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0 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ NATALIA ALLET MATTE O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE E SUA (IN) APLICABILIDADE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO BIGUAÇU 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

NATALIA ALLET MATTE O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE E SUA (IN) APLICABI LIDADE

NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

BIGUAÇU

2008

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NATALIA ALLET MATTE O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE E SUA (IN) APLICABI LIDADE

NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito. Orientador: Prof. MSc. Rodrigo Mioto dos Santos

BIGUAÇU 2008

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NATALIA ALLET MATTE

O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE E SUA (IN) APLICABILIDADE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e

aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de

Ciências Sociais e Jurídicas.

Área de Concentração: Direito Penal

Biguaçu, 13 de novembro de 2008.

Prof. MSc. Rodrigo Mioto dos Santos UNIVALI – Campus de São José

Orientador

Profª. MSc. Tânia M. S. Trajano UNIVALI – Campus Biguaçu

Membro

Prof. MSc. Sérgio Baasch Luz UNIVALI – Campus Biguaçu

Membro

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Ao meu querido pai, Paulo, que, embora não mais presente neste plano da vida, me acompanha em cada segundo da minha existência, dentro do meu mais profundo amor enquanto ser eterno.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Ana Mery, por toda dedicação de sempre, e por

não ter medido esforços para que eu chegasse até esta etapa da minha vida.

Aos amigos que fiz durante a vida acadêmica, em especial,

Ana Paula Gerent, Danielle Cabral Coelho, Samantha Amaral da Cunha, Mirian

Priscila Farias, Thayse Stieven Fleck, Vânia Moschen, Guilherme Silva Pereima,

Fernando Henrique Ferreira Silva e Bruno Rodrigues Berka, que comigo

compartilharam os bons e os maus momentos, dentro e fora da Universidade.

A Cassio Biffi, pela atenção e auxílio proporcionados quando

da elaboração deste trabalho.

Ao professor e orientador Rodrigo Mioto dos Santos, por ter

compartilhado seus profundos conhecimentos no âmbito do Direito Penal, assim

como por todo apoio, incentivo, compreensão e solicitude, imprescindíveis que foram

à concretização desta monografia.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade

pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o

Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

São José, 31 novembro de 2008.

Natalia Allet Matte

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RESUMO

É inegável que o meio social tem influência sobre a formação da personalidade humana e, conseqüentemente, sobre as atitudes de cada indivíduo. Assim considerando, nos países menos desenvolvidos, como o Brasil - nos quais, é sabido, as diferenças sociais são características marcantes - o acesso à educação, saúde, moradia, dentre outras necessidades prementes, não é igual para todos os cidadãos, valendo dizer que a privação destas capacidades básicas deixam de conferir à pessoa humana sua dignidade e verdadeira faculdade de autodeterminação. Neste contexto, partindo para o âmbito criminal, pode-se afirmar que sistema penal age de modo altamente seletivo, atingindo somente os estratos mais baixos da sociedade, mediante a formulação de estereótipos, o que torna estes indivíduos mais vulneráveis à criminalização. O princípio da co-culpabilidade, por essa perspectiva, vem orientar que, considerando que por razões diversas o Estado e a sociedade não oferecem a todos seus elementos condições igualitárias de desenvolvimento pessoal e, em razão do sistema penal agir de modo arbitrariamente seletivo, devem aqueles arcar com sua parcela de culpa, juntamente do indivíduo, quando da reprovação pelo cometimento de um delito. Esta “mea culpa”, teria conseqüências diretas na reprovação judicial do indivíduo, principalmente no que tange à culpabilidade enquanto elemento do crime. Desta forma, antes da verificação destas conseqüências, impende a análise da culpabilidade sob o enfoque dogmático, para, posteriormente, com base na análise crítica do sistema penal, verificar as possibilidades de aplicação do princípio da co-culpabilidade no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive, mediante o estudo deste tema na legislação do Direito Penal comparado. De fato, a matéria abre espaço a grandes discussões, entretanto, à relevância deste tema não se tem dado o verdadeiro valor no âmbito jurídico brasileiro. Palavras-chave : Direito Penal; Sociedade; Sistema penal; Igualdade; Seletividade; Culpabilidade;

Co-culpabilidade; Vulnerabilidade.

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EXTRACTO Es innegable que el medio social tiene influencia sobre la formación de la personalidad humana y, consecuentemente, sobre las actitudes de cada individuo. Así considerando, en los países menos desarrollados, como Brasil - en los cuales, es sabido, las diferencias sociales son características destacables - el acceso a la educación, salud, vivienda, de entre otras necesidades apremiantes, no es igual para todos los ciudadanos, valiendo decir que la privación de estas capacidades básicas dejan de conferir a la persona humana su dignidad y verdadera facultad de autodeterminación. En este contexto, partiendo para el ámbito criminal, se puede afirmar que el sistema penal actúa de modo altamente selectivo, alcanzando solamente los estratos más bajos de la sociedad, mediante la formulación de estereotipos, lo que vuelve estos individuos más vulnerables a la criminalização. El principio de la co-culpabilidad, por esa perspectiva, viene orientar que, considerando que por razones diversas el Estado y la sociedad no ofrecen a todos sus elementos condiciones igualitarias de desarrollo personal y, en razón del sistema penal actuar de modo arbitrariamente selectivo, deben aquellos arcar con su parcela de culpa, juntamente del indíviduo, cuando de la reprobación por el cometimento de un delito. Esta “mea culpa”, tendría consecuencias directas en la reprobación judicial del individuo, sobre todo en lo que tange a la culpabilidad mientras elemento del crimen. Así, antes de la verificación de estas consecuencias, impende el análisis de la culpabilidad bajo el enfoque dogmático, para, posteriormente, con base en el análisis crítica del sistema penal, verificar las posibilidades de aplicación del principio de la co-culpabilidad en el ordenamiento jurídico brasileño, inclusive, mediante el estudio de este tema en la legislación del Derecho Penal comparado. De hecho, la materia abre espacio la grandes discusiones, sin embargo, a la relevancia de este tema no se está dando el verdadero valor en el ámbito jurídico brasileño. Palabras-Claves : Derecho Penal; Sociedad; Sistema penal; Igualdad; Selectividad; Culpabilidad; Co-

culpabilidad; Vulnerabilidad.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 9

1 A CULPABILIDADE SEGUNDO A DOGMÁTICA PENAL ...................................................................11

1.1 O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA TEORIA E CONCEITO DA CULPABILIDADE ....................................... 11

1.1.1 Teoria psicológica da culpabilidade ............................................................................................... 12

1.1.2 Teoria psicológico-normativa ou normativa complexa da culpabilidade .................................. 14

1.1.3 TEORIA NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE ........................................................................................ 16

1.2 OS ELEMENTOS DA CULPABILIDADE .......................................................................................................... 18

1.2.1 A imputabilidade................................................................................................................................ 18

1.2.2 Potencial consciência da ilicitude (ou da antijuridicidade).......................................................... 19

1.3 AS CAUSAS DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE ......................................................................................... 21

1.3.1 Causas de exclusão relacionadas à imputabilidade.................................................................... 21

1.3.2 Causas de exclusão relacionadas à potencial consciência da ilicitude.................................... 24

1.3.3 Causas de exclusão relacionadas à exigibilidade de conduta diversa..................................... 26

2. DESMISTIFICANDO A CONCEPÇÃO LIBERAL DO DIREITO P ENAL: DE JEAN PAUL MARAT À CULPABILIDADE PELA VULNERABILIDADE (O APERFEIÇOAM ENTO TEÓRICO DO PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE) .....................................................................................................29

2.1 A CRÍTICA SOCIAL DE JEAN PAUL MARAT AO DIREITO PENAL LIBERAL .................................................. 31

2.2 DA TEORIA DO LABELING APPROACH À CRIMINOLOGIA CRÍTICA : A SELETIVIDADE ARBITRÁRIA DO SISTEMA PENAL ................................................................................................................................................. 35

2.3 O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE E SEU APERFEIÇOAMENTO : DA LIMITAÇÃO DA SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL PELA CULPABILIDADE EM RAZÃO DO INJUST O (TEORIA DO DELITO) À LIMITAÇÃO PELA CULPABILIDADE EM RAZÃO DA VULNERABILIDADE .......................................................................................... 42

3. AS POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA C O-CULPABILIDADE NO DIREITO PENAL COMPARADO E NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIR O ...........................................50

3.1 AS POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CO -CULPABILIDADE NO DIREITO PENAL COMPARADO ...................................................................................................................................................... 50

3.1.1 No ordenamento jurídico argentino................................................................................................ 50

3.1.2 No ordenamento jurídico peruano.................................................................................................. 52

3.1.3 No ordenamento jurídico mexicano ............................................................................................... 53

3.1.4 No ordenamento jurídico colombiano ............................................................................................ 54

3.1.5 No ordenamento jurídico equatoriano ........................................................................................... 55

3.2 AS POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CO -CULPABILIDADE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO ....................................................................................................................................................... 56

3.3 O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS ......................................................... 60

CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................68

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................................................70

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INTRODUÇÃO

A presente monografia tem como tema o princípio da co-culpabilidade e

como objeto central verificar a possibilidade de sua aplicação no Direito Penal

brasileiro, com vistas à busca pela aplicação de uma pena mais justa, levando-se

em conta a realidade social em que estão inseridos os indivíduos.

Parte-se da idéia de que a sociedade não brinda a todos com iguais

oportunidades, ou seja, alguns recebem mais chances de desenvolvimento,

enquanto outros não. Com base nisto, o princípio da co-culpabilidade, sugere que

deve esta mesma sociedade arcar com sua parcela de culpa, juntamente do

indivíduo (a quem foram negadas as oportunidades), quando da reprovação deste

pelo cometimento de um delito.

Para tal desiderato, optou-se por decompor o trabalho em 3 (três) capítulos

diversos, entretanto, ligados um ao outro, de modo a servir de suporte para o tema

exposto.

Assim, iniciando o presente estudo, será abordado no primeiro capítulo o

desenvolvimento histórico das teorias da culpabilidade e de seu conceito, que

culminou na concepção normativa pura. Com base nesta teoria, serão estudados os

elementos que compõem a culpabilidade: imputabilidade, potencial consciência da

ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Serão analisadas, ainda, as causas de

exclusão da culpabilidade.

Após esta etapa, o segundo capítulo trará como tema central a análise do

Direito Penal sob o aspecto crítico, inicialmente, com o estudo da crítica de Jean

Paul Marat ao Direito Penal de sua época, perfeitamente aplicável aos dias de hoje.

Partindo disto, será abordada a teoria do labeling approach (ou etiquetamento) e a

criminologia crítica, servindo de embasamento à análise do princípio da co-

culpabilidade e da sua evolução teórica na chamada “culpabilidade pela

vulnerabilidade”, cujo estudo encerra o capítulo.

Por derradeiro, no terceiro capítulo, será abordada a possibilidade de

aplicação do princípio da co-culpabilidade no direito penal comparado, mais

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especificamente nos ordenamentos jurídicos dos países latino-americanos. Será

estudada também sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, mediante a

análise de alguns dispositivos que podem ser considerados como autorizadores da

co-culpabilidade. Concluindo, será realizada uma breve análise jurisprudencial sobre

as decisões de alguns Tribunais estaduais brasileiros, que tiveram o tema da co-

culpabilidade como objeto.

O relatório de pesquisa se encerra com as considerações finais, nas quais

serão apresentados os pontos destacados, seguido da estimulação à continuidade

dos estudos e das reflexões sobre o princípio da co-culpabilidade como meio de

aplicação de uma pena mais justa.

Para tanto, no que tange à metodologia aplicada, utilizou-se o método

dedutivo e, relativamente à técnica documental, empregou-se a forma indireta,

colacionando-se legislações e doutrinas referentes ao tema, bem como a forma

direta, procedendo-se à análise de jurisprudências.

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1 A CULPABILIDADE SEGUNDO A DOGMÁTICA PENAL

Este primeiro capítulo será destinado ao estudo da culpabilidade enquanto

elemento do crime. Inicialmente, será discorrido acerca do desenvolvimento histórico

das teorias da culpabilidade, trazendo, ainda, seu conceito, de acordo com cada

uma destas teorias.

Superado este momento, serão analisados os elementos da culpabilidade,

suas características e respectivos requisitos.

Por fim, serão elencadas e explicadas as causas expressas de exclusão da

culpabilidade.

1.1 O desenvolvimento histórico da teoria e conceit o da culpabilidade

No período primitivo do Direito Penal, para a caracterização do crime e

conseqüente aplicação da pena, bastava o nexo causal entre a conduta do agente e

o resultado, sendo consagrada a responsabilidade penal objetiva, como explica

Aníbal Bruno1:

As condições da pena sacral e da vingança de sangue satisfaziam-se com o aspecto objetivo do fato punível. Bastava a relação de causalidade física, que prende o fato como efeito ao homem como a sua causa, para determinar a responsabilidade. A pena recaía, então, sobre aquele que praticara o ato, fosse este voluntário ou não, existissem ou não as condições de imputabilidade, o que juntava na mesma categoria de passíveis de pena os sãos e os insanos ou imaturos penais.

Ney Moura Teles acrescenta que “este era o Direito Penal do resultado, da

responsabilidade objetiva, que predominava entre os povos bárbaros, como os

germanos, e no direito romano primitivo”2.

1 BRUNO, Aníbal. Direito Penal : parte geral, tomo 2: fato punível. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 24. 2 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I. ed. São Paulo: Editora de Direito, 1996, p. 351.

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Entretanto, em razão da constante evolução do direito de punir no tempo,

somente a existência do nexo causal entre a ação e o dano não mais era suficiente

à responsabilização do agente, tornando-se indispensável, para tanto, a presença da

vontade e da previsibilidade3, cujo pensamento deu origem à responsabilidade

subjetiva e às primeiras idéias de culpabilidade.

Teles, comentando o surgimento da responsabilidade subjetiva, cita o

seguinte excerto de Francisco de Assis Toledo4:

Não se pode apontar com exatidão o momento histórico em que tal fenômeno ocorreu, mesmo porque a história do Direito Penal está marcada de retrocessos. Fora de dúvida, porém, é que, a partir de então, se começa a construir a noção de culpabilidade, com a introdução, na idéia de crime, de alguns elementos psíquicos, ou anímicos – a previsibilidade e a voluntariedade – como condição da aplicação da pena criminal – nullum crimen sine culpa. (grifo do autor).

A partir de então, surge a concepção psicológica da culpabilidade, dando

espaço, posteriormente, à teoria psicológico-normativa e culminando na teoria

normativa pura, cujo perpassar evolutivo está relacionado com os conceitos de ação

e de delito (clássico, neoclássico, finalista e normativista)5.

1.1.1 Teoria psicológica da culpabilidade

Historicamente, a teoria psicológica da culpabilidade é resultado do

positivismo científico (causalismo naturalista) do Século XIX, impulsionado pelos

pensamentos de Darwin, Spencer e Comte6.

Para esta teoria, a culpabilidade é a relação psíquica (ou subjetiva) entre o

autor e o fato, ou seja, a responsabilidade do autor pelo delito que praticou, no qual

3 MIRABETE, Julio Fabrinni; FABRINNI, Renato N. Manual de Direito Penal : parte geral. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 191. 4 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 352. 5 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 424. 6 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 424.

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a ação, segundo Franz Von Liszt7, é um processo causal originado do impulso

voluntário.8

Aníbal Bruno, ao abordar este tema, comenta que:

Esta concepção viu na culpabilidade, isto é, nesse elemento que introduz o agente na estrutura do crime, o que nela era mais fácil de apreender: o momento psicológico pelo qual o agente se faz realmente autor do fato punível. Para ela, a culpabilidade é uma situação interior, fase subjetiva do crime – vontade consciente dirigida no sentido do ato criminoso, ou simples falta ao dever de diligência, de que provém um resultado previsível de dano ou de perigo.9

Assim considerando, Eugênio Rául Zaffaroni e José Henrique Pierangelli

afirmam que a teoria psicológica denomina culpabilidade o que é agora considerado

o aspecto subjetivo do tipo, retirando da teoria do delito sua dimensão normativa, no

que tange à reprovabilidade do autor. Tanto é que assim anotam:

Dentro deste conceito, a culpabilidade não é mais do que uma descrição de algo, concretamente, de uma relação psicológica, mas não contém qualquer elemento normativo, nada de valorativo, e sim a pura descrição de uma relação.10

Nesta concepção, a culpabilidade era em sua totalidade formada pelo dolo

ou pela culpa, que são suas espécies, eis que não apresentava nenhum outro

elemento constitutivo11. O dolo é caracterizado pela intenção de se produzir o

resultado, e a culpa, pelo contrário, é caracterizada pela inexistência desta intenção.

De outro lado, para que esse vínculo psicológico pudesse ser considerado

pelo Direito, era necessário, também, que o sujeito fosse imputável, noutras

7 Von Liszt (1851-1919) foi, além de jurista, grande político austríaco e liderou, na sua juventude, o Partido Nacional-Alemão da juventude acadêmica austríaca. Concluiu sua cátedra na Universidade Berlim, quando se aposentou em 1916. Consagrou-se como grande dogmático e sistematizador do Direito Penal, dando-lhe uma complexa e completa estrutura, admitindo a fusão com outras disciplinas, como a criminologia e a política criminal. Para Liszt, o Direito Penal deve orientar-se segundo um fim, no qual a pena justa é a pena necessária (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 60). 8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 335. 9 BRUNO, Aníbal. Direito Penal : parte geral, tomo 2: fato punível, pp. 25-26. 10 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 603. 11 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 335.

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palavras, tivesse capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determina-se

de acordo com esse entendimento.

Desta forma, a imputabilidade funcionava “como o precedente necessário da

culpabilidade”, de modo que a posição do agente na lei penal se dava em três

momentos, quais sejam, imputabilidade, culpabilidade e responsabilidade penal. 12

Entretanto, a teoria em comento apresentava-se insuficiente à conceituação

e compreensão da culpabilidade, mormente porque reunia em sua essência dois

elementos antagônicos, o dolo e a culpa, e como pondera Damásio E. de Jesus: “Se

o dolo é caracterizado pelo querer e a culpa pelo não querer, conceitos positivo e

negativo, não podem ser espécies de um denominador comum, qual seja, a

culpabilidade”13.

Outrossim, em seus fundamentos, não ordenava a imputabilidade, que ora

era pressuposto do dolo e da culpa, ora era pressuposto da pena; não explicava a

culpa inconsciente, eis que inexistente a relação psicológica; não considerava o

estado de necessidade exculpante e não compreendia a culpabilidade como um

conceito graduável14.

Face essas incongruências, a teoria psicológica, fruto do sistema naturalista

de Liszt e Beling, acabou sendo superada pela descoberta dos elementos

normativos e subjetivos do tipo15, dando origem à teoria psicológico-normativa da

culpabilidade.

1.1.2 Teoria psicológico-normativa ou normativa complexa da culpabilidade

Impulsionada pelo neokantismo16 valorativo e finalista, a culpabilidade

passou a ter uma nova dimensão17. A doutrina germânica, que teve à frente

12 BRUNO, Aníbal. Direito Penal : parte geral, tomo 2: fato punível, p. 26. 13 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral. 28 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 460. 14 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 425. 15 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 303. 16 O neokantismo é um movimento filosófico nascido no fim do século XIX, como superação do positivismo, sem representar, entretanto, sua negação. Propõe um conceito de ciência jurídica que supervalorize o ‘dever ser’. Com base em considerações axiológicas e materiais, substituiu o método puramente jurídico-formal do positivismo, tendo como objeto a compreensão dos fenômenos e categorias jurídicas, muito além de sua simples definição formal ou explicação causal, partindo da dimensão valorativa do jurídico. Assim, procurou distinguir as ciências pelo seu método. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 69).

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Reinhard Von Frank, constatou que somente o elemento psicológico não era

suficiente para conceituar a culpabilidade18.

Frank, ao estudar o estado de necessidade inculpável, previsto no art. 54 do

Código Penal alemão, percebeu que existem condutas dolosas não culpáveis,

quando, diante da inexigibilidade de outro comportamento, não se tornam

reprováveis.19

Explicando o entendimento de Frank, Ney Moura Teles anota:

A partir desta constatação, ele verificou que o sujeito só podia ser considerado culpado, e, de conseqüência, merecer a sanção penal, quando o seu comportamento tivesse sido reprovável, censurável, e isto só era possível quando ele tivesse possibilidade de conduzir-se de forma diferente. 20

Sobre a culpabilidade nesta perspectiva, Heleno Cláudio Fragoso comenta

que:

A essência da culpabilidade está na reprovação que se faz ao agente por sua motivação contrária ao dever. O juízo de reprovabilidade já não teria por fulcro apenas a vontade, em seu sentido puramente naturalístico, como a teoria psicológica acreditava, mas sim a vontade reprovável, ou seja, a vontade que não deveria ser.21

As bases dessa teoria também foram aprimoradas por James Goldschmidt,

que apontou a importância que assume a vontade contrária ao dever na construção

da culpabilidade, e Berthold Freudenthal, para quem a culpabilidade seria a

desaprovação do comportamento do autor, quando este podia e devia comportar-se

de forma diferente.22

E, por fim, Mezger, enfatizando os aspectos normativos, conceituou a

culpabilidade como “o conjunto dos pressupostos da pena que fundamentam, diante

do autor, a reprovabilidade pessoal da ação antijurídica”.23

17 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 425. 18 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal : parte geral. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 168. 19 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 460. 20 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 352. 21 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal . Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 196. 22 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 340. 23 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 426.

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Arrematando, Ney Moura Teles bem explica:

Em síntese, para a teoria psicológico-normativa ou normativa, a culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente pelo fato, doloso ou culposo, por ele realizado. O pressuposto da culpabilidade é a imputabilidade, e os seus elementos são: o dolo ou a culpa em sentido estrito (elemento psicológico-normativo), e a exigibilidade de conduta diversa (elemento normativo).24

Apesar do avanço alcançado por esta teoria, ainda persistiam defeitos que

não possibilitavam a correta concepção da culpabilidade, principalmente pela

persistência do dolo como elemento desta25.

Enfrentando esta questão e os demais aspectos controvertidos que existiam

nessa concepção, novas idéias foram concebidas e culminaram na teoria normativa

pura da culpabilidade.

1.1.3 Teoria normativa pura da culpabilidade

Derivada da teoria finalista da ação26 (ou finalismo), surge a concepção

normativa pura da culpabilidade, refutando, em seus fundamentos, as teorias

anteriores.

O finalismo teve como maior expoente H. Welzel, para quem o dolo não

poderia estar inserido no juízo de culpabilidade, pois assim se consideraria a ação

humana sem seu aspecto fundamental: a intencionalidade27.

Partindo disto, Welzel demonstrou que o dolo e a culpa não são elementos

da culpabilidade, uma vez que, em se situando nos tipos legais, integram a conduta

24 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 355. 25 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 461. 26 A teoria finalista da ação, baseada nas idéias filosóficas de Honigswald e Nikolai Hartmann, constituiu-se na reação lógica contra os errôneos postulados das doutrinas causais da ação, produzindo efeito na estrutura do tipo, da ilicitude e da culpabilidade. Nesta teoria, a ação é uma atividade final humana, na qual o homem, conhecendo a teoria da causa e efeito, tem possibilidade de dirigir sua atividade no sentido de produzir determinados efeitos, contrariamente à causalidade. (JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 234). 27 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral, p. 304.

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e o fato típico28. Assim, estes elementos passaram a integrar o injusto e não mais a

culpabilidade.

Quanto a estas modificações, Cezar Roberto Bitencourt comenta:

As conseqüências que a teoria finalista da ação trouxe consigo para a culpabilidade são inúmeras. Assim, a separação do tipo penal em tipos dolosos e tipos culposos, o dolo e a culpa não mais considerados como formas ou elementos da culpabilidade, mas como integrantes da ação e do injusto pessoal, constituem o exemplo mais significativo de uma nova direção no estudo do Direito Penal, num plano geral, e a adoção de um novo conteúdo para a culpabilidade, em particular.29

Com efeito, somente a partir de então surgiu uma verdadeira teoria

normativa da culpabilidade, visto que a culpabilidade passou a ser limitada à pura

reprovabilidade.30

Sobre o tema, Damásio E. de Jesus explica que:

Nessa perspectiva, excluem-se do conceito de culpabilidade a maioria dos elementos subjetivos, anímicos ou psicológicos – integrantes do tipo de injusto -, conservando-se fundamentalmente o critério da censurabilidade ou reprovabilidade (elemento valorativo)31

Neste sentido, Bitencourt define culpabilidade “como aquele juízo de

reprovação dirigido ao autor por não haver obrado de acordo com o Direito, quando

lhe era exigível uma conduta em tal sentido”32.

Ainda, Zaffaroni e Pierangeli afirmam que, quanto à reprovação do injusto ao

seu autor, existem dois núcleos temáticos, quais sejam, a possibilidade de

compreensão da antijuridicidade e um determinado âmbito de autodeterminação do

agente.33

Por fim, ao conceituar culpabilidade, anota Ney Moura Teles:

28 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 357. 29 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 342. 30 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 603 31 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 428. 32 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 349. 33 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 605.

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Culpável, portanto, é o fato praticado por um sujeito imputável que tinha possibilidade de saber que seu comportamento era proibido pelo ordenamento jurídico, e que, nas circunstâncias em que agiu, poderia ter agido de modo diferente, conforme o direito.”34

Concluído este breve histórico acerca das teorias da culpabilidade, serão

adiante analisados os elementos que a compõem.

1.2 Os elementos da culpabilidade

1.2.1 A imputabilidade

Aníbal Bruno define imputabilidade como “o conjunto de condições pessoais

que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um

fato punível35.

O mesmo doutrinador afirma que o conceito de imputabilidade é fornecido no

Código Penal Brasileiro, indiretamente e a contrario senso, pelo de inimputabilidade,

previsto no seu artigo 2636.

A partir do aludido artigo, Damásio E. de Jesus considera como imputável o

“sujeito mentalmente são e desenvolvido, capaz de entender o caráter ilícito do fato

e de determinar-se de acordo com esse entendimento”37.

Outrossim, segundo Fernando Capez, “o agente deve ter condições físicas,

psicológicas, morais e mentais de saber que está realizando um ilícito penal. (...)

Além dessa capacidade, deve ter totais condições de controle sobre sua vontade”,

de forma que imputabilidade apresenta um aspecto intelectivo (capacidade de

entendimento) e outro volitivo (faculdade de comandar a própria vontade). 38

34 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 358. 35 BRUNO, Aníbal. Direito Penal : parte geral, tomo 2: fato punível, p. 39. 36 Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 37 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 469. 38 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral, p. 306.

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Quanto à referida capacidade de entender o caráter criminoso do fato,

Aníbal Bruno explica que é prescindível que o agente saiba que seu ato é definido

na lei como crime. Importa, apenas, que compreenda - não de forma técnica - que

seu comportamento é reprovado pela ordem jurídica em sentido amplo, nos limites

da compreensão de um leigo39.

Já no que toca à vontade, Bruno assevera que esta é a “capacidade normal

de querer, de sofrer, em face da consciência do caráter ilícito do fato, a influência

dos motivos normalmente inibidores”40.

Importante ressaltar a diferença entre imputabilidade e responsabilidade,

pois esta é mais ampla, compreendendo a primeira41 e corresponde às

conseqüências jurídicas que advêm da prática de um crime42.

Destarte, imputabilidade “é a condição pessoal de maturidade e sanidade

mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou

de se determinar segundo esse entendimento”43.

1.2.2 Potencial consciência da ilicitude (ou da antijuridicidade)

Além de imputável, para que o autor seja reprovado por determinada

conduta antijurídica é necessário também que conheça ou possa conhecer o caráter

ilícito do fato praticado.

Quanto ao assunto, Ney Moura Teles ensina que

[...] quem age sem possibilidade de saber que fere o direito, atua na certeza de que sua conduta é de acordo com a ordem jurídica, e, assim sendo, não pode merecer qualquer censura, que só é possível quando se pudesse exigir do homem conhecer que seu gesto é proibido. Se ele tinha a possibilidade de conhecer a ilicitude, e, mesmo assim, realizou a conduta contrária ao direito, deve, por isso, ser censurado, já que, tendo possibilidade de atingir a consciência da

39 BRUNO, Aníbal. Direito Penal : parte geral, tomo 2: fato punível, p. 45. 40 BRUNO, Aníbal. Direito Penal : parte geral, tomo 2: fato punível, p. 40. 41 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral, p. 307. 42 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, 2007, p. 470. 43 FRAGOSO , Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal , p. 197.

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ilicitude, mesmo assim não a alcançou, quando devia, e por isso vai ser reprovado.44

De outra banda, Luiz Regis Prado anota que “esse conhecimento potencial

não se refere às leis penais, basta que o agente saiba ou tenha podido saber que o

seu comportamento contraria ao ordenamento jurídico”45.

Neste sentido, para Fernando Capez importa investigar se o sujeito, quando

da prática do crime, tinha a possibilidade de saber que fazia algo errado, levando em

conta “o meio social que o cerca, as tradições e costumes locais, sua formação

cultural, seu nível intelectual, resistência emocional e psíquica e inúmeros outros

fatores”, sendo estes aspectos “externos, objetivos, que orientam o juiz na aferição

da culpabilidade”.46

Ainda, ao tecer comentários acerca da potencial consciência da ilicitude,

Zaffaroni e Pierangeli explicam que não é possível exigir de todos o mesmo grau de

compreensão acerca da antijuridicidade do ato praticado, que dependerá do esforço

que cada sujeito tenha realizado para alcançá-la, cujo esforço poderá ser analisado

por meio das circunstâncias pessoais e sociais daquele, que estará em relação

inversa com a reprovabilidade. 47

Assim, para os mesmos autores, “quanto maior seja o esforço que o sujeito

deva fazer para internalizar a norma, menor será a reprovabilidade de sua conduta,

e vice-versa”48.

1.2.3 Exigibilidade de conduta diversa

Analisadas a imputabilidade e a potencial consciência da ilicitude, resta

verificar o último elemento da culpabilidade, qual seja, a exigibilidade de conduta

44 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 374. 45 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 439. 46 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral, p. 324. 47 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 621. 48 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 621.

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diversa, que, nas palavras de Damásio E. de Jesus, é a possibilidade que o sujeito

tem de realizar outra conduta, de acordo com o ordenamento jurídico49.

Acerca deste elemento, Luiz Regis Prado assim esclarece:

Trata-se de elemento volitivo da reprovabilidade, consistente na exigibilidade da obediência à norma. Para que a ação do agente seja reprovável, é indispensável que se lhe possa exigir comportamento diverso do que teve. Isso significa que o conteúdo da reprovabilidade repousa no fato de que o autor devia e podia adotar uma resolução de vontade de acordo com o ordenamento jurídico e não uma decisão voluntária ilícita50.

Ainda, Ney Moura Teles pondera que só merece receber a censura penal

quem podia ter realizado ter realizado outro comportamento, sendo este outro juízo

de valor que se faz sobre a conduta do agente.51

No mesmo caminho, Fernando Capez afirma que para que seja possível

considerar alguém culpado pelo cometimento de uma conduta prevista como uma

infração penal, “é necessário que esta tenha sido praticada em condições e

circunstâncias normais, pois do contrário não será possível exigir do sujeito conduta

diversa de que, efetivamente, acabou praticando”52.

Assim, uma vez compreendidos os elementos que compõem a culpabilidade,

imprescindível ressaltar que existem determinadas causas e situações que os

excluem, afastando, conseqüentemente, a própria culpabilidade e a existência de

crime, como será adiante abordado.

1.3 As causas de exclusão da culpabilidade

1.3.1 Causas de exclusão relacionadas à imputabilidade

49 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 479. 50 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 440. 51 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 377. 52 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral, p. 326.

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Como visto, a imputabilidade, em linhas gerais, refere-se à capacidade do

sujeito de entender a ilicitude do fato e de determinar-se de acordo com este

entendimento, ao tempo da conduta (ação ou omissão).

Deste modo, em princípio, todos são considerados imputáveis, exceto

aqueles que se enquadram nas hipóteses de inimputabilidade elencadas na lei

penal, as quais serão adiante estudadas.

1.3.1.1 Doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado

De acordo com o já mencionado art. 26 do Código Penal (caput), haverá

inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou

retardado.

Neste aspecto, Luiz Regis Prado define doença mental como “uma alteração

mórbida da saúde mental, independentemente de sua origem” e, quanto ao

desenvolvimento mental incompleto ou retardado, traz como exemplos as

oligofrenias, que são uma espécie de “deficiência mental que abarca graves defeitos

de inteligência, consistente, em termos gerais, na falta de desenvolvimento das

faculdades mentais”53.

Fernando Capez, quando comenta acerca da aferição da inimputabilidade

nestes casos, elenca os seguintes requisitos: causal, que é a existência de doença

mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado; cronológico, que é a

atuação ao tempo da ação ou omissão; e conseqüencial, referente à perda total da

capacidade de entender ou de querer.54

Corroborando este entendimento, Ney Moura Teles explica que o Código

Penal adotou o sistema biopsicológico de aferição da inimputabilidade, ao afirmar

que

Nem todo doente mental, portador de desenvolvimento mental incompleto ou retardado é inimputável. É necessário que, em conseqüência do pressuposto biológico, seja ele inteiramente

53 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 436. 54 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral, p. 310.

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incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento55.

1.3.1.2 Menoridade penal

São inimputáveis, ainda, de acordo com o art. 27 do Código Penal56, os

menores de dezoito anos, consagrando-se o princípio da inimputabilidade por

presunção, em razão do critério biológico da idade do agente57, pois considera-se

que estes têm desenvolvimento mental incompleto, independentemente da

verificação de sua capacidade de entendimento ou de determinação58.

1.3.1.3 Embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior

E definida como última causa de inimputabilidade, está a embriaguez

completa, decorrente de caso fortuito ou força maior, conforme dispõe o §1º do art.

28 do Código Penal59.

A embriaguez é, segundo Fernando Capez, uma

causa capaz de levar à exclusão da capacidade de entendimento e vontade do agente, em virtude de uma intoxicação aguda e transitória causada por álcool ou qualquer substância de efeitos psicotrópicos, sejam eles entorpecentes (morfina, ópio etc.), estimulantes (cocaína) ou alucinógenos (ácido lisérgico)60.

Complementando, o mesmo autor explica que denominam-se drogas

psicotrópicas aquelas substâncias que provocam alterações psíquicas, sendo que

subdividem-se em três espécies, quais sejam, psicolépticos (tranqüilizantes,

55 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, pp. 360-361. 56 Art. 27 - Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. 57 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 436 58 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 362. 59 § 1º - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 60 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral, p. 311.

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narcóticos, entorpecentes), psicoanalépticos (estimulantes) e psicodislépticos

(alucinógenos)61.

Todavia, para que a embriaguez seja caracterizada como causa de exclusão

da inimputabilidade, é imprescindível que seja completa e derivada de caso fortuito

ou força maior, de forma a impossibilitar o sujeito de entender a ilicitude do fato ou

de determinar-se de acordo com este entendimento.

Sobre o tema, Ney Moura Teles traça a distinção entre embriaguez por caso

fortuito e força maior:

Embriaguez por caso fortuito é a acidental, que ocorre sem que o sujeito desejasse se embriagar, nem a decorrente de negligência. Nem é voluntária, nem é culposa. [...] Embriaguez proveniente de força maior é a resultante de uma força física externa imprimida sobre o sujeito, no sentido de obrigá-lo a ingerir a substância embriagante62.

Desta forma, a embriaguez voluntária, culposa, pré-ordenada ou não, não

tem o condão de excluir do sujeito sua culpabilidade.

1.3.2 Causas de exclusão relacionadas à potencial consciência da ilicitude

A exclusão deste elemento da culpabilidade ocorre quando da ausência da

potencial consciência da ilicitude, anteriormente analisada neste trabalho, cuja causa

compreende o chamado erro de proibição63, que será agora abordado.

1.3.2.1 Erro de proibição

O erro de proibição é o que recai sobre a ilicitude de um comportamento, no

qual o agente supõe, por erro, ser lícita a sua conduta64, podendo ser subdividido em

61 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal : parte geral, p. 311. 62 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 366. 63JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 482. 64 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 379.

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inevitável (invencível ou escusável) e evitável (vencível inescusável), como aponta

Guilherme de Souza Nucci:

Quando o erro sobre a ilicitude do fato é impossível de ser evitado, valendo-se o ser humano da sua diligência ordinária, trata-se de uma hipótese de exclusão da culpabilidade. [...] Trata-se de um erro escusável (inevitável), pois não lhe foi possível, a tempo, constatar a inverdade da informação recebida. [...] Por outro lado, o erro sobre a ilicitude do fato que não se justifica, pois, se tivesse havido um mínimo de empenho em se informar, o agente poderia ter tido conhecimento da realidade, denomina-se erro de proibição inescusável (evitável).65

Com base nesta diferenciação, somente o erro de proibição inevitável é

capaz de excluir a culpabilidade, isentando o agente de pena, ao passo que o erro

evitável somente poderá minorar esta, conforme dispõe o artigo 21 do Código Penal,

in verbis:

Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.

Ainda, o parágrafo único do referido artigo, reza que “Considera-se evitável o

erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe

era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência”.

Sobre este mote, comentando os efeitos das duas formas de erro de

proibição, Zaffaroni e Pierangeli ensinam o seguinte:

Quando é invencível, isto é, quando com a devida diligência o sujeito não teria podido compreender a antijuridicidade do seu injusto, tem o efeito de eliminar a culpabilidade. Quando é vencível, em nada afeta a tipicidade dolosa ou culposa que já está firmada ao nível correspondente.66

Completando este pensamento, Cezar Roberto Bitencourt explica que:

65 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal : parte geral, parte especial. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 334. 66 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 636.

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Sendo a culpabilidade normativa, estará presente sempre um juízo de valor sobre a ação humana, e, assim, o erro só será justificável, e, portanto, inevitável, se no decorrer de censurável desatenção ou falta de um dever cívico de informar-se, que, nas circunstâncias, se impõe.67

Por derradeiro, Damásio E. de Jesus pondera acerca da diferença entre

erro de proibição e inescusabilidade da ignorância da lei, anotando que:

De acordo com o art. 3º. Da LICC, “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. O princípio é perfeitamente justificável, proibindo que o sujeito apresente a própria ignorância como razão de não haver cumprido o mandamento legal. [...] Enquanto a simples alegação de ignorância da lei não escusa, a ausência de possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato, i. e., a impossibilidade de o sujeito conhecer a regra de proibição, exclui a culpabilidade.68

1.3.3 Causas de exclusão relacionadas à exigibilidade de conduta diversa

Tocante a este elemento, uma vez considerada a culpabilidade normativa,

“não há culpabilidade todas as vezes que, tendo em vista as circunstâncias do caso

concreto, não se possa exigir do sujeito uma conduta diversa daquela por ele

cometida”69.

Dentre essas hipóteses, são expressamente previstas na lei penal a coação

irresistível e a chamada obediência hierárquica. Entretanto, como será visto, e,

corroborando com a assertiva acima transcrita, existem causas supralegais de

exclusão deste aspecto da culpabilidade.

1.3.3.1 Coação moral irresistível

67 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 349. 68 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 487. 69 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 483.

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O Código Penal, em seu art. 22, dispõe que “Se o fato é cometido sob

coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de

superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”.

Analisando a primeira parte do dispositivo, doutrinariamente considera-se

que a coação a que se refere é a moral (vis compulsiva), eis que a coação física

irresistível (vis absoluta) exclui a própria ação, por inexistência da vontade, pois esta

não é livre, mas viciada.70

Concernente, para Bitencourt, “na coação moral existe vontade, embora seja

viciada. Nas circunstâncias em que a ameaça é irresistível não lhe é exigível que se

oponha a essa ameaça para se manter em conformidade com o Direito”71.

Nucci elenca os seguintes elementos como necessários à configuração da

coação moral irresistível72:

a) existência de uma ameaça de um dano grave injusto e atual; b) inevitabilidade do perigo na situação concreta; c) ameaça voltada diretamente contra a pessoa do coato ou contra pessoas queridas e ele ligadas; d) existência de pelo menos três partes envolvidas, como regra e e) irresistibilidade da ameaça avaliada concretamente.

Quanto à irresistibilidade, Luiz Regis Prado advoga que o constrangimento

impingido deve ser impossível de ser vencido pelo coagido, tendo-se como

referência, para tanto, o homem médio73.

Assim, a gravidade relaciona-se com a natureza do mal e com o poder do

coator em produzi-lo, de forma que não poderá se tratar de algo que independa da

vontade deste74.

De outro modo, quando tratar-se de coação moral resistível não ocorrerá

exclusão da culpabilidade, incidindo apenas circunstância atenuante75.

1.3.3.2 Obediência hierárquica

70 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte gera, p. 440. 71 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 357. 72 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal : parte geral, parte especial, p. 285. 73 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 441. 74 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 358. 75 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 494.

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Há, ainda, em sede de inexigibilidade de conduta diversa, aquela referente à

obediência hierárquica, explicitada na segunda parte do artigo 22 do Código Penal,

já aludido.

Nucci a define como “ordem de duvidosa legalidade dada pelo superior

hierárquico ao seu subordinado, para que cometa uma agressão a terceiro, sob

pena de responder pela inobservância da determinação”76.

Essa obediência pressupõe uma relação de direito público, não abrangendo,

portanto, aquela derivada das relações de iniciativa privada77, de forma que a ordem

“deve advir de autoridade pública, dentro da organização do serviço público, o que

também inclui os cidadãos, nos casos em que atuam por ordem dessas

autoridades”78.

Deverá, também, a ordem emanada do superior hierárquico ser

manifestamente ilegal, pode-se dizer, “aquela cuja legalidade é discutível, não é

patente, não resplande à primeira vista, deixando dúvidas na avaliação de quem a

recebe”79.

Neste sentido, Damásio E. de Jesus bem explica:

Não se coloca o subordinado numa condição de julgador superior da ordem, o que criaria um caos na máquina administrativa, mas a ele se outorga o direito de abster-se de cumprir uma determinação de prática de fato manifestamente contrário à lei mediante uma apreciação relativa.80

Por derradeiro, além desses requisitos, a ordem deve preencher os

requisitos formais, e o fato ser cumprido dentro de estrita obediência à ordem do

superior.

Analisada, portanto, a culpabilidade sob seu aspecto dogmático, passa-se à

análise crítica do sistema penal que – conforme será visto no último capítulo deste

trabalho – influenciará na concepção e aplicação daquela.

76 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal : parte geral, parte especial, p. 286. 77 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral, p. 358. 78 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 443. 79 TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral I, p. 389. 80 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 496.

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2. DESMISTIFICANDO A CONCEPÇÃO LIBERAL DO DIREITO P ENAL: DE JEAN

PAUL MARAT À CULPABILIDADE PELA VULNERABILIDADE (O

APERFEIÇOAMENTO TEÓRICO DO PRINCÍPIO DA CO-CULPABIL IDADE)

Para iniciar este tópico do trabalho, faz-se mister tecer algumas breves

considerações acerca do sistema penal, cujo conceito é o de “controle social punitivo

institucionalizado”, com atuação desde a suspeita da prática de um delito até a

execução da pena e que, nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli, pressupõe “uma

atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos

funcionários e define os casos e condições para esta atuação”81.

Os mesmos autores explicam que os sistemas penais têm como segmentos,

basicamente, o policial, o judicial e o executivo, tratando-se de

[...] três grupos humanos que convergem na atividade institucionalizada do sistema e que não atuam estritamente por etapas, mas que têm um predomínio determinado em cada uma das etapas cronológicas do sistema, podendo seguir atuando ou interferindo nas restantes.82

Referidos segmentos, em seus tradicionais discursos, proclamam o fim e a

função preventiva do sistema penal, ou seja, sustentam que este tem por escopo a

ressocialização do apenado e, concomitantemente, advertir às demais pessoas

acerca da “inconveniência de imitar o delinqüente”83.

Não obstante isto, tais discursos perdem sua legitimidade quando

confrontados com a realidade que se apresenta, seja quanto à proclamada função

de prevenção à criminalidade ou quanto ao caráter ressocializador da pena, já que,

em vez de assim o ser, o sistema penal, na prática, é responsável pela origem de

mais “carreiras criminais” e pela degradação do indivíduo a ele submetido.84

81 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 70. 82 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 71. 83 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 73. 84 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 73.

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Com efeito, estes discursos sustentam a propalada igualdade jurídica em

relação a todos os indivíduos, quando na verdade esta é apenas formal, conforme

denuncia a criminologia crítica que, segundo Baratta, “[...] mostra que o direito penal

não é menos desigual do que outros ramos do direito burguês, e que,

contrariamente a toda aparência, é o direito desigual por excelência”.85

Neste sentido, Nilo Batista enfatiza que

[...] o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas.86

Assim, a proclamada concepção liberal do Direito Penal é posta “em xeque”

com a superação da criminologia positivista87 pela criminologia crítica ou da “reação

social”, que passa a considerar “o mecanismo mesmo da criminalização e o

funcionamento de todo o sistema penal como parte do controle social”88.

Todavia, muito antes do surgimento desta vertente criminológica, e até

mesmo da própria existência da Criminologia como ciência, destacaram-se as idéias

de Jean Paul Marat, conhecido historicamente como um dos principais líderes da

Revolução Francesa, que em seu “Plan de Législation Criminelle”, de 1780,

propagou um direito penal crítico, face às imensas desigualdades sociais reinantes

naquela época, que atingiam, conseqüentemente, também este âmbito do direito.

Nesse passo, a culpabilidade como um dos elementos que integram o crime,

também é “atingida” em sua normatividade, com suas características eminentemente

dogmáticas, quando confrontada com a realidade evidenciada pela visão

criminológica crítica, uma vez que, como visto, aquela tem como cerne a

85 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, p. 162. 86 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro . 10. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005, pp. 25 e 26. 87 “A criminologia positivista [...] tem por objeto não propriamente o delito, considerado como conceito jurídico, mas o homem delinqüente, considerado como um indivíduo diferente e, como tal, clinicamente observável [...] e tem como [...] específica função cognoscitiva e prática, individualizar as causas desta diversidade, os fatores que determinam o comportamento criminoso, com uma série de práticas que tendem, sobretudo, a modificar o delinqüente” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, pp. 29 e 30). 88 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p.159.

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reprovabilidade da conduta, cujo aspecto pode ser analisado sob este prisma crítico

de forma diversa – e mais realista – daquela consagrada pelo Direito Penal

normativo.

Destarte, este capítulo será um breve estudo destinado à contraposição da

leitura dogmática do Direito Penal, no que concerne a real atuação do sistema penal

que, apesar de declarar-se igualitário, seleciona determinados indivíduos, tornando-

os mais vulneráveis à criminalidade, os quais efetivamente passam a compor

praticamente a totalidade de sua “clientela”.

2.1 A crítica social de Jean Paul Marat ao Direito Penal liberal

Jean Paul Marat, médico de formação (porém, grande crítico da sociedade

de seu tempo), viveu na França, no final do século XVIII, cujo momento político e

social era marcado pela decadência da monarquia absolutista, face à oposição da

burguesia em ascensão (que detinha poder econômico, mas não político), razão

pela qual seus interesses se confrontavam. Este cenário, no qual as diferenças

sociais eram marcantes, somado às idéias difundidas pelo Iluminismo, culminou na

Revolução Francesa (1789).

Neste contexto, em 1777 foi lançado um concurso por meio da imprensa

francesa que premiaria o melhor trabalho versando sobre um plano de legislação

penal. Diante disto, Marat elaborou e concluiu em 1780 seu “Plano de Legislação

Criminal”, cuja obra, que não foi a vencedora do concurso, foi por ele publicada

apenas em 179089.

O Plano divide-se em quatro partes, sendo que a primeira é a que traz em

seu bojo “os princípios fundamentais de uma justa legislação”, que lhe serve

também como título, iniciando-se com uma análise da ordem social90. Esta parte da

obra será o cerne deste tópico do presente trabalho, no intuito de se fazer uma

relação com o pensamento de Marat, sob a ótica da aplicação do direito penal, e

nossa realidade atual.

89 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , 2008, p. 21. 90 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , 2008, p. 22.

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Nesta primeira parte, na seção intitulada “Da obrigação de se submeter às

leis”, Marat defende que os indivíduos que estão à margem da sociedade e que não

têm garantidos minimamente seus direitos fundamentais, não são, em razão disso,

obrigados a respeitar a lei, nem passíveis de sanção por esta. Assim afirma:

Numa terra em que tudo é possessão de outro e na qual não se pode apropriar-se de nada, resta apenas morrer de fome. Então, não conhecendo a sociedade a não ser por suas desvantagens, estarão obrigados a respeitar a lei? Não, sem dúvida. Se a sociedade os abandona, voltam ao estado natural e quando reclamam à força direitos dos quais não podem prescindir senão para proporcionar-lhes melhorias, toda autoridade que se oponha é tirânica e o juiz que os condena à morte não é mais que um vil assassino.91

E complementa:

Se para manter a sociedade é necessário obrigar a respeitar a ordem estabelecida, antes de tudo, deve satisfazer-se às suas necessidades. A sociedade deve assegurar a subsistência, um abrigo conveniente, inteira proteção, socorro em suas enfermidades e cuidados em sua velhice, porque não podem renunciar aos direitos naturais, contanto que a sociedade não prefira um estado de natureza.92

Assim, entende que “[...] somente depois de haver cumprido com todas as

obrigações para com seus membros poderá a sociedade adquirir o direito de

castigar os que violam suas leis”.93

Ainda, Marat afirma que examinando a vida dos indivíduos voltados

excessivamente à delinqüência se constata que não receberam nenhuma educação

e que muitos destes poderiam ter-se distinguido por suas virtudes, caso tivessem

sido “alimentados com lições de sabedoria”.94

Referida crítica, como se vê, não destoa da nossa atual realidade, pois é

notório que a massa carcerária é composta em sua infinita maioria por indivíduos

com baixo grau de instrução.

Noutra seção, intitulada “A Justiça deve ser imparcial”, Marat afirma:

91 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , p. 75. 92 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , p. 75. 93 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , p. 75. 94 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , p. 81.

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Tenho dito que ao mesmo delito deve inflingir-se igual castigo a todo delinqüente. Contudo esta lei não seria justa a não ser num Estado fundado sobre a igualdade e cujos membros gozassem mais ou menos das mesmas vantagens.95

Comentando acerca desta passagem, Zaffaroni e Pierangeli explicam que

“Marat começa afirmando que a pena mais justa é a talional, mas observa que isto

só assim seria na medida em que a sociedade fosse justa”96.

Concernente é a explicação de Javier Llobet Rodríguez, nesses termos97:

Marat rechazó la desigualdad en la aplicación de la ley penal, que se hacía en su época de acuerdo con el origen social. Así llegó a decir que en principio debe infligirse igual castigo a todo delincuente. Sin embargo, Marat termina rechazando esto mientras no se dé la igualdad y todos los miembros de la sociedad gocen de las mismas ventajas.98

Mais adiante, extrai-se do “Plano” o seguinte excerto:

A natureza estabeleceu grandes diferenças entre os homens e a fortuna as estabeleceu muitos mais. Quem não vê que a justiça deve levar sempre em consideração as circunstâncias em que o culpado se encontra, circunstâncias que podem agravar ou atenuar o crime?99

Aqui, nota-se que Marat já defendia, diante das diferenças sociais entre os

indivíduos, a necessidade da análise das condições pessoais de cada um, quando

da aplicação da pena. Neste sentido100:

Sobre ello debe anotarse que entre los aportes especialmente relevantes de Marat debe mencionarse la consideración de las condiciones personales, en particular las carencias que ha sufrido el

95 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , p. 88. 96 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 268. 97 RODRÍGUEZ, Javier Llobet. Jean Paul Marat y la Ilustración Penal . REVISTA CENIPEC. N. 25 (ENERO-DICIEMBRE), 2006, (p. 273-306), p. 293. 98 Marat rejeitou a desigualdade na aplicação da lei penal, que se fazia na sua época de acordo com a origem social. Assim chegou a dizer que em princípio deve-se infligir igual castigo a todo delinqüente. No entanto, Marat termina rejeitando isto enquanto não se dê a igualdade e todos os membros da sociedade gozem das mesmas vantagens. (tradução livre). 99 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal . Tradução: João Ibaixe Jr. E Carmensita Ibaixe. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pp. 88-89. 100 RODRÍGUEZ, Javier Llobet. Jean Paul Marat y la Ilustración Penal , p. 293-294.

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sujeto y que lo han llevado a la comisión del hecho delictivo, como relevantes para la imposición de la pena.101

Por fim, Marat traz exemplos de condutas, dando conta das diferenças de

graus de reprovabilidade do agente: “De dois homens que hajam cometido o mesmo

roubo, aquele que tem apenas o necessário é menos culpável que aquele que

usufrui o supérfluo”102. E também: “De dois perjuros, aquele que desde a infância

teve despertados sentimentos de honra é mais criminoso que aquele que,

abandonado à natureza, nunca recebeu qualquer educação”.103

Sobre estas passagens, Rodríguez afirma que:

Estas consideraciones tienen relación con la teoría de la pena que se ha desarrollado con posterioridad, que hace referencia a que para la fijación de la misma es importante la gravedad del hecho y el grado de reproche que se le puede hacer al responsable por no haberse comportado conforme a derecho.104

Desta forma, com base nas idéias acima colacionadas, principalmente no

tocante à reprovabilidade do indivíduo face o contexto social em que está inserido,

Zaffaroni e Pierangeli entendem que Marat foi o precursor do pensamento em que

se norteia o “princípio da co-culpabilidade”:

Cremos que a co-culpabilidade é herdeira do pensamento de Marat e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado social de direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no CP mediante a disposição genérica do art. 66.105

Adiante será especificamente abordado sobre o princípio da co-

culpabilidade; então, por hora, fica apenas este registro, que será posteriormente

retomado.

101 Sobre isso deve anotar-se que entre os aportes especialmente relevantes de Marat deve mencionar-se a consideração das condições pessoais, em particular as carências que sofreu o sujeito e que o têm levado à comissão do fato delitivo, como relevantes para a imposição da pena. (tradução livre) 102 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , p. 89. 103 MARAT, Jean-Paul. Plano de Legislação Criminal , p. 89. 104 RODRÍGUEZ, Javier Llobet. Jean Paul Marat y la Ilustración Penal ), p. 294. 105 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 611.

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Todavia, é necessário antes de adentrar ao tema aludido, alicerçar algumas

noções criminológicas imprescindíveis a este estudo, que serviram de embasamento

concreto à elaboração da teoria da co-culpabilidade.

Portanto, a seguir será estudado o sistema penal sob a ótica da

criminologia crítica que, em que pese ser fruto de intensa evolução neste âmbito,

não deixou de ter como base, também, as idéias aqui expostas de Marat.

2.2 Da teoria do labeling approach à criminologia crítica: a seletividade

arbitrária do sistema penal

As teorias da “reação social”, ou labeling approach (também conhecido

como enfoque do etiquetamento ou teoria da rotulação)106, desenvolveram-se,

principalmente, pela contribuição de três vertentes da sociologia contemporânea: o

interacionismo simbólico107, a fenomenologia e a etnometodologia108, e a sociologia

do conflito109.

Bissoli Filho comenta que o labeling approach:

Surgiu no final da década de 50 e início dos anos 60 deste século, nos Estados Unidos da América, em função dos estudos realizados pelos integrantes da “Nova Escola de Chicago”, num contexto histórico marcado pela crise do Estado providência e por diversas formas de radicalização social, política e cultural.110

106 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização : dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 44. 107 Para o interacionismo simbólico, “a sociedade [...] é constituída por uma infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continua a estender-se através da linguagem” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, p. 87). 108 Para a etnometodologia, “a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer sobre o plano objetivo, mas o produto de uma ‘construção social’, obtida graças a um processo de definição e de tipificação por parte de indivíduos e de grupos diversos” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, p. 87). 109 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 92 110 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização : dos antecedentes à reincidência criminal, p. 44.

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Este segmento do pensamento criminológico considera que a criminalidade

somente pode ser compreendida se analisada a ação do sistema penal desde a

concepção das normas abstratas até a ação das instâncias sociais, cujas atividades

constroem o status de delinqüente111.

Assim, o labeling approach tem por objeto o estudo das reações das

instâncias oficiais de controle social, em face da criminalidade, com o efeito

estigmatizante da atividade da polícia, dos membros que compõem a acusação

pública e dos magistrados.112

Nas exatas palavras de Baratta, o que diferencia a criminologia tradicional

da nova sociologia representada pelo labeling approach é

[...] a consciência crítica que a nova concepção traz consigo, em face da definição do próprio objeto da investigação criminológica e em face do problema gnosiológico e de sociologia do conhecimento que está ligado a este objeto (a “criminalidade”, o “criminoso”), quando não o consideramos como um simples ponto de partida, uma entidade natural para explicar, mas como uma realidade social que não se coloca como préconstituída à experiência cognoscitiva e prática, mas é construída dentro desta experiência, mediante os processos de internação que a caracterizam.113

Desta forma, o questionamento acerca da natureza do sujeito e do objeto em

relação ao comportamento desviante orientou os seguidores do labeling approach

ao estudo da formação da identidade desviante e dos efeitos da rotulação do

indivíduo como criminoso, bem como da desigual distribuição do poder de definição,

que é atribuído a determinadas pessoas, quanto ao comportamento que venha a ser

considerado desvio114.

Então, o paradigma etiológico115 sustentado pela criminologia positivista, que

considerava a criminalidade como fenômeno ontológico116, foi superado pelo

paradigma da "reação social", também conhecido como paradigma do "controle" ou

111 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 84. 112 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 86 113 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, pp. 86-87. 114 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 89. 115 A Etiologia é a ciência das causas; o estudo da origem das coisas. 116 A Ontologia é a parte da filosofia que trata da natureza do ser, da essência da realidade, da existência dos seres.

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da "definição"117, o qual problematiza a suposta validade dos juízos sobre desvio,

partindo de duas questões: a que perscruta a dimensão da definição de desvio e a

que analisa a dimensão do poder.118

Outrossim, a criminologia crítica trouxe como resultados as seguintes

proposições119:

a) O direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;

b) A lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos;

c) O grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade.

Assim considerando, Baratta afirma que a criminalidade é [...] “um ‘bem

negativo’, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no

sistema sócio-econômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos”120.

De fato, o resultado das pesquisas sobre a “criminalidade de colarinho

branco” e da cifra negra leva à desqualificação do valor interpretativo das

estatísticas criminais (baseadas somente na criminalidade identificada e

perseguida), do que se conclui que a criminalidade é uma conduta majoritária,

presente em todos os estratos sociais, mas a criminalização é desigualmente

distribuída pelo sistema penal.121

Sobre o assunto, Vera Regina Pereira de Andrade entende que

[...] se a conduta criminal é majoritária e ubícua, e a clientela do sistema penal é composta regularmente em todos os lugares do

117 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação soci al: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista Seqüência, Florianópolis, v. 30, 1995 (p. 24-36), p. 24. 118 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, 92. 119 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, 162. 120 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 161. 121 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica : do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 265.

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mundo por pessoas pertencentes aos baixos estratos sociais, isto indica que há um processo de seleção de pessoas às quais se qualifica como delinqüentes e não, como se pretende, um mero processo de condutas qualificadas como tais. O sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais que contra certas ações legalmente definidas como crime.122

Entretanto, a mecânica seletiva não ocorre, como pode erroneamente

parecer, porque algo ou alguém manipule o sistema penal de modo “conspiratório”,

em que pese dela decorrer a desigual distribuição do poder punitivo, que acaba

beneficiando determinados setores sociais123.

A seleção existe porque “a disparidade entre o exercício de poder

programado e a capacidade operativa dos órgãos é abissal”, de modo que “se o

sistema penal tivesse realmente o poder criminalizante programado, provocaria uma

catástrofe social”, pois124:

Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado125.

Isso posto, tem-se que a seletividade do sistema penal decorre tanto da

“criminalização primária” quanto da “criminalização secundária”. Esta, “é a ação

punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências

policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado

primariamente”, e aquela, “é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que

incrimina ou permite a punição de certas pessoas”126.

Em relação à criminalização primária, a seletividade atua desde a escolha

legislativa dos bens que serão tutelados pelo direito e das condutas que serão

122 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica : do controle da violência à violência do controle penal, p. 267. 123 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro : teoria geral do Direito Penal. vol. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 48. 124 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, pp. 26 e 27. 125 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 26. 126 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro : teoria geral do Direito Penal. vol. 1, p. 43.

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criminalizadas, de modo que o “caráter fragmentário”127 do direito penal acaba se

tornando uma ideologia que esconde a tendência deste em privilegiar os interesses

das classes dominantes, dirigindo o processo de criminalização para formas de

desvio típicas das classes subalternas128.

Neste mesmo sentido, Maria Lúcia Karam afirma que

A seleção e definição de bens jurídicos e comportamentos com relevância penal se faz de maneira classista, se faz fundamentalmente em defesa dos interesses daqueles que detêm as riquezas e o poder, pois são exatamente estes detentores da riqueza e do poder – as chamadas classes dominantes – que vão, em última análise, definir o que deve ou não ser punido, o que deve ou não ser criminalizado e em que intensidade.129

Ainda, corroborando este entendimento, Juarez Cirino dos Santos explica

que:

Através das definições legais de crimes e penas o legislador protege, especialmente, os interesses e as necessidades (valores) das classes dominantes, incriminando, rigorosamente as condutas lesivas dos fundamentos das relações de produção, concentradas na área da criminalidade patrimonial: constrói tipos de condutas proibidas sobre uma seleção de bens jurídicos próprios das classes dominantes, garantindo seus interesses de classe e as condições necessárias à sua dominação e reprodução como classe.130

Baratta advoga que esta seleção também ocorre pela própria formulação

técnica dos tipos legais, pois quando estes são direcionados às classes subalternas,

formam uma rede muito fina, “[...] enquanto a rede é freqüentemente muito larga

quando os tipos legais têm por objeto a criminalidade econômica, e outras formas de

criminalidade típicas dos indivíduos pertencentes às classes no poder”.131

O mesmo autor complementa:

127 Segundo o princípio da fragmentariedade “nem todas as lesões a bens jurídicos protegidos devem ser tuteladas e punidas pelo direito penal que, por sua vez, constitui somente parcela do ordenamento jurídico. (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal : parte geral: parte especial. 2. ed. ver., atual, e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 71). 128 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p165 129 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias . 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1993, p. 75. 130 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal : a nova parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 26. 131 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 165.

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No que se refere ao direito penal abstrato (isto é, à criminalização primária), isto tem a ver com os “não-conteúdos” da lei penal. O sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente débeis e marginalizados. 132

Nesta linha, Bissoli Filho disserta acerca da seletividade, e a subdivide em

quantitativa, que corresponde “ao número de condutas rotuladas como criminosas e

ao de autores em relação aos quais são atribuídas a condição de criminoso”, e

qualitativa, explicando quanto a esta que133

[...] em havendo a seleção de determinadas condutas como criminosas, outras deixam de ser definidas como tal, assim como muitos dos seus autores deixam de ser investigados, denunciados ou condenados por tais práticas. Tal seleção não somente deixa de abranger todas as condutas e pessoas, como também não inclui todas as condutas socialmente nocivas ou somente estas.

De outro lado, no que toca à criminalização secundária, a seleção dos

indivíduos se dá pela posição que ocupam na escala social, na qual há maiores

chances de serem selecionados aqueles que estão no nível mais baixo, de modo

que a posição precária no mercado de trabalho e os problemas de socialização

familiar e escolar, características normalmente encontradas nos indivíduos

pertencentes a este grupo, revelam ser “conotações sobre a base das quais o status

de criminoso é atribuído”134.

Sem embargo, pode-se dizer que a seleção já tem origem no sistema

escolar, que “reflete a estrutura vertical da sociedade e contribui para criá-la e para

conservá-la, através de mecanismos de seleção, discriminação e marginalização”135.

Para Baratta, 132 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 176. 133 BISSOLI FILHO, Francisco. Punição e divisão social: do mito da igualdade à realidade do apartheid social. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org). Verso e reverso do controle penal : (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. vol 2. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, pp.78-79. 134 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 165. 135 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 172.

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A homogeneidade do sistema escolar e do sistema penal corresponde ao fato de que realizam, essencialmente, a mesma função de reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da sociedade, criando, em particular, eficazes contra-estímulos à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado, ou colocando diretamente em ação processos marginalizadores.136

Desta perspectiva, a regra da criminalização secundária se traduz na

seleção de pessoas que causem menos problemas (em razão de sua incapacidade

de acesso ao poder político e econômico), por fatos penais burdos ou grosseiros, já

que a educação daquelas só lhes permite realizar ações ilícitas toscas e,

conseqüentemente, de fácil detecção137.

Assim, estes fatos mais grosseiros acabam sendo divulgados pela

comunicação social como os “únicos delitos” e aquelas pessoas como os “únicos

delinqüentes”, o que contribui para criação de estereótipos no imaginário coletivo138.

Com efeito, Zaffaroni entende que o sistema penal seleciona os indivíduos

de acordo com estes estereótipos, que “permitem a catalogação dos criminosos que

combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de fora

outros tipos de delinqüentes (delinqüência de colarinho branco, dourada139, de

trânsito140, etc.)”.141

Sobre este mote, o autor explica:

136 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal : Introdução à sociologia do direito penal, p. 175. 137 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro : teoria geral do Direito Penal. vol. 1, pp. 46-47. 138 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro : teoria geral do Direito Penal. vol. 1, p. 46. 139 Para Zaffaroni: “[...] em relação aos crimes de poluição, white collar e crimes econômicos - crimes de poder – existe uma inoperância geral de nossos sistemas penais que, nos poucos casos em que atua, é instrumentalizado como meio de eliminação competitiva, deixando vulneráveis os menos poderosos” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 108). 140 Para Zaffaroni: “Em relação aos delitos de trânsito, não é possível, pelo menos em nossa região marginal, depositar muita confiança num modelo decisório que, até o momento, se vangloria de prover segurança de acordo com seu discurso de justificação, mas que permanece indiferente e inativo diante da morte de um milhão de pessoas por década”. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 108). 141 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 130.

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O estereótipo alimenta-se das características gerais dos setores majoritários mais despossuídos e, embora a seleção seja preparada desde cedo na vida do sujeito, é ela mais ou menos arbitrária. Os sujeitos mais sensíveis às demandas do papel formuladas pelas agências dos sistemas penais são os mais imaturos, ou seja, os que possuem menor independência a respeito de sua adequada distinção em relação aos objetos externos. A maior sensibilidade às demandas do papel relaciona-se diretamente com a possibilidade de invasão que o indivíduo ofereça.142

Conclui-se, então, que o sistema penal está estruturalmente montado para

que a legalidade não opere, mas para que exerça seu poder com arbitrariedade

seletiva dirigida aos setores vulneráveis.143

Com suporte no acima exposto, adiante será abordada a teoria da “co-

culpabilidade”, assim como a “vulnerabilidade” dos indivíduos perante o sistema

penal, diante da seletividade que lhe é ínsita, com as conseqüências jurídicas daí

advindas (principalmente no âmbito da culpabilidade), cujos comentários terão

amparo, em sua totalidade, nas idéias do ilustre penalista Eugênio Raúl Zaffaroni,

idealizador deste pensamento que culminou na, por ele denominada, “culpabilidade

pela vulnerabilidade”.

2.3 O princípio da co-culpabilidade e seu aperfeiço amento: da limitação da

seletividade do sistema penal pela culpabilidade em razão do injusto (teoria do

delito) à limitação pela culpabilidade em razão da vulnerabilidade

Partindo do pressuposto realístico da seletividade do sistema penal, a

agência judicial somente pode intervir racionalmente para limitar esta seletividade,

segundo um critério objetivo e próprio144.

Para Zaffaroni, na tarefa de programação deste critério pautador e limitador

(porém não legitimante) do poder de exercício do sistema penal, um dos capítulos

142 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 134. 143 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 27. 144 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 246.

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mais importantes é o da denominada “teoria do delito”145 que, para o autor, é

“formada pelo conjunto de requisitos que, em todo caso, devem dar-se para que a

agência judicial não suspenda ou interrompa o exercício de poder do resto do

sistema penal”146.

Zaffaroni assim explica que a

[...] “teoria do delito” é somente o “nomenjuris” de uma parte do discurso jurídico-penal que explicita de forma orgânica o conjunto dos requisitos que a agência judicial deve exigir antes de decidir-se afirmativamente pelo prosseguimento do processo de criminalização.

Dentre estes requisitos, distingue um nível elementar, qual seja, a ação, e

um nível mínimo, representado pela tipicidade e antijuridicidade, sendo que as duas

últimas formam o chamado “injusto penal”147.

Entretanto, não pode a agência judicial pretender somente a partir da

configuração do injusto extrair a resposta criminalizante. Necessita, ainda, de

“alguma coisa à qual [...] não pode responder de outra forma senão admitindo essa

progressão criminalizante iniciada”148 - a culpabilidade.

Com a evolução das teorias da culpabilidade, à medida que esta passou a

significar reprovabilidade, passou também a não se dissociar de elementos éticos,

pois, do contrário, seria uma contradictio in adjectio149.

Entretanto,

[...] a seletividade operativa do sistema penal e o uso da pena como instrumento reprodutor da violência e legitimador de um exercício de poder (muito mais amplo e estranho ao poder dos juristas) mostram hoje claramente que as razões éticas – essência da reprovação de culpabilidade – não são mais que meras racionalizações, com o que a reprovação mesma resulta deslegitimada.150

145 Segundo a teoria do delito, baseada na concepção finalista da ação, crime é uma ação típica, antijurídica e culpável. 146 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 246. 147 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 248. 148 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 258. 149 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 262. 150 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 263.

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Assim, Zaffaroni entende que com os critérios tradicionalmente adotados

pela doutrina quanto à culpabilidade, chega-se a uma situação sem solução: a

culpabilidade enquanto reprovabilidade está em crise, porquanto diante da

seletividade do sistema penal está abstraída de conteúdo ético. Contudo, não se

pode construir a culpabilidade como reprovação sem um conteúdo ético.151

Portanto, o autor explica que

[...] o conceito de culpabilidade normativa – a reprovação personalizada – entrou em crise com a deslegitimação do exercício de poder do sistema penal. A seletividade do sistema penal neutraliza a reprovação: “Por que a mim? Por que não a outros que fizeram o mesmo? São perguntas que a reprovação normativa não pode responder152.

Nesta linha, é necessário admitir, como critério de limitação à arbitrariedade

seletiva, que não se pode formular um juízo de reprovação a um indivíduo do qual

não era razoavelmente possível exigir que agisse de outra maneira, quando “seu

âmbito de autodeterminação estava tão reduzido pelas circunstâncias objetivas que

também a exigibilidade aparecia como sumamente reduzida”153.

Sob esta perspectiva, todo sujeito age numa circunstância dada e com um

âmbito de autodeterminação dado, mas como a sociedade, por melhor organizada

que seja, não proporciona a todos iguais oportunidades, existem indivíduos que,

condicionados por estas causas sociais, possuem menor âmbito de

autodeterminação154.

Assim considerando, “não será possível atribuir estas causas sociais ao

sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação da culpabilidade”, de

modo que a própria sociedade deve arcar com sua parcela de responsabilidade.

Esta é a chamada teoria (ou princípio) da “co-culpabilidade”155.

Nas exatas palavras de Zaffaroni156:

151 Idem. 152 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 259. 153 Idem. 154 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 610. 155 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 611. 156 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Teoria del delito . Buenos Aires: Ediar, 1973, p. 541.

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[...] es unánime el reconocimento de que en el presente momento histórico nuestras sociedades no brindan iguales posibilidades. Esta realidad social tiene un inmediato efecto jurídico en el campo de la culpabilidad: si la sociedad no brinda a todos iguales posibilidades, resulta que hay un margen de posibilidades que se le ofrecen a unos y se le niega a otros y, por ende, cuando la infracción es cometida por aquél a quien se le han negado algumas posibilidades que la sociedad le dió a otros, lo equitativo será que la parte de responsabilidad por el hecho que corresponda a esas negociaciones sea cargada por la misma sociedad que en esa medida fue injusta.157

Desta forma, o autor afirma que o âmbito de autodeterminação do indivíduo

é visto puramente como responsabilidade moral, mas a limitação que este sofre em

razão das questões sociais, passa a ser um problema prático e dogmático que deve

ser analisado pelo juiz, nesses termos158

Se entiende por “co-culpabilidad” la parte de ésta que corresponde a la sociedad en la limitación del ámbito de libertad del sujeto, que muchas veces se plantea como problema de la responsabilidad moral. Es muy cierto que, planteado en estos términos, más que un problema dogmático, pareceria ser un problema de “filosofia penal de sobremesa”. Pero la cuestión deja de ser una “responsabilidad moral” de la sociedad e pasa a ser un problema práctico para el dogmático y el juez, cuando la reconoce la ley y se la descarga al autor.159

Assim, em razão da diferença de oportunidades que cada pessoa recebe do

Estado, a co-culpabilidade faz com que junto do indivíduo culpável por seu ato, uma

parcela desta culpa, ou seja, da reprovação, deve ser dividida com a sociedade à

medida e em razão das possibilidades negadas àquele.

157 [...] é unânime o reconhecimento de que no presente momento histórico nossas sociedades não brindam iguais possibilidades. Esta realidade social tem um imediato efeito jurídico no campo da culpabilidade: se a sociedade não brinda a todos iguais possibilidades, resulta que há uma margem de possibilidades que se lhe oferecem a uns e se lhe nega a outros e, portanto, quando a infração é cometida por aquele a quem se lhe negaram algumas possibilidades que a sociedade lhe deu a outros, o equitativo será que a parte de responsabilidade pelo feito que corresponda a essas negociações seja carregada pela mesma sociedade que nessa medida foi injusta. (tradução livre) 158 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Política criminal latinoamericana . Buenos Aires: Hamurabi, 1981, p.167. 159 Se entende por “co-culpabilidade” a parte desta que corresponde à sociedade na limitação do âmbito de liberdade do sujeito, que muitas vezes se coloca como problema da responsabilidade moral. É muito certo que, formulado nestes termos, mais que um problema dogmático, pareceria ser um problema de “filosofia penal de sobremesa”. Mas a questão deixa de ser uma “responsabilidade moral” da sociedade e passa a ser um problema prático para o dogmático e o juiz, quando a reconhece a lei e se a aplica ao autor. (tradução livre)

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A tese encontrou amparo diante de eminentes doutrinadores brasileiros,

dentre eles Juarez Cirino dos Santos, que assim entende:

Hoje, como valoração compensatória da responsabilidade dos indivíduos inferiorizados por condições sociais adversas, é admissível a tese da co-culpabilidade da sociedade organizada, responsável pela injustiça das condições sociais desfavoráveis da população marginalizada, determinantes de anormal motivação da vontade nas decisões da vida.160

No mesmo caminho, Nilo Batista advoga que "em certa medida, a co-

culpabilidade faz sentar no banco dos réus, ao lado dos mesmos réus, a sociedade

que os produziu".161

Contudo, a teoria da co-culpabilidade partia de pressupostos equivocados:

“(a) permanecia extremamente vinculada à idéia de que a criminalidade é efeito da

pobreza; e (b) subestimava ou relevava a seletividade criminalizante, o que

pressuporia aceitar o funcionamento igualitário e até natural do sistema penal”.162

De fato, diante da falibilidade dos pressupostos acima elencados, a teoria

em comento sofreu um aperfeiçoamento pelo seu próprio criador, devendo ser

ressaltado, contudo, que a tese não foi refutada, apenas melhor elaborada.

Assim, uma vez considerada a co-culpabilidade, a culpabilidade normativa

(culpabilidade pelo injusto) sofreu grandes diferenciações quanto à sua

interpretação.

Diante deste contexto, Zaffaroni, partindo da co-culpabilidade, desenvolveu a

idéia de “culpabilidade pela vulnerabilidade”, que deve ser considerada

paralelamente à da culpabilidade pelo injusto.

Com efeito, o autor afirma que não cabe “[...] duvidar que a resposta

criminalizante da instância judicial deva respeitar os limites que lhe impõe a

culpabilidade pelo injusto”, mas não pode nela basear-se, “devido à sua falta de

racionalidade como decorrência de sua desqualificação ética”163.

160 SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível . 3. ed. Curitiba: Fórum, 2004, p. 265-266. 161 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro , p. 105. 162 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 83 e 84. 163 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, pp. 266-267.

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Partindo desta premissa, Zaffaroni considera que é o grau de vulnerabilidade

do indivíduo ao sistema penal que decide a seleção, e não a prática em si do delito,

“porque há muitíssimos mais injustos penais iguais e piores que deixam o sistema

penal indiferente”, ou seja, a vulnerabilidade corresponde ao risco de seleção164.

Daí surge a culpabilidade pela vulnerabilidade, que se baseia no juízo de

reprovação pelo âmbito de autodeterminação do indivíduo e, conjuntamente, no

juízo de reprovação pelo esforço do agente em alcançar sua situação de

vulnerabilidade. Noutros termos165:

[...] el juicio necesario para vincular en forma personalizada el injusto a su autor y, en su caso, operar como principal indicador del máximo de la magnitud de poder punitivo que puede ejercerse sobre este. Este juicio resulta de la síntesis de un juicio de reproche basado en el ámbito de autodeterminación de la persona en el momento del hecho (formulado conforme a elementos formales proporcionados por la ética tradicional) con el juicio de reproche por el esfuerzo del agente para alcanzar la situación de vulnerabilidad en que el sistema penal ha concretado su peligrosidad, descontando del mismo el correspondiente a su mero estado de vulnerabilidad.166

O risco de seleção reconhece graus, “segundo a probabilidade de seleção,

podendo estabelecer-se níveis, conforme a situação em que se tenha colocado a

pessoa”.167

Zaffaroni divide a situação de vulnerabilidade (fatores de vulnerabilidade) em

dois grupos: o de posição ou estado de vulnerabilidade e o de esforço pessoal para

a vulnerabilidade. Ele assim os define, respectivamente: 168

164 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, pp. 268. 165 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal : parte general. Buenos Aires: Ediar, 2000, p. 626. 166 [...] o julgamento necessário para vincular de forma personalizada o injusto a seu autor e, no seu caso, operar como principal indicador do máximo da magnitude de poder punitivo que pode exercer-se sobre este. Este julgamento resulta da síntese de um julgamento de reprovação baseado no âmbito de autodeterminação da pessoa no momento do fato (formulado conforme os elementos formais proporcionados pela ética tradicional) com o julgamento de reprovação pelo esforço do agente para alcançar a situação de vulnerabilidade em que o sistema penal concretizou sua periculosidade, descontando do mesmo o correspondente a seu mero estado de vulnerabilidade. (tradução livre) 167 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, pp. 270. 168 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, pp. 270.

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A posição ou estado de vulnerabilidade é predominantemente social (condicionada socialmente) e consiste no grau de risco ou perigo que a pessoa corre só por pertencer a uma classe, grupo, estrato social, minoria, etc., sempre mais ou menos amplo, como também por se encaixar em um estereótipo, devido às características que a pessoa recebeu.

E mais:

[...] esforço pessoal para a vulnerabilidade é predominantemente individual, consistindo no grau de perigo ou risco em que a pessoa se coloca em razão de um comportamento particular. A realização do “injusto” é parte do esforço para a vulnerabilidade, na medida em que o tenha decidido com autonomia.

Assim, a posição ou estado de maior vulnerabilidade dará origem a um baixo

nível de culpabilidade pela vulnerabilidade, uma vez que o esforço pessoal para a

vulnerabilidade realizado pela pessoa não é muito elevado, e vice-versa.

Em todo caso, a culpabilidade pela vulnerabilidade nunca poderá ultrapassar

o limite estabelecido para a autonomia da vontade na culpabilidade pelo injusto,

conforme afirma Zaffaroni:

A culpabilidade pela vulnerabilidade contém, enquanto parte do esforço pessoal para a vulnerabilidade, a culpabilidade pelo injusto, que cumpre a sua função negativa ou limitadora da culpabilidade total para a vulnerabilidade, a ponto de, caso não haja culpabilidade pelo injusto, não poder conceber culpabilidade alguma para a vulnerabilidade.169

Concluindo, Zaffaroni entende que a escolha da culpabilidade pela

vulnerabilidade como regra não é arbitrária, além de ser razoável.170, contudo:

Não se deve duvidar que a culpabilidade é o capítulo em que a doutrina contemporânea demonstra maior desequilíbrio, acredita fazer grandes descobertas e, enfim, resolve antigos argumentos em meio à intensa desorientação ética e antropológica.171

169 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, pp. 276-277. 170 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, p. 276. 171 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal, pp. 262.

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Outrossim, registre-se que a expressão “princípio da co-culpabilidade”

continuará sendo utilizada no presente estudo, denotando a idéia de culpabilidade

pela vulnerabilidade, uma vez que a doutrina, ainda que escassa neste assunto,

quando o aborda, refere-se sempre ao termo “co-culpabilidade”.

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3. AS POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA C O-

CULPABILIDADE NO DIREITO PENAL COMPARADO E NO ORDEN AMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO

Considerando o embasamento teórico anteriormente exposto, passa-se,

então, às possibilidades de aplicação prática da culpabilidade pela vulnerabilidade

(princípio da co-culpabilidade).

Não há a previsão de aplicação desta teoria nos ordenamentos jurídicos, de

forma expressa e específica, entretanto, existem dispositivos que, em última análise,

podem ser utilizados na concretização deste pensamento.

Tais dispositivos, analisados sob esta ótica, serão, sempre, de minoração da

culpabilidade, ou melhor, da reprovabilidade da conduta do agente, e,

conseqüentemente, da pena a ser imposta. Isto porque, como visto, não poderá a

análise da culpabilidade pela vulnerabilidade agravar a situação do indivíduo, uma

vez que esta se submete ao limite da culpabilidade pelo injusto.

3.1 As possibilidades de aplicação do princípio da co-culpabilidade no Direito

Penal comparado

Inicialmente, cumpre registrar que os artigos de lei que serão analisados

neste tópico, assim como sua estrutura principal, foram retirados da obra “Do

princípio da co-culpabilidade no Direito Penal”, do autor Grégore Moreira de

Moura172.

Outrossim, será dada ênfase às legislações dos países latino-americanos,

eis que inseridos num contexto de realidade social mais aproximado da do Brasil, o

que, por óbvio, permite uma comparação mais eficaz no que tange à aplicabilidade

da teoria em estudo.

3.1.1 No ordenamento jurídico argentino

172 MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade no Direito Penal . Niterói: Impetus, 2006.

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O ordenamento jurídico argentino, berço intelectual da teoria da co-

culpabilidade, possui em seu Código Penal os seguintes dispositivos:

Artículo 40. En las penas divisibles por razón de tiempo o de cantidad, los tribunales fijarán la condenación de acuerdo con las circunstancias atenuantes o agravantes particulares a cada caso y de conformidad a las reglas del artículo siguiente.173

Artículo 41. A los efectos del artículo anterior, se tendrá en cuenta:

1º La naturaleza de la acción y de los medios empleados para ejecutarla y la extensión del daño y del peligro causados;

2º La edad, la educación, las costumbres y la conducta precedente del sujeto, la calidad de los motivos que lo determinaron a delinquir, especialmente la miseria o la dificultad de ganarse el sustento propio necesario y el de los suyos, la participación que haya tomado en el hecho, las reincidencias en que hubiera incurrido y los demás antecedentes y condiciones personales, así como los vínculos personales, la calidad de las personas y las circunstancias de tiempo, lugar, modo y ocasión que demuestren su mayor o menor peligrosidad. El juez deberá tomar conocimiento directo y de visu del sujeto, de la víctima y de las circunstancias del hecho en la medida requerida para cada caso.174 (destacou-se)

Da análise, percebe-se que o artigo 40 acima transcrito trata de

circunstâncias atenuantes ou agravantes, sendo que o artigo 41, especificamente

em sua segunda parte, refere-se às circunstâncias sociais que envolveram e

envolvem o indivíduo, que devem ser sopesadas quando da aplicação da pena.

173 Artigo 40. Nas penas divisíveis por razão de tempo ou de quantidade, os tribunais fixarão a condenação de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes particulares a cada caso e de conformidade com as regras do artigo seguinte. (tradução livre) 174 Artigo 41. Para efeitos do artigo anterior considerar-se-á: 1º A natureza da ação e dos meios empregados para executá-la e a extensão do dano e do perigo causados; 2º A idade, a educação, os costumes e a conduta precedente do sujeito, a qualidade dos motivos que o determinaram a delinqüir, especialmente a miséria ou a dificuldade de obter o próprio sustento e o de sua família, a participação que haja tomado no fato, as reincidências em que houver incorrido e os demais antecedentes e condições pessoais, assim como os vínculos pessoais, a qualidade das pessoas e as circunstâncias de tempo, lugar, modo e ocasião que demonstrem sua maior ou menos periculosidade. O juiz deverá tomar conhecimento direto do sujeito, da vítima e das circunstâncias de fato na medida requerida para cada caso. (tradução livre)

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Sobre este dispositivo, Zaffaroni comenta que “No es la primera disposición

sabia de nuestra legislación que los doctrinarios pasan por alto. Lo cierto es que com

alla se introdujo em al derecho penal argentino al concepto de co-culpabilidad.”175

Quanto à matéria, traz-se à colação o seguinte julgado da Justiça argentina:

ATENUANTES Y AGRAVANTES - POBREZA EXTREMA. PENA - GRADUACIÓN

3. El estrechamiento de las alternativas vitales derivado de una existencia privada de muchos de los bienes que provee la cultura constituye un dato que, como condición personal del sujeto, debe ser evaluado pues puede configurar -en ciertas situaciones- una circunstancia de menor reprochabilidad de su conducta (arts. 40 y 41 del C.P.), y como tal, debe computarse al momento de individualizar la pena.176

Desta forma, pode-se concluir que no ordenamento argentino referido

dispositivo tem efetiva aplicabilidade, consagrando, ainda que de modo pouco

expressivo, a culpabilidade pela vulnerabilidade.

3.1.2 No ordenamento jurídico peruano

O Código Penal peruano dispõe expressamente que o juiz deverá levar em

conta “as carências sociais que houver sofrido o agente”, nesses termos:

Artículo 45. Presupuestos para fundamentar y determinar la pena.

El Juez, al momento de fundamentar y determinar la pena, deberá tener en cuenta:

1. Las carencias sociales que hubiere sufrido el agente;

2. Su cultura y sus costumbres; y,

3. Los intereses de la víctima, de su familia o de las personas que de ella dependen.177 (destacou-se)

175 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Política criminal latinoamericana , p. 167. 176 Disponível em: <http://www.scba.gov.ar/BoletinSCBA/infojuban37.htm>. Acesso em 30 out. 2008. 177 Artigo 45. Pressupostos para fundamentar e determinar a pena. O juiz, no momento de determinar e fundamentar a pena, deverá ter em conta:

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53

Manuel Espinoza entende que neste artigo a legislação penal peruana

consagra o principio da co-culpabilidade, nesses termos:

El art. 45° del C.P. consagra el principio “JUS POE NALI” de la “CO-CULPABILIDAD” de la sociedad y del Estado en la comisión del delito, como causa eficiente o condicionador de las causas sociales, materiales y culturales de la conducta criminal de los hombres;

E continua:

[…] por tanto, se está aceptando una responsabilidad de la sociedad y del Estado, en lo que les respecta, en la conducta delictiva de los infractores penales, como “MEA CULPA” conceptúa el art. 45° del C.P. en el reconocimiento oficial del Estado, que la delincuencia se gesta en las condiciones sociales de injusticia que impera en la sociedad. […] Por “MEA CULPA” que tiene el efecto de enervar o atenuar el derecho de castigar (JUS PUNIENDI) que el Estado ejerce en nombre de la sociedad.178

Como visto, o autor entende que neste dispositivo o Estado e a sociedade

reconhecem sua parcela de responsabilidade, quando a prática do delito se dá em

meio a condições sociais de injustiça.

3.1.3 No ordenamento jurídico mexicano

Assim prevê o artigo 52 do Código Penal mexicano:

Artículo 52. El juez fijará las penas y medidas de seguridad que estime justas y procedentes dentro de los límites señalados para cada delito, con base en la gravedad del ilícito y el grado de culpabilidad del agente, teniendo en cuenta: [...] V. La edad, la educación, la ilustración, las costumbres, las condiciones sociales y económicas del sujeto, así como los motivos que lo impulsaron o determinaron a delinquir. Cuando el procesado

1. As carências sociais que houver sofrido o agente; 2. Sua cultura e seus costumes; e, 3. Os interesses da vítima, de sua família ou das pessoas que dela dependam. (tradução livre) 178 ESPINOZA, Manuel. Principios fundamentales del Derecho penal contempo râneo . Disponível em: <http://www.ceif.galeon.com/Revista9/penal.htm>. Acesso em 30 out. 2008.

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54

perteneciere a algún pueblo o comunidad indígena, se tomarán en cuenta, además, sus usos y costumbres; [...] VII. Las demás condiciones especiales y personales en que se encontraba el agente en el momento de la comisión del delito, siempre y cuando sean relevantes para determinar la posibilidad de haber ajustado su conducta a las exigencias de la norma.179

No inciso V do referido artigo consta que na aferição do grau de culpabilidade

deverá ser levado em conta as condições sociais e econômicas do sujeito, no qual

poderá ser avaliada a “co-culpabilidade”.

Da mesma forma, poderá ser considerada a tese no inciso VII, que traz a

possibilidade de se analisar as condições especiais e pessoais do agente quando da

prática do delito.

De outro lado, cumpre aqui ressaltar, inclusive, a especial preocupação com

os índios, demonstrando certa repulsa, ou discriminação em relação a estes por

parte da legislação diante do liberalismo reinante do direito penal.

3.1.4 No ordenamento jurídico colombiano

O artigo 56 do Código Penal da Colômbia traz a seguinte redação:

Artículo 56. El que realice la conducta punible bajo la influencia de profundas situaciones de marginalidad, ignorancia o pobreza extremas, en cuanto hayan influido directamente en la ejecución de la conducta punible y no tengan la entidad suficiente para excluir la responsabilidad, incurrirá en pena no mayor de la mitad del máximo,

179 Artigo 52. O juiz fixará as penas e medidas de segurança que estime justas e procedentes dentro dos limites assinalados para cada delito, com base na gravidade do ilícito e no grau de culpabilidade do agente, tendo em vista: [...] V. A idade, a educação, o esclarecimento, os costumes, as condições sociais e econômicas do sujeito, assim como os motivos que o impulsionaram ou determinaram a delinqüir. Quando o processado pertencer a algum povo ou comunidade indígena, se leverão em conta, além de tudo, seus usos e costumes; [...] VII. As demais condições especiais e pessoais em que se encontrava o agente no momento do cometimento do delito, sempre e quando sejam relevantes para determinar a possibilidade de haver ajustado sua conduta às exigências da norma. (tradução livre)

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ni menor de la sexta parte del mínimo de la señalada en la respectiva disposición.180

Em perfunctória comparação com as demais legislações, parece ser este o

dispositivo que mais se adéqua à aplicação da culpabilidade pela vulnerabilidade,

em razão da sua própria redação, no qual a diminuição da pena é considerável.

3.1.5 No ordenamento jurídico equatoriano

Na legislação penal equatoriana a possibilidade da análise da culpabilidade

pela vulnerabilidade ocorre somente em relação aos delitos patrimoniais, conforme

dispõe o nº 11 do art. 29 do seu Código Penal:

Art. 29 - Son circunstancias atenuantes: todas las que; refiriéndose a las causas impulsivas de la infracción, al estado y capacidad física e intelectual del delincuente, a su conducta con respecto del acto y sus consecuencias, disminuyen la gravedad de la infracción, o la alarma ocasionada en la sociedad, y dan a conocer la poca o ninguna peligrosidad del autor, como en los casos siguientes: [...] 11 - En los delitos contra la propiedad, cuando la indigencia, la numerosa familia, o la falta de trabajo han colocado al delincuente en una situación excepcional; o cuando una calamidad pública le hizo muy difícil conseguir honradamente los medios de subsistencia, en la época en que cometió la infracción;181

Destarte, nota-se que as legislações destes países permitem a aplicação do

princípio da co-culpabilidade, entretanto, de modo muito restrito. 180 Artigo 56. Aquele que realize a conduta punível sob a influência de profundas situações de marginalidade, ignorância ou pobreza extremas, na medida em que tenham influenciado diretamente na execução da conduta punível e não tenham força suficiente para excluir a responsabilidade, incorrerá em pena não maior do que a metade do máximo, nem menor do que a sexta parte do mínimo previsto na respectiva disposição. (tradução livre) 181 Art. 29 - São circunstâncias atenuantes: todas as que, referindo-se às causas impulsivas da infração, ao estado e a capacidade física e intelectual do delinqüente, a sua conduta com respeito ao ato e às conseqüências, diminuem a gravidade da infração, ou a repercussão causada na sociedade, e dão a conhecer a pouca ou nenhuma periculosidade do autor como nos casos seguintes: [...] 11 - Nos delitos contra a propriedade, quando a indigência, a numerosa família, ou a falta de trabalho tenha colocado o delinqüente em uma situação excepcional; ou quando uma calamidade pública fez com que se tornasse muito difícil conseguir honradamente os meios de subsistência, na época em que cometeu a infração. (tradução livre)

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3.2 As possibilidades de aplicação do princípio da co-culpabilidade no Direito

Penal brasileiro

No ordenamento jurídico pátrio também existem dispositivos mediante os

quais se pode aplicar o princípio da co-culpabilidade.

Zaffaroni e Pierangeli entendem que no Brasil a co-culpabilidade tem

cabimento no Código Penal, por meio da disposição genérica do seu artigo 66182.

Assim dispõe o referido dispositivo:

Art. 66. A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.

Trata-se de atenuante inominada que prevê a minoração da pena fora dos

casos expressamente previstos na lei e, como as demais circunstâncias atenuantes,

tem aplicação na segunda fase da dosimetria da pena.

Nas palavras de Damásio E. de Jesus, “São circunstâncias que escapam à

especificação legal e que servem de meios diretivos para o juiz aplicar a pena”.183

Alberto da Silva Franco explica que

Não se trata, como se refere o texto legal, de uma circunstância fática qualquer, mas, em verdade, de uma circunstância qualificada como relevante, isto é, que se revele importante, valiosa, indispensável no processo individualizador da pena aplicável ao agente.184

E completa:

Sob o abrigo do art. 66 do Código Penal, foi criada a fórmula das chamadas atenuantes inominadas que transformaram as hipóteses

182 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral, p. 611. 183 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal : parte geral, p. 579. 184 FRANCO, Alberto da Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 378.

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do art. 65 do Código Penal em meras exemplificações de circunstâncias atenuantes.185

Entretanto, Delmanto explica que através deste artigo podem ser incluídas

as circunstâncias atenuantes previstas no artigo 65 do Código Penal, que não se

caracterizaram ali como atenuantes por falta de algum requisito delas.186

Para Paulo José da Costa Júnior a importância do referido artigo se dá

porque

[...] Em cada conduta humana faz-se sentir o imponderável, enquanto a miopia do legislador o impede de prever todas as hipóteses que irão surgir. Nenhuma lei será pois capaz de prever, de catalogar, definir e sistematizar os fatos que irão desencadear-se na realidade fenomênica futura. [...] Poderá o magistrado, ao considerar ângulos não previstos, reduzir a sanção de molde a adequá-la à culpabilidade do agente. Não se dispensa, todavia, o juiz de motivar suficientemente a decisão.187

Com base nestas considerações, se conclui que a co-culpabilidade pode ser

analisada por meio deste dispositivo, eis que é uma causa relevante anterior ao

crime, que influenciou no cometimento deste. É certo, porém, que a aplicação

deverá ser cuidadosamente analisada em cada caso concreto pelo magistrado, de

forma devidamente fundamentada.

De outro lado, o artigo 59 do Código Penal, que trata das circunstâncias

judiciais, analisadas na primeira fase da dosimetria da pena (fixação da pena-base),

também traz em seu bojo a possibilidade de aplicação da co-culpabilidade.

Eis sua redação:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. (destacou-se).

Quanto à “culpabilidade” mencionada no artigo, cumpre esclarecer que o

termo ali é utilizado no sentido lato (o grau de reprovação social que o autor do fato 185 Idem. 186 DELMANTO, Celso, DELMANTO Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto e DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado , 5 ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 126. 187 COSTA Jr., Paulo José da. Código Penal Comentado . 9. Ed. São Paulo: DPJ Editora, 2007, p. 220.

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e o crime merecem)188, e não em sentido estrito (a culpabilidade como elemento

integrante do delito, a reprovação por si, cerne deste trabalho).

Neste âmbito da aplicação da pena, a culpabilidade referida funciona como

elemento de determinação ou de medição da pena, ou seja, como limite, impedindo

que a pena seja imposta além da medida da culpabilidade em sentido estrito. Aqui

não se avaliará (como, por vezes, ocorre na prática) “se o agente sabia ou poderia

saber da ilicitude do seu ato”, mas sim, deverá ser avaliada a maior ou menor

censurabilidade do comportamento do agente, não se olvidando, porém, da maior ou

menor exigibilidade de outra conduta189.

Quanto à personalidade trata-se do conjunto de caracteres exclusivos de

uma pessoa, o conjunto das qualidades morais e sociais do indivíduo.190

O próprio doutrinador Guilherme de Souza Nucci, que se opõe à aplicação

da teoria da co-culpabilidade, afirma, quando trata da personalidade do agente, que

É imprescindível, no entanto, haver uma análise do meio e das condições onde o agente se formou e vive, pois o bem nascido que tende ao crime deve ser mais severamente apenado do que o miserável que tenha praticado uma infração penal para garantir sua sobrevivência.191

Motivos do crime são os precedentes que levam à ação criminosa. “Todo

crime tem um motivo que pode ser mais ou menos nobre, mais ou menos

repugnante.”192

Diante da breve explicação acerca destes elementos em especial, que

compõem o artigo 59 do Código Penal brasileiro, é possível estabelecer uma

conexão com o estudo realizado no capítulo anterior do presente trabalho.

Com efeito, estes elementos (grau de culpabilidade, personalidade do

agente e motivos do crime) trazem em sua natureza aspectos que podem ser

relacionados ao contexto social em que está inserido o indivíduo, mormente se

considerada a seletividade do sistema penal.

Neste sentido, Salo de Carvalho diz que

188 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal : parte geral, parte especial, p. 417. 189 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal , p. 590. 190 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal : parte geral, parte especial, p. 420. 191 Idem. 192 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal : parte geral, parte especial, p. 421.

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[...] o entorno social, portanto, deve ser levado em consideração na aplicação da pena, desde que, no caso concreto, o magistrado identifique uma relação razoável entre a omissão estatal em disponibilizar ao indivíduo mecanismos de potencializar suas capacidades e o fato danoso por ele cometido. O postulado é decorrência lógica da implementação, em nosso país, pela Constituição de 1988, do Estado Democrático de Direito, plus normativo ao Estado Social que estabelece instrumentos dos direitos sociais, econômicos e culturais.193

Outrossim, de se registrar que no Projeto de Lei nº 3.473/2000194, que visa à

reforma da Parte Geral do Código Penal brasileira, a possibilidade de aplicação da

co-culpabilidade parece vir expressa:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, antecedentes, reincidência e condições pessoais do acusado, bem como as oportunidades sociais a ele oferecidas, aos motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e ao comportamento da vítima, estabelecerá conforme seja necessário e suficiente à individualização da pena: I – a espécie e a quantidade de pena aplicável; II – o regime fechado ou semi-aberto como etapa inicial de cumprimento da pena; III – a restrição de direito cabível. (destacou-se)

De outra banda, outro dispositivo que impende analisar é o artigo 187 do

Código de Processo Penal, conjuntamente com seu §1º, ambos com redação dada

pela Lei nº. 10.792/03, que trata do interrogatório do acusado. Assim dispõem:

Art. 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos. § 1o Na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais. (destacou-se).

Este dispositivo permite ao magistrado reunir dados acerca do contexto

social em que se encontra o acusado, permitindo, na hipótese de uma futura

aplicação da sanção, analisar com mais acuidade e embasamento a reprovação do

agente (seja na análise do artigo 59 ou na aplicação do artigo 66 do Código Penal).

193 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo . 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002. 194 BRASIL. Projeto de Lei nº 3473/2000, de 27 de setembro de 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/PL/2000/msg1107-00.htm>. Acesso em: 30 out. 2008.

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Ou seja, é um meio de mensurar, por dados concretos, a culpabilidade pela

vulnerabilidade.

Concernente é o entendimento de Vladimir Stasiak:

[...] Inclusão interessante, que merece destaque, é a necessidade de se perguntar sobre as oportunidades sociais, as quais podem ser entendidas, quando inadequadas e insatisfatórias, como atenuantes inominadas (art. 66, CP) em eventual condenação.195

Por fim, na legislação penal esparsa, destaca-se o inciso II do artigo 14 da

Lei n.º 9.605/98 – Lei que trata dos crimes ambientais, nesses termos:

Art. 14. São circunstâncias que atenuam a pena: I - baixo grau de instrução ou escolaridade do agente;

Neste dispositivo o legislador prevê expressamente o baixo grau de

instrução ou escolaridade do agente como circunstância atenuante da pena a ser

aplicada, cuja disposição vem ao encontro da idéia de co-culpabilidade, conforme já

sustentado.

Destarte, assim como nos ordenamentos jurídicos dos países latino-

americanos que foram anteriormente estudados, conclui-se que no Brasil também

existe a possibilidade de aplicação do principio da co-culpabilidade, em que pese ser

de forma restrita.

Com base no exposto, o próximo (e último) tópico do presente trabalho

tratará da aplicação (ou não) do princípio da co-culpabilidade nos nossos Tribunais

estaduais.

3.3 O princípio da co-culpabilidade nos Tribunais b rasileiros

Neste último tópico do presente trabalho, serão apresentadas algumas

decisões provenientes dos Tribunais de Justiça estaduais do Brasil que tiveram o

195 STASIAK, Vladimir. Artigo de opinião . Disponível em: <http://www.parana-online.com.br/canal/direito-e-justica/news/70448/> Acesso em 31 out. 2008.

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tema em questão como objeto. A aplicação do princípio da co-culpabilidade, como

se verá, é rechaçada pela maioria de nossos julgadores.

Registre-se, desde já, que é escasso o número de julgados que abordem

este tema, razão pela qual não há entendimento pacífico quanto a este mote. Pelo

contrário, ousa-se afirmar que parece não haver qualquer entendimento sólido,

diante da parca fundamentação utilizada na maioria destas decisões.

Cumpre também ressaltar que em muitos dos Tribunais dos Estados

brasileiros ainda não houve qualquer debate acerca da matéria, assim como nos

Tribunais Regionais Federais e Superiores196.

Do egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, colhe-se o seguinte

julgado:

APELAÇÃO CRIMINAL - CRIANÇA E ADOLESCENTE - FURTO TENTADO E QUALIFICADO PELO ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO - CONFISSÃO DO REPRESENTADO SECUNDADA POR DEPOIMENTOS DA VÍTIMA E DEMAIS TESTEMUNHAS - AUTORIA E MATERIALIDADE EVIDENCIADAS - ABSOLVIÇÃO INVIÁVEL - RECONHECIMENTO DA CO-CULPABILIDADE DO PODER PÚBLICO EM RAZÃO DA SUA FALIBILIDADE EM RECUPERAR O ADOLESCENTE QUANDO DA APLICAÇÃO DAS DEMAIS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS - INADMISSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL [...]197 (destacou-se)

A aplicação do “princípio da co-culpabilidade” foi negada sob o argumento

de que não há previsão legal para tanto, assim como, segundo o entendimento

exarado no corpo do acórdão, porque

O reconhecimento da teoria da co-culpabilidade parece temerária (SIC), eis que inevitavelmente vai aderir à conceituação de pobreza e miséria, relegando a uma segunda análise a ocorrência ou não culpabilidade, hoje entendida como o juízo de censurabilidade e reprovabilidade da conduta do indivíduo.

Entretanto, como visto no item anterior do presente estudo, existem

possibilidades de aplicação do princípio da co-culpabilidade em nossa legislação

196 Ao menos no acervo de decisões que consta no endereço eletrônico dos Tribunais. 197 BRASIL. TJSC, Ap. Crim. n.º 2006.005291-1, rel. Des. Tulio Jose Moura Pinheiro, j. em 22.8.2006. Disponível em <http://www.tj.sc.gov.br>. Acesso em 28 out. 2008.

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(artigos 66 e 59 do Código Penal), muito embora não exista uma previsão expressa

neste sentido, o que acreditamos ser desnecessário.

Quanto ao outro argumento, o de que a co-culpabilidade “vai aderir à

conceituação de pobreza e miséria”, acaba sem respaldo, quando consideramos que

a criminalização (por meio da seletividade e dos estereótipos) é que faz com que as

pessoas pertencentes aos estratos mais pobres sejam criminalizadas. Com efeito, a

pobreza e a miséria são decorrentes da extrema desigualdade social.

De outro lado, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a matéria foi

tratada na Apelação n.º 993070367121, cujo apelante - condenado em primeiro grau

pela prática do crime previsto no art. 155, § 4o, inc. I, do Código Penal - sustentou a

aplicação da circunstância atenuante inominada do art. 66 do Código Penal em seu

favor, com base no princípio da co-culpabilidade.

A aplicação da tese foi negada sob o fundamento de que o Estado

proporciona a todos idênticas condições de sobrevivência e acesso à boa educação,

de modo que o apelante, não obstante a oportunidade oferecida, preferiu enveredar

pela prática do crime.

Além disto, entenderam os eminentes julgadores pela inaplicabilidade do

artigo 66 do Código Penal nestes casos, pois, do contrário, se estaria punindo “uma

segunda vez a sociedade”. Traz-se à colação excerto da referida decisão:

E para que não fique sem apreciação a tese defensiva, salienta-se que o Estado, conquanto não a contento, propicia a todos idênticas condições de sobrevivência. Faculta sim, o acesso à boa educação, e a grande maioria da população, a partir dela, adquire e desenvolve valores sociais, éticos e morais. O réu, aliás, teve essa oportunidade. Estudou até a 7a série do curso básico e certamente poderia ter ido além. Mas no trajeto acabou se envolvendo com drogas e, para sustentar o vício, passou a se dedicar à prática de crimes contra o patrimônio, comportamento que, sempre com a devida vênia, não pode ser alçado à condição de atenuante genérica inominada, com o que se estaria a punir uma segunda vez a sociedade "já acusada por uma criminalidade violenta e crescente.198

Data venia, o argumento de que o Estado proporciona a todos idênticas

condições de sobrevivência e acesso à boa educação é uma grande falácia.

Desnecessário refutar este argumento com base na criminologia crítica, eis que

198 BRASIL. TJSP, Ap. Crim. n.º 993070367121 (1144490390000000), rel. Des., Francisco Orlando, j. em 28.4.2008. Disponível em <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em 28 out. 2008.

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basta a simples verificação dos dados sociais do país, por meio da imprensa (ou até

mesmo andando pelas ruas) para se chegar à conclusão que a famigerada

igualdade de tratamento a todos os cidadãos somente fica no plano abstrato de

nossa legislação.

Ainda, o Tribunal do Estado do Mato Grosso desafiou o tema no julgamento

de alguns recursos de apelação, dos quais se traz à colação as seguintes decisões:

RECURSO DE APELAÇÃO - PORTE ILEGAL DE ARMA - PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO - CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL E JUDICIAL HARMÔNICAS AO CONJUNTO PROBATÓRIO - ATENUANTE GENÉRICA - CO-CULPABILIDADE DO ESTADO - INADMISSIBILIDADE - PENA-BASE NO MÍNINO LEGAL - CONDENAÇÃO MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO.

[...]

A atenuante genérica da co-culpabilidade do Estado é facultativa, todavia, não deve ser reconhecida, sob pena de legitimar e estimular as práticas criminosas199. (Destacou-se)

Do argumento expendido na decisão se extrai:

O estado de pobreza, a pouca escolaridade e a renda precária do agente não justificam sua atitude criminosa e, tão pouco, diminuem a sua culpabilidade. A exigibilidade da conduta faz-se conforme o direito.

Como visto no segundo capítulo do presente trabalho, não há como negar

que situações de pobreza e pouca escolaridade (geradas, repita-se, em razão do

tratamento desigual pela sociedade) atingem o âmbito de autodeterminação do

indivíduo, melhor dizendo, reduz este âmbito, e também aumenta sua

vulnerabilidade, o que deve ser considerado para o fim da reprovação da conduta, e

da aferição do grau de exigibilidade de uma conduta conforme o direito.

Do mesmo Tribunal:

ENTORPECENTES - CIRCUNSTÂNCIA ATENUNANTE GENÉRICA -REDUÇÃO DA PENA COM BASE NO ART. 66 DO CÓDIGO PENAL COCULPABILIDADE DO ESTADO - IMPOSSIBILIDADE [...]

199 BRASIL. TJMT, Ap. Crim. n.º 15103/2003, rel. Des. Paulo da Cunha, j. em 2.12.2003. Disponível em <http://www.tj.mt.gov.br>. Acesso em 28 out. 2008.

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Cabe ao Estado fomentar políticas sociais e econômicas que visem garantir aos cidadãos a preservação de seus direitos individuais. Porém, atribuir-lhe responsabilidade pela prática de crime pela falta de política social é inaceitável, visto que se assim fosse, o Estado estaria fomentando a prática delitiva. A reprovação adequada da conduta errada é um dever do Estado e tem como objetivo promover a perfeição do homem e o resgate de sua cidadania.200 (destacou-se)

Como fundamentação ao afastamento da tese, consta no corpo do referido acórdão:

Embora seja obrigação do Estado proporcionar a todo cidadão condições dignas de sobrevivência, o fato de a pessoa ser pobre, de não ter tido acesso à educação e saúde, não justifica a prática de crimes, mormente o descrito no art. 12 da Lei nº 6.368/76. Isso porque, milhões de brasileiros encontram-se na mesma situação do apelante, e vivem honestamente. É muito cômodo que alguém, visando lucro fácil, ao invés de trabalhar, transporta substância entorpecente (cocaína) e culpe o Estado e ainda busque ser beneficiado com isso.

De fato, contrariamente ao entendimento exposto, o Estado efetivamente

fomenta a prática delitiva ao não garantir aos cidadãos seus direitos, o que deveria

ser seu maior objetivo, daí o fundamento de repartir a responsabilidade pela prática

de crime neste contexto.

Oportuno registrar que, ainda que o objetivo do Estado fosse “promover a

perfeição do homem e o resgate de sua cidadania”, não seria adequado fazê-lo por

meio da reprovação da conduta “errada” daquele que foi selecionado pelo sistema

penal, mas sim, garantindo a todos, igualmente, condições de desenvolvimento

social.

Ainda, em que pese não ter sido o tema abordado neste trabalho, sabe-se

que o cárcere, em vez de cumprir sua dita função ressocializadora, é responsável

pela deterioração do indivíduo.

Verifica-se que no caso concreto do referido acórdão, trata-se de crime de

entorpecentes, talvez um dos crimes que mais reflita os problemas sociais do país.

O julgador pondera que “o fato de a pessoa ser pobre, de não ter tido acesso à

educação e saúde, não justifica a prática de crimes, mormente o descrito no art. 12

da Lei nº 6.368/76”. A partir daí questiona-se: seria realmente o caso de que o autor

200 BRASIL. TJMT, Ap. Crim. n.º 2066/2003, rela. Juíza Maria Aparecida Ribeiro, j. em 20.5.2003. Disponível em <http://www.tj.mt.gov.br>. Acesso em 28 out. 2008.

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do delito estivesse visando lucro fácil, em vez de trabalhar (considerando as

possibilidades efetivas daquele indivíduo em conseguir um emprego)?

Que dizer então daqueles que praticam os chamados crimes de colarinho

branco, os crimes de poder, embora “trabalhando”, e tendo todo acesso à educação,

saúde, lazer, praticam delitos que afetam muito mais a sociedade e, no entanto, pela

própria lei recebem tratamento mais benéfico, isso quando referidas condutas

chegam a ser apuradas pelo sistema penal (quem dirá, aplicada uma sanção), uma

vez que a vulnerabilidade destes indivíduos é baixíssima.

Não se está aqui defendendo a prática do crime. Contudo, levando em

consideração o estudo aqui realizado, pode-se concluir que a seletividade do

sistema e vulnerabilidade do indivíduo a este devem ser consideradas quando da

análise da reprimenda, dentro do aspecto da culpabilidade.

De outra banda, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,

trazem-se à colação dois julgados, os quais aplicaram o princípio da co-

culpabilidade:

EMBARGOS INFRINGENTES. TENTATIVA DE ESTUPRO. FIXACAO DA PENA. AGENTE QUE VIVE DE BISCATES, SOLTEIRO, COM DIFICULDADES PARA SATISFAZER A CONCUPISCENCIA, ALTAMENTE VULNERAVEL A PRATICA DE DELITOS OCASIONAIS. MAIOR A VULNERABILIDADE SOCIAL, MENOR A CULPABILIDADE. TEORIA DA CO-CULPABILIDADE (ZAFFARONI). PREVALENCIA DO VOTO VENCIDO, NA FIXACAO DA PENA-BASE MINIMA. REGIME CARCERARIO INICIAL. EMBARGOS ACOLHIDOS POR MAIORIA.201

Como exsurge desta ementa, foi considerada a vulnerabilidade pela

culpabilidade do agente, ou seja, “maior a vulnerabilidade social, menor a

culpabilidade”, diante do contexto social em que estava inserido.

No caso, o princípio da co-culpabilidade foi aplicado quando da análise da

primeira fase da dosimetria da pena, nas circunstâncias ditas judiciais do art. 59 do

Código Penal, aqui anteriormente analisadas. De fato, um precedente.

E ainda:

201 BRASIL. TJRS, Embargos Infringentes Nº 70000792358, rel. Des. Tupinambá Pinto de Azevedo, j. em 28.4.2000. Disponível em <http://www.tj.rs.gov.br>. Acesso em 28 out. 2008.

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FURTO EM RESIDÊNCIA. CONCURSO DE AGENTES. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. FATO TÍPICO. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. [...] JUÍZO CONDENATÓRIO MANTIDO. INCIDÊNCIA DA ATENUANTE GENÉRICA PREVISTA NO ART. 66 DO CP. RÉU SEMI-ALFABETIZADO. INSTITUTO DA CO-CULPABILIDADE. [...]202

Neste caso, a co-culpabilidade foi aplicada mediante a disposição genérica

do artigo 66 do Código Penal, na segunda fase dosimétrica, por se tratar de

atenuante da pena, conforme se extrai da dosimetria realizada na referido decisão:

“Na segunda fase, diminuo a pena de 4 meses pela atenuante genérica prevista pelo

art. 66 do CP (analfabetismo do réu, reconhecido como fato relevante anterior ao

delito)”.

Interessante trazer a fundamentação para a atenuação da pena em razão da

co-culpabilidade:

Quando ao alegado instituto da co-culpabilidade, consta nos autos que o réu é “semi-analfabeto”. (SIC) Por certo, ALEXANDRO esteve, em algum momento de sua vida, matriculado em uma escola pública. O acusado, todavia, não aprendeu a ler e a escrever. Estamos, então, diante de um caso típico de alguém cuja experiência escolar foi encerrada precocemente pelo fracasso. Terá sido sua a responsabilidade por este fracasso? Podemos, enfim, atribuir a uma criança que não se alfabetiza alguma responsabilidade por este resultado quando, contemporaneamente, se sabe que todas as pessoas são capazes de aprender e que mesmo adultos podem ser alfabetizados em 3 (três) meses? Alguém pode, ainda, atribuir a uma criança que não se alfabetiza a responsabilidade por este resultado quando, desde que com o emprego do método adequado e com o necessário investimento afetivo, crianças autistas e mesmo seqüeladas cerebrais são alfabetizadas? Ora, é evidente que o fracasso escolar experimentado pelo acusado é de inteira responsabilidade do Estado. Reconhecê-lo significa incorporar a noção de que há uma responsabilidade pública – vale dizer: de todos – nas opções se vida que foram sendo seqüestradas de ALEXANDRO. Afinal, em uma época como a nossa, onde um simples vendedor que trabalhe atrás de um balcão de uma loja precisa ter noções de informática, a perspectiva de empregabilidade de um homem analfabeto ou semi-analfabeto é praticamente nula. Tal circunstância histórica deve ser sopesada no momento em que a sociedade julga a conduta deste homem.

202 BRASIL. TJRS, Ap. Crim. 70013886742, rel. Des. Marco Antônio Bandeira Scapini, j. em 20.4.2006. Disponível em <http://www.tj.rs.gov.br>. Acesso em 28 out. 2008.

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67

Por fim, impende mencionar a Apelação Criminal n.º 2.0000.00.445191-

6/000203, proveniente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em cuja

decisão o acusado foi absolvido da imputação do delito de furto de dois cartões

telefônicos, que somavam o valor de R$ 30,00 (trinta reais), sob a prerrogativa do

estado de necessidade, diante do seu flagrante estado de penúria.

Como se sabe, o estado de necessidade é uma causa excludente da

antijuridicidade, e não da culpabilidade. Entretanto, referido acórdão traz em seu

bojo, no voto do Exmo. Juiz Alexandre Victor de Carvalho, a discussão da co-

culpabilidade e da culpabilidade pela vulnerabilidade, e que, segundo ele, se o caso

concreto não se tratasse de estado de necessidade, por certo aquelas teses seriam

aplicáveis.

Por este motivo, o voto do referido magistrado segue como anexo deste

trabalho.

À vista de todo exposto, uma vez feita a análise da culpabilidade segundo a

dogmática penal, do sistema penal sob o enfoque crítico, assim como do princípio da

co-culpabilidade e de sua evolução teoria para a culpabilidade pela vulnerabilidade,

com o estudo da sua aplicabilidade nos ordenamentos estrangeiros e pátrio, bem

como trazendo entendimentos jurisprudenciais sobre o tema, conclui-se, deste

modo, o presente trabalho de conclusão de curso de graduação em Direito.

203 BRASIL. TJMG, Ap. Crim. nº 2.0000.00.445191-6/000, rel. Juiz Hélcio Valentim, j. em 28.9.2004. Disponível em <http://www.tjmg.gov.br>. Acesso em 28 out. 2008.

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68

CONCLUSÃO

A culpabilidade é o elemento do crime mais controvertido dentro da teoria do

delito, cujo conceito é resultado de uma longa evolução doutrinária.

Inicialmente bastava o nexo causal entre a conduta do sujeito e o resultado

para que houvesse a responsabilização. Com o avanço dos estudos, passou-se a

uma concepção psicológica, caracterizando a culpabilidade como uma “vontade

reprovável” subjetiva e, posteriormente, excluindo-se os elementos psicológicos,

conservou-se o critério de reprovabilidade do ato.

Entretanto, não pode a culpabilidade ser analisada sob a perspectiva do

chamado “homem médio”, mas sim com base nas reais condições de cada indivíduo

no caso concreto, inclusive (e principalmente), no que tange à sua condição em

relação ao contexto social em que está inserido.

De fato, as circunstâncias sociais influenciam diretamente o âmbito de

autodeterminação do indivíduo, de modo que tal aspecto deve ser sopesado quando

da aplicação de uma sanção a este pelo cometimento de um delito.

Nesse prisma, a imensa desigualdade social que impera no nosso país é

inconteste. As oportunidades oferecidas a algumas pessoas não são oferecidas a

outras, num cenário no qual o Estado não cumpre suas verdadeiras funções,

deixando à margem da sociedade uma grande parcela de seus cidadãos.

De outro lado, o sistema penal, em que pese declarar-se igualitário, age de

forma seletiva, desde a criação dos tipos legais, na seara legislativa, passando pela

agência policial e, por fim, na agência judicial. Somente alguns tipos de delitos e

alguns indivíduos são alcançados pela ação destas agências, mas isto decorre da

própria incapacidade operacional do sistema.

Esta seletividade opera sempre em relação àquele setor da sociedade que

detém menor poder, ou seja, os estratos mais baixos desta, sendo que o critério de

seleção rege-se pela criação de estereótipos, relacionados aos indivíduos que

compõe aqueles estratos, de modo que se pode afirmar que o sistema penal está

deslegitimado e, por conseqüência, o critério por ele utilizado de reprovação dos

indivíduos (os selecionados) também.

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Assim considerando, surge a idéia de co-culpabilidade, ou seja, de

repartição da responsabilidade pela sociedade pelo ato criminoso do indivíduo, na

medida em que aquela tenha negado as oportunidades com as quais brindou a

outras pessoas.

A partir deste pensamento, surge a concepção da culpabilidade pela

vulnerabilidade do indivíduo, que, de fato, parece ser uma forma de dar efetividade

ao perseguido tratamento isonômico pelo Estado, à medida que considera a

reprovação pelo cometimento do delito por uma perspectiva mais realista da

sociedade.

Com efeito, a aplicação do princípio da co-culpabilidade (ou a análise da

culpabilidade pela vulnerabilidade) é perfeitamente possível, tanto nos

ordenamentos jurídicos estrangeiros aqui estudados, como no Direito Penal

brasileiro. Neste, podem-se destacar o artigo 59 do Código Penal, que trata das

circunstâncias judiciais, e o artigo 66 do mesmo Código, que considera hipótese de

atenuação da pena não prevista expressamente na lei.

Ainda, conforme se pôde vislumbrar, na jurisprudência pátria o princípio da

co-culpabilidade, além de ser tema pouco debatido e conhecido, é refutado, na

maioria das vezes, com pouca fundamentação específica ou mais aprofundada do

assunto.

Entretanto, isto reflete que os operadores do Direito atuantes na seara

criminal, pouco ou nada conhecem do tema, cuja crítica recai especialmente sobre

os militantes da advocacia que, como se sabe, são os propulsores das idéias

debatidas nos Tribunais, e conseqüentemente, da renovação e solidificação

jurisprudenciais.

Por derradeiro, à relevância deste tema não se tem dado o verdadeiro valor

no âmbito jurídico brasileiro, razão pela qual, também, a bibliografia é escassa, o

que torna imprescindível o aprofundamento dos estudos sobre esta tese.

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70

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ANEXO

O SR. JUIZ ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO:

Cuida-se de apelação interposta pelo Ministério Público oficiante na Comarca de

Juiz de Fora, em face de decisão proferida em primeiro grau, na qual o apelado,

Eduardo Guimarães Faria, foi absolvido da imputação de haver cometido o delito de

furto tentado, havendo o decisum primevo se fulcrado na excludente de ilicitude do

estado de necessidade, prevista no artigo 24 do Código Penal.

Incontroverso restou ter o acusado, no dia 11 de maio de 2002, por volta das 8h00,

no estabelecimento bancário Millard Bilhetes, situado na Rua Halfeld, n° 526, no

centro de Juiz de Fora, tentado subtrair, para si, da vítima Cláudia Millard Corrêa,

dois cartões telefônicos, no valor de R$ 15,00 (quinze reais) cada um, não logrando

êxito em consumar a subtração, por haver sido detido ainda em fase de execução do

delito.

Em Primeira Instância jurisdicional, foi o apelado absolvido, por entender o douto

Juiz a quo ter se caracterizado o furto famélico, porquanto o recorrido, em estado de

miserabilidade permanente, realizou a conduta com o intuito de alimentar-se,

havendo a configuração da justificante prevista no artigo 24 do Estatuto Penal.

Após o eminente Relator manter a decisão objurgada, votou o não menos eminente

Revisor, dando provimento ao recurso aviado pelo Parquet e condenando, por via de

conseqüência, o réu, ora apelado.

Concessa venia do entendimento expedido pelo ilustre Revisor, filio-me ao

entendimento manifestado pelo digno Relator, confirmando a absolvição ocorrida em

Primeira Instância e negando provimento ao recurso do Ministério Público.

Inicialmente, impende afirmar que o interrogatório do acusado, segundo a mais

moderna concepção doutrinária acerca do processo penal, é, fundamentalmente, um

meio de defesa (no âmbito da ampla defesa constitucionalmente outorgada aos

acusados), ostentando valor probatório.

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Esse entendimento é externado, por exemplo, na respeitada obra de Eugênio Pacelli

de Oliveira (Curso de Processo Penal, Belo Horizonte, 2ª edição, 2003, Del Rey, p.

355) e, também, se quisermos citar a doutrina estrangeira, na obra de Fernando

Fernandes (O Processo Penal como Instrumento de Política Criminal, Coimbra,

2001, Livraria Almedina, p. 365), em que o Professor Doutor, ao tratar dos modelos

italiano, alemão e português de processo penal, e compará-los com o modelo

brasileiro, salienta a natureza de meio de defesa com valor probatório das

declarações prestadas pelo acusado.

Recentemente, com a edição da Lei 10.792, de 2 de dezembro de 2003, que

modificou a redação dos artigos 185 a 196 do Código de Processo Penal, vários

autores de nomeada, entre eles Ada Pellegrini Grinover, passaram a sustentar que

definitivamente o nosso ordenamento positivo trata do interrogatório como meio de

defesa com valor probante.

Assim, não é de ser admitida a increpação no sentido de que o estado de

miserabilidade do réu não restou devidamente provado por inexistir depoimento

testemunhal confirmador da impressão manifestada pelo Juiz primevo.

Ora, o apelado, em suas declarações, prestadas judicialmente, afirmou:

"que realmente praticou os fatos denunciados porque estava com fome, não tendo

ocupação lícita, morando na rua; que desde que saiu na (sic) cadeia aesta (sic)

procurando emprego mas, não consegue emprego porque não tem nenhum

documento" (f.36).

Esses fatos alegados pelo réu em sua defesa, que possuem, repita-se e insista-se,

valor probante, não foram desconstituídos pela acusação, que, possuindo a

instrução subseqüente para desconfirmar o dito pelo acusado, quedou-se inerte,

restringindo-se a, simplesmente, fazer prova da prática do fato típico pelo apelado.

Portanto, resta evidenciado, ao meu juízo, a prova defensiva do estado famélico do

recorrido, não tendo havido decisão somente com fulcro em meras impressões que

o Magistrado a quo teve do réu.

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Posta a questão em seus devidos contornos, sem desvio de rumo, importa tecer

algumas considerações sobre a situação fática apresentada nos autos e a

excludente de ilicitude do estado de necessidade, aqui batizada doutrinariamente de

furto famélico.

O réu dos autos é dessas pessoas que se encontram na base da pirâmide social

brasileira, totalmente á margem do mínimo que uma sociedade deve oferecer aos

seus cidadãos (se é que podemos chamá-lo de cidadão) para uma vida digna.

Desprovido do essencial constitucionalmente assegurado na vã formalidade do texto

maior, o acusado, sem raízes, vive peregrinando pelas ruas, sem quaisquer

oportunidades sociais de alteração do seu modus vivendi e sem qualquer sentimento

de auto-estima que o faça procurar por mudança.

É ele fruto dessa perversidade social encontrada em uma sociedade com estrutura

piramidal.

Se assim o é (e isso é indiscutível), encontra-se o acusado, como afirma Zaffaroni,

em posição ou estado de vulnerabilidade que "é predominantemente social

(condicionada socialmente) e consiste no grau de risco ou perigo que a pessoa corre

só por pertencer a uma classe, grupo, estrato social, minoria, etc., sempre mais ou

menos amplo, como também por se encaixar em um estereótipo, devido às

características que a pessoa recebeu" (Em Busca das Penas Perdidas: a perda de

legitimidade do sistema penal, Rio de Janeiro, Revan,1999, p.270).

E a pergunta que se faz neste momento é a seguinte: tem o Estado, através do

Poder Judiciário, legitimidade para, nesta precisa situação fática dos autos, impor o

seu poder punitivo ao acusado?

Lembre-se, a propósito da indagação, lição de Santiago Mir Puig, consistente em

que "desde os anos setenta se reconhece que a construção teórica do delito deve

partir da função político-criminal do Direito Penal (funcionalismo). Mas a política

criminal depende de cada modelo de Estado" (Derecho Penal, Parte General, 6ª

Edición, Barcelona, Editorial Reppertor, 2002, p. 140).

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O modelo de Estado brasileiro é social e democrático de Direito, valendo dizer que,

além de garantir os cidadãos através de uma plêiade de princípios que limitam o

poder punitivo estatal (legalidade, humanidade das penas, presunção de não-

culpabilidade, devido processo legal, contraditório, ampla defesa etc.), está "a

serviço da proteção efetiva dos cidadãos, atribuindo às normas que castigam com

uma pena o delito (normas secundárias) a função de criar expectativas que os

motivem contra a prática de crimes" (cfr. Mir Puig, op. cit., p.141).

Questiona-se: pessoas como o acusado, que se encontram na situação de

miserabilidade citada nos autos, com toda a sua dignidade afetada, podem atender

às expectativas geradas pelas normas secundárias?

É razoável "cobrar" dessas pessoas a prática de fatos como esse que foi apurado

neste processo criminal?

Data venia, a resposta só pode ser negativa, com um mínimo de razoabilidade.

Fazer-se incidir, mais uma vez, como se constata da folha de antecedentes criminais

do acusado, a intervenção penal é descuidar da noção de que a resposta

criminalizante deve ser racional.

Qual a autonomia que possuía o acusado, submetido socialmente à condição

degradante de miserabilidade, de agir de modo diverso do que agiu?

Puni-lo corresponderia a, sem legitimidade constitucional, cobrá-lo por uma

vulnerabilidade para a qual não se esforçou, desobservando o modelo de Estado

com o qual a teoria do crime deve dialogar permanentemente, impondo uma pena

desnecessária, irracional, sem fundamentação sequer no Direito positivo, partindo-

se da lei suprema para tal conclusão.

Dessarte, dogmaticamente, a absolvição do apelado pode ser sustentada pelo

menos em três argumentos.

O primeiro concerne ao princípio da insignificância.

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Com efeito, provado restou (auto de apreensão de f. 11) que o bem jurídico colocado

em risco concreto de lesão pela tentativa de subtração montava à quantia de R$

30,00 (trinta reais).

Tal quantia, levando-se em conta, inclusive, o patrimônio da vítima (proprietária de

uma loja de revenda de bilhetes), configura irrelevante perigo de lesão ao bem

jurídico tutelado penalmente (patrimônio), sendo mister entender-se o fato como

bagatelar, inexistindo, portanto, a ofensividade necessária para a configuração da

tipicidade material do delito.

A absolvição, com supedâneo no princípio da insignificância, faz-se com base no

artigo 5°, XXXIX, da Magna Carta, porquanto o refer ido princípio encontra-se,

implicitamente, contido no princípio da legalidade, e, também, com base no artigo

13, caput, do Estatuto Criminal, uma vez que diz o dispositivo, em interpretação

corrente, não haver crime sem resultado, entendendo-se este como a lesão ou o

perigo concreto de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado (princípio da

ofensividade - nullun crimem sine iniuria), o que inocorre no caso do princípio da

insignificância, porquanto, nessa hipótese, a lesão ou o perigo concreto de lesão é

irrelevante, equiparando-se à ausência de resultado normativo.

Caso entendamos ter havido a lesividade relevante ao bem jurídico posto em risco

concreto de lesão e, por conseqüência, a existência da tipicidade material, insta

acentuar que a existência do crime esbarrará na ausência da ilicitude material, pela

notória caracterização do estado de necessidade, hipótese de exclusão da

antijuridicidade, contida no artigo 24 do Digesto Criminal.

Tal causa de justificação, cuja fundamentação e controvertida (se bem que

prevalente a teoria da colisão de interesses), configura-se quando o agente "praticar

o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de

outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não

era razoável exige-se" (artigo 24, CP).

No caso em tela, o apelado estava em situação de perigo no tocante à sua saúde,

porquanto em estado de miserabilidade, passando fome, e praticou o fato (tentativa

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de lesão patrimonial sem violência ou grave ameaça à pessoa) visando auferir

dinheiro para comprar alimento.

Não havendo o recorrido se colocado nessa posição voluntariamente e não sendo

possível exigir-se outra opção dele (em especial pela ausência de consciência de

cidadania e dignidade e perda de auto-estima), mister considerar-se que, na colisão

entre o direito patrimonial da vítima e o direito à saúde do apelado, este deve

prevalecer, mormente diante do quadro fático apresentado nos autos.

Por derradeiro, ainda que em uma visão positivista e restritiva da redação do artigo

24 do Estatuto Penal, consideremos presente a ilicitude do fato praticado pelo

recorrido, haveria obstáculo intransponível no âmbito da culpabilidade.

Segundo Zaffaroni, a culpabilidade (como juízo de reprovação) está atrelada ao grau

de vulnerabilidade do acusado em relação ao sistema penal {"culpabilidade pela

vulnerabilidade como base da resposta criminalizante" (op. cit., p. 268)}.

Afirma o autor que "a vulnerabilidade (ou o risco de seleção), como todo perigo,

reconhece graus, segundo a probabilidade de seleção, podendo estabelecer-se

níveis, conforme a situação em que se tenha colocado a pessoa. Esta situação de

vulnerabilidade é produzida pelos fatores de vulnerabilidade que podem ser

classificados em dois grandes grupos: posição ou estado de vulnerabilidade e o

esforço pessoal para a vulnerabilidade" (op. cit., p. 270).

Após conceituar o que se considera posição ou estado de vulnerabilidade (definição

já mencionada neste voto) e o que se entende por esforço pessoal para a

vulnerabilidade, menciona Zaffaroni que, "destas duas ordens de fatores de

vulnerabilidade, o estado ou posição de vulnerabilidade é 'incobrável'. Colocada a

agência judicial diante da necessidade de responder, não pode fazê-lo em função

desta ordem de fatores, mas dos que constituem o esforço pessoal para a

vulnerabilidade, que, por outro lado, são os que constituem a essência da

contribuição dada pela pessoa para sustentar o exercício de poder que a seleciona e

criminaliza" (op. cit., p. 271).

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Constata-se, claramente, que, na hipótese em comento, não existiu esforço pessoal

para a vulnerabilidade, consistente no "grau de perigo ou risco em que a pessoa se

coloca em razão de um comportamento particular" (Zaffaroni, op. cit., p. 270).

O apelado, em estado degradante de pobreza, sem quaisquer raízes, entregue à

própria sorte nas ruas, não contribuiu para a posição de vulnerabilidade em que

estava e que o levou ao cometimento do fato noticiado nos autos.

Não houve, da parte do recorrido, livre-arbítrio para escolher entre tentar furtar e não

furtar. Suas condições sociais precárias e desumanas praticamente determinaram o

cometimento do fato por ele, faltando a margem de liberdade essencial para o juízo

de reprovação, com fulcro na teoria normativa da culpabilidade.

Dessarte, mister se faz não "cobrá-lo" pelo fato, pois seu condicionamento social

impede, em um Estado Social e Democrático de Direito, a "cobrança" da agência

judicial, sob pena de intervenção ilegítima e arbitrária do Estado, ofensiva a

postulados constitucionais, em especial o da dignidade da pessoa humana.

A absolvição, com fulcro na exclusão da culpabilidade, tem supedâneo no artigo 5º,

inciso LVII, da Constituição Federal, em que se enuncia o princípio da presunção de

não-culpabilidade, concluindo-se, por conseqüência, ser imperiosa a demonstração

da culpabilidade para a punição do acusado, fato não existente no processo criminal

em comento, pelos motivos aduzidos.

Em virtude de todas essas considerações, peço novamente ao eminente Juiz

Revisor para acompanhar o não menos eminente Juiz Relator, mantendo a

absolvição do recorrido e, conseqüentemente, NEGANDO PROVIMENTO ao

recurso interposto pelo ilustre e combativo Promotor de Justiça oficiante na Comarca

de Juiz de Fora.

Rendo minhas homenagens ao eminente, culto e humano Juiz de Direito prolator da

sentença vergastada, dizendo a S. Exa. que o ideário de justiça nela encerrado

dignifica o Poder Judiciário mineiro e brasileiro.

É como voto.