e nas Quemada, humrum, três dias. Fazia as caixa aqui no méi do caminho pra quando chegar lá em Quemada vender a farinha que aqui num tinha... Aqui tinha horta [...] Que ia... ia lá na

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minha casa, depois rodava a sua, quando num tinha uma coisa levava do outro, do outro era... porque era longe [...] Num vendia, botava os monte de farinha dentro de casa. E uma.... uma... um bolin as vezes vendia. O feijão, ficava um fico aqui no no canto da casa aqui. Fazia um fico e enchia de areia o feijão e areia pra ficar em cima todo ano [...]Era enxertado na areia [...]Ou então na gordura, no óleo e num vendia, num num dava coisa aqui não [...] É... aí quando tinha azeite, botava azeite [...] No óleo [...] Ou então a... a... a... areia por cima. Sabão? [...] Num tinha sabão... [...]Na... de cuada, eu já cansei... [...] Ou girava assim ói... [...] E botava o barro [...] E forrava, num machado, num numa madeira que tinha aqui que chama pó de rato e botava fogo [...]Agora aquela das cinza, que botava em cima daquela esteira ali e botava água [...] Aquela ali se pingasse... era só viva [...]Essa coisa do... do pó de rato era ali e fazia o sabão [...] Num tinha corda, as corda era de cuada da cinza do pó de rato. Quanto tocava a língua aqui comia a luz [...]Da língua da... [...] Num tinha nada lá, a coisa era devagar demais... Aí...E: [...] Panhava ali uma mandiroba [...] Pra fazer sabão daquilo ali, daquela sobra (Joaquim Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

O Senhor Joaquim possui na memória os processos históricos

vivenciados à luz da comunidade, tanto nas dificuldades como nos meios utilizados

para a superação destas barreiras. O tempo da seca, o tempo da fome, o tempo da

vida e da bonança estão sempre entrelaçados. É um Brasil que teima em existir,

mesmo diante da presença da morte rondando e marcando o cotidiano.

Este olhar presente na sua fala sobre a roça, cujo conhecimento é

pautado na prática de uma produção de mundo voltado tanto para a sobrevivência

como na tentativa de superação das dificuldades, demonstra que estas

comunidades possuem histórias de superação que, na verdade, remetem ao sentido

excludente da nossa formação socioespacial, cuja roça (trabalho e organização

social) aparece negligenciada e invalidada na sua ausência diante das políticas

públicas do próprio Estado.

A roça aparece dentro desta formação como categoria inferior e

consequentemente espaço geográfico negado como válido no arranjo socioespacial

e territorial.

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Figura 15 - Mata Secundária preservada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

O mato (Figura 15) está associado à roça na Comunidade Quilombola de

Várzea Queimada. Ele representa o lugar reserva e busca de soluções diante das

dificuldades. São várias as considerações que atribuem ao mato esta importância.

Remédio, objetos criados a partir de material coletado na mata, além da caça. É

muito comum as atividades de plantio e coleta por todos os entes familiares.

Inclusive, a roça aparece também como um lugar de diversão e descobertas na

infância, ao mesmo tempo que os pais desenvolviam suas atividades laborais.

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Figura 16 - Agricultor em Várzea Queimada ,2019

Fonte: Fábio Nunes, 2017.

Para o Senhor Ilário Jesus Cruz (2019), que se intitula " batucador de

roça”, “os mais jovens não querem saber de mato, nem chegam perto, só os mais

velhos não tem medo, inclusive nem sabem que tipo de mato não pode ‘rancar’”.

Observa ainda que o mato sustentava e permitia que a vida se estabelecesse, sendo

inclusive fonte de alimentação:

Pode descer perguntando aí olhe, homem, homem, mulher de quarenta, cinquenta ano aí, pergunta como é que faz? É difícil um saber aí, ó. Agora se for ne minha segunda mãe, ela fala, ela fala como é por mode meu pai, que meu pai fazia pra nós sentar tudo pra comer ó, semana toda.[...] Aí, por isso é que minha segunda mãe sabe fazer, por mode meu pai.[...] Era, era almoço mesmo, era isso aí. [...]Arruma o oricuri, cortar aquele cabra ali, ó. [...] Fazer, imbu e tudo. [...] Sustentava. [...] Quando não tinha imbu fazia com seriguela. (Ilário Jesus Cruz, Várzea Queimada, 2019)

O Ouricuri e o imbu sustentavam os que passavam fome, relembra o

Senhor Ilário, que aprendeu com os pais a extrair alimentos da vegetação da mata

em que só os mais velhos conhecem.

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Tinha um pé de coisa ali que nem eu tô falando, língua de vaca, pé de brêdo, era velado ali onde queimava coroa agora [...] deixe aí, amanhã ou depois nós retirava, nós fazia o almoço aí ó. Hoje não, se falar deixe esse pé aí que é pra tirar folha pra comer, fazer o almoço. Ah, não... Quem vai comer pau? [...] É, vai comer mato. Mas depois de pronto é pior que carne, mas pra quem não sabe é. (Ilário Jesus Cruz, Várzea Queimada, 2019)

Até hoje pratica a extração de Ouricuri (Figuras 17 e 18) e reclama da

dificuldade de acesso em função do cercamento das propriedades, o que impede a

extração e coleta. Para o Sr. Ilário, incomodado com o atual desconhecimento dos

modernos, gera a recusa e compreensão do sentido do mato.

Figura 17 - Comunidade de Várzea Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Figura 18 - Extração e coleta do licuri em Várzea Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

A roça se caracteriza nas comunidades quilombolas por delimitações de

plantio e cultura, muito mais do que cercamento, pois geralmente a terra é da

comunidade. No caso de Várzea Queimada, isso ocorria antes dos anos 1980,

quando ocorreu a tentativa de invasão das terras da comunidade por grileiros, o que

obrigou seus moradores a buscarem o cercamento e autoproteção. Hoje, cada

família é responsável pela sua área de cultivo. Outra justificativa presente nas

entrevistas diz respeito também ao problema com a criação de animais soltos e que

destruíam as plantações nas roças.

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Figura 19 - Senhor Henrique, agricultor da comunidade de Várzea Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

O trabalho na roça é uma convivência de vidas em se tratando de Várzea

Queimada. Por ser agricultura familiar, não é incomum também que o dia e a noite

estejam relacionados com as atividades produtivas, inclusive de trabalho na roça

durante a noite, como é o caso do Senhor Henrique (Figura 19), que afirma:

"Arrumamos um negócio pra batucar ... [...] mas pra quem não tem é difícil", já para

a professora Leonídia (2019): “A roça é o lugar de seres humanos viver em paz[...] A

gente planta, a gente colhe, a gente cria animais, né? E, a gente tá lidando com

vida”. O Senhor Gildásio associa a roça a uma segunda mãe, onde há alegria

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quando chove e tristeza quando é " estiagem" ou períodos prolongados de seca e

lembra das dificuldades que passou ao viver momentos difíceis e de fome onde

[...] uns dava a farinha, outro não dava nada, outros pagava um dinheiro ali, que foi o caso que eu me emocionei, da crueira que nois comeu pra sobreviver, por isso [...] eu não nego nada de comer a ninguém nunca”. São marcas profundas que precisam (Gildásio de Sena, Várzea Queimada, 2019)

A prática socioespacial de roça em Várzea Queimada é baseada na

orientação e na experiência de mundo presentes nos costumes, na história e na

cultura da comunidade quilombola. Não havia estrada, apenas caminhos na mata,

não há rio, mas havia caminhos entre roças e matas para o povoado de Piabas e

chegar ao rio Itapicuru- Mirim. Não havia comércio local, mas a moeda era o produto

socializado na troca. Hoje, e em função das mudanças resultantes da busca por

políticas públicas, a comunidade já conta com recursos modernos, disponíveis para

o desenvolvimento destas atividades. A aquisição de um trator para o preparo da

terra para cultivo, a construção da casa de farinha com maquinário industrial e o

acesso à agua potável encanada foram acompanhadas de novas práticas,

envolvendo a mudança no comportamento político da comunidade de constante

busca por parcerias e convênios, objetivando mais conhecimento e melhorias no uso

dos recursos extrativos e de conservação da mata, além de mais aperfeiçoamento

técnico na prática das atividades agrícolas.

Mesmo diante desta busca algumas práticas continuam sobrevivendo.

Felipe Nery de Jesus dos Santos tem várias habilidades: é pescador, pedreiro,

músico, caçador, apicultor e agricultor. Ele lembra da prática da capinagem e que,

muitas vezes, recorria-se a uma ajuda coletiva denominada digitório, que consistia

em prática de roçagem comunitária, tanto para capinar a roça como para arrancar a

mandioca e raspar, uma prática conhecida também como mutirão, o que se torna

também uma pratica de sociabilidade e reunião. Felipe Nery explica como ocorria:

"Aí quando eles marcavam os digitórios aí...[...] matava um porco ou [...] uma cabra,

ou então comprava um pouco de carne na feira. Aí juntava 10 (dez), 12 (doze)

homem, já limpava aquela roça”.

Felipe Nery relata ainda o que considera uma das atividades mais

pesadas, a produção de farinha. Segundo ele, a atividade diante do forno e uso do

rodo, chegavam a durar o dia todo ou acabar somente duas ou três horas da

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madrugada. Ele relembra ainda do uso do sebo para o armazenamento de feijão,

objetivando preservar as sementes e evitar bichos. Ainda entre as técnicas também

estavam o hábito de misturar sementes com cinzas da queima da lenha, depois

colocava em cabaças:

Feijão do ano eles botavam no sistema de de de... de lata e aí como eles tinham muitcho... como é... tinha muitcha criação de porco, bode [...] Aí eles conseguia sebo [... ] de de boi quando era de boi era de de de porco, gordura de porco [...] e agora eles juntava aquela banha [..]e desmanchava, por eximplo em uns 6 (seis) pratos de feijão, porque desmanchava no prato, num era saco. Aí misturava aquela gordura no feijão e agora ele vazava e botava ele [...] na cabaça. (Felipe Nery de Jesus dos Santos, Várzea Queimada ,2019)

Outra ação envolvendo as famílias é o corte, preparativo e plantio,

englobando também homens, mulheres e seus filhos (Figura 20). Nesta imagem, a

moradora da comunidade e agricultora Janailde de Jesus acompanha a preparação

da terra e o plantio da maniva para a futura colheita da mandioca.

Figura 20 - A agricultora Janailde Santos de Jesus. Planta manivas, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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A professora Leonídia, cujo conceito de roça é a "vida", mesmo atuando

na escola local não se vê longe das práticas de roça.

De tudo, de tudo de trabalho eu já fiz, já peguei licuri, já catei mamona, é... já tirei tapioca pra vender, de tudo. Já plantei [...]"e relembra ainda dos conselhos de seu pai diante da situação da comunidade na infância pois não tinha escola e eram obrigado a andar 12 km ida e volta até Piabas onde estudava a quarta série: "E as outras família tinha os filho, mas só que por causa da distância não ia estudar, mas pai sempre dizia: - “Ó, vocês vão estudar”. Que ele nos dizia assim: -“O saber morre com seu dono”. Que ele gostava muito. Ele aprendeu a ler e escrever sem nunca ir na escola de tanta vontade que ele tinha de aprender (Leonídia Jesus dos Santos, Várzea Queimada, 2019).

Em Várzea Queimada, viver na roça compreende uma integralidade na

diversidade das práticas, o que transforma a comunidade em uma rede solidária de

existência e resistência. São várias geografias que se manifestam e se realizam

produzindo um território que se afirma na comunidade de lugar.

Também pescador, o Senhor Gildásio (Figura 21), que é agricultor e

desenvolve também atividades de produzir tarrafas, nos lembra a partir de seu relato

que, ao viver na roça, a mata resguarda conhecimento e ao mesmo tempo possibilita

a realização e acesso aos bens de consumo, muitas vezes que a comunidade não

tinha.

Nois sabe tudo quanto é lugar aí dentro de vazante, de rio, de poço, praticamente nois sabe [...] nois andava tudo. Quebrando ariri. Sabe o que é ariri? [...] é mesmo que o licurizeiro, ele bota um cacho, que nem o licuri, aí você quebra ele, é fácil de quebrar, quebra até no dente. Aí, nois quebrava ele e vendia.[...] tinha bastante. Cherava, de longe você via o mato, o cheiro do ariri. Aí, chupava ele e o mesmo dendê que tem licuri tem o ariri. Aí, nois quebrava e vendia, nois pegava raposa, fazia armadilha para pegar raposa, arapuca, pegava para tirar o couro para vender para comprar um chinelo, comprar um short, era assim nossa luta. O licuri também, nós quebrava licuri, ajudava mãe a quebrar, nois comia cobra também para sobreviver, para chegar na onde nois tamo hoje, nois comia a jiboia, matava que naquele tempo tinha muita.[...] Mas, minha mãe cozinhava um ovo e partia pra sete filhos, um ovo, acredite, nós não tinha nada, quando a gente arrumava uma mão cheia de feijão assim e uma mão cheia de farinha, existia aquelas panelas de barro e ela colocava farinha dentro da panela mexia com a mão, apertava aquele bolo na mão de um na mão do outro dos sete filho. (Gildásio de Sene, Várzea Queimada, 2019)

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A memória de um passado, cuja vida experienciada intensamente por um

cotidiano de constante domínio prático sobre os recursos naturais que lhe cerca, faz

com que o presente na comunidade exposto pelo Senhor Gildásio seja fortemente

marcado por transmissão oral e narrativas constantes, revelando um Brasil

contraditório, ausente e indiferente, diante da realidade imperativa na comunidade.

Figura 21 - Gildásio de Sena, morador da comunidade tecendo tarrafa, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Sodré (2004) pontua sobre este grau de inteligência e produção de

conhecimento com base no pensamento de Milton Santos (2000) cuja "a experiência

da escassez é a ponte entre o cotidiano vivido e o mundo. Por isso, constitui um

instrumento primordial na percepção da situação da cada um e uma possibilidade de

conhecimento e de tomada de consciência " (SANTOS, 2000, p.130).

Sendo o mundo do trabalho a âncora que sustentará no território toda a

dinâmica envolvendo os sonhos e projetos desta comunidade a partir da experiência

do viver, o que Santos (2000) chamará de “resultado de uma metamorfose”

permanente. Desta forma, o “trabalho acaba por ser, para eles, o lugar de uma

descoberta cotidiana e de um combate cotidiano, mas também uma ponte entre a

necessidade e o entendimento” (SANTOS, 2000, p.131). O trabalho na comunidade

é a produção “intelectual” que autoriza e orienta os passos da comunidade e a

experiênciação constante será o movimento de transmissão cultural responsável

pela sustentação e manutenção do grupo diante da constante ameaça de escassez

a que são submetidos.

Ainda sobre a experiência, e com base no pensamento de Milton Santos,

Sodré (2004) avalia:

O que é a experiência? É o que há de criativo e constituinte em toda ação. Ao desbravar uma mata e construir uma casa com suas próprias mãos, o homem faz a experiência originária de um território, isto é, de um espaço por ele marcado, ganhando a autoridade de quem foi sujeito de uma ação e pode dela falar transitivamente. Em outras palavras, de modo operativo e diretamente relacionado a um complemento real-histórico. (SODRÉ, 2004, p.60)

O mundo da experiência e da transmissão oral será fundamental para

uma compreensão do que seria a formação socioespacial brasileira onde as vozes e

sentidos da existência negra levem em consideração o seu papel nesta

configuração, sendo a “fonte permanente de resistência a dispositivos de dominação

e como mantenedora do equilíbrio efetivo do elemento negro no Brasil. (SODRÉ,

2004)

Mas, o que seria o quilombo em uma sociedade onde seu registro

aparece somente na condição de um agrupamento humano ilegal e que é

interpretado como ameaça a ordem vigente? E como o seu reconhecimento

pressupõe que as outras vozes apareçam de forma objetiva nas políticas do Estado

negligenciadas ao longo de séculos?

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Este mundo rural se move em um espaço específico, o espaço rural, entendido em sua dupla face [...] aqui, referência à construção social do espaço rural, resultante especialmente da ocupação do território, das formas de dominação social que tem como base material a estrutura de posse e uso da terra e outros recursos naturais, como a água, da conservação e uso social das paisagens naturais e construídas e das relações campo-cidade. Em segundo lugar, enquanto um lugar de vida, isto é, lugar onde se vive (particularidades do modo de vida e referência ‘identitária’) e lugar de onde se vê e se vive o mundo (a cidadania do homem rural e sua inserção na sociedade nacional) (WANDERLEY, 2001, p. 32).

O espaço rural no Brasil, ao ser representado pelo movimento do

continuum, demonstra que o espaço é possuidor de elementos condicionadores e

que impedem também o rural de ser entendido dentro da multiplicidade que o

caracteriza. No entanto, mais do que a simples distinção, é preciso reconhecer o

caráter identitário de vivência e transmissão técnica de mundo presente na

ocupação do espaço rural, o que se constitui também no nível das trocas sociais e

espaço integrados e convergentes.

Há algo muito além de uma classificação econômica que se possa

representar e muito além das limitações sociais que aparenta ser nos relatos. Se o

mato ou a mata seria este local onde a vida está sempre se ancorando, certamente

o limiar dele é a sua não existência ou ameaça diante de um desenvolvimento que

considera modernidade sua eliminação.

A distinção envolvendo dois polos na perspectiva de atraso e progresso,

sobretudo na discussão técnica, não permitirá o entendimento sobre o papel do rural

no processo, já que se constitui muitas vezes em um imaginário urbano e de

centralismo.

Segundo Wanderley (2001), os pequenos municípios no Nordeste são

marcados pela predominância de maioria populacional rural, demonstrando por sua

vez, a negligência do Estado com as famílias agrícolas, o que se constitui em

pobreza, precariedade e se opera no plano dos espaços vazios, ou reservas

consequentes da grande propriedade patronal.

A roça emerge assim diante de sua função histórica, ao englobar famílias

ou grupos sociais que ocuparam as brechas e se constituíram em lugares de prática

socioespacial integral e agregador da sociabilidade fundamental para a sociedade

brasileira que se configurava desde o período colonial.

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Vários estudos abordaram como o sistema de roças foi marcando profundamente as vidas escravas, inclusive transformando as políticas de domínio e as sociabilidades envolventes. A luta escrava pela autonomia do cultivo de roças podia estar entrelaçada com outros embates, abrindo espaços autônomos e modificando a organização do trabalho. Mediante o cultivo de roças próprias e a comercialização dos excedentes, os escravos procuravam organizar uma rede mercantil e articulada no âmbito das propriedades em que trabalhavam, [...] em torno dessas roças, os escravos reelaboravam modos de vida autônomos e alternativos, forjando experiências profundas que marcaram o período da pós-emancipação. A organização social escrava em torno do sistema de roças, mais que simplesmente se reduzir a meras práticas econômicas, estava relacionada a importantes aspectos simbólicos e culturais do modus vivendi reinventados pelos cativos (GOMES, 2015, p. 31).

Portanto, projeção e funcionalidade espelham a lógica operada. Desta

forma, a materialidade do espaço colonial como pressuposto da história e cultura

nacional será amplamente reproduzida e transformada em patrimônio, uma vez que,

de certa forma, representará parcelas significativas da sociedade brasileira.

Por causa dele. Bem da verdade que toda vida eu trabalhei, mas meu ex-marido, que Deus mandou chamar, ele vivia de rolo. Então, a gente plantava uma tarefa de mandioca, ele pegava trocava em cachorro velho, em égua velha, então, não dava pra a gente tirar nada. Então, depois que eu vim morar mais ele [...]então, nós temos nossa casa, nós temos nossa roça, ele tá aqui com problema, mas eu vou para a roça, trabalho, eu sei que ali eu vou colher. [...] Ele trabalha, ele trabalha. [...]E agora eu digo, eu vou trabalhar porque eu sei que eu vou comer, e nós aprontamos muito, já tiramos 20, 30 sacos de farinha aí da roça, as galinhas ninguém faz rolo para levar, os ovo é tudo pra aqui pra dentro de casa e nois come. Então, agora sim é um prazer trabalhar. [...]Essa semana tava com umas três dúzias de ovos aí, eu nem vou comer nem vou vender, vou deixar tudo aí com as galinhas e evoluir, fazer alguma coisa dentro de casa (Maria Helena dos Santos da Cruz, Várzea Queimada, 2019).

Maria Helena demonstra que a projeção da vida quilombola passa sobre

tudo pela roça como base e segurança social. De certa forma, é um “pedaço” de

mundo que se realiza diante e, para confrontar a realidade brasileira constantemente

presente no cotidiano da comunidade.

Portanto, o campo da memória será a força e o instrumento que

transformará o negro em detentor cultural dos processos simbólicos e estéticos

referentes a sua vivência e sobrevivência, já que a sociabilidade e a esfera

transpostas continentalmente não encontravam na América lugar de continuidade,

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representando cisões sociais. Mas, para além de um lugar no imaginário negro,

lócus da sua imaterialidade e guia sobre a objetividade material do território do

dominador, teremos a prática cultural e social como realização e acionamento da

sua africanidade através de quilombos e comunidades de roça.

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‘Aí, me ensinou outras oração pra na hora que eu sair de casa, você vai no caminho, você vai no deserto, e você reza, aí você não vê nada, não, isso aí eu tenho certeza que eu já rezei, nem calango num corre, não chega no caminho, você segue sua viagem. [...] funciona, funciona. É só rezar e ter fé em Deus, nada ruim. Se vier um cara no caminho para te pegar, ele tem que desviar o caminho, ele vai para outro canto”.

(Gildásio de Sena, Várzea Queimada,2019)

A relação entre lugar e identidade sugere um grau de aproximação que

permite ao indivíduo estabelecer uma consciência espacial de si, do outro e do seu

entorno, envolvendo por sua vez diversas escalas geográficas. Estas são acionadas

na medida em que os diferentes papéis exercidos cumprem determinados objetivos

estabelecidos no convívio social e sentidos dados aos espaços por diferentes grupos

que nele atuam. É neste âmbito que a cultura africana na Bahia recorrerá aos

diferentes lugares de sua composição imaginária e identitária capaz de recriar nas

práticas simbólicas e discursivas estabelecidas, vínculos étnicos e de referências

que podem ser múltiplas.

[...] a eventual multiplicação dos indicadores da identidade tende, de um lado, a enfocar um núcleo identitário individualizado, de outro sugere e possibilita, como que gravitando em torno dele, a existência de identidades múltiplas. Estas são mais ou menos contingentes, impostas ou escolhidas em graus diversos, no sentido em que a identidade social do indivíduo e do grupo se aproxima e é entendida por relações e situações em linhagens ou redes (LE BOSSÉ, 2004, p. 162).

O grande desafio consiste na configuração dos espaços e no seu elo

propagador das identidades manifestas nos lugares. Desta forma, a simples

existência dos espaços estaria associada ao caráter identitário de sua permanência

como representação para o grupo e diante do outro diferenciado. Para Le Bossé:

[...] é preciso ressaltar que toda forma identitária apresenta-se como um equilíbrio de tensões entre o ser e o vir-a ser: assim, o argumento identitário, como consciência e presença suscetível de mudar, de desaparecer ou adaptar-se, tanto pode voltar-se para o passado como projetar-se no futuro (LÉ BOSSÉ, 2004, p. 163).

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Logo, não obstante e que pese a distância entre a África continental e o

Brasil, os diferentes lugares negros constituídos em movimentos de negociação e

resistência permitiram que se propagassem os valores e princípios filosóficos griot's,

transformando através da memória o ressignificar - se, o ser e estar no lugar. Um

valor que, apoiado no simbolismo, permitirá a "ancoragem" necessária do indivíduo

ou grupo frente aos diversos territórios (LE BOSSÉ, 2004) por ventura

desconhecidos.

Os territórios estariam assim conectados por redes de lugares

experienciados e vividos e que dialogam entre si em diferentes escalas espaciais.

Da roça ao povoado ou distrito, da roça a esfera municipal e estadual, da roça ao

federal e transnacional temos aí o lugar enquanto mediação e redefinição dos

sentidos.

Sempre vivi na roça, direto. [...]Sempre trabalho de roça. [...]É, direto. Desde lá, que ele saia pra ganhar, que essa daí que diga, que ele era trabalhador, tanto trabalhava no peso, como no ganho. Ele saia pra trabalhar ganho e nois ficava na roça, depois que os filho cresceram, ele ia ganhar e nois ficava na roça, só na roça (Maria de Jesus, Várzea Queimada, 2019)

No entanto, este entre-lugar no movimento ocorre entre distintas

localizações geográficas (DARDEL, 2015), possibilitando a aventura que precisamos

ainda ter.

Ocorre que o lugar existirá tanto no momento da descoberta espacial, o

que usualmente lhe caracteriza, como no reconhecimento da presença de outros em

outros lugares. Não estão dissociados, mas apresentam distinções na formação, no

tempo e no espaço da construção e nos códigos que fundamentam ainda a sua

configuração.

The point applies to place as well to the self. Places can never become utterly attenuated. They may become increasingly uniform and unable to engage our concernful absorption, without, for ali that, ceasing to exist altogether as places for us-places in which we orient ourselves and feel at home. In particular, places places will not "merger is to confuse two orders of being that are, in principle, separate. Place is indeed situated in physicall space, but then so is everything else, events as well as material things; it has no privileged relationship to that space, by away of either exemplification or representation. No can it be derived from it by some contrived genealogy.To believe in such a genealogy is to buy into the modemist myth that the lived world is made of pure extended space, and that

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anything less than such space, including place, follows from it by derivation or demlimitation. (CASEY, 2001, p.685)14.

Observando o valor íntimo da busca de um lugar que satisfaça o

indivíduo, evidente, significa também conjecturar sobre o outro que vai ou não

pertencer ao desejo. Casey (2001) analisa sobre a aludida segurança presente no

lugar de pertencimento e ao mesmo tempo a relativa fixação do lugar diante da

dinâmica que se estabelece no âmbito das relações.

Remetendo aos espaços negros no Brasil, o quilombo nunca foi estático,

porém com localização, onde toda a energia e movimentação em seu entorno

indicava que o tempo e existência da sua lugaridade o promoveriam ao status

espacial de lugar e/ou território, ali a força do "habitus”15 se faz presente.

Human beings act on the basis of habitus, and action is something that is both lived (i.e., consciously experienced) and intentional (i.e., involves an aim even if this is not explicitly formulated). The value or virtue of a given habitus resides in the actuality of its enactment, its skillful application-not in its being a solidified deposition of past actions or a mere disposition to future actions. Whatever its antecedent history and subsequent fate, a habitus is something we continually put into action. Moreover, we do so by means of concrete behaviors that follow various plans and projects of a self who actively

14 O argumento é válido tanto para lugares quanto para indivíduos. Um lugar nunca pode ser

completamente mitigado, eles podem tornar-se incapazes de envolver nossa absorção atenta sem por isso deixar de existir enquanto lugar para nós-lugares nos quais nos orientamos e nos sentimos em casa. Sobretudo, lugares não se “fundirão a”, nem tão pouco se transformarão em, espaço. Propor tal fusão é confundir dois modos de ser que são, a princípio, separadas. Lugar é de fato localizado em um espaço físico, mas, do mesmo modo, todas as coisas o são, bem como eventos ou itens materiais. Lugar não possui relação privilegiada com tal espaço, seja por vias de representação ou exemplificação, nem tão pouco pode ser dele derivado por alguma genealogia forcada. Acreditar em tal genealogia é o mesmo que validar o mito modernista de que o mundo vivido consistente de espaço estendido puro e nada além menos que tal espaço, incluindo lugar, pode vir dele por meio de derivação ou delimitação. (CASEY, 2001, p.685, tradução nossa). 15

Os seres humanos agem com base em hábitos e ações, e ação é algo que é ao mesmo tempo vivido (i.e. experienciado de modo consciente) e intencional (i.e. envolve um objetivo, ainda que esse não tenha sido formulado explicitamente). O valor ou virtude de um habito reside na realidade da sua performance, seu emprego habilidoso – não em ser a mera solidificação do acúmulo de ações passadas ou futuras. Independente do passado que lhe antecede e do seu destino, um hábito é algo que constantemente colocamos em ação. Além disso, nós o fazemos por meio de comportamentos concretos, guiados por vários planos e projetos de um indivíduo que ativamente tenciona fazer algo no obtuso ‘mundo do senso comum’ o LIFE-WORLD que é produto do ‘Arranjo dos hábitos’ (BOURDIEU, 1977, p. 80, apud CASEY, 2001, p. 687). Dado que esse mundo apresenta-se para nós um esboço de lugares, o acionamento dos hábitos exprime um compromisso intencional e engajado com o lugar-mundo. Ainda que, a bem da verdade, tenha sua origem na internalização de práticas sociais, desempenhar determinado habito é aproximar-se de lugar, um ‘ser’ ou ‘tornar-se’ em um lugar. (CASEY, 2001, p. 687, tradução nossa)

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intends to do something in the dense ‘commonsense world’, the life-world that is the product of ‘the orchestration of habitus’ (BOURDIEU, 1977, p. 80, apud CASEY, 2001, p.687). Given that this world presents itself to us as a layout of places, the activation of habitus expresses an intentional and in- vested commitment to the place-world. Even if it is the internalization of social practices in its origin, in its actual performance a given habitus is a reaching out to place, a being or becoming in place. (CASEY, 2001, p. 687).

Habitus aqui, não necessariamente seria o costume em si, mas a herança

seja cultural, técnica e de vivência que invariavelmente circulam com os indivíduos

em conjunto no tempo em que está sendo acionado. Ao circular na América por

força da diáspora africana ocorrida, nagôs, jejes, bantos e iorubás transformaram o

espaço dos outros e também incorporaram hábitos dos povos africanos em contato

somente aqui na América portuguesa e frente ao evento negocial do tráfico, o

contato e a comunicação forçada entre si se estabeleciam, envolvendo povos

referentes de lá e de cá.

Diáspora e deslocamento, isolamento e contato, lugar e territorialidade16

são aspectos e pontos importantes para o entendimento das conexões e dos

processos envolvendo o território brasileiro e seu caráter produtivo, instaurado sob a

perspectiva de interesse material na sua configuração.

Diante disso, os lugares apareciam como pontos e/ou nós, além de

representarem o parcelamento do espaço em construção frente ao seu caráter

colonizador. Uma dada fragmentação espacial diante de uma hierarquia territorial

marcada por uma lógica de eleição dos lugares a partir de sua estrutura técnica e

que ao mesmo tempo atendiam aos interesses internos e externos, acabaram por

representar uma dada abertura responsável por estabelecer a validade ou não da

experiência e assimilação. Ou seja, mesmo diante de uma recusa aos eventos, os

lugares não estariam isolados e são partes fundamentais da lógica e sentido que o

espaço/território terá. Massey (2008) reavalia o olhar de Giddens sobre "espaço" e

"lugar" marcado, sobretudo, pela ideia de separação entre suas definições. "Com a

modernidade, veio a separação dos dois: espaço como exterior de um lugar que era

"específico, conhecido, familiar, delimitado" (MASSEY, 2008, p.104).

16

"A territorialidade é compreendida muito mais pela relação social e cultural que um grupo mantém com a trama de lugares e itinerários que constituem seu território do que pela referência aos conceitos habituais de apropriação biológica e de fronteira" (BONNEMAISON, 2002, p. 99).

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Se o espaço marcado pela diáspora africana representava a

descontinuidade da cultura africana no projeto europeu, e, ao mesmo tempo, o

enquadramento das diferentes culturas atingidas, a América tornou-se um lugar

onde a efetiva sobrevivência dependia efetivamente de uma redefinição do sentido

de lugar operado, diante de espaços amplos representados pelos desígnios

territoriais capitalistas, definidores de práticas socioespaciais coercitivas e

condicionadoras, onde o conceito como finalismo contemplaria toda a dinâmica

espacial.

Segundo Marandola Jr.:

O ponto mais fundo dessa insegurança ontológica é a separação tempo e espaço, marcadas pelas descontinuidades dos modos de vida, das culturas e do ritmo da mudança social. Essa separação provoca, para Giddens, uma radical diferença em relação as sociedades tradicionais. Estas tinham tempo, cultura e espaço contínuos ligados ‘através da situacionalidade do lugar’. O desencaixe, noção central da análise giddesiana, indica o deslocamento das relações sociais dos contextos locais e suas rearticulações através do espaço-tempo. (MARANDOLA JR, 2012, p. 240).

No entanto, escalas espaciais que representavam micro processos

reativos ao poder colonialista significavam a pulverização territorial e o

reconhecimento das ações redefinidoras dos sentidos atribuídos aos lugares.

Quilombos, mocambos e roças aparecem assim como lugares definidos

por movimentações, conexões e inter-relacionalidade, capazes de promover a

existência de lugares. São Paulo, Paraná, Bolívia, Caém, Salvador e outros lugares

aparecem como lugares possíveis de realização da comunidade de Várzea

Queimada, no entanto, revelam um diálogo política do geográfico ao confrontar e

contribuir por questionar o sentido dos outros. O Senhor Felipe e o Senhor Henrique

demonstram terem vivenciados São Paulo em décadas diferentes, no entanto, com

mesmo sentido e lugar designado pela invenção do metropolitano brasileiro:

Eu fui... a última vez... eu fui numa... uma vez antes de casar.[...] Já já já... fechando 17 (dezessete), só que a... a... aí as coisa aconteceu e minha esposa ficou grávida do primeiro filho[...] Aí quando eu voltei... [...] Aí fui bataiá pra fazer a... a... a casa. Ela ficou grávida na casa de meu sogro, num tava nas minhas responsabilidades ainda[...] Trabalhei na construção civil[...]Já, já tinha já pessoa conhecida, da família já...[...] É, ainda é normal ainda, só não tá

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tendo mais agora por causa do desemprego demais lá na cidade grande[...]Aí a maioria dos pais dá conselho pros filhos não ir. Ou vai, ou vai com emprego direto [...] Ou então... é melhor não ir. Porque antes e... ia aventurar [...] Porque sabia que não faltava serviço, e hoje num dá pra sair daqui pra São Paulo pra aventurar [...] Porque você vai sofrer, vai pra debaixo da ponte[...] Lá e sofre a família cá[...] Tá cheio (Felipe Nery de Jesus dos Santos, V. Queimada, 2019)

Saí outo, outra vez sai daqui e não, pra lá tá muito bom, então vamo pra, tô indo pra lá pra dentro. Larguemo de São Paulo e fui pra o interior, eu digo... [...]Aí que deu, nós pra cês para aqui, que aqui tem um camarada que toda noite ele passa aqui procurando homi pra trabalhar. Aí, aí, aí, foi a, a, foi o maior, pior previsto que eu vi. Tá bom, aí fiquemo lá, acho que era uns oito peão, cheguei o cara ai, ó foi lá, foi, eu vou mandar fazer comida, comprou carne. Aí falou, ó vocês bebe? Bebe. Foi lá comprou uma... Como diabo de chama o cão da cachaça? Fogo, pé, mé, é, um... Fogo pedrece, parece que era, tinha essa cachaça, e sô aqui, aqui pra nós beber e... Tufo... A tampa foi lá em cima e caiu no chão. Piquemo o cacete cumemo e bibemo. Pronto, agora vamo todo mundo descansar. Descansemo ali e mais tarde, aí o cabra estremeceu, eu disse ó, já tem um aí, eu digo, tá bom, então a coisa tá começando a ficar boa. Aí eu falei, quem é esse? É o chefe aqui. Ê disse eu tô caçando aqui, os homi que tiver aqui vai tudo. Amanhã, oito hora eu venho panhar vocês aqui. Lá, o serviço lá é uma moleza, meu irmão, moleza? Camara entra vi, entremo nos mato que os pé de angelin era dessa grossura assim ó. A madeira, você tá, tem lugar que você não via o céu, era assim ó.[...] Foi, no Paraná. Ali com pouca hora, cheguemo lá, e aí? Eles não, num pera aí amanhã cedo, aí quando foi quatro hora o cara vei e arrumou, pediu o decumento de todo mundo e aí trouxe pra cada aqui uma foice e um machado e agora lascou a boca do bode, tudo bem. Aí, quando eu sá que horas, nós compremo uns cabo novo, botemo no ferramenta ô, meu irmão, ali eu ví tacara, viu.[...]Era rapaz, dirrubar, igual a esses trator faz aí. Cavava o buraco, tudinho, dano aqui, até chegar em baixo, que a, a aquela, aquela a coisa do trator passasse e não quebrasse embaixo, não pudia. [...] Aê era só cortando, virando. Um a, um adiante cortan, rancando e os outro atrás cortando e os outros cortando e tirando as madeira, só deixando só a folha.[...] Vige Nossa Senhora, tinha, tava igual a cabelo de gato.[...] Pernambucano, lagoano, cearense, de todo canto. Eu digo, ô meu Deus do céu, vamo fazer aqui o que? Aí ele falou assim, e aí a dormida? Eu disse, não, a dormida é aqui. Mas rapaz, como é que... Não, nós vamo dormir tudo aqui. Aí tinha um tali de garpão, aí ele bem coberto, lá na frente tinha outro garpão, é mais ou menos cheio de mil, de bosta até enxergar no teto. Ele dormia lá. Um dia ele disse... Não, vocês que chegaram agora, eu não vou botar naquele grupo de lá não, vão ficar pra cá. Tudo bem, aí quando chega, quando dava dez hora, ele levava comida, nêgo tava com as mão pegando fogo. Nós não, que nós era acostumado da roça né, com foice, machado e tudo, não sentia muito, mas teve nêgo hum, que ficou por ali assim empregamo logo uma bocada, bem grande, aí ele disse assim... Quando partir o mei do mato. Eu disse... Ói, vocês trabalhar fica aqui até terminar, eu vou levar vocês em São Paulo. Eu digo ô, mas peão um bicho doido, pera aê, e agora? Como é que

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vamo fazer? Oxi, rapaz nós tamo aqui dando murro do cão, vamo embora desses diabo (Henrique Pereira dos Santos, V. Queimada, 2019)

Este deslocar-se no território em formação onde lugares sofrem

interferências de outros demonstram que estas comunidades dialogam com as

mudanças em vários âmbitos espaciais, seja atribuindo valor econômico a processos

de produção onde buscam inserção, seja de valor utilitário no uso ou na fluidez

passageira onde aquele espaço é apenas a ponte para outro. Neste processo, fica

latente que o Brasil se constitui territorialmente, dentro de uma lógica voltada para a

eleições de lugares.

Massey (2008) observa que categorias aceitas e autenticidades "precisam

ser questionadas, e de que atribuições atuais, como as de remoto e isolado, foram

produzidas, tanto discursiva quanto materialmente, através do colonialismo"

(MASSEY, 2008, p. 105).

Logo, o território brasileiro e sua institucionalização, mediadas nas

centralidades geográficas capazes de dar-lhe funcionalidade administrativa e

participação utilitarista no cenário econômico mundo, vão encontrar nos lugares,

diálogos e sentidos, cujas temporalidade e espacialidade pareciam recorrer a outras

lógicas.

Ao relatar eventos ocorridos na comunidade, Maria Helena evidencia o

confronto entre um Estado que se manifesta a partir de uma lógica no lugar,

caracterizado sobretudo por apropriação e invasão das terras de vivência da

comunidade. Entre os exemplos citados, ela destaca a tentativa de expulsão dos

moradores, onde alguns indivíduos utilizam meios institucionais e agentes legais

com este propósito.

Evidente, o território formativo não era assimilado por igual e, portanto, os

lugares representavam também o finalismo e ao mesmo tempo a instabilidade ou

recusa.

Por que, olhe, eu vou lhe dizer, isso aí pode até gravar, nois comiamo aqui parmito, eu me lembro que meu pai, não tinha nadinha pra, aí pai dizia, ó, meu Deus eu vou no mato, vou tirar uns parmito pra cozinhar para nois comer. Eu digo, pai, o que é isso, pai? Ele dizia, é uma saletinha de licurizeiro, minha filha. [...] aí pai foi devagar e chegou lá e cortou, três pés de licurizeiro e a cabeça do parmit. Eu peguei as cabeça de parmito cozinhei, acabar pai passou no ralo, aí

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pai foi, imbu, vamos fazer uma embusada que é mais rápido, aí mãe, corre Lena lá no pé de imbu, panhei os imbu, caba, cuzinhei, não tinha dinheiro, tinha uma rapadura, ele pegou a rapadura e cozinhou dentro com o imbu, cabou pegou o palmito jogou ali dentro [...] Pegava e cortava o licurizeiro, pegava 30 dias e ta lá um monte de besouro de licurizeiro destamanho, e nós cortava, caba pegava, torrava a fubá, que era a farinha, pra fazer farinha, fubá de milho e nois comia. Era gostosura. Então, não existe mais isso, acabou. [...] Ou seja, o mato era que sustentava no momento que não tinha comida. [...] Lambu, acabou tudo, não se vê uma lambu cantar aqui. [...]Esse Pedro Franco que tinha aí, acabou com tudo. [...] Ele bateu no pobre do homem, que é de favela, o homi é vivo. [..] Tudo, cumpadre Joaquinho que tirava a cerca aí, derrubada de dia, eles levantava de noite, de manhã derrubava. Eu sei que ele tomou esse mundo todinho, chegou de Várzea Grande, desceu até aqui no rio, chegou no rio de Baraúna para cá, ele tomou tudo. Sim, até São Miguel, Pedro Franco, que era o grilheiro. [...] Morreu, Deus mandou chamar, tá pagando o que fez com os pobre. Agora aqui tá muito avançado, graças a Deus (Maria Helena dos Santos da Cruz, Várzea Queimada Queimada, 2019)

Este território que se efetiva a partir dos impactos causados nos lugares,

como relatado pela Senhora Maria Helena dos Santos da Cruz, demonstram que a

na materialidade estrutural e produtiva do território brasileiro encontramos uma

produção de distorções quanto ao pressuposto modelo ou orientação nos diferentes

papéis e distinções ocorridas nos lugares e entre lugares.

No sentido das modalidades práticas e simbólicas pelas quais um grupo define e controla seu território, a territorialidade revela a identidade do lugar, ela é, ao mesmo tempo, o produto e a expressão de um ponto de vista interno e inclusivo. Mas a noção de territorialidade parece demandar a ultrapassagem desse único ponto de vista: como referência identitária, o território define tanto aquilo que lhe pertence como aquilo que ele exclui (LE BOSSÉ, 2004, p.173).

Se a releitura do lugar/local aparece associada em Massey (2008) a um

período que representa a modernidade em instauração com seus parâmetros

espaciais coloniais (inclusive o território "res-extensa"), Marandola Jr. (2013) e

Holzer (2008) observam que o conceito, a propósito da sua importância conceitual e

geográfica, remontam cientificamente a meados do século XX quando as primeiras

obras no âmbito da chamada "geografia humanista" influenciadas por Tuan, Relph17

17

"A geografia foi concebida desde suas origens como o estudo dos lugares e regiões e, embora nunca tenha ficado claro o que isso significava, era mais subentendida do que evidentemente ciência

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e outros abordam inúmeros estudos cujo teor "place" destacavam fenômenos e

ocorrências que atualizam os estudos geográficos, principalmente em função da

sociedade em voga com suas novas interpretações da realidade em andamento.

4.1 CIRCULARIDADE E LUGARIDADE GEOGRÁFICA AFRO: ENTRE ESPAÇOS, ENTRE LUGARES

“E eu ia pra festa, pro samba, pra roda, batalhão[...]Eu vô fazer os batalhão aí... e ia também pros mutirão. [...] Ia pros mutirão[...]Os mutirão era... que tinha que ser ser pra prantá feijão já criava o catado pra montá chamava os homem tudo pra limpá a terra pra prantá feijão”.

(Joaquim Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

O imponderável nesta aventura é saber como o lugar se estabelece, na

medida em que eventos diversos ocorrem e o lugar representará ao mesmo tempo o

finalismo e/ou a emergência dos eventos geradores de mudanças e recusas dos

significados e proposições definidas pelo ideal universalista presentes muitas vezes

no valor utilitário atribuídos às categorias geográficas de análise.

Tratando-se da origem quilombola no Brasil, a produção de lugares

negros invariavelmente dependia da memória cosmogônica negra, onde a relação

com o espaço territorial significava definir lugares de sociabilidade e resistência.

Curiosamente, esta dialogará com a temporalidade em curso, visto que, a

permanência e a alteridade simbólica significava quebrar a rigidez cronológica do

pensamento europeu instalado na produção e execução forçada da materialidade

presente.

O quilombo é uma designação social que se refere à apropriação espacial dos povos remanescentes negros resultantes da escravização no Brasil. O quilombo se constitui em espaços nos quais as práticas socioespaciais apresentam uma lugaridade caracterizada pela autorreferência e ocupação territorial, regidas por mecanismos próprios de organização, e que, ao longo da formação territorial brasileira, fundamentou uma resistência e permanência sobre um espaço hostil através de um ordenamento espacial próprio (JESUS, 2013, p. 33).

espacial. A defesa do lugar na geografia nos anos 1970 e 1980 foi inicialmente uma alternativa para o achatamento da disciplina” (RELPH, 2014, p.19).

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O território quilombola prescinde assim de uma lugaridade que se

transmuta de acordo com a escala e a necessidade do grupo/comunidade referente

em lugares de sentidos, lugares da vivência, lugares do simbólico.

Sodré (2005) identifica nos espaços negros, lugares guardiões da

memória:

[...] o terreiro seria o campo (o território de preservação da regra simbólica) delimitativo da cultura negra no Brasil, o espaço de reposição cultural de um grupo cujas reminiscências de diáspora ainda eram muito vivas. Nele se recriou a forma (com conteúdos selecionados e reelaborados) básica de coesão grupai negro-africana. Mediante a iniciação e a vivência na comunidade-terreiro, os indivíduos passam a absorver princípios ritualísticos que engendram atividades de dança, canto, narração, música, artesanato, cozinha, enfim de algumas possibilidades discursivas negras (SODRÉ, 2005, p.125).

A memória e a aventura, aqui, refere-se a resistência e luta por

sobrevivência. Tipos e características presentes no lugar, porém com uma carga

variável de sentido quando colocados em distintas escalas geográficas, seja no

espaço da diáspora africana com seus diferentes grupos étnico-culturais, seja no

território brasileiro em formação.

A carga simbólica presente no território das sociedades tradicionais revela não somente o nível de ligação material dessas sociedades com o espaço, mas também sua extensão para outros tempos e espaços que dialogam com o presente. No caso da cosmogonia afro, temos uma transtemporalidade na força religiosa de matriz africana, reduto da cultura e identidade afro diante de sua proibição e manifestação no Brasil colonial (JESUS, 2013, p 35).

Portanto, os processos espaciais, exigiam das comunidades negras o

estabelecimento nas relações de graus de valores para cada lócus do espaço,

inclusive o isolamento diante do recurso controlador do colonizador e posteriormente

das elites regionais.

É através do relacional que esse território se estabelece no cotidiano, quando o lugar é regido por um movimentar-se e retornar-se, tornando-se também um movimento, uma lugaridade. Ou seja, posiciona-se e se move como um grupo, um coletivo identitário cuja autoridade está justamente no inegável reconhecimento da experiência sobre o vivido. Dessa forma, tempo e espaço tornam-se difusos e ultrapassam o limite da sobreposição (JESUS, 2013, p.112).

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Cabe destacar aqui a lugaridade discutida por Relph (2012) cujo

movimento, a distância e o significado carregam e aproximam os indivíduos entre si,

com os objetos geográficos e com sua existência no mundo. Nos deslocamos

vivenciamos sobre o que conhecemos, o novo será real, na medida em que

experiencio ou vivo a experiência dos outros através da validade ou aceitação dos

significados estabelecidos ou produzidos. No entanto, não é uma via de mão única,

já que a recusa ou o não reconhecimento também faz parte do processo.

Esta existência do indivíduo diante de fenômenos diversos, naturais e ou

sociais revelam a busca fenomenológica identificada no próprio status do lugar, um

nível de personalismo e representação em que podemos confrontar-lhe diante do

caráter identitário que, muitas vezes, acaba por ser revelado. Marandola Jr. (2010)

observa na preocupação de Relph com o lugar, o significado do reconhecer o(s)

outro(s) na configuração do "meu" lugar.

[...] ele propõe os conceitos de interioridade (insideness) e exterioridade (outsideness), que são advérbios de modo de estar dentro ou de estar fora dos lugares. Para Relph (1976, p49), esta é a essência da experiência dos lugares. ‘To be inside a place is to belong to it and to identify with it, and the more profoundly inside you are the stronger is this identity with the place’18. (MARANDOLA JR, 2010, p.3,).

Ao observar a ideia de lugaridade, é importante destacar o elo que se

estabelece através do movimento por onde circulam as modificações e /ou

reafirmações em torno do lugar, onde a intencionalidade e vivência definirão a

geograficidade19 manifesta.

A essência do ‘lugar’ é o movimento, pois ele outorga espaços na medida em que podemos nos locomover, isto é, variar nossa intencionalidade e nossas ações a partir da propriedade de nos deslocarmos no espaço, ou melhor, de o corpo criar espaço a partir de seu deslocamento (HOLZER, 2013, p. 23).

18

“Estar inserido em um lugar é pertencer a ele e identificar-se com ele, quanto mais inserido se está mais forte é essa a identificação com o lugar” (tradução nossa). 19

Segundo Holzer (2013), com base também em Dardel, a "geograficidade, que expressa a materialidade do espaço geográfico, é compartilhada em nossas vivências cotidianas com a lugaridade que, por sua expressa exatamente essa relação dialógica dos seres em movimento com lugares e caminhos que, como pau como convivência intima, arrumam e delimitam os espaços." (HOLZER, 2013, p. 24).

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Neste sentido, o espaço apresenta urna lugaridade mediada pelo

estabelecimento de valores e relações culturais, e muitas vezes não cabe classificar

seus viventes por parâmetros comuns na classificação social dos mundos e dos

povos. Felipe é pescador, agricultor, caçador, tocador de pífano e pedreiro:

É, até porque ôh.... ôh os pessoal maiores focavam mais na área da comida, se vestir eles não focavam tanto [...]Ê ê eu estudava, eu viajava o ano todo com uma roupa só [...] Pra escola! Quando ia sujando tirando... lavando e vestindo” [...] É, eu ensinei meus filho a pescaria[...] Eu num pesco mais hoje, porque... eu tenho um... problema que eu teve um problema na... na na... de saúde [...]Tenho trambose nessa perna direitcha[...]Aí eu num... parei de pescaria. Num posso entrar dentro de água que ela... pode dormecer e... eu morrer [...] O pescado sempre mais pra alimento, nunca fiz... é... assim.. pescar pra venda não[...]Sempre pesquei pra alimentá a família[...]eu sou pedreiro também[...]Tive que aprender trabaiar de pedreiro, ensinei meu filho[...] A maioria das estrutura tudo aqui tem a minha mão[...]Ali o centro cultural, fui eu e meu filho[...]Essa garagem aqui do trator fui eu com ele[...] Nielson [...]Wilson [...]Os dois fio meu ali[...] Nielson é o [...]mais magro[...]Óta coisa que eu aprendi, só que a gente... num... num foi pra frente por causo que que... a relação foi o que aprendi com os mais mais mais mais velhos com pai. Foi na área de... abano de piche[...]Meu pai tocava todo ano mais Valero, marido de Mira de lá de Piaba. E aí... todos os meus tios e os sobrinhos deles aqui. Aí todo ano tinha as novena, e aí ele tocava, ele tocava, eles tocavam [...]Todo ano, todo ano, aí ganhava por novena, por diária[...]Aí eu aprendi, trabaiando um bom tempo né? Mais ele, aprendendo, tocando [...] Setembro, nos festejo de São Cosme [...] Givaldo é bom no pandeiro. Agora, eu fiquei profissional na na na na na gaita, na bumba, na... (Felipe Nery Jesus dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

Desta forma, o quilombo é um espaço social dinâmico. Seu legado

histórico reside na memória e na lugaridade de uma convivência coletiva marcada

por vínculos identitários étnicos, culturais e religiosos, com fortes laços solidários,

inclusive política e territorialmente, distribuídos em todo o território brasileiro. Um

traço comum liga esses núcleos espaciais, confundidos entre distritos, povoados,

ruralidades e urbanidades: a africanidade manifesta.

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Figura 22 - Moradia na Comunidade de Várzea Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

É justamente na contrarracionalidade destes espaços constituídos pelo

colonialismo europeu que identificaremos os elementos culturais responsáveis pela

distinção entre os indivíduos socialmente, e onde, ao mesmo tempo, serão criados

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mecanismos operatórios que priorizam a seletividade e qualifica quem deve

pertencer, ter acesso ou não ao quadro sociocultural instalado.

Portanto, a territorialidade com viés autoritário nas relações, possibilitou

que a racionalidade dominante contribuísse por revelar também o não entendimento

e disponibilidade para outras razões e visões, sobretudo culturais, diante dos

processos históricos relacionados aos povos africanos e indígenas.

Os lugares, no entanto, que pesem a força do território nacional,

curiosamente apresentavam uma dinâmica a partir justamente de sua lugaridade.

Frente ao território da centralidade, este "condicionante" não impedia que os

diferentes grupos estivessem imersos em movimentos contínuos e desconexos da

lógica espacial funcional estabelecidas, tornando-se lugares de finalismo, mas

também de movimentação e eclosão de fenômenos redefinidores de sentidos.

Ngoenha (1994) mostra que na distinção entre a filosofia e os valores

civilizatórios do racionalismo ocidental, encontraremos variações ideológicas

legitimadoras, espacialmente instrumentalizadas. Com base em Senghor, Ngoenha

percorre o caminho desta "exegese", como um contraponto necessário ao pretenso

universalismo conceituai que restringe a cultura dos povos não europeus aos valores

da racionalidade funcionalista colonial.

Para construir a África, é necessário saber sobre que fundamentos edificá-la. Deve partir-se, não de uma tábua rasa, nem sequer de ideologias puramente ocidentais, mas sim dos valores próprios da negritude (NGOENHA,1994, p.20).

Ngoenha (1994) observa que, na avaliação de Senghor sobre o olhar

civilizatório do "homem ocidental", o processo classificatório afasta o entendimento

de culturas e exclui conhecimentos e valores dos povos não ocidentalizados.

Contudo, quer o Negro se associe ao objecto, quer o objecto se associe a ele, o Negro é sempre caracterizado pela faculadade emotiva, que não é negação da razão, mas sim uma outra forma de conhecimento. O que comove o Negro, não é o aspecto exterior do objecto, é a realidade enquanto tal ou melhor, a sua surrealidade. (NGOENHA,1994, p. 21).

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Assim, o lugar, o espaço e o território podem ser confrontados à luz dos

valores que estão embutidos dentro de uma determinada realidade, sobretudo

tratando-se do "ethos" cultural20, em cada uma destas definições e entre definições.

A cosmogonia africana está vinculada à existência como vida, cujo

universo é composto de energia, ondas e ritmos, que representam também as forças

vitais. Estes valores são reconhecidos pelos diferentes grupos, observando-se as

diferentes temporalidades. A vida está no ser. Sua existência permite dar"substância

e acréscimo às outras forças" .

Figura 23 - Barriguda sagrada (Ceiba speciosa) do quintal de Raimunda dos Santos, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

20

Para Sodré, "Cultura é a metáfora do movimento do sentido, não entendido como uma verdade mística do além ou oculta em profundidades a serem sondadas, mas como busca de relacionamento com o real, lugar de extermínio do princípio de identidade. É o que implica experiência de limites, vazio do sujeito, aquilo que, retraindo-se à maneira do segredo e provocando ao modo do desafio, atrai para outras direções, para a singularidade misteriosa do real”. (SODRÉ, 2005, p.41).

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Ngoenha (1994) destaca o existencialismo presente na concepção do ser,

uma vez que a transcendência temporal realinha o sentido.

Esta experiência essencial da realidade cósmica não culmina num saber. Ela leva o homem simplesmente a tomar consciência de que, como os deuses, ele é um ‘no man's land’ da transição entre o passado dos antepassados, o presente dos vivos e o futuro dos que ainda nasceram. (NGOENHA, 1994, p. 26)

Essa dimensão cosmogônica confronta-se com a materialidade que

desloca o sentido do valor simbólico, cultural e religioso transcendental para um

caráter utilitário e funcional (JESUS, 2013). Raimunda dos Santos é moradora da

comunidade e cumpre rituais sagrados de orações e obrigações em seu quintal

através do cuidado com as plantas e santos (Figura 23).

A Senhora Maria de Jesus (Figura 24), rezadeira na comunidade que

aprendeu com seu pai os processos necessários para solucionar e também mediar

na solução dos problemas e demandas da comunidade. Segundo a Senhora Maria

de Jesus o seu pai sempre foi rezador. Logo:

Ele não falava disso. Sei que ele rezava um bando, um bando de coisa, que rezava a pessoa com aquela monte de bicho [...] Os povo vinha. Se o bicho do chão ofendia um lá pera Piaba, pera Braúna, com já sabia que ele tava aqui, manda vim buscar.[...] É, assim, essas coisas, essas doencinha pouca, que dava pra ele resolver e chamava por Deus e ele resolvia.[...] Ele fazia umas garrafada. Uma coisa que se chamava caiçara, num sei como é, caiçara, eu sei que era de raiz, muito boa pra refresco. Ele fazia aquelas garrafada, vendia pro povo.[...]É, e pra quentura [...] Pra quentura. Fazia muita garrafada.[...] Catar folha, passava a folha na cabeça. Aquele pau ali mesmo, ele é muito bom pra dor de cabeça.Lambe seda.[...] E aí, agora quando a gente tá com dor de cabeça, a gente tira assim, esquentava assim e marrava um pano e aliviava muito. [...] A gente marrava folha de pó de rato, tudo era remédio que a gente ensinava pra dor de cabeça. Aquela momoninha, aquela momoninha miudinha, fazia azeite também, marrava a folha. Tudo era bom, tudo era passado por ele, todos os remédio, assim, que ele sabia, a gente aprendeu, né? Quando tava gripado, juntava aquele bando de folha, nove folha, folha de jurubeba, um bucado de folha, que ele juntava pra fazer. Eu mermo sei que na que to atacada junto tudo. (Maria de Jesus, Várzea Queimada, 2019)

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Figura 24 - Maria de Jesus, rezadeira da comunidade, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

A Senhora Maria Helena (Figura 22) recorre constantemente a sua origem

e reelabora ligações a partir de um “chamamento” que passou envolvendo sua

espiritualidade de matriz africana. Esta busca e conexão cultural por uma lugaridade

negra que recorre na sua cosmogonia a outros lugares na África a partir de sua

dimensão ancestral, simbólica e cultural é capaz de transportar o corpo negro e

reconecta-lo aos diversos mundos e realidades. Este mundo mágico do transportar-

se para além da objetividade material possibilita dar significado para a continuidade

do prosseguir, do existir e se manter.

[...] A minha vó era escrava, era bem negrona, era tipo na Nagô. [...] Era. Que tinha uma senhorinha aqui de Piaba, que ontesdeonte ela ta me contando, que não pode deixar de beber e não pode deixar de fumar porque ela é descente de escravo. Ela ta com 98 ou é 99 ano”. Ao falar sobre a origem familiar Maria Helena dos Santos da Cruz relembra da vó escrava citada por uma senhora de 98 anos moradora de Piabas chamada Bidu: “[...] É daqui de Piaba. [...]Bidu [...] mas ela só não ta andando porque ela tomou uma queda. Ela caiu, uma queda e fastiou aqui, nos quarto. Aí, eu fui ontisdionte lá.

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Pede pra parar tudo. [...] Chega lá ela solta cada cajadada. E ela me fala dessa queda, e ela diz que não pode ficar sem beber por causa desse negócio dela, e ela disse que os filhos dela não queria dar pinga, ela disse que chegou os dois minino que picou-lhe o empurrão nela que ela caiu que fartiou a perna. Ela disse que disse pros dois mininos, que é que vocês querem? Me deixe em paz. Disse que os minino empurraram, que picou o empurrão, que ela caiu, mais eu não guentei, não, cai na risada. [...]Ela fala da minha avó, da minha avó. O marido dela é meu tio, irmão da minha avó e ela lembrou de tanta coisa, que eu digo, não é verdade que mãe Bidu lembrou. É verdade, mãe Bidu? [...] Até quando namorava. [...] Lembra. Ela disse que o meu pai... ela disse que o meu avô, o meu avô, ela contou isso pra mim ontes de ontem, o meu avô usava capangona e tinha barbona, disse que dizia para ela, eu vou te botar na capanga, com os beição deste tamanho e ela disse que tinha medo dele. Chamava Barbino, chamava Barbino, esse homem. Aí, ela foi dizendo assim, sozinha, ó, minha filha, tua avó era Nagô, tua avó era Nagô escrava, escrava, escrava mermo.Falou ontesdeontem. Meu Deus, ela disse que não esquece de nada.Nagô[...]Nagô, Nagô, Nagô mermo. [...] Diz que sambou muito, muito, muito, que ta acabando a tradição. Eu digo, não, mãe Bidu, nós não vamos deixar a tradição acabar, nós vamos seguir com ela para frente, se Deus quiser. E ela enche os seus olhos de água, oh, minha filha, mas eu não vejo mais nada. Então, ela é muito... também é a única que tem por aqui, né? (Maria Helena dos Santos da Cruz, Várzea Queimada, 2019)

A Senhora Maria Helena, ao procurar os sentidos que justificam a sua

existência, reelabora sua própria história e aciona sempre os espaços através dos

processos de redefinição ou reafirmação agregados, seja individual ou coletivamente

(na comunidade). É neste processo que o pertencimento encontra lugar, seja

transitório, diante de uma ameaça, ou efetivo a partir da autoridade referenciada que

valida a experiência.

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Figura 25 - Maria Helena (Lena), moradora da Comunidade de Várzea Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

Muitas vezes na comunidade se recorre à ajuda ou à cooperação através

de uma rede mútua diante de ocorrências como doenças, orientações e conselhos

diversificados nas habilidades práticas de cada um e reconhecida pelo próprio grupo

em forma de conhecimento.

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Figura 26 - Luzia Maria de Jesus Avelino, parteira, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

A Senhora Luzia Maria de Jesus Avelino (Figura 26), no alto de seus 88

anos é uma parteira, referência na comunidade e, constantemente, associa o seu

trabalho ao mundo da roça, onde aprendeu o ofício em paralelo às atividades

agrícolas. Sua habilidade, ela relaciona com o dom permitido por Deus:

[...] plantava mandioca, plantando feijão, melancia, quando era tempo, milho, andu, feijão de corda, plantava de tudo,[...] a primeira vez foi assim, eu tava com mulher, só tinha nós duas, né? Então, ela se incomodou só tinha para chamar por Nossa Senhora e Deus e Eu, Deus me ajudou e eu consegui. E agora, cada vez que uma apertava, lá vai eu. [...] pois, aqueles meninos ali são todos foi eu que fiz, os filhos dele foi tudo eu que panhei, todos, pode perguntar a eles aí que ta vivo e são pra dizer. [...] tudo, cada tora de moça, todos casado, tudo foi eu. Ali tem um bocado. Eu não morava aqui, não. Eu morava aqui em baixo num lugar que chamava Pereira [...] pra cá, pro lado de Queimada. Comecei a panhar menino de lá e vim de lá para cá [...] depois teve um negócio aí que se as muié, pra fazer não sei o quê, não sei o quê. Eu digo, eu? Não vou, não. Cheguei e pra cá desci. [...] quando querem ganhar elas já vão pra Jacobina. (Luzia Maria de Jesus Avelino , Várzea Queimada , 2019)

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O mato para os membros da comunidade é um lugar deste contato, cujo

horizonte do imaginário se amplia, redefine, testa e produz conhecimento.

[...] aí, o velho, meu avô, ele, já perto de morrer, com quase 100 anos, mas, meu avô por [...] parte de minha mãe [...] era um negão, altão, aí, ele disse... que ele era um velho que tinha as orações, sabia as orações, sabia um monte de coisa, sabia rezar. Aí, ele disse, meu filho... eu fui criado mais ele, na beira do rio, ele disse, meu filho, tu não quer aprender as orações, não? Que eu tô perto de ir embora e eu quero te ensinar. E eu disse, ô, babai, eu chamava ele de babai, o nome dele era Gabriel, eu disse, ô, babai, eu acho que não, babai. Ele disse, ô, meu filho aprenda, aprenda, você aprendendo uma reza não é para ofender os outros, não, é para te livrar do que é ruim, se tiver uma coisa que é ruim ali Deus vai tirar tudo ali, teus pensamento muda, tu vai pra outro canto, tu vai saber no outro dia que aconteceu lá onde tu tá. Já que tu é caçador vou te ensinar como é que tu faz. (Gildásio de Sena, Várzea Queimada, 2019)

O Senhor Gildásio de Sena, também caçador, identifica na mata um lugar

cercado de mistérios, onde a vida e a morte estão muito próximos, o que, diante da

sua experiência e aprendizagem com seu avô, permitiu-lhe adquirir a habilidade.

Nesta relação transtemporal, pode-se acionar o lugar ou lugares de

"significado", independente de sua força de localização geográfica, já que na

memória cultural as distâncias reavivam e aproximam os indivíduos, além de

redirecionarem suas ações e/ou deslocamentos. São tramas de sentidos que

remetem à circularidade de uma cosmogonia, que busca o "remapeamento" das

relações culturais (WALTER, 2009).

Eu sempre dizia pro marido, que se ele morresse... eu sempre pidia pra morrer primeiro do que ele, ele dizia porque? Eu dizia, porque tu não tá vendo que eu tô morrendo aqui dentro de casa sozinha. Graças a Deus, como ele sabia, dizia, largue de ser boba, que não tem nada. Eu fico dentro dessa casa, se saírem tudo eu fico sozinha, que eu tenho medo é dos vivo, mas dos morto, não. Se for preciso, eu durmo sozinha, agora, eu tenho medo dos vivo (Maria de Jesus, 2019).

Rolland Walter (2009) identifica no processo diaspórico uma produção de

circunstâncias localizadas, que remete sempre à chegada na América e à saída ou

retorno do africano, o que se constitui num desafio da representação diante das

histórias escritas pelos outros não negros, representações estas, carregadas de

ideologias e resultantes do poderio colonial.

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Podemos inferir que lugares circulam no plano da memória21 já que a

cosmogonia afro resistiu culturalmente através de processos retocados de

transmissão cultural baseados segundo Walter (2009) no mimetismo:

Ter uma identidade significa ter uma história inscrita numa terra. Ter uma história imposta contra a vontade, sem poder inscrevê-la na terra enquanto seu dono, significa ter uma não-identidade. Daí resulta a importância do espaço/paisagem e da memória enquanto elementos narrativos e locais de cultura para se colocar como sujeito. [...] A reapropriação do espaço via memória, portanto, possibilita a colocação do afrodescendente na sua própria história. [...] A renomeação do seu lugar e da sua história significa reconstruir sua identidade, tomar posse de sua cultura; significa, em última análise, resistir a uma violência epistêmica que continua até o presente (WALTER, 2009, p. 63).

Se no plano da memória o lugar permanecerá como referência, no plano

de sua materialidade teremos o desafio da realização, uma vez que os negros

precisam lutar também contra o esvaziamento de sentido da sua história e cultura,

logo, de sua existência como sujeito e, consequentemente, do direito ao espaço.

Walter demonstra que a memória e sua espacialidade são fundamentais já que ao:

[...] desenvolver-se e nutrir-se da passagem do tempo, a memória é ao mesmo tempo situada num quadro espacial: o ato de rememorização se materializa sempre num determinado espaço físico constituído por relações socioculturais; isto é, a memória precisa sempre de um objeto exterior, ou melhor, da imagem deste objeto: uma casa, uma árvore, uma pedra funcionam como marcadores mnemônicos capazes de conferir ordem e sentido às lembranças e histórias do passado. (WALTER, 2009, p.65).

Ao mesmo tempo, o significado dos lugares negros indicam atualização

constante e uma dinâmica que recorrerá a vozes (WALTER, 2009) e experiências

que estruturam contextos e reavivam conteúdos estabelecendo outra relação no

tempo e no espaço.

21

A análise da memória enquanto prática na encruzilhada diaspórica ajuda a revelar, problematizar e entender os processos interligados da memória hegemônica e contra hegemônica e seu efeito sobre a subjetividade dos indivíduos no entre-lugar de culturas, ou seja, a memória evoca a subjetividade, identidade e posição do sujeito em relação às identificações de raça, etnicidade, gênero, classe, idade, etc. (WALTER, 2009, p.69).

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Para sobreviver ao inferno do sistema de escravidão e plantação, o negro desenvolveu diversos tipos de mímica em termos de atitude e discurso, definindo-se tanto dentro do sistema de subaltemização quanto contra ele. Jogar o jogo seguindo as regras impostas pelo outro e, ao mesmo tempo, minar estas regras mediante aquelas em processo de nascer dos restantes e misturados fragmentos das próprias epistemes culturais - um duplo jogo de repetição e inversão que Gates chama "signifying(g)" - tem caracterizado a atitude, o discurso oral e escrito dos afrodescendentes desde o início e, portanto, pode ser visto como ‘signo da diferença’ negra (WALTER, 2009, p. 64).

Terreiros, quintais, roças e quilombos não serão simples representações

espaciais diante da força propulsora e cosmogônica que ultrapassara as estruturas

clássicas do território brasileiro, estes constituíram lugares e lugaridades capazes de

viabilizar um mundo marcado pela dimensão afro do pertencer.

A diáspora negra, com suas histórias nutridas de esquecimentos e lembranças através do tempo, se desenvolve dentro de nações específicas (em relação com outras memórias etnorraciais) e entre estas e o mítico além-mar, o continente africano. Ao criar um padrão multidimensional de pertencimento cultural através do tempo e do espaço, a memória diaspórica cria uma continuidade não fixa e estável, más móvel, fragmentada e performática (WALTER, 2009, p. 67).

Ser e existir são conjunções, expressões dessa máxima geográfica capaz

de dar prosseguimento à vida e que não se encerra na simples transferências de

povos territorialmente falando, para além da busca de marcas, o lugar como

circularidade permitirá compreender a experiência diaspórica afro no Brasil

tornando-se também identidade reafirmadora das diferentes culturas e tradições

africanas aqui memoradas. É uma dimensão existencial, recorrendo a Dardel:

[...] o espaço terrestre aparece como a condição de realização de toda realidade histórica, que lhe dá corpo e assinala a cada existente o seu lugar. É a Terra que, podemos dizer, estabiliza a existência. [..J. A Terra é, por excelência, para o homem, como destino, a circunstância (circumstare), aquilo que se ergue à sua volta e mantém sua presença como engajamento no Ser. (DARDEL, 2015, p. 43).

Claval (2002) identifica na tradição e sua interpretação no âmbito cultural,

consequentemente, um "problema geográfico essencial". Lembrando que, tradição

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não é algo estático e sua força propulsora resistiu e impulsionou a existência das

diversas culturas negras no Brasil.

A cultura de elite se apóia muito nas facilidades de transmissão assegurados pela escrita e pelas instituições escolares e universitárias. A cultura popular é essencialmente oral: é a oposição que se observa nos países onde o analfabetismo ainda impera nos campos. Mas a generalização do ensino primário e a difusão da imprensa tenderam, a partir da metade do século XIX, a reduzir a autonomia cultural dos meios populares (CLAVAL, 2002, p. 170).

Assim, considerando que estas comunidades se resguardaram na

oralidade manifesta frente à lógica ameaçadora da sociedade escravocrata na

Bahia, os elementos culturais e a tradição são fundamentais na manutenção e

existência do grupo diante dos mecanismos opressores.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os campos e os posicionamentos diferentes parecem acompanhar as

identidades constantemente, o que lhe atribui uma complexidade maior diante do

contexto social em que se estabelece. Ao negro brasileiro, o dilema da questão

ocorre muito mais no âmbito de uma representação identitária, colocada sobre

parâmetros externos a ele. Na verdade, depende muito mais do outro, cuja

sociedade que parece representar, não responde mais aos questionamentos

advindos de outras experiências sociais legítimas, amparadas histórica e

culturalmente.

De qualquer forma, o território e a identidade invariavelmente estão

interligados, e o grau maior ou menor de associação está mais vinculado às relações

estabelecidas no âmbito, ora do interesse do Estado, a partir do seu necessário

reconhecimento, e ao se estabelecer dentro desta ordem, ora dos grupos

específicos e diversos, responsáveis pela sua configuração.

Os caminhos da colonização na Bahia não se resumem aos oficiais,

envolvendo somente o interesse da coroa portuguesa, muitas comunidades, vilas e

povoados acabaram compondo e se estabelecendo em virtude da inserção no

sertão e a partir da viabilidade de sobrevivência e dos diferentes papéis exercidos

nas práticas sociais estabelecidas sobre distintas regiões. Este controle no

movimento mediado pelas terras coloniais e seus representantes outorgados,

também estariam sob um complexo sistema de dispersão populacional conflitivo e

ameaçador ao sistema opressor com suas fugas e a instauração de nós ou redes

conectivas com a metrópole, a África e os sertões, ou interior do país. Neste sentido,

o recôncavo baiano, a cidade de Salvador e o oeste da África se constituiriam em

caminhos além fronteiras, cujo limiar representava tanto o interesse de uma

economia colonial como também a negação da mesma em uma ordem paralela e

produtora de novas comunidades ou agrupamentos. Assim, a diáspora representava

não só a retirada forçada e distribuição dos diferentes grupos étnicos africanos sobre

o território brasileiro, mas também o surgimento de novas apropriações originados

na fuga e resistência, o que, posteriormente, se destacariam pela unidade

comunitária de interesse comum e sobrevivência. O movimento sobre rios, mata e

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estradas foram se multiplicando na medida em que o território em formação ia

avançando e as novas relações impostas se tornariam mecanismos que

justificassem a regulação social através, tanto de um legalismo em instauração,

como de sua redefinição. Este ponto, movimento, deslocamento e regulação junto

com os fluxos que lhe caracterizam, coloca a ocupação sob o viés de um

internacionalismo através da própria formação diaspórica deste território, e que

acompanha paralelamente a costa africana de oeste a leste do continente. A ênfase

neste processo lança luz sobre a geografia da diaspóra africana no Brasil e sua

contribuição para o entendimento da dispersão populacional negra sobre os sertões

da Bahia.

O sertão do Piemonte da Diamantina está invariavelmente associado ao

cenário e movimentação do século XVII, através dos caminhos da mineração, onde

a rota Jacobina - Rio de Contas via estrada Real para as regiões das Minas Gerais

representaria a nova ordem de movimentação colonial gerando deslocamentos em

massas ao interior da Bahia. Ao mesmo tempo, este interesse vai se constituir em

uma ordem comercial e social cujas relações de produção e trabalho tornariam

algumas vilas e povoações em pequenos centros nucleares de distribuição e

consumo de produtos fundamentais tanto para manutenção do sistema colonial

metropolitano como para alimentação e funcionamento da população na própria

colônia. Assim, a agricultura, a pecuária e a manufatura se tornarão o apoio e

também a sustentação dos quilombos em franca expansão por todo o território

colonial. Vale ressaltar que as fugas diante do bandeirantismo e das estratégias de

sobrevivência e permanência produziriam novas rotas tanto para indígenas como

para negros durante a ocupação do Piemonte. Os muitos povoados e distritos com

população majoritariamente negra mais do que pela dispersão territorial, sugerem

um agrupamento por interesses coletivo e de fortalecimento do grupo demonstrando

muitas vezes que as fugas e ou fixação sobre o território eram processos de

reapropriação contínuos diante da oficialidade e controle impeditivo da metrópole

sob seu próprio sistema administrativo.

A disputa por espaços no território em formação e diante do centralismo

latifundiário dos seus agentes administradores designados permitiu que o Brasil

transformasse o espaço geográfico em valor de uso capitalista e patrimônio que será

usado como moeda e forma operatória de inserção e controle das relações,

tornando-se fundamento condicionador da criação do trabalho compulsório.

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De mão-de-obra escrava rural e urbana, aos povos originados da África

no Brasil, a luta pelo direito à terra envolvia o enfrentamento, a negociação ou a

disputa com os grandes proprietários e a consequente herança latifundiária

envolvendo os respectivos familiares dos mesmos. Ao mesmo tempo propriedade e

ao mesmo tempo um sujeito de si e de seu grupo representativo, o negro brasileiro

produzira novas geografias simuladoras de territorialidades fundamentais para a sua

manutenção como grupo social e cultural, justamente através das revoltas e

produção de espacialidades contraofensivas ao hegemônico território em que se

encontrava. O quilombo e o espaço negro acabam sendo o lócus principal de uma

futura sociedade cuja terra colocaria o negro como alvo principal do controle social

estabelecido.

A territorialidade negra é diaspórica e não se reduz às ocorrências do

sistema escravista colonial português. Entender este movimento geográfico significa

ampliar os processos de entendimento sobre a configuração espacial brasileira e

seus entraves, visto que a importância desta movimentação espacial exige uma

reavaliação das interpretações reinantes responsáveis pela invisibilidade e negação

da importância e legado africano para o Brasil. Estes caminhos negros no fazer

geográfico produzem espacialidades que operam continuamente driblando o sistema

opressor racista brasileiro desde a colonização, colocando em cheque a organização

social e espacial que impera. No sertão baiano não foi diferente. Em meio a sua

ocupação, acontecimentos e ocorrências sobre um território em configuração foram

caracterizados pela constante luta e viabilidade de sobrevivência dos negros e dos

diferentes papéis exercidos pelos mesmos nas práticas sociais estabelecidas sobre

distintas regiões.

O conceito de roça aqui trabalhado é discutido sob a luz da historiografia

brasileira, para isso leva em consideração a prática socioespacial quilombola

presentes na obra de Clóvis Moura, Muniz Sodré e Flávio Gomes. Inicialmente o

sertão ocorre como espaço aberto e intransponível, regido por aventuras entre o

selvagem, a sobrevivência e o lugar a ser desbravado. A roça surgiu nesta situação

de busca, mas também como espaço possível da inserção, não só prática da cultura

agrícola, como de pertencimento ao espaço geográfico e, posteriormente, na área

que vai absorver trabalhadores, famílias, deslocados e desprovidos diante do

ordenamento predominante. A configuração da roça na atualidade e, mediante o

avanço técnico na sua caracterização e estruturação, constitui-se em novos desafios

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para estas comunidades, uma vez que o processo e a cadeia produtiva interferem

constantemente na permanência, manutenção ou sobrevivência destas

comunidades, exigindo-lhes, por sua vez, constantes embates e interlocução com

processos políticos em andamento.

O enquadramento social que desconsiderava aspectos fundantes destes

lugares (quilombos, comunidades tradicionais, fundo de pasto, etc.) produziram

massas que migram e circulam pelos lugares e territórios em função dos grandes

projetos de engenharia, agroindústria e produção econômica, resultando no

esvaziamento e impactando sobre a organização social dos grupos ali instalados.

Fatores como estes, envolvendo grandes espaços, mostram que os

lugares de vivências dos povos remanescentes negros sofrem ameaças dos

grandes projetos e se tornam obstáculos para a lógica da modernidade técnica

avassaladora condutora também de vulnerabilidades. No entanto, o reconhecimento

pelo "lugar" dos processos vinculados à autoidentificação e à inserção política e

social, para comunidades remanescentes e negras rurais, indicam uma

movimentação do lugar através de sua lugaridade constante e que, ao mesmo

tempo, envolve dimensões humanas para além da simples materialidade espacial,

projetando-se efetivamente nas distintas simbologias alimentadas e validadas nas

experiências e vivências aqui discutidas. Desta forma, a busca desta lugaridade

abrange o entendimento dos movimentos na dinâmica temporalidade espacial negra,

envolvendo conexões e diálogos que promoverão o ressignificar-se e reposicionar-

se africano no Brasil levando em consideração seu amplo e vasto conhecimento

cultural.

Discutir sobre a cultura e a identidade quilombola e negra no Brasil

significa acionar elementos fundamentais e complexos no que tange à

representação destes grupos sociais e étnicos, cujas estratégias de sobrevivência se

constituem em um campo referencial que precisa ser aprofundado cada vez

mais.Com este intento, e levando em consideração as vivências manifestas nas

práticas sociais rurais, através da produção de materialidades e imaterialidades,

buscou-se analisar os códigos referentes do entendimento sobre a importância da

cultura negra no processo de formação territorial brasileira. Consequentemente , a

operacionalidade destas práticas ( codificadas ou não ) através de ações e visões

sobre a paisagem espacial que se torna cultural, desloca sentidos e reafirma a

pertença das comunidades negras de roça, mesmo diante do quadro formativo

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aludido onde o legado reside no patrimônio cultural material e imaterial, resultantes

de mecanismos operatórios usados para sua continuidade e sobrevivência, dentro

de um espaço ameaçador e coercitivo, que, por sua vez, continua se isentando de

políticas públicas que possam viabilizar a melhoria do seu modo de vida e

consequente inserção social.

Neste momento em curso e movimentação, objetivamos mostrar neste

trabalho, a inserção dos quilombos na formação territorial brasileira levando em

consideração a apropriação geográfica dos lugares e o reposicionamento conceitual

dos significados operacionalizados no fazer o mundo, objetivando o entendimento da

espacialidade negra frente aos contextos estabelecidos.

Assim, foram desenvolvidas a estrutura e os eixos que norteiam este

trabalho, cujo objetivo final será identificar na prática socioespacial de roça

quilombola negra e rural a identidade e referência que legitimam sua ocupação e

direito ao território ocupado.

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REFERÊNCIAS

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ANEXOS

ANEXO A - Criação da Fundação Palmares

Presidência da República Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 7.668, DE 22 DE AGOSTO DE 1988.

Autoriza o Poder Executivo a

constituir a Fundação Cultural Palmares - FCP e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a constituir a Fundação Cultural Palmares - FCP, vinculada ao Ministério da Cultura, com sede e foro no distrito Federal, com a finalidade de promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.

Art. 2º A Fundação Cultural Palmares - FCP poderá atuar, em todo o território nacional, diretamente ou mediante convênios ou contrato com Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe:

I - promover e apoiar eventos relacionados com os seus objetivos, inclusive visando à interação cultural, social, econômica e política do negro no contexto social do país;

II - promover e apoiar o intercâmbio com outros países e com entidades internacionais, através do Ministério das Relações Exteriores, para a realização de pesquisas, estudos e eventos relativos à história e à cultura dos povos negros.

III - realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 31.8.2001)

Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares - FCP é também parte legítima para promover o registro dos títulos de propriedade nos respectivos cartórios imobiliários. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 31.8.2001)

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Art. 3º A Fundação Cultural Palmares - FCP terá um conselho Curador, que valerá pela fundação, seu patrimônio e cumprimento dos seus objetivos, compostos de 12 (doze) membros, sendo seus membros natos o Ministro de Estado da Cultura, que o presidirá, e o Presidente da Fundação.

Parágrafo único. Observando o disposto neste artigo, os membros do Conselho Curador serão nomeados pelo Ministro de Estado da Cultura, para mandato de 3 (três) anos, renovável uma vez.

Art. 4º A administração da Fundação Cultural Palmares - FCP será exercida por uma Diretoria, composta de 1 (um) Presidente e mais 2 (dois) Diretores, nomeados pelo Presidente da República, por proposta do Ministro de Estado da Cultura.

Art. 5º Os servidores da Fundação Cultural Palmares - FCP serão contratados sob o regime da legislação trabalhista, conforme quadros de cargos e salários, elaborados com observância das normas da Administração Pública Federal e aprovados por decreto do Presidente da República.

Art. 6º O patrimônio da Fundação Cultural Palmares - FCP constituir-se-á dos bens e direitos que adquirir, com recursos de dotações, subvenções ou doações que, para esse fim, lhe fizerem a União, Estado, Municípios ou outras entidades públicas ou privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais.

Art. 7º Observado o disposto no artigo anterior, constituirão recursos da Fundação Cultural Palmares - FCP, destinados à sua manutenção e custeio, os provenientes:

I - de dotações consignadas no Orçamento da União;

II - de subvenções e doações dos Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, nacionais, estrangeiras e internacionais;

III - de convênios e contratos de prestação de serviços;

IV - da aplicação de seus bens e direitos.

Art. 8º A Fundação Cultural Palmares - FCP adquirirá personalidade jurídica com a inscrição, no Registro Civil das pessoas jurídicas, do seu Estatuto, que será aprovado por decreto do Presidente da República.

Art. 9º No caso de extinção, os bens e direitos da Fundação Cultural Palmares - FCP serão incorporados ao patrimônio da União.

Art. 10º Fica o Poder Executivo autorizado a abrir crédito especial em favor da Fundação Cultural Palmares - FCP, à conta de encargos gerais da União, no valor de CZ$ 5.000.000,00 (cinco milhões de cruzados), para a constituição inicial do patrimônio da Fundação e para as despesas iniciais de instalação e funcionamento.

Parágrafo único. Do crédito especial aberto na forma deste artigo, a quantia de CZ$ 2.000.000,00 (dois milhões de cruzados) destinar-se-á ao patrimônio da Fundação Cultural Palmares - FCP, nos termos do art. 6º desta Lei, e será aplicada

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conforme instruções do Ministro de Estado da Cultura, ouvida a Secretaria do Tesouro Nacional.

Art. 11 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 12 Revogam-se as disposições em contrário.

Brasília, 22 de agosto de 1988; 167º da Independência e 100º da República.

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 23.8.1988.

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ANEXO B – Ata de reunião ocorrida em 20/10/2011 na Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2019

Ilustração 1 - Ata digitalizada da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2018

Fonte: Fábio Nunes, 2018

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ANEXO C – Ata de reunião ocorrida em 17/08/2013 na Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2019

Ilustração 2 - Ata digitalizada da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2018

Fonte: Fábio Nunes, 2018

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Ilustração 3- Ata digitalizada da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2018

Fonte: Fábio Nunes, 2018

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ANEXO D – Ata de reunião ocorrida em 24/10/2015 na Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2019

Ilustração 4 - Ata digitalizada da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2018

Fonte: Fábio Nunes, 2018

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ANEXO E – Festa do Licuri em Várzea Queimada, 2017

Ilustração 5 - Cartaz divulgação da Festa do Licuri em V.Queimada , 2017

Fonte: MPA, 2017

Ilustração 6 - Imagens da Festa do Licuri em V.Queimada, 2017

Fonte: Baiano Produções, 2017.

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Ilustração 7 - Imagens da Festa do Licuri em V.Queimada, 2017

Fonte: Baiano Produções, 2017.

Ilustração 8- Imagens da Festa do Licuri em V.Queimada, 2017

Fonte: Baiano Produções, 2017.

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ANEXO F – Participação no Fórum Social Mundial discutindo quilombos do Piemonte da Diamantina, 2018

Ilustração 9 -Flyer divulgação Mesa Redonda no Fórum Social Mundial, Salvador , 2018

Fonte: Fábio Nunes, 2018

Ilustração 10 - Mesa Redonda no Fórum Social Mundial, Salvador, 2018 Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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ANEXO G – Repente Várzea Queimada

Autoria: Sirlane Jesus

Repente digitalizado, autoria de Sirlane Jesus , V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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ANEXO H – Carta do Pres. Lula aos grevistas de fome repercutida no movimento social na comunidade em agosto de 2018

Ilustração 10- Carta do Pres. Lula divulgada na comunidade de V. Queimada, 2018

Fonte: Fábio Nunes, 2018.

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ANEXO I – Convite ao Grupo Jovem da comunidade para uma roda de conversa, 2019

Ilustração 11- Convite para uma roda de conversa ao Grupo Jovem local, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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ANEXO J – Imagens da Comunidade de Várzea Queimada,2019

Ilustração 12 - Paisagem da mata local, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 13- Casa de moradora local, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

Ilustração 14- Casa de moradora local, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 15- Escola Municipal Domingos Pereira dos Santos, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

Ilustração 16- Paisagem rural, Caém/Jacobina/Bahia, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 17- Moradora da comunidade de Várzea Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 18 - Paisagem rural e artefatos, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 19- Pandeiro de couro artesanal, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 20- Paisagem rural, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

Ilustração 21 - Senhor Felipe Nery de Jesus dos Santos, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 22 - Mesa de oração e contemplação do sagrado, V. Queimada, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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ANEXO K – Caminhos negros do Piemonte. Terreiro no município de Saúde/Celebração para Oxóssi, 2019

Ilustração 23 - Terreiro no município de Saúde, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 24 - Terreiro no município de Saúde, 2019

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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ANEXO L – Memórias de roça e vivência no povoado de Roçado - Jacobina -BA

Ilustração 25 - Paisagem do povoado de Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2011.

Ilustração 26 – Habitação no povoado de Roçado em Caatinga do Moura

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 27 - Rio Veredas, Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2017.

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Ilustração 28 - Imagens de moradia no povoado de Roçado - Caatinga do

Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 29 - Agricultor do povoado de Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 30 - Caminho da Vovó em Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 31 - Estrada Lages – Caatinga do Moura/ Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2007.

Ilustração 32 - Terezinha Alves Nunes, agricultora familiar do povoado de Roçado -

Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2007.

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Ilustração 33 - Habitação povoado de Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 34 - Cercamento em povoado de Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 35 - Colheita de pimenta, povoado de Roçado - Caatinga do

Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

Ilustração 36 - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 37 - Cultura do Sisal, Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 38 – Paisagem rural, Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2007

Ilustração 39 - Paisagem rural, Olhos D ´Agua - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019.

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Ilustração 40 – Paisagem rural, Roçado - Caatinga do Moura/Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2019

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Ilustração 41 - Roças no povoado de Roçado em Caatinga do Moura /Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2009

Ilustração 42 - Roça no povoado de Roçado em Caatinga do Moura /Jacobina -BA

Fonte: Fábio Nunes, 2009