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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS BERGSON HENRIQUE NUNES BEZERRA INDÚSTRIA CULTURAL E A MÚSICA DO TRIO MOSSORÓ DE 1962 A 1977 MOSSORÓ/RN 2018

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

BERGSON HENRIQUE NUNES BEZERRA

INDÚSTRIA CULTURAL E A MÚSICA DO TRIO MOSSORÓ DE 1962 A 1977

MOSSORÓ/RN

2018

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BERGSON HENRIQUE NUNES BEZERRA

INDÚSTRIA CULTURAL E A MÚSICA DO TRIO MOSSORÓ DE 1962 A 1977

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH, da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN,

como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências

Sociais e Humanas. Área de concentração: Sujeitos, Saberes e

Práticas Cotidianas. Linha de pesquisa: Linguagens, Memória

e Produção de Saberes.

Orientador: Dr. Jean Henrique Costa

MOSSORÓ/RN

2018

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BERGSON HENRIQUE NUNES BEZERRA

INDÚSTRIA CULTURAL E A MÚSICA DO TRIO MOSSORÓ DE 1962 A 1977

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH, da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN,

como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências

Sociais e Humanas.

Aprovada em: ______/_______________/_________.

Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Jean Henrique Costa (Orientador)

UERN

__________________________________________

Profª. Dra. Maria Cristina Rocha Barreto (Examinadora Interna)

UERN

__________________________________________

Profª. Dra. Maria Érica de Oliveira Lima (Examinadora Externa)

UFC

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AGRADECIMENTOS

Aos irmãos artistas Hermelinda, João e Oseas pela disponibilidade e total atenção no

compartilhamento de datas, dados e suas memórias comigo.

Aos amigos geógrafos Jocicléa Mendes, Ivna Machado, Filipe Porto e Tiago

Rodrigues por todo o apoio e incentivo.

Aos colegas de trabalho e amigos do Campus da Universidade Federal do Ceará em

Russas, Michelly Linhares, Frederico Levi, Sheyla Santos, Andréa Fernandes e Alexandre

Menezes pelas inúmeras demonstrações de companheirismo e compreensão, fundamentais

para a conclusão deste desafio.

A todos os professores e colegas do mestrado em Ciências Sociais e Humanas na

UERN, em especial a Hionne Mara, Francisca Jeane e Pedro Carvalho pela divisão mútua das

angústias e ajuda na diminuição das dúvidas e incertezas acadêmicas.

Ao professor Jean Henrique Costa pela paciência, humildade e grande capacidade de

ensinar e transmitir conhecimento.

Aos membros que compuseram a banca de defesa, professoras Cristina Barreto e

Maria Érica, pelas observações pertinentes no sentido de engrandecer o trabalho.

À minha noiva Nandiara Fonseca por todo carinho, amor, força e confiança.

Aos meus pais Rita e Alves e avós Terezinha e maestro Bezerra (in memorian) pelo

suporte afetivo e material dispensados, tornando possível minha formação pessoal e

intelectual.

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A música é um belo ópio, se você não a levar

muito a sério.

Henry Miller, Pesadelo Refrigerado

(1945)

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RESUMO

Considerando a formação e expansão da indústria cultural no Brasil a partir dos anos 1940,

processo concomitante ao surgimento e estruturação do baião como gênero musical

representante do Nordeste, assentado na acuidade inventiva de Luiz Gonzaga e parceiros,

buscou-se nessa pesquisa apurar os elementos presentes nas reflexões dos intelectuais

fundadores da Escola de Frankfurt, sobretudo os escritos de Theodor Adorno, assim como de

autores tributários de sua obra, voltados a investigar os impactos oriundos da penetração da

lógica industrial sobre os bens culturais no Brasil no século XX, especialmente pelo setor

fonográfico (rádio, gravadoras, produção de discos, etc.). Tendo como pano de fundo a

produção simbólica do Trio Mossoró, conjunto musical de baião surgido na década de 1950

na cidade de Mossoró/RN e estabelecido no Rio de Janeiro desde 1960, inserido ao longo de

sua trajetória discográfica em gêneros distintos da música que o consagrou, analisou-se

criticamente a produção discográfica completa do trio (composta de 12 álbuns, gravados entre

1962 e 1977), notadamente destacando as mudanças técnicas (inclusão de instrumentos

musicais não-tradicionais do baião, fusão com outros estilos musicais, indumentária dos

componentes do trio, capas dos discos, etc.) e temáticas (conteúdo lírico das canções)

desenvolvidas neste recorte musical, com moldes nos trabalhos de Costa (2012) e Faraco

(2012). Levando em conta os processos históricos e culturais que propiciaram a construção e

inserção da música nordestina nos centros metropolitanos nacionais, desde a embolada de

coco nos anos 1920, passando pelo baião urbano-comercial gonzagueano nos anos 1940 e

indo até a música do Trio Mossoró nos anos 1960 e 1970, pretendeu-se provocar uma

abordagem no aspecto da canção urbana brasileira que direcionasse o olhar para a perspectiva

dos atores diretamente envolvidos na trama, através de entrevistas com os membros do Trio.

Dessa forma, identificando os meios e mediações nos quais transitou o grupo mossoroense

para ocupar seu lugar na história da música regionalista nordestina, esses artistas atuaram

tanto como condicionado quanto condicionante de sua rica trajetória, entrecortando e

desafiando certas estruturas, enquanto elemento ativo na construção de sua biografia artística.

Palavras-Chave: Indústria Cultural. Música Popular. Baião. Trio Mossoró.

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ABSTRACT

Considering the formation and expansion of the cultural industry in Brazil from the 1940‟s, a

process concomitant to the emergence and structuring of the baião as a musical genre

representing the Northeast, based on the inventiveness of Luiz Gonzaga and partners, in the

reflections of the founding intellectuals of the Frankfurt School, especially the writings of

Theodor Adorno, as well as tributary authors of his work, aimed at investigating the impacts

of the penetration of industrial logic on cultural goods in Brazil in the 20th century, especially

by the sector phonographic (radio, record labels, disc production, etc.). Against the backdrop

of the symbolic production of the Trio Mossoró, a baião musical ensemble that emerged in

the 1950‟s in the city of Mossoró/RN and established in Rio de Janeiro since 1960, inserted

throughout his record career in different genres of music consecrated, critically analyzed the

complete record production of the trio (composed of 12 albums, recorded between 1962 and

1977), notably highlighting the technical changes (inclusion of non-traditional musical

instruments of the baião, fusion with other musical styles, etc.) and thematic (lyric content of

the songs) developed in this musical clipping, with molds in the works of Costa (2012) and

Faraco (2012). Taking into account the historical and cultural processes that propitiated the

construction and insertion of the Northeastern music in the national metropolitan centers,

from the embolada de coco in the 1920s, through the urban-commercial baião of Luiz

Gonzaga in the 1940‟s and to the music of Trio Mossoró in 1960‟s and 1970‟s, it was tried to

provoke an approach in the aspect of the brazilian urban song that directed the look to the

perspective of the actors directly involved in the plot, through interviews with the trio

members. In this way, identifying the media and mediations in which the group moved to

occupy their place in the history of northeastern regional music, these artists acted both as

conditioning and as conditioning of their rich trajectory, interrupting and challenging certain

structures, as an active element in the construction of his artistic biography.

Key-words: Cultural Industry. Popular Music. Baião. Trio Mossoró.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 8

1 QUANDO O MERCADO ENCONTRA A ARTE: O CONCEITO DE INDÚSTRIA

CULTURAL ........................................................................................................................... 19

1.1 NOÇÕES GERAIS SOBRE A ESCOLA DE FRANKFURT .......................................... 19

1.2 ADORNO: MÚSICA SÉRIA COMO FORMAÇÃO, MÚSICA LIGEIRA COMO

COMÉRCIO ............................................................................................................................ 32

1.3 A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA NO BRASIL: IMPLANTAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO

.................................................................................................................................................. 46

2 O SOM QUE VEM DO NORDESTE ................................................................................ 63

2.1 O SERTANEJO E SUA MÚSICA NA METRÓPOLE: DA EMBOLADA AO BAIÃO . 63

2.2 BAIÃO, UM EXPERIMENTO URBANO ........................................................................ 80

3 PORQUE DEIXEI MEU SERTÃO: A CONSTRUÇÃO DA MÚSICA DO TRIO

MOSSORÓ ............................................................................................................................ 100

3.1 UMA BREVE BIOGRAFIA DO TRIO: OS ANOS EM MOSSORÓ E A IDA PARA O

RIO DE JANEIRO ................................................................................................................ 100

3.2 ANÁLISE DA DISCOGRAFIA DO TRIO MOSSORÓ ................................................ 110

3.2.1 Fase Tradicional (1962-1966) .................................................................................... 114

3.2.2 Fase Experimental (1966-1972) ................................................................................. 121

3.2.3 Fase Pragmática (1973-1977) ..................................................................................... 132

3.3 AS CIRCUNSTÂNCIAS DA MÚSICA ......................................................................... 139

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 143

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 148

APÊNDICES ......................................................................................................................... 158

APÊNDICE A – Roteiro de entrevista .................................................................................. 159

APÊNDICE B – Tabela de análise ........................................................................................ 161

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INTRODUÇÃO

A região Nordeste do Brasil, uma das portas de entrada da expansão colonizadora

europeia dos séculos XV e XVI nas Américas, representa uma intrincada amálgama das três

matrizes coloniais que compõem a formação do Brasil enquanto nação: o índio nativo, o

negro africano e o branco europeu. Pensando além da reduzida ideologia da “fábula das três

raças1”, essa miscigenação imediata foi levada a cabo por meio de investidas de desagregação

e dispersão, destruindo o significado que os objetos e as práticas possuem para cada

comunidade (CANCLINI, 1983, p. 74), sobretudo índios e negros, os dois lados subjugados

no processo. Contudo, as trocas culturais verificadas tanto nas colônias espanholas como

portuguesa na América, a despeito de não terem se dado em pé de igualdade (BURKE, 2016),

explicam a intensa miscelânea encontrada no Nordeste, evidente em seus aspectos

gastronômicos, artesanais, religiosos, linguísticos e relacionados à cultura popular em geral.

Já nas primeiras décadas do século XX, graças à atuação de um corpo de intelectuais e

artistas formado por ensaístas, romancistas, músicos, pintores, etc., foram sendo formuladas

as primeiras noções do que seria a “identidade nordestina”. Nesse período:

os habitantes daquele espaço (Nordeste) descobrem e articulam, a partir de

influências portuguesas, africanas, holandesas e indígenas, um legado de mitos,

paisagens, memórias e sentimentos que lhes seria próprio e específico. Através do

resgate seletivo do que individualizaria aquele espaço – permeado, evidentemente,

por conflitos de classe, raça, gênero e crença, e mediado pela presença da cultura

moderna europeia –, essa variada produção inventa os códigos de compreensão

simbólica de uma comunidade e, simultaneamente, a eles se conforma [...]. (ANJOS,

2005, p. 54).

No espectro da cultura popular, aquela surgida de forma espontânea, geralmente nas

camadas dotadas de menor poder aquisitivo, a música regionalista nordestina, conjunto de

expressões musicais dotadas de características melódicas, harmônicas e rítmicas peculiares

que remetem ao ambiente sertanejo e ao cotidiano do nordestino, teve exatamente nesse

período (meados do século passado) seu momento de apogeu em nível nacional, através da

formatação idealizada por agentes culturais específicos, que em ação conjunta com a

incipiente indústria cultural da época (sobretudo o rádio e o disco), resultou no gênero

“baião”.

1 Segundo essa concepção, no meio social brasileiro, em favorecimento aos colonizadores brancos, “índios e

negros têm uma posição demarcada num sistema de relações sociais concretas, sistema que é orientado de modo

vertical: para cima e para baixo, nunca para os lados” (DAMATTA, 1987, p. 76).

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Originalmente limitado aos confins das áreas rurais do sertão semiárido e aos brejos

pé-de-serra, embora ainda não sintetizado no formato que veio à tona nos anos 1940, foi a

partir dessa década que o baião se revelou nas grandes metrópoles do país, primeiramente na

cidade do Rio de Janeiro, capital da República à época e principal referência da produção

artística nacional, posteriormente em São Paulo e nas capitais nordestinas. Ocupando, desde

os primeiros anos do século XX, lugar absolutamente central no simbolismo da unidade

nacional brasileira (VIANNA, 1995, p. 14), “a fisionomia musical do Brasil moderno se

formou no Rio de Janeiro. Ali é que uma ponta desse enorme substrato de música rural

espalhada pelas regiões tomou uma configuração urbana” (WISNIK, 1987, p. 118).

Para melhor compreensão do advento do baião como elemento representativo dentro

da música popular brasileira, é imprescindível levar em conta as transformações estruturais e

socioculturais que o Brasil, e mais especificamente a região Nordeste, vivenciava na época, já

que os contextos sociais condicionam e marcam os sons (BAUER, 2012, p. 367).

Dentro do quadro das mudanças socioestruturais ocorridas no Brasil na primeira

metade do século XX, destacam-se como objetos de análise do presente trabalho o surgimento

e expansão da indústria cultural e as primeiras práticas de comercialização da música

regionalista nordestina no mercado do Sudeste, refletidos no incremento do setor fonográfico

nacional e na popularização do rádio enquanto instrumento pioneiro de comunicação em

massa, principalmente após o advento da sua faceta comercial em 1932, quando passou a

atuar em paralelo às “rádios educadoras2” (FROTA, 2003).

Com a permissão legal de anúncios de produtos dentro da grade de programação das

emissoras, dando as bases da relação entre o rádio e o mercado (ROCHA, 2007, p. 36), o

aporte financeiro proporcionado por essas primeiras práticas publicitárias acabou

impulsionando o desenvolvimento de programas com conteúdos mais direcionados às

camadas populares, transformando os anunciantes também em produtores de cultura (ORTIZ,

1988, p. 61). Como diz Pereira (2001, p. 85-86), muitas vezes confundindo as prerrogativas

de cada categoria, “o publicitário simplesmente passa a produzir programas radiofônicos,

ocupando ao mesmo tempo a posição de publicitário na agência e de produtor na emissora”.

2 Vale lembrar que nos seus primeiros momentos, “o funcionamento do rádio dependia da boa vontade e

participação daqueles que viam no rádio um instrumento apropriado para a educação” (ROCHA, 2007, p. 36).

Contudo, como afirma Napolitano (2017, p. 14), “a batalha iniciada nos anos 1930 pelos moralistas e educadores

mais sisudos (como o pioneiro Roquette Pinto), por um rádio educativo, [...] estava perdida. As paixões

populares, o gosto musical mais simples e a busca por lazer por parte da maioria da população haviam triunfado

[...]”. A forma continuava precária, mas o conteúdo se tornou menos tedioso (SEVCENKO, 1998, p. 588). Ou

seja, a radiodifusão “ganha outras configurações estruturais para alcançar novos fins identificados às

necessidades ligadas ao complexo econômico-publicitário” (PEREIRA, 2001, p. 37).

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(em 1932) com o advento do rádio comercial e o crescimento da indústria

fonográfica, a forma canção passou a atrair o interesse de artistas, empresários e das

camadas de consumidores musicais urbanos, estreitando as relações entre arte,

técnica, música e mercado. Este processo permitiu que, cada vez mais, os trânsitos

simbólicos e sonoros entre o mundo rural e o urbano (e vice-versa) se

intensificassem, adicionando novos elementos ao longo processo de industrialização

do simbólico. (ALVES, 2012, p. 131).

A partir dos processos citados acima, em conjunto com fatores correlatos como a crise

nos ciclos produtivos do algodão e do açúcar, produtos relevantes para a economia sertaneja,

o êxodo rural e os fluxos migratórios internos (de origem no Nordeste com destino à região

Sudeste do Brasil), a concentração fundiária, a questão climática das secas periódicas no

sertão e o binômio industrialização/urbanização no Sudeste, pode-se formular o cenário que

concebeu a penetração da música de cunho sertanejo-nordestina na porção mais urbanizada do

país.

Também o fomento à produção artística interna, fruto da agenda ufanista vigente

durante o período do Estado Novo (1937 a 1945), promove a música popular, com destaque

especial ao samba carioca3, a uma posição até então reservada aos artistas estrangeiros e à

produção nacional erudita, dando à canção um status de “elemento cultural unificador”.

O rádio contribuiu para recrudescer uma regularidade no âmbito do longo processo

de definição de uma pauta musical nacional, qual seja: o crescimento da relevância

estético-artística da modalidade canção para a definição e consolidação da música

popular brasileira, considerada o traço indelével e definitivo da brasilidade.

(ALVES, 2012, p. 132).

As manifestações culturais, de acordo com a política de Getúlio Vargas, deveriam

enaltecer as qualidades e potencialidades nacionais, a industrialização e a força dos

“Trabalhadores do Brasil4” (SANTOS, 2004, p. 165). No período estadonovista populista, o

poder se transfere do âmbito regional para o nacional (JACKS, 1998, p. 23).

Nos países da periferia do capitalismo, como é o caso brasileiro, o desejo de

modernização e a construção de uma identidade nacional caminharam lado a lado,

3 Vianna (1995, p. 127) entende que “a vitória do samba era também a vitória de um projeto de nacionalização e

modernização da sociedade brasileira”. 4 Como aponta Canclini (1983, p. 44), “a supervalorização dos componentes biológicos e telúricos [...] é

utilizada pelo populismo nacionalista-burguês para a realização de uma identificação dos seus interesses com os

interesses da nação. [...] O processo histórico através do qual foram sendo construídos os conceitos e o

sentimento de nação é neutralizado e diluído pela „tradição‟”. Ou seja, nesse raciocínio, “qualidades como

„preguiça‟, „indolência‟, consideradas como inerentes à raça mestiça, são substituídas por uma ideologia do

trabalho. [...] É justamente nesse período que a música da malandragem é combatida em nome de uma ideologia

que propõe erigir o trabalho como valor fundamental da sociedade brasileira” (ORTIZ, 1985, p. 42-43). Para

isso, o estado varguista, através do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, “não só controlava a

imprensa e as diversões como também procurava interferir na criatividade dos artistas, através de „conselhos‟ e

„sugestões‟” (SEVERIANO; MELLO, 1997, p. 196).

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absorvendo-se a ideia de que “só seremos modernos se formos nacionais” (ORTIZ, 1988, p.

35). Em outros termos, pensava-se “a modernização como recuperação do tempo perdido, e

portanto identificando o desenvolvimento com o definitivo deixar de ser o que fomos para

afinal sermos modernos” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 218).

Acerca da ascensão da produção musical brasileira aliada ao projeto governista de

busca de uma identidade nacional, Wisnik (1987, p. 118-119) indica que, “transformando as

danças binárias europeias através das batucadas negras, a música popular emergiu para o

mercado, isto é, para a nascente indústria do som e para o rádio”.

Nesse contexto, o baião, que segundo Alves (2012, p. 215) foi o gênero musical que

mais narrou, explicou, cantou, decantou e celebrou o sertão:

vem atender a necessidade de uma música nacional para dançar, que substituísse

todas aquelas de origem estrangeira. Daí sua enorme acolhida num momento de

nacionalismo intenso, fazendo-o frequentar os salões mais sofisticados em curto

espaço de tempo. O baião será a música do nordeste por ser a primeira que fala e

canta em nome desta região. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 175-176).

O grande responsável por pensar a música nordestina voltada para o público urbano do

Sudeste foi Luiz Gonzaga, que junto com o parceiro Humberto Teixeira, vislumbraram que o

baião era o mais urbanizável dos ritmos sertanejo-nordestinos (OLIVEIRA, 2000, p. 45).

Em 1940, o pernambucano Luiz Gonzaga, após execuções malogradas de um

repertório composto quase exclusivamente de ritmos estrangeiros (polcas, valsas e tangos) em

suas primeiras apresentações na zona portuária do Rio de Janeiro, lançou mão de uma ousada

estratégia e passou a executar temas do sertão, coisas de seu pé-de-serra (DREYFUS, 1996),

resolvendo também, posteriormente, adotar a vestimenta típica dos cangaceiros nordestinos

em sua performance. Em depoimento, o sanfoneiro afirma: “(abri) meus olhos para um novo

caminho na minha arte: a música do nosso sertão, nossa música autêntica e tão vigorosa” (SÁ,

1978, p. 107). Como consequência dessa mudança em sua postura artística, o músico faz

muito sucesso com a construção de um personagem típico e estereotipado do povo nordestino

(TINÉ, 2008, p. 21). Portanto, foi a partir desse fato aparentemente prosaico que a trajetória

do baião, lançado como dança/gênero/música em 1946, começou a ser trilhada dentro do

cenário artístico brasileiro.

A indústria cultural tupiniquim dos anos 1940 (ou pelo menos seu prenúncio, no

sentido conferido por Adorno e Horkheimer ao conceito indústria cultural) se encontrava em

processo de configuração, concomitantemente ao advento do baião. Os agentes da incipiente

indústria se apropriaram dos elementos regionais típicos desse gênero musical, reinventando-o

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no meio urbano e tornando-o palatável ao gosto metropolitano, com consentimento dos

principais artífices, que tiveram atuação fundamental nesse êxito.

O primeiro registro fonográfico do ritmo “baião” ocorreu em 1946, com a música

intitulada “Baião”, composta pela dupla Gonzaga e Teixeira e gravada pelo conjunto de

música carioca (embora formado por cearenses) Quatro Ases e Um Coringa. Foi nesse

momento que “a música nordestina devidamente amaciada para o público urbano, alcançava o

sucesso e se nacionalizou via rádio, consagrando definitivamente a música nordestina nos

meios de comunicação e no mundo do disco” (GOMES, 2015, p. 27).

Os trânsitos entre rádio e disco, nos anos 40 e 50, eram distintos daqueles

verificados nos anos 70 e 80. Neste último período, gravava-se primeiramente o

disco e a gravadora se incumbia de divulgá-lo, contratando agências de publicidade

e comprando espaços na grade de programação das emissoras; anteriormente, nos

anos 40 e 50, gravava-se o disco quase que simultaneamente à profusão e divulgação

das músicas e de seus cantores, no rádio, o que resultava numa venda de discos

menor, mais lenta e gradual. (ALVES, 2012, p. 333).

O sucesso de audiência do baião foi retratado na música “A dança da moda”,

composta por Luiz Gonzaga e Zé Dantas em 1950, na qual fica evidente o processo de

mudança em curso nas preferências sonoras: “No Rio tá tudo mudado/ Nas noites de São

João/ Em vez de polca e rancheira/ O povo só pede e só dança o baião”. É patente nesses

versos a incorporação da produção musical nacional (entendida como uma junção das

produções regionais) em detrimento dos estrangeirismos, até então bastante presentes (mas

não predominantes) na pauta musical das rádios.

Em relação ao fluxo migratório de músicos nordestinos para os centros metropolitanos

do País, aspecto essencial para o advento do baião urbano-comercial, ressalte-se que embora

esse deslocamento espacial seja verificado desde o final do século XIX e início do século XX,

com João Pernambuco (1883-1947), Augusto Calheiros (1891-1956), a dupla Jararaca (1896-

1977) e Ratinho (1896-1972), Minona Carneiro (1902-1936), Manezinho Araújo (1910-1993)

e outros artistas ligados à embolada de coco, ao longo dos anos 1950 houve uma

intensificação, com vários nordestinos transferindo-se para o Rio de Janeiro a fim de engrenar

uma carreira musical na capital nacional, muito em função da visibilidade que a música

nordestina alcançara no período, refletida no crescente interesse comercial por artistas

regionais, tanto pelas gravadoras principiantes quanto da parte das emissoras radiofônicas.

Dessa forma, investindo seus escassos recursos financeiros na busca pelo estrelato

musical, nomes como Genival Lacerda, Jackson do Pandeiro, Marinês, Abdias, Antônio

Barros, João do Vale, Trio Nordestino, Gordurinha, dentre outros, embarcaram em navios,

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paus-de-arara e aviões rumo ao Sudeste. Grande parte dos pertencentes a essa geração de

músicos foi incentivada e aconselhada pelo próprio Luiz Gonzaga, pioneiro e reconhecido

como maior representante do baião, a tentar a vida no Rio. Mesmo durante os anos 1960:

Gonzaga continuava a receber o pessoal de sua região. Quem chegava à casa de

Miguel Pereira (município carioca) deparava com dezenas de redes armadas, prontas

para acomodar os nordestinos que chegavam ao Rio atrás de trabalho [...]. Gonzaga

nada cobrava, mas dava prazo até cinco dias para os recém-chegados arrumarem um

teto e um trabalho [...]. Ajudava no que fosse possível. Indicava os conterrâneos para

gravações e shows. (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 139).

A partir desse preâmbulo acerca da consolidação da indústria cultural nacional a partir

dos anos 1940 e da sistematização do baião como gênero musical identificado com a região

nordestina, como fio condutor para compreender como se dão as interferências técnicas e

comerciais do mercado sobre a obra artística, foi escolhida a trajetória discográfica do Trio

Mossoró, conjunto musical de baião surgido na virada dos anos 50 para os 60, composto pelos

irmãos Oseas Lopes, idealizador do grupo, João Batista e Hermelinda Lopes, filhos de um

próspero comerciante da cidade de Mossoró/RN.

O trio refez em 1960 o mesmo trajeto de outros conterrâneos, indo se estabelecer no

Rio de Janeiro, onde colocaram o nome da cidade potiguar no mapa da música popular

brasileira5, apesar de um pouco antes a cantora carioca Dolores Duran (1930-1959), em

música de autoria de Miguel Gustavo e Ruy Duarte, já ter decantado Mossoró no baião “Esse

norte é minha sorte”, em LP homônimo (Esse Norte é minha sorte, 1959, Copacabana), o

último disco gravado pela intérprete: “Mossoró, lá nas salinas/ Lampião não pôde entrar/

Quatro horas, tiroteio estourou lá na linha do trem/ Lampião correu da bala/ E em Mossoró

não entrou ninguém”.

Diante do exposto, quais transformações podem ser evidenciadas ao longo da

produção discográfica completa do Trio Mossoró, composta de 12 álbuns e 06 compactos6,

gravados entre 1962 e 1977, notadamente destacando as mudanças técnicas (inclusão de

instrumentos musicais não-tradicionais do baião, fusão com outros estilos musicais,

5 Obviamente desconsiderarei aqui o samba de 1934, “Moçoró, minha nega”, de Ari Barroso (Hoje em dia só se

fala/ Com orgulho e vaidade/ No subúrbio e na cidade/ Moçoró, minha nega!) e a marchinha “História do

Brasil”, de Lamartine Babo, também de 1934 (Passou-se o tempo da vovó/ Quem manda é a Severa/ E o cavalo

Mossoró), pois estas composições não se referem à cidade potiguar, mas ao celebrado equino vencedor do I

Grande Prêmio Brasil no Hipódromo da Gávea, no Rio de Janeiro, em 1933 (SEVERIANO; MELLO, 1997). 6 Tendo em vista que as canções contidas nos compactos foram, anterior ou posteriormente, inseridas em algum

dos 12 álbuns - com exceção da música Disparada (Geraldo Vandré e Theo de Barros), lançada exclusivamente

em compacto de 1967 - tais canções não compuseram o corpus da presente pesquisa, o que resultaria numa

redundância que pouco acrescentaria ao trabalho.

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indumentária dos componentes do trio, etc.) e temáticas (conteúdo lírico das canções)

desenvolvidas neste recorte musical?

Enquanto aspectos decisivos para a elucidação da questão central posta acima, também

foram averiguados neste trabalho o surgimento e expansão da indústria musical no Brasil

(entendida numa escala mais ampla, englobando rádio, publicidade, televisão, produção de

discos, etc.) e como ela se apropriou dos elementos tradicionais da música nordestina (da

embolada de coco nos anos 1920 ao Trio Mossoró), reestruturando-a em gênero urbano,

portanto, mais comercialmente viável.

O desenvolvimento da pesquisa buscou contribuir para o aprimoramento da discussão

acerca da temática da indústria cultural no século XX e suas reverberações no século atual,

assim como suas implicações nas culturas regionais, em específico na música nordestina,

assunto de interesse tanto entre pesquisadores acadêmicos como entre entusiastas da cultura

popular, sendo relevante por observar como a ânsia por responder aos apelos do mercado

pode alterar a trajetória artística de um determinado conjunto musical e até mesmo de um

gênero, evidenciando os assédios e tensões existentes nesse processo.

Após emergir como uma novidade no meio musical dos anos 1940, para que

conseguisse permanecer em evidência nos grandes centros metropolitanos, foi necessário que

o baião se reinventasse, exigindo dos artistas, no caso da presente pesquisa, o Trio Mossoró,

que se utilizassem de mecanismos para garantir sua inserção e continuidade no mercado, os

quais serão evidenciados ao longo do texto, de modo a compreender as mudanças técnicas e

temáticas verificadas na produção discográfica completa do trio, do álbum de estreia (Rua do

Namoro, de 1962) ao derradeiro (Forró do Mexe-mexe, lançado em 1977)7.

É através do complexo processo de construção dos bens simbólicos, decomposto nos

três momentos operacionais nos quais a comunicação se dá no âmbito da indústria cultural –

produção (momento delimitado neste trabalho), transmissão e recepção (MICELI, 2005, p.

35), que busca-se compreender como os agentes dessa nascente indústria (em particular seu

ramo fonográfico), interferem diretamente na obra simbólica de um determinado

grupo/artista.

Trata-se de uma pesquisa predominantemente qualitativa, no entanto, sem promover

uma cisão conflituosa que vise alcançar um suposto “reino da pura quantidade ou da pura

qualidade” (DEMO, 1998, p. 92), pois se entende que ambos sejam métodos investigativos

7 De acordo com Dantas (2017), em 1980 foi lançada uma coletânea com regravações de músicas contidas nos

discos anteriores, intitulada O melhor do Trio Mossoró. Entretanto, por se tratar de uma compilação, este álbum

não foi aqui analisado.

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compatíveis (e em muitas ocasiões complementares) dentro das pesquisas sociais, já que “a

realidade abrangida por eles interage dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia”

(MINAYO, 2001, p. 22). Contudo, por ser um estudo de caso que envolve, além de análise de

arquivos, uma abordagem empírica do campo cultural, cujo propósito é investigar a relação da

indústria cultural com a produção discográfica de um conjunto musical em específico,

entende-se que priorizar o aspecto qualitativo seja a melhor opção para uma caminhada

investigativa satisfatória.

Tendo em mente que sob a lógica mercantil não existem elementos neutros no

momento da produção de um bem cultural (FARACO, 2012, p. 12), e que um dos paradigmas

dessa indústria é “superar constantemente uma contradição fundamental entre suas estruturas

burocratizadas-padronizadas e a originalidade (individualidade e novidade) do produto que

ela deve fornecer” (MORIN, 1997, p. 25), foram designados os passos metodológicos

elencados a seguir.

Inicialmente, a construção do objeto de estudo se desenvolveu a partir da eleição de

um tema de investigação plenamente coerente com meus interesses científico e pessoal, fruto

de uma história de vida vinculada ao mundo da música e da pesquisa social, almejando com

isso “aproximar a pesquisa sobre música da música pesquisada” (TROTTA, 2006, p. 10).

Logo após, foi efetuada uma revisão da literatura sobre os trabalhos acadêmicos relevantes

que tivessem como foco a música regionalista nordestina e aspectos relacionados à indústria

cultural, mais especificamente à evolução da indústria fonográfica, tendo como referencial

teórico os escritos dos membros da Escola de Frankfurt, sobretudo os textos de Theodor

Adorno voltados para a reflexão sobre a música em tempos de mercado, além de autores

tributários dos Estudos Culturais como Canclini e Martín-Barbero, delatando “a posição e

importância da cultura e da ideologia no capitalismo” (STRINATI, 1999, p. 65).

Em outra fase da pesquisa foi feita entrevista de tipo semiestruturada com os membros

do Trio Mossoró (APÊNDICE A). Enquanto técnica de coleta de dados “bastante adequada

para a obtenção de informações acerca do que as pessoas sabem, crêem, esperam, sentem ou

desejam, [...] bem como acerca das suas explicações ou razões a respeito das coisas

precedentes” (GIL, 2008, p. 109), na entrevista foram abordados, dentre outros pontos,

tópicos relativos à importância dos veículos de comunicação de massa na construção da

carreira artística do trio; como era a relação artistas/agentes do mercado fonográfico

(radialistas, produtores, empresários, etc.) no período de 1962 a 1977 e de que maneira essa

relação interferia no processo de produção musical; quais principais mudanças técnicas e

temáticas os músicos identificam ao longo da discografia do trio e se essas mudanças se

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deram por necessidade criativa-subjetiva do artista ou por imposição externa, visando

interesses mercadológicos; como era pensada a identidade visual do trio (vestuário, capas dos

discos, etc.) e como essa imagem identitária se alterou no período em foco.

Dessa forma, a entrevista com os membros do trio foi realizada na tarde de 23 de

junho de 2018, dia de São João, no saguão de um hotel em Mossoró/RN, na ocasião da vinda

dos irmãos para a apresentação anual dentro da programação do evento Mossoró Cidade

Junina.

O corpus da pesquisa analisado consistiu na produção fonográfica completa do Trio

Mossoró tal como está relacionada por Dantas (2017), englobando 12 álbuns, adquiridos em

formato digitalizado (mp3) na web, em nível de resolução adequado aos aspectos que foram

considerados no trabalho.

Visando uma melhor compreensão do processo de construção e transformação da

música do trio, baseado em elementos estéticos e técnicos que justificam os recortes, optou-se

por subdividir a obra discográfica do conjunto em três fases, estabelecidas pelo pesquisador

como: fase tradicional (1962-66), fase experimental (1966-72) e fase pragmática (1973-77),

que caracterizam diferentes momentos da sua produção simbólica, conforme discriminado na

tabela abaixo:

Tabela 01 - Discografia do Trio Mossoró (12 álbuns)

Fase Álbuns Número de faixas

Tradicional Rua do Namoro (Copacabana, 1962)

Quem Foi Vaqueiro (Copacabana, 1964)

Terra de Santa Luzia (Cantagalo, 1966)

12 músicas

12 músicas

12 músicas

Experimental De Norte a Sul (Copacabana, 1966)

Convocação (Copacabana, 1967)

Trio Mossoró (Musicolor, 1968)

Transamazônica (Copacabana, 1972)

12 músicas

12 músicas

14 músicas

12 músicas

Pragmática Tem Mais Gente (Som, 1973)

Praça dos Seresteiros (Copacabana, 1974)

Forró do Velho Inácio (Copacabana, 1975)

30 Dias de Forró (Tapecar, 1976)

Forró do Mexe-mexe (Tapecar, 1977)

12 músicas

12 músicas

12 músicas

12 músicas

12 músicas

Total: 146 músicas

Fonte: Dantas (2017).

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Posteriormente, foi selecionado um conjunto de músicas representativo de cada uma

das três fases, resultando num universo de composições que passou pela etapa de análise

descritiva de conteúdo, com molde nos trabalhos de Costa (2012) e Faraco (2012), sendo a

escolha das músicas dada pela categorização temática e técnica que mais representaram

mudanças em relação à fase anterior, como incorporação de instrumentos atípicos, fusão com

outros ritmos e novos direcionamentos líricos.

Ao se pesquisar sobre uma produção musical específica, é essencial estar ciente que:

além de se levar em conta [...] a interpretação que lhe é dada pelo artista [...] há que

se observar, no seu conjunto, dentre outros aspectos, letra, melodia, ritmo e

instrumentos, que, associados, constituem igualmente uma linguagem, ou

linguagens, enfim, formas de expressão. (VIEIRA, 2000, p. 27).

A tabela de análise utilizada no trabalho (APÊNDICE B) foi pensada a partir da

junção dos instrumentos de análise encontrados em Costa (2012) e Faraco (2012). Ao

primeiro deles, voltado exclusivamente ao conteúdo lírico das canções, procedeu-se a

substituição dos temas abordados pelo modelo original, já que trata de objetos de estudo com

motivações temáticas divergentes. O segundo, que assim como o anterior também passou por

readequação, trata dos aspectos da instrumentação e dos gêneros musicais observados nas

composições selecionadas para investigação. Logo após, formulado o rascunho da tabela de

análise derivada dessa conjugação, ao passo que se sucedia a escuta do corpus da pesquisa,

novas perspectivas líricas (festa, amor, saudade, regionalismos, protesto, etc.),

instrumentações inéditas (bateria, baixo elétrico, piano, guitarra, etc.) e gêneros musicais

(baião, xote, xaxado, guarânia, valsa, etc.) se apresentavam, sendo automaticamente

incorporados à tabela, dando-lhe assim a amplitude pretendida.

Em seguida à coleta dos dados e informações, os mesmos passaram por uma

sistematização que possibilitou maior clareza e organização na última etapa da pesquisa, que

foi a elaboração do texto da dissertação, dividido em três capítulos.

No primeiro capítulo é esboçado um quadro geral do conceito de indústria cultural,

como elaborado por Adorno e Horkheimer, exemplificando como se deu a penetração da

lógica industrial sobre a produção cultural no Brasil no começo do século XX, dando maior

atenção às investidas comerciais do setor fonográfico (rádio, gravadoras, produção de discos,

etc.). A preferência pelo referencial crítico da escola de Frankfurt, complementado por autores

tributários dos Estudos Culturais, tais como Canclini e Martín-Barbero, não visou à

condenação do Trio Mossoró como elemento de entrave para a emancipação da audiência

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e/ou causa da regressão da audição desta, aspectos importantes da reflexão estabelecida pelos

frankfurtianos. Pelo contrário, o intuito foi mostrar os meios e mediações nos quais transitou o

grupo mossoroense para ocupar seu lugar na história da música regionalista nordestina.

O capítulo seguinte é dedicado a proporcionar um entendimento dos processos

históricos e culturais que propiciaram a construção e inserção da música nordestina nos

centros metropolitanos nacionais, traçando uma linha evolutiva que vai da embolada de coco

nos anos 1920 até o baião urbano-comercial gonzagueano, compreendendo seus momentos de

auge (anos 1940 e 50) e declínio (anos 1960).

O terceiro e último capítulo, de viés especialmente empírico, buscou relacionar as

mudanças técnicas e temáticas evidenciadas ao longo de toda a produção discográfica8 do

Trio Mossoró com as interferências da indústria cultural (fonográfica), em conformidade com

a categorização em fases explicitada anteriormente: tradicional, experimental e pragmática,

sendo, para isso, levados em conta os depoimentos concedidos pelos artistas na entrevista

realizada.

8 Após a gravação do último disco em 1977 e da construção das carreiras paralelas dos membros do trio, iniciada

no começo dos anos 1970 e continuada ao longo das décadas seguintes, a reunião dos irmãos nos palcos ocorreu

em 2009, como atração dentro da programação do evento Mossoró Cidade Junina. Desde então, o conjunto é

requisitado para shows esporádicos em festivais de “forró pé-de-serra”, sobretudo em estados do Sudeste, dado

que são um dos poucos nomes da música nordestina sessentista ainda em atividade e em sua formação original.

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1 QUANDO O MERCADO ENCONTRA A ARTE: O CONCEITO DE INDÚSTRIA

CULTURAL

1.1 NOÇÕES GERAIS SOBRE A ESCOLA DE FRANKFURT

Pensar a indústria cultural implica refletir, primordialmente, acerca da produção em

série de itens artísticos, na criação e distribuição de produtos culturais direcionados ao grande

público (JACKS, 1998, p. 25), representada pelo avanço da lógica capitalista sobre a cultura.

A partir da ruptura causada pela reprodução e comercialização dos artefatos oriundos da

imaginação e da subjetividade humanas, “o que, à primeira vista, parecia „apenas‟ conceito é,

a rigor, a práxis social reprodutiva do capital” (MAAR, 2008 apud DURÃO, et. al., 2008, p.

08).

O conceito de indústria cultural representa uma síntese das noções voltadas a pensar a

produção massiva e de orientação capitalista no campo cultural propostas por Max

Horkheimer (1895-1973) e Theodor Adorno (1903-1969), duas figuras primordiais do grupo

que ficou conhecido como Escola de Frankfurt, e foi usado pela primeira vez no texto

“Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”, inserido na obra

publicada em 1947, intitulada Dialética do Esclarecimento (PUTERMAN, 1994). Como

apontado por ambos, “o novo não é o caráter mercantil da obra de arte, mas o fato de que,

hoje, ele se declama deliberadamente como tal, e é o fato de que a arte renega sua própria

autonomia, incluindo-se orgulhosamente entre os bens de consumo, que lhe confere o encanto

da novidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 147).

Através desse conceito-chave “se busca pensar a dialética histórica que, partindo da

razão ilustrada, desemboca na irracionalidade que articula totalitarismo político e

massificação cultural como as duas faces de uma mesma dinâmica” (MARTÍN-BARBERO,

2015, p. 73). No contexto de sua idealização, a transformação da teoria de positividade

dogmática para seu polo negativo, através do surgimento de uma ótica dialética do

esclarecimento, se mostrava necessária (BAHIA, 2004, p. 39).

Enfrentando momento de escassez da existência de um grupo de intelectuais voltado

para o pensamento de esquerda na Alemanha do começo do século XX, uma das opções para

os alemães identificados com essa corrente política na década de 1920 foi privilegiar a

investigação teórica, buscando dilatar os horizontes do marxismo, promovendo também

correção nos rumos da política em voga (DUARTE, 2002, p.10-11). Assim, inserido numa

conjuntura acadêmica onde o viés marxista se encontrava majoritariamente marginalizado (à

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exceção da União Soviética) (NOBRE, 2004, p. 14), foi fundado dentro da liberal

Universidade de Frankfurt, um núcleo de pesquisa chamado Instituto de Pesquisas Sociais –

IPS, nascedouro das principais ideias dessa geração de pensadores que se notabilizou pelo

empenho e aprofundamento nas reflexões sobre arte e produção cultural nas sociedades

capitalistas a partir de um instrumental teórico sociológico. Dessa forma, os membros do

grupo interpretaram a desilusão de grande parte do setor intelectual a respeito das

transformações do mundo contemporâneo, sobretudo no campo político revolucionário, assim

como manifestaram a busca pela autonomia e independência do pensamento (MATOS, 1993,

p. 05).

As décadas de 1920 e 1930 foram decisivas para o estudo e a avaliação da cultura

popular. O advento do cinema e do rádio, a produção e o consumo de massa, a

ascensão do fascismo e o amadurecimento das democracias liberais em certos países

ocidentais contribuíram para definir os rumos dos debates sobre cultura de massa.

(STRINATI, 1999, p. 21).

Com a chegada do Partido Social-Democrata ao governo alemão em 1933 e com a

implantação do modelo de governo teuto-racista do Terceiro Reich, o Instituto se dissolveu, e

seus componentes, na maioria judeus e de orientação declaradamente marxista, em virtude das

perseguições ideológicas inferidas pelos nazistas (DUARTE, 2010), migraram para outros

países da Europa e depois para os Estados Unidos (neste último, Horkheimer e Adorno

aportaram, respectivamente, em 1934 e 1938). Conforme o historiador francês Lionel Richard

(1988, p. 271-272), a sombra venceu a luz: “a maré escura acabou por recobrir com uma

sombra espessa tudo o que contava na arte da época, eliminando ou forçando à emigração

centenas de escritores, artistas e cientistas”.

Como diz Duarte (2003, p. 17), a partir do contato com um “aparato industrial de

tamanho já bastante considerável, totalmente voltado para a produção daquilo que outrora se

chamava de „bens espirituais‟”, foi no continente americano onde os principais escritos dos

frankfurtianos dedicados a pensar as ligações entre cultura e economia mercantil, arte e

capitalismo, criação espiritual e tecnologia, vieram à luz, dentre eles o já citado Dialética do

Esclarecimento. Essa obra em específico, ao tomar para si um papel denunciativo do

panorama de regressão político-cultural e do estado de barbárie que se desdobrava na Europa,

trata-se, como aponta Cohn (1998, p. 13), de uma “crítica racional da razão [...] (pois) a

história não é só avanço linear, mas envolve intrinsecamente a possibilidade da regressão”.

Confrontava-se, assim, a visão racionalista do progresso humano predominante na sociedade

burguesa, até então tomado como axioma. Dessa maneira, “o pensamento adorniano refuta

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tanto uma noção de progresso ingenuamente otimista, que acredita ter superado os

irracionalismos míticos, como uma postura niilista que busca um retorno a uma natureza

idílica que não mais existe, se é que um dia realmente existiu” (PUCCI; RAMOS-DE-

OLIVEIRA; ZUIN, 1999, p. 112).

Em nome de uma racionalização crescente, os processos sociais são dominados pela

ótica da racionalidade científica, característica da filosofia positivista. Nessa

perspectiva, a realidade social, dinâmica, complexa, cambiante, é submetida a um

método que se pretende universalizador e unitário, o método científico. O

positivismo, prisioneiro de seus próprios métodos, impõe um procedimento não-

social às ciências sociais. (MATOS, 1993, p. 07).

O texto considerado inaugural do grupo frankfurtiano é Teoria Tradicional e Teoria

Crítica, escrito por Horkheimer e publicado em 1937, no qual o caráter questionador da

ciência é ressaltado em oposição ao posicionamento subjetivo em voga na ciência tradicional,

representado pela primazia dada ao método positivista de base descartiana, rechaçado pelos

teóricos críticos. Nesse texto, Horkheimer entendia a teoria crítica como método que dava

maior relevo à ação, à dimensão material e à necessidade da racionalização para uma

interpretação mais apropriada do mundo (PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA; ZUIN, 1999, p.

33).

Assim, o anseio humano pelo esclarecimento se intensificou no século XVIII,

motivado pelo surgimento de novos modos de produção, novas organizações sociais e uma

visão mais ampliada do papel ativo do homem no seu meio (BAHIA, 2004, p. 54).

Demo (1998, p. 89) diz que a ciência, que “sempre se quis como adversária da dúvida,

[...] só progride por que é duvidosa”, ou seja, tem como papel primordial questionar. Dada a

subordinação do modo tradicional de ciência a interesses dominadores preestabelecidos,

estaria ela intimamente relacionada com a gênese, desenvolvimento e manutenção do modo

de produção capitalista (DIAS, 2000, p. 25).

Para Nobre (2004, p. 38), “em nome de uma pretensa neutralidade da descrição, a

Teoria Tradicional resigna-se à forma histórica presente de dominação. Em uma sociedade

dividida em classes, a concepção tradicional acaba por justificar essa divisão como

necessária”, tomando-se a ciência como elemento acrítico.

A base do pensamento dissidente frankfurtiano já se delineava na seguinte passagem

do texto fundador escrito por Horkheimer (1991, p. 58): “a teoria crítica afirma: isso não tem

que ser necessariamente assim, os homens podem mudar o ser, e as circunstâncias já

existem”. As circunstâncias aludidas se fundam na cada vez mais complexa divisão do

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trabalho e no desenvolvimento e consolidação do capitalismo monopolista, fatores que se

refletem nas contradições de uma sociedade de classes, com posições e representatividades

desiguais, visíveis na quantidade e qualidade do produto do trabalho repartido, sob as

modalidades de capital econômico, político e cultural (MICELI, 2005, p. 39).

Reforçando a vertente crítica da Escola, Adorno (2011, p. 250) afirma que “toda

riqueza cultural continuará falsa enquanto a riqueza material for monopolizada”, numa clara

referência às relações da cultura econômica capitalista com o mercado cultural surgido no seio

da sociedade de comunicação massiva. Assim como no capitalismo industrial das sociedades

de mercado há a questão da reificação, para Adorno a ascensão dos regimes totalitários, com

suas práticas de extermínio e circulação de ideologias opressoras, era elemento fundamental

para se entender o processo de desumanização ocorrido no século XX (GINZBURG, 2003, p.

66).

A chegada dos regimes totalitários ao poder em vários países europeus foi um fator

que marcou profundamente as trajetórias profissional e particular dos membros do grupo,

sendo elemento essencial na elaboração das ideias críticas acerca dos rumos do mundo

ocidental no começo do século passado.

A experiência radical que foi o nazismo está sem dúvida na base da radicalidade

com que pensa a Escola de Frankfurt. Com o nazismo, o capitalismo deixa de ser

unicamente economia e política e explicita sua textura política e cultural: sua

tendência à totalização. [...] os procedimentos de massificação vão ser pela primeira

vez pensados não como substitutivos, mas como constitutivos da conflitividade

estrutural do social. [...] Adorno e Horkheimer partem da racionalidade desenvolvida

pelo sistema [...] para chegar ao estudo da massa como efeito dos processos de

legitimação e lugar de manifestação da cultura em que a lógica da mercadoria se

realiza. [...] A problemática cultural se convertia pela primeira vez para as esquerdas

em espaço estratégico a partir do qual pensar as contradições sociais. (MARTÍN-

BARBERO, 2015, p. 71).

Os meios de comunicação massivos, assim como a propaganda e a indústria do

entretenimento, se desenvolveram exponencialmente acompanhando a ascensão dos regimes

totalitários, como o nazismo e o fascismo, tornando mais eficazes os meios de controle

espiritual das massas (NOBRE, 2004, p. 46). Assim, os primeiros meios de comunicação

massiva, como o rádio e o cinema, causavam preocupação pelo potencial repressivo que

representavam em favor de regimes políticos autoritários, funcionando como meio de

propaganda ideológica de amplo alcance e de controle altamente centralizado (STRINATI,

1999, p. 22).

No momento de formulação do conceito de indústria cultural, proposto em

substituição ao termo cultura de massa, esse grupo de intelectuais alemães verificou uma

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“incongruência entre progresso técnico no setor de produção industrial da cultura e a

regressão dos sentidos9 [...] (evidenciando) o equívoco de se supor que a cultura de massa

emergente era uma expressão identificadora da espontaneidade da cultura popular [...]”

(COSTA, 2001, p. 106), algo como uma evolução automática do folclore campesino.

Para Adorno, nessa indústria, as massas são elementos apenas secundários,

quantitativos, objetos e não sujeitos da maquinaria (ADORNO, 1977, p. 288). Em razão disso,

como diz Angeluccia Habert (1974, p. 18), os meios de comunicação de amplo alcance, sendo

elementos usados para permanência do estado de subjunção dos setores fragilizados, nunca

devem ser entendidos como “produção de origem popular no sentido de resultar de grupos

sociais dissociados do poder. Sempre significará a popularização de mensagens permissíveis e

manipuladas pelos que estão associados ao poder”.

Dando prosseguimento à contextualização histórica na qual se fundaram as bases do

pensamento crítico, o panorama urbano da Europa moderna, sobretudo a partir da segunda

metade do século XIX, passava por profundas alterações com o desenvolvimento acelerado

dos núcleos urbanos, dos transportes, da indústria e da produção de riquezas, embora esta

continuasse desigualmente repartida (BLANNING, 2011, p. 197).

Entretanto, no período histórico de estruturação desses primeiros núcleos urbanos

modernos europeus, entendidos aqui como ambientes construídos sob novas práticas sociais,

econômicas e culturais que, em oposição aos meios rurais, propiciaram o afloramento de um

ethos citadino:

o folclore não passaria do campo à cidade, do feudo ou do pequeno burgo à fábrica a

não ser em manifestações saltuárias e residuais. O seu lugar iria sendo ocupado por

formas de entretenimento produzidas por grupo profissionais: empresários de circo e

de teatro popular; editores de periódicos devotos ou humorísticos; regentes de

orquestrinhas suburbanas... (BOSI, 1973, p. 59).

Já durante os anos 1920 e começo dos anos 1930, período que abarca o fim da

Primeira Guerra e a passagem da Alemanha imperial para uma república até a ascensão

nazista em 1933, os germânicos viviam uma alternância entre situações extremas (RICHARD,

1988), quando pequenos instantes de prosperidade econômica e retomada da industrialização

9 “os meios de comunicação de massa usam códigos adequados a sentidos do corpo humano. Assim, a

transmissão oral de contos e lendas, anterior à Renascença, aplicava-se ao ouvido. A partir de Gutemberg, dá-se

ênfase ao segmento escrito, isto é, aplica-se a visão (em exercício linear) à matéria do conhecimento; enfim,

dessa última especialização excessiva nos teriam livrado o telefone, o cinema sonoro e a televisão (imagem mais

som). Na era eletrônica em que vivemos, não só um sentido, audição ou visão, mas um processo de

envolvimento múltiplo audiovisual definiria o relacionamento entre emissor e receptor, condicionando novas

mensagens” (BOSI, 1973, p. 32).

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em geral no país10

eram acompanhados por crises profundas e instabilidade política. As

perdas territoriais e humilhações impostas pelo Tratado de Versalhes deixou um saldo

negativo que incluía, dentre outros resultados imediatos, desequilíbrio econômico e social,

desemprego e inflação descomunal (PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA; ZUIN, 1999, p. 19).

Como ressalta Costa (2001, p. 108), acerca da percepção frankfurtiana sobre a

influência totalitarista no campo das artes, o conceito de indústria cultural vem à tona em um

momento no qual verifica-se a “existência de um setor da produção da cultura comprometido

com as estruturas de mercado [...] (propiciando) relações de proximidade entre autoritarismo

econômico-político e fascismo cultural”, estabelecidas através de “sutis processos de

cooptação (que) se associam a meios tecnológicos com o objetivo de manter a ordem

estabelecida” (DUARTE, 2003, p. 72).

Apesar de todo o progresso da técnica de representação, das regras e das

especialidades, apesar de toda a atividade trepidante, o pão com que a indústria

cultural alimenta os homens continua a ser a pedra da estereotipia. [...] (que)

desmentem o discurso antifascista da liberdade. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985,

p. 139).

Para Canclini (1983, p. 89), com o desenvolvimento e sistematização do

estranhamento frente ao que represente o novo, inclusive no campo sensorial, “a padronização

mercantil nos treina para viver em regimes totalitários, no seu sentido mais literal de oposição

aos regimes democráticos, ao suprimir o plural e obrigar que tudo fique submerso numa

totalidade uniformizada”. Assim, com a promoção da estereotipia, perde-se a ideia

identificada por Martín-Barbero (2015, p. 79) de que “o estranhamento da arte é a condição

básica de sua autonomia”.

Um dos centros nevrálgicos do projeto de Adorno e companhia era “destacar os

aspectos noturnos do Iluminismo” (MATOS, 1993, p. 31). Segundo Strinati (1999, p. 64),

para os frankfurtianos, “o compromisso iluminista convertera-se num pesadelo, com a ciência

e a racionalidade usadas para aniquilar a liberdade humana”.

Apesar (e em razão) do atual território da Alemanha ser o berço da chamada “grande

arte moderna”, origem dos maiores nomes da música clássica (Bach, Beethoven, Wagner,

Mozart, etc.), e já no começo do século XX possuir uma produção cinematográfica respeitável

(MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 68), além do avançado sistema educacional e tecnológico

10

Tim Blanning (2011, p. 198), tratando da virada do século XIX para o XX, ressalta “o domínio alemão na

denominada segunda revolução industrial baseada na alta tecnologia (em contraste com a primeira fase dos

metais pesados, quando predominaram o carvão e o ferro). [...] (seria alemão) o melhor sistema de educação

tecnológica do mundo”.

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25

destacado anteriormente, o fato de uma sociedade aparentemente evoluída intelectualmente e

“esclarecida” proporcionar, por vias legais e democráticas, uma barbárie como o nazismo é

um dos pontos de questionamento desses teóricos. Como conclui o próprio Adorno (1995, p.

11), “o desenvolvimento da sociedade a partir da Ilustração, em que cabe importante papel à

educação e formação cultural, conduziu inexoravelmente à barbárie”. Esses pensadores

buscaram compreender os fatores objetivos e subjetivos que possibilitaram a implantação do

regime hitlerista, elemento sintomático da contradição por eles denunciada.

Sob a percepção dos liberais otimistas acreditava-se que o avanço progressista da

tecnologia, a chamada “modernidade”, promoveria a paz entre os homens. Contudo, os

frankfurtianos trouxeram a ideia da razão eclipsada, instrumentalizada e destituída de crítica

(CHAUI, 1986, p. 27).

Portanto, apesar dos avanços tecnológicos do século XX terem permitido a um número

maior de pessoas o acesso aos bens culturais, que até o século anterior se restringia a uma

pequena parcela da população, sobretudo aos setores nobres e aristocráticos, tal alcance, da

forma como se deu, representou mais o retrocesso do que a simples possibilidade de aquisição

de cultura, agora propagada através da comunicação massiva. Assim, denunciava-se o

descompasso existente entre os avanços técnicos da época e a promessa iluminista de

emancipação do homem que, na crueza da vida vivida, representavam vetores opostos entre

si. O que havia se dado ao longo do trajeto que levou das luzes à desilusão11

?

A massificação dos produtos culturais viabilizada pela revolução técnica-industrial

que permitiu a produção e reprodução em massa desses bens, não significou uma

democratização da cultura em benefício das classes oprimidas, excluídas desses

benefícios, mas significou que a esfera da cultura, a criação espiritual foi cooptada

pela esfera da produção material. A cultura passa a ser produzida segundo as normas

e exigências do mercado capitalista, transformando-se em valor de troca como

qualquer outra mercadoria. (PEREIRA NETO; LOIOLA; QUIXADÁ, 2010, p. 03).

Segundo Costa (2001, p. 109), na obra comum de Adorno e Horkheimer, esses autores

“caracterizam a indústria cultural como aparatos técnicos que paradoxalmente mistificam a

realidade, quando se supunha o potencial de emancipação nos progressos científicos e nas

produções culturais tornadas disponíveis pela massificação”, viabilizados a partir do advento

do esclarecimento e de sua resultante, a sociedade administrada. Assim, as manifestações

culturais perdem a dimensão da especificidade ao serem submetidas à lógica mercantil, no

instante que deixam de ser produzidas em espaços socialmente privilegiados (DIAS, 2000, p.

26).

11

Bahia (2004).

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26

Outro membro do grupo frankfurtiano, Walter Benjamin (1892-1940), pioneiro a

pensar a relação histórica existente entre a transformação nas condições de produção com as

mudanças no espaço da cultura (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 80), entendeu que o processo

de grandes transformações na reprodutibilidade técnica da obra de arte, embora ampliasse o

alcance aos bens culturais e até pudesse servir a propósitos políticos positivos, se tomado

criticamente (NAPOLITANO, 2010, p. 75), ocasionava a perda do seu valor de culto em

função do aumento do valor de troca. Para ele:

a reprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações impossíveis para

o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a obra, seja sob

a forma da fotografia, seja do disco. A catedral abandona seu lugar para instalar-se

no estúdio de um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser

ouvido num quarto. Mesmo que essas novas circunstâncias deixem intato o conteúdo

da obra de arte, elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora.

(BENJAMIN, 1994, p. 168).

Os elementos tecnológicos que propiciaram o desenvolvimento da indústria cultural se

consolidaram no alvorecer do século XX, ensejando reflexões críticas quanto ao papel

desempenhado pelos meios massivos de comunicação e a aceleração do grau de degradação

do indivíduo, como se se buscasse, mais do que nunca, ser enganado (ADORNO, 1977, p.

292).

Tributários da consolidação de uma sociedade de consumo, nascida da passagem do

capitalismo liberal para o capitalismo monopolista, na virada do século XIX para o XX, os

produtos da indústria cultural compõem a cultura de amplo alcance, que por sua vez usam os

media para se reproduzirem.

O efeito de conjunto da indústria cultural é o de uma antidesmistificação, a de um

anti-iluminismo [...] a desmistificação, a Aufklarung, a saber a dominação técnica

progressiva, se transforma em engodo das massas, isto é, em meio de tolher a sua

consciência. Ela impede a formação de indivíduos autônomos, independentes,

capazes de julgar e de decidir conscientemente. (ADORNO, 1977, p. 295).

Paradoxalmente, o homem se vê livre da opressão aristocrática e avançando

tecnicamente ao mesmo tempo em que se torna novamente aprisionado. O campo de debate

estabelecido entre a relação mercado e cultura se mostra um ótimo abrigo para pensar esse

que é um dos grandes dilemas do homem moderno (ORTIZ, 1998, p. 265).

Dessa forma, os membros da primeira geração do Instituto - Theodor Adorno, Max

Horkheimer, Walter Benjamin, dentre outros, perceberam que os meios comunicacionais

surgidos no contexto das sociedades industriais agiam sobre os homens, escamoteados sob o

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27

papel de pivô exercido pela técnica, promovendo estruturas autoritárias (COSTA, 2001, p.

107).

O termo “indústria cultural” não foi inventado por esses autores para descrever,

ainda que num registro negativo, um estado de coisas dado à observação direta.

Serve, isso sim, para caracterizar a associação de duas formas de regressão: a da

cultura e também a da indústria, e não apenas a da primeira quando submetida aos

ditames da produção industrial [...] as formas de expressão cultural vêem-se

submetidas à lógica da produção industrial em grande escala, em detrimento dos

seus requisitos próprios [...] na indústria cultural nem a indústria é inteiramente

indústria [...] nem a cultura é inteiramente cultura. (COHN, 1998, p. 15).

Ou seja, para Adorno e Horkheimer (1985, p. 127), “a pior maneira de reconciliar essa

antítese é absorver a arte leve na arte séria ou vice-versa. Mas é isso que tenta a indústria

cultural”.

Capitaneada pela lógica de produção capitalista burguesa, a indústria cultural busca

espraiar seus produtos globalmente, à procura de novos mercados. Marx e Engels (2008, p.

14) já haviam alertado que, “a necessidade de mercados sempre crescentes para seus produtos

impele a burguesia a conquistar todo o globo terrestre. Ela precisa estabelecer-se, explorar e

criar vínculos em todos os lugares”. Nesse sentido, para Canclini (1983, p. 65), “a expansão

do mercado capitalista, a sua reorganização monopolista e transnacional tende a integrar todos

os países, todas as regiões de cada país num sistema homogêneo”.

Com o crescente desenvolvimento da sociedade industrial se consolidam e se

expandem as empresas, que passam a gerir suas atividades a partir de uma estratégia

de cálculo que busca maximizar os ganhos a serem atingidos. Os frankfurtianos vão

estender essa análise do “desencantamento do mundo” para a esfera da cultura,

espaço que em princípio escaparia, no início da sociedade burguesa, deste processo

de racionalização da sociedade. (ORTIZ, 1988, p. 55).

Apresentando uma perspectiva de investigação de viés sócio-histórico e não-

totalizado, apoiado nos impasses criados a partir do desenvolvimento do capitalismo

industrial ocidental e em oposição ao idealismo metafísico de Hegel (GINZBURG, 2003),

Adorno e os demais pensadores de posicionamento crítico contribuíram com uma renovação

na abordagem sobre o pensamento marxista12

até então vigente. Para Bahia (2004, p. 56), o

12

Segundo Matos (1993, p. 29), os teóricos críticos aplicaram ao conteúdo artístico, dada sua transformação em

mercadoria pela indústria, a concepção materialista-dialética que entendia “o desenvolvimento capitalista como

alienação crescente, no sentido em que o acúmulo, reprodução e acréscimo do capital era simultâneo à

pauperização crescente dos trabalhadores”, inclusive referente ao campo da criação espiritual. A concepção da

consolidação da lógica capitalista, aquele “momento em que o trabalhador foi privado de seus instrumentos de

produção, (e) uma elite, que não faz trabalho manual, passa a organizá-lo” (BOSI, 1973, p. 37), propiciando

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delineamento de novos matizes de investigação social abertos por esses teóricos, à luz da

dialética e do marxismo, incluía a “possibilidade da arte como compreensão do mundo e não

como ilusão, conforme concepção estética, dominante desde o século XVII, dos idealistas e

empiristas”.

Os teóricos críticos se caracterizam por estabelecer formas mais sutis de percepção da

realidade, voltadas para formas aparentemente inofensivas de experimentação do mundo,

buscando o que houvesse de regressivo sob o manto do falsamente progressivo (COHN, 1998,

p. 14).

A relação de caráter predatório do capitalismo sobre a produção cultural e artística,

destacando-se seu aspecto alienante sobre o público, num conformismo que se apodera da

consciência (ADORNO, 1977, p. 293), transformando-o em massa consumidora, tenderia a

reproduzir e “reforçar a marginalidade cultural a que está destinada a maioria da população já

marginalizada economicamente” (BERTONI, 2001, p. 77).

Explicitando o paradoxo da modernidade, envolvendo progresso técnico e

heteronomia, Costa diz que:

o aparecimento da indústria cultural ampliou os canais de produção e de acesso

universalizado de informações, que se tornam híbridas (imagens, infografias, som,

movimento, grafia, etc.) e multisensoriais, o que pode supor imediatamente

“progresso” na escala de criação e difusão de conhecimentos. Esta aparente etapa,

que desloca para a tecnologia as potencialidades da comunicação humana, não é

acompanhada de autêntica autonomia cultural. (COSTA, 2001, p. 115).

Nesse viés, o aumento no poder de consumo e acesso das classes subalternas às

informações e à vida pública as tornam consumidoras de mensagens produzidas em escala

industrial, transmitidas por meios comunicacionais protagonistas no mercado (ECO, 1979, p.

27).

Conforme Martín-Barbero (2015, p. 82), “antes, para a maioria dos homens, as coisas,

e não só as artes, por próximas que estivessem, ficavam sempre longe, porque um modo de

relação social lhes fazia parecer distantes”. A partir daí, criou-se a necessidade de inserção de

um novo grupo consumista para os bens em produção acelerada proporcionada pelos avanços

técnicos.

As classes dominantes, que excluíam as subalternas tanto da produção quanto do

consumo de certos bens culturais, tiveram de modificar parcialmente a sua ideologia

e as suas práticas: continuam a excluir o povo do controle da produção, mas chegam

assim a hegemonia da ordem burguesa, se aplicaria também na compreensão do contexto da produção cultural

sob a égide dos meios comunicacionais massivos.

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29

a admitir o consumo de vários produtos culturais por parte de vastos setores da

população para propiciar uma expansão das vendas. [...] a ascensão socioeconômica

e cultural das classes populares, as suas exigências de participação no consumo

“moderno” convergem, num certo sentido, com esta necessidade de avanço do

mercado. (CANCLINI, 1983, p. 134).

Impressionados com o desenvolvimento da indústria fonográfica e do cinema

(sobretudo o feito em Hollywood13

), os frankfurtianos se posicionaram frente à

homogeneização do gosto individual (PUTERMAN, 1994). O consumo de massa

acompanharia, segundo o pensamento majoritário dessa Escola, o “gosto” estético do público,

não se ocupando do aprimoramento sociocultural dos consumidores (CALDAS, 1979),

favorecendo, assim, sua semiformação (Halbbildung). Chega-se a verificar certa

compatibilidade entre os avanços da técnica e a promoção da barbárie, como se se

correspondessem (SILVA, P. L., 2009, p. 10-11).

Como diz Bárbara Freitag (1987, p. 68), “indústria cultural e semieducação são

interdependentes; quando falamos de uma, já estamos falando da outra. Ambas fazem parte de

uma mesma problemática, focalizada a partir de dois ângulos distintos: o objetivo e o

subjetivo”.

Pode-se dizer que nas sociedades industrializadas, a partir (e mesmo antes) de

Gutemberg e da invenção da imprensa de tipos móveis, instrumentos pioneiros que

desencadearam os avanços posteriores dessa indústria, passou a ser possível a edição de livros

e outras formas de leitura de alcance ampliado14

(ECO, 1979, p. 11). Acerca da expansão da

técnica de impressão e publicação de partituras musicais15

na Europa moderna, por volta do

13

Conforme Martín-Barbero (2015, p. 203), ao final da Primeira Guerra Mundial, devido aos amplos

investimentos de capital nesse ramo industrial, é nos Estados Unidos “que o cinema deixa de arruinar

empresários e se destaca do espaço teatral para desenvolver sua própria linguagem. [...] O público majoritário do

cinema provinha das classes [...] mais populares de todas, que eram as desenraizadas massas de imigrantes”. 14

Nesse ponto da evolução técnica da comunicação literária, as classes populares, dadas as novas possibilidades

de produção cultural postas, desempenharam papel essencial, já que “em meados do século XIX, a demanda

popular e o desenvolvimento das tecnologias de impressão vão fazer das narrativas o espaço de decolagem da

produção massiva. [...] Nasce então o folhetim, primeiro tipo de texto escrito no formato popular de massa.

Fenômeno cultural muito mais que literário, o folhetim conforma um espaço privilegiado para estudar a

emergência não só de um meio de comunicação dirigido às massas, mas também de um novo modo de

comunicação entre as classes” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 175-176). Renato Ortiz (1998, p. 79) fala, ainda

acerca do folhetim: “(ele) surge como um agente perturbador: a literatura popular seria uma fonte „corruptora‟

das ideias morais que deixam de ser hegemônicas. Ao valorizar temas como a beleza da feiura, a prostituição, a

probidade dos pobres, o romance estaria se afastando do culto do belo, mergulhando na „imundície‟ da

sociedade”. 15

Como sugere Dias (2000, p. 33), como reflexo desse processo, “os editores teriam sido então os primeiros

empresários fonográficos, construindo verdadeiros centros de comércio de edições, como o de Tin Pan Alley, em

Nova York, que, no final do século passado (XIX) e no início deste (XX), difundiu amplamente a música

popular americana, sobretudo o jazz”. Não por acaso esse sistema surgiu em Nova York, já que a cidade “era,

nessa época, o principal centro de publicação da música popular, não só pela alta concentração urbana de

músicos do vaudeville e de cantores, mas também por ser um centro financeiro capaz de dar ímpeto e energia à

indústria musical” (CARONE, 2011, p. 167).

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século XVIII já é possível notar vestígios de um mercado massivo, impulsionado pelo

aumento da alfabetização nos crescentes núcleos urbanos e na criação de espaços comerciais

de lazer (BLANNING, 2011, p. 33).

Para Renato Ortiz (1988, p. 23), “a indústria do livro e a imprensa se beneficiam da

revolução industrial e podem ao longo do século XIX atingir um desenvolvimento sem

precedentes16

”. Já o sociólogo britânico Anthony Giddens, analisando as consequências que a

modernidade, em seus aspectos comunicacionais, provocou na sociedade, ressalta que:

quando os livros eram feitos a mão, a leitura era sequencial: o livro tinha que passar

de pessoa para pessoa [...] materiais impressos atravessam o espaço tão facilmente

quanto o tempo porque podem ser distribuídos para muitos leitores mais ou menos

simultaneamente. Apenas meio século depois do aparecimento da Bíblia de

Gutemberg, centenas de casas impressoras espalhavam-se pelas cidades da Europa

[...] o primeiro exemplo de material impresso em massa – o jornal – surgiu

aproximadamente um século antes do advento da televisão. (GIDDENS, 2002, p.

29-30).

Essa mudança nos meios de comunicação, logicamente, promoveu alterações também

na forma de inserção do indivíduo na sociedade. A cultura de massa pôs em contato distintos

estratos sociais através da circulação de artefatos jornalísticos, cinematográficos,

radiofônicos, etc., antes materialmente atravancada, por exemplo, nos livros (MARTÍN-

BARBERO, 2015, p. 67), de circulação mais restrita.

Os intelectuais da Escola de Frankfurt viam com olhar bastante crítico os movimentos

(a circulação acima referida) dessa nova indústria, que acentuavam o caráter de alienação do

público, fruto do “processo de mercantilização acelerada a que se viram sujeitos os bens

culturais no modo de produção capitalista” (MICELI, 2005, p. 37). Segundo Paulo Silva

(2009, p. 13), “todos se tornam, afinal e em algum momento, ou situação, „unidades humanas

padronizadas e administradas‟, não porque querem, mas porque „a mão invisível‟ – do Capital

– assim o faz”.

Os meios de comunicação em massa constituem um sistema, que Pereira Neto, Loiola

e Quixadá (2010, p. 04) chamaram de “sistema orgânico”, pois visceral. Nesse sistema, cada

setor (cinema, rádio, revistas, etc.) é coerente em si mesmo e todos o são conjuntamente

(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113). O caráter articulado da indústria cultural –

16

Segundo Miceli (2005, p. 42-43), “a Revolução Industrial assinala o momento de consolidação da

racionalidade específica do capitalismo e a base das transformações ocorridas no âmbito da produção cultural. O

surgimento do cinema, primeira arte industrial, e mais o crescimento dos novos meios de comunicação de massa,

o impacto da técnica: eis alguns dos fatores capazes de explicar o conjunto de transformações que afetaram o

sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos até então vigente na sociedade

burguesa de tipo clássico”.

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31

“indústria” enquanto complexo de produção de bens e “cultural” quanto ao tipo desses bens

(BOSI, 1973, p. 40) – é reafirmado por Freitas (2005, p. 339), ao tratá-la como “um todo

autorreferente constituído por um processo contínuo de fornecimento de motivações para que

ele seja consumido em suas partes em função de sua articulação total”.

Adorno (1977, p. 287) reforça essa ideia: “os diversos ramos assemelham-se por sua

estrutura, ou pelo menos ajustam-se uns aos outros. Eles somam-se quase sem lacuna para

constituir um sistema. Isso, graças tanto aos meios atuais da técnica, quanto à concentração

econômica e administrativa”. Nesse aspecto último da concentração, as mensagens da

indústria cultural são “elaboradas no interior de grandes complexos empresariais, altamente

concentrados do ponto de vista técnico e centralizados do ponto de vista do capital; [...] como

produto, são padronizadas; sua produção e distribuição orientam-se por um critério de

rentabilidade” (GOLDENSTEIN, 1987, p. 22).

As altas cifras numéricas da indústria cultural tornariam inevitável a oferta de bens

padronizados para atendimento de demandas igualmente padronizadas. Por isso teriam tão

poucos centros de produção para atendimento de um público espacialmente disperso,

exigindo-se assim um processo racionalizado. Os padrões postos são resultado das

necessidades do público, eis o motivo de serem prontamente recebidos (ADORNO;

HORKHEIMER, 1985, p. 114).

Avançando na discussão da problemática e entendendo cada elemento do sistema

como “indústrias culturais”, ou seja, objetos empíricos encampados pelo conceito crítico

global “indústria cultural”, para Iray Carone:

os distintos meios de reprodução técnica são diferentes entre si e nos afetam, como

receptores, de maneira distinta. Saber como afetam a produção cultural e como nos

afetam social e psicologicamente é procurar entender as indústrias culturais, cada

uma em sua especificidade, sem cair na visão universal e abstrata de “a indústria

cultural”. (CARONE, 2013, p. 13-14).

Oriundos da reflexão incitada pelos frankfurtianos, os primeiros estudos que se

debruçaram acerca dos impactos da indústria cultural sobre o indivíduo e a sociedade, a partir

dos anos 1940, englobavam o rádio, o cinema, os jornais impressos, livros e revistas, assim

como a TV, (ou seja, as indústrias culturais sugeridas acima por Carone), numa época em que

a informática ainda estava longe de ser realidade, quadro diverso da contemporaneidade, já

que, tanto em celeridade quanto em volume de informação, é a internet o principal veículo de

comunicação em massa global. Nesse sentido, para Costa (2001, p. 110) “a rede mundial de

computadores, se permite pensar na existência de estruturas descentradas, aos poucos vem

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32

sendo também potencializada como mais um setor de produção articulado com outros da

indústria cultural”.

Ressaltando a não-caducidade do conceito17

, Almeida (2008, p. 145) frisa que “o

fundamento econômico presente no capitalismo tardio (com novos problemas advindos da

sociedade da informação) ainda exige a crítica cultural, único modo de não capitular e,

desvelando a falsa consciência, contribuir para a futura superação do estado de coisas”. Nessa

linha:

se o capitalismo mundial tem mudado, agregando formas mais complexas e

sofisticadas para o seu desenvolvimento, se a padronização dos produtos culturais

não é mais tão evidente, se as técnicas de produção permitem a participação de um

maior número de atores no cenário, se o consumo não é mais verticalizado, isso não

significa que possamos concluir que tais mudanças definem a fragilização e o

enfraquecimento dos processos “controlados e controladores”, sofisticadamente

administrados e previsíveis, que sempre caracterizam a atuação da indústria cultural.

(DIAS, 2000, p. 19).

Adorno, dada sua afeição e atuação profissional no campo da música erudita, até certo

momento de sua vida conduzida de forma paralela à atividade de pesquisa e docência,

projetou uma atenção mais acurada sobre a questão musical e os entremeios da produção

cultural com a economia em tempos de acentuadas transformações sociais, como será tratado

no tópico seguinte.

1.2 ADORNO: MÚSICA SÉRIA COMO FORMAÇÃO, MÚSICA LIGEIRA COMO

COMÉRCIO

O trabalho de músico passou a ser regulado pelo mercado, séculos atrás, com o

desmantelamento das cortes reais e a redução no número de postos permanentes para os

artistas do espetáculo (BECKER, 2013, p. 137), incorrendo, desde então, em um permanente

quadro de dificuldades financeiras para a maior parte dos membros dessa classe especializada

de trabalhadores urbanos. Nesse sentido, para Martín-Barbero (2015, p. 75-76), no

movimento de dessublimação da arte, quando esta se descola da esfera do sagrado para se

submeter ao jugo do mercado, ela apenas troca de amarras, pois “a arte se incorpora ao

17

Tal condição de não-caducidade se justifica pelo atual contexto tecnológico e social, que faz com que a ideia

conceitual também se sofistique, dados os constantes avanços verificados. Weber (1982, p. 164) diz que o

destino comum e o objetivo das obras científicas é serem ultrapassadas, ou seja, o sentido do trabalho científico,

em progresso intermitente, é fazer de certos postulados obsoletos com o tempo. Todavia, entende-se que, assim

como em muitos outros casos, a nulidade da conveniência conceitual atribuída à noção de “indústria cultural”

ainda não se avizinha, e, ao que tudo indica, tardará a chegar.

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33

mercado como um bem cultural, mas adequando-se inteiramente à necessidade. [...] E essa

será a „forma‟ da arte produzida pela indústria cultural: identificação com a fórmula, repetição

da fórmula”.

A arte como um domínio separado só foi possível, em todos os tempos, como arte

burguesa. [...] até o século dezoito, a proteção dos patronos preservava os artistas do

mercado, mas, em compensação, eles ficavam nesta mesma medida submetidos a

seus patronos e aos objetivos destes. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 147).

Adorno e Horkheimer (1985) sugerem ainda que, pelo fato do “atraso” no

desenvolvimento capitalista europeu (sobretudo alemão), comparado ao ocorrido nos EUA no

início do século XX, a arte europeia ganhou um suspiro a mais de autonomia. Analisando o

contexto europeu no século XIX, Ortiz (1998, p. 66) diz que “o processo de autonomização

das artes é contemporâneo ao florescimento de uma cultura de mercado. [...] A burguesia

permite [...] que a arte se consolide como um locus de liberdade, mas em contraposição à

própria lógica de mercado que funda a sociedade capitalista”, práticas mercantis essas

referentes a aspectos gerais da produção de bens de consumo materiais.

Assim, considerando-se a simultaneidade e o antagonismo históricos entre arte

autônoma e mercado (ORTIZ, 1998, p. 66), o seguinte aspecto é sintomático de uma investida

mais incisiva da lógica de mercado sobre a produção artística: supressão da autonomia

subjetiva, com perda do controle decisivo por parte dos compositores e cantores populares,

que passam a compor e produzir para atender aos ditames do comércio musical, na base da

produção em série e da repetição, através das “gravações de venda fácil pelo seu conteúdo

redundante e inexpressivo em termos estéticos” (JAMBEIRO, 1975, p. 147). É nesse contexto

que se dão os primeiros movimentos de inserção da arte no mercado de consumo capitalista.

Em aspecto referente ao treinamento musical erudito que recebeu desde mais tenra

infância, Pucci, Ramos-de-Oliveira e Zuin (1999) atribuem grande influência desse tipo de

conhecimento altamente especializado nos trabalhos acadêmicos de Adorno, como modelo

para o desenvolvimento de seu “método teórico” de análise social.

Compositor praticante, especialista em teoria musical e defensor da música de

vanguarda e não-comercial, Adorno tinha pouco interesse pela música produzida

pelas corporações monopolistas e consumida pela massa, exceto como meio para

ilustrar o poder da indústria cultural e a alienação das massas nas sociedades

capitalistas. (STRINATI, 1999, p. 73).

Considerando a familiaridade com o saber artístico, que transparece nas suas

percepções estéticas (FREITAS, 2003, p. 08), Adorno, na obra Sociologia da Música, busca

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conjugar cientificamente as duas áreas de interesse, através da “decifração social dos próprios

fenômenos musicais, a compreensão de sua relação essencial com a sociedade real, seu

conteúdo social interno e sua função” (ADORNO, 2011, p. 362).

No tocante à arte musical, o pensador crítico buscou demonstrar que os avanços nos

modos de reprodutibilidade mecânica da música davam a falsa impressão de democratização

ao seu acesso (FRANCO, 2008, p. 114).

Na indústria cultural dá-se isso: o que aparece como cultura circula como

mercadoria [...] despojada que é da sua pureza espiritual pela pressão das

contingências materiais mais subalternas [...] os produtos da indústria cultural não

representam, portanto, uma forma “amesquinhada” de cultura, mas simplesmente

não têm como cumprir a sua promessa: serem cultura [...] porque são produzidos e

difundidos como se fossem mercadorias. (COHN, 1998, p. 17).

Tendo existido até hoje somente como produto da burguesia que incorpora como

contraste e imagem toda a sociedade, a registrando esteticamente (ADORNO, 2004, p. 104), a

música é, dentre as mercadorias da indústria cultural, a que mais interage com os media

(DIAS, 2000, p. 15).

A importância da música como mercadoria cultural também pode ser avaliada com a

proximidade e a empatia, intimidade que ela consegue estabelecer com os

indivíduos, justamente pela capacidade de sensibilizar as pessoas, a partir das

estruturas que se apresentam pelos vários meios. (LIMA, 2010, p. 26).

Como resultante dessas reflexões, tem-se que a música ligeira (popular), aquela

propagada pela grande mídia, funcionaria como “cimento social” que promove o

“ajustamento psíquico” do indivíduo às condições massificadas da vida moderna (BARROS,

2008, p. 78).

Goldenstein (1987, p. 21) ressalta que os frankfurtianos usam a categoria de mediação

e a noção de ideologia como ferramenta de análise, ao denunciarem a transformação da

produção cultural em mais um artefato de consumo. Nesse aspecto, para Jaime Ruiz, a

perspectiva de Adorno:

estrecha a la música con el mundo de la ideología y es precisamente por esto por lo

que la obra de Adorno se diferencia radicalmente de toda la sociología de la música

anterior y supone un nuevo punto de partida. [...] Los estudios de Adorno parten de

los enfoques de la teoría marxista a la que criticará por considerar que establece una

imagen simplista que presenta a la obra musical como un reflejo de la estructura

económica de la sociedad en la que se crea. El objetivo de su obra no es solo la

crítica de la música, sino también la de la sociedad. Su aportación supera las

limitaciones marxistas para tomar en consideración el auge y los efectos de la

tecnología y de la organización económica moderna que permite el desarrollo de la

cultura de masas y, en consecuencia, la creación de una audiencia de masas.

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Sostiene que si bien el arte debería ser un fin en sí mismo, en todos los niveles, se

hace un uso insidioso de él para reforzar la falsa conciencia del público. Sus estudios

parten siempre de la obra en sí y de la estructura musical de que ésta hace gala, al

objeto de concretar cómo en la misma se deposita, se estructura y toma forma la

ideología. [...] uno de los rasgos más definitorios de la sociología de la música de

Adorno consiste en dilucidar los puntos de contradicción dialéctica con el fin de

poner en evidencia las fracturas internas del pensamiento y de la realidad. Adorno

establece un análisis del hecho musical que no se cierra en la mera descripción de la

música en sí misma. (RUIZ, 2012, p. 80).

Buscando distanciar-se do marxismo ortodoxo, calcado nos elementos econômicos

como modelo principal na tentativa de explicar a sociedade, os frankfurtianos pensam uma

teoria das instituições culturais em conjunto à formação e consolidação das sociedades

capitalistas (STRINATI, 1999, p. 64).

Nesse sentido, as contradições verificadas na relação entre produção e recepção

musicais são mais um campo onde se manifestam a problemática e a complexidade sociais

(ADORNO, 2011, p. 57), daí a importância de se pesquisar sobre tal conexão.

Somente na era do cinema sonoro, do rádio e das formas musicais de propaganda, a

música ficou, precisamente em sua irracionalidade, inteiramente sequestrada pela

ratio comercial [...] forma-se assim um tipo de estilo musical que, por mais que

proclame a pretensão irrenunciável do moderno e do sério, se assimila à cultura das

massas em virtude de uma calculada imbecilidade. (ADORNO, 2004, p. 15).

Adentrando no aspecto da atuação do mercado fonográfico, mais privilegiado neste

trabalho, verifica-se que os monopólios da música se mostram bastante versáteis, donos de

um vasto repertório em estratégias de venda de sua produção em nível global (CARONE,

2003, p. 492), revelando que “há, entre a criação e a comunicação da música ao público, um

processo maior de comunicação que condiciona e determina a produção da „canção de

massa‟”, como pesquisou Othon Jambeiro (1975, p. 139).

Uma obra da “alta cultura” do século XIX como uma peça de Beethoven, por

exemplo, no momento em que é reproduzida em cassete, bares ou rádios, perde sua aura, seu

caráter de “distinção”, se igualando enquanto “mercadoria” aos anúncios comerciais narrados

entre notícias do cotidiano (FREITAG, 1987, p. 57).

Segundo Carone (2003, p. 492), “a regra de ouro para se comercializar os clássicos é a

de converter a cultura em pseudocultura musical, a formação do ouvinte em semiformação e a

apreciação musical em diversão18

”. Sustenta-se a máxima “divertir-se significa estar de

18

Jambeiro (1975, p. 146) diz que “o objetivo da canção dos nossos dias parece ser, acima de tudo, o

divertimento e a emoção”. Contudo, segundo Blanning (2011, p. 58), desde o século XVIII, quando “a música

desenvolvida por Haydn, Mozart e Beethoven e seguidores se tornara complexa demais para o grande público,

[...] (este) se voltara para os (compositores) italianos em busca de simples diversão”. Embora tal proposição não

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acordo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 135), ou seja, diversão implica resignação

(FRANCO, 2008, p. 113). Conforme Martín-Barbero (2015, p. 74-75), a partir dessa postura

opta-se por tornar “suportável uma vida inumana, uma exploração intolerável [...] (anulando

mesmo a) capacidade de estremecimento e rebelião”. Para Adorno e Horkheimer (1985, p.

129), “a quantidade de diversão organizada converte-se na qualidade da crueldade

organizada”.

Nesse aspecto da cultura simulada, é ponto relativamente comum que a motivação da

existência da arte é a promoção do júbilo. Contudo, a crítica de Adorno recai em saber de que

espécie de prazer está se falando, pois a diversão e o relaxamento proporcionados pela

indústria cultural, para ele, aniquilavam as capacidades do intelecto humano (FREITAS,

2003, p. 27-28).

Assim, na música ligeira (comercial), o poder do detalhe é substituído pelo princípio

da substitutibilidade. Nesse tipo de produto, o favoritismo do caráter mercantil sobre o caráter

estético dá aos mecanismos de distribuição tanta importância quanto ao conteúdo do produto

distribuído (ADORNO, 2011, p. 105).

Assim como o cinematógrafo influenciou sobremaneira a produção cinematográfica, a

introdução do fonógrafo19

provocou mudanças no rito de audição da música, passando do

espetáculo ao vivo à forma de execução mecânica (PUTERMAN, 1994), à proporção que

modificou também seu sentido social (CANCLINI, 1983, p. 82).

Adorno vai mostrar como a invenção de um certo número de descobertas técnicas

bem como modificações padronizadas da sociedade de consumo contemporânea

modificaram consideravelmente o sensorium humano, particularmente a estrutura da

audição musical. De um lado a fetichização da música ligeira, da música popular,

[...] no polo oposto um processo semelhante de estandardização dos hábitos de ouvir

– a regressão da audição [...]. Registram-se modificações históricas no ato de

compreender e sentir a música. (PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA; ZUIN, 1999, p.

141).

se encaixe na noção de mercantilização da cultura pensada por Adorno, visto que mesmo a edição de partituras

impressas estava ainda incipiente e os fonogramas e a radiofonia, na época dos “grandes compositores

clássicos”, estavam por vir, evidencia-se já em séculos anteriores que “a queixa de que a música se tornara

popular, comercial, vulgar e superficial era um tema favorito dos periódicos musicais que proliferaram” nos

primeiros anos do século XIX, tomando a popularização como sinônimo de vulgarização (BLANNING, 2011, p.

117). 19

Nesse ponto cabe ressaltar que “o fonógrafo, [...] não foi concebido para reproduzir gravações musicais. No

entanto, foi como máquina de entretenimento que ele se difundiu” (DIAS, 2000, p. 34). Conforme Abreu (2009,

p. 108-109), há um “carácter arbitrário da atribuição das origens da indústria fonográfica ao aparecimento dos

primeiros equipamentos de registro sonoro. [...] existe uma descoincidência razoável entre o uso atribuído pelos

inventores aos novos aparelhos e aqueles que foram sendo reinventados na relação entre condicionantes técnicas

e tecnológicos e o universo dos seus utilizadores: inventores, divulgadores, comerciantes e públicos. [...] As

limitações tecnológicas e técnicas relativas à própria gravação sonora obstaram a que o fonógrafo se tornasse, de

imediato, num dispositivo de comunicação, no sentido em que Edison o imaginou. Entretanto, a divulgação dos

aparelhos em exposições, feiras industriais e em exibições nos laboratórios, nas ruas e nos estabelecimentos

comerciais revelou o potencial dos equipamentos para o entretenimento [...]”.

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De acordo com Trotta (2006, p. 12), “até o início do século XX, a existência imaterial

da música dificultava sua caracterização enquanto produto [...] a música em si, mesmo quando

assinada, só passa a ser considerada objeto mercantil a partir da invenção e posterior

popularização do fonógrafo20

”. Ou seja, assim como o rádio e o disco “industrializaram” o

som, os meios de reprodução disseminaram-no, alterando decisivamente o papel e o lugar

social da música (WISNIK, 1987, p. 116), mudança essa devidamente caracterizada nas

palavras de Frith (1988, p. 11): “the contrast between music-as-expression and music-as-

commodity defines twentieth-century pop experience21

”. Logo abaixo, o autor desenvolve esta

ideia:

The development of a large-scale record industry marked a profound transformation

in musical experience, a decline in established ways of amateur music-making, the

rise of new sorts of musical consumption and use. Records and radio made possible

new national (and international) musical tastes and set up new social divisions

between “classical” and “pop” audiences. The 1920‟s and 1930‟s marked the

appearance of new music professionals-pop singers, session musicians, record

company A&R people, record producers, disc jockeys, studio engineers, record

critics, etc.22

(FRITH, 1988, p. 13).

Da mesma forma, ressaltando os papéis dos veículos comunicacionais e do

contingente receptor no processo geral de transformação da música em artefato

mercadológico, note-se que a composição musical apenas se encerra como fenômeno social

através de um processo de comunicação que englobe veículo e público. Só a partir daí a

canção composta passa a existir socialmente (JAMBEIRO, 1975, p. 2).

A partir da possibilidade técnica de captura e compactação do conteúdo musical em

um meio material físico, independentemente do formato (cilindro, disco de cera, vinil, fita

20

Contribuindo com outro viés sobre esse processo, Gonzáles (2013, p. 147) diz que “tanto o desprezo à relação

entre criação musical e mercado quanto a prevenção contra os meios mecânicos de reprodução do som

alimentaram a ideia de que a música urbana era inferior e desprezível, por trazer dentro de si o dinheiro e a

máquina, duas particularidades reprováveis da modernidade capitalista, segundo a visão romântica”. Apesar de

não ser considerado um pensador manifestamente vinculado à corrente romântica, “Adorno (com Horkheimer)

não retoma menos, por sua vez, as críticas tipicamente românticas à sociedade burguesa: o declínio da cultura, a

transformação da arte em simples bem de consumo, a „destruição de deuses e de qualidades‟, a quantificação

generalizada, a redução de todo valor à „quantidades abstratas‟. [...] Percebe-se mesmo, aqui ou ali, uma certa

nostalgia pelo passado alemão pré-industrial [...]” (LÖWY, 2009, p. 20). 21

“O contraste entre música-como-expressão e música-como-mercadoria define a experiência pop do século

XX”. 22

“O desenvolvimento de uma indústria fonográfica de grande escala marcou uma profunda transformação na

experiência musical, um declínio nos modos estabelecidos de fazer música amadora, o surgimento de novas

formas de consumo e uso musical. Os discos e as rádios tornaram possíveis novos gostos musicais nacionais (e

internacionais) e criaram novas divisões sociais entre os públicos „clássico‟ e „pop‟. As décadas de 1920 e 1930

marcaram a aparição de novos cantores pop profissionais de música, músicos de sessão, pessoal de A&R das

gravadoras, produtores de discos, disc jockeys, engenheiros de estúdio, críticos de discos, etc.”.

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cassete, CD, etc.), os artistas e suas obras foram comprimidos e postos dentro de uma capa,

“protegidos por um plástico, num show permanente e baratinho pra você23

”.

Voltando a Puterman (1994), a indústria cultural é caracterizada pela produção em

série de bens culturais, que buscavam assim a uniformização e racionalização do processo

produtivo24

, excluindo o caráter espontâneo da arte e visando se transformar em fonte de

exploração econômica administrativamente centralizada, em busca de lucros e garantia de

adesão do público consumidor ao sistema capitalista (DUARTE, 2003, p. 09).

Aliada a elementos como a crescente divisão técnica (e espacial25

) do trabalho e as

mudanças nos rituais de consumo, essa esquematização fabril se torna geradora de “salsichas”

culturais (HOBSBAWN, 1990, p. 183), no esquema da música pop.

Formalmente, a canção pop é retrabalhada para produção em massa e posteriormente

transformada na linha de montagem. Ao mesmo tempo, o seu conteúdo é pré-

selecionado e modificado para torná-la adequada à venda mais ampla possível do

produto. O segundo desses processos é de longe o mais desastroso. A produção em

linha de montagem na música (é) uma das poucas realizações realmente originais e

terríveis do nosso século nas artes [...]. (HOBSBAWN, 1990, p. 180).

Segundo Adorno (2011, p. 369-370), “com a crescente concentração das instâncias de

distribuição, bem como de seu poder, a liberdade na escolha daquilo que se oferece à escuta

tende a diminuir. Nisso, a música integrada não mais se distingue de quaisquer outros bens de

consumo”, consumo esse que na contemporaneidade se transformou numa forma de trabalho e

obrigação (ROCHA, 2007, p. 20). Dessa maneira, “a música, boa ou má, não é mais percebida

analiticamente, mas aceita em bloco como algo bom de consumir por imposição do mercado,

que de antemão nos adverte que ela é boa, eximindo-nos de todo juízo” (ECO, 1979, p. 88).

Assim, Adorno chamava a atenção para os aspectos negativos da produção massiva

quando mostrava que os avanços da técnica provocavam regressão da audição e não-fruição

da música, tornando as plateias passivas e consumidoras de um objeto fetichizado (PUCCI;

RAMOS-DE-OLIVEIRA; ZUIN, 1999, p. 34). Para o frankfurtiano, “só a arte mais elevada, a

23

Fragmento extraído do texto de apresentação da coletânea junina Pau de Sebo Vol. 5 (CBS, 1971), escrito pelo

jovem funcionário da gravadora, o baiano, ainda anônimo, Raul Seixas (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p.

187). 24

Para Jambeiro (1975, p. 141), “a indústria do disco apresenta semelhanças estruturais com as outras indústrias

dedicadas à produção cultural e com qualquer outra indústria que produza objetos materiais em massa. [...]

Também nela se observa um grande número de atividades especializadas, desde a idealização do que produzir

até a produção propriamente dita: a produção do disco, o arranjo, a gravação, a direção da orquestra, a

„mixagem‟, o planejamento gráfico e a elaboração do texto da capa, o „corte‟ no acetato, etc.”. 25

De acordo com Habert (1974, p. 67), em sua pesquisa sobre o surgimento e desenvolvimento da fotonovela no

Brasil enquanto mercadoria cultural, “mais do que qualquer outro produto, (a fotonovela) tem as suas fases de

trabalho distanciadas, tanto no espaço, quanto no tempo. As fotonovelas consumidas no Brasil, em sua grande

maioria são produzidas na Itália ou França e aqui apenas montadas”.

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mais pura, a mais abstrata poderia escapar da manipulação e da queda no abismo da

mercadoria e do magma totalitário” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 87). Logo, o oposto da

“música séria”, a chamada “música ligeira”, deve chamar a atenção sem causar estranhamento

aos ouvidos médios. Algo que transite na fronteira entre o impregnante e o popularmente

banal (ADORNO, 2011, p. 100-101).

Experimentar dentro dos limites do padrão comercializável não é o fator que tira o

sono dos agentes do business. A coisa fica realmente preocupante quando o consumidor

demonstra (comportamento detectável através dos índices de venda, downloads, views, etc.)

querer uma novidade de fato (HOBSBAWN, 1990, p. 184).

Ou seja, dentro da lógica de acumulação na cultura massiva há um certo nível tolerado

(e de certa forma incitado) de “diversidade”, o que não significa que “a indústria cultural

possa produzir diferenças incessantemente. [...] é até possível haver uma multiplicidade de

gêneros e uma grande variedade de produtos dentro de cada um deles, mas nunca a dissolução

dos gêneros como tal sob a lógica formal de cada artefato” (DURÃO, 2008, p. 40). Como diz

Canclini (1983, p. 87), verifica-se uma “necessidade de homogeneizar e ao mesmo tempo

manter a atração que o exótico exerce”. Em suma, visando a comercialização e a

rentabilidade, diferentes (mas familiares) gêneros são constantemente oferecidos ao público

(STRINATI, 1999, p. 84).

Corroborando com essa ideia, Bosi (1973, p. 44) sugere que “para obviar o risco de

padronização absoluta, a indústria cultural lança mão de indivíduos cuja função é a de mover

as águas da mesmice”, como no exemplo dado pela própria autora das ocasiões em que

escritores renomados são convidados para escrever roteiros fílmicos.

Nos países industrialmente desenvolvidos, a música ligeira se define pela

padronização: seu protótipo é o hit [...] A principal diferença entre um hit e uma

canção séria [...] estaria no fato de que a melodia e a letra de um hit teriam de ficar

inteiramente limitadas a um esquema inflexivelmente estrito, ao passo que canções

sérias permitiriam ao compositor uma configuração livre e autônoma [...] A

padronização estende-se do arranjo geral às individualidades [...] os ápices métricos

e harmônicos de tais hits, quer dizer, o começo e o fim de suas partes individuais,

devem estar impregnados pelo esquema standard [...] o hit remete a algumas poucas

categorias básicas da percepção, conhecidas à exaustão, sendo que nada de

verdadeiramente novo pode transcorrer, apenas efeitos calculados que temperam a

mesmice sem colocá-la em perigo, fiando-se eles mesmos, uma vez mais, nos ditos

esquemas. (ADORNO, 2011, p. 92-93).

O cenário descrito pelos autores abordados até este ponto do trabalho revela o

paradigma dialético da indústria cultural, no sentido que se incita o consumo constrangendo a

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produção ao mesmo tempo que se constrange o consumidor, estimulando uma ampla

produção padronizada.

Em outro aspecto, os produtos culturais de ampla circulação incitam reações as mais

diversas, elas mesmas absorvidas pela indústria cultural na rodada seguinte do processo,

desde que contribuam para a continuidade no funcionamento da engrenagem consumista

(COHN, 1998, p. 23). Nesse sentido, para Dias (2000, p. 26), “é surpreendente constatar que a

atual sofisticação da estratégia de segmentação traz para o mercado os produtos „marginais‟,

considerados como sendo de difícil assimilação, a partir do pressuposto de que, para o

mercado, tudo interessa”.

A partir dessas visões, deduz-se que é extremamente difícil uma modalidade de

manifestação cultural que se mostre totalmente imune aos ardis da indústria, já que “até

mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do

ritmo de aço” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113). Também o chamado movimento

contracultural se torna facilmente assimilado pela sociedade administrada26

(BAHIA, 2004, p.

123). Enfim, “as classes dominantes [...] procuram apropriar-se do que não conseguem anular

ou reduzir, utilizando as formas de produção e de pensamento alheias através da sua

refuncionalização para que a sua continuidade não seja contraditória com o crescimento

capitalista” (CANCLINI, 1983, p. 110).

Além da capacidade de homogeneização do mercado, o que mais interessa aos agentes

da indústria é o total controle do processo, através do planejamento sistemático das etapas de

produção e circulação dos produtos (COHN, 1998, p. 24). Com isso, o aspecto parasitário

dessa indústria se revela, pois ela não pode prover o seu próprio material, somente processar o

já disponível. Sob essa lógica não cabem quaisquer preconceitos, pois o único critério para

vender é a possibilidade de que alguém comprará (HOBSBAWN, 1990, p. 184).

Como resultante de seu caráter explorador, a indústria cultural não assume postura de

vanguarda. Ela, quase sempre, entra em cena no vácuo de um movimento que possibilite o

26

Por exemplo, a banda britânica Crass já havia, em 1978, decretado a morte do punk, apenas dois anos após o

surgimento dos primeiros conjuntos do estilo, caracterizado genericamente pela postura de afronta ao sistema

capitalista e ao conjunto de valores da sociedade tradicional, na música Punk is Dead (O punk está morto): “Yes

that's right, punk is dead/ It's just another cheap product for the consumers head/ Bubblegum rock on plastic

transistors/ Schoolboy sedition backed by big time promoters/ CBS promote the Clash / But it ain't for

revolution, it's just for cash/ Punk became a fashion just like hippy used to be […] Punk became a movement cos

we all felt lost/ But the leaders sold out and now we all pay the cost […] Do I need a business man to promote

my angle?[…] The scorpions might attack, but the systems stole the sting”. (“Se é assim, o punk está morto/ É

somente outro produto barato para a cabeça do consumidor/ Rock chiclete em transistores de plástico/ Sedição

escolar apoiada por grandes promotores/ CBS promove o The Clash/ Mas não é por revolução, é só por dinheiro/

O punk se transformou numa moda como foram os hippies [...] O punk se fez um movimento porque nos

sentíamos perdidos/ Mas os líderes se venderam e agora nós pagamos o prejuízo [...] Preciso de um empresário

para promover meu ângulo? [...] O escorpião pode atacar, mas o sistema roubou a picada”).

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lucro certo, quando os valores em jogo já estão “consolidados e aceitos pela maioria da

população”, como exemplificado por Nilda Jacks (1998, p. 131) em sua pesquisa sobre o

movimento da música nativista gaúcha dos anos 80. Conforme demonstra a autora, o

fenômeno provocado por esse tipo de música regional só foi aderido pela ampla indústria

cultural sulista (com exceção do rádio) após seu reconhecimento junto ao público local por

meios independentes, quando atingiu o status de produto vendável. Portanto, “correr riscos” é

uma expressão que não agrada aos ouvidos dos abastecedores desse tipo de mercado.

Nesse aspecto, o episódio no qual o diretor do selo Victor, pertencente à gravadora

RCA, impediu Luiz Gonzaga de gravar músicas na condição de intérprete vocalista, já que,

até então, o sanfoneiro era contratado como músico estritamente instrumentista, é

emblemático, pois o padrão vocálico estabelecido naquele momento era o do “vozeirão” à la

Nelson Gonçalves e Francisco Alves. Para as intenções comerciais da indústria fonográfica, a

“voz frágil” do sanfoneiro no disco representava um investimento de risco. Não por acaso,

tratando-se de um meio onde quem dá as cartas do jogo é o capital, o desígnio de Gonzaga só

foi atendido mediante a ameaça do sanfoneiro em gravar na concorrente, a Odeon

(MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 30).

Sob o ponto de vista de Umberto Eco (1979, p. 296) “a música de consumo é um

produto industrial que não mira a nenhuma intenção de arte, e sim à satisfação das demandas

do mercado27

”. Nessa linha, ao fazer um estudo sobre a transição da música caipira paulista

do início do século XX para a música sertaneja destinada ao mercado a partir dos anos 1960,

Caldas (1979) denota a concepção de que a indústria cultural não tem a função de satisfazer o

gosto popular, senão explorá-lo, mesmo que de forma velada.

Para Durham (1980, p. 14), a função da indústria cultural consiste em difundir

amplamente “produtos culturais elaborados por especialistas e, implicitamente, padrões

cognitivos, estéticos e éticos que lhes são subjacentes. [...] pretensão de uniformização que

[...] sobrepõe-se a esta heterogeneidade real em termos de uma manipulação puramente

simbólica”. Sob essa prática, a manifestação da criatividade artística subjetiva na indústria

cultural é constantemente tolhida e obstaculada, cada vez mais subordinada à lógica comercial

(ORTIZ, 1988, p. 147-148).

Como diz Zuin (2001, p. 10), “a produção cultural que se submete quase que por

completo ao seu caráter de valor afasta-se de si própria, ou seja, termina por negar toda

possibilidade de felicidade ao dissimular um verdadeiro estado de liberdade”. Nesse viés,

27

De acordo com Lyra (1982, p. 23), “se uma obra de arte não conseguir comover nem informar, é por que não é

de arte: é só „obra‟”.

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Adorno (1977, p. 289) alerta sobre “o que na indústria cultural se apresenta como um

progresso, o insistentemente novo que ela oferece, permanece, em todos os seus ramos, a

mudança de indumentária de um sempre semelhante”. Essa postura padronizada, que para

Adorno deve ser interpretada mais do ponto de vista sociológico do que internamente

musical28

(ADORNO, 2011, p. 98), se coloca no ponto antípoda da pretensa razão de ser da

arte, ao se especializar em fazer o que já foi feito, ou seja, mais do mesmo (CALDAS, 1979,

p. 25), até o ponto em que a embriaguez programada e administrada deixe de ser embriaguez

(ADORNO, 2011, p. 91). Em suma, o que esse tipo de atividade industrial pretende é uma:

produção em série de bens culturais para satisfazer de forma ilusória necessidades

geradas pela estrutura de trabalho e também para manter a carência por novos

produtos. O que se estabelece é um grande sistema em que as pessoas são

constantemente enganadas em relação àquilo de que necessitam. Os produtos

fornecidos pelos meios de comunicação de massa passam a ideia de que as

necessidades que eles satisfazem são legítimas, próprias dos seres humanos como

seres livres, que podem exercer seu poder de escolha, quando, na verdade, todas as

opções são sempre pensadas a partir de um princípio que torna todas as alternativas

idênticas, pois todas acabam sendo meramente mais uma oportunidade de exercer o

poder de compra. (FREITAS, 2003, p. 18).

Como aponta Martín-Barbero (2015, p. 197), o lugar central ocupado pelos Estados

Unidos no desenvolvimento das indústrias culturais no começo do século XX e,

consequentemente, para o pensamento crítico adorniano, se intensifica quando “o „estilo de

vida norte-americano‟ pôde erigir-se como paradigma de uma cultura que aparecia como

sinônimo de progresso e modernidade”.

Diferentemente dos países europeus, a lógica comercial se estabeleceu no rádio

norteamericano desde os seus primeiros momentos, tornando essas estações referências em

técnica e conteúdo, favorecendo também a propagação da música popular dos EUA pelo

globo (CARONE, 2011, p. 152). O sociólogo britânico Simon Frith, explicando o crescimento

da influência norteamericana na produção cultural global29

, relata que:

28

Nesse sentido, Bertoni (2001, p. 77) alude aos aspectos relacionados ao mundo do trabalho e sua precarização,

objetos de investigação sociológica, quando afirma que a “mercantilização da música revela, também, que

muitos músicos são escravos das gravadoras, até por questões de sobrevivência”, sendo que muitos deles

“parecem permanecer atônitos diante do sistema, adaptando-se às suas exigências, sem procurarem defender-se

nem tampouco garantir uma melhor participação na produção” (JAMBEIRO, 1975, p. 62). Ainda sobre esse

ponto, Ortiz (1988, p. 90) afirma que “são recorrentes as queixas em relação à má remuneração, e os relatos de

vida revelam, inclusive, determinadas formas de contratação que estão mais próximas da herança patriarcalista

da sociedade brasileira do que das necessidades do mercado”. Para Rocha (2007, p. 100), no tempo áureo do

rádio, “mesmo os grandes cartazes [...] viviam o problema da carga excessiva de trabalho, participando de vários

programas e até desempenhando diversas atividades ao mesmo tempo”. Em todos os casos, o objetivo maior é,

mormente, proteger os interesses da empresa e a circularidade do capital. 29

Como diz Vianna (1995, p. 181-182), “os Estados Unidos de 1930 já contavam com uma indústria cultural

desenvolvida e em via de solidificar sua hegemonia em todo o mundo [...]. Os norteamericanos foram pioneiros

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43

The USA‟s influence on international popular music, beginning with the world-wide

showing of Hollywood talkies, was accelerated by America‟s entry into World War

II - servicemen became the record industry‟s most effective exporters. By the end of

the War the pop music heard on radio and records across Europe (and South East

Asia) was either directly or indirectly (cover versions, copied styles) American.

Hollywood‟s 1930s success in defining “popular cinema” was reinforced in the

1940s and 1950s by the American record industry‟s success in defining “popular

music”.30

(FRITH, 1988, p. 20).

Nesse aspecto, Adorno e Horkheimer (1985, p. 124) dizem que “não é à toa que o

sistema da indústria cultural provém dos países industriais liberais [...] a dependência

econômica em face dos Estados Unidos, em que se encontrou o continente europeu depois da

guerra e da inflação, teve uma parte nesse processo”.

Richard (1988) afirma que na Alemanha dos teóricos críticos, a partir de 1924, os

Estados Unidos estavam em moda, simbolizando uma nova maneira de viver com seus

automóveis de grande velocidade, construções gigantescas, jazz e espetáculos de todos os

tipos, técnicos e esportivos, quadro que se alterou a partir da crise financeira de 1929, que

acarretou na implosão do mito do paraíso americano.

Em outro sentido, a alegada penumbra de pessimismo que ronda o pensamento de

Adorno é encarada por Barros como um resultado direto do contexto histórico no qual

escreveu o frankfurtiano:

imaginemos a cena: o marxista Adorno em seu exílio na babilônia do capitalismo;

contrariado, ele escuta a música das Big Bands e do Tin Pan Alley, na rua, nos cafés,

nas lojas de música; a Broadway é onipresente. Enquanto isso, sua Alemanha natal,

berço da grande música, sofre a devastação do nazismo, do anti-semitismo, da

intolerância política. A alegria compulsória e a superficialidade da cultura de

massa americana o agridem, ele sabe que a riqueza deste país muito deve ao flagelo

da guerra que devasta a Europa. Neste contexto, o que esperar senão uma

musicologia ácida, pessimista? (BARROS, 2008, p. 81-82).

na produção em massa e também nas estratégias de marketing [...]. No final dos anos 1920 as companhias de

disco norte-americanas também penetraram em mercados de todo o mundo”. Sobre o pioneirismo

norteamericano nesse processo, segundo Strinati (1999, p. 36), “por ser concebida como resultado da produção

industrial e do consumo de bens culturais, é relativamente fácil identificar os Estados Unidos como a terra natal

da cultura de massa, uma vez que é a sociedade capitalista mais associada a tais processos”. 30

“A influência dos EUA na música popular internacional, começando com a exibição mundial de filmes falados

de Hollywood, foi acelerada pela entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial - os recrutas tornaram-

se os exportadores mais eficazes da indústria fonográfica. No final da guerra, a música pop ouvida em rádios e

discos em toda a Europa (e Sudeste da Ásia) era direta ou indiretamente (versões, estilos copiados) americana. O

sucesso de 1930 de Hollywood na definição de „cinema popular‟ foi reforçado nas décadas de 1940 e 1950 pelo

sucesso da indústria fonográfica americana na definição de „música popular‟”.

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44

No entanto, há os que percebem a questão a partir de um panorama menos

apocalíptico, mas não por isso menos desalentador31

. Sob esse prisma, deve-se ter em conta

que as estratégias da indústria cultural de apropriação da obra dos artistas não incidem de

forma unilateral sobre o público, como se este não passasse de uma massa passiva e inerte,

dotado de um papel simplesmente secundário, mas que trata-se de uma relação de mão dupla,

onde o mercado também sofre interferências do contingente receptor, estabelecendo-se assim

as transformações na produção artística de um grupo/gênero musical, exigindo sua

reinvenção. Se, como Fischer (1981, p. 75) afirma, “a arte se origina de uma necessidade

coletiva”, nesse “coletivo” deve caber também o público, tendo voz ativa no processo de

demanda, produção e consumo dessa arte.

Às vezes os economistas mais atentos ao desenvolvimento material das formações

sociais possuem uma concepção teológica do capitalismo (pensam-no como igual a

Deus: onipotente, onisciente, onipresente) e exageram a sua hegemonia até

enxergarem tudo que acontece como um efeito mecânico das suas determinações

macroestruturais. (CANCLINI, 1983, p. 72).

Nesse aspecto, Jacks (1990, p. 28) diz que “o produto da indústria cultural é

hegemônico, mas não é recebido com passividade e de forma monolítica. Muitas vezes não

tem a menor repercussão, pois não atinge sequer o nível de compreensão do receptor”. Ou

seja, a indústria cultural não é totalmente arbitrária, mas age segundo um planejamento

(FRANCO, 2008, p. 115).

Nessa linha de raciocínio, para Eagleton (1993, p. 257), “Adorno é um teórico bastante

dialético para imaginar que qualquer unidade ou identidade seja sempre, por si própria,

terrorista”. Nas palavras dos próprios frankfurtianos, “a demanda ainda não foi substituída

pela simples obediência” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 128). Sugestão corroborada

na seguinte passagem de Introdução à Sociologia da Música:

O conhecimento dos mecanismos sociais que determinam a escolha, a divulgação, o

efeito, e, sobretudo, as publicidades impressas em alto relevo [...] poderia

tranquilamente induzir à crença de que o efeito da música ligeira é algo por

completo predeterminado. Os hits de sucesso seriam, pois, simplesmente “feitos”

pelos meios de comunicação de massa, sem que, entretanto, o gosto do ouvinte

exercesse qualquer influência sobre isso. Mas, mesmo sob as atuais condições de

concentração de poder da indústria cultural, essa concepção seria demasiadamente

31

No artigo Dois olhares divergentes sobre a cultura de massa, Barros confronta as visões distintas de dois

pensadores acerca da industrialização da produção musical: Adorno e Antoine Hennion. Em certo momento do

texto, Barros (2008, p. 81), interpretando a visão de Hennion, diz que “a música popular promove a identificação

de classes até então separadas e fornece uma auto-imagem para aqueles que se acham socialmente deslocados.

Para além da alienação que Adorno viu, há espaço para a subversão e, quem sabe, até mesmo para a revolução”.

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45

simples [...] para que os hits tenham êxito, eles devem satisfazer, em linhas gerais, as

regras do jogo que se acha atuante no momento. (ADORNO, 2011, p. 106).

Voltando a Jacks (1998, p. 29), “a homogeneização cultural só poderia ser alcançada

em situação de homogeneidade social”, ou seja, faz-se aqui referência a um cenário de plena

igualdade no acesso à cultura, saúde, educação e lazer, onde, sob tais condições, um produto

cultural seria tão uniformemente recebido quanto a sociedade que o produz, o que está bem

distante da realidade social brasileira e dos demais países de industrialização tardia.

É importante não subestimar nem supervalorizar a capacidade autônoma da

audiência na apropriação e negociação dessas mensagens, evitando, de um lado,

adotar uma visão heroica da recepção a partir de uma concepção do mercado como

lugar de expressão da liberdade e, de outro, reduzir a uma dimensão estritamente

ideológica o que se passa na complexa relação entre mídia e cultura. (ROCHA,

2007, p. 23).

O historiador britânico Hobsbawn contribui à discussão destacando que:

se a indústria não conseguiu até hoje fazer do público um bando de idiotas é porque

o público não só não quer apenas se sentar calado, como população passiva, para

assistir ao show: quer também fazer seu próprio entretenimento, participar

ativamente e o que é mais importante, socialmente. (HOBSBAWN, 1990, p. 37).

Em suma, deve se apreender uma obra cultural como produto da interação e

interpenetração dialética entre arte e sociedade, oriunda do talento criador do artista com o

meio (LYRA, 1982, p. 26).

Assim, analisando o surgimento do baião nas metrópoles sudestinas enquanto fruto de

uma dinâmica cultural baseada na ideia de movimento (simbólico, populacional, etc.), a

pesquisadora Sulamita Vieira usa a noção de “construção” como forma de combater a visão

de unilateralidade dos media atuando sobre o público consumidor e a cultura. Para a autora, os

próprios artistas fornecem sua marca peculiar, a partir da sua história de vida, vivências e

experiências pessoais, contribuindo de forma decisiva nessa construção (VIEIRA, 2000).

Nesse sentido, Freitas (2005, p. 342) afirma que “a indústria cultural sempre conta com um

resto de bom senso por parte de seus consumidores”.

Apesar do caráter de imposição restritiva, seja ela ostensiva de fato (como nos tempos

de censura institucional em governos autoritários) ou “apenas” simbólica (sob a arbitragem

dos agentes da indústria do entretenimento), pretendida pela estética da padronização, “as

ações e representações da Cultura Popular se inserem num contexto de reformulação e de

resistência à disciplina e à vigilância” (CHAUI, 1986, p. 33).

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46

Portanto, apesar da produção de música que mira o “aplauso fácil” (MARTINS, 2014,

p. 27), destinada ao grande público, obedecer a uma série de métodos e técnicas de

padronização, semelhante ao processo fabril em termos de circulação e retroalimentação do

próprio sistema produtivo, desconsiderar peremptoriamente as solicitações, tanto do coletivo

(consumidor) quanto do espírito subjetivo (artistas), é reduzir o tópico à livre veneta da

economia de mercado32

.

Um importante ponto para o desenvolvimento do presente trabalho é assinalado por

Faraco (2012, p. 23), referindo-se à análise crítica da matéria musical em tempos de produção

padronizada, quando diz: “(mesmo que) ainda exista espaço para momentos de

espontaneidade, não anula a necessidade da investigação em torno da estandardização”, ao

mesmo tempo em que se deve atentar para o risco de se suavizar os efeitos sobre a vida social

e cultural, considerando-se o avançado estágio técnico da indústria cultural (DIAS, 2000, p.

31).

Portanto, visto que Adorno considera a música ligeira ou popular, em oposição à

música séria, uma forma artística que, tornada mercadoria, promove a alienação do ouvinte e

a regressão da audição, ressalte-se que, no presente trabalho, foi buscado realizar uma análise

da atuação dos agentes da indústria cultural, a partir de determinadas estratégias de

interferência na produção simbólica do Trio Mossoró, evidenciando-se as ferramentas de

promoção do poder massificante da música popular enquanto artefato economicamente

lucrativo que, nessa qualidade, age contribuindo na manutenção do quadro sociopolítico e

econômico vigentes.

1.3 A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA NO BRASIL: IMPLANTAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO

Inicialmente, buscando não romper de forma brusca com os apontamentos teóricos

entabulados nas seções anteriores, destaco que, no Brasil, a recepção da Teoria Crítica e do

pensamento da Escola de Frankfurt como um todo, teve início a partir da metade da década de

1960, com as primeiras traduções para o português de obras de pensadores frankfurtianos

sendo publicadas ainda no final dessa década, priorizando-se os textos de Walter Benjamin,

Herbert Marcuse e Theodor Adorno (CAMARGO, 2012, p. 127-128). Desde então,

32

Em correspondência trocada entre Almirante e a famosa artista Carmem Miranda, o cantor e radialista carioca,

angustiado com o musicalmente “fraquíssimo” carnaval de 1940, revela: “Há centenas de músicas e, até agora,

faltando um mês e poucos dias para o carnaval, nada fez sucesso ainda. [...] Os autores têm andado que nem

baratas tontas, cada qual querendo gravar mais. As Rádios têm-se esfalfado, fazendo dia e noite programas

carnavalescos, sem resultado algum. [...] é como se nada estivesse acontecendo. O público se conserva numa

indiferença que espanta” (CABRAL, 2005, p. 131-132).

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47

pesquisadores brasileiros das mais diversas especialidades das ciências sociais e humanas

estabeleceram afinidades com a perspectiva do grupo alemão e buscaram, de posse desse

aporte crítico, captar a efetividade das suas teses a partir da experiência prática em um país

retido na borda do sistema capitalista global, como é o caso brasileiro.

Considerando-se que, “uma vez que todas as manifestações da cultura popular

ocorrem no interior do sistema capitalista, deve-se encontrar uma maneira de compreendê-los

juntos” (CANCLINI, 1983, p. 12), nesse ponto do texto o foco da discussão exposta até o

momento será deslocado para a experiência brasileira e para a relação de apropriação

estabelecida pelo mercado interno com os bens artísticos na prática efetiva local.

Por aqui, os primeiros passos da indústria cultural foram dados posteriormente aos

países de capitalismo avançado, fruto de um processo de urbanização e industrialização em

geral ocorrido tardiamente nos países subdesenvolvidos, em comparação aos países centrais, e

o consequente surgimento ulterior de uma sociedade urbano-industrial, já que a indústria

cultural para se estabelecer plenamente necessita um modo de produção capitalista

relativamente amadurecido (GOLDENSTEIN, 1987, p. 23).

Considerando que é somente a partir dos anos 1940 que se verifica no Brasil uma série

de atividades relacionadas a uma cultura popular de massa (ORTIZ, 1988, p. 38), Virgínia

Bessa comprova a discrepância entre a consolidação de uma indústria do entretenimento e um

sistema econômico de base competitiva no Brasil do começo do século quando constata a:

ambiguidade do lugar social dos primeiros sambistas e chorões: ao mesmo tempo

em que se inseriam na sociedade de classes, participando de um sistema de

divertimento organizado e capitalizado, mantinham relações paternalistas com os

membros das elites, perpetuando não apenas o sistema de favores, mas também a

ordem racial que se constituíra no período colonial. (BESSA, 2010, p. 165).

No prefácio à obra de Albuquerque Júnior (2013a, p. 16), Regina Duarte afirma que

no Brasil, apesar da defasagem tecnológica e da ausência de know-how, “os bens culturais

ditos populares eram produzidos, já nos anos 1920 e 1930, segundo a lógica de mercado, e

sua valorização e sucesso dependeram do crescimento das cidades e da emergência de novas

sensibilidades”, tornadas possíveis com a intensificação da vida urbana a partir da década

seguinte. Nesse período a economia nacional se desloca do campo para a cidade,

corroborando num incremento do parque industrial brasileiro e na expansão do mercado

consumidor interno em resposta às demandas oriundas do novo personagem do comprador

urbano (PEREIRA, 2001, p. 47). Portanto, deduz-se que os fenômenos de urbanização,

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48

industrialização e mercantilização da cultura caminharam de maneira paralela, em diálogos

constantes entre si.

No Brasil, grande parte dos episódios mais significativos da sua historiografia se

organizava em torno da cidade do Rio de Janeiro:

sede do governo, centro cultural, maior porto, maior cidade e cartão de visita do país

[...]. O desenvolvimento dos novos meios de comunicação, telegrafia sem fio,

telefone, os meios de transporte movidos a derivado de petróleo, a aviação, a

imprensa ilustrada, a indústria fonográfica, o rádio e o cinema intensificarão esse

papel da capital da República, tornando-a no eixo de irradiação e caixa de

ressonância das grandes transformações em marcha pelo mundo, assim como no

palco de sua visibilidade e atuação em território brasileiro. O Rio passa a ditar não

só as novas modas e comportamentos, mas acima de tudo os sistemas de valores, o

modo de vida, a sensibilidade, o estado de espírito e as disposições pulsionais que

articulam a modernidade como uma experiência existencial e íntima. (SEVCENKO,

1998. p. 522).

Foi no bojo dessa conjuntura socioespacial que surgiram os primeiros veículos de

comunicação massiva em terras brasileiras. No Brasil o rádio aparece:

como show room em 1922. Por ocasião do Centenário da Independência, ocorreu a

Exposição Internacional do Rio de Janeiro [...] dentre as diversas novidades

tecnológicas exibidas, o telefone sem fio (TSF) – nome pelo qual era conhecido o

rádio, foi uma das que causou impacto entre os visitantes do evento. (SOUZA, 2004,

p. 51).

Controlados por sociedades e clubes, das quais dependiam financeiramente, os

experimentos pioneiros do rádio por aqui foram caracteristicamente amadorísticos (ROCHA,

2007, p. 35). Seu início era mais dependente do talento e da personalidade de poucos

personagens do que de uma organização de tipo empresarial (ORTIZ, 1988, p. 39).

Nos três primeiros anos funcionavam somente duas estações de rádio, com

pouquíssimos horários de audições. Devido aos problemas de contato das galenas,

combinou-se a transmissão, com irradiações intercaladas. Uma transmitia somente

às segundas, quartas e sextas, e a outra, às terças, quintas e sábados. Aos domingos

não se ouvia rádio. Depois surgiram outras emissoras [...]. (ALMIRANTE, 2013, p.

154).

Foi a partir dos anos 1930 que houve um aumento progressivo da presença do rádio

nas residências, muito embora esse aumento tenha se dado de forma concentrada nos estados

do Sudeste, refletindo a desigualdade espacial marcante da realidade brasileira.

Assim, o rádio logo abandonaria as intenções oficiais, a contragosto das elites políticas

dirigentes da capital federal, para se transformar em veículo de comunicação popular

(CARVALHO, 2004, p. 40), incomodando certos segmentos mais conservadores da

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49

sociedade, já que transmitiam músicas feitas e cantadas pelas classes populares (CABRAL,

2005, p. 115).

Contudo, é somente após a II Guerra Mundial, junto com o processo geral de

industrialização nacional (por sua vez, também concentrado no Centro-Sul), que o rádio se

consolidou em termos de presença cotidiana nos lares. É nesse período também que se

estreitam os laços entre música, indústria fonográfica, rádio e publicidade, dinamizando o

embrionário mercado cultural brasileiro (ALVES, 2012, p. 97).

Sobre o papel institucional do Estado no processo de consolidação do rádio brasileiro,

viabilizado sem se deixar escapar demasiadamente das rígidas amarras de controle e

fiscalização oficiais, para Frota (2003, p. 17), “já durante o chamado Governo Provisório

(1930-34), Getúlio Vargas e sua equipe passaram a observar cada vez mais atentamente e até

a fomentar os progressos da radiodifusão em todo o país, sobretudo nas grandes cidades”. A

abrangência do rádio no período varguista foi favorecida pelo interesse oficial em se utilizar

desse veículo para propagação nacional do sentimento ufanista (CALDAS, 2000, p. 38). Ou

seja, logo “os revolucionários de 30 já dispunham de meios eficientes para difundir

nacionalmente suas pregações unificadoras” (VIANNA, 1995, p. 109). Nesse sentido, Martín-

Barbero (2015, p. 132) entende que “a constituição histórica do massivo, mais que à

degradação da cultura pelos meios, acha-se ligada ao longo e lento processo de gestação do

mercado, do Estado e da cultura nacionais [...]”.

Ocupando lugar central na cultura nacional entre os anos 40 e 50, era do rádio que

vinham artistas e estilos, num momento em que o setor discográfico ainda estava em

consolidação (ROCHA, 2007, p. 29). Também Vieira (2000, p. 138) afirma que “as

possibilidades de alcance do rádio, face ao desenvolvimento de tecnologias específicas, de

fato, abriram novos caminhos para a comunicação e, por sua vez, as emissoras incorporaram

técnicas para a difusão de programas de interesse popular”, além de propiciar, também,

oportunidades artísticas e perspectivas de realização para um novo tipo profissional: os

possuidores de boa voz (TINHORÃO, 1981, p. 41).

Ao longo dos anos 50, o rádio concentrou-se nos segmentos médios e pobres da

população, obtendo grande impacto devido ao seu caráter de penetrabilidade no cotidiano

doméstico e no espaço privado (ALVES, 2012, p. 326, 327). “O rádio pôs à disposição de

milhões de ouvintes um repertório musical ao qual, até bem pouco tempo, só se podia ter

acesso em determinadas ocasiões. Daí a expansão da cultura musical nas classes médias e

populares” (ECO, 1979, p. 316-317).

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50

(o rádio foi) o suporte e o meio de transmissão dos conteúdos simbólico-culturais

(com ênfase para a canção popular) que experimentou o maior crescimento nos anos

40/50, saltando de 136, em 1946, para 300, em 1950, ou seja, uma expansão de

aproximadamente 130% em apenas cinco anos. Somente em um ano, de 1949 para

1950, surgiram, no Brasil, 47 novas emissoras de rádio, muitas delas no Nordeste do

país. (ALVES, 2012, p. 280).

Souza (2004, p. 56-57) concorda que a era de ouro do rádio ocorreu na virada dos anos

40 para os 50, quando esse instrumento revelou “inteiramente suas potencialidades, tornando-

se um meio de comunicação por excelência eclético, por meio do qual programas esportivos,

políticos, radionovelas e tantos outros gêneros, encontraram milhares de apreciadores”.

Como centro de entretenimento popular, o rádio compõe o elenco de divertimentos

públicos que, naquele processo de crescente secularização da cultura nacional, [...]

substituíram, como recreações comercializadas e profanas, os centros lúdicos que no

Brasil rural tradicionalmente giravam em torno das esferas hieráticas. [...] (o rádio

torna-se) expressão particular das manifestações artísticas, mais populares que

eruditas, da cultura nacional [...]. (PEREIRA, 2001, p. 65).

O protagonismo atribuído ao rádio foi fundamental para a propagação da música

popular brasileira a partir do início da década de 1930, sendo, portanto, vital para a

popularização do baião pelo país na década seguinte, pois como sugere Blanning (2011, p.

219), a música foi a arte auditiva (como são também o teatro, a poesia e a arte comédia) que

mais se beneficiou do rádio, por ser a forma de entretenimento mais barata, fácil e popular33

.

Segundo Almirante (2013, p. 159), “em 1932, graças a liberação dos microfones para a

publicidade, a iniciativa de vários pioneiros tornou o rádio o mais poderoso veículo de difusão

de música, cultura e mensagens comerciais”. Diante disso, uma emissora em especial merece

destaque pelo seu poderio comunicativo e amplo alcance: a Rádio Nacional.

Criada em 1936, no momento em que o Brasil contava com 65 emissoras, sendo 12

localizadas no Rio de Janeiro e 08 em São Paulo (ALVES, 2012, p. 179), a partir de 1940,

quando foi incorporada ao patrimônio da União, o que proporcionou ainda maiores condições

para se consolidar como expoente absoluto no setor radiofônico, a Nacional assumiu a

liderança nos âmbitos local e nacional, ocupando as faixas mais concorridas de horários

(ALVES, 2012, p. 176). De acordo com Rocha (2007, p. 45), a passagem da gestão da

Nacional para as mãos do Estado Novo praticamente não alterou sua lógica de funcionamento

em padrões comerciais. Sendo uma das cinco emissoras mais potentes do mundo e a mais

33

A partir disso, fica mais fácil compreender porque a música popular no Brasil “é uma produção discursiva

muito forte e presente; talvez a mais forte em um país marcado pelo analfabetismo” (KEHL, 2004, p. 142).

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51

ouvida no Brasil (SANTOS, 2004, p. 162), “entre 1940 e 1946, o faturamento da emissora,

graças à publicidade, é multiplicado por sete”, como relata Ortiz (1988, p. 53).

Nessa época, “o interesse publicitário e a combinação de um poderoso veículo de

entretenimento, informação e deleite artístico, vicejou um acirrado padrão de concorrência

entre as emissoras” radiofônicas (ALVES, 2012, p. 326). Para Durão (2008, p. 43), “o

principal pressuposto subjacente à superprodução semiótica é a necessidade estrutural do

capitalismo de escoar sua produção de mercadorias, principalmente em função da competição

entre as empresas”. Deste modo o rádio ocupou os papeis de veículo de fruição e de produtor

de padrões estéticos e culturais (ROCHA, 2007, p. 115).

Todavia, com o surgimento da TV, a condição de veículo comunicacional hegemônico

sofre profunda alteração. A expansão da televisão, concorrendo diretamente com o rádio, se

deu através do aprendizado técnico e da infraestrutura deste (TINHORÃO, 1981, p. 169),

além de se ancorar nos recursos financeiros e humanos vindos também prioritariamente do

meio radiofônico (ROCHA, 2007, p. 80).

Ainda sobre o novo instrumento, Vieira (2000, p. 30) aponta que em 1950 instalou-se

a TV Tupi, primeira estação televisiva no Brasil34

, no entanto, só em 1960 o veículo chegou

às principais capitais do Nordeste (Salvador, Recife e Fortaleza).

Como uma tecnologia ainda desconhecida, que incorporava a imagem como

elemento inovador, o meio televisivo se transformou em espaço de experimentação e

ressignificação de padrões culturais, num momento de urbanização crescente,

quando o país passou a conhecer novos padrões de consumo como símbolos de

modernização. (ROCHA, 2007, p. 16).

Assim, durante seus primeiros anos de implantação, ao longo da década de 50, a

televisão conservou um modo de operação pouco comercial. Além de ser marcadamente

regional, concentrado no eixo Rio-São Paulo, o meio televisivo era destituído de um sistema

interligado. Contudo, esse quadro se alterará profundamente na década seguinte, inclusive

quando passam a ser fabricados os primeiros aparelhos televisores no Brasil (ORTIZ, 1988, p.

47).

Sergio Miceli (2005, p. 173) entende que a indústria cultural (sobretudo a televisão,

seu objeto de investigação), no Brasil, constitui a “instância por excelência em que se

processa a imposição da cultura dominante, [...] pura e simplesmente, um instrumento

simbólico a mais a serviço da hegemonia imposta pelas relações de força prevalecentes”.

34

Como sugerem Moura e Vicente (2001, p. 220), “a decantada ousadia e espírito de brasilidade de Assis

Chateaubriand permitiram ao país o pioneirismo, na América Latina, na implantação das revolucionárias

transmissões de imagens a distância, antes restrita a meia dúzia de países”.

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52

Voltando a atenção ao setor fonográfico (ou discográfico), outra célula que compõe o

sistema mais amplo de produção cultural em tempos de sociedade urbano-industrial, ao lado

dos subsistemas do rádio e da televisão, este diz respeito ao âmbito das empresas

especializadas na produção, gravação e distribuição de fonogramas (discos, cassetes, CD‟s,

etc.).

Sobre a especificidade do ramo, Walter Benjamin havia dito em texto clássico, A obra

de arte na era de sua reprodutibilidade técnica:

A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século passado (XIX). Com ela, a

reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia

transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-

as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os

procedimentos artísticos. (BENJAMIN, 1994, p. 167).

De acordo com Leal e Barbosa (1982, p. 18), nos primeiros anos do século XX “já

existia um esquema comercial na música através de teatros e cinema mudo, os quais

contratavam grupos musicais para entretenimento de seus espectadores. Em muito contribuiu

para o desenvolvimento desse esquema o surgimento da indústria fonográfica”.

As primeiras práticas de gravações fonográficas em terras brasileiras, no Rio de

Janeiro do início do século XX, foram possíveis com a instalação em 1900 da Casas Edison,

“a primeira casa de registro e gravação fonográfica brasileira, além de pioneira no negócio da

música, em geral” (ALVES, 2012, p. 144).

Uma das vantagens iniciais da transformação da música em produto industrial, para

os músicos populares, foi a ampliação do seu mercado de trabalho. Até o

aparecimento da Casa Edison, as únicas possibilidades de ganhar algum dinheiro

com música, no Brasil, era a edição de partes para piano, o emprego em casas de

música, o trabalho eventual em orquestras estrangeiras de teatro de passagem pelo

Brasil, a conquista de um lugar nas orquestras do próprio teatro musicado brasileiro,

o fornecimento de música para dançar e, finalmente, o engajamento, como

instrumentista, nas bandas militares. (TINHORÃO, 1981, p. 23).

Nesse sentido, segundo Bessa (2010, p. 40), “além de divulgar diversos gêneros de

dança populares em voga (polcas, mazurcas, schottisches, maxixes, etc.), as bandas de música

(militares ou não) também eram um dos poucos espaços de formação musical para os

indivíduos das classes mais baixas”.

Desde os primeiros anos do século XX a Casas Edison gravava choros de bandas civis

e militares, movimento que foi inibido em virtude do crescimento da popularidade do samba a

partir de 1914, ritmo que passou a ocupar cada vez mais as salas de gravação (MARTINS,

2014, p. 145).

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53

Atuando de maneira praticamente monopolizadora no mercado de discos e

gramofones, a hegemonia da Casas Edison, sob o comando do tcheco Fred Figner (1866-

1947), também foi abalada com a entrada no cenário de modernas multinacionais do setor

discográfico no final dos anos 20 (FROTA, 2003, p. 18).

O aprimoramento da técnica fonográfica fez:

circular e ecoar sonoridades que, até então, só deleitavam os ouvintes nos teatros,

concertos e casas de shows, (deslocando) paulatinamente parte da experiência

auditiva moderna, modelando a audição de determinados segmentos sociais e seus

critérios de sensibilidade, que passaram a ser forjados, em parte, durante as próprias

atividades ordinárias da convivência familiar e doméstica. (ALVES, 2012, p. 144-

145).

Já denotando a relevância que os artistas nordestinos exerceriam na produção

discográfica tupiniquim, verifica-se a presença dos dois protagonistas na primeira experiência

de registro musical no país, a gravação em 78RPM do lundu “Isto é bom”, em 1902, pela

Casas Edison, interpretada por Baiano (1887-1944) e de autoria de Xisto Bahia (1841-1894),

ambos vindos da boa terra (TORRES, 2008, p. 26). Esse evento marcou o nascimento,

trôpego e claudicante, do profissionalismo no campo da música popular no Brasil.

Em relação à movimentação das categorias profissionais geradas a partir da incitação

desse novo mercado musical, realçando os elementos que gravitavam em torno da produção

dos primeiros sambas, destaque-se a:

multiplicação de postos de trabalho e de profissionais ligados à nascente indústria

cultural – produtores de disco, agentes artísticos, programadores radiofônicos,

arranjadores, (etc.) – cuja “formação” se desenvolvia simultaneamente à relevância

que iam assumindo as atividades ligadas ao samba. O ponto máximo de ebulição [...]

com o lançamento de sambas e marchinhas que antecedia a celebração do Carnaval,

[...] representava a mobilização adicional de um verdadeiro exército de trabalhadores

em ocupações mais tradicionais, como músicos, ilustradores e gráficos.

(CARVALHO, 2004, p. 49).

Eduardo Vicente (2014, p. 53), em livro que traça um painel dos principais ciclos da

indústria fonográfica no Brasil, fala do suporte comercial fornecido pelo capital estrangeiro

para compor a base da indústria fonográfica nacional, tanto em termos tecnológicos como de

pessoal especializado, já que “mesmo antes da chegada das gravadoras internacionais, os

catálogos de quase todas elas já eram impressos e/ou distribuídos no país por empresas

nacionais”, essas últimas atuando através do sistema de representação. Ou seja, as empresas

estrangeiras, antes mesmo de se instalarem fisicamente por aqui, “emprestavam” seus

catálogos e equipamentos para as gravadoras nacionais, tendo em troca todo um promissor

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mercado consumidor brasileiro a seu dispor. Como dizem Leal e Barbosa (1982, p. 52), “com

o desenvolvimento da indústria fonográfica e o crescente processo de comercialização da

música, intensificara-se na década de 1920 a importação de gêneros e ritmos, acarretando

mudanças nos trabalhos de inúmeros músicos”.

Ortiz (1988, p. 191) atribui a maciça presença estrangeira nesse período vanguardista

da moderna sociedade brasileira à “fragilidade das instituições existentes, tornando necessária

a importação de quadros e de conhecimentos gerados fora do país”, denotando o quadro de

dependência tecnológica estrutural do capitalismo periférico em relação aos países

hegemônicos. Assim, importando as tecnologias de ponta (inclusive da indústria cultural),

veio a reboque para o Brasil também a “tecnologia” da semiformação (FREITAG, 1987, p.

71).

Nos anos 1930, época de grande efervescência artística na capital federal, quando a

classe média branca e mestiça passa a consumir e produzir música popular (FROTA, 2003, p.

44), a indústria fonográfica local se aperfeiçoou graças às inovações técnicas (gravação

elétrica35

, microfones modernos, etc.), à consolidação dos ritmos nacionais - principalmente o

samba, pois foi a época onde “o que era mestiço torna-se nacional” (ORTIZ, 1985, p. 41) - e à

vinda maciça de gravadoras multinacionais ao país. Nesse instante:

desenvolvia-se complexo processo de mudança em padrões estético-musicais, cujo

desideratum seria a predominância histórica de uma tradição musical em relação às

demais que a cultura brasileira então exibia. Essa tradição musical, expressando o

estilo de vida urbano em ascensão, estava associada às manifestações “negras” de

nossa cultura. (PEREIRA, 2001, p. 29).

De acordo com Sevcenko (1998, p. 593), a “grande mágica” se deu quando o mercado

fonográfico se cruzou com o rádio na difusão da música popular.

As interfaces entre a música e as tecnologias modernas (o cinema sonoro, a gravação

elétrica de discos e o rádio) só ocorreram no Brasil a partir de 30, vicejando novas

estruturas de oportunidades profissionais. Entre os anos de 1900 e 1915, por

exemplo, a vendagem de um disco que alcançasse mil exemplares era considerada

um retumbante sucesso. (ALVES, 2012, p. 145-146).

35

Assim como a prensagem do primeiro disco no Brasil, em 1912 (até então os discos eram gravados no Brasil

mas prensados no exterior), a implantação do sistema de gravação eletromagnética no Brasil foi protagonizada

pela Odeon em 1927, em substituição ao procedimento mecânico, no qual “o que se requeria essencialmente do

artista era um belo volume de voz [...] (e) que cantasse suficientemente alto para captar a emissão vocal com

perfeição” (JAMBEIRO, 1975, p. 46). De acordo com Cabral (2005, p. 44), “esse sistema de gravação (elétrica)

[...] foi uma reação da indústria do disco à concorrência do Rádio, que durante a década de 1920, experimentou

significativos avanços tecnológicos”.

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55

Como sugere Martín-Barbero (2015, p. 245), “a „suja‟ indústria cultural e a perigosa

vanguarda estética é que vão incorporar o ritmo negro à cultura da cidade, legitimando o

popular-urbano como cultura: uma cultura nova36

”.

Apontando para outro ponto emergente no seio desse processo, Sandroni (2004, p. 27)

diz que a produção musical urbana, veiculada pelo rádio e pelo disco a partir dos anos 1930,

foi a responsável, dentre outros fatores, pelo “surgimento de um novo tipo de produção

intelectual (escrita) sobre a música, feita por gente como [...] Vagalume, [...] Almirante [...] e

Ari Barroso”. A publicação dessas obras literárias, empenhadas em pensar as novas formas de

produção e consumo de música nas modernas metrópoles nacionais, é um aspecto revelador

do grau de importância dirigido pela rarefeita parcela de letrados da época à questão da

cultura popular industrializada. Com isso, atesta-se que, num panorama mais abrangente, “o

surgimento da música popular urbana midiática trouxe mudanças no vocabulário e

pensamento musicais de diversas regiões do continente latino-americano” (GONZÁLEZ,

2013, p. 143). Seguramente, o Brasil não foi exceção nesse quesito.

Em virtude dos aprimoramentos e avanços da tecnologia no setor fonográfico, na

virada da década de 1950 para 1960 os discos de cera foram substituídos pelos discos de vinil,

proporcionando um salto de qualidade nos fonogramas37

, período onde, ao lado do “sussurro

que virou um terremoto” bossanovista38

(NAPOLITANO, 2017, p. 29) e do desenvolvimento

da televisão no país, se situou também “o momento inicial para um processo mais definido de

estratificação do nosso mercado nacional” (VICENTE, 2014, p. 75).

As empresas estrangeiras e os conglomerados que se instalaram no mercado

fonográfico brasileiro a partir dos anos 1960 encontraram um território já ocupado,

como se sabe, por empresas de grande porte, nacionais e estrangeiras. A Continental

e a Copacabana39

eram as maiores dentre as nacionais, possuindo amplos parques

industriais que incluíam estúdios, gráficas, fábricas de discos e duplicadores de fitas

cassete. (VICENTE, 2014, p. 66).

36

Cabe ressaltar que, pelo menos até os estudos folclóricos de 1870, o elemento negro, percebido

exclusivamente como força de trabalho, portanto, destituído de qualquer resquício de participação cidadã, era

totalmente esquecido como objeto (positivo ou negativo) de preocupação na produção cultural e intelectual

brasileira (ORTIZ, 1985, p. 37). 37

Conforme Blanning (2011, p. 229), com a gravação em vinil se “reduzia substancialmente o ruído da

superfície e, mais importante, permitia discos com sulcos bem menores, tocados a velocidade menor [...],

contendo portanto muito mais música”. 38

De acordo com Napolitano (2017, p. 30), “em menos de um ano a Bossa Nova dominava o ambiente musical

mais sofisticado das grandes cidades brasileiras. Já não era mais preciso ter uma grande voz, de estilo operístico,

para interpretar as canções populares”. 39

Fundada em 1948, a gravadora Copacabana obteve importância dentro do panorama fonográfico nacional por

ocupar-se essencialmente da produção de música sertaneja e regional (DIAS, 2000, p. 74). Destaco essa

gravadora pelo fato de que dos 12 álbuns lançados pelo Trio Mossoró ao longo da carreira, 07 saíram pela

Copacabana (ver Tabela 01, p. 16).

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Com as transformações ocorridas no quadro dos veículos comunicacionais de amplo

alcance em meados do século passado no Brasil, tanto em termos tecnológicos como

gerenciais/administrativos, a partir dos anos 1960 a indústria do disco (em conjunto com a

TV), deu um salto em direção à modernização (NAPOLITANO, 2010, p. 62).

No bojo dos crescentes índices de urbanização no país e do desenvolvimento das

indústrias locais, o incentivo aos bens de consumo como as radiolas e os LP‟s também foi um

agente importante na alavancada da indústria fonográfica nacional, segundo ideia proposta

por Janotti Junior (2006, p. 07), para quem “a produção de sentido da música popular massiva

envolve estratégias que ultrapassam os aspectos imanentes da canção popular massiva”,

dentre elas, o incentivo ao consumo de hardwares e softwares40

de reprodução musical

doméstica. Como aponta Dias (2000, p. 37), “os rumos da produção fonográfica (software)

vão estar sempre em estreita sintonia com suas necessidades de reprodução técnica

(hardware)”, ou seja, um mercado alçando o outro.

Os anos 1960 e 1970 foram cruciais para a cristalização dos padrões de consumo e

organização da indústria fonográfica por aqui, pois nesse período verificou-se não só um

acentuado crescimento comercial, mas também a “aproximação de alguns dos padrões

internacionalmente dominantes, sendo o principal deles o da preponderância da empresa

transnacional sobre a nacional e do conglomerado sobre a empresa de orientação única”

(VICENTE, 2014, p. 82), do qual a gravadora Som Livre, pertencente ao Grupo Globo, é

exemplo cabal.

Em relação aos grandes acontecimentos fonográficos nacionais promovidos na década

de 1960, Napolitano (2010, p. 75) entende que a chamada Jovem Guarda “foi um dos

primeiros produtos musicais estandardizados, no sentido que a moderna indústria cultural

emprestou ao termo. Nele temos uma padronização composicional, timbrística, temática e

performática”. A partir dessa onda, a indústria fonográfica nacional estava sequiosa por

“repetir o que vinha mexendo com os corações, bolsos e cabeças no além-mar” (MOURA;

VICENTE, 2001, p. 276).

Nesse ponto, Adorno, para quem a música popular representava um recurso de

controle e dominação das massas (BARROS, 2008, p. 75), ou seja, “um dos instrumentos

mais eficazes para a coerção ideológica do cidadão numa sociedade de massa” (ECO, 1979, p.

297), fornece subsídios teóricos, por exemplo, para caracterizar a relação da música produzida

40

Frith (1988, p. 14), em relação a esse ponto, faz a seguinte elucidação: “Hardware is the equipment, the

furniture, the „permanent‟ capital of home entertainment; software is what the equipment plays - particular

records and tapes”. (“Hardware é o equipamento, o móvel, o capital „permanente‟ do entretenimento doméstico;

software é o que o equipamento reproduz – discos particulares e fitas”).

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por Roberto Carlos e seus parceiros com o mercado através do conceito fundamental de

“estandardização”, sugerido no seu texto Sobre música popular. Nesse texto é dito que “os

padrões musicais da música popular foram originalmente desenvolvidos num processo

competitivo. Quando uma determinada canção alcançava um grande sucesso, centenas de

outras apareciam, imitando aquela que obtivera êxito” (ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 121).

O panorama musical brasileiro nos anos 1960, de renovação da MPB e de acirrada

dicotomia autonomia/heteronomia no sistema de produção artística, reflexo do ambiente de

instabilidade social e política implantada pelo golpe militar de 1964, demonstrava certa:

reorganização da indústria cultural brasileira. O surgimento de novas estratégias de

promoção, produtos e conglomerados empresariais foi a faceta mais visível deste

processo, que reorganizou a dinâmica do mercado de bens culturais como um todo

e foi particularmente forte, no caso da música e da indústria televisiva.

(NAPOLITANO, 2010, p. 07).

O mercado nacional de música gravada se consolida. Ainda segundo Napolitano

(2010, p. 266), “ao final da trajetória de renovação da MPB, a indústria fonográfica

praticamente encerrava o seu ciclo de „substituição das importações‟. [...] com cerca de 70%

dos fonogramas consumidos sendo produzidos no Brasil”.

Conforme indica Faraco (2012, p. 92), na virada dos anos 60 para os 70, em pleno

governo autoritário dos presidentes militares, “apesar da dura repressão, a indústria cultural

brasileira não permaneceu estática ou regrediu [...] muito pelo contrário, a intensificação das

práticas industriais e, consequentemente, dos processos capitalistas permitiram à indústria um

desenvolvimento ímpar”.

Entre um regime cada vez mais institucionalizado e disposto a manter o poder e uma

esquerda disposta a radicalizar a luta contra os militares, [...] a arte engajada [...] e os

intelectuais de esquerda desfrutavam de cada vez mais espaço e prestígio na mídia e

na indústria cultural, [...] seu público consumidor, bastante amplo e com bom

potencial de consumo, concentrava-se na classe média dos grandes centros urbanos.

(NAPOLITANO, 2017, p. 60).

No Brasil, a fermentação do ramo discográfico nos anos 1970 se deu, dentre outros

fatores, graças “às inúmeras facilidades que o comércio passou a apresentar para a aquisição

de eletrodomésticos. [...] o mercado de fonogramas se desenvolve em função do mercado de

aparelhos de reprodução sonora” (ORTIZ, 1988, p. 127), acompanhado do barateamento do

preço de venda do LP, popularizando definitivamente o formato. Como sugere Miceli (2005,

p. 220-221), a expansão recente da indústria cultural brasileira “coincidiu com a vigência do

regime autoritário instituído em 1964, dele se beneficiando diretamente através dos maciços

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investimentos governamentais no setor de telecomunicações, que, por sua vez, impulsionou o

crescimento da indústria eletrônica”. Nesse ponto, Frith (1988, p. 13) já havia dito que “the

history of the record industry is an aspect of the history of the electrical goods industry,

related to the development of radio, the cinema and television41

”.

Para Napolitano (2017, p. 82), no começo dos anos 1970, os dirigentes que ocupavam

o governo nacional tinham como prioridade “„ganhar‟ o apoio da classe média, por meio da

política de estímulo ao consumo”. Dessa forma, o “milagre econômico” verificado durante a

década, fomentado pelos militares como forma de legitimar aquele período de exceção

perante a população civil, privilegiou a industrialização nacional como um todo42

, incluindo a

produção cultural43

, e mais especificamente o setor discográfico44

. Voltando a Ortiz (1988, p.

194), nessa década deve-se sublinhar um “recuo das multinacionais diante do avanço de novas

gravadoras no mercado brasileiro [...] (considerando) que as grandes empresas transnacionais

[...] atuam na periferia através de filiais cuja função é produzir discos com os cantores locais”.

Tendo como objeto de investigação a indústria fonográfica brasileira especificamente

nos anos 1970, a pesquisadora Rita Morelli é autora de obra pioneira que, apesar de ter sido

apresentada em 1988, sob a forma de dissertação de mestrado, permanece norteando os

trabalhos atuais que buscam entender a relação artista/gravadora na produção de música

enquanto mercadoria amplamente distribuída. Em prefácio ao livro Indústria fonográfica: um

estudo antropológico, derivado da dissertação defendida pela autora, José Roberto Zan aponta

que a reestruturação do setor produtivo e os grandes investimentos de capitais nacionais e

estrangeiros, causando o rápido desenvolvimento da base tecnológica e a adoção de novos

padrões de gerenciamento das gravadoras, foram os fatores conjunturais que promoveram a

forte expansão do mercado fonográfico brasileiro nos anos 1970 (MORELLI, 2009, p. 15).

A indústria do disco cresceria a uma taxa média de 15% ao ano durante a década de

1970, mesmo enfrentando por duas vezes o problema da escassez de matéria-prima,

por ocasião dos dois choques nos preços internacionais do petróleo. Por outro lado,

41

“A história da indústria fonográfica é um aspecto da história da indústria de bens elétricos, relacionada ao

desenvolvimento do rádio, do cinema e da televisão”. 42

O estado autoritário do regime militar “dispensava a legitimação popular que o Estado Social exige e que,

portanto, os mecanismos de seu funcionamento dele divergiam essencialmente. Mas em um ponto certamente

havia uma semelhança: buscavam ambos a sua legitimação no desenvolvimento econômico baseado na

dinamização das forças produtivas – ciência e tecnologia [...]” (FREITAG, 1987, p. 28). 43

Como sugere Eco (1979, p. 49), “a cultura de massa é um fato industrial e, como tal, sofre muito dos

condicionamentos típicos de qualquer atividade industrial”, sendo, portanto, muitas vezes dependente de

incentivos institucionais, através do intervencionismo econômico das políticas sociais estatais, para ter seu

consumo e produção alavancados. Assim, evidencia-se o papel exercido pelo Estado capitalista moderno na

manutenção do sistema econômico em vigor. 44

“Se a interferência da censura foi drástica do ponto de vista da criação artística, economicamente, a indústria

do disco parece não ter sentido os seus efeitos” (DIAS, 2000, p. 58).

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o contexto da repressão política vivido pelo país a partir da edição do AI-5 [...]

impediu que a expansão do mercado de discos ocorresse em benefício imediato da

chamada música popular brasileira [...] (já que houve) um número crescente de

lançamentos estrangeiros. (MORELLI, 2009, p. 61-62).

Foi justamente no período da segunda metade da década de 70, que, como afirmam

Marcelo e Rodrigues (2012, p. 308), se iniciou um processo no qual “o mercado fonográfico

foi tomado por uma onda que reconfigurou o que o resto do país entendia como música do

Nordeste. Esta passava a ser associada a nomes como os de Elba, Fagner, Zé Ramalho,

Amelinha e Alceu Valença”, geração que também sofreu forte influência de Gonzaga, desde

os momentos iniciais de sua carreira profissional nos anos 1940. Essa nova tendência

simbolizava uma acentuada hibridização45

de variadas influências musicais, caracterizada por

estabelecer flertes com o rock progressivo anglo-saxão, ao mesmo tempo que era tributária

direta das gerações anteriores de artistas nordestinos (das emboladas de Augusto Calheiros ao

swing de Jackson do Pandeiro46

). Kehl (2004, p. 146) entende que “esta liberdade de

incorporação e modificação de influências estrangeiras talvez seja uma marca da cultura

popular nordestina, que desde os séculos XVI e XVII assimilou elementos do cancioneiro

português, produzindo uma livre tradução do imaginário da cultura da elite colonizadora para

a realidade da vida no sertão”.

Embora já estando além do período histórico pretendido pela presente pesquisa (anos

1960 e 1970), mas buscando-se manter uma harmonia com a sondagem feita até aqui (e como

forma de atestar a continuidade do progresso tecnológico do setor, sempre em vínculo com o

contexto político-econômico nacional), é cabido indicar que após um conturbado período

enfrentado pelo mercado fonográfico nos anos 80 (muito em virtude da mudança do formato

do LP para o CD), nos anos 1990, após a reestabilização política e econômica do país

alcançada com o Plano Real, o mercado de música se reorganizou, tendo como contrapartida

o incremento do ramo informal (pirataria) e as novas tecnologias, simbolizadas no fim dessa

década e no início do século XXI pela popularização da internet e pelas novas mídias digitais.

Em artigo que esboça os rumos da indústria fonográfica brasileira e a chamada Nova

Produção Independente, De Marchi (2006) fala dos novos hábitos de produção e consumo de

música com o advento das recentes tecnologias, e como o mercado informal vem ganhando

45

Aqui emprega-se o termo no sentido pensado por Peter Burke (2016, p. 31), que vê as formas culturais

híbridas como “o resultado de encontros múltiplos e não como o resultado de um único encontro, quer encontros

sucessivos adicionem novos elementos à mistura, quer reforcem os antigos elementos [...]”. 46

Nesse aspecto, a parceria musical surgida do encontro ocorrido em 1972 entre Alceu Valença e Geraldo

Azevedo com Jackson do Pandeiro, narrado por Marcelo e Rodrigues (2012, p. 301-302), é exemplo

emblemático.

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espaço nesse setor, entretanto, sem tomar ainda a hegemonia das grandes gravadoras que,

detentoras de um grande poderio econômico e de redes produtivas de largo alcance, ainda

abarcam a maior parte da fatia desse nicho mercadológico. O autor se refere à “reorganização

da cadeia produtiva”, com a ascensão das gravadoras independentes e da chamada Nova

Produção Independente, em lugar de usar a palavra “crise”, preferida pelas majors

(gravadoras pertencentes aos grupos empresariais multinacionais). Essa produção musical

independente, segundo De Marchi, teve seus primeiros passos no Brasil ainda nos anos 1970

(marco temporal que confronto no parágrafo seguinte47

), embora de forma amadorística.

No campo específico do baião nordestino, um exemplo pioneiro de atuação

independente48

dentro do mercado fonográfico dominado pelas majors é o da gravadora e

distribuidora Cantagalo, fundada em meados dos anos 60 pelo sanfoneiro Pedro Sertanejo,

que “queria ter liberdade para gravar seus discos e ajudar os músicos que vinham do

Nordeste” (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 155). Com sede no bairro do Brás, a

Cantagalo foi “um dos primeiros selos independentes do Brasil, conduzido por um baiano [...]

diretamente responsável pela propagação e o enraizamento do forró na capital paulista”

(MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 142). Moura e Vicente (2001, p. 251-252) dizem que a

gravadora “tinha uma explícita filosofia bairrista, lançando quase que exclusivamente

intérpretes regionais, novos ou afamados”. Como confirmam Marcelo e Rodrigues (2012, p.

156), “com exceção de Luiz Gonzaga e Marinês, [...] os principais nomes da música

nordestina lançaram discos pela Cantagalo”, dentre eles, o Trio Mossoró. Foi através do selo

Cantagalo que foi lançado o terceiro disco da carreira do grupo, Terra de Santa Luzia (1966),

o único por essa gravadora e o último pertencente à fase tradicional, com base na

categorização sugerida na introdução deste trabalho.

Portanto, pode-se imaginar, num quadro fictício, que, caso Adorno e Horkheimer

tivessem se exilado no Brasil ao invés de terem buscado refúgio nos Estados Unidos,

motivados pela perseguição antissemita dos nazistas em meados dos anos 30, esses

pensadores teriam encontrado aqui uma “indústria cultural brasileira” com o setor radiofônico

47

Com base em Dias (2000, p. 131), “as informações sistematizadas sobre as iniciativas de produção fonográfica

que acontecem fora do circuito das majors no Brasil datam do início dos anos 60. No entanto, é possível

encontrar, na literatura, informação histórica esparsa, fragmentada, que deixa entrever a participação das indies

desde os primórdios da produção fonográfica local”. Como exemplo, a autora cita a cantora Carmen Miranda

que, antes do primeiro grande sucesso, gravado pela major RCA-Victor em 1930, já havia gravado pelo pequeno

selo Brunswick no ano anterior, em 1929. 48

Nesse ponto, acerca das formas de atuação e posicionamento das gravadoras independentes e das majors, é

importante destacar a “estreita sintonia existente entre suas lógicas que, próprias à indústria cultural, acabam por

desenvolver uma relação de complementaridade, mesmo que indireta e aparentemente conflituosa. Assim, a

performance das empresas chamadas independentes, nas várias formas que têm tomado, constitui-se a partir da

trajetória das majors e muda de acordo com ela” (DIAS, 2000, p. 125).

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em amplo crescimento e em diálogo cada vez mais estreito com a indústria do disco. Porém,

ambos ainda incipientes, esses mercados culturais só viriam florescer de fato a partir das

sensibilidades e exigências por entretenimento surgidas no bojo de processos mais amplos

como a urbanização e industrialização da região Sudeste do país, intensificada na década

seguinte. Portanto, em comparação ao que os filósofos encontraram nos Estados Unidos,

caracterizado na intensidade produtiva de Hollywood e Tin Pan Alley, o Brasil se encontrava

em estágio primevo.

Feito esse breve apanhado das etapas seguidas pelos setores da indústria cultural no

Brasil, destacando-se o ramo fonográfico, no sentido de ir além da crítica (necessária) ao

processo de industrialização da arte, pioneiramente denunciado pelos frankfurtianos, Canclini

ressalta que a noção de indústria cultural:

continua servindo quando queremos nos referir ao fato de que cada vez mais bens

culturais não são gerados artesanal ou individualmente, mas através de

procedimentos técnicos, máquinas e relações de trabalho equivalentes aos que outros

produtos na indústria geram; entretanto, esse enfoque costuma dizer pouco sobre o

que é produzido e o que acontece com os receptores. (CANCLINI, 2015, p. 257).

Levando-se em conta a citação acima, privilegiando o enfoque mais sobre o que é

produzido e menos sobre o que acontece com os receptores, as “condições sociais de

recepção” para Adorno (2011, p. 184), busca-se nesse trabalho evidenciar como a indústria

cultural age para transformar a obra de um artista em específico, tendo como objeto de

pesquisa a produção simbólica do Trio Mossoró, considerando que “a modalidade dominante

de produção e circulação de material simbólico é a da subordinação da lógica específica da

dimensão cultural à lógica geral da produção de mercadorias no capitalismo” (COHN, 1998,

p. 25), e que “cada linha dos textos estéticos de Adorno somente tem seu sentido assegurado

na medida em que é lida com base em sua crítica da sociedade capitalista” (FREITAS, 2003,

p. 10).

Portanto, será tomado como ponto focal da pesquisa não o gênero “baião” enquanto

expressão musical, muito menos seu público, mas a produção discográfica de um grupo de

intérpretes vinculado ao baião. Assim, é nessa perspectiva que propõe-se uma investida no

aspecto da canção urbana brasileira do século XX, dirigindo o olhar para as transformações na

obra de um artista representativo e consagrado dentro de seu nicho musical (Trio Mossoró),

considerando tanto os aspectos estrutural-sonoros quanto sócio-históricos. Para além de uma

análise biográfica ou estilística, busca-se, a partir dessa modalidade de abordagem, apurar os

elementos presentes na relação da indústria cultural, sobretudo o setor fonográfico,

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representante das exigências mercadológicas, com a produção simbólica e espiritual fruto de

seu tempo.

Assim, essa indústria, ao passo que provoca a heteronomia e a sujeição de público e

artistas à lógica de mercado, também promove o acesso tanto à produção como ao consumo

massivo, antes restrito a uma pequena parcela elitista que tinha condições de alcance e

aquisição. Assim sendo, não se trata aqui de pensar o Trio Mossoró como promotor de

heteronomia ou sendo um veículo totalitário regressivo de nossa época, mas sim como

resultado de um projeto maior do capitalismo que só foi possível ter início com as

transformações técnicas apontadas até aqui. Para além (e dentro delas) da técnica totalitária ou

da heteronomia, essa indústria cultural possibilitou a promoção de uma indústria cultural

regional, antes abafada pelos mercados monopolistas.

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63

2 O SOM QUE VEM DO NORDESTE

2.1 O SERTANEJO E SUA MÚSICA NA METRÓPOLE: DA EMBOLADA AO BAIÃO

Como visto no capítulo anterior, foi a partir dos processos de industrialização e

urbanização dos principais centros sudestinos brasileiros que as primeiras manifestações de

uma incipiente indústria cultural puderam ser sentidas, como expressão sintomática do

surgimento de uma (restrita) demanda urbana por entretenimento, ávida em participar

ativamente do mercado de bens culturais em implantação no país, a partir dos novos interesses

e esperanças gerados com as mudanças socioeconômicas verificadas (LEAL; BARBOSA,

1982, p. 14).

Para Frota (2003, p. 39), “as décadas de 20 e 30 são o portão de entrada do Brasil em

certa modernidade urbana mais ou menos gratuita que - apesar de não ter pegado

desprevenido os habitantes das grandes cidades - não foi absolutamente uma passagem

automática, livre de traumas49

”.

A indústria cultural enquanto forma de geração dos produtos culturais só pode surgir

numa era de produção industrial, na qual a forma social mercadoria alcance estender

o conjunto de suas relações sociais de produção ao domínio da dinâmica cultural da

sociedade. Apenas a partir de então é que se torna possível a coexistência de seus

dois requisitos fundamentais, quais sejam, um grau de evolução da técnica que

possibilite o surgimento de meios de produção de bens culturais em série e de

maneira padronizada [...] e o surgimento de públicos consumidores, criadores de

uma demanda social consistente e adequada para realizar nas relações de troca o

caráter de mercadoria dos gêneros culturais [...]. (LIMA, 1997, p. 18).

Nesse aspecto, Pereira (2001, p. 37) ressalta que o instante histórico de surgimento do

rádio na cena brasileira foi resultado da progressiva marcha industrial em curso no país, assim

como da passagem de uma predominância do urbano sobre o rural, sobretudo na região

centro-sul. Os índices relativos à industrialização em nível nacional, demonstrados por Cabral

(2005, p. 43), dão uma proporção desse quadro: “a taxa de crescimento industrial em toda a

década de 1920 mantinha a média de 2,8% ao ano. Em 1929, deu um pulo para 8,4%, graças,

principalmente ao crescimento das indústrias metalúrgicas, mecânicas e de material elétrico”,

sendo esta última intimamente atrelada ao crescimento da demanda urbana por entretenimento

cultural verificado no mesmo período.

49

Sevcenko (1998, p. 558) destaca o pitoresco e indicativo fato de que, no Brasil da virada do século XIX para o

XX, os primeiros veículos automotores tomaram as ruas antes mesmo de existirem estruturas viárias adequadas,

sinalização ou leis de trânsito, gerando uma situação no mínimo sinistra.

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A partir dessa dinâmica pode-se compreender como, especialmente após o incremento

dos processos modernizantes timidamente iniciados no alvorecer do século XX e mais

acentuadamente ampliados ao longo da sua primeira metade, as disparidades regionais no

Brasil tornam-se mais escancaradas, com a ascensão do Sudeste e a derrocada do mercado

nordestino da cana-de-açúcar e do algodão50

.

Essa construção ideológica do Nordeste como região pobre, carente e miserável foi

sistematicamente tangenciada nas letras do baião, sendo usada tanto pelos artistas regionais

como elemento de valorização da identidade nordestina quanto pelos sudestinos, como

reforço dos estereótipos e estigmas acerca do homem sertanejo. Tal situação denota como a

indústria cultural, já em seus primeiros movimentos, percebeu quão interessante do ponto de

vista mercantil seria valer-se dos condicionantes sociais e econômicos à disposição em favor

de sua reprodução.

A partir dos anos 1940, a intensificação dos movimentos migratórios, dada a falta de

planejamento urbano adequado para receber esse contingente humano nos pontos de destino,

exacerbou outro processo nos centros urbanos: a favelização. Os índices de industrialização e

urbanização em ascensão reorganizaram a economia e a cultura camponesas sob o viés

capitalista, tornando os dois espaços (urbano e rural) cada vez mais contraditórios

(CANCLINI, 1983, p. 47).

Como alertara Matos (1993, p. 56), “há o progresso e, também, as vítimas do

progresso”. Assim, a civilização urbano-industrial entre nós:

começou a se firmar a partir da década de 1920, registrando seus instantes cruciais

tanto ao redor de 1930, como durante e após a segunda conflagração mundial. [...]

As velhas urbes revitalizam-se com o aumento das populações em constantes

deslocamentos migratórios, enquanto o número de cidades de tamanho médio tende

a crescer cada vez mais. Aglomerados humanos relativamente inexpressivos

metamorfoseiam-se em grandes cidades. (PEREIRA, 2001, p. 45).

Sobre a política desenvolvimentista propalada nos anos subsequentes51

, já no governo

de Juscelino Kubitschek (1956-1961), ainda Barros (1990, p. 45) relata que “mesmo a noção

de „desenvolvimento‟, veiculada pela propaganda oficial, não podia ocultar que os êxitos do

50

Como tão bem esquadrinhado por Albuquerque Junior (2011), é nesse momento de baque comercial que as

decadentes elites nordestinas, membros da agonizante “civilização do açúcar”, formulam a ideia de uma região

“Nordeste”, buscando, a partir desse construto ideológico, barganhar recursos financeiros junto às autoridades

políticas nacionais, assim como resgatar o prestígio em queda e reagir contra a perda da posição aristocrática

advinda com o modelo moderno de sociedade que aos poucos se apresentava. 51

Segundo Goldenstein (1987, p. 149), a partir desse momento “o capitalismo no Brasil passaria a ter uma

dinâmica de acumulação tipicamente monopolista; [...]. Entrávamos na fase da indústria cultural, mas nos

marcos de um capitalismo retardatário e em meio a uma conjuntura marcada por um quadro político fechado”.

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período estiveram associados ao aumento das disparidades regionais, das desigualdades de

renda, dos focos de tensão e dos chamados „bolsões de miséria‟”, estampando a queda dos

índices sociais e humanos num gradiente sul-norte. Como apontam Marcelo e Rodrigues

(2012, p. 79), “antes da Segunda Guerra Mundial, a contribuição nordestina ao PIB chegava a

30%; menos de duas décadas depois, tinha sido reduzida a 11%”, o que denota o insucesso do

modelo de desenvolvimento adotado.

Nessa linha de pensamento, mas chamando a atenção para as mudanças

comportamentais e nos costumes em curso na época, ressalte-se que tal desenvolvimentismo,

orientado pelo planejamento racional e científico, influenciou inclusive certas tendências

artísticas da época, como a bossa nova, a poesia concreta e a arquitetura modernista, além do

novo estilo de vida metropolitano que despontava (ROCHA, 2009, p. 223).

No tocante ao aspecto musical, a Bossa Nova representava a trilha sonora da tão

sonhada modernidade brasileira, devido ao novo status sociocultural que proporcionou à

produção musical nacional (NAPOLITANO, 2017, p. 32), tanto em sua versão “zona sul”, de

João Gilberto e Tom Jobim, como na linha mais “engajada”, de Geraldo Vandré e Carlos

Lyra52

. A segunda vertente, politizada, é entendida por Tinhorão (1975, p. 230) como uma

música que, “não tendo conseguido impor-se no mercado internacional como produto

brasileiro, [...] procurou no plano nacional se aproximar-se do povo”.

Como resultado do conto de fadas econômico, somado aos fatores internos da

estiagem e da concentração fundiária, a migração do nordestino para o “sul” intensifica-se,

apesar desse movimento populacional interno já ser verificado no Brasil desde os primeiros

instantes após a abolição da escravatura, em 1888, quando a mão-de-obra sertaneja, em

associação ao contingente migrante europeu e asiático, foi aos poucos substituindo o negro

nos trabalhos braçais, sobretudo nas lavouras paulistas53

(MARCELO; RODRIGUES, 2012).

Segundo Pereira (2001, p. 107), as lavouras de café, com sua produção voltada para

exportação, “ao mesmo tempo que coloca a economia sertaneja, baseada na produção

açucareira, em plano secundário, determina a redistribuição da população de cor para as

províncias não apenas de São Paulo, mas também para as do Rio de Janeiro e de Minas

Gerais”.

52

Acerca do ambiente que propiciou o aparecimento do samba-jazz, gênero de música instrumental surgido no

início dos anos sessenta, intimamente filiado à bossa nova, Saraiva (2007, p. 45) diz que “diferentemente de

outras „amigações perigosas‟, a do samba com o jazz tinha importantes defensores, sobretudo porque o

argumento principal deste grupo estava baseado num universo de sentido bastante persuasivo naquela ocasião –

„moderno‟, „modernização‟, „sofisticação‟[...]”. 53

Para Ortiz (1985, p. 19), “como fato político a Abolição marca o início de uma nova ordem onde o negro deixa

de ser mão-de-obra escrava para se transformar em trabalhador livre. Evidentemente, ele será considerado pela

sociedade como um cidadão de segunda categoria [...]”.

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Falar de urbanização no Brasil é, automaticamente, referir-se aos fenômenos

correspondentes da migração (do norte para o sul e do interior para as capitais) e

industrialização. A base social surgida das novas camadas populares urbanas com os

migrantes, em conjunto com os descendentes dos escravos e ex-escravos e imigrantes

europeus54

(NAPOLITANO, 2017, p. 12), evidencia que os “movimentos migratórios não se

dão a vácuo, mas em circunstâncias históricas concretas” (RISÉRIO, 1990, p. 38).

Assim, o nordestino sertanejo, ao se mudar, leva consigo toda sua bagagem emocional

e cultural para o ponto de destino, composta de elementos que dão fisionomia ao seu arsenal

consuetudinário, ou seja, o conjunto de práticas e costumes adquiridos ainda no sertão,

incluindo seu conteúdo musical, que, imediatamente hibridizados no ponto de destino,

provocam uma “nova forma de se fazerem presentes na cidade” (MARTÍN-BARBERO, 2015,

p. 225). Como apontam Moura e Vicente (2001, p. 31), “a musicalidade campeia pelo

Nordeste, mas normalmente concentrada em escolas essencialmente populares, rústicas,

empíricas. Sons aprendidos e repassados unicamente através da oralidade, sem quase

nenhuma erudição”.

Na cultura popular, novo e arcaico se entrelaçam: os elementos mais abstratos do

folclore podem resistir através dos tempos e muito além da situação em que se

formaram. Assim, na metrópole, suas formas de pensar e sentir continuam

organizando sistemas de referência e quadros de percepção do mundo urbano.

(BOSI, 1973, p. 55).

Considerando que não há melhor retrato de uma região, mais cristalino espelho de um

país ou de um povo do que seu cancioneiro, a música popular é um dos elementos mais

valiosos para os estudos dos sociólogos interessados em fixar características, influências e

costumes (ALENCAR, 1984, p. 120).

Muitas das manifestações culturais do povo brasileiro eram marcadas pela fusão,

pela justaposição, pelo entrelaçamento, pela substituição de elementos advindos de

tradições culturais diversas. Estas transformações sofridas pelo material original,

muitas vezes de origem europeia, notadamente portuguesa ou ibérica, eram o que o

faziam se tornar nacional ou regional, eram o que o faziam ser abrasileirado. Este

processo se dava com maior intensidade, justamente, no Nordeste, onde o encontro

das três raças se deu de forma mais prematura e permaneceu sendo a base da

constituição étnica e cultural ao longo de toda a sua história. (ALBUQUERQUE

JUNIOR, 2013b, p. 168).

54

O grupo dos migrantes europeus, fruto da política imigratória que “além de seu significado econômico, possui

uma dimensão ideológica que é o branqueamento da população brasileira” (ORTIZ, 1985, p. 31), viria logo

depois compor o contingente de trabalhadores urbanos assalariados das primeiras fábricas nacionais, dando

forma aos primórdios do corpo proletário brasileiro. “Portador de ideias novas, como o anarquismo e o

socialismo, (esse grupo) dinamizava a vida operária e o sindicato. Sua influência na vida popular dos bairros e

das fábricas, nas festas e nos costumes, se objetiva especialmente na luta” (BOSI, 1973, p. 165).

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Dessa maneira, se apresentando ao longo do tempo como elemento cultural marcante

em várias sociedades, circunscrita a espaços sociais e políticos definidos (DIAS, 2000, p. 23),

o material musical é dotado de características peculiares que lhe conferem os estatutos da

fluidez e da maleabilidade.

As matérias e formas de expressão, muitas delas surgidas no meio rural ou nas

pequenas vilas do interior, serão trazidas e publicadas nas grandes cidades do litoral,

nas capitais [...] A migração do campo para a cidade [...] faz também com que

muitos dos artistas e produtores culturais das camadas populares se desloquem para

o meio urbano e adaptem as manifestações culturais de que eram agentes para esse

novo contexto de realização, o que implica, muitas vezes, mudanças significativas

em suas práticas. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2013b, p. 221).

De acordo com Alves (2012, p. 120), acerca da diáspora sertaneja, a construção da

rodovia Rio-Bahia no final dos anos 194055

favoreceu sobremaneira os processos migratórios,

ao passo que encurtou o maçante trajeto entre o sertão nordestino e a região Sudeste

brasileira.

Apesar de ocupar posição privilegiada quando se trata de eleger as principais

referências culturais representantes da verve sertanejo-nordestina de amplitude nacional,

Luiz Gonzaga e sua criação, o baião urbano-comercial dos anos 1940 e 50, foram

antecedidos por outros ritmos sertanejos que já gozavam de reconhecimento nas metrópoles

sudestinas.

No início do século passado, num contexto de indecisão e de busca das referências

musicais (e simbólicas em geral) que definiriam o que seria “genuinamente brasileiro” -

entendido pela intelligentsia nacional como os conteúdos material e imaterial resguardados no

folclore do mundo rural, em oposição à cultura urbana, corrompida -, a moda de viola

(caipira) e a embolada de coco56

(nordestina) tiveram grande êxito, respectivamente, nas

cidades de São Paulo e Rio de Janeiro57

.

55

A partir da abertura da rodovia, “com esses sertanejos, vieram usos, costumes, cozinha, linguajar, cantoria,

folhetos de cordel. Surgiu, assim, a figura do „paraíba‟, denominação genérica dada a todos os nordestinos,

sertanejos ou litorâneos, engajados nas obras espalhadas pela cidade [...]” (OLIVEIRA, 2000, p. 81). Como outra

manifestação pejorativa, esse período também conhece o início das “piadas de baiano” na capital paulista, a

“primeira reação popular à chegada de uma enorme quantidade de gente que, inadaptada às exigências técnicas

do trabalho na grande cidade, aparecia também como uma força de trabalho mais barata que tendia a contribuir

para uma depreciação do salário”, como retrata Weffort (1988, p. 16). 56

“Originária do Nordeste brasileiro, onde é frequente na zona litorânea e mais rara na sertaneja, a embolada tem

como características: melodia mais ou menos declamatória, em valores rápidos e intervalos curtos; texto

geralmente cômico satírico ou descritivo, ou consistindo numa sucessão lúdica de palavras associadas pelo seu

valor sonoro. Em qualquer dos casos, o texto é frequentemente cheio de aliterações e onomatopeias, de dicção

complicada, agravada pela rapidez do movimento musical. [...] Inicialmente rural, a embolada passou para as

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O Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX assistiu ao desenvolvimento e

proliferação de diversas modalidades de entretenimento pago, grande parte delas

associadas às novas tecnologias de reprodução da imagem do som, ao crescimento

da economia e da população urbana carioca e ao processo de modernização da

cidade, impulsionado pelas reformas urbanísticas empreendidas por Pereira Passos

(prefeito da cidade de 1902 a 1906) na primeira década do século. (BESSA, 2010, p.

27).

Portanto, foi nessas duas metrópoles brasileiras, e principalmente na cidade carioca,

lugar do país que apresentava, no começo do século XX, um mundo popular em alta

efervescência (CARVALHO, 2004, p. 41), que, como sugere Alves (2012, p. 84), “os

trânsitos rurais-urbanos imprimiram uma sonoridade e uma pauta musical para as audiências

que estavam se formando e se urbanizando”.

Segundo Carvalho (2004, p. 44-45), “em um duplo movimento, proveniente tanto de

artistas populares, [...] quanto de intelectuais modernistas, [...] fixaram-se as condições para

uma música popular e nacional, cuja expressão inicial valorizou a forma da embolada e a

figura do matuto”.

Por opção ideológica, o outro que vinha sendo forjado nesse processo era

identificado não com o negro ou o mestiço das cidades, tão próximos e atuantes, mas

com a figura mítica e distante do homem do campo, sobretudo o nordestino, o forte

sertanejo de Euclides da Cunha – o sertão abrangendo, nesse momento, todas as

comunidades não-urbanas do país. (BESSA, 2010, p. 97).

A inovação representada pela sonoridade nordestina havia sido introduzida no Rio,

ainda nos anos 1900, através da parceria estabelecida entre Catulo da Paixão Cearense

(1863-1946), poeta e cantor modinheiro, e o violonista João Pernambuco58

(1883-1947).

cidades, caindo no domínio dos cantores de rádio e de disco. Com essa transferência, sua complicação verbal e

sua rapidez foram acentuadas, tendo as suas manifestações urbanas perdido, por isso, um certo lirismo, de que se

reveste nas zonas rurais nordestinas” (MARCONDES, 1977, p. 250). Uma descrição mais sucinta sobre os textos

das emboladas é dada por Rodrigues (1983, p. 91): “são geralmente satíricos, cômicos ou descritivos. Às vezes

são um simples conjunto de palavras eufônicas, com muitas onomatopeias e aliterações. A dicção do intérprete

tem importante papel na compreensão da música”. Em três passagens do seu relato autobiográfico, Luiz Gonzaga

demonstra certo descontentamento no modo como a música sertaneja era absorvida na metrópole. Segundo o

sanfoneiro, ela “vinha sendo mistificada, deturpada pelos falsos artistas” (SÁ, 1978, p. 107); “não passavam de

contrafações grosseiras aqueles programas sertanejos com emboladas e rancheiras” (SÁ, 1978, p. 109) e “(eu)

queria mostrar, sobretudo, que ela (música nordestina) não era só aquelas emboladas mal arranjadas por certos

artistas, que tinham vindo do Norte, mas que não o conheciam realmente no que de mais verdadeiro: o sertão”

(SÁ, 1978, p. 113). 57

Cabral (2005, p. 39) diz que, nos anos 20, “atingia a música popular brasileira o surto cultural nordestino que

na literatura foi representado pelo lançamento do romance A bagaceira, também em 1928”. Como ressalta

Luyten (1987, p. 79), “a cultura popular nordestina [...] expandiu-se, sobretudo no século XX, de tal modo que

hoje é possível notar sua influência em todos os meios culturais do País, desde a literatura das classes

dominantes ao teatro e cinema”. 58

Moura e Vicente (2001, p. 78) apontam ter sido o “cantor e compositor pernambucano Manezinho Araújo, um

dos primeiros, ao lado de Minona Carneiro, a massificar a embolada e o coco através da indústria cultural”,

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A música nordestina expandiu-se para o sudeste no início do século, com a vinda de

João Pernambuco para o Rio de Janeiro, em 1902. Tornou-se amigo e parceiro de

Catulo da Paixão Cearense. Juntos ou separados têm enorme repertório de música

sertaneja. Outros intérpretes, na primeira década, gravavam ou simplesmente

cantavam músicas com temática nordestina [...]. (RODRIGUES, 1983, p. 37).

Catulo considerava-se um “sertanejo sem sertão”, capaz de descrevê-lo muito bem,

mesmo sem conhecê-lo tão profundamente (SEVERIANO; MELLO, 1997, p. 37), já que o

poeta foi morar no Rio com dezessete anos.

O relativo sucesso da dupla59

levou João Pernambuco a formar, para o carnaval de

1913, o bloco Grupo de Caxangá, (VIANNA, 1995, p. 50), composto também por outros

grandes (e mais familiares) nomes da música brasileira, como Pixinguinha (1897-1973) e

Donga60

(1889-1974) (CABRAL, 2005). O bloco tinha sucessos sertanejos no repertório e

seus membros se fantasiavam de matutos, “usavam chapéus de palha com as abas dobradas e

nomes de cantadores do Nordeste escritos nelas, calças com bainhas curtas, paletós surrados

e lenços no pescoço” (MARTINS, 2014, p. 14). Como aponta Almirante (2013, p. 29),

“crescia o interesse pelas músicas populares de fundo folclórico. Os jornais dedicavam

particular atenção aos versos das canções brasileiras, especialmente as sertanejas”.

Poucos anos depois, concomitante ao fim do Grupo de Caxangá, Pixinguinha e

Donga formam a banda instrumental Oito Batutas61

, que teve atuação perene entre 1919 e

1923. Mantendo o legado sertanejo do bloco carnavalesco citado, os Oito Batutas fizeram

turnês pelo Brasil e pela França (onde se estabeleceram durante seis meses, em 1922),

vestindo trajes sertanejos e apresentando o espetáculo “Uma noite no sertão” (MARTINS,

2014, p. 41).

Apesar de formada por instrumentistas cariocas, o fato é que os músicos batutas

eram, além de atentos ao desenvolvimento das tendências sonoras em ascensão, “herdeiros

de riquíssimas tradições culturais, como o choro e o samba, (e) abriram-se tanto para o

quando, mais à frente, na mesma obra, ressaltam que Manezinho Araújo foi um continuador de João

Pernambuco, dentre outros (MOURA; VICENTE, 2001, p. 107). 59

Ao lado de “Luar do Sertão”, a canção “Cabocla di Caxangá” (1913), classificada como “batuque sertanejo”,

são as principais parcerias da dupla, ambas com letra de Catulo e arranjo de João Pernambuco. Esta última é

considerada “a primeira música caipira gravada, [...] uma das muitas composições de Catulo moldadas em estilo

regionalista, fortemente influenciada pelo cordel e, portanto, pela cultura do Nordeste, que ajudaria a valorizar a

tradição do interior e a fazer dele um precursor da literatura que viria na década de 1930” (CEARENSE, 2017, p.

19). Severiano e Mello (1997, p. 17) consideram Catulo “o mais importante letrista brasileiro de sua geração. [...]

se especializaria em fazer letras para melodias consagradas de compositores contemporâneos”. 60

Controvérsias à parte, Donga é visto pelos especialistas, se não como o pioneiro no registro do samba em

disco, ao menos como o primeiro a gravar um samba de sucesso: Pelo telefone, em 1917 (MARTINS, 2014, p.

139). 61

“a música dos Oito Batutas não era algo homogêneo. Mas todos os estilos de seu repertório, apesar de incluir

gêneros totalmente urbanizados, podiam ser chamados, na época, de música sertaneja” (VIANNA, 1995, p. 116).

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sertanejo quanto para o jazz” (MARTINS, 2014, p. 127). Como diz Bessa (2010, p. 132), a

“escuta aberta”, principalmente atribuída a Pixinguinha, era a forma encontrada pelos

músicos populares para sobreviver no universo do entretenimento musical, circulando por

diferentes gêneros, estilos e performances, atendendo as demandas e os limites estabelecidos

pela audiência.

Leal e Barbosa (1982, p. 32) alegam que “o grande sucesso alcançado por os Oito

Batutas, além da qualidade dos músicos, se dava em virtude de grande parte de seu

repertório musical ser composto de músicas sertanejas e folclóricas”.

Foi a excursão dos Batutas por Recife em 1921 que despertou o interesse de alguns

músicos locais para formarem outros dois importantes grupos: os Turunas Pernambucanos e

os Turunas da Mauriceia, ambos tocando emboladas. Por sua vez, como será visto mais à

frente, esses nordestinos, numa troca constante e em fluxo contrário, invadiriam a cena

musical da cidade carioca no final da década em curso62

.

O Turunas Pernambucanos foi formado no Recife em 1922 e nesse mesmo ano se

mudou para o Rio de Janeiro, onde começou a registrar em disco algumas das suas músicas

que cantavam o Nordeste. Segundo Rodrigues (1983, p. 31), “apresentaram-se [...] com seus

trajes simples e chapéus de cangaceiros, os nomes artísticos escritos nas abas largas”, como

faziam os músicos do Grupo de Caxangá. Com o desmembramento do grupo no final dos

anos 20, dois de seus membros formam a dupla Jararaca e Ratinho, artistas pioneiros e

referência das duplas sertanejas que vieram posteriormente. Em tempos de uma indústria

cultural em formação, a dupla inovou ao adaptar o humor nordestino aos maneirismos

caipiras sudestinos, se organizando sob o formato de dupla caipira, cantando música

nordestina mas sem exibir sotaque nordestino (RODRIGUES, 1983, p. 38).

Sobre os Turunas da Mauriceia, estes chegaram ao Rio em 1927, vindos também do

Recife, e se apresentavam como pedia a ocasião: ora de smoking, ora com roupas típicas

sertanejas, também com seus nomes fictícios estampados nas palas dos chapéus de abas largas

(ALMIRANTE, 2013, p. 63). Ainda acerca do conjunto, atestam Severiano e Mello (1997, p.

74-75): “foi surpreendente o sucesso desses nordestinos, não se devendo o fato apenas ao

62

Sevcenko (1998, p. 592-593) relata mais detalhadamente esse período: “Entre 1928 e 1929 veio em excursão

para o Rio um conjunto pernambucano, com um repertório especializado de ritmos nordestinos, os Turunas da

Mauriceia [...]. Eles tocavam uma grande variedade de ritmos, [...] cocos, emboladas, trizadas, baiões, martelos...

Tinham uma série de apresentações marcadas para o Teatro Lírico, no largo da Carioca, como uma curiosidade e

só. Mas o sucesso foi tão retumbante, as plateias ficaram de tal modo arrebatadas pelo grupo, que novas

apresentações e excursões foram rapidamente marcadas por todo o Sul. Naturalmente as rádios também os

contataram para apresentações e o que fora até então um grande sucesso transformou-se numa febre, um

autêntico delírio coletivo”.

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71

exotismo de suas vestes, ou à rusticidade de seu canto, mas, principalmente, à qualidade de

suas canções”.

No ano seguinte, em 1928, repetindo a origem recifense, foi a vez de aportar no Rio o

grupo “Voz do Sertão”, do qual fazia parte Minona Carneiro, outro grande intérprete de

emboladas. Como diz Alencar (1984, p. 164-165), “o grupo teve vida efêmera, pouco mais de

um ano, mas gravou várias composições [...]. (Minona foi) o definitivo introdutor da

embolada nos centros mais requintados”.

Por sua vez, outro pernambucano, Manezinho Araújo, discípulo assumido de Minona,

foi talvez o último embolador do Rio a manter esse estilo em evidência na grande mídia

(ALENCAR, 1984, p. 168), ao longo dos anos 1930. Contudo, ainda segundo Alencar (1984,

p. 169), “tal como tem acontecido a quase todos os compositores, Manezinho, como autor,

cedo se influenciaria com as perspectivas amplas da metrópole e não se fixaria na embolada.

Compôs charges musicadas e outros tipos de música popular”.

Alves (2012, p. 87) diz que, “como os exemplos da embolada e da moda de viola

permitem inferir [...] o espaço urbano facultou as condições de transformação do rural em

expressão artística, integradas, na maioria das vezes, aos incipientes circuitos e serviços de

entretenimento, diversão e fruição”, fazendo da cidade o “suporte de um remanejamento

radical de estoques simbólicos” (MICELI, 2005, p. 162). O lugar de primazia atribuído ao

urbano nesse processo se explica, nas palavras de Peter Burke (2016, p. 69), pelo fato de que

as metrópoles, assim como as zonas de fronteiras, representam pontos geográficos específicos

francamente propícios à troca cultural63

, dadas as intensas relações sociais existentes nessas

áreas de elevada interatividade.

Segundo Alencar (1984, p. 167), a embolada “teria que sofrer no Rio as inevitáveis

deturpações de ambiente. Muita gente compôs emboladas e muita gente pensou que o fez.

Mas, não há dúvida que o ritmo nordestino teve a sua fase áurea, que continuaria ainda por

algum tempo [...]”.

Com um mercado fonográfico em consolidação, os cantores e compositores

dependiam sobremaneira do rádio para divulgar suas músicas. Assim, as emissoras eram a

principal estrutura de consagração à disposição dos que buscavam o reconhecimento social

(ROCHA, 2007, p. 104). Nesse sentido, o rádio será um dos meios que promoverá a conexão

63

No aspecto demográfico, o atributo metropolitano do Rio de Janeiro, dentre outros fatores contextuais, se

explica pela razão de desde o final dos anos 1910 a cidade já contar com mais de um milhão de habitantes

(VIANNA, 1995, p. 21). Vale notar, como aponta Bessa (2010, p. 126), que na capital paulista, embora em

menor grau, a “onda nordestina” também se fez sentir, onde em 1929 surgem os Turunas Paulistas e os Chorões

Sertanejos.

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72

entre o material originado das culturas camponesas com as novas sensibilidades urbanas. “[...]

conservando suas falas, suas canções e não poucos traços de seu humor, o rádio mediará entre

tradição e modernidade”, segundo Martín-Barbero (2015, p. 270).

Esse rico e peculiar momento da produção musical brasileira captou o:

áspero diálogo entre o mundo rural em começo de desagregação e o mundo urbano

em incipiente composição [...]. Em São Paulo e principalmente no Rio de Janeiro,

desde o começo do século até ao redor de 1930, assistiu-se à música e aos elementos

culturais a ela mais diretamente ligados transformarem-se em focos de resistências

de valores ruralistas e em mensagens sonoro-poéticas de nosso sertão. [...] Durante

todo esse período, nos palcos cariocas, e depois até mesmo no rádio, falar como

sertanejo, cantar e versejar como sertanejo, vestir-se tipicamente como sertanejo e

usar pseudônimos sertanejos era mais do que “moda”, pois tornara-se uma

imposição aos intérpretes e criadores, na medida em que esta volta para o sertão era

um retorno estimulante e estimulado às fontes de brasilidade, descaracterizadas pela

vida urbana. (PEREIRA, 2001, p. 192-193).

O fato da primeira banda do famoso sambista carioca Noel Rosa64

, o Bando de

Tangarás, ter seu repertório alicerçado nas emboladas de coco dos pernambucanos do

Turunas da Mauriceia, atesta o grau de reconhecimento da música sertanejo-nordestina no

Rio de Janeiro na virada dos anos 20 para os 3065

(ALVES, 2012).

O “filósofo do samba” (Noel Rosa) até então não se interessara por motivos e ritmos

cariocas. Mantinha-se ainda com a ideia voltada para os sucessos das canções

sertanejas. O Bando de Tangarás lançara os tipos mais diversos: lundus, canções,

toadas, cateretês, sambas e marchas e, no entanto, o maior reforço eram as

emboladas do Norte. (ALMIRANTE, 2013, p. 101).

Nesse sentido, possuindo uma consciência urbana relativamente consolidada já nos

anos 1920, as camadas populares cariocas podiam usufruir do produto poético-musical de

orientação rural como artigo de consumo (TINHORÃO, 1975, p. 194).

Em relação ao aspecto do consumo citado acima, em Filosofia da Nova Música,

Adorno (2004, p. 18) ressaltara que “a indústria cultural tem educado suas vítimas para evitar-

lhes todo o esforço no tempo livre que destinam ao consumo dos bens espirituais que lhes

fornece, elas se aferram com tenacidade ainda maior à aparência que apaga a essência”. O

principal ponto de crítica adorniana foi a “estética do efeito”, que submetia a música séria aos

64

Como ressaltado por Almirante (2013, p. 25), a música nordestina foi referência para Noel, mesmo que

indiretamente, durante toda sua curta vida artística: “Entusiasmado com as criações do violonista João

Pernambuco, Noel Rosa compôs sua primeira obra musical em versos, a embolada „Minha Viola‟. Quatro dias

antes de morrer (em 1937), Noel Rosa deixou seu derradeiro manuscrito, a embolada „Chuva de Vento‟”. 65

A embolada Pinião, de autoria de Augusto Calheiros e Luperce Miranda, membros dos Turunas da Mauriceia,

é apontada como a música mais tocada do carnaval de 1928 (SANTOS, 2004, p. 30-31).

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ditames da indústria da diversão, provocando a regressão da audição do público e a conversão

da música em cultura de aparência (CARONE, 2003, p. 479).

A década de 1930 constitui uma fase artístico-cultural muito produtiva no Brasil. A

radiodifusão se expande, fruto das experiências da década anterior. [...] os melhores

intérpretes e compositores eram divulgados pelo rádio, bem como pelos discos

elétricos, em plena ascensão. Gravava-se de tudo, numa simbiose de todos os

gêneros musicais. (RODRIGUES, 1983, p. 61).

Como relata Sérgio Cabral (2005, p. 38), em obra biográfica dedicada a outro

integrante do futuro Bando de Tangarás, o radialista e compositor Almirante, em 1928, na

apresentação de estreia do grupo amador Flor do Tempo, precursor do Bando, “embora a

festa tenha recebido o título de „Madrugada de Samba‟, o clima era francamente nordestino,

resultado, sem dúvida, da poderosa influência do grupo Turunas da Mauriceia na juventude

carioca”.

Dentro do panorama de transformações urbanas e simbólicas que o Rio de Janeiro

experimentava durante as décadas de 10, 20 e 30, as fronteiras entre o rural e o

urbano estavam, muitas vezes, borradas, havendo enclaves rurais e semirrurais

dentro da cidade, assim como hábitos e comportamentos. (ALVES, 2012, p. 154).

De acordo com Frota (2003, p. 20), “os maiores sucessos carnavalescos entre o início

do século e o fim dos anos 20 [...] (revelam) que a expressividade do samba urbano no Rio de

Janeiro não emplacou tantos sucessos como os ritmos e bossas mais originalmente

nordestinos”.

Em pouco tempo, os cariocas tornaram-se mestres na composição de emboladas,

muitas delas consideradas “legítimos exemplos” do folclore nordestino. [...] A

prolífica produção de gêneros “do norte” nos anos 1920, aliás, é representativa da

confusão generalizada entre a música folclórica e as recriações urbanas, pondo em

evidência a problemática da autoria e da “autenticidade” na música popular.

(BESSA, 2010, p. 101).

Nesse ponto, ressalte-se que a indústria cultural não lida com valores autênticos ou

inautênticos, mas com o que pode ser vendido. Segundo seus interesses de mercado, não

importa que a embolada (pra continuar no objeto em foco) tenha o carimbo de

“autenticamente sertaneja”. O ideal é que se venda, circule.

Em outro aspecto, as trajetórias dos principais produtores musicais do rádio (como o já

citado Almirante, Renato Murce, etc.) ao longo dos anos 30, 40 e 50, foram fortemente

marcadas pelos gêneros regionais e folclóricos (ALVES, 2012, p. 173), o que chama a

atenção para o fato da repercussão desses conjuntos sertanejos junto ao público sudestino ter

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se restringido a determinado grupo detentor de recursos financeiros e acesso aos aparelhos de

comunicação, como sugere Santos (2004, p. 31). O mesmo autor diz que, “embora tivéssemos

o aparecimento dos primeiros expoentes de uma música considerada nordestina, não havia

(ainda) um processo de divulgação dessa manifestação” (SANTOS, 2004, p. 30), reforçando o

caráter restrito no acesso às expressões culturais.

No entanto, ao contrário do ocorrido com a embolada de coco e a moda caipira anos

antes, o baião não foi classificado como “música sertaneja”, o que pode ser explicado pelo

fato desses ritmos rurais preliminares já terem suas estruturas sonoras fixadas nos seus

respectivos locais de origem (ALVES, 2012). Por outro lado, o baião foi elaborado no meio

urbano a partir de um minúsculo fragmento melódico executado pelos repentistas nordestinos

em suas violas66

, ainda em formato pré-industrial, extraído das memórias sonoro-afetivas de

Luiz Gonzaga (DREYFUS, 1996), seu principal artífice. Essa concepção vai ao encontro do

que diz Eco (1979, p. 54): “não há forma de criação „coletiva‟ que não seja medida por

personalidades mais dotadas, feitas intérpretes de uma sensibilidade da comunidade onde

vivem”, ou onde se estabeleceram, como ocorreu com Gonzaga.

Dessa forma, o baião já nasce como produto comercial, por isso, sua longevidade em

relação à embolada, que embora obtendo visibilidade, pereceu em aspectos nitidamente

amadores do ponto de vista empresarial e simbolicamente limitados pela expansão capitalista

de seu tempo (anos 1920) e seus processos modernizadores.

Todavia, apesar dos grupos nordestinos atuantes no Rio de Janeiro nos anos 20 e 30,

foi com o baião que aconteceu a “nacionalização estética” do Nordeste (ALVES, 2012, p.

374). Segundo Dreyfus (1996), o cenário musical da década de 1940 no Brasil propiciou a

emergência do baião, no momento que registrava-se uma caída de popularidade do samba,

que estava se transmutando no que viria a ser o samba-canção dos anos 50, última etapa antes

do surgimento da Bossa Nova.

Se o samba, desde os anos 1930, era aceito como a música brasileira típica, a partir

do final dos anos 1940 ele dividia o espaço na programação musical das emissoras

de rádio com outros gêneros populares. Do nordeste brasileiro, a nova sensação

eram os ritmos dançantes, como o baião e o xote, popularizados por Luiz Gonzaga

[...]. (NAPOLITANO, 2017, p. 15).

66

Não havia no sertão nordestino “um gênero musical nucleado pela forma canção antes do baião, com exceção

da cantoria/repente, que não é propriamente um gênero musical, mas sim um domínio poético-musical muito

menos marcado pelo desempenho do canto” (ALVES, 2012, p. 296). Como dito anteriormente, a própria

embolada era uma manifestação mais frequente na zona litorânea do que na porção sertaneja-interiorana do

Nordeste.

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Para Alves (2012, p. 29), “o gênero musical baião resultou dos trânsitos simbólicos e

musicais envolvendo os espaços urbanos e rurais, no decurso do processo de modernização

cultural do Brasil, notadamente entre as décadas de 30 e 50, do século XX”. Exatamente no

meio desse período, em março de 1939, os deslocamentos inerentes à vida militar, levaram

Luiz Gonzaga ao Rio de Janeiro, onde se inseriu no Mangue, bairro boêmio localizado na

zona portuária da capital republicana, após pedir baixa do exército brasileiro, trocando o fuzil

pela sanfona. Nesse momento Luiz Gonzaga vislumbrou a oportunidade de se profissionalizar

como sanfoneiro e viver da música, pois o contexto artístico, em ampla expansão, permitia

que um músico de talento e carisma estabelecesse uma carreira, se não glamorosa pelo menos

“estável”, que iniciando-se em bares, gafieiras e clubes, poderia levá-lo ao rádio e ao disco

(ALVES, 2012, p. 232).

Nesse período inicial, seu repertório era baseado em peças instrumentais estrangeiras,

como valsas, tangos e polcas, pois “faltava-lhe a inspiração e o incentivo para tocar os ritmos

nordestinos que ouvira em sua infância” (SANTOS, 2004, p. 35).

Já em 1940, o sanfoneiro buscava os palcos dos programas de calouros das maiores

rádios cariocas para se apresentar, porém, sem obter o êxito esperado perante os jurados.

Como relata o próprio sanfoneiro, “o rádio, porém, era uma miragem que me deslumbrava,

mas em que temia pensar” (SÁ, 1978, p.104). Foi a partir do momento em que ocorreu o

emblemático encontro de Luiz Gonzaga com um grupo de estudantes cearenses67

, fato que

acarretou uma mudança no direcionamento artístico do sanfoneiro, que Gonzagão se devotou

a dar o colorido sertanejo às suas apresentações nas noites cariocas. Também as aprovações

dos jurados nos concursos radiofônicos começaram a surgir, assim como contratos para as

primeiras participações em gravações, culminando na sua estreia em disco, ocorrida em março

de 1941.

Essa curta linha cronológica denota a relativamente rápida ascensão artística de Luiz

Gonzaga, que no intervalo de menos de dois anos (entre 1939 e 1941), deixava as calçadas e

bares da zona portuária carioca para compor, como instrumentista, o time de músicos

profissionais de estúdio e, eventualmente, interpretar personagens humorísticos em programas

radiofônicos (OLIVEIRA, 2000, p. 91), fato interessante e pouco aludido nas biografias do

sanfoneiro. Perfeitamente cabível à trajetória artística de Gonzaga é a assertiva de Hobsbawn

67

Dentre os que compunham o referido grupo de estudantes, Armando Falcão tornou-se o mais célebre deles,

chegando a exercer os cargos de deputado federal e Ministro da Justiça no governo Geisel (1974 a 1979).

Segundo Oliveira (2000, p. 43), Falcão “conheceu Gonzaga quando tinha 20 anos, estudava na Faculdade de

Direito do Rio de Janeiro e trabalhava no Instituto Nacional do Sal”.

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(1990, p. 218), para quem “o melhor profissional de entretenimento é aquele para o qual a arte

é a única possibilidade de sair da sujeira e da opressão e alcançar uma relativa liberdade”.

Faz-se necessário afirmar a intencionalidade (artística e pessoal) de Luiz Gonzaga nos

dois momentos cruciais para a construção de sua carreira musical: primeiramente, o momento

no qual decide se estabelecer no Rio de Janeiro, em 1939, ao invés de embarcar num navio de

volta para as terras nordestinas, onde o futuro que o esperava seria, muito possivelmente, a

vida na roça, tocando por diletantismo (e alguns trocados) nas festinhas dos pequenos

vilarejos em torno de Exu; e o segundo instante, em 1946, quando em parceria com Humberto

Teixeira dá forma ao baião enquanto gênero musical e dança através do lançamento da música

“Baião” por uma major internacional, a RCA Victor68

, que:

no início de 1946 acabara de construir uma fábrica de discos no interior de São

Paulo e, nos anos 30, destacou-se no mercado fonográfico a partir das vendas

alcançadas, por exemplo, por Carmem Miranda; tornando-se um dos agentes mais

poderosos da indústria fonográfica brasileira, o segmento mais destacado, aliado ao

rádio, do incipiente mercado de bens simbólicos nacionais. (ALVES, 2012, p. 97).

De acordo com Wisnik:

na passagem dos anos 40 para os anos 50 é que a música popular no Brasil tomará

um aspecto mais abrangente, globalizando o País nas suas regiões e penetrando mais

fundo no tecido da vida urbana. Os ritmos nordestinos ganham uma compactação no

baião de Luiz Gonzaga [...]. (WISNIK, 1987, p. 120).

Voltando a Alves (2012, p. 118), “as condições sociais de experimentação que

resultaram no baião, nos anos 40, foram dinamizadas e facultadas pelo crescimento dos

circuitos de diversão, lazer e profissionalização musical, como o rádio e o disco [...] (assim

como a) demanda por gêneros dançantes69

”, ensejando a percepção do aparecimento midiático

da figura de Luiz Gonzaga como um fenômeno sociologicamente previsível, favorecido pelos

contextos físico e social (RISÉRIO, 1990, p. 35). Embora seja uma concepção plausível,

entende-se ser extremamente temerário atribuir ao “Gonzaga-símbolo” o sucesso e

repercussão de sua obra inteiramente às condições ambientais externas a ela.

Destacando a influência das duas maiores metrópoles nacionais no processo de

consolidação do baião, Claudeci Silva (2009, p. 52) diz que: “Rio de Janeiro e São Paulo

68

De acordo com Ângelo (1990, p. 70), “em 48 anos de gravação e meio século de atividade musical, Luiz

Gonzaga assinou contrato com apenas três gravadoras: RCA Victor, Emi-Odeon e Copacabana. Quase todos os

seus discos, porém, foram gravados na RCA”. 69

Genericamente, “a dança que surge para empolgar o panorama cultural do século XX é baseada no ritmo

pulsante, sincopado, frenético, de base negra, cigana ou latina e o que é buscado nela é um estado de completo

abandono, excitação e euforia extática” (SEVCENKO, 1998, p. 593).

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sempre se destacaram como centro cultural e de expressão da música, projetando muitos

artistas através das emissoras de rádio e da indústria fonográfica, inclusive do Nordeste”,

poder esse que, em grande parte, se explica pela concentração da maioria dos veículos de

comunicação e da indústria fonográfica na região sudeste70

. Assim, Pereira (2001, p. 32-33)

dá destaque ao esquema produtivo incorporado pelo rádio carioca por ter “se constituído em

foco de difusão de padrões de vida radiofônica por todo o território nacional. Era espécie de

modelo a orientar a organização e programação das estações que se iam multiplicando pelas

capitais do país”.

O surgimento dos gêneros musicais populares, em consonância com os movimentos do

mercado fonográfico, segundo Janotti Junior (2006, p. 06), “são indicações de determinadas

dicções e estratégias midiáticas de direcionamento mercadológico da música71

”.

Dessa forma, no Rio de Janeiro do começo do século:

a presença dos conjuntos regionais nordestinos, sobretudo durante o carnaval, na

década de 10, 20 e 30, assim como a profusão de compositores, intérpretes e letristas

vinculados ao samba urbano na década de 30, pressionou os veículos de mídia,

como o rádio e o disco, por uma maior cobertura de gêneros que se nacionalizavam,

como o samba [...]. Tais linguagens e sonoridades compunham o embrionário

entretenimento urbano-metropolitano, criando sendas de profissionalização e

consumo do lazer urbano, cruzando referências interrurais e inter-regionais, que se

urbanizavam, mas que eram, todavia, amalgamadas como gêneros sertanejos.

(ALVES, 2012, p. 88).

Nesse sentido, e tendo na construção do baião urbano-comercial uma situação

exemplar da relação indústria fonográfica/gêneros musicais populares, Alves (2009, p. 73)

diz que “a complementaridade estabelecida entre difusão e abrangência sonora do rádio e a

penetração do disco como unidade de reprodução, fez do baião um dos principais gêneros

musicais nacionais”, confirmando a assertiva de Dias (2000, p. 38), para quem “a prospecção

de mercados locais firmou-se como forte estratégia para a expansão da indústria fonográfica

mundial”.

70

Para Habert (1974, p. 33), “o desenvolvimento urbano no Brasil também pode ser identificado com o dos

meios de comunicação de massa e dos canais de informação, o que não é uma especialidade brasileira. Isso

ocorre em todos os países de economia subdesenvolvida, periféricos e dependentes dos países capitalistas

desenvolvidos”. 71

No entanto, logicamente, há o que “pega” e o que “não pega”. O próprio Luiz Gonzaga, antes e após o

lançamento do gênero/dança/música Baião, tentou emplacar (ou popularizar), sem o mesmo sucesso, outros

ritmos sertanejos, como Chamego (1944), Siridó (1949) e Xaxado (1952). Deve-se ter em conta que, “tudo

aquilo que recebe apoio popular tende a se manter, a fazer história” (CALDAS, 2000, p. 21). Na concepção de

Luiz Gonzaga, destacando o protagonismo do público: “o povo, finalmente, é quem aplaude sinceramente, quem

sabe distinguir o autêntico do falso. O povo, em última instância, é quem compra o disco” (SÁ, 1978, p. 115).

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Grande parte do crescimento e da difusão das culturas tradicionais se deve à

promoção das indústrias fonográficas, aos festivais de dança, às feiras que incluem

artesanato e, é claro, à sua divulgação pelos meios massivos. A comunicação

radiofônica e televisiva ampliou, em escala nacional e internacional, músicas de

repercussão local como [...] a música nordestina e as canções gaúchas no Brasil.

(CANCLINI, 2015, p. 217).

Como destaca Lima (2010, p. 67), “apesar de essa mesma indústria representar um

movimento global de reprodução capitalista, a indústria fonográfica brasileira apresenta

caminhos bem específicos. A primeira particularidade está na forte vinculação com as

manifestações culturais locais e regionais”.

Ainda nesse aspecto, Duarte (2003, p. 154) aponta que o capitalismo global “necessita

da diversidade e da contraditoriedade que só as culturas locais possuem, para se afirmar na

concorrência mundial, valendo-se não raro dos elementos locais para obter as inovações

necessárias em seus produtos e mercados”.

Apesar de representar outra vertente da música nordestina, paralela ao baião, o

surgimento midiático do paraibano Jackson do Pandeiro corrobora os preceitos elencados

acima. A partir do primeiro registro sonoro do pandeirista, o coco Sebastiana (1953), “o novo

olhar do mercado para Pernambuco (estado onde Jackson alavancou sua carreira artística)

levara os produtores a ajustes de última hora, buscando expor a maior diversidade possível

dos ritmos e sonoridades locais. Havia muita gente de olho no que estavam fazendo naquele

momento” (MOURA; VICENTE, 2001, p. 155).

Dito isso, são várias as percepções derivadas. Para Adorno, o momento da passagem

do meio tradicional para a esfera capitalizada da cultura é sempre traumático para os

envolvidos; o evento não se dá de maneira fleumática. O processo de transferência de lugar

faz da música popular um artigo “violentado”.

Atualmente não há nenhuma música que não tenha em si algo da violência do

momento histórico e que, portanto, não se ressinta da decadência da experiência, da

substituição da “vida” por um procedimento de adaptação econômica, guiado pela

violência dominadora da economia concentrada. (ADORNO, 2004, p. 148-149).

Nessa concepção, o baião seria mercadoria formatada (violentada, segundo Adorno) a

partir de uma manifestação sonora tipicamente rural-sertaneja, após ser adaptado ao meio

urbano, tornando-se uma manifestação invertebrada, espoliada.

Já Morin (1997, p. 159) acredita no caráter cosmopolita como um fator resultante do

material original após sua transfiguração, pois a cultura de massa “não destrói todo o folclore:

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substitui os folclores antigos por um novo folclore cosmopolita [...] (que) carrega em si

fragmentos de folclore regionais, nacionais ou étnicos: é, num certo sentido, um agregado de

folclores que se unem para formar um tronco universalizado”. Portanto, sob a perspectiva de

Morin, o meio urbano, além de locus de capitalização e distribuição dos bens culturais,

reverberados através da indústria cultural, transforma-os em itens cosmopolitas.

Conforme diz Canclini (1983, p. 86), “o capitalismo não apenas desestrutura e isola;

ele também reunifica, recompõe os pedaços desintegrados num novo sistema [...] (visando) a

criação de brechas por onde a política dominadora possa instalar-se”. Nessa linha entende-se

que a cultura popular se recicla e se adapta às novas realidades, acompanhando as constantes

mudanças sociais (CALDAS, 2000, p. 12). Segundo Habert (1974, p. 93), os meios de

comunicação organizam, através de padrões racionais, um repertório já desenvolvido, de

origem erudita ou popular, pois só nos museus o folclore está morto (BOSI, 1973, p. 54).

Trotta (2005, p. 183) diz que “a música e o complexo industrial e empresarial que a

cerca são atualmente pertencentes a um conjunto único, influindo na criação, produção,

divulgação, distribuição e no consumo de produtos musicais”. Assim, o baião gonzagueano é

entendido como um dos primeiros exemplos da atuação conjunta do mercado musical

nacional, visto que seu lançamento foi fruto de estratégias inéditas nesse campo,

compreendendo uma análise sagaz do contexto sociopolítico e cultural brasileiros da época

(SANTOS, 2004, p. 41).

Como apontam Marcelo e Rodrigues (2012, p. 25), “as gravações de sucessivos

compactos e as apresentações em programas de auditório das maiores estações de rádio da

capital federal levaram o pernambucano (Luiz Gonzaga) a ser conhecido em todo o país”,

fazendo-o cravar seu nome no rol dos grandes artistas da música brasileira, já que “das

centenas de novos cantores que surgem anualmente gravando discos, a grande maioria,

esgotada por lançamentos sucessivos e sem público fiel, desaparece no ano seguinte,

permanecendo apenas os poucos que, com seus discos, lançam um estilo ou um novo gênero

musical” (JAMBEIRO, 1975, p. 68).

Como peça abre-alas, “Baião” apresenta o ritmo, com forte ênfase na síncope do

segundo tempo, e ensina como dançá-lo, ao mesmo tempo em que convida o ouvinte

a aderir à novidade. Tudo isso sobre uma melodia cheia de sétimas menores,

semelhantes às cantigas de cantadores do Nordeste. (SEVERIANO; MELLO, 1997,

p. 245).

Segundo Moura e Vicente (2001, p. 257), “o estouro do baião pelas esquinas do

planeta, por exemplo, permitiu o surgimento de um mercado real para a música regional

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80

brasileira. [...] promovendo uma verdadeira revolução no mercado fonográfico brasileiro a

partir da década de 1940”.

Dessa forma, como será detalhado no tópico seguinte, o berço do baião enquanto

produto cultural de significação substancial não foi o Nordeste, mas sim o Rio de Janeiro,

pois foi lá que o gênero musical intitulado “baião” surgiu como fenômeno amplificado, de

onde se irradiou nacionalmente.

2.2 BAIÃO, UM EXPERIMENTO URBANO

Apesar da difícil categorização positiva dos elementos que compõem o gênero musical

baião, tendo em mente que é mais fácil definir um gênero a partir de parâmetros que tratem do

que ele não é do que pela demarcação clara de suas fronteiras (JANOTTI JUNIOR, 2003a, p.

20), mesmo assim, é possível estipular algumas características inerentes a esse estilo musical,

que ajudaram na sua formação identitária, fazendo-o alcançar projeção mais ampla do que os

gêneros musicais nordestinos antecedentes, como a embolada.

A formatação musical inovadora, com instrumentos característicos (sanfona, zabumba

e triângulo), fruto de um processo de experimentações em cima de palcos e principalmente em

estúdios de gravação72

; a carga sentimental rural-nordestina presente no conteúdo lírico (seca,

migração, fome, saudade, festas, etc.); e as singularidades marcadamente nordestinas

presentes (sotaque, léxico e cadência narrativa) são, possivelmente, três dos principais

elementos que caracterizam o baião em seu primeiro momento de apogeu, que compreende o

período que vai da metade dos anos 40 à metade da década seguinte73

.

Como relata Gonzaga, “o que me interessava mesmo era dar corpo àquelas músicas de

lá do „pé de serra‟, músicas que sabia prenhes de sabor, de alma, faltando-lhes apenas uma

mão que a burilasse, lhes imprimisse vida” (SÁ, 1978, p. 123). O grau de reconhecimento

atingido pelo baião, atribuído à perspicácia de Gonzaga e Teixeira, denota que, como é

72

De acordo com Alves (2012, p. 255), “a maioria das gravações das canções feitas por Gonzaga entre 1946 e

1950 (no rádio e no disco) não levavam o acompanhamento dos hoje clássicos triângulo e zabumba. O

acompanhamento da sanfona era conduzido por instrumentos como o violão, o pandeiro, o cavaquinho e o

bandolim, executados por grupos regionais”. Foi só em 1949 que começaram os experimentos em estúdio com o

zabumba e o triângulo. Em entrevista ao pesquisador Assis Ângelo, Gonzaga relata: “O triângulo, como

instrumento musical, eu apanhei na rua. Agora a zabumba, não. A zabumba eu já trazia na minha vida há muito

tempo. [...] (o triângulo) fui procurar um ferreiro. [...] foi feito na hora. Não ficou muito bom, mas achei que já

dava pra começar...” (ÂNGELO, 1990, p. 54-55). 73

Segundo Santos (2004, p. 52-53), “embora a quantidade de gravações de baião tenha sido menor do que a de

samba, a justificativa para determinar-se o período de auge do baião (1947 a 1957) está relacionada à execução e

à presença dessa música nas emissoras de rádio”, quando chegou a dominar 80% das execuções musicais em

todo o território brasileiro (OLIVEIRA, 2000, p. 48).

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81

comum ocorrer na arte, as grandes criações artísticas se dão com aqueles agentes que sabem

empregar as novidades com propósitos comerciais (HOBSBAWN, 1990, p. 20). A escalada

do baião, portanto, se deu mediante processos de experimentação e aprimoramentos (ALVES,

2012, p. 310).

A musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entonação da voz

fazem parte de um campo de organização social, cultural e econômica, no qual a

criatividade individual se encerra e se desenvolve. Criatividade difícil, negociada,

mediada pela técnica e pelas leis de mercado. (DIAS, 2000, p. 12).

Para Santos (2004, p. 42), o movimento migratório dos sertanejos com destino aos

grandes centros urbanos influenciou decisivamente Luiz Gonzaga a redirecionar o foco de sua

arte às manifestações culturais e musicais nordestinas, apontando o aguçado tino do

sanfoneiro em enxergar nesse ambiente um público em potencial para a sua obra. Assim, o

baião deve sua constituição mais às experiências urbanas de seus idealizadores (Luiz Gonzaga

e Humberto Teixeira) do que a uma substância sonora já existente (ALVES, 2012, p. 30).

Destacando o papel do meio urbano na profissionalização do artista amador:

a cidade não só fornece o espaço para o profissionalismo, ela o exige. Seu estilo de

vida mais especializado, menos tradicional do que o do campo, onde as artes são

geralmente ligadas a eventos e ocasiões específicas da vida, e quase que impensáveis

fora dessas situações, sendo portanto, por força, em grande parte amadoras [...] a

cidade tende a separar o artista do cidadão, e a transformar a maior parte da

produção artística em “entretenimento”, uma necessidade especial, suprida por

especialistas. (HOBSBAWN, 1990, p. 176).

Como aponta Jambeiro (1975, p. 138), “para compor, o compositor não precisa de

nada mais que sua inspiração, (contudo) para tornar esta inspiração rentável economicamente

terá que entrar nas engrenagens do sistema industrial-comercial” que envolve a esfera

mercantil da música. O propósito fecundo de uma canção está presente já na fase embrionária

de sua formatação74

:

Na cabeça de um compositor de música popular, por exemplo, já há o imperativo de

pensar no aspecto comercial de sua composição antes mesmo de sonhar com sua

gravação em disco. Ou seja, de pensar em sua composição como uma mercadoria

74

Ao que parece, os parâmetros de composição na música popular beiram mesmo os ritos “protocolares” e

práticas “manualizadas”. Como relatado pela forrozeira pernambucana Anastácia, contemporânea do Trio

Mossoró, em seu livro autobiográfico, “música tem que ter começo, meio e fim, pra gente fazer a historinha e

concluir. [...] Não se pode fazer um hino nacional porque não vale a pena. Música pra ser comercial, pra tocar na

rádio, tem que ser até três minutos, senão o povo não aguenta. Mais que isso não toca!” (FERREIRA, 2011, p.

153-154). Se tratando de depoimento de uma das maiores autoras da música popular nordestina, com centenas de

composições e regravações, a fala é sugestiva.

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82

antes de ela se tornar um produto posto à venda pelas gravadoras. (CARONE, 2013,

p. 10).

Conforme Hobsbawn (1990, p. 177), “os artistas folk que fizeram o jazz não

acalentavam bobagens românticas a respeito das virtudes de seu amadorismo. Eles se

tornavam profissionais assim que podiam ganhar dinheiro com a sua música”. Da mesma

forma se sucedeu com o principal artífice do baião, pois os artistas “preferem ser famosos e

ganhar dinheiro com sua arte a não ganhar dinheiro com ela” (HOBSBAWN, 1990, p. 186).

Assim sendo, Alves (2012, p. 273) diz que “a inserção dos temas prosaicos e também

mais candentes do cotidiano rural-pastoril do sertão nordestino nas canções [...] foi, sem

dúvida, uma das grandes especificidades que conferiu o fulgurante êxito estético, poético-

musical e comercial ao baião”, já que nas primeiras composições de Luiz Gonzaga ainda não

figuravam os aspectos relacionados à cultura nordestina. Nessa fase inicial, os temas recaíam

sobre o cotidiano da sociedade carioca, embebidos em traços bastante diluídos de uma

melodia sertaneja (SANTOS, 2004, p. 38), sendo os gêneros musicais executados por

Gonzaga ainda majoritariamente urbanos (valsas, choros, polcas, etc.)75

.

É frequente a música popular se expandir em duas etapas bem distintas. Primeiro,

nasce nos casebres do povão, lá cresce, amadurece, se estrutura. Quando está

prontinha, entra na segunda fase, que é quando a classe média a descobre, e se

apodera dela, dando-lhe estilo e roupa nova [...] com o baião a história tropeçou: ele

invadiu os lares do Brasil inteiro, sem dar tempo, sem etapas, sem distinção social.

(DREYFUS, 1996, p. 169-171).

Enfocando o período de virada das décadas de 1940 para 1950, Dreyfus (1996, p.

138), principal biógrafa de Luiz Gonzaga, diz que “o baião estava definitivamente

implantado, era moda incontornável, manchete diária da emprensa (sic)”.

No tocante aos temas decantados no baião, como apontado por Oliveira (2004, p.130),

muito embora verificadas as exceções, em sua fase inicial a temática do baião era

essencialmente pastoril, rural, naturalista, conservadora76

e, no tocante à religião, católica. É

uma narrativa patrimonialista e paternalista, diálogo privado entre clãs proprietários ou com a

mulher amada, que consolida “uma poética que, notadamente no rádio, tornou-se uma

75

Da sua estreia no disco, em 1941, até a gravação da primeira parceria com Humberto Teixeira (No meu pé de

serra, xote de 1946), as 80 composições registradas por Luiz Gonzaga e parceiros se dividiam da seguinte

maneira: 30 valsas, 19 choros, 10 xamegos, 07 polcas, 05 mazurkas, 05 marchas, 04 outros (picadinho,

quadrilha, calango e embolada). Dados do pesquisador, com base nas informações de Dreyfus (1996). 76

Aqui, um contraponto: Pucci, Ramos-de-Oliveira e Zuin (1999, p. 99) entendem que “nenhuma obra de arte

pode ser chamada de conservadora. Pelo simples fato de emergir do mundo empírico, testemunha a vontade de

transformá-lo”. Como aponta Bahia (2004, p. 75), “a arte revela a busca de esclarecimento, e nela, mais que em

qualquer outra dimensão do fazer humano, está contida a radicalização da angústia mítica”.

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83

pungente crônica sonora e lúdica do sertão nordestino, narrando com lirismo os aspectos da

seca, da migração, do cangaço, da vida do vaqueiro, dentre outros” (ALVES, 2012, p. 93). No

baião, a narrativa é realista, e seu conteúdo político, quando há77

, reproduz as relações

coronelistas do mundo rural. Nele, a crítica e o conflito raramente são ressaltados,

diferentemente de outra manifestação artística regional: a literatura de cordel, que, logo

convertida em plenamente urbana, possibilitou o trânsito das classes populares do oral ao

escrito (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 148-149). No cordel a crítica denunciativa, sobretudo

através do humor78

, é nítida.

Os primeiros sucessos das canções do baião não foram extraídos dos códigos

intersubjetivos dos imigrantes sertanejos-nordestinos, mas sim dos próprios

segmentos urbanos pobres e remediados, que, cada vez mais, fruíam, em casa e fora

do lar, as danças urbanas. A partir dos anos 50, todavia, com o deslocamento maciço

das populações pobres sertanejo-nordestinas para o eixo Rio-São Paulo79

, banidas

em decorrência das sucessivas secas e das assimetrias econômicas, o baião retirará

parte significativa de seu sucesso e legitimação estética do lirismo das canções.

(ALVES, 2012, p. 120-121).

O apelo simbólico do baião e da figura artística de Luiz Gonzaga é marcado pelo seu

caráter local, ao mesmo tempo em que se eleva, às vezes, a representante da brasilidade,

reinterpretando o sertão e fornecendo-lhe uma nova linguagem. Apoiado na concepção

ressaltada por Martín-Barbero (2015, p. 274) de que “a vida da cidade dissolve boa parte das

solidariedades e dos modos de viver das pessoas que chegam do interior80

”, dado que o

público inicial de Gonzaga era composto basicamente de migrantes nordestinos, tem-se que,

em relação à indústria cultural:

77

Pode-se especular que a ausência de temas políticos no baião seja justificada pela opção em não causar uma

divisão no seu público, dado que tal assunto, demandante de cautela, tende mais a desagregar do que unir,

embora entenda-se que seja delicada a definição de uma composição artística que seja radicalmente apolítica.

Ângelo (1990, p. 66), diz que “politicamente, porém, o artista Luiz Gonzaga não agradava muito às plateias,

principalmente àquelas identificadas com as chamadas correntes de esquerda. Essas correntes o criticavam muito

por realizar espetáculos patrocinados pelo poder político e econômico vigentes [...]”. 78

Para Martins (2014, p. 182), “o humor pode ser um forte canal de identidade social, além de funcionar como

catalisador da crítica”. 79

Entre 1950 e 1970, enquanto a cidade de São Paulo triplicou de tamanho, a população de origem nordestina lá

residente multiplicou-se por dez (WEFFORT, 1988, p. 17). 80

Nesse aspecto das diferenças estre os estilos de vida na cidade pequena e nas metrópoles modernas, segundo

Simmel (1973, p. 2), “a metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma

quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai. Nesta, o ritmo da vida e do conjunto sensorial de

imagens mentais flui mais lentamente, de modo mais habitual e mais uniforme. É precisamente nesta conexão

que o caráter sofisticado da vida psíquica metropolitana se torna compreensível – enquanto oposição à vida de

pequena cidade, que descansa mais sobre relacionamentos profundamente sentidos e emocionais. Estes últimos

se enraízam nas camadas mais inconscientes do psiquismo e crescem sem grande dificuldade ao ritmo constante

da aquisição ininterrupta de hábitos”.

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84

os efeitos que provoca sobre os agentes a ela expostos não são os mesmos antes e

depois de seu translado para a cidade [...]. A condição para que esse modo de vida

(urbano) seja apropriado em termos de um grupo de referência positiva reside na

relação que mantém com o estilo de vida do meio de origem (rural) que, ao menos

num primeiro momento, está sendo recusado, valorado negativamente. (MICELI,

2005, p. 164-165).

Ramos (2012) dá destaque ao conceito de “hibridismo cultural”, presente na música

popular brasileira, e em particular na obra de Jackson do Pandeiro, outro grande representante

da música nordestina em nível nacional, que se sobressaia por ter em suas músicas muitos

elementos que extrapolavam os ritmos regionais, com destaque ao samba e à cultura afro, com

os quais estreitou laços ao chegar à capital da República.

Após a morte do pai, a família de Jackson se muda de Alagoa Grande (sua cidade natal

na Paraíba) para morar em Campina Grande, onde se aproximou do samba, chegando a fundar

uma agremiação carnavalesca. Foi na nova cidade também que travou os primeiros contatos

com as religiões afro, bastante citadas nas suas músicas durante o período focado por Ramos

em sua pesquisa, entre 1953 e 1967. Como dizem Moura e Vicente (2001, p. 147), já em

Recife, a partir de 1948, o candomblé e seus batuques afros deixavam-no fascinado, passando

a frequentar com assiduidade os terreiros. Ao longo da sua produção discográfica, Jackson

sempre reservava um lugar para mencionar, direta ou indiretamente, o universo dos orixás

(MOURA; VICENTE, 2001, p. 224-225).

Algumas diferenças entre as figuras de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro são

destacadas por Ramos. Inicialmente, enquanto o primeiro representava o sertão telúrico e

como “espaço da saudade” nas suas músicas e performances, Jackson era mais ligado à linha

“coquista” e litorânea da música nordestina, muito em parte por influência de sua mãe,

cantora de coco nas feiras81

do interior brejeiro da Paraíba.

Jackson, ao chegar ao Rio de Janeiro nos anos 1950, passou a agregar muito da

influência do samba nas suas composições, com várias músicas fazendo referências a esse

estilo urbano, diferentemente de Luiz Gonzaga, ainda estritamente vinculado aos assuntos do

sertão e às vicissitudes do homem rural. Tomando para si a tarefa de chamar a atenção das

autoridades políticas nacionais para o penoso cotidiano do sertanejo-nordestino, muito embora

fosse um protesto superficial que não atacava a questão das desigualdades em sua essência, as

81

Acerca da importância das feiras para a vida cultural e social nordestina, Leal e Barbosa (1982, p. 13) dizem

que, “com seu poder de aglutinação, passam a funcionar como veículo de expressão cultural do povo onde se

organizam. Por isso mesmo as feiras assumem um papel de difusoras de cultura e ao mesmo tempo formam os

continuadores das tradições e expressões desta mesma cultura. Não seria exagero dizer que tudo quanto acontece

no Nordeste, toda a maneira de viver do seu povo, suas crenças, sua música, suas esperanças, sua vida, enfim,

encontram-se reunidas no interior das feiras. [...] Em meio a tudo isso surgem cantadores e violeiros que captam

toda essa realidade e a reinventam musicalmente”.

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85

questões da luta contra a seca e da dignidade do homem sertanejo eram recorrentes no baião

gonzagueano (NAPOLITANO, 2017, p. 15).

Segundo biógrafos do ritmista paraibano, apesar do respeito mútuo entre as duas

figuras, Jackson enxergava seu repertório e performance como linhas paralelas à obra de

Gonzaga, com divisões bem estabelecidas entre as nuances interpretativas e instrumentais de

ambos (MOURA; VICENTE, 2001, p. 139). Embora tendo se construído sempre

emparelhadas, eram trilhas que não se trançavam.

O jornalista e escritor Bráulio Tavares, escrevendo acerca da relação Nordeste-Rio

através das distintas gerações representadas por esses dois artistas, diz que:

Gonzaga era o retirante que só pensa na terra que deixou para trás. Quantas músicas

há, de Gonzaga, celebrando o Rio? Pouquíssimas. [...] Jackson, que já não é o

nordestino do Sertão, mas o da Feira de São Cristóvão, com suingue urbano,

vivência da indústria cultural (rádio, orquestra), perfeitamente integrado ao Rio.

(TAVARES, 2005).

Assim, a “tríade demiúrgica” Gonzaga/Teixeira/Zé Dantas representava o nordestino

euclidiano, forte, expressão musical com influência indígena, sobretudo na dança (o arrastar

de pés era verificado nas danças de tribos brasileiras), sendo a presença negra menos evidente,

em virtude da pouca penetração da mão-de-obra escrava no sertão, mais fixada na faixa

canavieira do litoral e agreste nordestinos (OLIVEIRA, 2004). Dessa forma, o mesmo autor

divide a música nordestina em dois grandes blocos: litorânea (negra, canavieira) e sertaneja

(de origem ibérica), ou seja, respectivamente jacksoniana e gonzagueana.

Não obstante o processo de “assimilação” do baião pelas camadas médias urbanas ter

se verificado desde o início da popularização do estilo, para concluir seu intento teve que

lançar mão de estratagemas mercadológicas. Silva (2003, p. 91) destaca que a cantora

Carmélia Alves, carioca filha de nordestinos, atendia às aspirações da elite carioca: “Carmélia

canta para os grã-finos e eu para o povão”, disse Gonzaga, seu padrinho musical.

A interpretação do baião pelos “conjuntos regionais”, assim como as tentativas de

orquestração nos anos 195082

, levou o ritmo a novos (e controversos) horizontes, dada a

82

As investidas de orquestração da música popular são percebidas como um rescaldo dos anos 40, quando “nas

rádios, este é o período em que a música americana se expande, e se consolida uma forma de se tocar „boa

música‟, a orquestral, que se constitui tendo por modelo os conjuntos americanos” (ORTIZ, 1988, p. 71).

Reforçando essa ideia, Carvalho (2004, p. 61) diz que nos “anos 1950 e 1960 [...] a influência norte-americana

fazia-se notar pela emergência de um número significativo de orquestras nativas organizadas nos moldes das big

bands de Glen Miller (e etc.)”. Ainda sobre esse aspecto, “em meados da década de 50 o jazz começou a ocupar

um lugar bastante privilegiado no cenário carioca, senão nacional. A música popular americana, de maneira

geral, há muito tocada no meio do repertório eclético dos „conjunto de boite‟, e também em programas de rádio,

discos e filmes, começou a ganhar exclusividade nas chamadas „jam sessions‟ que se propagavam pela cidade, e

em festivais e concertos de jazz” (SARAIVA, 2007, p. 35). Em relação aos ritmos populares nordestinos, os

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86

riqueza instrumental específica desses grupos. Músicos instrumentistas refinados (pianistas,

clarinetistas, violinistas, etc.), assim como arranjadores consagrados, interpretaram e

gravaram baiões. Apesar da sanfona até pouco tempo ser um instrumento discriminado83

,

ganhou espaço inclusive na música erudita anos depois84

, com o virtuoso paraibano Sivuca,

que entre os anos 50 e 70 emplacou uma consolidada carreira internacional, se apresentando

em países como Inglaterra, França, Bélgica, Portugal e Estados Unidos (MARCELO;

RODRIGUES, 2012, p. 321).

Outro aspecto relevante para a consagração do baião e de seus intérpretes foi o fato de

ter aparecido, ocupando faces opostas de discos 78RPM, ao lado do samba, o ritmo de maior

expressão nacional e de artistas de maior prestígio no momento85

, ou seja, a pedra preciosa da

música brasileira. Essa associação pôs num mesmo espaço de circulação os compositores de

ambos os gêneros, alcançando, consequentemente, novas gravadoras, aumentando seu capital

simbólico.

Representando outra forma de associação, as duplas de música caipira também

levaram o baião a espaços geográficos distintos (interior dos estados sudestinos), às rodas de

viola, mostrando-o a outros públicos86

. Juntando-se a outros estilos, além do samba, o baião

se enriquecia, ampliando seu espaço simbólico e o dos outros (VIEIRA, 2000, p. 82).

Antes do surgimento do baião enquanto gênero musical consolidado, em meados da

década de 1940, o samba representava grande parte das gravações registradas (VIEIRA,

2000). Segundo Severiano e Mello (1997, p. 86), “livre da herança do maxixe, [...] o samba

torna-se, no período de 1931-1940, o nosso gênero mais gravado, ocupando 32,45% do

maestros Severino Araújo (1917-2012) e César Guerra-Peixe (1914-1993) se destacam nesse movimento de

síntese da música erudita com o baião, nos anos 50. 83

Como aponta Oliveira (2000, p. 45), nos primeiros anos da década de 1940 “ninguém ousava arriscar além dos

limites precariamente estabelecidos pelo gosto radiofônico da época. O acordeão (nome pelo qual também era

conhecida a sanfona) era vetado ao que não fosse tango, valsa ou rancheira”. 84

A moda da sanfona nos anos 50 se tornou tamanha que havia inclusive cursos por correspondência para os

interessados a dar os primeiros dedilhados no instrumento (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014, p. 28). 85

Com o samba, “o cenário campesino é substituído pelos quadros urbanos, onde se movimentam personagens

tipicamente citadinos, envolvidos em situações e problemas gerados pelas condições de convivência em cidade

que tende cada vez mais para maior concentração populacional” (PEREIRA, 2001, p. 194-195). Sobre o

processo de “acolhida” do samba como símbolo da identidade brasileira, Martín-Barbero (2015, p. 242) diz que

“o que aconteceu no Brasil com a música negra, o modo desviado, aberrante, com que ele obteve sua legitimação

social e cultural, põe em evidência os limites tanto da corrente intelectualista quanto do populismo, na hora de

compreender a trama de contradições e seduções que compõe a relação entre o popular e o massivo, a

emergência urbana do popular”. Ainda nesse aspecto, para Vianna (1995, p. 70), “durante as primeiras décadas

do século XX, os mulatos e o urbano passam a ocupar, cada vez mais, o centro das atenções nos debates sobre as

raízes da identidade brasileira. No campo da música, o samba vira símbolo nacional, ao passo que as canções

„caipiras‟ paulistas e os ritmos nordestinos começam a ser vistos como fenômenos regionais”. 86

“Tião Carreiro, da dupla caipira Tião Carreiro e Pardinho, [...] revela que iniciou a carreira ouvindo e

interpretando as músicas do „rei do baião‟ nos circos armados no interior de São Paulo” (ÂNGELO, 1990, p. 34),

ainda durante os anos 50.

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87

repertório registrado em disco”. Porém, após a novidade baião entrar em cena, em 1946, a

produção de sambas cai para um quarto do total, enquanto a de baião, no período que vai até

1957, corresponde a um décimo. Conforme aponta Tinhorão (1975, p. 213-214), em 1946, o

baião, ao encontrar o “mercado musical saturado de boleros e sambas-canções abolerados87

,

(foi) como uma redescoberta da vitalidade rítmica”.

Outro ponto importante nessa conjuntura é que no auge da popularidade Luiz Gonzaga

funcionava como um ponto de atração, ao redor do qual gravitavam compositores (e

intérpretes) não só do Nordeste, mas também sudestinos (MARCELO; RODRIGUES, 2012,

p. 96), interessados em desfrutar do prestígio alcançado pela música sertaneja. Tendo em vista

a visibilidade alcançada pelo baião, era vantagem para esses artistas “de fora” (como

Ademilde Fonseca, Dircinha Batista, Anjos do Inferno, Trio de Ouro, Carlos Galhardo,

Emilinha Borba e a portuguesa Ester de Abreu) flertarem com o baião, como estratégia para

se manter em evidência. Graças à novidade que representou, os compositores do sudeste não

demoraram a aderir ao baião (OLIVEIRA, 2000, p. 49).

Destaque-se também o papel amplificador do rádio e sua trajetória enquanto elemento

da indústria cultural para o desenvolvimento do baião, um dos gêneros musicais mais

beneficiados por esse contexto tecnológico em franca expansão. O considerável nível de

desterritorialização em relação às suas origens históricas e geográficas permitiram que o baião

fosse apropriado por artistas de diferentes regiões ou formações (VICENTE, 2014, p. 79).

É interessante perceber essa incorporação de artistas “estranhos ao baião” para

compreender mais facilmente os movimentos da cultura, que mistura elementos de fontes

diversas, pois a mesma dinâmica se verificou anos mais tarde, quando o baião mesclou-se aos

ritmos de outros períodos históricos, dando continuidade à circularidade da reprodução

cultural. Em maior ou menor grau sua presença é evidente na MPB que veio posteriormente,

com os tropicalistas88

, e refletiu-se até nos cyberpunks pernambucanos do mangue beat, nos

anos 199089

.

Todavia, pintando um quadro menos romântico da aceitação e penetração do baião nas

demais camadas da sociedade metropolitana, considerando que “todo público educado

87

“A onda do bolero que invadiu o Brasil no final dos anos quarenta, acabou por influenciar o surgimento do

fenômeno „samba-de-fossa‟ que marcou a década seguinte” (SEVERIANO; MELLO, 1997, p. 293). 88

“Os baianos tropicalistas, em constante busca das raízes, viram no sanfoneiro (Dominguinhos) um novo

ângulo do universo regional, um pouco mais urbanizado. Já haviam descoberto a harmonia em Gonzagão, o

ritmo em Jackson (do Pandeiro), e agora esbarravam na melodia daquele instrumentista praticamente

desconhecido do grande público” (MOURA; VICENTE, 2011, p. 361). 89

Como ressalta Vianna (2004, p. 77), “tal como as ciências sociais brasileiras encontram suas âncoras nas obras

dos anos 1920 e 1930, em Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Caio Prado, também o compósito

MPB as encontra, entre outros, em Pixinguinha, Noel, Luiz Gonzaga, Ari Barroso [...]”.

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88

procura distinguir seu consumo daquele que entende ser mais massificado” (MICELI, 2005, p.

238), Napolitano (2005, p. 40) afirma que “as elites com maior formação cultural e poder

aquisitivo ainda teriam que esperar a bossa nova para assumir, sem culpa, seu gosto por

música popular brasileira”, essa espécie de “samba reprocessado e adaptado ao influxo

jazzístico de uma classe média modernizada, com assento nos bancos universitários”

(CARVALHO, 2004, p. 62).

Em seu trabalho, Vieira (2000) faz um apanhado, com base em revistas (Revista do

Rádio) e periódicos dos anos 1940 até 1957, da presença de notas e referências a Luiz

Gonzaga e ao baião, denotando a penetração do ritmo novo nos meios sociais cariocas, pois

como Gonzaga e o baião representam quase uma unidade, a associação entre ambos é

praticamente automática. Para a autora, “o emprego, em diferentes ocasiões, dos vocábulos

autêntico, autenticidade, legítimo e verdadeiro [...] aponta para a consagração do artista (Luiz

Gonzaga) e de sua música (o baião)” (VIEIRA, 2000, p. 115).

Apesar da visão mercadológica de multiplicar o alcance da sua música até os pontos

mais distantes do país, onde o rádio não chegava, inserindo-se com afinco na indústria

fonográfica para promover sua obra através da vendagem de discos, até os anos 1980 o

sanfoneiro não foi um grande vendedor de discos em nível nacional90

, desfazendo-se o mito

em torno do nome de Gonzagão como um grande campeão de vendas.

Ainda de acordo com Vieira (2000, p. 129), “os textos escritos e as fotos evidenciam

representações significativas no processo de construção da imagem do artista91

”, plena de

“conteúdos simbólicos que visam prender a ele o público que o diretor comercial resolveu que

se dirigisse” (JAMBEIRO, 1975, p. 23). Vê-se o consumo dos bens simbólicos inseridos

nesse mercado criado, de produtos ressignificados, onde os rituais, sons, gostos e demais

expressões, se cristalizam.

90

O primeiro disco de ouro (prêmio concedido ao artista que vendia acima de 100.000 cópias de um álbum) da

carreira do sanfoneiro só veio em 1984, com Danado de Bom, LP produzido por Oseas Lopes (membro e

idealizador do Trio Mossoró), segundo Dreyfus (1996, p. 299). Utilizando-se do pragmatismo como estratégia na

produção de Luiz Gonzaga, “com o trabalho forte de mídia, a faixa-título do disco Danado de bom virou sucesso

instantâneo – mais de 100 mil unidades vendidas em menos de três meses, feito inédito na carreira de Gonzaga”

(MARCELO; RODRIGUES, 2012). Como declarado em entrevista, Oseas (ENTREVISTA CONCEDIDA,

JUNHO, 2018) diz que: “Luiz Gonzaga, que ia ser despedido da gravadora porque não tava vendendo discos...

Oseas Lopes tinha bola de cristal pra dizer „- Eu vou gravar com Luiz Gonzaga e vai ser sucesso!‟. Não é. [...] E

eu discuti com o presidente da gravadora, peguei a produção dele, e aconteceu o quê? O primeiro disco que

produzi dele foi Danado de Bom e foi um milhão e duzentos mil LP‟s vendidos. Disco de platina, de bronze e

tudo”. 91

Nesse aspecto cabe destacar que, apesar da associação corriqueira da imagem do artista como elemento

indissociável de sua própria produção, “durante grande parte da história, os músicos não foram representados

como indivíduos, mas incorporados a imagens simbólicas da música em si, como Orfeu, Apolo, rei Davi,

Pitágoras, Santa Cecília ou „Lady Music‟” (BLANNING, 2011, p. 48).

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89

A figura de Luiz Gonzaga, com seus anúncios comerciais, foi presença constante nos

jornais e nas rádios, confundindo-se a figura do artista com o próprio produto anunciado,

funcionando como o elixir da vida do produto cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.

152). A assiduidade do sanfoneiro nos espaços publicitários é reflexo direto da conquista de

prestígio do baião dentro da música nacional (VIEIRA, 2000, p. 30). Dessa forma, o intervalo

entre 1947 e 1953 representa o auge publicitário do baião e de seus sistematizadores (ALVES,

2012, p. 262).

Se há uma imagem pública a ser produzida no campo fonográfico, é porque, [...]

apesar do caráter industrial da produção de discos, mantém-se ainda, tanto concreta

quanto idealmente, a especificidade do que seria o trabalho propriamente artístico-

musical, estando a publicidade de fato associada exclusivamente aos sujeitos desse

trabalho. (MORELLI, 2009, p. 168).

Segundo Rocha (2007, p. 97), “a publicidade contribuiu para a generalização da ideia

de que era necessário modernizar a sociedade brasileira a partir de uma educação para o

consumo92

”, ao mesmo tempo que ajudou a dinamizar as vendas, abreviando o tempo de

circulação do capital e, portanto, o tempo de sua rotação (GOLDENSTEIN, 1987, p. 24).

Nesse aspecto, Miceli (2005, p. 256) aponta que “a indústria cultural brasileira constitui um

dos móveis centrais da competição econômico-empresarial, político-institucional e

doutrinário-simbólica”.

Como sugere Dias (2000, p. 159), situando a substituição do rádio pela televisão como

meio privilegiado de ampla comunicação, “o apelo trazido pela imagem e todos os seus

desdobramentos e possibilidades técnicas, estéticas e mercadológicas fez da televisão o meio

preferencial dos anunciantes”. Nesse meio a mensagem publicitária e o conteúdo do programa

televisivo se interpenetram o tempo todo, ambos se referem um ao outro continuamente

(MICELI, 2005, p. 236).

A procura das marcas de produtos em associarem o item à venda com a imagem do

artista, dada a produção de novos bens industrializados e as também novas formas de

92

Conforme Martín-Barbero (2015, p. 198), tal processo fora verificado já nas primeiras décadas do século

passado nos Estados Unidos, onde “o consumo requerido pela nova estrutura de produção, contudo, não era um

hábito social; [...]. Para o „sistema‟, era indispensável educar as massas para o consumo. [...] (e) tornando-se o

consumo uma prática generalizada só a partir dos anos 1950, ele seria desde então um ingrediente-chave do

estilo de vida e da cultura de massa norte-americanos. A melhor expressão do modo como o consumo se

converteu em elemento de cultura acha-se na mudança radical sofrida pela publicidade, por essa época, quando

passou a invadir tudo, transformando a comunicação inteira em persuasão”. No Brasil, segundo Dias (2000, p.

53), “como sintomas do boom vivido pelo setor publicitário nos anos 60-70 estão a proliferação, no país, de

agências de publicidade nacionais e transnacionais, a abertura de cursos universitários para formar profissionais

especializados e regulamentar a profissão, a criação de vários institutos de pesquisa de opinião e a especialização

da publicidade em função da segmentação da produção de bens culturais”.

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90

comunicação, alteraram os modos de alcance publicitário. Segundo Canclini, descrevendo um

cenário que se cristalizou num período já sob o advento da televisão:

enquanto a produção se industrializava e os bens de consumo modernos – carros,

eletrodomésticos – se multiplicavam, a televisão os divulgava, atualizava a

informação e os gostos dos consumidores. Os artistas transformam então os novos

objetos e máquinas em ícones [...]. (CANCLINI, 2015, p 257).

Para Martín-Barbero (2015, p. 271), o meio televisivo “decide sobre o que é atual e o

que é anacrônico, tanto no campo dos utensílios quanto no das falas. [...] E com sua obsessão

pelo que é atual, ou melhor, pela atualidade, a televisão suplantará as temporalidades e os

ritmos num discurso que procura tornar tudo contemporâneo”.

Na área da tecnologia ligada à indústria do lazer, estacionária durante os anos de

guerra, são excepcionais as inovações que chegam ao país: a televisão (em 1950), o

elepê de 33 rotações (1951), o disco de 45 rotações (1953) e o aperfeiçoamento do

processo de gravação do som, com o emprego da fita magnética e da máquina de

múltiplos canais, em substituição ao antigo registro de cera. (SEVERIANO;

MELLO, 1997, p. 242).

Abordando outro ponto importante do leque que engloba a produção artística e os

meios de comunicação em massa, a questão dos direitos autorais, Gonzaga diz que só veio

tomar conhecimento da necessidade de paternidade da obra artística no Rio de Janeiro, “que

determinada melodia nascia com a gente. Nós éramos autores e tínhamos direito sobre ela”

(MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 24), pois no sertão também música era como

passarinho93

. Na esfera da música sertaneja pré-industralizada, o que imperava era a “lógica

do uso e não da posse ou da propriedade” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2013b, p. 88).

Dessa forma, ainda no período inicial do samba, quando da passagem do método de

elaboração musical coletivo-amador, herdado das rodas de samba, para a forma de

composição e registro centrada na figura individual do autor, a música brasileira ainda não se

pautava pelas regras da canção comercial. Assim, a autoria coletiva de certos sambas não

provocava disputas, pois sua repercussão era limitada a uma pequena audiência

comercialmente desinteressada. Em suma, a música ainda não representava um meio de vida

(CALDAS, 2000, p. 35).

Se por um lado o processo comercial fonográfico serve de difusão das músicas e do

registro da interpretação, por outro lado os contratos demonstravam elevado nível de

espoliação. [...] a partir do disco o processo de pilhagem que a arte erudita faz à

93

Como devidamente ressaltado por Dreyfus (1996, p. 121) e apontado em Caldas (2000, p. 36), a versão

original dessa expressão é de autoria do sambista Sinhô: “Samba é como passarinho, é de quem pegar”.

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91

música popular torna-se mais fácil e por conseguinte mais frequente e numeroso.

(LEAL; BARBOSA, 1982, p. 52).

Nesse sentido, o panorama referente às regras fiscalizadoras da autoria e de proteção

da propriedade intelectual de obras artísticas, objetos de preocupação das várias empresas e

escritórios especializados do ramo abertos desde o começo do século XX no país94

, começou

a se alterar com a necessidade de produção de música destinada à gravação em discos, que

trouxe à tona também o desrespeito à criação alheia e a exploração dos compositores

populares pelos industriais do disco (TINHORÃO, 1981, p. 24).

Ao longo dos anos, o aumento da complexidade da situação (muito devido a fatores

como a consolidação da MPB, iniciada na década de 1960, o crescimento do consumo de

discos e o incremento no poderio comunicacional de veículos como o rádio e a TV), culminou

na criação da Lei 5.998, de 14 de dezembro de 1973, em pleno governo do Gal. Médici95

,

marco legal que tratava especificamente sobre os direitos autorais no Brasil (SOUZA, 2014).

No Brasil dos anos 1970 a história da arrecadação e distribuição de direitos autorais

musicais está interligada à expansão e consolidação do setor fonográfico nacional do mesmo

período (MORELLI, 2009, p. 163).

Apresentando o baião, no plano musical, como equivalente ao que a SUDENE

representou no plano institucional, as duas maiores invenções políticas nordestinas do século

XX, símbolos da busca da unidade e identidade, e considerando, como quer Ortiz (1985, p. 7),

que “toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença”, o

baião, enquanto expressão cultural regional, seria uma música que representava uma

reinvenção e revisão do Nordeste a partir do progresso do Sudeste (OLIVEIRA, 2004, p.

132).

A produção artística proveniente da região Sudeste foi, por muito tempo,

reconhecida – no Brasil e no exterior – como moderna e brasileira, enquanto as que

provinham de outros lugares do país eram rotuladas de regionais [...] ou assumidas

como regionalistas [...]. Em confronto ou em contraste com o centro hegemônico do

Brasil, essas produções locais enunciavam e afirmavam ideias das outras regiões do

país [...]. (ANJOS, 2005, p. 53).

94

Para Jambeiro (1975, p. 88), “as sociedades arrecadadoras de direitos autorais nasceram como decorrência da

impossibilidade de um compositor autorizar e perceber individualmente os proventos de sua obra, em centenas

ou milhares de localidades, no país e no exterior”, passando essas empresas a atuar na condição de

“procuradoras” dos artistas, representando-os junto aos veículos comunicacionais. 95

“Com exceção da Constituição do Estado Novo, todas as demais constituições da República, desde 1891, têm

assegurado, no capítulo relativo aos direitos e garantias individuais, o direito exclusivo dos autores de obras

literárias, artísticas e científicas à utilização dessas mesmas obras. Por outro lado, mesmo antes de 1974, quando

entrou em vigor a Lei 5.988, o direito de autor já era reconhecido e disciplinado por uma série de leis e decretos

que diziam respeito direta ou indiretamente à matéria [...]” (MORELLI, 2009, p. 132).

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92

No universo sonoro popular brasileiro do começo do século passado o que imperava

era o signo da variedade, sendo que as próprias marchinhas, ritmo combinado da polca com

estilos norteamericanos em voga, só iriam se fixar como gênero carnavalesco nos anos 1920.

Até então, a festa momesca era movida por ritmos de origem estrangeira (polcas, valsas,

tangos, etc.) e, pelo lado das brasilidades, ouviam-se maxixes, marchas, modas, cateretês e

desafios sertanejos. Contudo, nenhum desses estilos conseguia monopolizar as audiências

(VIANNA, 1995, p. 110-111).

Segundo Severiano e Mello (1997, p. 40), “antes do advento do samba e da marchinha,

fazia sucesso no carnaval qualquer tipo de música, nem sempre alegre”. Todavia, o baião:

foi associado, difundido e consumido como música regional que se nacionalizou,

inteiramente ligado ao processo de circuncisão semiológica, musical, sentimental e

estética de uma região específica, a Nordeste [...] foi, em grande medida, em

decorrência da profusão e nacionalização do baião e da sua narrativa poético-

musical que o Nordeste se definiu como região no imaginário coletivo brasileiro,

não a partir do litoral nordestino [...] mas, sim, por meio do seu interior, o sertão (o

nordestino). (ALVES, 2012, p. 215-216).

Sob outra perspectiva, Rocha (2007, p. 16-17) aponta que, “numa sociedade com altos

índices de analfabetismo e pouca tradição na cultura letrada, o rádio e a televisão se tornaram

fatores importantes na constituição de um imaginário social nacional”. Miceli (2005, p. 233)

também atribui ao “fato bruto e brutal do analfabetismo, nas proporções consideráveis em que

subsiste na sociedade brasileira, [...] a alavanca decisiva da colossal penetração da televisão

no país”. De acordo com Martín-Barbero (2015, p. 234), “o rádio, em quase todos (os países

latino-americanos, proporcionou) [...] aos moradores das regiões e províncias mais diversas

uma primeira vivência cotidiana da Nação”, tendo as manifestações culturais típicas exercido

papel relevante nesse processo.

O veículo radiofônico como um todo, através de seus agentes particulares e estatais,

soube, astuciosamente, se associar aos novos contornos urbano-poético-sonoros em

estruturação nos centros metropolitanos nacionais do começo do século XX, possibilitando

que a recente produção musical citadina percorresse transversalmente todos os espaços do

mercado cultural em vias de consolidação.

Se rádio, disco e publicidade estavam mesmo fortemente articuladas ao surgimento do

samba urbano (CARVALHO, 2004, p. 54), acompanhando o mesmo processo que legitimou

esse estilo como produto nacional96

, a feitura do baião usufruiu do que havia de mais

96

Revelando que as queixas sobre a decadência do gosto existem desde os primórdios da nossa produção,

Pixinguinha, ícone da música instrumental brasileira, oriundo do choro, em entrevista concedida em meados dos

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93

moderno, como rádio, disco, programas musicais, publicidade e profissionalização musical

(ALVES, 2012, p. 258). No entanto, posteriormente, segundo Caldas (2000, p. 46),

“expandiam-se os veículos de comunicação de massa, no meio urbano-industrial, entre os

quais a televisão era a grande sensação”. Assim, a novidade do meio televisivo como maior

veículo de entretenimento no cotidiano brasileiro foi primordial para o processo de ostracismo

urbano do baião e de Luiz Gonzaga na virada dos anos 1950 para os 1960 (SANTOS, 2004, p.

62), quando a visibilidade do baião sofreu forte abalo, anunciando o anticlímax que viria nos

anos seguintes.

Apesar da “sobrevida” que o aparecimento avassalador de Jackson do Pandeiro na

indústria cultural proporcionou à música nordestina em meados dos anos 50, instante no qual

o baião já dava sinais de refluxo, a possibilidade de que sua produção musical (cocos, rojões,

forrós, etc.) representasse uma alternativa para o mercado não teve força suficiente nem

continuidade para superar o contexto desfavorável (MOURA; VICENTE, 2001, p. 179).

Como relatou em entrevista o fundador do Trio Mossoró, Oseas (ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018), no começo dos anos 1960 a música nordestina “tava muito

em baixa. (Nem) Luiz Gonzaga não tava sobrevivendo!”.

De acordo com Adorno e Horkheimer (1985, p. 114), “o terreno no qual a técnica

conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem

sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação”.

A depreciação do valor simbólico do emissor, da mensagem e do receptor

“dominados” equivale, de outro lado, à valorização dos emissores, dos bens

simbólicos, das significações, dos meios de imposição, dos canais de legitimação e

dos receptores “ideais”, da cultura dominante tornada única cultura digna e legítima.

(MICELI, 2005, p. 154).

A identificação com os aspectos regionais, ao mesmo tempo que foi primordial para o

êxito mercadológico do baião no contexto nacionalista aflorado no Estado Novo,

posteriormente, sob o discurso do desenvolvimentismo, marca do governo de Juscelino

Kubitschek, essa “vantagem” se transformou na sua causa mortis (pelo menos para o grande

mercado).

Para Rocha (2007, p. 30), “nos anos 50, havia uma tônica na necessidade de o país se

modernizar. Modernização, que na perspectiva do Estado, estaria centrada na expansão da

anos 1920, “considera o samba uma música de menor qualidade [...] e compõe sambas apenas por força do

exercício da profissão e pelo sucesso” (MARTINS, 2014, p. 150).

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94

industrialização, especialmente na criação de uma indústria de base para sustentar esse

projeto”.

O que marginalizou a música feita por Gonzaga foi ter se identificado com uma

música regional, como expressão de uma região que era vista como o espaço

atrasado, fora de moda, do país; região marginalizada pela própria forma como se

desenvolveu a economia do país e como foi gestada discursivamente.

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 180).

Para os grandes veículos comunicacionais sua fórmula estava esgotada – ou reduzida,

no sentido indicado por Eco (1979, p. 300), deixando de ser executado nas rádios devido às

transformações políticas e culturais ocorridas na sociedade brasileira entre os anos de 1956 e

1967. “Em tempos de Juscelino Kubitschek, de acelerada modernidade, Luiz Gonzaga

começa a se afastar das luzes de neon em busca dos candeeiros” (MOURA; VICENTE, 2001,

p. 238). Afirma Rocha (2007, p. 28) que “a sociedade centrada na expansão das necessidades

é, antes de tudo, aquela que reordena a produção e o consumo sobre a lei da obsolescência97

,

da sedução e da diversificação. A conjunção desses elementos caracteriza um novo tipo de

configuração social”. Assim, o que é substituído tende a envelhecer mais rapidamente, pois

deve-se dar passagem ao “recém-chegado”.

Nesse sentido, no novo cenário musical que se desenhava, temas sertanejos estavam

proscritos, não eram mais bem-vindos, pois os ouvidos e olhares se voltavam para a bossa-

nova e o rock-and-roll (SANTOS, 2004, p. 68). No fim dos anos 50 a vertiginosa curva

ascendente do cancioneiro nordestino já não subia mais (MOURA;VICENTE, 2001, p. 268) e

a sanfona cedeu seu posto ao violão (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 107).

Porém, ressalte-se que, em termos de apelo popular (no sentido da adoção ampla pelos

estratos sociais menos favorecidos), a Bossa Nova não sensibilizou significativamente os

ouvintes das camadas mais populares, cuja audição acostumara-se à potência vocal de nomes

como Francisco Alves, Nelson Gonçalves e Ângela Maria (NAPOLITANO, 2017, p. 30).

Outro abalo na popularidade do baião veio com o surgimento do iê-iê-iê, na metade

dos anos 60, que solidificou a sonoridade rockeira enquanto produto cultural no Brasil e

como moda adolescente modificadora de hábitos e comportamentos no consumidor dessa

faixa etária. O rápido sucesso alcançado pela Jovem Guarda, contando com a ajuda da

97

Dias (2000, p. 72), afirma que “apesar de conferir a necessária essencialidade ao processo, o artista,

paradoxalmente, não faz parte da indústria. Ele passa por ela, negocia, grava seu disco, trabalha, muitas vezes,

arduamente na divulgação do produto. Oferece contratualmente seu savoir faire, seu talento, sua personalidade

artística, seu nome, sua imagem, até quando o negócio se mantenha interessante para todas as partes envolvidas,

caso contrário, será substituído”.

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95

televisão e do rádio, demonstra que as mídias de massa brasileiras não foram resistentes em

aceitar o rock nacional (VIANNA, 1995, p. 143).

Alencar (1984, p. 41), entusiasta e estudioso da música popular brasileira, havia

esbravejado contra “a invasão da música estrangeira, agora espalhada até em salas de danças

que exploram a juventude, sem falar na sua divulgação espalhafatosa e constante na televisão,

[...] permanência estridente de guitarras e músicas frenéticas [...]”.

Dessa forma, com o sucesso da turma de Roberto Carlos98

, Erasmo Carlos e

Wanderléa, o baião foi definitivamente ofuscado, perdendo espaço no público e no mercado

fonográfico (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 252).

O movimento da Jovem Guarda provocou uma diminuição do mercado para os

forrozeiros e para a música nordestina. Havia centenas de forrós em São Paulo, [...]

(e) foram poucos os que se preocuparam em preservar a cultura do Nordeste. [...]

Botavam um forrozeirinho para abrir a noite, e o resto era “Show de Jovem

Guarda”! Não precisava nem ser famoso! (FERREIRA, 2011, p. 217).

Nesse panorama, os instrumentos da mídia, considerando-se as possibilidades técnicas

existentes à época, tiveram grande influência na história da música nordestina, porém o baião,

como ritmo “exótico”, deu apenas um pequeno passeio na festa da MPB, causou certo

reboliço e voltou para o interior (SILVA, C. R. da, 2009), tornado seu reduto e onde ainda

havia reservas de público não identificados com outras correntes musicais (MOURA;

VICENTE, 2001, p. 309).

Para Miceli, a ação “pedagógica99

” encampada pela indústria cultural, em especial

pela televisão, atua em resposta às duas demandas simbólicas de distintas faixas sociais:

De um lado, em escala nacional, opera como meio de socialização compensatória da

massa “excluída” e, de outro, nos grandes bolsões urbano-industriais (São Paulo,

Rio de Janeiro, Porto Alegre, etc.), atua como reforço simbólico ao estilo de vida

dos contingentes médios já integrados ao mercado material (de trabalho e de

consumo) e cultural dominante. (MICELI, 2005, p. 183).

98

De acordo com Jambeiro (1975, p. 148), “Roberto Carlos foi, ao seu tempo de maior glória, o símbolo

máximo do „consumo‟, orientando uma grande parcela da juventude para a compra e utilização de determinados

produtos que levavam as marcas registradas por ele ou seus sócios [...]”. 99

O caráter “pedagógico” proposto pelo autor é melhor explicitado na citação a seguir: “Apesar de a sociedade

industrial de consumo estar concentrada nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, [...] e de persistirem as disparidades

de renda entre regiões e grupos sociais, a indústria cultural brasileira vem contribuindo de modo decisivo para o

processo de unificação do mercado de bens culturais ao fazer as vezes de um „sistema de ensino paralelo‟ e ao

expor os setores sociais subalternos a veículos e mensagens em certa medida desagregadores de seu repertório

original de linguagem, valores e significações” (MICELI, 2005, p. 233).

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96

O público da televisão “é mais volúvel, pela própria circunstância de pertencer a

gerações mais jovens, fortemente marcadas pela transitoriedade incessante de tudo que as

cerca” (RODRIGUES, 1983, p. 86).

Tornada em meados dos anos 1960 polo repetidor de estilos de vida, modas e

expectativas da classe média dos grandes centros urbanos, sobretudo norteamericanos

(TINHORÃO, 1981, p. 173), a televisão brasileira teria se expandido dependente

tecnologicamente e culturalmente da indústria desse país (MELO, 1987, p. 169).

Não é intenção deste trabalho levantar a bandeira de um suposto “verdadeiro forró”,

condenar sua “descaracterização” ou até mesmo decretar um “mau hábito musical” (ECO,

1979, p. 296), rebaixando os caminhos criativos traçados pelo artista popular, invariavelmente

permeados “pelas injunções de caráter comercial” (DIAS, 2000, p. 13), ancorando-se em

“categorias de análise que tentaram interpretar a modernização a partir da pretensa ruptura

entre o tradicional e o moderno” (ROCHA, 2007, p. 19) e desconsiderando as implicações

recíprocas. Proceder assim seria negar a expansão da produção cultural, acentuada a partir do

aparelhamento dos media, que, queiramos ou não, compõem a estrutura do nosso universo

socializante, no qual “as condições objetivas das comunicações são aquelas fornecidas pela

existência dos jornais, do rádio, da televisão, da música reproduzida e reproduzível, das novas

formas de comunicação visual e auditiva. Ninguém foge a essas condições [...]” (ECO, 1979,

p. 11). A crítica de Adorno acerca da “música popular” não se dirige a:

uma possível incompetência de seus compositores e arranjadores, mas, pelo

contrário, ao fato de sua grande perícia ser totalmente neutralizada e reorientada em

função das exigências dos monopólios culturais no sentido de padronização com o

objetivo de garantir o retorno financeiro e a aprovação tácita ao status quo.

(DUARTE, 2003, p. 35).

Conforme Jambeiro (1975, p. 137), no tocante à música, “sem uma indústria do disco,

[...] seu poder de comunicação ficaria restrito, durante longo tempo, a círculos mais próximos

de sua origem. [...] restringir-se-ia ao âmbito regional, sem possibilidade de transformar-se

numa manifestação nacional ou internacional de expressão artística”.

Entendendo que as ciências sociais devem se pautar pela sua natureza empírica

(BECKER, 2013, p. 132), onde classificações valorativas, que nada mais são do que a

manifestação de gostos subjetivos que se propõem a camuflar pré-conceitos e julgamentos,

não devem ter espaço, tem-se que:

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97

uma das armadilhas mais traiçoeiras no estudo contemporâneo da indústria cultural

está na facilidade de adotar uma postura moralizante, na tendência quase natural a

uma condenação in toto, que resulta do impulso, advindo da visão crítica, para a

lamentação a respeito do valor ou da qualidade dos produtos culturais de massa. Em

oposição a isso, é sempre bom lembrar que o aspecto determinante no

funcionamento da indústria cultural, sua força motriz, a princípio não tem nada a ver

com a qualidade ou mesmo com a natureza das coisas, porque essa força motriz é

econômica: qualquer que seja o conteúdo a ser veiculado, o mais importante é que

ele gere lucro, que leve à acumulação de capital. (DURÃO, 2008, p. 39).

Pucci, Ramos-de-Oliveira e Zuin (1999, p. 114) afirmam que, apesar da “impressão de

que Adorno recusa completamente as qualidades do positivismo [...] há uma constatação do

rigor da dedução e da necessidade de análise de dados empíricos. A própria história da

chamada Escola de Frankfurt sempre foi permeada por pesquisas empíricas [...]”.

Todavia, a necessidade de valorar monetariamente um artefato artístico (seja ele “de

massa” ou não) é um dos grandes engodos resultantes da rede engendrada a partir da

mercantilização dos bens culturais, já que, “por não existir uma medida objetiva que permita

determinar o valor desta mercadoria, o artista termina submetido aos gostos, preferências,

ideias e concepções estéticas daqueles que influenciam decisivamente o mercado”

(JAMBEIRO, 1975, p. 22). Essa situação privilegia que impere a especulação em torno de

tais itens, levadas ao sabor das “flutuações da oferta e da procura” (JAMBEIRO, 1975, p. 22).

Nesse aspecto, tanto Luiz Gonzaga como os empresários cearenses forrozeiros dos

anos 90 e o próprio Trio Mossoró, foram extremamente competentes em matéria de estratégia

de mercado, afinal, o próprio baião foi uma criação mercadológica. Ao pensarem no grupo

Quatro Ases e Um Coringa para interpretar, gravar e lançar a música Baião, denota-se uma

estratégia comercial, da qual esperava-se que a investida, obviamente, rendesse frutos.

De acordo com as concepções críticas adornianas, todos eles foram produtos da

indústria cultural (como era para o filósofo alemão praticamente toda a música feita no século

XX), produzidos em série e, em maior ou menor grau, compondo o esquema mais amplo de

promoção da semicultura, estágio intermediário entre a ignorância e o autêntico cultivo

intelectual (DUARTE, 2003, p. 84).

Para Adorno (1977, p. 288), “toda a práxis da indústria cultural transfere, sem mais, a

motivação do lucro às criações espirituais. A partir do momento em que essas mercadorias

asseguram a vida de seus produtores no mercado, elas já estão contaminadas por essa

motivação”. Nesse sentido, a inserção da música popular100

no capitalismo como mercadoria

100

Aqui, considera-se que “o caráter popular de qualquer fenômeno deve ser estabelecido com base no seu uso e

não por intermédio da sua origem” (CANCLINI, 1983, p. 47), ou seja, popular é a manifestação cultural

transmitida ou “vendida” como tal, e não necessariamente a gestada nas/pelas camadas sociais menos

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98

seria reflexo da “extrema padronização da estrutura global, aliada a uma pseudoindividuação

que se baseia numa variação também padronizada dos detalhes” (MORELLI, 2009, p. 35).

Nesse caso, padronização diz respeito às semelhanças substanciais entre as canções

populares, enquanto pseudoindividuação trata das suas diferenças circunstanciais, a aparente

inovação do refrão. Enquanto a padronização expõe, a pseudoindividuação camufla101

(STRINATI, 1999).

Os itens dessa indústria são mercadorias culturais que existem em função dos

interesses em nome dos quais são produzidas (DUARTE, 2002, p. 41), culminando na

“degradação da cultura em indústria de diversão” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 74).

Os detalhes tornam-se fungíveis. A breve sequência de intervalos, fácil de

memorizar, como mostrou a canção de sucesso; [...] são, como todos os detalhes,

clichês prontos para serem empregados arbitrariamente aqui e ali e completamente

definidos pela finalidade que lhes cabe no esquema. Confirmá-lo, compondo, eis aí

sua razão de ser. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 117-118).

Dessa forma, é evento heurístico dos preceitos da estereotipia e heteronomia,

correspondentes à estruturação mercadológica segundo padrões estabelecidos de produção

artística, o episódio ambientado nos corredores da empresa fonográfica CBS, quando o diretor

artístico do departamento de música regional, o sanfoneiro Abdias, montando o repertório a

ser gravado nos próximos lançamentos dos artistas forrozeiros sob sua tutela, “encomendava

um lote de inéditas (a) autores como Antônio Barros, (que) entregavam fitas com quinze,

vinte músicas. [...] escutava o cassete (e) separava as que julgava mais afeitas a cada um dos

seus artistas” (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 189). O verbo “encomendar” é flagrante

do sentido atribuído à produção musical que se deixa apropriar pela égide do mercado,

corroborando o explanado até este ponto do texto, baseado nas concepções frankfurtianas,

tendo em vista que os próprios agentes “já se definem a si mesmo como industriais, e as cifras

publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à

necessidade social de seus produtos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114).

Analisando criticamente a obra discográfica de Roberto Carlos no período de 1961 a

1982, Faraco (2012, p. 12) partiu da tese adorniana de que “os parâmetros musicais, em si, são

indicadores da lógica da mercadoria, afetando a produção artística”, apontamento bastante

favorecidas. Por exemplo, o grande número de artistas populares (músicos, atores, apresentadores de televisão,

etc.), que por se ocuparem em fazer cultura popular, confirmaram a condição de (ou se tornaram) materialmente

afortunados. 101

Como os automóveis, a música popular se distingue por um núcleo e uma periferia (STRINATI, 1999, p. 77).

Tendo em mente essa analogia, o interior do carro, sempre igual (padronização), é disfarçado pela carenagem

“modernizada” dos modelos mais atualizados (pseudoindividuação).

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99

aproximado das pretensões do presente trabalho, tendo a favor deste o fato de que aqui os

protagonistas diretamente envolvidos no processo, ou seja, os músicos do Trio Mossoró,

foram ouvidos (mediante entrevista semiestruturada), considerando-se suas visões de mundo e

pontos de vista acerca do processo, provocando, assim, um deslocamento do olhar na direção

dos intérpretes como elemento de análise.

A outra diferença em relação ao trabalho de Faraco, é que lá o pesquisador identifica

os elementos que representam a padronização na obra de Roberto Carlos (FARACO, 2012, p.

24), enquanto aqui foram buscados os pontos de variação/inflexão dentro da obra do trio

forrozeiro, procurando compreender seus porquês.

The industrialization of music cannot be understood as something which happens to

music, since it describes a process in which music itself is made - a process, that is,

which fuses (and confuses) capital, technical and musical arguments. […] a form of

communication which determines what songs, singers and performances are and can

be.102

(FRITH, 1988, p. 12).

Assim, o propósito aqui foi evidenciar os trânsitos sonoros efetuados pelo Trio

Mossoró ao longo de toda a sua discografia (que parecem ser bastante expressivos para se

compreender a trajetória do próprio baião dentro da música popular brasileira), percorridos

para superar as dificuldades enfrentadas pelos artistas nordestinos num contexto que já não

era tão favorável ao estilo regionalista (começo dos anos 60), quanto o fora até meados da

década anterior.

Examinando a questão sob esse ângulo, pretendeu-se trazer luz à discussão da

indústria cultural e seus assédios junto à produção simbólica de um artista em específico, para

assim, evidenciar até que ponto as diferentes fases criativas pelas quais passou o trio podem

ser entendidas como “transfusões de sangue periódicas que a mantêm (a música) viva e

impedem que se degenere” (HOBSBAWN, 1990, p. 186) ou reforçar o aspecto parasitário e

vampiresco da indústria cultural, que não se exime em usurpar esse sangue para se manter

saciada.

102

“A industrialização da música não pode ser entendida como algo que acontece à música, pois descreve um

processo no qual a própria música é feita - um processo, isto é, que funde (e confunde) argumentos capitais,

técnicos e musicais. […] Uma forma de comunicação que determina quais músicas, cantores e performances são

e podem existir.”.

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100

3 PORQUE DEIXEI MEU SERTÃO: A CONSTRUÇÃO DA MÚSICA DO TRIO

MOSSORÓ

3.1 UMA BREVE BIOGRAFIA DO TRIO: OS ANOS EM MOSSORÓ E A IDA PARA O

RIO DE JANEIRO

A geração de artistas nordestinos migrantes, da qual fazia parte o Trio Mossoró, tinha

na capital carioca o local idealizado como o El Dorado para os dotados de sensibilidades e

habilidades musicais103

, o que de certa forma persiste nos dias atuais, pois “se se deseja

sucesso em nível nacional é obrigatória e indispensável a sanção do chamado eixo Rio-São

Paulo” (FROTA, 2003, p. 82).

Durante seu momento de apogeu enquanto veículo de comunicação no Brasil, ao

longo dos anos 1940, “aparecer no rádio como cantor implicava uma mudança radical de

hábitos e de status. [...] significava ter o seu talento reconhecido e respeitado”, como sugere

Rocha (2007, p. 103).

Fenômeno de massa desde os anos 1930, base da expansão da rica cultura musical

brasileira, (a) radiodifusão sofreu um grande processo de massificação a partir do

final da Segunda Guerra Mundial. Na segunda metade dos anos 1940, o rádio se

consolidou como fenômeno cotidiano, ligado à cultura popular urbana, veiculando

principalmente melodramas (novelas) e canções. (NAPOLITANO, 2017, p. 13).

Dessa forma, a fim de alcançar a devida reputação na carreira musical, mirando o

horizonte de oportunidades proporcionado pelo sucesso de Luiz Gonzaga, esses “dotados de

arte”, ou seja, formas de trabalho não dependentes do vigor físico do cabo da enxada ou da

foice (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 71), viam o deslocamento espacial no mesmo

sentido do apontado por Canclini (2016, p. 59), ou seja, não como decisão individual, mas

como estratégia familiar, uma das raras alternativas de ascensão social e melhorias na

qualidade na vida material individual e dos parentes próximos, em fuga do sertão semiárido,

área historicamente expulsiva e politicamente barganhada.

Assim, no vácuo deixado pelo sanfoneiro de Exu, que na virada dos anos 50 para os 60

estava, junto com o baião, perdendo espaço no mercado para as novas músicas urbanas (Bossa

103

Essa noção data dos primórdios do mercado cultural brasileiro. A partir dos avanços técnicos dos métodos de

gravação fonográfica, barateou-se os custos, implicando numa “crescente facilitação para que novos artistas

surgissem no cenário musical carioca [...] as próprias companhias fonográficas tratavam de convidar artistas

aspirantes para gravarem [...] Todos os pretendentes à fama instantânea proporcionada pelo disco tinham

invariavelmente que percorrer o mesmo trajeto, ou seja, deslocarem-se de seus estados natais (então províncias)

em direção à capital federal” (FROTA, 2003, p. 42).

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101

Nova, Jovem Guarda e depois a Tropicália), os membros do Trio Mossoró (Oseas Lopes, João

Batista e Hermelinda Lopes) migraram para o Rio de Janeiro, como fizeram antes Marinês,

Abdias, Jackson do Pandeiro, Antônio Barros e tantos outros.

Em 1956, Oseas Lopes, idealizador do Trio Mossoró, trabalhava em uma serraria na

cidade potiguar e, para distrair na labuta diária, cantava, como conta no seguinte relato:

A minha parte era pintar os frisos das carrocerias... Eu ficava pintando e cantando

músicas de Luiz Gonzaga, sabe? Aí passou um locutor da Rádio Tapuyo, na véspera

do aniversário da rádio, e perguntou se eu queria participar do aniversário da

rádio. “- Eu vou fazer o quê? - O que você tá fazendo aí, vai cantar!” Falei, “- Eu

vou.” Fui e cantei “Padroeira do Brasil”, de Luiz Gonzaga, a primeira música que

cantei em rádio. Uma semana depois eu tava contratado pela Rádio Tapuyo.

Comecei sozinho e depois entrou eles dois (Hermelinda e João) (OSEAS,

ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Enxergando e ouvindo no jovem Oseas Lopes um talento promissor, o radialista

Canindé Alves convidou-o a tentar a sorte no meio radiofônico durante os festejos de

comemoração de um ano da Rádio Tapuyo de Mossoró, a “Princesinha do Nordeste”, na qual

trabalhava. Na apresentação de estreia, agradou tanto que tornou-se artista exclusivo da

emissora (MARCELO; RODRIGUES, 2012). Logo agregando os irmãos João e Hermelinda

ao conjunto recém-formado, o repertório consistia, preferencialmente, em músicas do Rei do

Baião104

, a referência artística maior “de todo mundo, de todos os trios (forrozeiros)”, como

declarou Hermelinda (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018). Nesse aspecto, a

posição de ídolo ocupada por Gonzaga representava:

para os demais profissionais e para os aspirantes em geral o ponto até onde as

possibilidades da carreira os poderão conduzir, pois ocupam o status que simboliza

o nível de aspiração máxima de cada um. Fazendo inclusive “escola”, ele (o ídolo)

dita padrões de conduta pessoal e profissional, principalmente para aqueles que se

candidatam à carreira ou apenas a iniciam. (PEREIRA, 2001, p. 79-80).

Para Jambeiro (1975, p. 21) a fetichização em torno dessa “vida de ídolo” se verifica

através das “possibilidades de ascensão social que a indústria do disco oferece. [...] Os

104

Como a “titulação real” deixa transparecer acerca da construção mítica em torno de certos artistas, “a

permanência temporal de uma determinada categoria é reforçada pela utilização recorrente de seus elementos

distintivos, produzindo ao mesmo tempo um repertório de „clássicos‟ e um santuário de personagens míticos do

passado, sacralizados como referenciais para a continuidade da categoria. São os „monstros sagrados‟ do rock, as

„divas‟ do jazz, as „velhas-guardas‟ do samba, os „mestres‟ da música erudita, enfim, mitos próprios para a

construção de uma história e de uma „tradição‟ de cada categoria” (TROTTA, 2005, p. 189). Em relação ao

reinado da música nordestina, outras titulações foram distribuídas a Luiz Vieira (Príncipe do Baião), Carmélia

Alves (Rainha do Baião), Claudete Soares (Princesinha do Baião), Jair Alves (Barão do Baião), Marinês (Rainha

do Xaxado), etc.

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102

pretendentes estariam, assim, à procura de uma oportunidade [...] de, através deste valor

(artístico), conseguirem uma brecha por onde penetrar nesta vida fácil e romanesca”.

Já no final dos anos 1920, com o surgimento do rádio e a expansão do mercado

discográfico, cria-se uma aura de glamour e dinheiro ao redor do mundo do entretenimento,

principalmente no mundo musical (BESSA, 2010, p. 167).

O sucesso local de Oseas Lopes despertou a atenção da emissora concorrente na

cidade, a Rádio Difusora, que tentou levar o garoto prodígio do rádio mossoroense para seu

cast, mas a tentativa não se concretizou por questões salariais. “Quando iniciei minha carreira,

não sabia nem pegar num acordeom [...] passei seis meses tentando aprender a tocar sanfona e

consegui, pois nesse período eu já estava cantando e me acompanhando na sanfona”, declarou

o próprio cantor (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014, p. 27), se referindo ao instrumento

dado de presente pelo pai, maior incentivador da carreira artística dos filhos.

Em depoimento a Kydelmir Dantas, João Batista, irmão caçula e zabumbeiro do Trio,

narra as dificuldades desse período inicial:

(eu) ficava acompanhando meu irmão (Oseas) fazendo ritmo, tomei gosto e fui me

envolvendo. Cheguei a viajar com meu irmão por uns dois meses pelo interior. [...]

foi uma fase muito difícil, passamos por uns bons maus pedaços. O que se ganhava

mal dava para pagar as despesas. [...] o meu irmão não queria pedir ao meu pai,

levamos uma bronca dele, pois ficamos esse tempo todo sem dar notícias, passando

até necessidade [...]. (DANTAS, 2017, p. 30).

Em seguida, Oseas fez pequenos trabalhos em rádios regionais de Fortaleza e Recife

ao longo da segunda metade dos anos 50, retornando pouco depois a Mossoró. Mesmo

sustentando o status de radialista mais bem pago da cidade, vislumbrava para si outros rumos

artísticos.

Eu me tornei o maior salário da Radio Tapuyo. É tanto que quando eu falei pra ele

(Souza Luz, diretor da rádio) que iria pro Rio de Janeiro, ele disse que eu era

maluco, deixar de estar na Radio Tapuyo, ganhando o salário que eu ganhava pra

ir para o Rio aventurar. Aí eu pergunto: se eu tivesse ficado na Rádio Tapuyo, quem

é que é empregado em rádio hoje aqui? (OSEAS, ENTREVISTA CONCEDIDA,

JUNHO, 2018).

Assim, em 1960 deixou o sertão potiguar para se lançar em voos (e mares, já que a

viagem foi de navio) que levavam às plagas cariocas. Em depoimento Oseas revela: “o Rio de

Janeiro era naquele momento, o lugar ideal para tentar a carreira artística. Algo difícil, mas

não impossível. Apresentar-se na Rádio Nacional [...] passou a ser meu maior objetivo, um

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103

sonho a ser realizado. Eu não pensava em outra coisa105

” (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA,

2014, p. 35).

Rocha (2007, p. 16) diz que “nos anos 50, o rádio estava integrado à sociedade e

ocupava um papel central na produção cultural e artística do país”. Nesse aspecto, os artistas

nordestinos que migraram para o Rio de Janeiro ainda enxergavam o rádio como a mais forte

estratégia de divulgação e comunicação com os conterrâneos (MARCELO; RODRIGUES,

2012, p. 126).

Ciente da importante e necessária etapa de ascensão simbólica que representava a

oportunidade de apresentação em uma rádio de expressão nacional, como parte de um

planejamento de carreira mais amplo, tendo em vista que uma boa apresentação em

programas de calouros poderia facilitar o caminho rumo ao sucesso ou pelo menos

proporcionar um contrato para trabalhar em alguma emissora de rádio (SANTOS, 2004, p.

37), portanto, a “grande miragem daqueles que [...] acreditavam possuir qualidades artísticas

capazes de projetá-los no mundo maravilhoso da „gente do rádio‟” (TINHORÃO, 1981, p.

57), Oseas Lopes (seguido depois por seus irmãos) realizou o périplo em direção ao Rio

buscando individualizar-se enquanto artista e ter acesso ao mercado de bens simbólicos

“legítimos” (CANCLINI, 2015, p. 205).

A jornada em direção ao tão sonhado estrelato foi encarada como um grande desafio a

ser vencido: “enfrentar o rádio no Rio de Janeiro foi uma aventura com coragem, pois tive que

enfrentar sete dias e sete noites no navio” (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014, p. 37).

Apenas três semanas após a chegada à capital carioca, munido apenas de uma carta de

apresentação fornecida por amigos radialistas mossoroenses e de muita vontade de adentrar

àquele mundo, Oseas consegue ser encaixado na programação, estreiando (e agradando) na

Nacional, tornando-se atração assídua na emissora: “com 21 dias lá no Rio de Janeiro,

(cantei) no maior programa que existia, que era „César de Alencar‟ (radialista fortalezense

radicado no Rio). Era uma sumidade, na Rádio Nacional” (OSEAS, ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

A referida emissora carioca ainda representava a instância de consagração máxima

para um aspirante a artista, situação que se alteraria drasticamente poucos anos depois,

quando a Rádio Nacional entra em declínio, tendo seu golpe (quase) fatal desferido pelos

articuladores do regime militar de 1964: “Através do Ato Institucional I, o governo afastou

105

Este fragmento, assim como os demais referenciados como “Lopes; Nogueira; Rocha, 2014”, foram extraídos

do livro autobiográfico de Oseas Lopes, intitulado “Minha História: de Oseas Lopes, Trio Mossoró a Carlos

André”.

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104

(dos quadros da Nacional) de maneira sumária talentos importantes acusados de envolvimento

comunista [...] repressão (que) serve como parâmetro para avaliar a penetração social”

daquela estação106

(ROCHA, 2007, p. 51-52). Portanto, de acordo com Cabral (2005, p. 283),

com a dispensa de mais de trinta profissionais de prestígio da emissora, sob a acusação de

oposição ao regime militar, a emissora perdeu em qualidade de produção e nunca mais

recuperou a posição de liderança.

Homem de muita religiosidade, em várias partes de seu discurso Oseas atribui grande

parcela do seu sucesso artístico às forças extraterrenas.

Tem um trecho na Bíblia, se não me engano é Gênesis 12, que Deus falou com

Abraaão: “- Sai da tua terra, da casa do teu pai, da tua parentela. Vá pra uma terra

que eu vou te mostrar.” Abraão largou tudo e foi. E se tornou o maior homem

daquela época. O maior rico daquela época. (...) Porque é o seguinte: meu pai me

ajudou a ir para o Rio de Janeiro e em 21 dias eu cantei no maior programa do Rio

de Janeiro, e me tornei depois um dos maiores produtores do Sul do país. Foi o

Homem, não fui eu. [...] Eu sou o Abraão de hoje. (OSEAS, ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Curiosamente, Oseas não imputa, segundo o depoimento acima, seu sucesso aos

fatores estruturais (indústria fonográfica e rádio) da época, optando por enaltecer uma

trajetória biográfica repleta de aspectos mítico-religiosos, além de toda uma carga

estereotipada do sertanejo forte e batalhador, ávido por vencer na vida e driblar os infortúnios

do meio físico.

Com uma carreira relativamente encaminhada, a tão sonhada “vida de artista”, no

entanto, não tardou em apresentar seus primeiros obstáculos para Oseas: “No Rio de Janeiro,

mesmo com um bom número de apresentações com o trio Oseas Lopes e Seus Cangaceiros do

Ritmo, ainda não dava pra viver somente da música, que era meu maior desejo. [...] fui

trabalhar de ascensorista de elevador [...] na cidade de Niterói” (LOPES; NOGUEIRA;

ROCHA, 2014, p. 43).

Em outra situação, pouco antes da gravação do primeiro disco, já na companhia dos

irmãos João e Hermelinda, os três trabalhavam nos comícios da campanha política de um

candidato a deputado federal quando esse mesmo político “presenteou” Oseas com uma

nomeação como funcionário público federal na companhia estatal de navegação Lloyd

106

Exemplificando a suspeita que os membros do governo militar alimentavam da penetração de influência das

ideias comunistas dentro do meio artístico do Brasil pós-Segunda Guerra Mundial, Napolitano (2017, p. 23-24)

indica que “o Partido Comunista Brasileiro emergiu como uma das agremiações políticas mais prestigiadas pelos

intelectuais. [...] sobretudo entre literatos, músicos, jornalistas [...]”.

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105

Brasileiro107

. Porém, com a extinção da repartição, uma das atingidas pela política de

privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, toda a documentação

administrativa do servidor Oseas se perdeu, prejudicando-o nos assuntos previdenciários.

Como evidenciado nos capítulos anteriores, o rádio teve papel crucial para a inserção

da música sertanejo-nordestina nos centros metropolitanos nacionais, pois a partir dele a

música popular se impulsiona e ganha novos rumos (CALDAS, 2000, p. 27). Em movimento

articulado, Sevcenko (1998, p. 593) entende que “não foi o rádio que lançou a música

popular, mas o contrário”.

Estruturando-se paulatinamente como setor de atividades remuneradas, [...] (o rádio)

passa a atuar centripetamente sobre os demais centros lúdico-musicais, canalizando

para si os indivíduos que, através da música, buscavam trabalho remunerado,

notoriedade, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Ingressar no rádio era o ponto

máximo das aspirações dos artistas populares. (PEREIRA, 2001, p. 217).

Ainda segundo Pereira (2001, p. 91), “obter emprego na estação afigura-se melhorar

de vida, ganhar poder econômico e projeção social, e assim, qualificados através da profissão,

distinguirem-se na paisagem humana a que pertencem na rotina de todos os dias”. Nesse viés,

Vieira (2000, p. 53) ressalta que o rádio era símbolo de um novo espaço que se abria, onde se

projetavam os artistas do campo musical.

Dessa forma, após a estreia na Nacional, “logo as portas de outras emissoras se

abririam (para Oseas)” (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 130). Pouco dias depois,

Hermelinda e João Batista chegaram ao Rio para acompanhar o irmão e dar continuidade ao

trio, já formado em Mossoró pouco tempo antes da viagem do irmão mais velho. “Quando

você (Oseas) ficou no Rio, com três meses você pediu a meu pai pra mandar eu e João porque

lá era difícil de conseguir um zabumba, um triângulo pra acompanhar ele (Oseas). [...] Aí

começamos a fazer programa de rádio108

” (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA,

JUNHO, 2018).

Oseas conta como foram os primeiros momentos na capital carioca, quando buscavam

se inserir no concorrido e efervescente meio artístico do começo dos anos 60, através dos

instrumentos da indústria cultural:

107

Verifica-se a perpetuação de uma tradição do começo do século XX, quando a nomeação de músicos como

funcionários públicos de baixa patente era prática comum, uma espécie de “reconhecimento” pelos serviços

prestados à cultura nacional. Muitos chorões foram beneficiados por essa medida, com grande parte deles

ocupado cargo de carteiro. Assim, “tinham renda para comprar um bom instrumento e tempo suficiente para

estudá-lo” (MARTINS, 2014, p. 140). 108

A entrevista concedida ao pesquisador foi realizada com os três músicos simultaneamente, por isso os

diálogos intercruzados em certos momentos dos discursos.

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106

Aí era Oseas Lopes e Seus Cangaceiros do Ritmo. Nós fomos para o Rio com esse

nome. Batalhamos no Rio, fazendo muita televisão, rádio, aquele negócio todo.

Surgiu a ideia do João do Vale109

, que me procurou com a ideia que ia arranjar pra

gente gravar um LP. [...] Depois de muita batalha arranjou uma gravação pra

gente, na (gravadora) Copacabana. Só que não podia ser Oseas Lopes e Seus

Cangaceiros do Ritmo, a gente tinha que criar um nome. (OSEAS, ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Sobre a mudança no nome do conjunto, Hermelinda conta que foi ideia do próprio

Oseas, atendendo a pedido do produtor do primeiro disco do conjunto, de 1962, Nazareno de

Brito, que teria dito: “- Vamos arrumar outro nome que esse aí tá muito pesado”

(HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Nesse contexto o papel exercido pela figura do produtor musical pode ser resumido, a

partir da definição de Dias (2000, p. 91), como “um trabalho altamente técnico e

especializado, [...] (que) concilia interesses diversos, tornando o produto musicalmente

atrativo e economicamente eficiente; como parte do quadro funcional da companhia, realiza,

no estúdio, a proposta de atuação desta”. Portanto, ressalte-se que a função do produtor

extrapola os limites do estúdio de gravação, pois antes mesmo do Trio colocar os pés numa

sala desse tipo já sentia-se a interferência de um personagem do mercado fonográfico sobre os

artistas, na busca estratégica de lapidar aquele “produto bruto”, tornando-o mais interessante

comercialmente. Em suma, encaixá-los num padrão mercadológico, apropriando-os com

vistas a facilitar sua circulação posterior.

Ainda segundo Dias (2000), o labor dos agentes da área fonográfica, apesar das

características técnicas e especializadas inerentes ao setor, contudo, não dispensa o fator do

feeling, entendido como uma sensibilidade musical necessariamente aguçada, dada a

especificidade do produto manuseado.

Voltando à trajetória inicial do trio, já com os três morando na capital carioca,

contratados da Rádio Mayrink Veiga, emissora inaugurada em 1926, alteram o nome para

Trio Mossoró e são apadrinhados musicalmente pelo cantor maranhense João do Vale,

importante incentivador e responsável pela articulação que resultou na gravação do primeiro

disco do trio em 1962, Rua do Namoro.

109

Cantor e compositor maranhense que foi primordial para a carreira artística do Trio Mossoró, oportunizando a

gravação do primeiro disco na gravadora Copacabana, estabelecendo parcerias e fornecendo composições.

“Todo domingo pela manhã íamos para a casa de João do Vale [...] e lá ficávamos ensaiando as músicas que ele

pretendia gravar com o trio quando arranjasse a tão sonhada gravadora” (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014,

p. 56).

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107

O João do Vale bolou pra gente fazer um testa na gravadora Copacabana. Nós

ficamos na Rádio Mayrink Veiga porque a gravadora ficava no outro lado da rua,

na Avenida Rio Branco. Ficou eu e João do Vale, ela (Hermelinda) nem tava

presente. E Luiz Gonzaga foi meu padrinho de casamento em 62. Aí João do Vale:

“- Oseas, olha quem vem aculá... Gonzagão! Ele não é seu padrinho de casamento?

Vamos convidar pra ele ser nosso padrinho aí.” O João do Vale falou toda a

armação pra ele. Luiz Gonzaga tinha que ir lá porque o diretor era Altamiro

Carrilho, aquele da flauta. A gente combinou tudo com Luiz Gonzaga. João do Vale

falou pra Gonzaga tudo que ele tinha que fazer. Chegar no Altamiro Carrilho e dar

uma força pra gente. Aí Luiz Gonzaga falou: “- Tudo bem.” Aí chegamos na

Copacabana. Quando Altamiro Carrilho viu Luiz Gonzaga fez aquela festa. João do

Vale cutucou na minha barriga: “- Tou dizendo, você não vai nem assinar contrato,

vai gravar direto!”, com a festa que o cara fez com Gonzagão. Aí o quê que o cara

pergunta: “- Gonzaga, qual o prazer da tua visita aqui? – Não, é que eu ia

passando aqui pela Rio Branco e os meninos falaram que você tava aqui, vim trazer

um abraço.” Não falou nada da gente! João do Vale ficou uma arara. (OSEAS,

ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Contudo, antes mesmo da gravação do disco de estreia, os irmãos já acompanhavam

como “banda de apoio” nomes conhecidos do cenário forrozeiro em apresentações ao vivo,

inclusive Luiz Gonzaga. Em relato, João Batista (zabumbeiro do Trio) confessa que na época

que foi ritmista do sanfoneiro, foi a partir dos ensinamentos práticos do Rei do Baião que

desenvolveu seu método de tocar o instrumento percussivo (DANTAS, 2017).

Ao se fazer o estudo detalhado de um caso concreto como o desenvolvido aqui,

reforça-se a percepção de como o uso dos media da época, sobretudo o rádio, era crucial na

divulgação do trabalho dos artistas populares, ao mesmo tempo em que também ajudou a

lançar as bases de fabricação e do “culto ao ídolo”. Também é interessante notar, com base no

depoimento de Oseas, o modo como esse artista encarava a etapa de gravar um disco como a

representação de um grande salto na pretendida carreira no meio artístico, como compositor

ou intérprete.

Sendo, pois, o disco, o ponto inicial do processo de comunicação do compositor com

o público, a gravadora assume para ele o papel de entidade mais ativa e dominante

no “sistema da indústria cultural”, uma vez que só se tornam conhecidas as músicas

gravadas e posteriormente divulgadas pelos outros veículos do sistema, notadamente

o rádio, veículo essencial à difusão do disco. (JAMBEIRO, 1975, p. 3).

De acordo com Oseas (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018), João do Vale

insistiu e, mais uma vez lançando mão do bom trânsito que possuía na classe artística,

sobretudo dentre os músicos nordestinos radicados no Rio de Janeiro, apelou dessa vez para o

irmão de Luiz Gonzaga, o também sanfoneiro Zé Gonzaga, que falou com Nazareno de Brito,

produtor da gravadora Copacabana: “„- Eu lhe faço um pedido: quero que você grave com

esses meninos na Copacabana.‟ Nazareno tava meio meladinho de whisky e marcou comigo

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108

na segunda-feira da semana seguinte. Fui lá e nós assinamos um contrato” (OSEAS,

ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Com contrato assinado e disco gravado, era hora de lançá-lo. Então, na noite de

lançamento do primeiro disco, após a apresentação do Trio, ocorre o seguinte episódio

envolvendo o Rei do Baião, presente no auditório aquela noite:

Gonzaga falou pra eu sentar bem na frente dele e começou a dar uma bronca que me

fez chorar. Disse que eu não deveria ter gravado sem o consentimento dele, pois,

futuramente, eu seria o continuador dele. Que quando chegasse o momento me

apresentaria a uma gravadora [...] eu havia perdido a confiança dele [...]. Depois

desse episódio soube que Luiz Gonzaga e o irmão Zé Gonzaga estavam intrigados,

não se falavam, sequer se cumprimentavam. Pode ter sido o motivo para toda ira

dele, sermos lançados com um empurrão do irmão dele (LOPES; NOGUEIRA;

ROCHA, 2014, p. 59).

Poucos anos mais à frente, já no momento do segundo disco do trio, fato relevante da

biografia do conjunto mossoroense é o episódio no qual a vocalista Hermelinda foi cotada

para assumir o posto deixado por Nara Leão, afastada por motivo de doença, no espetáculo

Opinião110

, em 1964. Segundo consta nos relatos observados, a substituição só não se efetuou

por impedimento de Oseas.

João do Vale avisou que tentaria escalar Hermelinda em espetáculo no teatro

Opinião, mas Oseas não quis: dizia que a irmã era muito nova (em 1964 Hermelinda

tinha 19 anos). Quando Nara Leão saiu, Hermelinda foi novamente chamada, mas

Oseas barrou [...] até Maria Bethânia estrear, com uma interpretação dramática de

“Carcará”, e chamar a atenção de todo o Brasil. (MARCELO; RODRIGUES, 2012,

p. 132-133).

Dessa forma, ao longo dos anos 1960 e 1970, o Trio Mossoró gravou 12 álbuns e 06

compactos, distribuídos em cinco gravadoras diferentes e experimentando diversos estilos

musicais. No começo da década de 1970, percebendo uma saturação da música nordestina no

mercado fonográfico, o trio se separa e cada um dos membros inicia suas carreiras

particulares, muito embora continuassem gravando discos como Trio até 1977.

Em 1974 Oseas Lopes (sob o codinome de Carlos André) se destaca nacionalmente

como cantor “brega” com a canção “Se meu amor não chegar (Quebro a mesa)” e como

produtor nas grandes gravadoras. Hermelinda (como Ana Paula), após o fim do Trio, grava

110

O espetáculo Opinião, “a reação cultural mais contundente ao novo contexto autoritário” (NAPOLITANO,

2010, p. 51), foi formulado como um protesto teatral-musical ao golpe militar e “estreou com casa lotada em

dezembro de 1964. João do Vale, compositor pobre do Maranhão, Zé Keti, sambista do morro, e Nara Leão,

representando intelectuais, artistas e estudantes das classes médias urbanas, traziam para a cena de Opinião os

diversos grupos que deveriam mobilizar-se contra a ditadura militar engajando-se na luta por uma transformação

radical da sociedade brasileira” (ALMEIDA, 1996, p. 68).

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109

discos que variam do estilo romântico ao forrozeiro, nos anos 1980 e 1990. Já João Batista

(João Mossoró) prioriza composições próprias e de parceiros, gravando discos e se

apresentando em pequenas casas de espetáculo cariocas.

Em 2009, como parte da homenagem prestada pela Câmara Municipal de Vereadores

de Mossoró, em reconhecimento oficial (e um tanto quanto tardio) aos serviços prestados pelo

Trio à cidade natal, o conjunto se reúne nos palcos: “Voltar a se apresentar em nossa cidade

foi algo que a gente queria há muito tempo” (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014, p. 75).

Desde então, os irmãos são presença constante na festa junina anual mossoroense, optando em

se apresentar no palco secundário ao invés do principal (HERMELINDA, ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Atualmente, Oseas Lopes (com 80 anos de idade) mora em Recife, onde mantém

escritório de representação da Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos

Intelectuais – SOCIMPRO, Hermelinda (73 anos) e João Batista (71 anos), após vários

endereços entre o Nordeste e o Sudeste, residem no Rio de Janeiro. A irmã segue fazendo

shows esporádicos como “Hermelinda do Trio Mossoró”. João, sob a alcunha de João

Mossoró, também continua se apresentando em pequenas casas de espetáculo da noite

carioca, sobretudo as direcionadas ao entretenimento da colônia portuguesa e seus

descendentes lusitanos que moram no Brasil: “(hoje) 40% do meu trabalho tá ligado à música

portuguesa. [...] misturo romântico, misturo forró [...]” (JOÃO, ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Sendo a música compreendida como um conjunto de símbolos, dotada de linguagem

polissêmica, portanto, admitindo várias interpretações e significados, a música do Trio

Mossoró111

, sob o ponto de vista das transformações verificadas no decorrer da carreira

artística do grupo, reflete mudanças nas formas de interpretação da relação sertão-cidade e

suas representações sociais, a partir de referências internas - pois “tudo o que entra na

composição de uma obra passa pelo modo como a percepção histórica do artista está

enformada pelo espírito de sua época” (FREITAS, 2003, p. 42), e externas aos membros do

trio. Da mesma forma essa noção interpretativa deve permear a percepção do pesquisador, já

que ele, “no processo de análise musical, ao identificar e descrever aspectos da música

analisada, necessita observá-los e compará-los, não só no âmbito da própria obra focalizada,

mas até mesmo em relação a elementos externos” (FREIRE, 2010, p. 38).

111

Chamo no trabalho “música do Trio Mossoró” todas as canções que constam na discografia do grupo, não

necessariamente de composição dos três membros, visto que muitas delas foram compostas em parceria com

outros artistas, “de dentro” e “de fora” do mundo do baião.

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110

Portanto, no tópico a seguir será iniciada a etapa empírica do trabalho, de análise da

produção simbólica do trio potiguar, procurando elucidar os pontos de heteronomia e

estereotipia, inerentes à música ligeira para Adorno, presentes tanto no conjunto da obra

(música popular em geral) como na obra do conjunto (produção específica do Trio).

3.2 ANÁLISE DA DISCOGRAFIA DO TRIO MOSSORÓ

Como apontado por Canclini (1983, p. 47), “o marco mais fértil para o estudo das

culturas populares parece residir na intersecção entre a explicação marxista a respeito do

funcionamento do capitalismo e as abordagens empíricas, e em parte metodológicas, da

antropologia e da sociologia”. Nesse aspecto, segundo Demo (2002, p. 350), o cuidado

metodológico desprendido pelos frankfurtianos “talvez tenha sido seu signo maior [...]. A

teoria crítica notabilizou-se não só por ser teoria alternativa, mas sobretudo por ser olhar

metodológico alternativo, contestando radicalmente a visão positivista e empirista [...]”.

Assim, de posse dos horizontes teóricos abertos pelo pensamento crítico frankfurtiano

e considerando estudos de caso antecessores como referenciais metodológicos, neste tópico

será examinado como a produção simbólica do Trio Mossoró, grupo inicialmente vinculado

ao gênero musical baião, expressão cultural de viés sertanejo-nordestino, se comportou e se

conformou aos veículos comunicacionais derivados do avanço da técnica (rádio, fonogramas,

televisão, etc.), evidenciando seu trânsito em todos eles.

Antes de iniciar a etapa empírica, ressalte-se, pretendendo reiterar importante ponto,

que o buscado na presente pesquisa não é “esconjurar” os (inevitáveis) cruzamentos

estilísticos, mas sim, apontar o papel da indústria cultural (fonográfica) nesse processo, tendo

em vista seus interesses puramente mercadológicos, assim como demonstrar como esses

sujeitos artistas (membros do trio) se posicionavam mediante as estruturas de mercado da

época. Conforme Lima (2010, p. 228), “para a indústria cultural não importa a época nem o

estilo, o mais importante é aproveitar as potencialidades que o meio oferece. A questão está

na distribuição, na vendagem e especialmente na divulgação e promoção de artistas, já que a

indústria é responsável pelo produto”.

Pegando emprestada a interrogação de Ortiz (1988, p. 101) e aplicando-a ao objeto de

análise determinado aqui, parte-se do seguinte questionamento: seriam os “saltos produtivos”

mera decorrência da inspiração artística? Não seriam as alterações presentes no corpus da

presente pesquisa, afinal, como afirma Hobsbawn (1990, p. 35), “o que se espera que aconteça

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111

com uma música que não morre, mas continua a se desenvolver em um mundo dinâmico e

tempestuoso”?

Como possível resposta, pode-se pensar a hipótese que o incremento de instrumentos a

um gênero musical favorece diretamente sua “diversidade estética” (TROTTA, 2006).

Também é plausível a reflexão sobre a ideia de que as inovações e experimentações artísticas

deveriam representar, enquanto rupturas que pretendem ser, “aquilo que não foi ainda

ocupado pela cultura, o não-digerido, não-domesticado pela concepção cotidiana” (FREITAS,

2003, p. 30), já que a indústria cultural “domestica o vigor e a autenticidade112

da cultura

popular submetendo-a ao controle da indústria ou do Estado”, como ocorreu nos primeiros

anos do samba e do próprio baião no período varguista (BOSI, 1973, p. 47), citado nos

capítulos anteriores113

.

O recurso metodológico adotado, de divisão da discografia do trio em três fases

sequenciais, visa propiciar uma melhor apreensão dos caracteres estéticos referentes a cada

período, assim como fornecer um quadro geral dos trânsitos sonoros praticados pelo conjunto

entre 1962 e 1977. Buscando um rigor lógico-estrutural condizente, tal procedimento vai ao

encontro do apontado por Demo (1998, p. 91), de que “somente se compreende aquilo que

puder ser minimamente sistematizado, ou seja, se não houver no fenômeno nada que tenha

perfil lógico, sistemático, recorrente, pelo menos regular, não pode ser abordado

cientificamente”.

Formula-se, então, a ideia de que, se tratando da obra dos irmãos mossoroenses, os

aspectos de não-padronização (interna) funcionam como meio para se atingir a padronização

(externa), enquanto fim em si mesma. Detalhando: entende-se não-padronização como

critério a nível interno, se a referência é a evolução da obra do trio. Por exemplo, gravar

canções de protesto em 1966 ou inserir guitarra elétrica nas faixas dos discos setentistas,

visando seguir uma tendência mercadológica, já que a música do Trio Mossoró,

originalmente, não é discípula desses expedientes (não é sua “escola musical”), é um

indicador de não-padronização, pois são sonoridades “alienígenas”. Dessa forma, são

exatamente esses tipos de registros fonográficos que interessam, para fins de análise.

112

Benjamin (1994, p. 168) entende a autenticidade de um artefato cultural como “a quintessência de tudo o que

foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico”. 113

Para retomar essa ideia, Wisnik (1987, p. 120) diz que “o Estado (Novo) subvenciona a música como

instrumento de pedagogia política e de mobilização de massas, tentando fazê-la portadora de um ethos cívico e

disciplinador”. Nesse contexto, o sucesso alcançado pela canção “Aquarela do Brasil”, composta por Ari Barroso

em 1939, inaugurou um novo sub-gênero musical, o samba-exaltação (SEVERIANO; MELLO, 1997, p. 89), de

viés efusivamente chauvinista. Contudo, como diz Alencar (1984, p. 88), esse tipo de samba-hino “peca” por não

ser nem samba nem hino.

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112

Estabelece-se assim um paradoxo: distancia-se do padrão interno para buscar o padrão

externo, da indústria, do que está “em moda” naquele período da fonografia nacional.

Portanto, a perseguição ao denominador comum da padronização, valor máximo e

finalidade objetiva buscada pela indústria cultural, é aqui reforçado, pois para alcançá-lo é

válido até mesmo trilhar outros caminhos estilísticos, abandonando, ainda que

momentaneamente, os referenciais originais - em ambos os sentidos de “original”, tanto de

nativo/primário como de inédito/peculiar. Ou seja, as mesmas mentes criativas buscam,

progressivamente, se desvencilhar do padrão primeiro, denotando aspirações em se adequar

ao padrão segundo.

Segundo afirmam Adorno e Horkheimer (1985, p. 126), “a máquina gira sem sair do

lugar. Ao mesmo tempo que já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi

experimentado porque é um risco”. Como diz Bosi (1973, p. 42), “o teor do imaginário, da

originalidade, da inovação que a cultura de massa pode oferecer é limitado não por uma fatal

carência de talento dos realizadores artísticos, mas por força da organização industrial –

burocrática que a rege estruturalmente”.

Pelo que se pode observar das menções feitas pelos meios de comunicação locais

(noção presente também na percepção em comum de especialistas e cultuadores da cultura

popular nordestina), é frequente a classificação do Trio Mossoró como “sempre fiel às origens

nordestinas114

”, “referência musical puramente nordestina115

”, “um dos marcos do forró116

”,

etc.

Porém, este terceiro capítulo (conectando-se ao conteúdo teórico e histórico exposto

nos capítulos anteriores), objetiva mostrar como um grupo musical representativo do seu

campo artístico, reduto da “tradicionalidade e autenticidade nordestinas”, foi sendo inserido,

ao longo de sua produção simbólica, em gêneros distintos da música que o consagrou. Ocorre

o processo denunciado por Anjos (2005, p. 59), de “gradual substituição de valores centrais da

identidade nordestina por outros próprios a uma formação cultural considerada estranha às

raízes da região”. Tal movimento denota que a produção de bens culturais, mesmo mediante

(e por causa das) imposições externas de mercado, se estabelece através de experimentos e

processos de hibridização. Conflituosamente, apesar de todas as considerações e

manifestações regionalistas ao trio, eles mesmos se enxergavam como pertencentes a outro

circuito artístico. Como afirmado por Hermelinda (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

114

LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014, p. 07. 115

Idem, p. 141. 116

Idem, p. 157.

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113

2018), “Trio Mossoró era mais pro lado do pessoal da bossa nova, MPB [...]”. Mais à frente,

a cantora vai atribuir essa aproximação inesperada aos contatos iniciais feitos no Rio,

sobretudo ao maranhense João do Vale, que fez o papel de mediador entre os dois grupos, o

dos músicos nordestinos (do qual fazia parte o Trio Mossoró) e o do “pessoal da bossa nova”.

Como ferramenta auxiliar na pretendida abordagem, além da análise musical e poética

propriamente dita (instrumentalização e conteúdo lírico das canções), interpretar as capas dos

doze discos do trio se mostra relevante como instrumento de investigação. Como aponta

Vieira (2000), ao falar sobre o papel da fotografia na composição da nova pedagogia do olhar

sobre Luiz Gonzaga e da preocupação dos periódicos com seu “visual”, no momento em que

estava despontando como expressão máxima do baião:

se, no rádio, o apresentador de programas e o intérprete musical podem soltar a voz,

improvisando na criação de imagens metafóricas do artista e do baião, com a câmara

o repórter fotográfico procura registrar determinadas imagens [...] com extrema

perspicácia, muitas vezes produz imagens detalhadas [...] procura o realce do

detalhe, que se transforma naquilo que se elege como característica da imagem como

um todo. (VIEIRA, 2000, p. 105).

Nesse quesito, perguntado sobre a preocupação do trio em relação à arte e às capas dos

discos, Oseas (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018) diz que “o visual do trio

favorecia. Todos os três jovens, tinha um visual legal”. Assim como em qualquer mercadoria

à venda, a “estampa” ajudando e sendo bem trabalhada, o produto tende a circular mais

facilmente.

A música é o resultado de uma prática social. Sendo assim, é possível entender e

considerar a capa do disco como prática e como fazer musical. As imagens e seus

significados, portanto, não podem ser tomados apenas como elementos

extramusicais [...] as capas dos discos [...] não são dados extramusicais, mas, fazem

parte do fato musical, da construção e do fazer musical [...]. As capas vendem as

músicas, permitem a representação das ideias e do estilo dos artistas [...].

(RESENDE, 2015, p. 84).

No mesmo sentido do papel exercido pelos signos iconográficos (capa dos discos),

aponta Morelli (2009, p. 173-174) que “o trabalho de quem elabora os releases117

a respeito

dos discos lançados consiste unicamente em „pinçar‟, „captar‟ ou fazer „aflorar‟ características

muitas vezes ocultas, porém sempre existentes nos artistas”. Assim, os textos constantes nas

117

Além de apresentar um novo trabalho de um artista já famoso ou mesmo apresentar um artista novo ao grande

público, essa forma de introdução é utilizada pela indústria fonográfica para, através das classificações de

gêneros musicais estampadas, “tornar o processo mercadológico mais eficiente, [...] assumindo que há uma

relação negociável entre o rótulo musical e o gosto dos consumidores” (JANOTTI JUNIOR, 2003b, p. 34).

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114

contracapas dos discos118

também representam ferramentas de análise, visto que

desempenham a tarefa de “apresentar” o artista a um público, supostamente, principiante.

Portanto, buscando confrontar a observação empírica, correspondente à análise da

produção simbólica do trio, com o pressuposto de Adorno sobre a estrutura estandardizada da

música popular, que se expande “dos traços mais genéricos até os mais específicos”

(ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 116), cada disco será analisado como uma obra total,

observando-se todos os componentes em conjunto: as músicas contidas (aspectos líricos e

instrumentais), a representação iconográfica (capas) e os textos de apresentação.

3.2.1 Fase Tradicional (1962-1966)

A primeira etapa da produção simbólica do trio é diretamente tributária do baião

gonzagueano, decantando o Nordeste sertanejo nos mais variados aspectos, inclusive com as

canções tematizadas para o período junino119

. As temáticas referentes ao meio urbano são

escassas.

Nos três discos da fase tradicional – Rua do Namoro (1962), Quem foi Vaqueiro

(1964) e Terra de Santa Luzia (1966), predomina a instrumentação: sanfona, violão de sete

cordas, cavaquinho, zabumba, triângulo, pandeiro e acompanhamento de um coral misto, ou

seja, a formação típica dos conjuntos regionais. As temáticas líricas se concentram em temas

universais (amor, festa, religião, etc.), mas climatizados em ambientes tipicamente sertanejos.

Por sua vez, os ritmos escolhidos para as músicas também, em sua maioria, se encaixam nos

gêneros sertanejo-nordestinos: baião, xote, xaxado, marcha junina, coco, etc.

118

Tais textos de apresentação, na obra do Trio Mossoró, só aparecem até o sétimo disco, Transmazônica

(1972), que marca o fim da “fase experimental”. 119

De acordo com Frota (2003), desde os anos 1930 vários artistas urbanos (como Carmem Miranda, Braguinha

e Lamartine Babo) se devotaram ao lançamento de canções juninas, as chamadas “músicas de meio-de-ano”, que

passaram a representar uma alternativa comercial ao período de “vacas magras” na venda de discos nos meses

seguintes ao carnaval. Segundo Almirante (2013, p. 233), “em 1933, o vespertino A Noite [...] (lançou o)

primeiro concurso de músicas para São João” e o próprio Almirante “em 1934, gravou um total de 13 discos na

Victor, incluindo músicas para São João [...]” (CABRAL, 2005, p. 105). Tal procedimento se manteve com Luiz

Gonzaga a partir dos anos 1940 e prosseguiu nas décadas seguintes. Como diz Bessa (2010, p. 192), “acredita-se

que o gênero tivesse surgido para atender à demanda de uma parcela significativa da classe média urbana

formada por migrantes e seus descendentes oriundos da zona rural, que procuravam reproduzir nas grandes

cidades as tradições das quermesses, das fogueiras e das quadrilhas. Daí o tom nostálgico de suas letras [...].

Musicalmente, contudo, o gênero não se distanciava muito da marcha carnavalesca”.

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115

DISCO 01 – Rua do Namoro (1962)

No disco de estreia, os pontos de inflexão, na parte instrumental, ficam por conta de

um bombardino na marcha junina Liro He, de J. B. de Aquino, (“Carnaval é na cidade/ São

João é bom na roça”) e um vocal-extra interpretando um delegado de polícia na humorística

Matei Sete Gatos, de Buco do Pandeiro e Vaz da Eira. Uma característica peculiar aqui é que,

assim como no terceiro disco, Terra de Santa Luzia (1966), há uma divisão hermética na

liderança dos vocais, com Hermelinda e Oseas se revezando. Nas seis primeiras faixas,

correspondentes ao lado A do vinil, Hermelinda canta temáticas mais “amenas”, como festa,

dança e amor; no lado B, Oseas assume, passando as letras a abordar conteúdo mais crítico e

melancólico. Ressalto que nessa gravação, João Mossoró, zabumbeiro e irmão mais novo do

trio, ainda não gravava como intérprete vocalista (embora já contribuísse como compositor), o

que só veio a ocorrer no quinto disco, Convocação, de 1967, já na fase experimental.

Para a gravação desse disco de estreia, foi convocado o melhor time de músicos do

mercado, “como o violonista Canhoto, o sanfoneiro e arranjador Orlando Silveira e até um

coral [...] no repertório, músicas de João do Vale” (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 131).

Não por acaso esse é o disco com maior número de contribuições do maranhense: são cinco

composições suas, todas em parceria com outros compositores.

A instrumentação utilizada consiste, dentre outros elementos menos destacados, da

formação típica dos regionais, com “violão de sete cordas e tal. Num tinha negócio de baixo,

guitarra... Eram dois canais: um era o artista com o coro, e o outro era o conjunto. Se um

errasse tinha que voltar tudo de novo” (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA,

JUNHO, 2018).

Já tava o contrato (pra gravação do primeiro disco) assinado, e ele (produtor)

queria que tu (Oseas) tocasse sanfona, João no zabumba e eu no triângulo. Pra

fazer um disco desse! Era pra fazer a gente desistir. Esse disco não ia prestar. [...]

Aí Oseas chamou o coral, que era seis pessoas, Joabe e As Gatas, e o conjunto era o

de Canhoto. Você chamou todo mundo. [...] O primeiro disco de Trio Mossoró,

“Rua do Namoro”, nós demos uma resposta muito boa pra eles, porque com seis

meses a gravadora chamou pra fazer “Quem Foi Vaqueiro”. (HERMELINDA,

ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Adotando prática que se repetirá nos discos subsequentes, é comum a ocorrência de

canções referentes à cidade natal dos irmãos. Nesse disco são dois os exemplos: Xaxado de

Mossoró, de Francisco Abalada e João Mossoró (“Eu nasci em Mossoró/ O meu pai

fazendeiro do lugar/ Deixei tudo pra sair pelo mundo ensinando esse povo a xaxear”) e

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116

Saudades de Mossoró, de Oseas e Antônio Ramos, na qual prega-se a volta à terra natal no

período dos festejos juninos (“Quero brincar até o romper do sol/ Esse ano eu vou passar São

João em Mossoró / [...] / Eu fico aqui no Sul/ Mas pensando em Mossoró”).

Em Lavadeira e Lavrador, a mais lamentosa das contribuições de João do Vale para o

disco, feita em parceria com Ary Monteiro, o maranhense diz: “Eu vi a lavadeira pedindo sol/

E o lavrador pra chover/ Os dois com a mesma razão/ Todos precisam viver”. Na mesma

linha, Orós, de Oseas e Eraldo Monteiro, declama as vicissitudes do sertanejo para sobreviver

no semiárido: “Se não é seca é enchente, doutor/ Como somos sofredor/ Eu só queria saber o

que foi que o Norte fez/ pra viver nesse penar/ Todo nortista é devoto/ Não se deita sem rezar/

Se o sulista se zangar/ Dele não tiro a razão/ Lá vem a mesma conversa/ Tu ajuda teu irmão/

Mas sei que não é de gosto, doutor/ Que o nortista estende a mão/ É triste o caboclo forte, ai,

ai... / Sofrer desta humilhação”.

Na não menos queixosa Porque Deixei Meu Sertão, outra contribuição de João do

Vale, dessa vez com Eraldo Monteiro, a mensagem da migração é o mote: “Eu vou contar, seu

moço, porque deixei meu sertão/ Não foi por falta de inverno/ Num foi pra fazer baião/ É que

todo sertanejo sempre tem essa ilusão/ Conhecer cidade grande/ põe nas costas o matulão”.

A capa do disco mostra os três irmãos, com exceção do zabumbeiro João, em pose que

denota “movimento”, atividade musical, como se estivessem executando seus respectivos

instrumentos.

Figura 01 – capa do álbum Rua do Namoro.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-rua-do-namoro/

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117

O plano fotográfico revela um fundo neutro, azul, em estúdio, sem maiores detalhes

que tirem o foco dos três integrantes, o que pode ser explicado pelo fato de, se tratando de um

disco de estreia, a apresentação não deva desviar a atenção do público para detalhes

secundários. Tanto o nome do grupo quanto o nome do álbum aparecem em cores que se

destacam do fundo azul.

Devidamente caracterizados com trajes cangaceirísticos, dos pés à cabeça, das

sandálias (mais rústica para os homens; para a representante feminina, um calçado mais

delicado) aos chapéus de couro. A violência simbólica dos punhais nas cinturas dos três logo

se esmaece quando se direciona o olhar para os sorrisos estampados nas faces dos irmãos.

O texto de apresentação profetiza que a “estrelinha” Hermelinda, defendendo,

juntamente ao lado de Oseas, a música nordestina, formarão, “sem dúvida nenhuma – num

futuro breve – a dupla mais famosa da música nordestina em todo o País”.

Sobre as interferências do produtor Nazareno de Brito na gravação desse disco, Oseas

(ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018) afirma que “ele era o produtor, mas nem

ficava (no estúdio) não, saía”. Em complemento, Hermelinda (ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018) relata: “Naquele tempo não tinha interferência, porque,

modéstia à parte, quem era bom era bom, não era esse negócio de hoje. Quem escolheu pra

gente ganhar o Troféu Euterpe120

, o disco do ano, era a Academia de Letras. Ali só entrava

quem cantava e se o disco fosse bom”.

Como sugere Jambeiro (1975, p. 137-138), “qualquer compositor que pretenda tornar

conhecida sua canção, tem que, necessariamente, [...] passar pela gravadora”. Assim, na

análise do depoimento de Oseas Lopes acerca do lançamento do álbum de estreia do grupo,

tem-se que: “A festa de lançamento do primeiro LP do Trio Mossoró foi no programa „O

trabalhador se diverte‟ [...] na Rádio Mayrink Veiga, onde éramos contratados. A rádio criou

uma boa expectativa, pois divulgou bastante na programação” (LOPES; NOGUEIRA;

ROCHA 2014, p. 58-59).

Se referindo aos tempos atuais e à polêmica questão do “jabá”, prática presente nos

grandes veículos de comunicação que recebem vantagens (financeiras ou não) para promover

determinado artista/música, declara Hermelinda (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

2018) que: “naquele tempo a gente recebia cachê, hoje eles (novos artistas) pagam pra tocar.

Naquele tempo não existia isso (de pagar pra aparecer na mídia), existia cachê de televisão. A

120

Premiação recebida pelo trio em 1965, muito em virtude do êxito alcançado pela canção Carcará. Acerca da

condecoração, Oseas diz que, “sem dúvidas foi muito estimulante estar entre a nata da música do nosso país [...]

Nosso LP foi considerado o melhor disco de música regional e aquele prêmio era o de maior importância da

música brasileira, para nossa surpresa” (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014, p. 61).

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118

Globo tinha, TV Rio tinha, toda televisão dava cachê, umas melhores do que as outras,

dependendo do programa”.

DISCO 02 – Quem foi Vaqueiro (1964)

Para o segundo disco, Quem foi Vaqueiro, de 1964, no quesito instrumentação,

verifica-se que é adicionada uma flauta nos arranjos de todas as doze canções do álbum,

tocada por “Carlos Poiares, conhecido como Cobrinha, do Regional do Canhoto”

(HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018). Já a divisão dos vocais

ocorre, dessa vez, em revezamento direto, com Hermelinda e Oseas cantando, alternadamente,

as faixas de cada lado. Como dito anteriormente, as temáticas das letras continuam voltadas

para os temas sertanejos, assim como os gêneros musicais, predominantemente nordestinos.

Desse disco destaco a canção Candomblé da Bahia, de Genival Lacerda e Antônio

Clemente, que apesar de não ter em sua base rítmica ou melódica nenhuma referência às

religiões afro-brasileiras, já que trata-se de uma marcha junina, é um importante ponto de

inflexão nessa etapa da obra do trio. Nela, a personagem da trama narrada resolve: “Vou

invocar o rei da baixa magia/ Num candomblé da Bahia”, para recuperar um amor perdido.

Na canção sobre a cidade natal, aqui representada por Revendo Mossoró, de Oseas e

Antônio Ramos: “Quero matar a saudade/ Rever as cidades do meu Seridó121

”. A homenagem

ao padrinho musical João do Vale vem em João do Maranhão, composição de Osvaldo

Teixeira e Vadoca, na qual é contada parte da trajetória biográfica d‟O Poeta do Povo, que

“Desejou ver as grandezas dessa grande nação/ [...] / Em cima de um caminhão/ À cidade do

Sul chegou/ [...] / Mas ele tinha talento/ Bom na improvisação/ Tornou-se grande poeta/

Exaltando o Maranhão”.

Carro-chefe desse segundo disco, a letra da música Carcará, de João do Vale e José

Cândido, “descreve a estratégia de uma ave no interior do Nordeste [...] para sobreviver”

(MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 132).

João do Vale, no sentimento, ele fez contando a história de uma ave, carcará, que

fazia mesmo aquilo. Pegava o umbigo do carneirinho, quando nascia, do filho da

vaca, e puxava o umbigo até ele morrer. Sugava o sangue dele todinho. Então ele

contou a realidade do carcará. (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA,

JUNHO, 2018).

121

A região interestadual do Seridó engloba municípios do interior potiguar e paraibano e, apesar do que insinua

a letra, Mossoró faz parte de outra região, chamada Oeste Potiguar.

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119

Como atesta Hermelinda (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018), “tudo abriu

mais depois que a gente gravou Carcará”, apesar de que:

antes da gravação (de Carcará) nós já tínhamos acesso na rádio Mayrink Veiga e

fazíamos o programa do Paulo Gracindo, na Rádio Nacional. Na Rádio Nacional

tinha um cara, que só chamava a gente de “maninho”, um cara que programava.

Ele trabalhava na TV Rio na época. Foi ele que botou a gente no programa de

Urbano Góes, e em vários programas da TV Rio. (OSEAS, ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Sobre a análise iconográfica, a foto dessa vez foi tirada ao ar livre, mas o vestuário dos

três permanece inalterado, em relação ao disco de estreia. Ainda o que prevalece são as

alegorias sertanejo-nordestinas.

Figura 02 – capa do álbum Quem foi Vaqueiro.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-quem-foi-vaqueiro/

Na contra-capa do disco, vê-se que o texto de apresentação introduz o agora “já

famoso Trio Mossoró [...] um conjunto que se impôs na admiração do grande público da

nossa música popular [...] presença constante nos programas das estações de rádio de todo o

país”. É destacado o caráter regional da interpretação do trio que, “representa, de fato, o

Nordeste em toda a plenitude do seu vasto repertório [...] carregando esse cheiro autêntico”. O

radialista que assina o texto encerra a apresentação classificando o trio como “os maiores

intérpretes das coisas do sertão”.

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120

DISCO 03 – Terra de Santa Luzia (1966)

Sendo um disco de transição da fase tradicional para a fase experimental, em Terra de

Santa Luzia verifica-se duas músicas com ritmos não-sertanejos, apesar dos títulos e das letras

abordarem essa região do país. São elas Mandacaru, de Fernando Lona, e Nordeste

Sangrento, de Elias Soares, primeira e última faixas do disco. Essas duas canções denotam

certo encaminhamento rítmico para a MPB, mais flagrante a partir do disco seguinte, e se

caracterizam também por apresentarem como novidade instrumental a adição de uma sanfona

com sonoridade similar ao órgão122

nesse terceiro disco, justificada por Hermelinda

(ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018) pelo fato de que “a gente fazia muito o

programa „Hoje é dia de Rock‟, então pegava a influência”. Tal ascendência de novas

sonoridades era encarada pela cantora como positiva, pois “aí é que a gente fazia mais

programas!” (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

A dicotomia sertão-cidade é abordada mais enfaticamente em duas ocasiões. A

exaltação ao cotidiano roceiro é feita em Vida na Roça, de Antônio Ceará e Francisco Xavier:

“Não há lugar pra se viver como na roça/ O povo da cidade não tem a vida igual a nossa/

Tangendo gado pela estrada a gente canta”. Já em Baile na Pedreira, mais uma composição

de João do Vale: “Essa dança da cidade é bonita pra daná/ Mas o diabo é que eu não sei/

Tenho medo de errar/ Na minha terra eu danço tudo/ Ninguém vem me censurar”.

Sobre a violência no sertão, a lamuriosa Nordeste Sangrento diz: “Nordeste sangrento/

Que o céu esqueceu/ E as preces dos homens no ar se perdeu/ Até a esperança perdeu sua cor/

Nem nos corações existe amor”.

Algumas fotos da capa desse disco foram tiradas na praia de Tibau, próxima a

Mossoró, em 1965, no primeiro retorno do trio ao estado natal desde a ida para o Rio de

Janeiro em 1960, demonstrando, como afirma Oseas Lopes, a “satisfação de ser

mossoroenses” (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014, p. 65). O próprio nome do disco, em

alusão à padroeira da cidade, é outro dado revelador dessa relação afetiva.

122

Na mesma entrevista, Oseas (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018) esclarece que “não era órgão,

era a Cordovox, que era Chiquinho do Acordeom, com aquela sanfona que tocava igual som de órgão. Sai um

som tipo órgão”.

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121

Figura 03 – capa do álbum Terra de Santa Luzia.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-terra-de-santa-luzia/

Na montagem de fotos da capa já se nota uma mudança em relação aos discos

anteriores. Em vez da monótona capa com única grande foto dos dois primeiros discos, agora

são dez fotos em montagem e tamanhos variados. Os artistas estão em poses mais

descontraídas, sendo o vestuário cangaceirístico (momentaneamente) abolido. Afinal, é fato

sabido que Lampião e seu bando não eram adeptos de explorar as faixas praieiras nordestinas,

preferindo, por questões estratégicas, as veredas do sertão semiárido.

No texto da contra-capa, o autor estabelece como sendo os objetivos do conjunto

“fazer a divulgação de Mossoró lá fora, sair das fronteiras telúricas com o nome da terra, fazer

crescer o conceito da cidade de Santa Luzia”. O trio agora é classificado em categoria acima,

como “um dos melhores conjuntos da nova música nordestina do Brasil”, denotando que há

uma escola antiga, possivelmente a de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e companhia, da

qual os mossoroenses, apesar de serem declaradamente tributários, buscam se desvencilhar

para buscar outros direcionamentos artísticos. No texto é lembrado também que “as coisas

boas sempre são conseguidas a custas dos grandes sacrifícios”, dando caráter homérico à

trajetória do trio, valorizando, assim, sua jornada.

3.2.2 Fase Experimental (1966-1972)

O intervalo de 1966 a 1968 representou o auge da chamada “música de festival” na

vida artística nacional, que, grosso modo, se refere à música de protesto de cunho

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122

nacionalizante e de aura épica. Segundo Santos (2004, p. 73), esse tipo de composição

“cumpriria a função de revelar as desigualdades sociais do país e de conscientizar o povo”.

Como diz Napolitano (2010, p. 12), além de conscientizar era preciso “integrar os setores

sociais marginalizados pelo desenvolvimento capitalista e a cultura tinha um papel importante

neste processo”.

Nessa época, “a euforia desenvolvimentista do governo JK provocou novas condições

para a criação e a imaginação culturais. [...] os artistas assumiam então papéis paternalistas e

até mesmo doutrinadores em relação ao povo que queriam retratar na sua arte” (PASCHOAL,

2012, p. 75).

Esse mesmo período marca grande parte da fase experimental do Trio Mossoró, na

qual passam a incorporar componentes mais declaradamente característicos do samba e da

MPB123

, supostamente decorrente de uma “inserção na zona sul carioca” (MARCELO;

RODRIGUES, 2012) pelos mossoroenses.

Num momento de intenso debate provocado dentro da classe artística identificada

cultural e politicamente com a esquerda nacional-popular, logo após os instantes de

perplexidade sentidos com a implantação do golpe militar de 1º de abril de 1964, acerca das

estratégias de penetração de uma música “libertadora”, voltada para o “povo”, se deu

conjuntamente “a reestruturação da indústria cultural brasileira, que se abriu para algumas

vertentes da arte engajada. Isto não significa que o artista engajado de esquerda tenha sido

cooptado pela indústria cultural, em consequência, vendo sua arte neutralizada e consumida

como se fosse sabão ou uma outra mercadoria qualquer” (NAPOLITANO, 2017, p. 49).

Em relação ao Trio Mossoró, ao flertarem com elementos da chamada “música de

protesto”, se verificou algumas canções que se aproximavam da “MPB festivalesca”, quando

“nesse tempo ainda podia cantar. Depois o que teve foi „Vem, vamos embora que esperar não

é saber...124

‟” (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

O ambiente que a gente trabalhava no Rio, que era mais com a MPB, Roberto

Carlos, Jair Taumaturgo, Carlos Imperial, César de Alencar, Paulo Gracindo...

123

Para Napolitano (2017, p. 57), MPB foi uma “sigla que se tornou sinônimo de música comprometida com a

realidade brasileira, crítica ao regime militar e de alta qualidade estética”, sendo de fundamental importância

para o desenvolvimento da indústria fonográfica nacional a partir da metade dos anos 1960, “não apenas como

meio para a conquista de um segmento de consumidores capaz de igualar a longo prazo o mercado brasileiro de

discos aos grandes mercados mundiais, trazendo-lhe imediata elasticidade, mas também devido à formação de

um cast nacional não apenas capaz mas também disposto a atender à demanda desse segmento de consumidores”

(MORELLI, 2009, p. 88-89). 124

Aqui Hermelinda se refere à música “(Caminhando) Pra não dizer que não falei das flores”. Composta e

lançada por Geraldo Vandré em 1968, a canção conquistou o segundo lugar no III Festival Internacional da

Canção daquele ano.

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123

Então a gente ficava de segunda a segunda fazendo programa de televisão. Trio

Nordestino, Marinês, esse pessoal não fazia televisão não. O próprio Luiz Gonzaga

começou a aparecer na televisão por causa de Gonzaguinha. (HERMELINDA,

ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

O momento de meados da década de 60 marcou a transição do rádio para a

massificação da televisão como veículo comunicacional hegemônico no país. Adorno e

Horkheimer (1985, p. 116) haviam enunciado que as “possibilidade ilimitadas (da televisão)

prometem aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade

mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã”,

enxergando nesse veículo mais uma manobra em favor do declínio do sentido da arte.

Sintoma da guinada dos mossoroenses em direção ao âmbito da canção contestatória,

Marcelo e Rodrigues (2012, p. 133) dizem que “depois de Carcará, gravaram Disparada125

(Geraldo Vandré e Théo de Barros). Participaram de festivais. E se enturmaram em definitivo

com a cena musical do Rio de Janeiro”.

Quando a gente ia fazer Rio Hit Parade, tinha música que a gente tocava que era a

orquestra de Severino Araújo (maestro pernambucano), Trio Mossoró cantando.

Triângulo, zabumba e sanfona, e a orquestra de Severino Araújo acompanhando.

Porque fazia parte daquela época. Foi até o programa de Jair Rodrigues, quando

ele separou de Elis Regina. Ela ficou só e ele só. E ele foi contratado pela Globo,

pra fazer Show de Shell Maior. No dia da inauguração do show, primeiro dia do

programa, a Globo convidou Trio Mossoró. [...] Ali podia vir Marinês, que não

dava não. Aqui é Trio Mossoró e acabou-se. Não adiantava. [...] Jair Rodrigues,

um “nomão”. E eu cantei junto com ele, “Disparada”. [...] Até “Sá Marina” Trio

Mossoró gravou. [...] A gente tinha que gravar pra poder sobressair. O meio que a

gente convivia era esse. (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

2018).

A proposta de vincular um artista do baião com a “música de protesto” se repetiu pelo

menos mais uma vez. De acordo com Marcelo e Rodrigues (2012, p. 287-288), após ideia

conjunta entre Evandro Ribeiro, superintendente da CBS e produtor de Roberto Carlos, e o

produtor/marido Abdias, visando “impulsionar a carreira de Marinês [...] (e) se adaptar aos

novos tempos”, foi oferecida “uma aproximação da cantora com a onda de contestação ao

regime militar”. O plano culminou no lançamento de um compacto contendo (a recorrente)

Disparada e do álbum Marinês, ambos de 1967. Porém, o “espírito subversivo” da Rainha do

Xaxado durou pouco e a diretoria da gravadora tratou logo de “frear o ímpeto contestatório de

sua artista” e barrou a divulgação do famigerado “disco rebelde”, buscando evitar problemas

com os agentes do regime ditatorial.

125

Disparada, junto com A banda, de Chico Buarque, empataram em primeiro lugar no II Festival da Música

Popular Brasileira, em 1966.

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124

Nos quatro discos classificados como “experimentais” – De Norte a Sul (1966),

Convocação (1967), Trio Mossoró (1968) e Transamazônica (1972), verifica-se a inserção de

instrumentos musicais atípicos ao baião gonzagueano (tomado como “padrão” estilístico),

vertente que predominou na fase anterior. Entram em estúdio piano, bateria, órgão, viola

caipira, baixo elétrico, guitarra, etc. Contudo, as maiores mudanças se dão nos aspectos do

conteúdo lírico e nos gêneros musicais das canções gravadas pelo trio nesse intervalo. No

tocante às letras, a veia queixosa se acentua, no sentido das desigualdades sociais, raciais e

regionais. Muito embora as temáticas sertanejas persistam, sua incidência passa a ser bastante

diluída. Em relação aos andamentos rítmicos escolhidos, são estabelecidas conexões do baião

com o samba e com a MPB, além de guarânias (ritmo pantaneiro) e versões acústicas

minimalistas, sintomas da característica economia bossa-novista.

DISCO 04 – De Norte a Sul (1966)

Na etapa de transição entre as fases tradicional e experimental, há uma distinção clara

entre os dois álbuns lançados em 1966: Terra de Santa Luzia e De Norte a Sul, apesar da

proximidade cronológica.

Embora esse seja o primeiro disco do trio sem nenhuma composição de João do Vale,

que só voltaria a contribuir no sétimo álbum, Transmazônica, o último dessa fase

experimental, a ligação afetiva com o compositor de Carcará, estabelecida desde os primeiros

anos no Rio de Janeiro, pode ser uma chave para explicar o salto do grupo em direção à

canção de protesto. Paschoal (2012, p. 68), em livro que trata da vida e obra do maranhense,

diz que “João do Vale sempre manifestou a sua simpatia pelos excluídos e pela consciência

política daqueles que lutavam contra os regimes ditos e assumidos como opressores”.

Nesse disco são estabelecidos contatos com novos compositores, responsáveis por

abastecer o conteúdo do álbum, através de “autores famosos e jovens” como José Cândido

(Madeira Mamoré), Fernando Lona (Mandacaru), Luiz Vieira (Carcará de Botina e

Chapelão), Vadoca (Bacabal, Rainha do Sertão), Edézio Bispo (O Mestre Jangadeiro), João

Sá (Negro), etc.

Logo na primeira faixa, Negro, a presença do inédito piano introduz os novos rumos

que o trio pretende trilhar, corroborando-se a ideia com a levada samba-jazz executada pela

bateria. Nessa faixa nada de sanfona, zabumba ou triângulo. A letra trata do preconceito racial

e da redenção do negro frente aos brancos: “Sou negro/ Sou sempre humilhado/ Zombam

dessa cor escura [...]/ Há sempre barreira pro negro/ Seus degraus não galgar/ Eles fazem

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125

barreira pro negro lá em cima não chegar/ Mas um dia o céu vai descer/ E com ele virá o

senhor/ Provar igualdade pro povo/ E que a alma não tem cor/ Humilhação que negro passou/

Surra de reio que negro apanhou/ Fome e sede que negro sofreu/ Branco vai pagar pelo que

bateu/ Vai pedir perdão a quem humilhou/ E se ajoelhar pra quem escarrou/ E dizer bem alto:

- Dai-me teu perdão/ Perdoa-me, negro, meu irmão!”

Ainda na parte instrumental, um trompete se insinua na faixa Balãozinho Japonês, de

Jorge Vieira, uma típica marcha-rancho, de andamento lento. Em Mandacaru, regravação do

disco anterior, mas agora numa versão mais minimalista, sem acompanhamento de

instrumentos percussivos, somente sanfona, violão e cavaquinho fazem a harmonia de fundo,

acompanhados da flauta em contraponto.

As referências rítmicas nordestinas, logicamente, não são totalmente abolidas, mas se

diluem nas cadências urbanas da MPB (em Carcará de Botina e Chapelão) e do samba (em

Cavaco Chinês, de João Mossoró e João Sá, Mangangá, de Geraldo Nunes e Fim do Mundo,

de Edson Braga e Geraldo Nunes).

Segundo Oseas, falando sobre a música Carcará de botina e chapelão, cuja letra diz:

“Sertanejo nasceu pra ser mandado/ Sem vontade e sem rumo no destino/ Quando pensa que

ganha sai roubado/ Quando pensa que cresce ainda é menino/ Mas o dia virá, eu não sei

quando/ Eu só sei que virá e não me iludo/ Sertanejo com fome vai comer/ Carcará com

chapéu, botina e tudo”, por pouco a canção não rendeu a prisão da banda em Brasília, pois

“cantar e gravar músicas de protesto era a onda naqueles dias” (LOPES; NOGUEIRA;

ROCHA, 2014, p. 62).

A gente tava previsto pra ir pra Brasília e nós recebemos um aviso que a gente não

fosse, que quando descesse do avião íamos ser presos, por causa da Revolução. “De

botina e chapelão” era o coronel que tava no poder, o general... aí nós não fomos.

[...] Mas entenda bem, a gente cantava mas sem ter aquela malícia. O presidente

era Castelo Branco, era militar, general. E a música dizia “carcará de botina e

chapelão”. Luiz Vieira (autor da música) falou protestando contra o militar. E foi

iluminação de Deus que não pegaram ele. (OSEAS, ENTREVISTA CONCEDIDA,

JUNHO, 2018).

Ainda sobre o episódio acima, Hermelinda (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

2018) relata: “Então eles (militares) achavam que João do Vale, embora sendo um cara que

não tinha instrução nenhuma, que ele fez uma música subversiva (Carcará126

). E agora, pra

126

Como conta Paschoal (2012, p. 103), em entrevista ao jornal paraense “O Liberal”, João do Vale diz que

“antes de 64, ninguém via a minha música como protesto. Eu cantava a verdade sobre o Nordeste: a seca, a

fome, o homem de lá, não como protesto. Depois de 64, passaram a achar que era de protesto”.

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126

botar que não é?! Aí Luiz Vieira fez „Carcará de Botina e Chapelão‟, que foi a resposta de

„Carcará‟”.

A capa do disco traz os três irmãos, como no disco anterior, sem ostentar vestimentas

de cangaceiro. O próprio título do LP, “De Norte a Sul”, denota que o trio, a partir das

mudanças verificadas, queria deixar de falar somente para o Nordeste para alcançar do

Oiapoque ao Chuí.

Figura 04 – capa do álbum De Norte a Sul.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-de-norte-a-sul/

No texto da contra-capa, assinado por Oswaldo Eurico, parceiro de composição em

três faixas do disco, carimba: “com beleza, estilo e simplicidade de interpretação, (o trio)

tornou-se conhecido e famoso”, mencionando também o troféu Euterpe, recebido em 1965, de

maior representante da música regional daquele ano. Como antecipando as novidades sonoras

contidas nas doze faixas, falando em “evolução”, cita como exemplo o samba que, “de origem

africana, hoje é bem diferente. [...] a juventude brasileira [...] já não aceita o samba de

tamborins. Ela quer o violão com bateria e baixo”. E crava: “Porque, então, não se dar uma

forma nova ao baião? [...] Ganhou, com isso, o ritmo, a melodia e a poesia, que devem

encerrar uma mensagem, mostrando às cidades os segredos dos sertões e a estes os segredos

das cidades”.

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127

DISCO 05 – Convocação (1967)

Como diz Napolitano (2017, p. 59), o ano de 1967 foi o “auge de popularidade da „arte

engajada‟ brasileira”. A relação com a MPB era tal que Hermelinda relembra episódio

curioso, destacando o receio da banda em se apresentar para o público nordestino, num

programa feito exclusivamente por artistas regionais.

Teve uma vez que nós fomos convidados pra cantar na Rádio Nacional, no

programa de Gordurinha. Mas era uma música pra cada cantor. Tava Luiz

Gonzaga, Marinês, Ary Lobo, Trio Mossoró, acho que Trio Nordestino, Zé Gonzaga

[...] Como a gente vivia muito nesse ambiente, aí nós fomos fazer esse programa de

Gordurinha. Até falei pra ele (Oseas): “- Se segura que aqui nós vamos levar é ovo

na cara!”. A gente nunca toca pra nordestinos, só mais pro pessoal da MPB. Mas

nós fomos. Chegamos lá e era mesmo na época que eu cantei Carcará. Quando

Gordurinha anunciou, e disse que era uma musica só, quando ele anunciou Trio

Mossoró a Rádio Nacional, o auditório, veio a baixo. Aí pensei: “- Vixe, Maria, o

negócio aqui vai ser bom.” Aí nós cantamos Carcará. E o povo gritando: “- Mais

um, mais um!” E Gordurinha dizendo que não pode, é muito cantor... A gente grava

muita música também de Luiz Vieira, naquela época conhecida como “música de

protesto”. Carcará, Disparada... tudo aquilo era música de protesto. [...] quando eu

cantei Carcará, depois cantei Carcará de botina e chapelão, aí que veio a baixo

mesmo. Foi um negócio de doido. (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA,

JUNHO, 2018).

A novidade rítmica no disco fica por conta das músicas em compasso ternário: duas

guarânias (Amor da Minha Vida, de Raul Sampaio e Benil Santos e As Três Marias, de

Geraldo Nunes e Nacizinho) e a valsa Linda Brejeira, de Rui Silva e Joaquim Lima.

Figura 05 – capa do álbum Convocação.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-convocacao/

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A capa mostra duas fotos do trio, postadas lado a lado. Em uma delas os irmãos posam

sem instrumentos, com exceção de João, que tem nas mãos não sua zambumba, mas um

violão. Na outra foto, os dois irmãos vestem smoking e Hermelinda, vestido de gala. Uma

típica imagem dos artistas da MPB sessentista e sem nenhuma referência ao Nordeste.

No texto da contra-capa, a adaptabilidade (ou versatilidade) do trio é destacada:

“versáteis como são, na constância fixadora do valor que lhes confere o direito a uma posição

definitiva, porque já confirmada através do mais vivo reconhecimento popular”.

DISCO 06 – Trio Mossoró (1968)

Esse é o disco que representa o ápice do movimento de experimentação do trio, a

começar pela ausência da sanfona, que aparece em apenas uma das quatorze faixas do álbum,

em A Canção do Ceguinho, de Elias Soares. Seu lugar, como instrumento harmônico, foi

ocupado pela viola caipira e pelo órgão, presentes em praticamente todas as faixas.

Os gêneros acústicos, MPB (exemplificado na versão de Sá Marina, de Antônio

Adolfo e Tibério Gaspar) e marchas (Cidade das Rosas, de Miguel Lima e Antônio desfilando

na parada, de Irney Soares, uma ode patriótica) permeiam grande parte das composições.

Sobre a versão de Sá Marina, grande sucesso na voz de Wilson Simonal, confirma

Oseas (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018): “naquela época o Trio Mossoró fazia

muito sucesso na televisão e tinha essa influência (da MPB). A música de sucesso era

regravada”. Ressalte-se que a estratégia de regravar músicas que estão obtendo (ou

obtiveram) grande sucesso de mercado é uma das fórmulas preferidas pelos agentes da

indústria cultural, pelo fato de representarem pouco risco no momento de promover o produto,

maximizando as garantias de venda ao gerarem o reconhecimento rápido e fácil da parte do

consumidor.

O Trio era o único trio nordestino que cantava em “Hoje é dia de Rock”. Ia lá

Vanderléa, Roberto Carlos, Paulo Sérgio, Jerry Adriany, Wanderley Cardoso... A

gente nunca teve, vamos dizer, “Trio Mossoró vai pro Nordeste fazer excursão”... A

gente só veio uma vez, em 1965. Porque a gente cantava de segunda a segunda no

Rio de Janeiro. Fazia muito show no estado do Rio, Minas, São Paulo, e a gente

ficou naquela rota. (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

2018).

Sobre a escolha das regravações efetuadas pelo trio, o caso de Sá Marina, serve de

exemplo para se entender a lógica existente: “a música tava fazendo sucesso. E a gente não

era classificado como forrozeiro, pé-de-serra. Ela (Hermelinda) cantava tudo. Ela botava Sá

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Marina, botava a música do sucesso” (OSEAS, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

2018).

Eles começaram a envolver a gente assim... por exemplo, Maria Betânia era uma

que não gostava de fazer televisão. Aí quem ia defender Carcará? Eu, que gravei

antes dela, mas quem sobressaiu, lógico, foi ela. Mas ela não fazia televisão. Com

Sá Marina, Simonal não ia: “chama o Trio Mossoró!” Então com isso fomos nos

envolvendo. (HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Contudo, o ponto mais curioso do disco é a versão do trio para a etílica polka tcheca

Beer Barrel Polka. Sobre a versão, intitulada Barril de Chopp, Oseas (ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018) justifica que a escolha em fazê-la se deu “pelo meio. Miguel

Lima (autor da versão) era muito amigo da gente. Ele era amigado do Trio Mossoró e

gravamos várias dele”.

Figura 06 – capa do álbum Trio Mossoró.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-trio-mossoro/

Em Ninguém Come Sem Tempero, de Oseas e José Cândido, a cidade natal é

novamente homenageada: “Meu Mossoró/ [...] / Produzindo tanto sal/ Temperando o mundo

inteiro/ O produto principal/ Do meu rincão brasileiro”.

Paradoxalmente, a capa do disco, ao mostrar os três irmãos, apresenta Oseas ao lado

de sua sanfona, justamente no álbum em que esse instrumento é menos evidente ao longo das

canções.

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No texto da contra-capa, destaca-se que o trio, “de início essencialmente folclórico,

partiu do particular para o geral [...]. A fidelidade para com o público, o bom gosto e a

capacidade de interpretação e escolhas são as principais tônicas deste LP [...] músicas de alto

gabarito”. Segundo o autor do texto, a intenção do trio “foi justamente apresentar-se o mais

variado, versátil possível, sem, contudo, abalar as características que o personalizam”.

DISCO 07 – Transamazônica (1972)

Nesse disco a responsabilidade por preencher as frequências graves no

acompanhamento ficou por conta do baixo elétrico, presente em praticamente todo o disco.

Também é evidente a presença do órgão, que ao lado da viola caipira, divide as introduções

da maioria das faixas (Transamazônica, de João Mossoró e Gebardo Monteiro, Recado do

Norte, de Manoel Rufino e Eriberto Rufino, O Canto do Nordeste, de Enock Figueiredo e

Hugo Lisboa, Vendaval, de João Mossoró e Gebardo Monteiro, Coração Não Vá Embora, de

Antonio Valentim, etc.), ao passo que a participação da sanfona continua reduzida,

aparecendo em menos da metade das faixas, e mesmo assim de forma bastante discreta.

Os arranjos se baseiam, em sua maioria, em caracteres que remetem à MPB. De

referência explicitamente nordestina tem-se Consolidação, de Aramis de Lara, O Canto do

Nordeste, de Enock Fugueiredo e Hugo Lisboa, Tributo a Mossoró, de Oseas Lopes, J.

Cavalcanti e A. Carrasco, Rua do Namoro (regravação da faixa-título do primeiro disco), Os

Olhos de Anabela, de João Vale e Julinho, e Pequiniquê, de João Mossoró e Abdon Santos.

A excentricidade do disco se concentra no conjunto “nome do álbum/faixa-

título/capa”: Transmazônica. A letra da canção diz: “É como jato de luz nas selvas/ Levando

luzes de um Brasil melhor/ Para um recanto longe e afastado/ Cheio de riqueza e que precisa

amor/ É o celeiro desse mundo inteiro/ Mas por ser imenso, duro de transpor/ Ficou assim,

abandonado/ Porém, agora que ela vem chegando/ Chegou a hora para se cantar/ Marchemos

todos juntos à grandeza/ Para que grandes possamos marchar/ Veremos breve nossa terra

inteira/ Se interligando como um corpo só/ Por essa veia imensa de progresso”.

Tendo como imagem de capa a gravura de um trator revolvendo um trecho de floresta,

abrindo espaço para a construção da rodovia que levaria o “jato de luz às selvas”, esse foi o

único disco do trio sem a presença da imagem dos três irmãos na capa, o que não foi encarado

por eles como necessariamente um problema. Analisando a imagem, Oséas (2018) revela: “A

estrada da Transamazônica tava abandonada. E eles bolaram aquela capa”. A apologia à

rodovia Transamazônica retratada na canção é revestida de um caráter de “esperança de dias

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melhores”, como se o manto asfáltico fosse encarregado em trazer o “progresso” e a

“civilização” às terras “abandonadas” da Amazônia. A crítica socioambiental de devastação

da floresta, de animais nativos e/ou das culturas tradicionais não foi assumida pelo trio.

Figura 07 – capa do álbum Transamazônica.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-transamazonica/

O cunho nacionalista se encontra na música Consolidação: “Obrigado ao soldado/

Glória das revoluções/ Que o respeito me inspirou a compor tantas canções/ Obrigado a

Tiradentes/ Vida e morte varonil/ Obrigado, finalmente à minha gente/ Obrigado, Brasil”.

No texto da contra-capa do disco, o último no qual consta esse tipo de introdução à

obra, diz-se que o trio “continua fiel à linha regional (nordestina)” e que somente agora,

“reaparece com alguma coisa nova”. E continua, aludindo ao nome do álbum: “reaparece com

novos motivos para cantar. Cantar a substituição da tração animal pela máquina; cantar a

substituição do braço do homem, que se encarquilhava sob os raios escaldantes do sol, pelo

trator a revolver a terra, em busca da seiva, e as matas - em busca de caminho mais adequados

para o livre trânsito do progresso”.

Esse disco também marca o fim do Trio Mossoró como conjunto musical, já que a

partir dos próximos álbuns os irmãos se reuniam apenas para gravar em estúdio e lançar

discos, não mais fazendo shows ou apresentações como trio.

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3.2.3 Fase Pragmática (1973-1977)

Finalmente, nos últimos trabalhos do grupo, que englobam os álbuns Tem Mais Gente

(1973), Praça dos Seresteiros (1974), Forró do Velho Inácio (1975), 30 Dias de Forró (1976)

e Forró do Mexe-mexe (1977), há a volta às sonoridades nordestinas, porém, com a

incorporação de instrumentos atípicos à música regional tradicional, como baixo elétrico,

bateria e guitarra, sobretudo nos dois últimos discos.

No contexto musical mais amplo, o movimento de transformação na música sertanejo-

nordestina se dava num todo. No primeiro ano do período retratado, 1973, em parceria com

Nelson Valença, Luiz Gonzaga havia gravado a música O fole roncou, “com a inédita adição

de guitarra, baixo e bateria aos tradicionais zabumba, triângulo e acordeom” (MARCELO;

RODRIGUES, 2012, p. 272).

Nessa fase da produção simbólica do Trio Mossoró, a volta aos referenciais da música

nordestina é entendida por Oseas como uma consequência do “tipo de autores que tavam

gravando com a gente. Era outra linha: Luiz Vieira, etc. Nessa época entrou outro tipo de

autor: Chico Xavier, Demétrio Silva [...]” (OSEAS, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

2018).

Percebendo uma saturação do estilo do trio, os irmãos mossoroenses começam a

engendrar suas carreiras artísticas paralelas, culminando no encerramento do grupo em 1972.

Oseas Lopes, que no começo dos anos 70 assumira a direção artística da gravadora

Copacabana, poucos anos depois, em meados dessa década, adotou o codinome de Carlos

André, iniciando-se na vertente de música romântica (brega); a vocalista Hermelinda também

se enveredou no gênero romântico sob o pseudônimo de Ana Paula (MARCELO;

RODRIGUES, 2012, p. 340); e João Batista, após pequenos trabalhos como produtor musical,

se apresenta como João Mossoró e grava composições suas e de parceiros.

A partir desse novo direcionamento, Oseas Lopes, “para impulsionar a nova carreira,

[...] deu um tempo nas atividades do Trio Mossoró: o forrozeiro teve de ceder espaço ao

cantor romântico e ao cada vez mais requisitado produtor. Foi convidado a assumir a direção

artística da Tapecar”, deixando a direção da Copacabana (MARCELO; RODRIGUES, 2012,

p. 235). Sua fama como produtor teve início quando foi responsável por importante inovação

técnica no meio da música regional, inventando “a gravação, ainda nos anos 60, de duas

sanfonas na mesma música, prática nada usual na época, ambas tocadas por Dominguinhos”

(MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 340). A sagacidade de Oseas nesse episódio, assim

como no momento narrado anteriormente, no qual assume a produção de Luiz Gonzaga em

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quatro álbuns nos anos 1980, colocando o sanfoneiro de Exu novamente em evidência, são

sintomáticos de sua bem sucedida inserção na indústria cultural sob diferentes perspectivas.

Enquanto nas primeiras gravações do Trio Mossoró ocupava a posição de músico contratado,

como produtor musical passa para o outro lado da mesa de comando, participando

diretamente na condução artística de um conjunto amplo de carreiras, lançando novos nomes

no mercado e redirecionando outros já conhecidos.

DISCO 08 – Tem Mais Gente (1973)

Como dito anteriormente, essa fase representa uma volta às sonoridades nordestinas na

produção do trio. No caso desse primeiro disco da fase pragmática, a formação instrumental

que predomina volta a ser a do regional: sanfona, violão de sete cordas, cavaquinho, triângulo

e zabumba, bastante semelhante à fase tradicional. Os gêneros musicais que compõem o disco

variam de baiões e xotes a marchas e cocos, embora ainda contenha resquícios da fase

experimental, como em Não tenho culpa de nascer assim, última contribuição de João do

Vale ao trio, e na acústica Meninazinha, de Carlos Wagner e Ediar Gomes.

No tocante ao conteúdo lírico, os temas contestatórios somem completamente. Ficam

os motes amorosos e juninos, como na marcha Mais uma ilusão, de Antônio Barros (“São

João saindo/ São Pedro chegando/ Santo Antônio arrumando mais uma ilusão”). De Antônio

Barros também é a saudosa É bom lembrar: “O tempo hoje passa/ Agora a gente sente que era

inocente/ Tudo era ilusão”.

Em Praça de Rei, de Alexandre Alves, a tendência de resgate sonoro fica evidente:

“Não há quem me faça/ Tirar minha alpercata, meu chapéu, meu gibão/ Eu vim lá do Norte/

Tentar minha sorte cantando baião/ Aqui eu ganhei tudo/ Ganhei fama e dinheiro/ Ganhei

vida boa/ E quando eu morrer, minha sanfona, não deixem à toa/ Levem pra minha cidade/

Coloquem numa praça de rei/ E esta roupa de couro/ Que vale um tesouro/ Que eu tanto usei”.

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Figura 08 – capa do álbum Tem Mais Gente.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-tem-mais-gente/

Na capa do disco, os irmãos voltam ao quadro, contudo, sem portar seus respectivos

instrumentos nem trajes nordestinos (ainda).

DISCO 09 – Praça dos Seresteiros (1974)

Aqui a instrumentação permanece praticamente a mesma do disco anterior, com

exceção da inclusão da bateria atuando ao lado da zabumba e do triângulo em algumas faixas,

necessariamente nas músicas cujo gênero musical se descola dos ritmos nordestinos, como

Caçador de Sumaré, de João Mossoró e Abdon Santos, Lamento de Saudade, de Anastácia e

Dominguinhos, Ponte Rio-Niterói, de João Mossoró e Gebardo Monteiro, e Santo de Barro,

de Iremar Leite. Essas canções representam os últimos suspiros do trio em se vincular às

levadas urbanas, já que nos próximos discos essa situação já não mais se verifica, pois se

reestabelecem definitivamente os baiões, marchas e xotes.

Predominam as temáticas amorosas em grande parte das faixas. O ponto de inflexão é

Ponte Rio-Niterói, que trata das mudanças na relação entre os dois municípios cariocas após a

construção da citada ponte, inaugurada no mesmo ano de lançamento do disco: “Concreto e

aço/ Por sobre o azul do mar/ Rio, Guanabara já podem se abraçar/ [...] / Niterói agora chega

pelo alto até aqui/ [...] / Das barcaças tão somente a saudade vai ficar/ A distância agora é um

verso/ A rimar concreto e mar”.

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Figura 09 – capa do álbum Praça dos Seresteiros.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-praca-dos-seresteiros/

Na capa do disco uma montagem de oito fotos, que misturam imagens da cidade natal

do trio, assim como fotos do conjunto na ocasião de sua segunda visita ao município depois

da ida para o Rio, em virtude das comemorações do bicentenário da fundação do povoado de

Mossoró, em 1972. Atente-se para o detalhe da volta dos chapéus de cangaceiro ostentados

pelo trio.

DISCO 10 – Forró do Velho Inácio (1975)

A partir daqui a produção do trio atinge seu ponto mais homogêneo e rotineiro

internamente, ou seja, prezando pelo pragmatismo, com raras incursões a temas e gêneros que

fujam ao esquema tradicional e padronizado do regionalismo instrumental nordestino:

sanfona, violão sete cordas, cavaquinho, triângulo, zabumba e pandeiro.

As disposições rítmicas se dividem entre forrós, xotes e marchas juninas. As letras

tratam basicamente de relacionamentos amorosos e ambientes festivos. Destaco aqui a última

música, a pacifista Todo mundo é meu irmão, de Anastácia e Dominguinhos: “Com carinho,

paz e amor/ Versos, viola, poeta/ Canto, riso e assovio/ Se viver não se vegeta/ No coração,

alegria/ Pra ornar a alma da gente/ Acabasse a Guerra Fria/ Fica o mundo diferente”.

Com o fim do grupo como conjunto musical ativo em 1972, quando passaram somente

a gravar e lançar discos, nota-se certo desleixo com a apresentação da capa dos álbuns nessa

fase derradeira, considerando-se que as imagens do trio que aparecem nesse disco e nos

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próximos dois, os últimos, foram selecionadas da mesma sessão fotográfica realizada para o

disco de estreia em 1962.

Figura 10 – capa do álbum Forró do Velho Inácio.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-forro-do-velho-inacio/

Como diz Santos (2014, p. 31), “o objetivo final perseguido pela indústria cultural é o

lucro. Para tanto, a mola propulsora de sua finalidade é a estereotipia. Ela não cessa de

produzir fantasias, de erigir imagens falaciosas acerca da realidade, para moldar as

subjetividades: ganhá-las para seus propósitos”. Suposições à parte, fato é que a intenção de

caracterizá-los com “típicos nordestinos” se cristaliza na volta da vestimenta cangaceirística,

inclusive do chapéu de couro.

DISCO 11 – 30 Dias de Forró (1976)

A novidade instrumental, em relação ao disco anterior, é basicamente a presença do

baixo elétrico em quase todas as faixas, só substituído pelo bombardino em duas marchas

juninas (São João Chegou e Quando tá eu e você, ambas de Cecéu). As letras também não

apresentam inflexões fora do padrão amor/São João.

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Figura 11 – capa do álbum 30 Dias de Forró.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-30-dias-de-forro/

Assim como no disco antecessor, a imagem dos irmãos na capa é praticamente a

mesma, numa similitude capaz de confundir o consumidor mais desatento, só distinguível

pelo nome no disco e sua disposição na diagramação.

DISCO 12 – Forró do Mexe-Mexe (1977)

Para Napolitano (2017, p. 89), desde os primeiros anos da década de 1970 ocorre um

“período de rearticulação criativa e político-cultural da MPB”, período também marcado pelas

músicas de duplo sentido, que nortearia o forró ao longo dessa década127

(MARCELO;

RODRIGUES, 2012, p. 219).

“As letras, naquele tempo, como „Procuranto Tu‟, Trio Mossoró nunca cantou aquele

estilo. As músicas da gente era mais letra. Essa é que é a verdade. Não teve duplo sentido”

(HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018). Embora na citação acima a

cantora do trio declare que o filão do “pornô-forró” não foi muito explorado pelo conjunto,

nesse último disco da trajetória artística verifica-se ao menos cinco composições (portanto,

quase metade do disco), com conteúdo de duplo sentido, erótico ou humorístico. São elas: Siri

da Prima, de Lula Diniz e Edgar (“Não sei se foi a sorte/ Não sei se foi a sina/ Eu sei que

nunca mais esqueci o siri da prima”), História do Anel, de Severino Ramos e Antonio

Rodrigues (“Se é de bebo não tem dono/ Todo mundo pode usar/ O cabra que ficar bebo/ De

127

A cantora forrozeira Anastácia, oposta aos rumos que a música nordestina tomava nos anos 70, revela:

“Passei quatro anos sem gravar, de 73 a 76, porque as gravadoras estavam apostando em músicas de duplo

sentido, coisa que fazia muito sucesso na ocasião, e eu preferia não gravar!” (FERREIRA, 2011, p. 156).

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nada vai se lembrar”), Estão na boa, de João Gonçalves e Albuquerque (“Os habitantes lá das

bandas de Alagoas/ Estão na boa cultivando o Tabacow”128

), Forró do Mexe-mexe, de Santos

Silva (“No forró do Mexe-mexe/ Todo mundo mexe, mexe/ Ninguém fica sem mexer”) e a

escatológica O Herdeiro, de Elias Soares e Guajará (“Minha situação agora vai mudar/ Eu

vou poder caçar porque sou fazendeiro/ O meu avô morreu/ Eu sou proprietário/ Porque no

inventário estou como herdeiro/ Como herdeiro, como herdeiro/ Eu vou caçar à vontade”).

Em relação à instrumentação, é notória no disco a adição do baixo elétrico e da

guitarra em praticamente todas as faixas. Nessa fase, a introdução de guitarra se deu por que

“já tava misturando [...] o Regional de Canhoto já não funcionava. Aí chamavam um

guitarrista” (OSEAS, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018)), pois, como completa

Hermelinda (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018), “até então era só violão de sete

cordas.”

Figura 12 – capa do álbum Forró do Mexe-Mexe.

Fonte: http://www.forroemvinil.com/trio-mossoro-forro-do-mexe-mexe/

A imagem da capa, quase a mesma dos três discos anteriores, se diferencia um pouco

mais, dada a disposição distinta dada às figuras dos três irmãos dentro do plano.

Assim, chega-se ao fim da análise da produção simbólica do trio. Nesta etapa empírica

e de confrontação teórica, o seguinte trecho, extraído de Faraco (2012, p. 38) quando da

análise discográfica desenvolvida em seu trabalho, soa apropriada à presente pesquisa: “certos

elementos constituintes [...] se mantêm, enquanto outros são substituídos; itens abandonados

128

Empresa têxtil especializada na fabricação de carpetes e tapetes.

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em dado momento voltam a ser utilizados em canções posteriores, e ideias apresentadas de

maneira acidental retornam sistematizadas”.

Através do itinerário investigativo empreendido, passou-se pelos três momentos

distintos que caracterizam a obra do Trio Mossoró, do baião no estilo formatado por Luiz

Gonzaga da fase tradicional, passando pelos trânsitos efetuados pelo trio no samba e na

música de protesto, que acarretou mudanças nos mais variados aspectos, da vestimenta dos

membros aos andamentos rítmicos e conteúdo lírico das canções, marcas da fase

experimental, para chegar, finalmente, na última etapa da música do trio, a fase pragmática,

quando verifica-se uma volta às sonoridades nordestinas (assim como nas vestes), porém, com

a introdução, sobretudo no último disco, de instrumentos não-inerentes ao forró, como

guitarra e baixo elétrico.

3.3 AS CIRCUNSTÂNCIAS DA MÚSICA

Diante do exposto nas seções anteriores, de trajetória biográfica e análise da

discografia do Trio Mossoró, conjuntamente aos aspectos teóricos e históricos vistos nos dois

primeiros capítulos, denota-se que o instrumental da indústria cultural exerceu papel

preponderante na elaboração e propagação dos ritmos populares brasileiros de maneira geral.

Sob a perspectiva dos teóricos críticos, essa influência, da forma como se deu, promovia os

aspectos negativos da perda na autonomia dos artistas, que regidos pelos códigos da

estereotipia, da pseudoindividuação e da padronização, favoreciam ainda a semiformação

intelectual do público. Adorno e Horkheimer (1985, p. 125) dizem que “a obrigação de se

inserir incessantemente, sob a mais drástica das ameaças, na vida dos negócios como um

especialista estético impôs um freio definitivo ao artista”.

A cultura popular atual, nos países urbanizados e industrializados, consiste em

entretenimento comercializado, padronizado e massificado, transmitidos por meios

de comunicação como a imprensa, a televisão, o cinema e o resto, e produzindo o

empobrecimento cultural e a passividade: um povo de espectadores e ouvintes, que

aceita coisas pré-empacotadas e pré-digeridas. (HOBSBAWN, 1990, p. 34).

No caso da produção simbólica do trio mossoroense, mais um dentre tantos conjuntos

de música nordestina frutos do contexto espacial brasileiro permeado de desigualdades

econômicas que engrossaram as fileiras das correntes migratórias no sentido Nordeste-

Sudeste, estes também se deixaram enfeitiçar pela versão atualizada do canto da sereia no

século XX, agora transmitido por ondas hertzianas da era midiática.

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Deixando para trás uma região socialmente fragilizada, a migração de nordestinos

permeou todas as etapas de integração dessas gerações de músicos no eixo Rio-São Paulo,

ponto de concentração das instâncias de consagração do mercado cultural (gravadoras, rádios,

emissoras de televisão, etc) e palco de um acentuado crescimento metropolitano, ensejando

também oportunidades de ascensão social inexistentes no sertão. Motivados pela estratégia de

se inserir no pulsante ambiente cultural da metrópole, o deslocamento espacial foi uma

constante, elemento sine qua non para conseguir visibilidade nesse concorrido campo

profissional. Essa foi a lógica que se impôs aos emboladores nos anos 20, a Luiz Gonzaga nos

anos 40, a Jackson do Pandeiro na década seguinte e ao Trio nos anos 60.

No contexto político-estrutural, o Estado Novo varguista que elegeu o samba como

símbolo identitário brasileiro tinha em sua agenda cultural, paralelamente às pretensões de

modernização e cristalização de uma identidade nacional, a promoção das manifestações

artísticas nacionais em detrimento dos estrangeirismos, embora sob rígido controle ideológico

estatal. Da mesma forma, o baião de Luiz Gonzaga e seus parceiros, principal fonte de

inspiração artística no início da carreira dos irmãos mossoroenses, foi construído no meio

citadino a partir de reminiscências orais rurais, plasmado por migrantes sertanejos para um

público da cidade, majoritariamente uma classe operária pouco escolarizada da periferia das

metrópoles sudestinas (ALVES, 2009, p. 74-75).

Dos processos de transformação cultural e comportamental verificados até a primeira

metade do século passado, Barros (1990, p. 24) destaca que “a aceleração industrial

implantada durante o Estado Novo havia fornecido uma certa cor modernizante aos centros

urbanos, modificando alguns comportamentos sociais e impondo uma persistente estética de

„progresso‟”, transcorrendo a modernização da sociedade brasileira sob o signo do

autoritarismo político varguista (VIANNA, 2004, p. 73).

Contudo, os primeiros álbuns do Trio foram gravados em outra conjuntura, num

período de transição entre o desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek (que decretara uma

trilha sonora mais moderna) e o regime militar (que teve como correspondente musical os

festivais de MPB e a música de protesto). Assim, o cenário artístico-cultural dos anos 60 foi

em grande parte moldado a partir dos desdobramentos políticos da época.

A seguir, é demonstrado como se encontrava a posição do baião e de Luiz Gonzaga no

ambiente musical de meados dos anos 1960, pós-Jovem Guarda, reflexo do contexto político

de então:

os interesses das metrópoles estavam voltados para os protestos dos estudantes na

França, a Primavera de Praga, as consequências sombrias do AI-5, os cantores e

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compositores aplaudidos (e vaiados) nos festivais da TV Record, as possibilidades

estéticas embutidas no Tropicalismo [...]. Sobrou pouco espaço para Luiz Gonzaga e

outros veteranos artistas nordestinos, ainda que o baião experimentasse súbita alta –

de prestígio, não de público. (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 255).

Sobre essa mesma época, Napolitano (2010, p. 177), enfatizando a “alta” no prestígio

do baião, que muito embora não se refletisse em aparição dos seus artífices nos meios

comunicacionais massivos ou se expressasse em números no mercado musical, “quanto à

estrutura musical das canções finalistas, o III Festival da Record apresentava, ao menos em

1966 e 1967, o predomínio dos gêneros Samba e Marcha. Os gêneros nordestinos também

marcaram presença, sobretudo o Baião”.

Portanto, acerca da música do Trio Mossoró, ao longo das três fases de sua produção

simbólica, eles buscaram se posicionar sempre próximo ao que estivesse em voga nos

diferentes momentos da situação artístico-cultural da música brasileira nos anos 60 e 70.

Desde o baião gonzagueano tradicional, passando pelas experimentações da música de

protesto/MPB sessentista, para voltar ao pragmático “feijão-com-arroz” do baião, adicionado

de novos temperos na instrumentação, eles navegaram até mesmo pelas águas do “pornô-

forró”, embora busquem desassociar a imagem do trio nesse aspecto. Caminhando sobre uma

linha de difícil demarcação, o importante era não ficar fora do hype, pois “o fenômeno da

comunicação para a indústria cultural tem significado enquanto permite assegurar

rentabilidade do capital” (HABERT, 1974, p. 76).

O estágio técnico-instrumental dos media encarado pelo trio também sofreu profundas

alterações no período em foco, de 1962 a 1977. Ainda em Mossoró, portanto pré-1960, o

rádio era o instrumento comunicacional soberano, quando um aparelho de televisão no

interior nordestino ainda era peça de privilégio peculiar às aristocracias urbana e rural.

Chegando ao Rio de Janeiro e logo se inserindo no mercado fonográfico, eles

presenciaram também a consolidação da televisão, fazendo parte diretamente do convívio da

nova categoria de artistas que surgiram com ela, pioneiros na aliança do áudio à novidade

icônica da imagem em movimento. O sistema da indústria cultural se tornava cada vez mais

completo e interligado, com os mercados do disco, rádio, TV, cinema, publicidade, mídia

impressa e etc. em acelerada imbricação.

Para Alves (2009, p. 67), “imagem e som alcançam [...] em boa parte da trama de

composição de diversos bens culturais ao longo dos anos sessenta, uma unidade de

significação”, conquistada a partir de um processo iniciado nas décadas anteriores, linha de

pensamento defendida por Renato Ortiz (1988, p. 08), quando afirma que “a consolidação de

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um mercado cultural somente se dá entre nós a partir de meados dos anos 60”, muito em parte

devido aos “aprimoramentos técnicos e da organização das esferas culturais em termos de

mercados específicos, dotados de racionalidades próprias” (ALVES, 2009, p. 67).

Fica perceptível que a música feita pelo Trio Mossoró obedeceu aos preceitos

observados pelos teóricos frankfurtianos, quando ao longo de sua carreira discográfica se

deixou guiar por critérios de massificação (gravando discos, fazendo programas de rádio e

TV, etc), heteronomia (como na “sugestão” para troca do nome da banda no início da carreira

e na constante alteração nas vestimentas), estereotipia (incorporando uma imagem de

“nordestinos típicos”, como cangaceiros empunhando punhais na capa de disco),

padronização (se adequando aos movimentos artísticos do mercado cultural) e

pesudoindividuação (mascarando o sempre igual pelo falso manto da novidade).

O resultado desse produto não pode ser visto, todavia, apenas sob a forma de uma

“salsicha cultural” (HOBSBAWN, 1990), mas também através da criatividade do Trio. As

estruturas que constrangem são também as estruturas que habilitam. O Trio Mossoró foi tanto

um condicionado quanto um condicionante de sua rica trajetória, imprimindo na música

brasileira mais um nome regional que penetrou, entrecortou e desafiou certas estruturas. Para

além de contextos estruturados, o Trio Mossoró é também um elemento ativo na construção

de sua biografia artística.

Grupo do Nordeste que raramente se apresentava na região em seu auge, caminhava

pela MPB e Jovem Guarda, com vestimentas urbanas e, aceitando e negando (negociando) o

sertão, fez carreira transitando entre a tradição e a modernidade. Muitos jovens mossoroenses

hoje não conhecem a instigante história do Trio, certamente pelo descaso com a memória

cultural e pela pujante indústria cultural atual, mas o Trio fez sua trajetória na indústria

musical nacional em tempos de grande competitividade, enfrentando difíceis estruturas de

mercado e concorrendo/colaborando com artistas de destaque nacional.

Portanto, esses foram os variados contextos circunstanciais nos quais se deu a

produção simbólica do Trio Mossoró.

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143

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do presente trabalho se baseou no projeto crítico frankfurtiano,

sobretudo a percepção de Adorno e sua identificação da existência, nas primeiras décadas do

século XX, de um “ramo industrial que explora econômica e ideologicamente a necessidade

humana de cultura e que possui, portanto, objetivos antagônicos aos da arte no sentido

convencional” (DUARTE, 2003, p. 111). Dessa forma, chega-se no pressuposto indicado por

Morelli (2009, p. 29), de que a concepção adorniana da indústria cultural trata da “inclusão

dos objetos culturais no campo das mercadorias, quando estas são resultado de um processo

industrial e capitalista de produção”.

Inserido em um contexto de técnica industrial cada vez mais total e penetrante no

cotidiano humano, “mesmo que as condições atuais sejam desfavoráveis ao florescimento da

crítica, a crítica não está, com efeito, destinada ao desaparecimento” (SANTOS, 2014, p. 34).

Já havia dito Blanning (2011, p. 87) que “produzir música é um processo social”, que

deve considerar quem a concebe (criadores), quem a irá executar (intérpretes) e também quem

vai escutá-la (público). Essa interação trilateral é a teia na qual se fia toda criação voltada para

a promoção do júbilo nas obras artísticas. Até mesmo a produção gerida sob os auspícios da

indústria cultural não se permite quebrar esse estatuto, sob pena de não se realizar enquanto

artefato padronizado que é. Como sugerem Adorno e Horkheimer (1985, p. 126), a vitória da

indústria cultural é dupla: “a verdade, que ela extingue lá fora, dentro ela pode reproduzir a

seu bel-prazer como mentira”.

A insistência no referencial crítico da escola de Frankfurt se justifica na intenção de

explicitar os meios e as mediações percorridos pelo grupo mossoroense para ocupar o seu

lugar na história da música regionalista nordestina. Os trânsitos sonoros efetuados pelo Trio

Mossoró, que permitiram-no iniciar no universo do baião, se inserir na música de protesto,

MPB e samba, para depois voltar aos ritmos nordestinos, penetrando em linguagens musicais

além dos ritmos sertanejos de origem, se davam:

por conta da coisa da MPB e do movimento daquela época. [...] aparecíamos muito

em televisão e os caras (produtores) diziam: “- Gravem essa música...” Ela

(Hermelinda) gostava duma música tal e ela mesma promovia pra gravar. [...] Era

de acordo com o movimento que tava passando. (OSEAS, ENTREVISTA

CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

Os artistas, em citações anteriores, se referem à noção um tanto abstrata de “meio”

como condicionante da construção verificada ao longo de sua produção simbólica. Pode-se

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entender que, na verdade, pensar em “meios” seja o mais correto nessa reflexão.

Primeiramente, a mudança de meio espacial, um novo lugar para sua reprodução, possibilitou

a projeção de uma manifestação sertanejo-nordestina na metrópole sudestina; também o meio

técnico-instrumental, em amplo desenvolvimento, forneceu o suporte veicular; o meio

artístico-cultural ditava a trilha sonora a ser seguida pelos que queriam ficar em evidência nos

media; e por fim, o meio político-estrutural fornecia as diretrizes ideológicas de contestação e

insatisfação para que outro modelo de canção virasse tendência.

Sobre o papel do rádio no processo de transmissão e criação imagética, Vieira (2000)

diz que:

o rádio foi fundamental não só para veiculação das peças musicais em si, mas

também como mediador de todo um processo de criação e difusão de imagens.

Configura-se, em torno dele, uma espécie de mundo invisível, dentro do qual se

formavam as redes de ouvintes e, mais do que isso, se construíam determinados

públicos. (VIEIRA, 2000, p. 52).

Na virada dos anos 50 para os 60, a televisão “avançava depressa e passava a ser

valiosa ferramenta de divulgação [...] os artistas ganhavam inédita oportunidade de se mostrar

simultaneamente para milhões de pessoas, aliando som e imagem [...]” (MARCELO;

RODRIGUES, 2012, p. 126).

A mudança na hegemonia dos veículos também favoreceu o passe livre do trio

forrozeiro entre os diferentes meios tecnológicos, vivenciando diferentes ambientes e

experiências, no rádio, no disco e na televisão, o que se refletia também na apresentação

visual.

Segundo Rocha (2007, p. 33), “o rádio se encontrava plenamente estruturado quando

surgiu a televisão. Uma parte considerável do capital necessário para a implantação das

emissoras de televisão provinha do setor radiofônico. [...] e se beneficiou da tradição cultural

e profissional do rádio [...]”. Contudo, de acordo com Pereira (2001, p. 98), “embora as

estações televisoras estejam [...] ligadas às emissoras de rádio, a passagem do profissional do

rádio para as têves (sic) é por ele interpretada em termos de ascensão”.

Dessa forma, no início da carreira do trio, ao se apresentar fora do seu nicho

costumeiro, como estratégia de cravar uma identidade visual, o Trio Mossoró se apresentava

em programas televisivos de enorme audiência, como o “Hoje é dia de rock”, portando trajes

regionalistas: “Isso já demonstrava o nosso sucesso, pois um programa de rock129

onde

129

“Embora o rock‟n roll já tivesse alguns anos de vida como gênero musical independente no mercado norte-

americano, a sua entrada triunfal no Brasil se deu por volta de 1959, ou seja, no mesmo ano de eclosão da Bossa

Nova” (NAPOLITANO, 2017, p. 34).

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compareciam as maiores estrelas no estilo da época, o Trio Mossoró se apresentava com o

figurino tradicional, ou seja, trajes nordestinos, com chapéu de couro” (LOPES; NOGUEIRA;

ROCHA, 2014, p. 63). Como informou Hermelinda (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

2018), “o chapéu de couro, o punhal, tudo ele (pai) mandava pro Rio de Janeiro, feito aqui

no Nordeste”.

A questão estética, no decorrer da década de 1960, aliada ao caráter homogeneizador

do modelo de se fazer televisão adotado no Brasil, ao passo que ganhava maior importância,

fez o trio adotar “roupas mais avançadas além das tradicionais com chapéu de couro,

vestimenta de vaqueiro nordestino” (LOPES; NOGUEIRA; ROCHA, 2014, p. 63). Como diz

Martín-Barbero (2015, p. 253), “a televisão desenvolverá ao máximo a tendência à absorção

das diferenças. [...] é esta sua forma de negá-las: exibindo-as livres de tudo aquilo que as

impregna de conflitividade”.

Naquele tempo você tinha que ter muita presença e andar bem vestido. Hoje em dia

não, você vê na televisão, os caras cantando de bermuda rasgada, que a moda é a

calça toda rasgada. Naquele tempo era mendigo que andava com aquilo, hoje é

moda. E desses trios todinhos, o que andava mais bem vestido e tinha boa

aparência era Trio Mossoró. Era o que a televisão queria. Eu era nova, muito

bonita, modéstia a parte, pelo menos de cara eu era. De corpo eu nunca fui uma

Marta Rocha, mas de cara eu era muito bonita. João, galego de olho azul; Oseas,

coisa à parte, esse moreno alto, todo enxuto, chegava na televisão as portas se

abriam. E, modéstia a parte, a gente era bom. [...] A gente fazia Rio Hit Parade, eles

alugavam smoking, eu sempre com roupa de gala... coisa que hoje a gente não vê

mais. Os cabras cantam de tênis, bermuda rasgada, desfiada... então, hoje o artista

pra cantar na televisão não gasta dinheiro não... naquele tempo se gastava.

(HERMELINDA, ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO, 2018).

A preocupação com a imagem, presente desde a era do rádio, era vital para alguns

artistas. Conforme Frota (2003, p. 85), “para o intérprete Francisco Alves, por exemplo, o

trajar-se de maneira sempre elegante fazia parte da „atitude profissional‟ que ele esperava de

si mesmo e de seus colegas da classe artística”. Jambeiro (1975, p. 7) verificou que “a

aparência física do artista é considerada, de maneira geral, importante na construção de sua

imagem perante o público e é uma das funções do empresário assessorá-lo nesta construção e

na sua preservação, embora a gravadora também zele por este aspecto”.

O novo meio de entretenimento, a televisão, que no começo dos anos 1960 estava em

momento de transição entre a “paleo-televisão” e a “neo-televisão” (NAPOLITANO, 2010, p.

57), sobrepujou o rádio ao longo da década em termos de potência midiática, alterando

também a forma de apresentação dos artistas, que passaram a dar mais importância ao aspecto

visual nas suas performances, buscando adequar-se a um padrão estabelecido, pois “a TV,

mais do que responder a pedidos, cria exigências” (ECO, 1979, p. 357). Na TV, a presença

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dos artistas junto à população se intensifica (HABERT, 1974, p. 36), já que, como diz

Tinhorão (1981, p. 157), “só viriam ser admitidos diante das câmeras de televisão os artistas e

estilos musicais cultural e ideologicamente mais de acordo com o tipo de público

potencialmente comprador dos sofisticados artigos veiculados através dos caríssimos

comerciais dos intervalos130

”.

Assim, a vocalista do trio:

usava vestido longo, cheio de brilhos; os irmãos vestiam smoking. No começo do

trio, seguiam o modelo regional. Envergavam roupa de couro em duas cores; na

parte de trás, desenhada no gibão, uma reprodução de cenas da seca do Nordeste [...]

Os rapazes passaram a usar roupas urbanas [...] Até calça boca de sino (Hermelinda)

usou, reforçando a adaptação à moda reinante entre os jovens das metrópoles.

(MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 134).

De acordo com depoimento de Hermelinda (ENTREVISTA CONCEDIDA, JUNHO,

2018), Zé Messias, conhecido no meio televisivo da época, teria aconselhado: “„- Rapaz, tira

esse negócio de cangaceiro, chapéu de couro...‟, e eu (Hermelinda) detestava aquilo, que

transpirava que só a peste, não gostava, dava um calor danado. Aí tiramos”.

(a televisão) desenvolve uma política musical favorável aos sucessos, [...] de

capitalizar o sucesso musical destes ou daqueles intérpretes ou compositores, nunca

pretendendo, como o rádio, servir de intermediário entre a gravadora e o público,

lançando as canções e procurando torná-las sucesso. [...] A televisão, portanto, se

interessa apenas em apresentar aqueles intérpretes ou compositores-intérpretes que

estejam, no momento, fazendo sucesso com não interessa qual canção [...].

(JAMBEIRO, 1975, p. 120).

Nesse sentido, Marcelo e Rodrigues (2012, p. 134) revelam que “a cantora do Trio

Mossoró fazia questão de caprichar ao aparecer na televisão”, reforçando o levantado por

Giddens (2002, p. 96), para quem os “modos de vestir são influenciados por pressões de

grupo, propaganda, recursos socioeconômicos e outros fatores que muitas vezes promovem a

padronização mais que a diferença individual”, aspecto potencializado nos casos em que a

imagem pessoal é também ferramenta de trabalho, como acontece com grande parte dos

membros da classe artística. Porém, para Martín-Barbero (2015, p. 319), mesmo pela

televisão “passam as brechas, também ela está feita de contradições e nela se expressam

demandas que tornam visíveis a não unificação do campo e do mercado simbólico”.

Portanto, fica exemplificado como, seja em virtude do meio de convivência, dos

parceiros de composição ou das exigências dos veículos da indústria cultural, a música do

130

No começo dos anos 60 “a rádio começou a perder força, e só ia para a TV quem era a fina flor. Os pezinhos

de poeira, que faziam o gênero mais popular, não iam à televisão!” (FERREIRA, 2011, p. 62).

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Trio Mossoró passou, ao longo dos 12 álbuns que compõem sua carreira discográfica, por

variadas mudanças. Do começo estritamente sertanejo-nordestino, à “inserção na zona sul

carioca” e à intenção de chegar “do norte a sul”, para depois, sempre navegando pelas calhas

da indústria cultural, voltar ao sertão sem tirar os pés e os olhos de Copacabana.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A

Roteiro de entrevista – Trio Mossoró – 23/06/2018

1- Ainda em Mossoró, antes da banda, como era a relação dos três com a música e com o

rádio?

2- Quais os artistas preferidos dos três nessa época?

3- Para Oséas, quando o rádio passou a ser encarado como uma atividade profissional de

fato?

4- Que fatores levaram, primeiro Oséas e depois João e Hermelinda, a tentar a vida

artística no Rio de Janeiro?

5- Quais as impressões que a vida artística na cidade carioca despertava neles?

6- Com quais artistas (nordestinos ou não) o Trio teve contato mais próximo e que foi

importante no início da carreira no Rio?

7- Como conseguiram o contrato pra gravação do primeiro disco, em 1962? Houve

algum “padrinho musical”?

8- Como eles classificam esse primeiro LP da banda? Baião, “disco de música

nordestina”?

9- Como foi o processo de gravação do primeiro disco? Lembram quem eram os músicos

de apoio? A produção foi do Trio ou ditada pela gravadora?

10- Houve muita interferência da gravadora/produtor durante a gravação desse primeiro

disco? Foi um momento prazeroso ou tenso?

11- Quais expectativas o Trio tinha desse primeiro LP no mercado?

12- Qual foi o maior sucesso do primeiro disco?

13- Qual a imagem que o Trio queria passar para o público nesses primeiros anos da

banda?

14- Qual o grau de relação do Trio com Luiz Gonzaga nesses primeiros anos?

15- Lembram como foi no dia da sessão de fotos para a capa desse disco?

16- Que importância davam às capas do disco? Tinha opinião nesse aspecto ou era

assunto restrito da gravadora?

17- Qual a importância do rádio no início da banda? Foi importante na divulgação da

banda?

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18- Qual a principal diferença entre as rádios dos tempos de Mossoró para as rádios

cariocas?

19- Quando foi a primeira apresentação do Trio na TV? Antes ou depois do lançamento

do primeiro disco?

20- Como vocês se apresentaram na TV, com roupas nordestinas?

21- Nas outras apresentações na TV, mudaram o figurino? Passaram a vestir que tipo de

roupas?

22- Se sim, foi por vontade de vocês a troca de figurino ou alguém sugeriu essa mudança?

23- Como era a TV nessa época?

24- Como era a relação do Trio com os agentes da TV? Apresentadores de programas,

produtores, etc.

25- A partir do primeiro LP, como foi a gravação do disco seguinte?

26- No segundo LP foi buscada alguma mudança sonora em relação ao disco de estreia?

Ou foi buscado manter a mesma linha?

27- Falem sobre o sucesso da música “Carcará” e como surgiu o convite para Hermelinda

substituir Nara Leão no show Opinião.

28- Existia um contato do Trio com o pessoal da MPB?

29- No disco de 1966, “De Norte a Sul”, existem poucos baiões, com canções mais

voltadas para o samba. Por quê? Vontade própria de fazer outra coisa além do baião

ou exigência da gravadora?

30- Com que frequência vinham a Mossoró durante os anos 60 e 70?

31- Nos anos 70 o Trio volta a fazer discos com uma pegada mais nordestina, forrozeira...

falem sobre essa “volta às raízes”.

32- Quais instrumentos foram adicionados nas gravações dessa época?

33- Como era o mercado de música nordestina nos anos 70?

34- Por quais motivos a banda parou de tocar e gravar discos?

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APÊNDICE B

Tabela de análise – Discografia Trio Mossoró