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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UERN CAMPUS AVANÇADO ‘PROFESSORA MARIA ELISA DE A. MAIA – CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS DL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS - PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO LINHA DE PESQUISA: DISCURSO, MEMÓRIA E IDENTIDADE RELATOS DE GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA: MOVIMENTOS DA MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO Francisco Canindé Tinoco de Luna Pau dos Ferros - RN 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN CAMPUS AVANÇADO ‘PROFESSORA MARIA ELISA DE A. MAIA –

CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS - PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO LINHA DE PESQUISA: DISCURSO, MEMÓRIA E IDENTIDADE

RELATOS DE GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA: MOVIMENTOS DA

MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO

Francisco Canindé Tinoco de Luna

Pau dos Ferros - RN

2013

FRANCISCO CANINDÉ TINOCO DE LUNA

RELATOS DE GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA: MOVIMENTOS DA MEMÓRIA E

EFEITOS DE SENTIDO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras ─ PPGL, da Universidade do Estado do Rio grande do Norte ─ UERN, Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia – CAMEAM, como requisito final para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Paulo da

Silva

Pau dos Ferros

2013

Luna, Francisco Canindé Tinoco de. Relatos de guerrilheiros do Araguaia: movimentos da memória e efeitos de sentido / Francisco Canindé Tinoco de Luna. – Pau dos Ferros, RN, 2012.

162 f.

Orientador (a): Prof. Dr. Francisco Paulo da Silva.

Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Departamento de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Área de Concentração: Estudos do Discurso e do Texto.

1. Memória – Dissertação. 2. Discurso – Dissertação. 3. História – Dissertação. 4. Sentido – Dissertação. 5. Relatos de guerrilheiros – Dissertação. I. Silva, Francisco Paulo da. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título. UERN/BC CDD 401.41

Catalogação da Publicação na Fonte.

Bibliotecário: Tiago Emanuel Maia Freire / CRB - 15/449

A dissertação Relatos de guerrilheiros do Araguaia: movimentos da memória e efeitos de sentido, de autoria de Francisco Canindé Tinoco de Luna, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito final necessário à obtenção do grau de Mestre em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

Dissertação defendida e aprovada em ____ de _____________ de_________.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________ Prof. Dr. Francisco Paulo da Silva - UERN

(Orientador)

_________________________________________________________________ Prof. Dr. Muirakytan Kennedy de Macedo - UFRN

(1ª Examinador)

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho - UERN

(2º Examinador)

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Luciano Pontes - UERN

(Suplente)

Pau dos Ferros - RN 2013

Nunca se é homem enquanto se não encontra alguma coisa pela qual se estaria disposto a morrer (Jean-Paul Sartre).

Dedico:

A todos os guerrilheiros que tombaram no Araguaia e que, com seu próprio sangue, plantaram na floresta amazônica as sementes de uma nação livre e soberana, bem como aos poucos que, em fuga cinematográfica, conseguiram escapar ao cerco militar. Refiro-me a todos aqueles bravos e heroicos combatentes em nome de João Amazonas e Maurício Grabois, os líderes maiores da Guerrilha, eles que, em 2012, ano em que essa dissertação foi produzida, fariam 100 anos.

Aos meus pais, a professora Lindalva Tinoco de Luna e o agricultor Severino Aleixo de Luna, os quais me legaram sólidos princípios éticos e que construíram, na minha família, todas as condições para um ambiente propício aos estudos.

A minha irmã, a Professora Júnia Maria Tinoco de Luna, ela que dando atenção aos meus pais já idosos, deixou-me com tempo para fazer esse Mestrado.

Aos meus filhos Tales, Priscila e Hércules que me motivaram com a sua satisfação em ter um pai fazendo um Mestrado.

A minha esposa Nélia que me deu uma trégua e “atrapalhou” pouco nos últimos dois anos! (vixe, se ela vi essa parte aqui vai cair uma banda do mundo...)

AGRADECIMENTOS

Ao meu competente orientador, o Professor Francisco Paulo da Silva, nosso

querido Paulinho, pela inestimável contribuição para a produção deste trabalho.

Suas orientações abrangentes, sem deixar de ser precisas, mostraram-me o

caminho arqueológico que adotei nesta pesquisa. Obrigado Professor!

À professora Ana Maria Carvalho, nossa querida Aninha, ela que, num belo

dia, lá em Aracati, no Ceará, me apontou no mapa uma cidade de nome Pau dos

Ferros, dizendo que neste lugar havia Mestrado em Letras... Foi essa dica da Aninha

que me faz vir para cá! Gostei da cidade, do seu povo, do CAMEAM, do PPGL...

Valeu Aninha!

À Faculdade do Vale do Jaguaribe (FVJ), instituição na qual fiz minha

graduação em Letras, fiz minhas duas especializações e na qual tenho o orgulho de

lecionar; agradeço nas pessoas do Professor-mantenedor Pedro Henrique, do

Diretor Geral Professor Eduardo Neto e do Diretor Financeiro José Deroci, pelo

apoio e pelo incentivo que me deram do princípio ao fim dessa etapa de minha vida

acadêmica.

Aos meus Chefes na Petrobras, o Supervisor José Estanislau Lopes Lima e o

Coordenador Enéas Porto Viana, pela compreensão e pela flexibilidade, sem as

quais eu não teria tido disponibilidade para concluir essa empreitada;

Aos Professores Ivanaldo Santos e Ivonete Coelho por aceitarem, juntamente

com o Professor Paulinho, participarem da minha banca de qualificação. Deles

recebi importantes sugestões para a conclusão desta dissertação.

A todos os Professores do PPGL, dentro os quais destaco aqueles que

ministraram aula na minha turma: Francisco Paulo, Socorro Maia, Ivanaldo Santos,

Marcília Mendes, Gilton Sampaio, Lúcia Sampaio e Guilherme Martins.

Ao pessoal da Secretaria do PPGL, especialmente Marília e Ricardo, pela

gentileza, cordialidade e competência.

A todos os demais funcionários do CAMEAM pela educação com que fui

tratado.

A minha grande amiga, a Professora Marilia Costa, de Aracati, ela que

também cursa esse Mestrado na turma 2012.1 e que muito colaborou e incentivou

para que nós pudéssemos levar avante essa empreitada.

Ao companheiro de todas as batalhas nesse Mestrado, o professor

Regilberto, ele que juntamente comigo, saía de Aracati duas vezes por semana às

três horas da madrugada, dirigindo e enfrentando chuvas e noites frias para chegar

a Pau dos Ferros às sete da manhã, depois de percorrer 252 km de estradas.

A todos os meus colegas da turma 2011.1: Afrânio, o futuro Prefeito de

Portalegre; Ananias, a certeza de um grande futuro; Celina, querida companheira

dos trabalhos em equipe; Doralice, a rainha de São Bento-PB; Damião, grande

professor do IFRN; Gomes, o intelectual de Catolé do Rocha; Vieira, o primeiro a

defender a dissertação; Márcia, um amor de pessoa; Eveuma, gente forte lá do

Cariri; Gorete, uma competência a toda prova; Ivanúcia, a princesa de Marcelino

Vieira; Jocélia, responsabilidade acima de tudo; Paula, a perfeccionista; Rafael,

caladinho, mas um danado na crítica literária; Rosângela, gente muito boa; Ieda, a

grande jornalista de Apodi; Sérgio, o mais bonito da turma; Regilberto, meu

companheiro das viagens a Pau dos Ferros; e Tulho que nasceu pra ser intelectual.

A todos que direta ou indiretamente contribuíram para essa minha conquista!

RESUMO

A presente dissertação intitulada RELATOS DE GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA: MOVIMENTOS DE MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO tem por objetivo tratar da relação entre memória e história, a partir da experiência guerrilheira de militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no Araguaia, objetivando recompor e esclarecer aspectos ainda sombrios da história da luta armada durante a ditadura militar no Brasil. Para dar conta desse empreendimento investigativo o trabalho se fundamenta no lastro teórico da Análise do Discurso (AD) de linha francesa e em estudos que historicizam e analisam o período da Ditadura Militar no Brasil, tais como os relatórios da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; as publicações do Projeto de Pesquisa BRASIL: NUNCA MAIS da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e os documentos do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois. Neste sentido são levadas em consideração as intervenções de Michel Foucault aproveitadas por Pêcheux via Courtine para a teoria do discurso, tanto no que diz respeito à perspectiva arquegenealógica das relações saber/poder, como na proposta de um método que renuncia as verdades preestabelecidas e as inquirições sobre as origens e causas. Trata-se do método arqueológico que prefere investigar os sistemas de aparição dos enunciados e os arranjos históricos determinados por relações de saber/poder que fazem aparecer um enunciado e não outro em uma dada época. Por isso, o método considera a relação dos enunciados numa rede de memória, entendendo que um corpus não pode ser lido fora do arquivo do qual faz parte sob pena de perder a sua interdiscursividade e a historicidade de seus sentidos. O corpus da pesquisa é constituído de três documentos escritos por dois guerrilheiros do Araguaia. São eles: “Relatório sobre a luta no Araguaia” e “Um grande acontecimento na vida do país e do partido” de Ângelo Arroio e “Intervenção no debate sobre o Araguaia” de Pedro Pomar. Para efeito de tratamento do corpus, se trabalha com a noção de trajeto temático, investida teórico-metodológica cunhada por Guilhaumou e Maldidier (1994). Assim para efetivar a análise definiu-se como trajeto descritivo-interpretativo dos enunciados a relação repressão/resistência, expresso pela luta política que tem como eixos os pares “ditadura X guerrilha’ e “partido X partido”. O trajeto temático, portanto, situa-se no contexto histórico da ditadura no Brasil, efetua um percurso que vai da repressão militar à luta armada de resistência ao regime, se expressa pela disputa política entre os militares no poder e a oposição revolucionária e será analisado a partir dos confrontos entre ditadura e guerrilheiros, bem como a partir das divergências no interior do próprio partido comunista. As investigações revelaram que os fios da memória inscrita nos relatos dos guerrilheiros do Araguaia possibilitam o diálogo desses enunciados com outros que estão em seu domínio associado e que pertencem a outros momentos da história, em relação aos quais efetua movimentos de repetição, refutação ou denegação, gerando sentidos dentro de uma concepção genealógica que é capaz de reposicionar a história da luta armada no Brasil, parte importante da história da Ditadura Militar de 1964.

Palavras-chave: Memória. Discurso. História. Sentido. Relatos de guerrilheiros. ABSTRACT

This dissertation entitled REPORTS OF GUERRILLAS ARAGUAIA: movements of memory and meaning effects aims to address the relationship between memory and history, from the experience of guerrilla militants of the Communist Party of Brazil (PC do B) in Araguaia, aiming to restore and clarify still dark aspects of history of armed struggle during the military dictatorship in Brazil. To account for this undertaking investigative work is based on theoretical ballast Discourse Analysis (DA) of the French and historicizam and studies that analyze the period of the military dictatorship in Brazil, such as the reports of the Special Commission on Political Deaths and Disappearances (CEMDP) of the Special Secretariat for Human Rights of the Presidency, the publications of the Research Project BRAZIL: NEVER National Confederation of Bishops of Brazil (CNBB) and documents of the Centre for Documentation and Memory (CDM) Foundation Mauricio Grabois . In this sense are taken into account the interventions utilized by Michel Foucault via Pêcheux Courtine to discourse theory, both with regard to the perspective of relations arquegenealógica knowledge / power, as in the proposal of a method that waives pre-established truths and inquiries about the origins and causes. It is the archaeological method you prefer investigate the appearance of listed systems and arrangements for certain historical relations of power / knowledge that make up a statement and not another in a given time. Therefore, the method considers the relationship of utterances in a memory network, meaning that a corpus cannot be read out of the file to which it belongs under penalty of losing their interdiscursivity and the historicity of his senses. The research corpus is composed of three papers written by two of the Araguaia guerrillas. They are: "Report on the fight in the Araguaia" and "A great event in the life of the party and the country" Angelo Arroyo and "Intervention in the debate on the Araguaia" Pedro Pomar. For purposes of processing the corpus, working with the notion of thematic path, invested theoretical and methodological coined by Guilhaumou and Maldidier (1994). So to effect the analysis was defined as a path of descriptive and interpretative statements regarding the repression / resistance expressed by political struggle whose axes pairs "dictatorship guerrilla X 'and' X party party". The thematic path, therefore, lies in the historical context of the dictatorship in Brazil, performs a route that goes to the military repression of the armed struggle of resistance to the regime is expressed by the political dispute between the military and revolutionary opposition in power and will be analyzed from clashes between dictatorship and guerrillas, as well as the differences within the Communist Party itself. Investigations revealed that the threads of memory inscribed in the accounts of the Araguaia guerrilla enable dialogue with other such statements that are associated with your domain and belong to other times in history, for which performs motion replay, denial or refusal, generating senses within a genealogical design that is able to reposition the history of armed struggle in Brazil, an important part of the history of military dictatorship in 1964. Keywords: Memory. Discourse. History. Sense. Reports of guerrillas.

LISTA DE MAPAS

MAPA 01: Região da Guerrilha do Araguaia..............................................................56

MAPA 02: O mapa da Guerrilha do Araguaia............................................................69

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01: (Fotos de corpos de guerrilheiros do Araguaia mortos em combate)....75

FIGURA 02: (Foto da casa onde aconteceu a chacina da Lapa)...............................77

FIGURA 03: (Foto dos corpos de Arroyo e Pomar assassinados na Chacina da

Lapa)..........................................................................................................................77

FIGURA 04: (Foto de Pomar, Drummond e Arroio mortos na Chacina da Lapa)......77

LISTA DE QUADROS

QUADRO 01: Relatos de guerrilheiros do Araguaia: enunciados que repetem a

história......................................................................................................................103

QUADRO 02: Relatos de guerrilheiros do Araguaia: enunciados que recusam a

história......................................................................................................................107

QUADRO 03: Relatos de guerrilheiros do Araguaia: enunciados que denegam a

história......................................................................................................................110

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................12 I O CAMPO DA ANÁLISE DO DISCURSO E DISPOSITIVOS TÉORICO-ANALÍTICOS..............................................................................................................17 1.1 DISPOSITIVO TEÓRICO DA ANÁLISE DO DISCURSO.....................................18 1.1.1 Discurso e história: um projeto político..............................................................18 1.1.2 Base epistemológica, especificidade e construção teórica da Análise do Discurso......................................................................................................................24 1.1.3 A evolução teórica e o reordenamento epistemológico da Análise do Discurso......................................................................................................................31 1.2 ARQUEOLOGIA E DESCRIÇÃO ARQUEOLÓGICA...........................................35 1.2.1 A Análise do Discurso na perspectiva arquegenealógica.................................35 1.2.2 O lugar do enunciado nas tramas do arquivo...................................................42 1.2.3 Discurso e acontecimento.................................................................................48 1.2.4 Trajeto temático: do arquivo histórico ao corpus de análise.............................52 II O DISCURSO, A MEMÓRIA E O ARQUIVO DA GUERRILHA.............................55 2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA PESQUISA..........................................55 2.1.1 A localização geográfica da guerrilha................................................................55 2.1.2 O Araguaia e a tradição de lutas do povo brasileiro.........................................58 2.1.3 O golpe militar e a guerrilha do Araguaia..........................................................62 2.1.4 A memória mítica da guerrilha...........................................................................78 2.2 MEMÓRIA E HISTÓRIA.......................................................................................81 2.2.1 A relação memória e história.............................................................................81 2.2.2 A memória como campo de batalha..................................................................85 III RELATOS DE GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA: MOVIMENTOS DE MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO..........................................................................................90 3.1 CORPUS DE ANÁLISE: APRESENTAÇÃO E GÊNERO....................................91 3.1.1 O gênero dos relatos.........................................................................................91 3.1.2 O relato dos guerrilheiros................................................................................92 3.2 RELATOS, MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO.............................................96 3.2.1 O sujeito heterogêneo na formação discursiva comunista..............................96 3.2.2 Movimentos de memória para recompor a história.......................................101 3.2.2.1 Movimentos de repetição....................................................................102 3.2.2.2 Movimentos de refutação....................................................................107 3.2.2.3 Movimentos de denegação.................................................................109

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................114 REFERÊNCIAS........................................................................................................118 ANEXOS: O “CORPUS”..........................................................................................122 ANEXO A – Relatório sobre a luta no Araguaia.......................................................122 ANEXO B – Um grande acontecimento na vida do país e do partido.....................142 ANEXO C – Intervenção sobre o debate no Araguaia.............................................154

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INTRODUÇÃO

Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito (Albert Einstein).

ELATOS DE GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA: MOVIMENTOS DE

MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO é o título da presente dissertação,

cuja fundamentação teórica se fez à luz da Análise do Discurso (AD) de linha

francesa, envolvendo as contribuições teóricas de Pêcheux e Foucault, dentre outros

estudiosos. O lastro teórico do trabalho também leva em conta estudos que

historicizam e analisam o período da Ditadura Militar no Brasil, tais como os

trabalhos da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) da

Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, as

publicações do Projeto de Pesquisa BRASIL: NUNCA MAIS da Confederação

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e os documentos do Centro de

Documentação e Memória - CDM da Fundação Maurício Grabois do Partido

Comunista do Brasil (PCdoB).

Em 2012, um dos mais importantes movimentos de luta armada contra o

Regime Militar, fez exatamente 40 anos. Foi no dia 12 de abril de 1972 que teve

início na floresta Amazônica, mais precisamente no sul do Pará, abaixo da região

conhecida como Bico do Papagaio, o episódio que passou para história como a

guerrilha do Araguaia. Organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), 69

guerrilheiros resistiram por quase três anos ao ataque de forças do Exército,

Marinha e Aeronáutica, em operações de cerco e aniquilamento que mobilizaram

mais de vinte mil homens, na maior mobilização de tropas realizada pelas Forças

Armadas desde a Segunda Guerra Mundial.

As noticias acerca dos acontecimentos do Araguaia foram duramente

censuradas pela Ditadura e, por isso, a população brasileira só veio tomar ciência

daqueles fatos quase uma década depois. Foi em 1980, com a obra Araguaia: o

partido e a guerrilha de Vladimir Pomar que o público toma conhecimento de forma

mais sistematizada acerca da guerrilha. Nessa obra aparecem, pela primeira vez,

relatos inéditos de guerrilheiros que narram e avaliam aquele movimento

R

13

revolucionário. São textos que, pelo efeito de raridade de seus enunciados e pela

interdiscursividade estabelecida entre a memória e a história, constituem-se em

importante objeto de estudo para a Análise do Discurso. A presente dissertação se

propõe a tratar da relação entre memória e história, a partir da experiência

guerrilheira de militantes do PCdoB no Araguaia, objetivando recompor e esclarecer

aspectos ainda sombrios da história da luta armada durante a Ditadura Militar no

Brasil.

O marco teórico colocado contribuiu para a produção deste trabalho, na

medida em que a teoria discursiva facilitou a explicação dos mecanismos que

embasam a produção de sentidos que está no discurso dos guerrilheiros do

Araguaia, materializados nas cartas e relatórios produzidos por eles próprios e na

medida em que permitiu descrever e interpretar, nessas narrativas, a ação política

da Ditadura Militar em sua repressão a esse movimento revolucionário.

Em se tratando da teoria que foi utilizada, a pesquisa seguiu, portanto, a trilha

traçada por Gregolin (2003, p. 12) quando afirma que

A Análise do Discurso propõe, portanto, descrever as articulações entre a materialidade dos enunciados, seu agrupamento em discursos, sua inserção em formações discursivas, sua circulação através de práticas, seu controle por princípios relacionados ao poder, sua inscrição em um arquivo histórico.

A questão de pesquisa que motivou este trabalho partiu da curiosidade em

saber como os movimentos da memória inscrita nos relatos dos guerrilheiros do

Araguaia podem recompôr a história da luta política entre os combatentes daquele

movimento revolucionário e a Ditadura Militar.

Nesse sentido, no aspecto geral, o trabalho pretendeu analisar a relação

memória e história, a partir da experiência guerrilheira de militantes do Partido

Comunista do Brasil (PCdoB) no Araguaia. No plano específico, a teoria discursiva e

os estudos que historicizam o arquivo daquela época de repressão serviram para

identificar, na narrativa dos combatentes do Araguaia, os movimentos de memória

que reconstituem a repressão militar à guerrilha; serviram para discutir o sujeito

heterogêneo e a heterogeneidade discursiva no interior da formação discursiva (FD)

comunista e analisar, na narrativa histórica dos guerrilheiros, os efeitos de sentido

em torno da memória, observados no confronto das posições-sujeito dos envolvidos.

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Assim, para levar a bom termo os seus objetivos geral e específicos, o

presente trabalho, no plano de sua fundamentação teórica, procurou centrar-se na

relação discurso e memória, evidentemente articulada a partir das noções de

enunciado, acontecimento e arquivo desenvolvidas por Foucault (2005) em

Arqueologia do saber, bem como da noção de memória e interdiscurso trabalhadas

por Pêcheux (1999) e outros teóricos.

Descrever e analisar os relatos de guerrilheiros do Araguaia para entender os

efeitos de sentido entre memória e história é uma tarefa que, em princípio, na

perspectiva foucaultiana aqui adotada, exige entender o enunciado como elemento

pertencente a um domínio de memória e, portanto, como algo que se insere na rede

da história. A memória, entendida como a história social da produção de enunciados

é quem garante a pluralidade desses efeitos de sentido. Exige ainda entender a

noção de acontecimento discursivo como um fato histórico, algo que foge às

estruturas, que é fruto do interdiscurso e que se torna material e significante à

medida que se liga ao social, melhor dizendo, a sua exterioridade constitutiva.

O discurso dos guerrilheiros do Araguaia, materializado nas narrativas que

serviram de corpus para esta pesquisa, contém parcelas da memória de uma época,

cujos sentidos a Ditadura censurou e pretendeu condenar ao esquecimento. Mapear

o domínio desses sentidos, resgatando a memória dos guerrilheiros, bem como

mapeando e interpretando os movimentos decorrentes dessa memória é o desafio

que esse trabalho persegue.

A narrativa dos guerrilheiros foi analisada discursivamente levando-se em

conta a sua função enunciativa no sentido foucaultiano e, para isso, buscou a

articulação material entre os enunciados que aparecem naqueles relatos, sua

inserção numa formação discursiva, sua circulação em práticas e sua submissão às

ordens do discurso. Em Arqueologia do Saber, Foucault (2005) mostra que o

enunciado não é frase, não é proposição e nem ato de fala. Como categoria

elementar do método arqueológico, o enunciado seria algo especial: nem visível e

nem oculto, nem todo linguistico e nem todo material, caracterizando-se pela

raridade enunciativa, pela exterioridade material e pelo acúmulo interdiscursivo.

Seria, o enunciado, um domínio de memória, um elemento do arquivo, uma função

de existência que cruza domínios de estruturas e de unidades possíveis para dizer

15

se nessas estruturas e nessas unidades, haverá ou não uma frase, uma proposição

ou um ato de fala.

No plano da metodologia, foi estabelecido que a arqueologia e a descrição

arqueológica orientariam o método a ser trilhado, definiu-se o lugar do enunciado

nas tramas do arquivo e o discurso foi encarado como objeto de luta política, visto

sob a perspectiva arquegenealógica e analisado a partir de um trajeto temático a ser

trilhado no curso da pesquisa.

A escolha metodológica diz respeito à composição do corpus, bem como aos

procedimentos analíticos que se seguem; nesse sentido, os relatos de guerrilheiros

a serem analisados foram selecionados em função da sua raridade enunciativa, haja

vista serem os únicos documentos redigidos de próprio punho que se tem dos

combatentes, bem como pela sua transformação em acontecimento discursivo, na

medida em que compõem o arquivo histórico da época do Regime Militar de 1964.

Nesse aspecto, a análise que fizemos levou em conta as categorias de enunciado,

acontecimento e arquivo de inspiração foucaultiana, memória e interdiscurso a partir

de Pêcheux, como também a noção de corpus de Courtine. Além disso, na

efetivação da análise, o corpus foi tratado dentro de um trajeto temático que se

estabelece na relação “repressão/resistência”, expressa por uma luta política que

tem como eixos os conflitos “ditadura X guerrilha” e “partido X partido”.

Para dar conta das investigações a que se propõe e atingirmos os objetivos

traçados, a presente dissertação foi dividida em três capítulos: no primeiro,

apresentamos o campo teórico da Análise do Discurso e os dispositivos analíticos da

pesquisa. No que diz respeito ao campo teórico, fazemos uma discussão sobre a

noção de discurso, a base epistemológica da Análise do Discurso, bem como a

evolução desta disciplina, desde sua fase inicial, quando respondia a um projeto

político de uso da linguagem, passando por sua construção teórica e pelas releituras

do materialismo histórico feitas por teóricos que vão de Althusser a Bakhtin, bem

como a reordenação epistemológica promovida por Pêcheux a partir das

contribuições de Foucault.

No segundo capítulo tratamos do arquivo histórico da guerrilha do Araguaia e

das relações entre memória e história. No que diz respeito à guerrilha, a partir de

documentos do PCdoB e de obras que historicizam o Regime Militar no Brasil,

fazemos uma contextualização histórica desse movimento revolucionário, colocando

o Araguaia como uma das epopeias do povo brasileiro e, para isso, descrevemos a

16

preparação, o desenvolvimento e o desfecho desse conflito armado. No tocante às

relações entre discurso e memória apresentamos esta, a memória, como um

verdadeiro campo de batalha, cuja mobilidade produz efeitos de sentido que podem

recompor a própria história.

No terceiro capítulo apresentamos e analisamos o corpus da pesquisa

composto pelos relatos e avaliações produzidos por três guerrilheiros que viveram a

experiência do Araguaia. Depois de apresentado em síntese descritiva, o corpus foi,

inicialmente, classificado numa perspectiva de gênero discursivo e, na sequência,

procedemos a análise dos movimentos de memória que se inscrevem nesses

relatos, na busca dos efeitos de sentido decorrentes desses movimentos.

Foi possível identificar enunciados no relato dos guerrilheiros em que a

memória inscrita efetua movimentos de repetição, de recusa e de denegação da

história recompondo e dando novo significado à história da guerrilha. Os

movimentos de repetição efetuam um retorno à história que faz circular, dentre

outros temas, o preconceito anticomunista e a prática da tortura por parte dos

militares, bem como se retoma a história da luta pela liberdade que se inspira em

exemplos como os de Anita Garibaldi e Rosa Luxemburgo.

Na análise dos movimentos de negação, a memória inscrita nos enunciados

do corpus produziu movimentos em direção a um domínio associado que irrompe do

interdiscurso no sentido de se construir uma história de negações em relação a

outros enunciados já historicizados. É o caso da história de repúdio e, portanto, de

recusas ao modelo de propriedade privada, à violência no campo e à censura

presente no relato dos guerrilheiros.

Ao identificar os movimentos de denegação, a análise permitiu enxergar o

extremo desprezo com que são tratados os traidores da causa revolucionária,

comparados a figuras denegadas da história tais como Calabar, Joaquim Silvério

dos Reis ou Cabo Anselmo.

A dissertação é encerrada na expectativa de que outras pesquisas

envolvendo as complexas relações entre memória e história possam ser realizadas,

tendo como foco a temática aqui analisada, no sentido de ressignificar a história a

partir do movimento da memória que se inscreve, que movimenta, que faz circular

outros enunciados e que, desse modo, dá sentido aos discursos.

17

I O CAMPO DA ANÁLISE DO DISCURSO E DISPOSITIVOS TÉORICO-

ANALÍTICOS

[...] o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética: um tesouro inesgotável; ele (o discurso) aparece como um bem finito, desejável e útil – que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas “aplicações práticas”) a questão do poder, um bem que é por natureza, objeto de luta política (Michel Foucault).

este capítulo faz-se uma exposição acerca do lastro teórico a ser

utilizado, procurando se adequar o dispositivo teórico-metodológico que

referencia o trabalho aos objetivos traçados, com a finalidade de responder de modo

satisfatório à questão de pesquisa. Nesse sentido, a apresentação do campo teórico

da Análise do Discurso, teoria que fundamenta a investigação realizada, vai desde a

exposição dos fundamentos epistemológicos da teoria até a indicação de rumos que

norteiam a análise do corpus.

Para cumprir mais adequadamente a tarefa a que se propõe e também por

questões de compreensão didática, o capítulo foi dividido em dois itens, sendo que o

primeiro se subdivide em três subitens e o segundo em quatro, havendo entre eles

uma relação de complementaridade que garante a unidade teórica.

O primeiro item trata do dispositivo teórico da Análise do Discurso. Começa

abordando a relação discurso e história, colocando o discurso como elemento

fundante do homem moderno e apresentando releituras do materialismo histórico

que interessam à fundamentação teórica da pesquisa; a seguir discute a base

epistemológica da Análise do Discurso, destacando o papel do marxismo, do

estruturalismo e da psicanálise, além de apresentar a especificidade dessa

disciplina; depois cuida da evolução teórica da Análise do Discurso, bem como de

seu reordenamento epistemológico a partir dos trabalhos de Pêcheux baseados em

Foucault.

O segundo item expõe sobre o método e a descrição arqueológica.

Inicialmente procura inserir a Análise do Discurso numa perspectiva

arquegenealógica, ou seja, num patamar para onde convergem questões relativas

ao saber/poder, busca identificar o lugar do enunciado nas tramas do arquivo,

N

18

apresenta o discurso como objeto de luta política e, por fim, traça o trajeto temático

da pesquisa, cujo itinerário vai da repressão ditatorial à resistência dos guerrilheiros.

1.1 O DISPOSITIVO TEÓRICO DA ANÁLISE DO DISCURSO

1.1.1 Discurso e história: um projeto político

Quando a linguística saussuriana, do alto de seu prestígio científico, por volta

de 1960 tentou, pelas vias da imanência, tratar da questão do significado entraram

em cena os partidários de uma Análise do Discurso (AD), apontando em outra

direção. O corte saussuriano havia instituído a língua como objeto de estudo, ao

mesmo tempo em que excluiu o sujeito e a história da descrição, adotando uma

postura cujas análises priorizaram a língua vista em suas relações imanentes. Mas,

foi a partir de uma nova leitura feita por Pêcheux acerca dessa operação de corte

que surge a Análise do Discurso, uma teoria cujo objetivo, desde aquele momento

fundante, foi explicar os processos de produção social de sentido, deixados de lado

pela linguística estrutural herdeira dos trabalhos de Saussure.

Essa mudança de rumo que, na prática, significava uma ruptura

epistemológica com a linguística até então praticada, mostrou a possibilidade de se

construir o sentido na materialidade histórica da linguagem, ou seja, no encontro da

língua com a sua exterioridade.

Concebendo os fatores externos como constituintes e, em última análise,

como determinantes do sentido na linguagem, é possível mostrar como foi a

construção de uma teoria materialista da discursividade a partir do componente

histórico, bem como a forma como as mudanças na concepção de história

provocaram todo um reordenamento epistemológico da Análise do Discurso nos

últimos tempos.

A Análise do Discurso, fundamento teórico desse trabalho, é uma disciplina

que surgiu na França nos finais da década de sessenta do século XX e que se

constituiu numa nova forma de ver a linguagem. Foi dessa época em diante que o

fenômeno linguístico, além de ser estudado em sua imanência e no seu aspecto

estrutural, passou também a ser visto em sua discursividade, ou seja, na sua relação

19

com a realidade sócio-histórica. Dessa forma, estavam lançadas as bases para a

construção de uma teoria materialista da discursividade.

Os estudos em Análise do Discurso se desenvolveram de forma tão

consistente que, na atualidade, o seu objeto de análise, o discurso, ocupa um lugar

central nos estudos da linguagem. Não há qualquer atitude humana que não esteja,

de uma forma ou de outra, articulada a uma prática discursiva. Compreende-se hoje

que o discurso é elemento fundante do homem moderno, uma vez que sua própria

realidade e a forma como ela é entendida pode ser fruto de construções discursivas.

Para levar a bom termo a apresentação desse quadro teórico da AD, a seguir,

se tratará das relações entre discurso e história, se apresentará diferentes leituras

do materialismo histórico, a base epistemológica, a especificidade e se mostrará a

construção e a evolução teórica da disciplina, além das novas tendências que

promoveram o reordenamento epistemológico dessa área de estudo. No conjunto

dessa exposição se buscará, inicialmente, a conceituação das categorias básicas

mais gerais da AD, tais como discurso, sentido, sujeito e condições de produção,

além dos conceitos de enunciado, acontecimento, memória e arquivo, derivados das

contribuições de Foucault e Pêcheux.

A noção de que a matéria, e não o pensamento, pode ser a origem de tudo,

remonta a Grécia clássica e faz-nos lembrar dos filósofos da natureza que, no

século VI a.C.. já procuravam uma explicação material para os fenômenos naturais,

pondo fim ao período mitológico e dando origem à filosofia. Porém, a compreensão

de que a história é o fator que possibilita a materialização de processos e

fenômenos aparentemente abstratos de uma sociedade, foi desenvolvida com mais

evidência a partir das ideias de Karl Marx e Friedrich Engels, que ficou conhecida

como materialismo histórico e se constituiu a partir da concepção marxista de

dialética.

A dialética, forma de compreensão que entende a realidade como algo

essencialmente contraditório e em permanente transformação, pode ser entendida

como um método que busca elementos conflitantes para explicar uma nova situação

decorrente desse conflito; tese e antítese seriam esses elementos permanentemente

contraditórios cujo conflito seria resolvido por um terceiro elemento, a síntese, o qual

depois de surgir, volta a se transformar em uma nova tese dando reinício ao

processo evolutivo contínuo a partir de um novo patamar.

20

O pensamento marxista, rompendo com uma visão idealista milenar, aplicou o

método dialético à analise da história e, dessa forma, deu origem ao que hoje se

conhece como materialismo histórico. Entendido como um conjunto de ideias

filosóficas, políticas, sociais e econômicas, Marx desenvolveu a concepção

materialista da história, afirmando que o modo pelo qual a produção material de uma

sociedade é realizada constitui o fator determinante da organização política e das

representações intelectuais de uma época, dentre as quais, evidentemente está o

fenômeno da linguagem.

Se a realidade não é estática, mas dialética como se vê acima, logo o seu

modo de ser é a contradição permanente. Na proposta de Marx, aplicando-se essa

assertiva ao processo histórico, se constatará que essas contradições são geradas

pela luta de classes que se desenvolve na infraestrutura econômica e influencia

diretamente a superestrutura onde estariam as instâncias jurídicas, políticas e

ideológicas. Desse modo, o movimento da história possui uma base material e

obedece a um processo dialético. De acordo como estágio das contradições de

classes, a relação entre infraestrutura e superestrutura se altera e, como

consequência dessa alteração, mudam-se as leis do Estado, a cultura ganha novas

formas de expressão, a literatura percorre outros estilos, a educação assimila outros

paradigmas, as artes ganham novas formas de expressão e, naturalmente, a

linguagem passa a ser vista fora de sua imanência.

Ao trabalhar os conceitos que propiciaram o surgimento do materialismo

histórico, o marxismo possibilitou uma abordagem que deu caráter científico à

história, vista até então como a simples narração de fatos; ao mesmo tempo,

revolucionou a forma de se interpretar a ação dos homens na história, enriquecendo

o campo do conhecimento com uma nova ciência e a visão dos homens com um

novo projeto filosófico para o mundo: o materialismo dialético.

Ao lado do estruturalismo e da psicanálise, o marxismo foi uma das três

bases epistemológicas que presidiram o surgimento de uma nova forma de ver a

linguagem no final dos anos 60 do século passado. Em um contexto histórico de

grande efervescência, no qual predominou o clima de contestação política e de

incertezas com relação ao futuro da humanidade ante a escalada da guerra fria e no

qual toda uma onda de contracultura alterava radicalmente costumes e paradigmas

21

até então intocáveis, foi o momento ideal para o surgimento de um projeto que se

preocupasse com os usos políticos da linguagem.

A proposta política marxista de transformação revolucionária da sociedade

capitalista gozava de grande prestígio e aceitação nos anos 1960 e serviu de

inspiração para o projeto inicial da Análise do Discurso, um projeto como vimos, de

objetivos políticos posto em prática por Michel Pêcheux e Jean Dubois, dois

militantes do Partido Comunista Francês.

O materialismo histórico, decorrente da proposta marxista, possibilitou o

entendimento de que a linguagem é um produto material dos signos e que estes

signos são entes concretos e dotados de ideologia, os quais são construídos no

fenômeno real das relações sociais. Dessa forma, a ideologia, nessa perspectiva,

não é vista como algo abstrato, mas fruto de um conjunto de práticas que se

materializam na linguagem.

Necessário se faz colocar que o papel da história e da materialidade

discursiva nesse momento fundante da AD teve influência não só nas preocupações

políticas desse novo projeto para a linguagem, como também no interesse em

restaurar as relações entre o linguístico e o não linguístico, campos que foram

radicalmente separados pelo corte saussuriano1. Deve-se admitir que isso não foi

uma tarefa fácil, haja vista o status de ciência que havia sido conferido à linguística.

Sobre tal questão Courtine (2006, p. 41) aponta que a tarefa era

[...] elaborar uma concepção de discurso que fizesse dele um objeto essencial para a compreensão das realidades históricas, um nível de intervenção teórica crucial para quem desejava, ao mesmo tempo, compreender a sociedade e operar a sua transformação.

Mais adiante, esse autor esclarece melhor essas questões relativas à gênese

da Análise do Discurso colocando que

A Análise do Discurso foi, então, o lugar privilegiado de um encontro entre a linguística e história, e isso de duas maneiras. Por um lado ela participou de um exame histórico e crítico dos fundamentos do gesto inaugural de Saussure. Ela pretendia questionar a própria operação de corte e de delimitação do campo da linguística, interpelando a centralidade da disciplina, a partir de sua periferia, lembrando-lhes seus limites e suas insuficiências, tudo o que teria inicialmente negligenciado. Por outro lado,

1O método estruturalista de Ferdinand Saussure baseia-se numa operação de corte que separa

língua (langue) e fala (parole). É o que Castelar de Carvalho (2000) chama de dicotomia básica de Saussure ou simplesmente corte saussuriano.

22

ela pretendeu proceder a uma rearticulação do que havia sido cindido: o sistema linguístico (então concebido como um conjunto de regras sintáticas que determinam as frases, mas também os funcionamentos que se inscrevem numa problemática da enunciação) com as condições históricas da língua em uso (por meio da determinação das condições de produção do discurso) (COURTINE, 2006, p. 41).

O marxismo, que se valendo do materialismo dialético, elevou a história ao

nível de ciência e serviu, ao lado do estruturalismo e da psicanálise, como base

epistemológica da AD, foi revisto por Althusser (2003) numa leitura que viria depois

a sofrer críticas de vários teóricos, dentre os quais o próprio Pêcheux que dele tinha

se valido no momento inicial da AD. Nos anos 1980, começou a ser sentida a

necessidade de mudanças no projeto teórico da AD, conforme nos mostra Silva

(2010, p. 68) quando afirma que Pêcheux, ao estabelecer as bases epistemológicas

de seu projeto em Leitura e memória: projeto de pesquisa, “deixa claro seu

afastamento das posições althusserianas e sua aproximação com a Nova História,

com Bakhtin e com Foucault”.

Era a nova conjuntura política e as novas concepções de história, a essa

altura dos acontecimentos, forçando a necessidade de um redirecionamento teórico

da AD, conforme mostra Courtine (2006, p. 38-39):

E me parece, ainda, que tampouco podemos continuar a celebrar as virtudes da análise do discurso praticada à maneira antiga, no que respeita à aliança que ela desejava realizar entre história e linguística, como se nada tivesse acontecido. Ou seja, como se as transformações sociais, as agitações políticas, as mutações tecnológicas, os desmoronamentos ideológicos que conhecemos num passado recente não tivessem problematizado radicalmente o projeto que era aquele da análise do discurso, a ponto de tornar sua própria existência problemática. É preciso que trabalhemos, desde a metade dos anos 80, numa paisagem em ruínas.

Do fragmento acima é possível se deduzir que o projeto político que inspirou o

surgimento da Análise do Discurso e que promoveu uma reaproximação entre os

fatores linguísticos e históricos precisou, em determinado momento e em face das

grandes transformações históricas e sociais, ser reordenado para assegurar a

vitalidade e manter o interesse pelas investigações em torno da Análise do Discurso.

Era necessário, portanto, levar em conta algumas releituras do materialismo

histórico.

A concepção marxista da história, que foi fundamental para o surgimento da

Análise do Discurso, sofreu várias releituras nos anos subseqüentes, releituras

23

essas que tiveram consequências importantes na redefinição do objeto da AD, bem

como em todo o reordenamento teórico posterior dessa disciplina. Aqui se tratará de

duas releituras que foram marcantes e cuja compreensão se faz necessária: são as

releituras de Althusser nos anos 70 e as de Bakhtin que, apesar de feitas na primeira

metade do século XX, só se tornaram conhecidas no Ocidente nos anos 80 por meio

de Althier Revuz.

Fazendo sua releitura de Marx, Althusser tenta explicar a ideologia, conceito

importante na Análise do Discurso, por meio do seu entendimento de materialismo

histórico. Este teórico promove uma distinção entre uma “teoria das ideologias

particulares” de uma teoria da “ideologia em geral”: a primeira expressaria a luta de

classes na busca pela transformação revolucionária da sociedade ou, do contrário,

pela manutenção do “status quo”; a segunda teoria mostraria o mecanismo

responsável pela reprodução das relações de produção que estariam em todas as

ideologias particulares.

Althusser vale-se da metáfora marxista do edifício social para mostrar como a

noção de materialismo histórico explica o funcionamento da ideologia na linguagem.

Na concepção clássica do marxismo, na base desse edifício, também chamada de

infraestrutura, estariam as relações de produção e a base material do sistema; no

andar de cima, ou seja, na superestrutura, estariam as instâncias políticas, jurídicas

e ideológicas. A partir dessa “engenharia”, deduz-se que a ideologia não é algo

abstrato, mas algo que tem existência real, um conjunto de práticas materiais que

reproduzem as relações de produção geradas na base material do sistema, práticas

essas que voltariam depois à infraestrutura por meio dos aparelhos ideológicos do

Estado: escolas, igrejas, dentre outros, fazendo o sistema circular sobre si mesmo.

Apesar de dar uma grande contribuição teórica ao mostrar que a linguagem é

o lugar privilegiado para a materialização da ideologia, Althusser comete equívocos

em sua teoria dos Aparelhos Ideológicos do Estado, ao sugerir que a ideologia é

uma simples superestrutura, um reflexo mecânico das relações de produção que

estão na base material do sistema. Além disso, outro equivoco Althusseriano é o

sistema de circularidade da ideologia que ele deixa transparecer no funcionamento

do edifício social marxista. Para Althusser, a ideologia que saía da base para a

superestrutura terminava voltando para alimentar a mesma base de onde tinha saído

pela a ação dos aparelhos ideológicos do estado; se assim fosse, estaríamos diante

de uma negação do próprio materialismo dialético, pois, na prática, a ação

24

revolucionária estaria imobilizada numa clara contradição com a proposta política do

próprio marxismo. É por essas e por outras razões que, em fases posteriores da AD,

o projeto Althusseriano sofrerá duras críticas pelo seu suposto caráter reducionista e

mecânico.

Diferentemente de Althusser, a releitura marxista de Bakhtin (1997) aponta

para outros desenvolvimentos teóricos bem mais adequados ao método dialético e

para uma construção bem mais criativa do materialismo histórico. É uma

contribuição que foi produzida nas primeiras décadas do século passado, mas que

devido a uma série de problemas políticos, só se tornou conhecida nos anos 1980.

O filósofo russo traz uma revisão do conceito marxista de ideologia que se contrapõe

ao projeto Althusseriano e mostra o fundamento dialógico da linguagem, bem como

as noções de alteridade e de interação social.

Bakhtin sugeriu que a produção teórica marxista não havia colocado a

ideologia no lugar certo e que lhe tinha dispensado tratamento mecânico ao explicá-

la na relação direta entre infraestrutura e superestrutura. Com essa postura, o

filósofo, diferentemente de Althusser, reler Marx a partir de uma postura crítica que

no princípio desfaz o edifício social marxista, para depois reposicioná-lo, desta feita

ainda mais forte, haja vista entender a linguagem como sendo a própria ideologia e

como sendo algo que participa dos processos de produção tanto da vida material

quanto da vida espiritual. “A superestrutura não existe a não ser em jogo e relação

constante com a infraestrutura, relação essa que é estabelecida e intermediada

pelos signos e por sua capacidade de estar presente necessariamente em todas as

relações sociais” (MIOTELO, 2010, p. 171).

1.1.2 Base epistemológica, especificidade e construção teórica da Análise do

Discurso

A base epistemológica da AD, no momento de seu surgimento, se constituiu a

partir de três ramos do conhecimento que gozavam de grande prestígio, na França e

em toda a Europa, naquele contexto histórico fervilhante do final dos anos sessenta:

o estruturalismo, o marxismo e a psicanálise. Esses três campos do saber se

adaptaram perfeitamente aos estudos da linguagem, naquele momento de muita

efervescência política e contestação, de muita incerteza com relação à paz mundial

25

ante a escalada da guerra fria e de toda uma onda de contracultura que alterou

radicalmente costumes e paradigmas até então intocáveis.

Maldidier (2010) mostra a fundação da AD como fruto do trabalho conjunto de

Jean Dubois e Michel Pêcheux. O primeiro, lexicólogo e marxista, trabalhava as

questões da ciência linguística daquele momento; o segundo, filósofo e também

marxista, estava empenhado com os debates em torno da psicanálise e da

epistemologia. Em suma, dois pesquisadores preocupados com assuntos distintos,

porém unidos em torno do marxismo. E foi justamente a partir desse ponto em

comum que os dois propuseram uma análise de discurso, uma área de estudos que,

nesse momento inicial, se apresentou como um projeto político que tinha por

objetivo estudar as consequências dos usos políticos da linguagem.

O estruturalismo estava em alta pelo fato de ser o método que tinha dado à

Linguística o status de ciência piloto das ciências humanas. Numa época, anos

sessenta, em que ser considerada ciência conferia grande prestígio a qualquer área

de estudos, a Linguística desfrutava de autonomia e se impunha ante as demais

ciências humanas, haja vista poder ser estudada objetivamente por meio do método

estrutural. Foi o corte saussuriano que, priorizando a língua em relação à fala,

apresentou ao mundo acadêmico a realidade sistemática da língua e conferiu

cientificidade aos estudos linguísticos.

O método estrutural ainda contribuiu para um melhor entendimento da noção

de inconsciente da psicanálise, na medida em que Jacques Lacan, um dos mais

célebres seguidores de Freud, passou a defender que o inconsciente se estruturava

como uma linguagem. O sujeito lacaniano, concebido como algo

dessubstancializado, um Outro que reside no vazio de nosso inconsciente, também

foi melhor compreendido a partir do critério de lugar vazio do estruturalismo

linguistico saussuriano.

Outra base epistemológica importante para a construção da AD foi o

marxismo. Tido como um conjunto de ideias filosóficas, políticas, sociais e

econômicas, o marxismo trouxe para a Análise do Discurso a noção de materialismo

histórico, inicialmente aplicada à linguagem por Althusser e depois desenvolvida por

outros teóricos. O materialismo histórico possibilitou o entendimento de que a

linguagem é um produto material dos signos e que estes signos são entes concretos

e dotados de ideologia, os quais são construídos no fenômeno real das relações

sociais. A ideologia, nessa perspectiva, não é vista como algo abstrato, mas fruto de

26

um conjunto de práticas que se materializam na linguagem. Foi também o

materialismo histórico quem deu respaldo à ideia de que o sentido seria produzido

na relação da língua com sua exterioridade, ou seja, no contato da língua com a

história.

Também é salutar reconhecer que a proposta política do marxismo de

transformação revolucionária da sociedade capitalista, ideia muito difundida naquele

contexto histórico, serviu de inspiração para que Pêcheux e Dubois, dois marxistas

militantes, pensassem a AD como um projeto político que tivesse como preocupação

o uso político da linguagem.

Vale ainda ressaltar que a descoberta das investigações sobre linguagem

realizadas pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin, ainda na primeira metade do século

XX, e trazidas para a Análise do Discurso nos estudos de Althier Revuz na década

de oitenta, promoveram uma aproximação ainda mais fundamentada entre o

materialismo histórico e dialético do marxismo e os pressupostos da Análise do

Discurso.

O terceiro elemento do tripé epistemológico da Análise do Discurso, peça

teórica importante desse momento de fundação da Disciplina, é a psicanálise

lacaniana, especialmente no que diz respeito à polêmica questão da subjetividade

em Análise do Discurso, conforme se pode constatar em Mussalin & Bentes (2001,

p. 107):

A partir da descoberta do inconsciente por Freud, o conceito de sujeito sofre uma alteração substancial, pois seu estatuto de entidade homogênea passa a ser questionada diante da concepção freudiana de sujeito clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente. Lacan faz uma releitura de Freud recorrendo ao estruturalismo linguistico, mas especificamente a Saussure e a Jakobson, numa tentativa de abordar com mais precisão o inconsciente, muitas vezes tomado como uma entidade abissal.

Fazendo uma analogia com o estruturalismo saussuriano, Lacan diz que o

inconsciente se estrutura como uma linguagem, além disso, a psicanálise entende o

sujeito como algo dessubstancializado. Dessas duas constatações derivam

implicações importantes para a noção de subjetividade, tida, a partir dessa máxima

lacaniana, como algo que se define em função do modo como o sujeito se relaciona

27

com o inconsciente. Nessa linha de raciocínio, o critério saussuriano de lugar vazio2

vai explicar esse Outro que está no inconsciente, em relação a quem o sujeito se

define.

A especificidade da AD, como acontece com a especificidade de qualquer

disciplina, é aquela condição que faz de um determinado recorte da realidade, uma

área digna de estudos, ou seja, aquilo que confere a esse campo de investigações

uma preocupação e uma abordagem peculiar.

Em se tratando da Análise do Discurso, a sua especificidade, ou seja, aquilo

que a torna uma disciplina digna de ser estudada, é a preocupação com os efeitos

de sentido que são gerados a partir da relação dos discursos com as suas condições

de produção, ou melhor, com a exterioridade histórica que, num primeiro momento

parece está fora, mas, na verdade, é fator constitutivo dos discursos.

Com base nesse conceito de especificidade da AD entendemos, por exemplo,

como é que um discurso proferido numa certa situação causa um tipo de efeito de

sentido, ao passo que, o mesmo discurso, colocado em outra situação vai causar um

efeito diferente. Pode-se apresentar como exemplo a oração do Pai nosso que em

um velório tem o sentido de tristeza, enquanto esse mesmo discurso numa

solenidade de colação de grau tem o sentido de alegria.

Ao falar de especificidade da AD, convém registrar que se trata de uma área

de estudos que se situa numa faixa limítrofe com outras áreas das ciências humanas

e que essa proximidade fará surgir vertentes diferentes da AD em função da

disciplina vizinha com a qual o contato seja privilegiado; se a interdisciplinaridade

prioritária for com a história se terá a Análise do Discurso de linha francesa, porém,

se o contato maior for com a sociologia, se terá a Análise do Discurso de linha

americana ou anglo-saxã, por exemplo.

De acordo Mussalin & Bentes (2001, p. 113) “como decorrência dessa

fronteira instável sobre a qual se situa a Análise do Discurso e em função da

disciplina vizinha com a qual ela privilegia o contato, teremos diferentes Análises de

Discurso”.

A Análise do Discurso francesa e a Análise do discurso americana, ou anglo

saxã, como representantes das duas principais vertentes dessa área de estudos,

apresentam diferenças de características bem marcantes em suas principais

2Saussure mostra que o sistema linguistico é definido a partir de quatro critérios: diferencial,

relacional, posicional e lugar vazio (CASTELAR DE CARVALHO, 2000).

28

categorias de análise. Para a vertente francesa, por exemplo, o sujeito é uma

posição ocupada por quem se credencia historicamente para tal função e o discurso

é a materialização histórica da ideologia e prevalece uma noção de poder que varia

da concepção marxista à foucaultiana; já, para a vertente anglo-saxã, o sujeito é um

ser psicologizado e intencional e o discurso é uma prática social e a noção de poder

é substituída pela noção gramsciana de hegemonia. No fundo, a diferença entre

essas duas vertentes é motivada por uma querela de cunho epistemológico: de um

lado a história francesa das ciências e de outro, o realismo crítico da escola de

Frankfurt.

Vale salientar que, na presente dissertação, optou-se, em matéria de

referencial teórico, pela Análise do Discurso de linha francesa, conforme já colocado

anteriormente, haja vista a perfeita adequação dos dispositivos teóricos dessa linha

aos procedimentos de análise característicos do método arqueológico de inspiração

foucaultiana que adotamos na pesquisa.

Tendo partido de uma base epistemológica que se respaldou no

estruturalismo, no marxismo e na psicanálise, a AD, diferentemente da linguística

praticada até finais de 1960, pretendia investigar aquilo que havia sido

desconsiderado na dicotomia básica de Saussure e, para isso, colocava o discurso

como centro de seus estudos, o que iria exigir investigações acerca da subjetividade

e da ideologia. Foram, portanto, preocupações desse nível que balizaram toda a

construção teórica da AD nos primeiros momentos dessa disciplina.

A AD, logo na sua gênese, teve que enfrentar um conflito teórico, travado

exatamente entre aqueles que são considerados os fundadores dessa forma de

abordar a linguagem: Jean Dubois e Michel Pêcheux. No entendimento do primeiro,

um lexicólogo, a Análise do Discurso era fruto de uma evolução natural dos estudos

linguísticos, os quais teriam se iniciado com a frase, depois foram para o texto e,

naquele momento estaria evoluindo para o discurso; por outro lado, para o segundo

teórico, um filósofo, a Análise do Discurso constituía uma ruptura com a linguística,

colocava as investigações sobre linguagem num outro patamar e, no fundo,

significava o surgimento de uma nova disciplina.

Mussalin & Bentes (2001, p. 105) colocam que “a instituição da AD, para

Pêcheux, exige uma ruptura epistemológica, que coloca o estudo do discurso num

outro terreno em que intervêm questões teóricas relativas à ideologia e ao sujeito”.

29

Observando, hoje, os caminhos que a AD tomou a partir desse conflito

epistemológico, pode-se constatar que, já nesse momento inicial da teoria do

discurso, a proposta de ruptura de Pêcheux prevaleceu sobre o pretenso progresso

natural a partir do léxico defendido por Dubois.

A ideologia, um conceito hoje periférico em Análise do Discurso, mas que nas

primeiras fases dessa teoria era central, foi tratada inicialmente, conforme já

mencionado, por Lois Althusser. E a contribuição que esse estudioso traz para a

teoria discursiva, nesse aspecto, está no fato de ter apresentado a materialidade

histórica desse conceito, fato que pode ser notado na formulação dos aparelhos

ideológicos do Estado, bem como ao mostrar que a linguagem é o lugar privilegiado

para a materialização da ideologia. Vale ressaltar que, em fases posteriores da AD,

o projeto althusseriano sofrerá muitas críticas por supostamente reduzir

mecanimente o aspecto ideológico a uma mera superestrutura.

Veremos agora a significativa participação de Mikhail Bakhtin para a Análise

do Discurso, contribuição teórica que chegou tardiamente ao Ocidente, por volta da

década de 80, pelos trabalhos de Althier Revuz. O filósofo russo traz uma revisão do

conceito marxista de ideologia que desmonta o projeto Althusseriano e mostra o

fundamento dialógico da linguagem, as noções de alteridade e de interação, bem

como a heterogeneidade como fator constitutivo dos discursos.

Em Bakhtin, a ideologia, não é uma “falsa consciência” e nem uma mera

superestrutura, reflexo mecânico da reprodução das relações de produção, como se

viu na leitura de Marx feita por Althusser. A ideologia é construída na relação

dialética entre o que ele chamou de “ideologia do cotidiano” e “ideologia oficial” e é

entendida como o conjunto de interpretações da realidade. Sendo assim, “Logo se

vê que não cabe a possibilidade de tratar a ideologia como falsa consciência, ou

simplesmente como expressão de uma ideia, mas como a da expressão de uma

tomada de posição” (MIOTELLO, 2010, p. 169).

Outra importante contribuição bakthiniana é a ideia de dialogismo como

fundamento básico e modo de ser da linguagem. Essa concepção traz a

necessidade do outro para o discurso, mostra a heterogeneidade discursiva e

apresenta a interação social como a natureza real do fenômeno linguistico. O

dialogismo abre espaço, inclusive, para a compreensão de interdiscurso, ideia que

sob essa denominação foi trabalhada pelos analistas franceses antes mesmo de se

conhecer, no Ocidente, as investigações filosóficas de Bakhtin.

30

Como, pelo que se deduz da leitura de Bakhtin, não é possível ter acesso

direto aos fatos, fenômenos e objetos do mundo, logo, toda a realidade que nos

chega se apresenta semioticamente e é mediada pela linguagem. Sendo assim,

nossos discursos, constantemente, dialogam com outros discursos para construir a

realidade em que vivemos. É assim que Bakhtin apresenta o dialogismo como

fundamento da linguagem e, de quebra, ainda dar suporte para que os teóricos do

discurso façam a associação entre dialogismo e interdiscursividade.

Porém, uma contribuição decisiva e significativa para a teoria do discurso foi a

do filósofo francês Michel Foucault. Para Costa (2005, p. 24) a segunda fase da AD

“incorporou de modo definitivo e irreversível toda a força do pensamento”

foucaultiano e mostrou o papel desestabilizador deste teórico, o que a bem da

verdade, se refletiu nos momentos posteriores da teoria do discurso, sendo,

inclusive, responsável por importantes pesquisas nessa área na atualidade.

Vale salientar que as contribuições de Foucault foram trazidas para a Análise

do Discurso graças aos trabalhos de Jean-Jacques Courtine (2009), a partir de sua

obra Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos que,

além disso, desenvolve a noção de corpus e, devido a esse conceito, abre a AD

para outras discursividades, bem mais do que o mero discurso político com o qual se

preocupou em seus primeiros momentos.

Na obra de Foucault, especialmente em A arqueologia do Saber e A ordem do

discurso, o filósofo francês elabora suas importantes contribuições teóricas para a

AD. A partir da noção de Formação Discursiva, derivam os conceitos de enunciado,

arquivo, acontecimento, interdiscurso, dentre outros.

Em A arqueologia do saber Foucault (2005) vai colocar que o discurso é uma

prática que provém da formação dos saberes e que se articula com as práticas não

discursivas, que os dizeres e fazeres se inserem em formações discursivas e o

enunciado é um gesto, um acontecimento que se liga a uma memória, possui uma

materialidade, é único, está aberto à repetição e se liga ao passado e ao futuro.

Em A ordem do discurso, Foucault (2003, p. 9) mostra que

[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

31

A construção teórica da AD mostra, portanto, que depois de um rompimento

epistemológico com a linguística, colocando esse campo de estudos num outro

patamar que envolve novas concepções de história e de sujeito, a AD incorporou as

contribuições de Pêcheux e as formulações de Courtine que trouxeram,

definitivamente, as teorias de Bakhtin e principalmente de Foucault para a teoria do

discurso.

1.1.3 A evolução teórica e o reordenamento epistemológico da Análise do Discurso

A maioria dos teóricos considera que a Análise do Discurso, no seu processo

de afirmação, passou por três fases de seu desenvolvimento teórico: AD-1, AD-2 e

AD-3. A primeira fase da AD (AD-1) está ligada ao momento de fundação dessa

teoria, no qual prevalece a ideia de máquina discursiva. O objeto de estudo era o

discurso produzido nessas máquinas, como era o caso do discurso do Partido

Comunista; tratava de um sujeito completamente assujeitado a uma ideologia e de

um discurso produzido em condições de produção mais estáveis e posições

ideológicas pouco conflitantes, sendo, portanto, um discurso estabilizado, de

pequena carga polissêmica e, por conseguinte, prevalecia o silenciamento do outro.

Na segunda fase da AD (AD-2) entra em cena o que Costa (2005, p. 23)

chama de “papel desestabilizador de Michel Foucault” e o conceito de Formação

Discursiva, desenvolvida por esse filósofo. O objeto de análise agora são as FDs; o

sujeito passa a ser visto como uma função no interior dessas formações e o discurso

produzido em condições de produção menos estáveis e posições ideológicas mais

conflitantes é menos estabilizado, tem maior variação de sentidos e o Outro já

começa a ter voz.

Na terceira fase prevalece e noção de interdiscurso e a AD (AD-3) atinge

elevado grau de heterogeneidade e de carga polissêmica. Tratando dessa etapa na

evolução teórica da Análise do Discurso, Mussalin & Bentes (2001, p. 120) coloca

que

Na AD-3, por sua vez, adota-se a perspectiva segundo a qual os diversos discursos que atravessam uma FD não se constituem independentemente uns dos outros para serem, em seguida, postos em relação. Será a relação interdiscursiva, portanto, que estruturará a identidade das FDs em questão. Em decorrência dessa nova concepção do objeto de análise – o

32

interdiscurso - o procedimento de análise por etapas, com ordem fixa, como afirma Pêcheux (1983), explode definitivamente.

O sujeito, nessa terceira fase, influenciado pela psicanálise lacaniana, é

dividido, clivado e determinado pela sua natureza inconsciente. Os discursos são

analisados, agora, no âmbito das variadas esferas da linguagem, como por exemplo,

os discursos da mídia, da literatura, da produção científica ou das conversas

informais; as práticas discursivas são produzidos e circulam em condições de

produção muito complexas e posições ideológicas altamente conflitantes,

possibilitando que o Outro – o interdiscurso – fale mais que o próprio sujeito.

Houve um momento, em meados da década de 1980, entre a segunda e

terceira fase da Análise do Discurso em que, segundo Courtine (2009), os

estudiosos, ante as grandes mudanças operadas na conjuntura política e intelectual,

bem como em função das novas contribuições teóricas que iam surgindo, viram a

necessidade de darem um novo direcionamento epistemológico a AD. De acordo

com Silva (2010, p. 67) “Michel Pêcheux, um dos fundadores da AD, depois de

entrar em contato com as teorias de Foucault, por meio dos trabalhos de Courtine,

inicia todo esse processo de redefinição”.

É a partir desse momento que as teorias de Michel Foucault começam a ter

um papel fundamental para a Análise do Discurso. A concepção de História em

Foucault e a sua contribuição para a teoria da discursividade em A arqueologia do

saber (2005), de acordo com o que nos orienta Gregolin (2004) em seu artigo Michel

Foucault: o discurso nas tramas da história são duas pistas para se compreender a

influência das teorias foucaultianas na Análise do Discurso, teorias que, sem

nenhuma sombra de dúvidas, ocupam espaço central em todo o processo de

reordenamento da AD, empreendimento bancado por Pêcheux e por outros teóricos

que ainda hoje se dedicam a essa tarefa.

Ao tratar da concepção de História em Foucault pode-se dizer que este

filósofo revolucionou este conceito, o que trouxe significativas implicações para o

campo teórico da AD. A partir de seu diálogo com Nietzsche e com as teses da Nova

História, propôs uma história genealógica, uma espécie de “história-problema” que

critica os fundamentos positivistas da História tradicional, desconstruindo noções até

então indiscutíveis, tais como continuidade, causalidade e a crença na verdade dos

documentos.

33

A História, nessa perspectiva, deixa de ser um simples relato de fatos e passa

a ser interpretação e questionamento. Só para se ter uma ideia do que isso significa,

convém lembrar o pensamento de Nietzsche para quem “a história tradicional

sempre foi uma interpretação violentamente imposta” (GREGOLIN, 2004, p. 164). A

História tradicional, em sua linearidade, conforme aponta Gregolin (2004, p. 165) “é

uma forma de proteger a soberania do sujeito e as figuras gêmeas da antropologia e

do humanismo”; além disso, a ideia equivocada de que os documentos conteriam

uma verdade inquestionável, “evidencia o velho sonho do historiador positivista, que

era assistir passivamente à produção ‘objetiva’ da história pelos documentos”, de

acordo com Le Goff (apud GREGOLIN, 2004, p. 166).

A concepção de História desenvolvida por Foucault (2005) vai desconstruir a

ideia de verdade absoluta e mostrar que, um mesmo fato histórico, pode ser contado

de diversos modos, de acordo com a interpretação e, obviamente, com os interesses

dos poderes. Essa ideia vai ter implicações diretas na teoria do discurso, pois, em

última instância vai propor que a realidade seja moldada pelas práticas discursivas,

ou seja, vai sugerir que as coisas existem porque são discursivizadas e a partir do

momento em que entram na ordem do discurso.

No tocante à contribuição de Foucault para a teoria da discursividade

encontrada em A arqueologia do saber, podem-se elencar as noções de enunciado,

arquivo e a acontecimento, as quais associadas à ideia de FD, teorizada em

momento anterior, bem como em aliança com os pressupostos da História

genealógica por ele desenvolvidos, vão desencadear importantes mudanças de

rumo teórico da AD.

Essas mudanças apontaram em duas direções e, parafraseando Silva (2010),

a primeira direção seria a reviravolta observada na relação do historiador com os

documentos históricos, o que influenciou, inclusive, a terceira geração da Nova

História; A segunda seria a introdução da noção de corpus que ampliou o horizonte

de análise da AD para contemplar outras discursividades, tirando-a do âmbito do

discurso meramente político. Esse último direcionamento, a propósito, é tido por

muitos teóricos como sendo aquilo que tem garantido a sobrevivência da AD como

um importante e instigante campo de estudos até os dias de hoje.

As categorias arqueológicas foucaultianas de enunciado e arquivo são

fundamentais para compreender o formato que a Análise do Discurso assumiu a

partir desse novo reordenamento epistemológico. O enunciado, cuja natureza nem é

34

totalmente linguística e nem totalmente material, é um domínio de memória, um

elemento do arquivo, a unidade elementar do discurso; já o arquivo em Foucault,

diferente da sua concepção de senso comum, não é uma coleção de documentos

guardados como relicário, e sim um sistema de enunciabilidade que rege o

surgimento dos enunciados como acontecimentos singulares, ou seja, como funções

de caráter histórico.

Ao entrar em contato com o arcabouço teórico foucaultiano Pêcheux inicia o

que ficou conhecido como a terceira fase da Análise do Discurso. Conforme mostra

Silva (2008) em seu artigo De como se inscreve o acontecimento na estrutura: em

foco a relação intra e interdiscursiva ou as materialidades do sentido, o conceito de

FD formulado por Foucault funciona como ferramenta para Pêcheux desenvolver

sua explicação para a materialidade do discurso, a partir do interdiscurso. É

teorizando sobre o interdiscurso que Pêcheux percebe as contradições que se dão

no âmbito das FDs, abandona a ideia de homogeneidade dessas formações e,

apontando para uma FD heterogênea traz consequências, inclusive, para o campo

da subjetividade, passando a entender que o sujeito também é heterogêneo.

Incremento significativo para o processo de reordenamento epistemológico da

AD pode ser observado na articulação entre a noção de arquivo em Foucault com a

ideia de memória em Pêcheux. De acordo com Silva (2010, p. 67) é partindo dessa

articulação que a “AD se vale da história para explicar a produção de efeitos de

sentido, ou dito em outras palavras, como se pode descrever/interpretar a

historicidade do discurso”.

A parcela da memória que entra no discurso passa pelas malhas do arquivo

de uma época. Como o arquivo é quem rege o surgimento do enunciado na sua

condição de acontecimento, ou seja, na sua historicidade, logo, é o arquivo que

mostra as práticas discursivas que se materializam no corpus. A partir dessa

formulação, pode-se entender como a memória não pode se desvencilhar do arquivo

e como esses dois conceitos – memória e arquivo - devidamente articulados

possibilitam a leitura do corpus. Foi a noção de corpus de Courtine que ampliou o

campo de ação da Análise do Discurso e que junto com as contribuições

arqueológicas de Foucault levaram Pêcheux a promover um salto epistemológico da

AD, garantindo, em outro patamar, a afirmação na Análise do Discurso como a teoria

materialista da discursividade.

35

Foi exatamente a partir da aproximação de Pêcheux com a releitura marxista

de Bakhtin e com as contribuições de Foucault no campo da história, do discurso e

da filosofia, que se promoveu todo um redimensionamento da Análise do Discurso. A

noção de corpus de Courtine, os conceitos foucaultianos de formação discursiva,

enunciado, arquivo e acontecimento, fizeram Pêcheux se afastar do projeto

Althusseriano e, desenvolvendo as noções de memória e interdiscurso, fez a Análise

do Discurso avançar para uma nova fase que deu sobrevida a essa disciplina e a fez

tornar-se uma interessante área de estudos até os dias atuais.

1.2 ARQUEOLOGIA E DESCRIÇÃO ARQUEOLÓGICA

1.2.1 A Análise do Discurso na perspectiva arquegenealógica

Tendo em vista o marco teórico que foi levado em consideração, bem como

os objetivos gerais e específicos que pleiteia, pode-se dizer que a presente

Dissertação de Mestrado foi desenvolvida a partir de uma pesquisa arqueológica de

orientação foucaultiana com base em procedimentos técnicos de natureza

bibliográfica e documental, tendo como guia o método arqueológico.

O método arqueológico desenvolvido por Foucault renuncia as verdades

preestabelecidas e inquirições sobre as origens e causas, preferindo investigar

sobre os sistemas de aparição dos enunciados, os arranjos históricos determinados

por relações de saber/poder que fazem aparecer um enunciado e não outro em uma

dada época. Por essa via, um objeto é investigado não pela ordem cronológica do

seu desenvolvimento, mas pela arqueologia do seu significado, pelas

descontinuidades das suas estruturas sociais. A arqueologia trabalha com o arquivo

de uma época, isto é, o conjunto de enunciados efetivamente ditos em sua

dispersão e regularidade. Por isso, o método considera a relação dos enunciados

numa rede de memória, “entendendo que um corpus não pode ser lido fora do

arquivo do qual faz parte sob pena de se perder a interdiscursividade, a historicidade

dos sentidos” (SILVA, 2010, p. 75).

A descrição feita pelo método arqueológico, de acordo com a teoria

foucaultiana, contempla inicialmente uma diferenciação entre a concepção de

arqueologia e os métodos tradicionais de investigação, define as noções de

regularidade e originalidade, estabelece o papel das contradições, define o status de

36

comparação, diferencia mudança de transformação, além de mapear o lugar do

conhecimento nos domínios do saber. Partidária de uma história problema, a

descrição arqueológica se afasta da noção de linearidade histórica, rompendo com

os conceitos de início, fim, continuidade e totalização.

Para entender a descrição arqueológica é preciso assimilar as diferenças

dessa nova prática investigativa em relação às práticas tradicionais de pesquisa. A

arqueologia trata o discurso não como documento, ou seja, não para definir aquilo

que se expressa ou que se omite nos discursos, mas procura definir o próprio

discurso na sua condição de monumento. A arqueologia não procura encontrar a

transição que liga um discurso aos fatos que o antecedem, envolve ou sucede; sua

pretensão é definir os discursos em sua especificidade, mostrar porque se opta por

um enunciado e não outro, bem como quais são as condições históricas de seu

aparecimento.

O método arqueológico não vê o surgimento de uma obra como um momento

mágico da criação. O sujeito criador não é, para a arqueologia, a razão de ser de

uma obra. A criação é regida pelas regras sociais que definem as práticas

discursivas e que regulam os enunciados e condicionam os sujeitos. São essas

regras e, por conseguinte essas práticas, que comandam o ato criador.

A arqueologia não procura, num discurso, buscar a essência do que foi dito,

pensado ou sugerido. Prioriza o que está posto a partir da exterioridade sem a ilusão

de buscar a gênese do discurso. Como diz Foucault (2005, p. 158): “Não é nada

além e nada diferente de uma reescrita: isto é, na forma mantida da exterioridade,

uma transformação regulada do que já foi escrito. Não é o retorno ao próprio

segredo da origem: é a descrição sistemática de um discurso-objeto”.

Como se vê, a arqueologia não trata os discursos como um campo dividido

entre o novo e o velho, o inédito e o repetido, o original e o tradicional. Uma mesma

coisa dita em épocas diferentes, mesmo que seja repetida com as mesmas palavras,

não é o mesmo acontecimento discursivo. A arqueologia trata a questão da

originalidade e regularidade de modo diferenciado, uma vez, que nesse método, a

rigor, não há uma diferença entre enunciados criadores responsável por ideias

inéditas e enunciados imitadores que simplesmente repetem as informações.

Do ponto de vista arqueológico prevalece a regularidade dos enunciados

sobre a noção de originalidade, uma vez que nada é pura criação como se fosse

37

fruto do um estalo de uma mente brilhante que quebrou a regularidade dos

condicionamentos históricos. Para Foucault (2005, p. 166) “as regras jamais se

apresentam nas formulações; atravessam-nas e constituem para elas um espaço de

coexistência; não podemos, pois, encontrar o enunciado singular que as articularia”.

A arqueologia considera não ser correto abolir as contradições, tornar tudo

coerente e coeso e buscar uma unidade oculta que torne o discurso mais

uniformizado. Nessa perspectiva, segundo Foucault (2005, p. 170):

A contradição é a ilusão de uma unidade que se oculta ou que é ocultada: só tem seu lugar na defasagem existente entre a consciência e o inconsciente, o pensamento e o texto, a idealidade e o corpo contingente da expressão. De qualquer forma, a análise deve suprimir, sempre que possa a contradição.

Do ponto de vista arqueológico, as contradições são elementos que nem

devem ser eliminados e nem destacados, em outras palavras, são objetos que

devem ser descritos. Desse modo, a arqueologia trata as contradições

diferentemente do que faz, por exemplo, o método dialético que, além de ver nas

contradições um princípio geral de organização da natureza e dos fenômenos, ainda

prega a sua superação pela síntese. Diferente também dos métodos de inspiração

positivista que defende a explicação dos efeitos pelo conhecimento das causas.

A análise arqueológica trabalha com um tipo de contradição bem peculiar: um

modelo que, ao mesmo tempo, nega e afirma uma mesma proposição, com o

objetivo de manter o discurso como um objeto que tem na contradição um elemento

constitutivo, excluindo na prática, a ideia de uma contradição como princípio geral e

natural.

A análise arqueológica descreve as formações discursivas comparando-as e

opondo umas às outras simultaneamente; trata-se de uma comparação que não

unifica, pelo contrário tem um efeito multiplicador. Falando da sua maneira particular

de fazer comparações, Foucault (2005, p. 177) explica o procedimento do método

arqueológico ao dizer que

Bem diferente, ainda nisto, das descrições epistemológicas ou “arquitetônicas” que analisam a estrutura interna de uma teoria, o estudo arqueológico está sempre no plural: ele se exerce em numa multiplicidade de registros; percorre interstícios e desvios; tem seu domínio no espaço em que as unidades se justapõem, se separam, fixam suas arestas, se enfrentam, desenham entre si espaços em branco.

38

A história tradicional mostra os fatos sempre os ligando a outros fatos que lhe

são precedentes, procurando encontrar semelhanças entre eles, vias que

relacionam uns com os outros, enfim, buscando invariavelmente laços de

continuidade. A análise arqueológica faz o contrário: procura exatamente romper

essas ligações e realçar o papel das diferenças, valorizando as descontinuidades. A

arqueologia não vê nas diferenças um problema e sim um objeto que vai ser alvo de

sua descrição e não um obstáculo a ser superado. Por se colocar dessa forma, há

quem acuse a arqueologia de ser um método paradoxal. Foucault (2005) vai mostrar

que, se há paradoxo na análise arqueológica isso está no fato desta análise não

reduzir as diferenças, invertendo, assim, os procedimentos habituais. A esse

respeito o filósofo argumenta que a arqueologia “não tem por projeto superar as

diferenças, mas analisá-las, dizer em que exatamente consistem e diferenciá-las”

(FOUCAULT, 2005, p. 192).

Essa atitude coloca o analista cara a cara com os problemas a serem

enfrentados, uma vez que nada, na descrição arqueológica, pode ser jogado para

debaixo do tapete. E muito menos se cria formulações artificiais a título de princípios

gerais que resolvam os problemas apenas para dar uma satisfação, ou seja,

utilizando máscaras. A arqueologia, termo emprestado de outras áreas do

conhecimento, como o próprio nome diz, revira os objetos para melhor descrevê-los

e explicá-los.

Ao tratar de mudança e transformação, a arqueologia propõe substituir a

referência indiferenciada à mudança pela análise das transformações (FOUCAULT,

2005), em outras palavras, a arqueologia mostra que a mudança nada mais é do

que o resultado de uma série de transformações e que, portanto, não há mudança

que caia do céu.

Quando trata das relações entre o saber e a ciência, a descrição arqueológica

vai mostrar que todo saber é formado nas práticas discursivas, entretanto, o saber

não é simplesmente a soma do que já foi dito, mas acima de tudo, a forma como um

novo enunciado se integra ao que já foi dito. É nesta perspectiva que o saber se

transforma em ciência.

39

A questão da subjetividade ocupa um papel central na compreensão do que

seja a descrição arqueológica. Explicando melhor essa questão Foucault (2005, p.

107) mostra que

Não é preciso, pois, conceber o sujeito do enunciado como idêntico ao autor da formulação, nem substancialmente, nem funcionalmente. Ele não é, na verdade, causa, origem ou ponto de partida do fenômeno da articulação escrita ou oral de uma frase; não é, tampouco, a intenção significativa que, invadindo silenciosamente o terreno das palavras, as ordena como o corpo visível de sua intuição; não é o núcleo constante, imóvel e idêntico a si mesmo de uma série de operações que os enunciados, cada um por sua vez, viriam manifestar na superfície do discurso. É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes; mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia – ou melhor, é variável o bastante para poder continuar, idêntico a si mesmo, através de várias frases, bem como para se modificar a cada uma.

Depreende-se do fragmento acima que, na visão foucaultiana, o sujeito não é

o autor original dos enunciados e nem a instância fundadora dos significados e sim

uma posição que pode ser ocupada por quem esteja historicamente credenciado

para tal.

Na perspectiva foucaultiana, o discurso é visto como um objeto cuja

interpretação pode ser feita através de investigações de cunho arqueológico e

genealógico. No método arqueológico Foucault procura compreender o discurso

pela análise dos saberes, uma vez que não há saber sem uma prática discursiva e

nem há prática sem saber. Por sua vez, na genealogia, o discurso assume a sua

dimensão política, sendo apresentado como algo que, ao mesmo tempo, é

instrumento e efeito do poder. Em outras palavras, quando possibilita o exercício do

poder, o discurso é seu instrumento, ao passo que quando é produzido pelo poder é

seu efeito. Sendo o espaço para onde convergem saber e poder, o discurso, a partir

de uma compreensão foucaultiana, pode ser analisado numa perspectiva

arquegenealógica.

Para Foucault não interessa a noção de discurso como expressão das ideias,

tal como faz os estudos da linguagem. O que interessa são as condições de

possibilidade para a efetivação dos discursos, ou seja, a investigação das formações

discursivas. A preocupação, nesse caso, é saber o que faz com que um determinado

discurso seja aceito como verdadeiro e não outro em seu lugar. Enquanto a

arqueologia descreve o discurso para desnudar as regras que condicionam seu

40

aparecimento, a genealogia se coloca como uma forma de resistência contra os

discursos que se apresentam como verdadeiros em uma determinada conjuntura

sócio-histórica.

O que torna particular a abordagem que Foucault faz do discurso é a

teorização que ele apresenta acerca da existência de uma ordem que constitui os

saberes em cada época, ordem essa que é condição de possibilidade para o

surgimento desses saberes e que determina o que pode ser pensado e o que pode

ser dito. Todo saber, seja ele científico ou não, só aparece em determinada época

histórica porque há essa ordem anterior que o torna possível. Essa ordem anterior

não pode ser confundida com a noção de a priori em seu sentido positivista, ou

como um a priori metafísico, fundante atemporal do saber, mas como aquele dotado

de historicicidade que se modifica a cada nova época histórica.

O método arqueológico busca desvendar e descrever as regras que

possibilitam os discursos e como estes discursos produzem as coisas de que falam.

Nesse sentido, não se deve “mais tratar os discursos como conjuntos de signos

(elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como

práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2005,

p. 55).

Na obra Arqueologia do saber Foucault (2005) vai mostrar que a Análise do

Discurso deve romper com a ideia de que o discurso possui uma origem

fundamental e uma continuidade. Sem dúvidas, é uma tentativa de afastar o método

arqueológico da tradição fenomenológica que considera o autor como centro e

orígem de tudo. Na visão foucaultiana, não interessa saber quem é o autor de um

discurso e nem qual é a sua orígem, mas o que faz dele um discurso de verdade

quando é proferido e as regras que possibilitam o seu acontecimento.

Foucault descarta as formas de pensamento que tratam o discurso como a

“[...] infinita continuidade de um discurso e sua secreta presença no jogo de uma

ausência sempre reconduzida” (FOUCAULT, 2005, p. 28). Nesse sentido, confronta

com toda uma tradição da história do pensamento porque vai abordar o discurso

como descontinuidade, em outras palavras, vai analisá-lo em sua dispersão e

regularidade. Apesar de assim se posicionar, Foucault compreende o discurso na

sua condição de existência, segundo as regras que tornou possível o seu

aparecimento. É o que se pode constatar quando afirma que “é preciso estar pronto

41

para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa

pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser

repetido, sabido, esquecido, transformado [...]” (FOUCAULT, 2005, p. 28).

O método arqueológico, a partir desta concepção, investiga o objeto discurso

por meio de uma análise que não procura encontrar princípios de unidade que

possam associar um discurso a outro, mas como uma dispersão, ou seja, numa

iniciativa que procura individualizá-lo para descrevê-lo em sua regularidade. De

acordo com Machado (1981, p. 162) “A descrição procurará estabelecer

regularidades que funcionem como lei da dispersão. Investiga-se a possibilidade de

estabelecer sistemas de dispersão entre os elementos do discurso, o que significa

buscar uma forma de regularidade”.

Se para ter o discurso como objeto de estudo a ser analisado é preciso

individualizá-lo em sua condição material de acontecimento, necessário se faz então

submetê-lo a uma operação que promova sua passagem da disperssão à

regularidade, ou seja, para analisá-lo é preciso inserí-lo numa FD. E a descrição de

uma formação discursiva se faz a partir da compreensão do que seja um saber, até

porque conforme Foucault (2005, p. 205) “[...] toda prática discursiva pode definir-se

pelo saber que ela forma”. O que o método arqueológico faz é descrever o discurso

como algo considerado verdadeiro e tem significado no âmbito das condições que o

tornaram possível.

Em A ordem do discurso (2003), obra que opera a transição entre as fases

arqueológica e genealógica de Foucault, o discurso aparece relacionado ao poder e

ao desejo. No tocante ao desejo, o discurso não é apenas aquilo que o manifesta e

sim objeto do desejo. No que diz respeito ao poder, o discurso não é apenas o que

traduz as lutas, mais aquilo pelo que se luta, ou seja, o discurso é o próprio poder.

Desse modo, necessário se faz considerar o discurso nas suas condições de

produção, submetido e limitado por procedimentos de controle e delimitação. Em A

ordem do discurso, esse momento de transição entre a arqueologia e a genealogia,

Foucault passa a admitir que a oposição entre o verdadeiro e o falso deve ser

considerada como um sistema de exclusão de caráter histórico e não simplesmente

como uma construção discursiva, da forma como aparece na arqueologia. Há em

todo discurso uma vontade de verdade que ao promover a diferença entre o

verdadeiro e o falso coloca como verdadeiro aquilo que é da sua vontade.

42

No que diz respeito ao método genealógico, este se apresenta como uma

história das condições políticas de possibilidade do discurso. Assim, como o saber

se manifesta em todo discurso, a genealogia trata de estabelecer a relação entre

saber e poder. Acerca da relação entre saber e poder Foucault diz que “Não é

possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não

engendre poder” (FOUCAULT, 2011, p. 142). A genealogia mostraque a relação

entre discurso e poder se dá de modo que um depende do outro, pois, o discurso é

ao mesmo tempo instrumento e consequencia de poder.

Em síntese, pode-se dizer que, na abordagem arqueológica, Foucault, apesar

de se afastar de toda interpretação que procura encontrar uma origem secreta do

discurso, de toda e qualquer concepção ideológica e da ideia de um autor que seria

a fonte de todos os significados, ele compreende que há algo de silencioso no

discurso e que precisa ser determinado. “Não existe um só, mas muitos silêncios e

são parte integrante das estratégias que apóiam e atravessam os discursos”

(FOUCAULT, 1988, p. 30). Na genealogia, o discurso como objeto de análise é

indispensável para quem quer compreender em que campo de relações entre saber

e poder está inserido um sujeito e, também, entender como este sujeito faz do seu

discurso um dispositivo de poder capaz de convencer e governar outras pessoas. É

por isso que, em todo discurso, será preciso questionar qual vontade de verdade

está presente, vontade que define o que pode ser dito e pensado e, acima de tudo,

como isso pode ser dito e pensado.

1.2.2 O lugar do enunciado nas tramas do arquivo

A língua, enquanto sistema de signos é estruturada em regras e constituída

de unidades tais como frases, proposições e atos de fala. Essas unidades, quando

atingidas pela função enunciativa se transformam em enunciados, eles que, na

arqueologia foucaultiana, são os elementos básicos do discurso. Quando esses

enunciados, vindos do interdiscurso, ou seja, da memória discursiva, irrompem nas

formações discursivas, se transformam em acontecimentos, ganham historicidade e,

só aí, adquirem sentido. É nessa perspectiva que a memória garante o sentido da

linguagem.

43

Como a Análise do Discurso, no dizer de Gregolin (2003, p. 10) “nasceu com

o objetivo de explicar os mecanismos discursivos que embasam a produção dos

sentidos” e se a memória discursiva, leia-se interdiscurso, no dizer de Pêcheux, é

quem possibilita a produção desses sentidos, logo a relação discurso e memória é

de suma importância para a teoria, a prática e o desenvolvimento da análise do

discurso.

Na prática, a análise do discurso se faz a partir de um corpus que, recolhido

na língua, fornece os dados para o trabalho do analista; só que, para fazer jus ao

caráter de teoria materialista da discursividade, a AD precisa dar historicidade a

esse material e sentido ao seu objeto de investigação. É aí que entra a noção de

arquivo, um mecanismo que, acionando a memória, desnuda a exterioridade

constitutiva da língua e funciona como um verdadeiro nível de linguagem que fica na

interface entre esse corpus e o sistema de signos.

O corpus, noção com a qual a Análise do Discurso trabalha, não pode ser

fechado e muito menos algo pronto e acabado. Se assim o fosse seria uma

incoerência teórica haja vista a natureza interdisciplinar da AD. “O corpus não é

dado a priori” (SARGENTINI, 2007, P.218). Possenti (2006, p. 96), a esse respeito,

argumenta que:

Um corpus não se dá ao analista, evidentemente, mas também não é verdade que o analista o cria: ele apenas o organiza, o que exige um certo trabalho (até mesmo braçal): reunir material, classificar e reclassificar, destacar aspectos relevantes, anotar, buscar outros textos, etc. Ou seja, tomar a sério o acontecimento discursivo de que se trata, verificar sua natureza, sua eventual heterogeneidade.

O autor, ao falar da relação do corpus com a memória, cita o esquema de

Courtine, segundo o qual, inicialmente, tem-se um conjunto de textos que noticiam

ou comentam um acontecimento e que gera um conjunto de outros textos; esse

acontecimento faz funcionar a memória produzindo exemplos similares ou opostos e

invocando princípios doutrinários e/ou filosóficos e, por fim, surgem fatos novos que

dão sequência ao acontecimento principal a partir de suas ligações com o passado.

Percebem-se claramente na sequência de Courtine, os elos de memória, a todo o

momento, ligando os discursos ao sentido.

Como condição de possibilidade do sentido, a memória não é nenhum espaço

de calmaria; muito pelo contrário, Pêcheux (1999, p. 56) tratando de memória vai

44

afirmar que “é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de

deslocamentos e de retomadas, de conflitos e de regularização [...] Um espaço de

desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos [...]”.

Constata-se, portanto, que a memória se inscreve no discurso por meio

doarquivo e é a sua presença, a presença da memória, que permite a multiplicidade

destes sentidos. É nesse aspecto que Silva (2008) afirma que o que se inscreve de

memória no discurso é tecido pelo arquivo de uma época, sem que a memória deixe

que o arquivo engesse a mobilidade dos sentidos. Estabelece-se, desse modo, uma

relação de mão dupla, na qual a memória garante o discurso pelo viés do sentido e o

discurso garante a memória pela historicidade do arquivo.

A inscrição do enunciado num arquivo histórico envolve a relação discurso e

memória. No dizer de Silva (2010, p. 68): “Para a História, a memória funciona como

um conceito operatório por meio do qual a narrativa inscreve sua relação com o

passado presentificando-o; a memória é, por assim dizer, o que fornece ao

historiador conteúdo para a narrativa”.

O relato dos guerrilheiros do Araguaia, a exemplo do que ocorre em muitos

lugares de memória, é a materialização do discurso que se faz por meio de sua

inserção na história. Nesse aspecto, a noção de enunciado desenvolvida por

Foucault como categoria elementar do discurso será básica para a compreensão

dos efeitos de sentido que se produzirá a partir da análise desses relatos.

Necessário se faz, portanto, saber o que é enunciado, quais são seus traços

distintivos, quais são seus limites e que lugar ocupa no conjunto das unidades já

descobertas nas investigações sobre linguagem.

Foucault (2005, p. 32) afirma que “sendo o enunciado constituído na relação

dialética entre singularidade e repetição, sua análise deve sempre levar em conta a

dispersão e a regularidade”. O enunciado, a partir desse entendimento, será

repetível em sua materialidade linguística, mas sempre singular em sua enunciação

discursiva, o que faz dele um acontecimento discursivo, sempre que proferido. A

Análise do Discurso considera que o sentido se produz na relação da língua com a

história, logo, é no acontecimento como fato histórico da discursividade que a língua,

agora na perspectiva do discurso e não apenas de sua estrutura, adquire valor

semântico, faz sentido. Todas essas considerações surgem a partir de Foucault

(2005) quando ele indaga acerca das condições econômicas, políticas e sociais que

45

possibilitam, em certo momento histórico, o aparecimento de um determinado

enunciado e não de outro em seu lugar. Silva (2008, p. 76) coloca que

Questionar essas condições contribui para explicar a emergência do enunciado na história, sua condição de acontecimento, os mecanismos discursivos que o tornam singular. Nesse rumo, a análise do enunciado deve considerar a interdiscursividade, definir as condições em que se realizou um enunciado, condições que lhe dão uma existência específica. Essa existência faz o discurso emergir em relação a um domínio de memória, como jogo de posições possíveis para um sujeito, como elemento em um campo de coexistência, como materialidade repetível considerando, também, a descrição das materialidades discursivas.

Vê-se do exposto que a singularidade que faz do enunciado um

acontecimento discursivo é movida por condições histórico-sociais peculiares. No

percurso que vai da materialidade do enunciado a sua inscrição num arquivo

histórico uma série de operações de nível discursivo são efetuadas. Nem tudo pode

ser dito, nada tem origem transcendental e tudo se forma na interdiscursividade.

Assim é que o lugar do enunciado começa a ser definido nas tramas do arquivo.

Sabendo por meio de Foucault (2005) que o enunciado é a categoria

elementar do método arqueológico e categoria basilar do discurso, surge, neste

trabalho, dadas suas pretensões objetivas e seu arcabouço teórico, a necessidade

de definir o que vem a ser enunciado, tratar acerca das características da função

enunciativa, teorizar sobre a sua descrição, discutir suas características, tratar de

sua articulação em discursos que vão se inserir em formações discursivas, circular

em práticas e sofrer a coerção dos mecanismos de controle e das ordens do

discurso para, posteriormente, integrar um arquivo histórico e passar ao

interdiscurso.

A título de definição pode-se dizer que o enunciado é a categoria elementar

do método arqueológico, porém, o objetivo da investigação arqueológica não o

enunciado em si, mas um domínio, uma área de influência na qual o enunciado se

expressa enquanto função, uma função enunciativa. É o que se pode constatar em

Foucault (2005, p. 97-98) quando ele afirma que

Em seu modo de ser singular (nem inteiramente lingüístico, nem inteiramente material) ele (o enunciado) é indispensável para que se possa dizer se há ou não frase, proposição ou ato de linguagem. [...] ele não é, em si mesmo, uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço.

46

O enunciado não é frase porque não se adapta às regras gramaticais, não é

proposição porque sendo da esfera do discurso não se ajusta ao crivo do que seja

verdadeiro e falso e nem é ato de fala porque não busca a performance das

formulações e nem as intenções do sujeito falante. Se é assim, cabe indagar acerca

de qual será mesmo o lugar do enunciado no conjunto das unidades da língua.

Foucault (2005) ensina que muito antes de ser uma unidade da língua, o enunciado

é uma função, algo produzido por um sujeito que ocupa uma posição institucional,

que é determinado por regras sócio-históricas as quais definem o que pode ser

enunciado. Gráficos, tabelas e fluxogramas, por exemplo, são enunciados, apesar

de não se encaixarem em nenhuma das unidades tradicionais da língua.

Desse modo, não há simplesmente uma relação gramatical, lógica ou

semântica entre o dito e o ato de dizer, pois, a enunciação é um fenômeno que

envolve os sujeitos, que leva em conta a historicidade e que passa pela própria

materialidade do enunciado. Singular e, ao mesmo tempo, repetível, o enunciado se

constitui dialeticamente e na sua análise se deve levar em conta a dispersão dos

singulares e a regularidades dos repetíveis.

Além de ser a categoria elementar do método arqueológico, o enunciado

pode, entretanto, ser definido como um domínio de memória, um elemento do

arquivo, nem oculto e nem visível, nem totalmente linguistico e nem totalmente

material, algo que se constitui na relação dialética entre singularidade e a repetição

e, em última instância, uma função que cruza domínios de estruturas para gerar

unidades linguísticas e discursivas.

O enunciado não coincide com as unidades da língua tais como frases,

proposições ou atos de fala porque enunciado não é língua. Sem enunciados não

haveria língua, mas nenhum enunciado é indispensável ao exercício da linguagem,

haja vista ser substituível sempre por outro. A língua é uma estrutura e está ligada

ao sistema de produção de enunciados e o enunciado é uma função que diz respeito

apenas aos signos. Não se requer uma sequência regular para se ter um enunciado,

mas, ao mesmo tempo, não é qualquer construção material que se constitui em

enunciado, é preciso uma probabilidade mínima de significado para que uma

realização material seja um enunciado.

47

Conforme já mostrado, ao método arqueológico não interessa o enunciado

em si, atômico, mas a função enunciativa. Essa função, que ao cruzar verticalmente

com as estruturas possibilita o surgimento de unidades lingüísticas, caracteriza-se

pela singularidade de seu correlato, pela não necessidade de coincidência entre

autor e sujeito de uma formulação e pela exigência de um domínio associado para

existir.

Um nome se relaciona com o objeto que designa ou significa, uma frase se

relaciona com o seu significado e uma proposição se relaciona com o seu referente.

Assim, o correlato do nome é um objeto, o correlato da frase é o sentido e o

correlato da proposição é o referente. Mas o enunciado não se define pela existência

de uma regra entre ele, o enunciado, e o que este enunciado enuncia. Para Foucault

(2005, p. 100-101) “Um enunciado existe fora de qualquer possibilidade de

reaparecimento; e a relação que mantém com o que enuncia é idêntica a um

conjunto de regras de utilização. Trata-se de uma relação singular”. Deduz-se então

que, o correlato do enunciado é um conjunto de domínios, uma área de influência na

qual os objetos e as relações lógicas, semânticas ou gramaticais podem ou não

aparecer.

Em Arqueologia do saber, Foucault (2005) queria entender como a descrição

dos enunciados poderia se ajustar à análise das FDs. O que este teórico descreveu

como FDs corresponderiam, numa abordagem superficial, a grupos de enunciados

ou conjuntos de performances verbais de onde derivaria o discurso.

O exame do enunciado mostrou se tratar não de uma unidade, mas de uma

função que para se realizar se apoia exclusivamente em signos sem a necessidade

da aceitabilidade gramatical e nem da correção lógica. Descrever o enunciado

significa mostrar que, para se efetivar, esse enunciado diz respeito a um referencial

que não é fato e nem objeto, mas um princípio de diferenciação, tem um sujeito que

não é o autor da formulação, mas uma posição a ser ocupada, liga-se a um campo

associado que não é um contexto, mas um domínio de coexistência, exige, por fim,

uma materialidade que não é apenas uma substância, mas um status, uma

possibilidade de reutilização.

A partir dessa descrição presume-se que o enunciado está para uma FD

assim como uma proposição pertence a um esquema dedutivo e uma frase pertence

a um texto; o discurso seria um conjunto de enunciados que se apóiam na mesma

FD e prática discursiva seria

48

Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 2005, p. 133).

Os enunciados que compõem os relatos dos guerrilheiros do Araguaia, no

presente trabalho, foram descritos e interpretados com o objetivo de revelar os

efeitos de sentido provocados pela ação repressiva do Regime Militar contra o

movimento revolucionário que combateu a Ditadura Militar de 1964, nas selvas do

Araguaia, Sul do Pará.

1.2.3 Discurso e acontecimento

O fato dos enunciados serem, na sua condição de acontecimento, eventos

singulares e, portanto, não repetíveis, pode levar à falsa impressão de que

constituem um arsenal infinito de possibilidades discursivas. Desmontando essa

hipótese e substituindo a noção de totalidade enunciativa pela de raridade na

descrição dos enunciados, Foucault (2005, p. 136-137) afirma que

Assim concebido, o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética: um tesouro inesgotável [...] ele (o discurso) aparece como um bem - finito, desejável, útil - que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas ‘aplicações práticas’), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de luta política.

Colocado dessa forma, entende-se melhor o que Gregolin (2003, p. 12) quis

dizer quando afirmou que “Há sempre batalhas discursivas movendo a construção

de sentidos na sociedade”. É a operação de controle e exclusão dos enunciados

supostamente impertinentes para um dado momento e para uma dada situação. É a

ordem dos discursos entrando em cena para garantir a integridade dos poderes

frente aos riscos de uma indesejável liberdade enunciativa. A única reação possível

a essa pobreza enunciativa deflagrada pela raridade dos enunciados é o gesto

interpretativo, uma forma de compensação da raridade pela multiplicidade dos

sentidos.

49

A suposta origem dos enunciados seja a partir do interior do espírito ou na

transcendência do pensamento também é ilusória. Os enunciados se formam em um

local de acontecimentos que sempre lhe é exterior e sua emergência não se dá a

partir de uma origem e sim de um acúmulo que se forma na relação com outros

enunciados no campo da interdiscursividade. A exterioridade como característica

dos enunciados mostra que o discurso não vem do pensamento ou do âmbito

transcendental, mas do contexto histórico e surge como fruto de acontecimentos. O

enunciado também se caracteriza pelo acúmulo, uma vez que muito mais importante

do que investigar suas origens é compreender que eles se formam na

interdiscursividade, ou seja, no diálogo com outros enunciados já existentes.

Raridade, exterioridade e acúmulo, são, portanto, as características mais

evidentes dos enunciados. Na sua descrição deve-se levar em conta a pobreza

enunciativa e não a totalidade de possibilidades discursivas, a exterioridade de sua

emergência e não o psicologismo interior do espírito, o surgimento em função do

acúmulo interdiscursivo na relação com os outros enunciados e não por meio de

uma origem metafísica. Raridade, exterioridade e acúmulo são as autênticas

características da função enunciativa.

O discurso não é fruto de uma verdade e nem o produto de um sentido, mas o

reflexo de um processo histórico. Isso faz entender que todo discurso tem um a priori

histórico. Esse termo, que o próprio Foucault considerou “um pouco impróprio”, diz

respeito às condições históricas que possibilitam a emergência dos enunciados,

remete a uma história das coisas efetivamente ditas, em outras palavras, de um

domínio das positividades enunciadas. A esse respeito, esclarece Foucault (2005, p.

144):

Não se trata de reencontrar o que poderia tornar legítima uma assertiva, mas isolar as condições de emergência dos enunciados, a lei de sua coexistência com outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem.

O a priori das positividades de que nos fala Foucault, diferentemente do que a

palavra sugere a primeira vista, não foge à historicidade e nem é algo que esteja

acima do bem e do mal e na origem dos acontecimentos discursivos; trata-se,

portanto, das regras que caracterizam as práticas nas quais circulam os discursos,

sendo, assim, um sistema de dispersão de enunciados.

50

As práticas discursivas colocam os enunciados na condição de

acontecimentos e, desse modo, modificaram a noção de arquivo. O arquivo

foucaultiano nada tem a ver com documentos do passado que se guardou. Nesse

sentido, com relação à noção de arquivo, Foucault (2005, p. 146) coloca que

Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento [...] mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo.

As regras de uma prática discursiva são as condições de exercício da função

enunciativa e se estabelecem a partir de determinadas condições sócio-históricas; o

conjunto dessas regras que caracterizam as práticas discursivas é o que Foucault

chamou de a priori histórico, algo que apesar de sua positividade, não escapa à

historicidade.

É pelas lentes do arquivo, esse conjunto de todos os enunciados já ditos, que

se observam as regras de uma prática discursiva. Desse modo, é o arquivo

responsável pelo jogo de relações que caracterizam o nível discursivo.

Há uma relação muito próxima entre o a priori histórico e a noção de arquivo,

pois, se o a priori é o conjunto de regras de uma prática discursiva, a leitura do

arquivo é quem permite enxergar essas regras. O arquivo, como conjunto de todos

os enunciados já ditos é quem permite, pelas lentes da historicidade, enxergar as

práticas discursivas e fazer a leitura do corpus. Trata-se de um sistema de

enunciabilidade que faz surgir o enunciado na condição de acontecimento e o

sistema geral de formação e transformação de enunciados.

A noção de arquivo levou Courtine (2009), inclusive, a redefinir o conceito de

corpus. Tido, nos primeiros momentos da AD, como um “conjunto de sequências

discursivas” devidamente estruturadas e obtido graças ao saber do analista, o

corpus que se restringia ao discurso político e era fechado na homogeneidade de

sua FD, abre-se para outras discursividades, numa virada epistemológica que teve

repercussões em todo o campo teórico da AD.

Sargentini (2007, p. 219) comentando essa mudança conceitual operada a

partir do contato de Courtine com Foucault vai colocar que

O corpus de análise passa, então, a ser composto por textos variados, de diversos gêneros, que circulam em diferentes suportes, sobre um mesmo

51

tema, conceito ou acontecimento. A noção de formação discursiva é, enfim, considerada em sua heterogeneidade e tende a ser deixada de lado em função de uma operação de leitura de corpus.

Apesar de importante conceito operatório para a análise dos discursos, o

arquivo não é tudo e muito menos um saber absoluto; se assim o fosse substituiria a

própria história e se converteria numa contradição do método arqueológico. A falta

de arquivo, por outro lado, pode levar o analista a cair na armadilha da “soberania

delirante do eu” (SARGENTINI, 2006, p.43). Conforme se vê, a leitura do arquivo,

para levar a bom termo um trabalho de em análise do discurso, precisa ser na

medida certa: excessos em direção ao dogmatismo ou ao ceticismo, em matéria de

utilização do arquivo, comprometem a eficiência da análise.

Na perspectiva teórica que fundamenta este trabalho, entende-se que a

língua produz sentido na relação com a história, ou seja, com a exterioridade que lhe

é constitutiva, melhor dizendo, na hora em que salta do plano linguístico para a

materialidade discursiva. Por priorizar o contato com a história, a noção de

enunciado como evento discursivo ganha relevância, uma vez que na condição de

acontecimento que não se repete tem “uma relação com a história, campo com o

qual a noção de acontecimento é uma espécie de matéria prima” (POSSENTI, 2006,

p. 93).

Fazer análise do discurso exige, no entanto, adotar filiações teóricas que

possam descrever e interpretar a ocorrência dos acontecimentos discursivos. O

relato de guerrilheiros do Araguaia acerca das operações de cerco e aniquilamento

postas em prática pela ação repressiva da Ditadura são acontecimentos discursivos

que produzirão sentidos quer pela sua inscrição na estrutura, quer pela

singularidade de sua enunciação, afinal, como ensina Pêcheux (2008) o discurso é

estrutura e acontecimento.

Acerca da análise dos processos discursivos na produção dos sentidos Silva

(2008) alega que o trabalho da AD se dá sobre a materialidade discursiva que é ao

mesmo tempo linguística e histórica e é por esse viés de compreensão que se

explica o discurso como a materialização dos processos ideológicos ou históricos na

língua enquanto forma material. Assim entendido, a língua constitui a condição de

possibilidade do discurso, enquanto os processos discursivos constituem a fonte de

produção dos efeitos de sentido.

52

A concepção de enunciado como acontecimento e, consequentemente, como

elemento da história, passa a ser considerada a partir da indagação de Foucault

acerca das condições, do lugar e do momento de sua emergência, afinal, que

fatores sociais, políticos e econômicos, possibilitam, em determinado momento

histórico, o surgimento desse e não daquele enunciado? A resposta a essa pergunta

que fatalmente virá do interdiscurso, inscreve, definitivamente, o enunciado na

história e o torna um acontecimento singular em meio a dispersão das formações

discursivas.

Para mostrar como a inscrição do acontecimento na estrutura, a partir da

irrupção do interdiscurso na heterogeneidade das FDs produz sentidos, Silva (2008)

afirma que a preocupação é descrever como o de fora, constitutivo do sentido,

inscreve-se na materialidade da linguagem, uma vez que a noção de interdiscurso e

de FD, bem como a forma como o sujeito se posiciona nessa relação serão

fundamentais para explicar como o interdiscurso irrompe numa FD e a constitui,

constituindo, ao mesmo tempo, o sujeito e o discurso.

A preocupação central para quem faz análise do discurso deve ser, portanto,

em fazer com que essa teoria possa dar conta de um objeto que não se explica pela

investigação linguística pura e simples. O discurso, esse objeto que se pretende

analisar, vê a linguagem no contato com a exterioridade, uma exterioridade que lhe

é constitutiva, que responde pelo nome de história e que lhe garante o sentido.

1.2.4 Trajeto temático: do arquivo histórico ao corpus de análise

Para efeito de analise, trabalhou-se nesta dissertação com a noção de trajeto

temático, investida teórico-metodológica cunhada por Guilhaumou e Maldidier

(2010). Seguindo essa noção, o presente trabalho aponta para um percurso que vai

estabelecer a relação, no campo da memória, entre o contexto histórico do Regime

Militar de 1964 no Brasil e a luta armada de resistência à Ditadura, especialmente

em se tratando da guerrilha do Araguaia. Nesse contexto histórico, desenvolve-se

um discurso que revela a memória dos guerrilheiros, o orgulho de ter lutado por um

mundo melhor e seus ressentimentos, sua luta contra o silêncio e o esquecimento,

ao mesmo tempo em que se pode entrever a ação repressiva da Ditadura Militar no

Brasil. Assim, para efetivar nossa análise definimos como trajeto temático o percurso

53

repressão/resistência, expresso pela luta política que se manifesta em dois eixos: os

confrontos “ditadura x guerrilha” e “partido x partido”, conflitos que, atuando no

campo da memória, produzirão efeitos de sentido e servirão de base para a leitura

do arquivo. Em outras palavras, o trajeto temático situa-se no contexto histórico da

Ditadura no Brasil, efetua um percurso que vai da repressão militar à luta armada de

resistência ao regime, se expressa pela disputa política entre os militares no poder e

a oposição revolucionária e será analisado a partir dos confrontos entre Ditadura e

guerrilheiros, bem como a partir das divergências no interior do próprio partido

comunista.

Esse trajeto temático foi sendo traçado na confluência do contexto histórico,

social e político em que se deu a guerrilha do Araguaia com o discurso dos

guerrilheiros materializado em depoimentos dos combatentes frente às práticas da

Ditadura. O corpus da pesquisa é constituído de três documentos escritos por dois

guerrilheiros do

Araguaia. São eles: “Relatório sobre a luta no Araguaia” e “Um grande

acontecimento na vida do país e do partido” de Ângelo Arroio3 e “Intervenção no

debate sobre o Araguaia” de Pedro Pomar4.

3Nasceu em 6 de novembro de 1928, em São Paulo e foi morto aos 48 anos de idade. Operário

metalúrgico, ingressou no PCB em 1945. Foi ativista do movimento sindical paulista, tornando-se um dos líderes do Sindicato dos Metalúrgicos na década de 50. Participou das greves de 1952/1953 em São Paulo. Com o golpe militar em 1964, foi para o interior, ajudando a criar e organizar os destacamentos guerrilheiros do sul do Pará. Era um dos comandantes da Guerrilha. Em fins de janeiro de 1974, quando a organização guerrilheira já se encontrava bastante dispersa pela ação das forças da repressão, ele conseguiu furar o cerco de quase vinte mil militares e reencontrar os companheiros do Partido em São Paulo, aos quais entregou um Relatório detalhado sobre as atividades da guerrilha, a prisão e morte dos guerrilheiros. Foi fuzilado em 16 de dezembro de 1976, quando do cerco a uma casa onde estavam reunidos os dirigentes do PCdoB, na Rua Pio XI, no bairro da Lapa, em São Paulo. (Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois. In: http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?id_sessao=33&id_publicacao=27&id_indice=80 Acesso em 20/out/2012). 4Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar nasceu a 23 de setembro de 1913, na cidade de Óbidos

(Pará). Com 13 anos saiu para fazer o ginásio em Belém, onde se envolveu na movimentação política dos anos 30. Aos 19 anos, entrou para a Faculdade de Medicina. Aos 22 anos foi preso pela primeira vez, em 19 de janeiro 1936 e solto em 14 de junho de 1937; foi novamente preso em 2 de setembro de 1940. Fugiu da cadeia, em direção ao Rio de Janeiro, junto com João Amazonas e outros integrantes do Partido, no dia 5 de agosto de 1941. Ajudou a formar a Comissão Nacional de Organização Provisória, que se encarregou de reorganizar o PCdoB em escala nacional, convocando e realizando a Conferência da Mantiqueira, em 1943. Em 1945 mudou-se para São Paulo. Na eleição complementar de 1947, quando concorreu pela coligação PCB-PSP, recebeu mais de 100 mil votos, maior votação da época. Membro do Comitê Central e da Comissão Executiva do PCdoB, foi secretário de Educação e Propaganda, encarregado de supervisionar cerca de 25 jornais mantidos pelo partido em todo o país. Em 1950, concluído o mandato, passou à clandestinidade. Foi executado pela repressão no dia 16 de dezembro de 1976 na chacina da Lapa. Seu corpo

54

O arquivo que permite enxergar o corpus da pesquisa é formado pelas

condições de enunciabilidade próprias de um regime de exceção, característico

daquele inicio dos anos 1970 do século passado, no qual a censura, seguida de

perseguição, prisão, tortura e morte dos adversários do regime se institucionalizaram

como política de estado e limitaram as práticas discursivas da oposição.

apresentava cerca de 50 perfurações de bala. Morreu ao lado de Ângelo Arroio. (Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois. In: http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?id_sessao=33&id_publicacao=27&id_indice=127 Acesso em 20/out/2012).

55

II O DISCURSO, A MEMÓRIA E O ARQUIVO DA GUERRILHA

Antígona julgava que não haveria suplício maior do que aquele: ver os dois irmãos matarem um ao outro. Mas enganava-se. Um garrote de dor estrangulou seu peito já ferido ao ouvir do novo soberano, Creonte, que apenas um deles, Eteócles, seria enterrado com honras, enquanto Polinice deveria ficar onde caiu para servir de banquete aos abutres. Desafiando a ordem real, quebrou as unhas e rasgou a pele dos dedos cavando a terra com as próprias mãos. Depois de sepultar o corpo, suspirou. A alma daquele que amara não seria mais obrigada a vagar impenitente durante um século às margens do Rio dos Mortos (Trecho de Antígona, personagem de Sófocles, mestre da tragédia grega).

este capítulo é feita uma abordagem acerca das relações entre discurso

e memória, bem como uma contextualização que visa situar a guerrilha

do Araguaia no arcabouço histórico daquela época. Para dar cabo a essa pretensão

o capítulo foi dividido em dois itens, sendo o primeiro uma tentativa de demarcar o

arquivo histórico da guerrilha, enquanto que o segundo trata de aspectos da relação

entre memória e história.

No item relativo à contextualização histórica da pesquisa procura-se, de início,

situar geograficamente a guerrilha e busca-se enquadrar os acontecimentos do

Araguaia na tradição de lutas do povo brasileiro; a seguir, faz-se uma exposição

acerca do golpe militar de 1964, sobre a derrota das teses pacifistas no âmbito do

Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a preparação, o início e a deflagração da

guerrilha, além de colocar aspectos atinentes à memória mítica daquele movimento;

na sua parte final, o capítulo cuida das relações memória/história, deixando claro

que a memória é um verdadeiro campo de batalhas no qual os sentidos são

construídos e a história pode ser recontada.

2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA PESQUISA

2.1.1 A localização geográfica da guerrilha

N

56

MAPA 01: Região da Guerrilha do Araguaia5

A primeira iniciativa dos revolucionários do Partido Comunista do Brasil

(PCdoB) com vista à efetiva preparação da luta armada foi a escolha de uma área

prioritária a partir de fatores tais como as condições geográficas da região e a

situação em que as populações rurais viviam. Mostrando que a posição geográfica

para a escolha da área ideal para a guerrilha foi algo cuidadosamente planejado no

âmbito do PCdoB, Pomar (1980, p. 28) diz que

Inicialmente a área prioritária localizava-se mais ao centro-oeste de Goiás, procurando compatibilizar as diferentes opiniões e divergências em torno do papel preponderante do terreno ou das massas. À medida que prevaleceu a corrente que dava peso maior ao terreno, a área prioritária foi deslocada para o norte de Goiás e sul do Maranhão. A área do baixo Araguaia não passava, então, de provável zona de refúgio. Mas a rápida expansão da frente agrícola, trazendo consigo massas que iam derrubando as matas para o plantio, atraindo novas vias de comunicação para o escoamento das safras e fazendo surgir outros fatores que influíam sobre a própria segurança do dispositivo que estava sendo montado, fez com que o Araguaia passasse a constituir o centro mesmo do trabalho de preparação. Ali as matas quase não haviam sido tocadas e existia um imenso fundo selvagem que ia bem além do Xingu; as comunicações e o transporte para a zona eram extremamente precários (o plano da rodovia transamazônica

5 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Regiao_Guerrilha_do_Araguaia.png. Acesso em

28/o/2012.

57

só surgiu uns dois anos depois da decisão da Comissão Militar do CC6 do

PCdoB); se as massas eram dispersas e desorganizadas, o mesmo acontecia com o aparelho militar da reação. Dentro da perspectiva de luta armada dominante no partido, o Araguaia se configurou como a região ideal para desencadear e desenvolver a guerra de guerrilhas.

Depois das estratégicas mudanças acerca do local ideal para a deflagração

da guerrilha, ficou definido, conforme se vê no fragmento acima, que o sul do Pará,

nas margens do rio Araguaia seria a chamada prioritária para a luta armada.

Pará, palavra que dá nome ao segundo maior estado do país, em tupi-guarani

significa mar. Trata-se de uma das vinte e sete unidades federativas do Brasil, com

extensão de 1.247.689,515 km², e dividido em 144 municípios. Situado ao leste

da região norte, faz fronteira com Suriname e o Amapá ao norte, o oceano

Atlântico a nordeste, o Maranhão a leste, Tocantins a sudeste, Mato Grosso ao sul,

o Amazonas a oeste e Roraima e a Guiana a noroeste. O Forte do Presépio,

fundado em 1615 pelos portugueses, deu origem a Belém, mas a ocupação do

território foi desde cedo marcada por incursões de Neerlandeses e Ingleses em

busca de especiarias. Daí a necessidade dos portugueses de fortificar a área.

Em1751, com a expansão para o oeste, cria-se o estado do Grão-Pará.

O relevo do estado é predominantemente baixo e plano. Mais de 80% do

território tem altitude de até 300 metros, sendo que destes, mais de 50% são de

planícies com altitude de até 200 metros, em relação ao nível do mar. Na planície

litorânea, as falésias variam entre 05 e 20 metros de altura. As maiores altitudes são

encontradas nas serras de Carajás, Caximbo e na serra do Acari, a maior do estado,

com 906 metros de altitude.

A vegetação do Pará é quase sempre composta pela floresta

Amazônica(floresta tropical pluvial). Em mata de terra firme são encontradas as

castanheiras, enquanto em áreas de mata de várzea, encontram-se as seringueiras.

No baixo planalto de Santarém, encontra-se uma área de Cerrado. Na Ilha do

Marajó e nas várzeas de alguns rios são encontrados campos limpos. Ao longo

do litoral são encontrados mangues. A fauna, típica da Amazônia, é riquíssima.

Vários animais dessa região estão ameaçados de extinção, como o lobo guará,

a ariranha, algumas espécies de tartarugas e o peixe-boi. O mesmo ocorre com os

6Sigla utilizada para designar o Comitê Central, órgão superior de direção do Partido Comunista do

Brasil (PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL: ESTATUTO, 2010).

58

peixes, pois a pesca na região é pouco fiscalizada, o que favorece a pesca

predatória.

O clima do estado é equatorial, ou seja, quente e úmido. As chuvas são

constantes, com ausência de estação de secas. Considerando as precipitações

pluviais, o clima da região é marcado por duas estações: o verão, de julho a outubro

(temperaturas máximas próximas de 35°C); e o inverno, de novembro a junho

(temperaturas mínimas próximas de 19°C). O inverno é a estação das grandes

chuvas. A temperatura média anual é de 26°C. Os rios que cortam o estado

pertencem a três bacias hidrográficas: Bacia Amazônica, Bacia do Nordeste e Bacia

Tocantins-Araguaia. Os principais rios do estado são: Amazonas, Tocantins,

Tapajós, Xingu, Jari e Pará.

O baixo Araguaia, área em que ocorreu a luta armada do PCdoB, situa-se no

sul do Pará, às margens do rio que deu nome à guerrilha. O rio nasce na serra do

Caiapó, entre a cidade de Mineiro no estado de Goiás e o Parque Nacional das Emas e

logo se transforma na divisa entre Goiás e Mato Grosso. Mais adiante, ao contornar a

região conhecida como Bico do Papagaio, marca também os limites entre os estados de

Tocantins e Pará. Só então, depois de percorrer 2.115 km deságua no rio Tocantins.

A escolha do Sul do Pará e mais especificamente da região do Araguaia

como área ideal para a deflagração da guerrilha, se deu em última avaliação por

questões de segurança, uma vez que, as dificuldades de acesso e de comunicação,

a inexistência de aparato policial-militar e as grandes extensões de matas da floresta

amazônica proporcionavam um imenso fundo selvagem que serviria de refúgio aos

guerrilheiros e, em tese, tornavam, a primeira vista, praticamente impossível um

cerco total por parte das forças repressoras.

2.1.2 O Araguaia e a tradição de lutas do povo brasileiro

A guerrilha do Araguaia, luta armada contra a Ditadura Militar, um movimento

revolucionário organizado e posto em prática pelo Partido Comunista do Brasil

(PCdoB) no início dos anos 1970, tendo como local a floresta amazônica e mais

precisamente o sul do Pará, precisa ser analisada como mais uma importante etapa

das lutas do povo brasileiro para construir uma nação livre.

59

Constata-se que o espírito libertário que caracteriza a brasilidade7, o jeito de

ser do brasileiro, despontou desde cedo, lá no século XVI, quando os índios

organizados na Confederação dos Tamoios8 resistiram em armas contra o europeu e

jamais aceitaram serem escravizados pelo colonizador. Embora jovem, a nação

brasileira tem marcado sua história com o sangue derramado pela resistência

indígena, popular e dos negros contra sua escravização, passando pelo

enfrentamento heroico às ditaduras e a todas as formas de opressão, até as lutas

operárias e populares dos tempos atuais.

A ideia vitoriosa de uma nação autônoma e de um povo livre surgiu e se

fortaleceu no enfrentamento ao domínio colonial. A expulsão dos holandeses que

ocupavam o nordeste no século XVI foi um exemplo dessa disposição dos

brasileiros para unificar esse gigantesco território em torno de uma nação única e

livre. Negros, índios, religiosos e as camadas pobres lideradas por Felipe Camarão

enfrentaram e venceram, sem contar a ajuda de Portugal, a maior potência da

época, a Holanda. A independência nacional, a proclamação da república e a

abolição dos escravos, marcos importantes da afirmação da brasilidade, foram frutos

de um processo cumulativo de lutas e não concessões das classes dominantes

como prega a historiografia oficial.

Nessa linha de raciocínio, a guerrilha do Araguaia também não pode ser vista

como uma conspiração de radicais inconsequentes. Foi, sim, mais uma etapa da luta

do povo brasileiro por uma nação livre do domínio antes colonial e depois

imperialista. Faz parte do mesmo espírito libertário que levantou os índios contra a

escravidão no inicio da colonização, passando pelo Quilombo dos Palmares9, pela

7 De acordo com o dicionário Priberam da Língua Portuguesa: brasilidade (Brasil, topónimo + -

idade) s. f.1. Qualidade própria do brasileiro e do Brasil.2. Sentimento de amor ao Brasil. (http://www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em 21/out/2012). 8A Confederação dos Tamoios é a denominação dada à revolta liderada pela nação

indígena Tupinambá contra os colonizadores portugueses que queriam escravizar os índios, ocorrida entre 1556 e 1557. A revolta se espalhou pelo litoral norte paulista e fluminense, até Cabo Frio, envolvendo também todo o Vale do Paraíba. Mesmo com a derrota final dos Tamoios, o empreendimento colonizador português desistiu de usar os indígenas como força de trabalho. A possibilidade de novas rebeliões e de dizimação dos assentamentos coloniais era muito alta. Ampliou-se, então, a prática da escravidão africana, com a troca de pessoas por mercadorias, segundo o modelo econômico do mercantilismo. (http://www.historiabrasileira.com/brasil-colonia/confederacao-dos-tamoios/. Acesso on-line em 03 de dezembro de 2012). 9Durante todo o período da escravidão no Brasil, os cativos empreenderam formas diversas de

escaparem daquela ordem marcada pela repressão e o controle. Dentre as várias manifestações de resistência, os quilombos, também conhecidos como mocambos, funcionavam como comunidades de negros fugidos que conseguiam escapar do controle de seus proprietários. Um dos quilombos mais conhecidos da história brasileira foi Palmares, instalado na serra da Barriga, atual estado de Alagoas, no século XVII.

60

Inconfidência Mineira10, pela Guerra dos Farrapos11, pela Balaiada12, pela Coluna

Prestes13, vindo até a luta armada que muitas organizações empreenderam contra a

última Ditadura Militar. A guerrilha do Araguaia deve ser vista como uma das

grandes epopeias do povo brasileiro.

De acordo com Pomar (1980, p.3) em sua obra Araguaia, o partido e a

guerrilha: documentos inéditos, “O tecido sobre o qual foi traçado o sinuoso caminho

que conduziu ao Araguaia começou a ser composto no final da década de 50”. Ele

estava se referindo a fatos que deixaram marcas profundas na consciência das

forças revolucionárias brasileiras, em especial no que diz respeito às tentativas de

luta armada.

Esses fatos eram, por um lado, o XX Congresso14 do Partido Comunista da

União Soviética (PCUS) que, fazendo uma profunda revisão e reviravolta na teoria

marxista levantou a bandeira da coexistência pacífica e terminou, assim, dando

(http://pt.wikipedia.org/wiki/Quilombo_dos_Palmares). Acesso em 03/dez/2012). 10

A Inconfidência Mineira no final do século XVIII, foi um movimento de libertação liderado por Tiradentes, cujo objetivo era eliminar a dominação portuguesa das Minas Gerais e estabelecer um país independente. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Inconfid%C3%AAncia_Mineira. Acesso em 03/dez/2012). 11

A guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha, foi um conflito regional contrário ao governo imperial brasileiro e de caráter republicano. Ocorreu na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, entre 20 de setembro de 1835 a 1 de março de 1845. Inspirados pelos ideais de liberdade os farrapos buscavam maior autonomia para as províncias. Em 11 de setembro de 1836 é proclamada, pelos revoltosos, a República Rio-Grandense. Mesmo na prisão, os farroupilhas declaram Bento Gonçalvespresidente. Em 1845, após vários conflitos militares, enfraquecidos, os farroupilhas aceitaram o acordo proposto por Duque de Caxias e a Guerra dos Farrapos terminou. A República Rio-Grandense foi finalmente reintegrada ao Império brasileiro.(http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_dos_Farrapos. Acesso em 03/dez/2012). 12

Revolta popular ocorrida no Maranhão entre os anos de 1838 e 1841. Grande parte da população pobre do estado era contra o monopólio político de um grupo de fazendeiros da região. Estes fazendeiros comandavam a região e usavam a força e violência para atingirem seus objetivos políticos e econômicos. Em 1841, o líder dos balaios, Cosme Bento foi capturado e enforcado. Era o fim da revolta. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Balaiada. Acesso em 03/dez/2012). 13

A Coluna Prestes foi um movimento político, liderado por militares, contrário ao governo da República Velha e às elites agrárias. Este movimento ocorreu entre os anos de 1925 e 1927. Teve este nome, pois um dos líderes do movimento foi o capitão Luís Carlos Prestes. A principal causa foi a insatisfação de parte dos militares (tenentismo) com a forma que o Brasil era governado na década de 1920: falta de democracia, fraudes eleitorais, concentração de poder político nas mãos da elite agrária, exploração das camadas mais pobres pelos coronéis (líderes políticos locais).(http://www.infoescola.com/historia/coluna-prestes/. Acesso em 03/dez/2012). 14

O XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) aconteceu no período de 14 a 26 de fevereiro de 1956 em Moscou. Na ocasião, o secretário do Partido, Nikita Khrushchov, com seu célebre discurso secreto, atacou o regime de seu antecessor, Joseph Stalin, dando início ao processo que ficou conhecido como revisionismo marxista. O revisionismo do novo líder soviético pregou a coexistência pacífica com o capitalismo, abandonou a perspectiva revolucionária até então praticada e promoveu uma grande dissidência no movimento comunista internacional, cujas consequências, inclusive no Brasil, proporcionaram o surgimento de dois partidos comunistas: o Partido Comunista Brasileiro (PCB) pró-soviético pregando o caminho pacífico para a revolução e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) antissoviético e defendendo abertamente e aluta armada.(http://filosofiamarxista.wordpress.com/tag/xx-congresso-do-pcus/. Acesso em 03/dez/2012).

61

discurso aos liquidacionistas15 e, principalmente, aos defensores do caminho

pacífico para a revolução; e por outro lado, e na direção oposta, a influência da

revolução cubana16 e o acirramento da luta de classes no Brasil sugeriam posições

mais radicais para o PCdoB. Essa conjuntura, para lá de paradoxal, provocou como

não poderia deixar de ser, uma crise teórica e existencial nas hostes comunistas.

Um grande debate foi travado internamente no partido, tendo como centro a

viabilidade ou não da luta armada no Brasil. Como consequência desse debate,

aconteceu uma divisão histórica entre os comunistas, colocando de um lado os

defensores da coexistência pacífica de inspiração soviética e de outro os defensores

da luta armada de influência chinesa. Estavam criadas as condições para o

surgimento de dois partidos comunistas no Brasil. Isso se refletiu na Conferência

Extraordinária de 1962 organizada pelos seguidores de João Amazonas, Maurício

Grabois e Pedro Pomar, quando o Partido Comunista do Brasil é reorganizado sob a

sigla PCdoB e passa a defender abertamente a luta armada, ao passo que os

seguidores de Luiz Carlos Prestes assumem a outra corrente que passou a se

chamar Partido Comunista Brasileiro (PCB) e que opta pelo caminho pacifista.

Atestando o significado da reorganização do PCdoB17 para a implementação

da luta armada no Brasil, a Pesquisa Brasil Nunca Mais (2009, p.96) afirma que

15

Membros do Partido Comunista que, à época da segunda guerra mundial, afirmavam que este Partido prejudicava a formação de uma frente antifascista e, por isso, deveria ser dissolvido. Os liquidacionistas foram politicamente derrotados na Conferência da Mantiqueira dentro de um processo que levou o PCdoB a se legalizar e participar das eleições para a Constituinte de 1946. (POMAR, 1980). 16

. Antes de 1959, Cuba era um país que vivia sob forte influência dos Estados Unidos. As indústrias de açúcar e os hotéis eram dominados por grandes empresários norte-americanos. Os Estados Unidos também influenciavam muito na política da ilha, apoiando sempre os presidentes que se curvavam às pretensões estrangeiras. Do ponto de vista econômico, Cuba seguia o capitalismo com grande dependência dos Estados Unidos. Era uma ilha com grandes desigualdades sociais, pois grande parte da população vivia na pobreza. Todo este contexto gerava muita insatisfação nas camadas mais pobres da sociedade cubana, que era a maioria. Foi nesse contexto que eclodiu a Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro, um movimento popular que derrubou o governo do presidente Fulgêncio Batista, em janeiro de 1959. Com o processo revolucionário foi implantado em Cuba o sistema socialista, o que influenciou outros movimentos em toda a América Latina (MOURÃO, 2005). 17

No dia 18 de fevereiro de 1962 teve lugar na Rua do Manifesto, bairro do Ipiranga, na cidade São Paulo, uma Conferência Extraordinária do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Tratava-se naquela ocasião de reorganizar o Partido que, afetado pelos acontecimentos do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), estava sendo ameaçado em sua existência por um surto revisionista de direita. A reorganização do PCdo B que, na prática era o rompimento com a linha pacifista de orientação soviética, foi liderada por João Amazonas, Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. (http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/). Acesso em 3/dez/2012.

62

Desde o primeiro momento, o PCdoB dirigiu uma forte crítica ao que considera “linha pacífica” do PCB e, aos poucos, foi sistematizado um projeto global a respeito de como deveria se desenrolar a chamada luta revolucionária no país. Esse pensamento apareceu formulado, em janeiro de 1969, sob o título de “Guerra Popular: Caminho para a Luta Armada no Brasil”, documento que revela uma forte influência do processo revolucionário vivido pelo povo chinês, entre 1927 e 1949, e de todo o pensamento de Mao Tse Tung.

A política de luta armada do PCdoB ganhou força com o golpe militar de

1964. Com a derrubada do Presidente João Gullar, a censura à imprensa e a

perseguição aos opositores do regime perpetrada pelos militares, ficou patente, pelo

menos para a maioria dos revolucionários de que o caminho pacífico estava

inviabilizado. Foi aí que o PCB, derrotado pela realidade dos fatos, sofreu um novo

processo de rachas que conduziu à formação de diversas organizações

revolucionárias que optaram pela guerrilha urbana, ao passo que o PCdoB,

influenciado pela tática de Mao Tse Tung18, defendia a guerrilha no campo.

2.1.3 O golpe militar e a guerrilha do Araguaia

No começo de 1964 a situação política no país estava conturbada. O

presidente Jânio Quadros da conservadora União Democrática Nacional (UDN)

havia renunciado alegando a ameaça de forças estranhas, num dos episódios mais

bizarros e menos explicados da história do Brasil. Em seu lugar assumiria o vice,

João Goulart, depois de uma crise política que quase levava o país a uma guerra

civil e depois da implantação do parlamentarismo, uma manobra que, na prática

visava restringir os seus poderes.

18

A tática de Mao Tse Tung baseava-se na ideia de que a tomada violenta do poder pode ser feita nem sempre por uma insurreição armada de base operária que tome o poder de Estado e depois o consolide mediante a guerra civil, como sucedeu na Rússia, mas também por meio de uma inversão da ordem das coisas: primeiro a guerra civil, de base camponesa e prolongada, que acabe por cercar e conquistar as cidades e finalmente tomar o poder de Estado. Assim, Mao defendeu a ideia de que o campesinato era uma força revolucionária que poderia ser mobilizada pelo Partido Comunista. Ainda mais: considerava que a força motora da revolução devia ser a imensa massa camponesa que sobrevivia nas relações quase feudais do latifúndio chinês, enquanto o proletariado devia ser a força diretriz. O pensamento de Mao contém uma doutrina militar integral que liga explicitamente a ideologia política com a estratégia militar. Para o maoísmo, "o poder nasce do fuzil" (citação de Mao), e por essa via era possível que os camponeses participassem de uma guerra popularconfigurada como guerra de guerrilhas em três fases: Primeira: mobilização de camponeses e estabelecimento da organização. Segunda: estabelecimento das bases rurais e incremento de coordenação entre guerrilhas. E terceira: transição face a uma guerra convencional.(http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/china_11.htm. Acesso em 03/dez/2012).

63

Em meio a uma agitação política intensa Jango, como era chamado o

Presidente, lançou o seu programa de reformas de base. Eram mudanças que

assustavam as forças conservadoras do país, tais como a reforma agrária, por

exemplo, sendo colocadas no mesmo momento em que estudantes realizavam

grandes passeatas e sindicalistas faziam greves demoradas, todos exigindo

modificações radicais na sociedade.

As multidões que enchiam as ruas quase que diariamente não era sempre em

favor das reformas de base propostas pelo Presidente da República. Depois da

marcha da família com Deus pela liberdade, manifestação organizada pelos setores

mais a direita da Igreja, os militares sentiram que podiam contar com o apoio de

parcela significativa da população e resolveram tomar o poder. Foi assim que, na

noite de 31 de março para 1º de abril de 1964, o exército foi para as ruas e as

Forças Armadas depuseram o Presidente e assumiram o poder, estabelecendo o

que se conhece na história do Brasil como a Ditadura Militar.

Há fortes indícios, de acordo com Mourão (2005), de que o golpe militar de 64

tenha sido orquestrado em parceria com os Estados Unidos. Essa interferência

americana nos assuntos internos do Brasil é uma constatação que só aumentava o

sentimento de oposição aos militares, haja vista sua subserviência às ordens do

Pentágono e sua capitulação vergonhosa frente ao imperialismo e em detrimento do

orgulho nacional.

Mourão (2005, p.22), em sua obra Memórias clandestinas assegura que

O golpe foi apoiado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, que fez planos de emergência para enviar petróleo, armas leves e uma força-tarefa naval ao Brasil, caso necessário. No dia 01 de abril, um porta-aviões e destroieres – navios de guerra – zarparam de Virgínia (EUA) para o Porto de Santos, em São Paulo. No mesmo dia, 110 toneladas de armas leves, que seriam enviadas ao Brasil, foram armazenadas em Nova Jersey.

Quem também registra a influência norte-americana no golpe militar de 1964

é o historiador americano e brasilianista Thomas Skidmore. Autor de clássicos da

historiografia brasileira como De Getúlio a Castelo (1979) e De Castelo a Tancredo

(1985), Skidmore que teve grande influência na escrita da história contemporânea

do Brasil, em entrevista à Folha de São Paulo, de 05 de novembro de 2012, afirma

que soube com antecedência do golpe quando jantou no Rio de Janeiro com o

embaixador americano Lincoln Gordon, um dia antes da quartelada, em 31 de março

64

de 1964. O escritor afirma que, durante aquele jantar, “Ele [o embaixador americano]

foi passar um telegrama para Lyndon Johnson [Presidente dos Estados Unidos]

contando as novas e pedindo que o governo americano reconhecesse o novo

regime. Ele [o embaixador americano] disse que tinha ganhado”.

A Ditadura Militar no Brasil se estabeleceu com a falsa promessa de ser

breve. O Ato institucional nº 01 previa eleições diretas para outubro de 1965. Nada

disso aconteceu. Não só descumpriram a promessa como também iniciaram uma

verdadeira “operação limpeza” cujo objetivo era prender todos os elementos

considerados “subversivos”, todos eles líderes políticos, sindicalistas, estudantes e

artistas. As sucessivas derrotas dos candidatos ligados ao regime nas eleições

parlamentares e as manifestações populares cada vez maiores nas principais

capitais do Brasil, acenderam o alerta máximo do regime e levou os militares a

adotarem a política de linha dura, ao decretarem Ato Institucional nº 5, o famigerado

AI-5. Com este ato todas as liberdades democráticas estavam suprimidas, a censura

à imprensa empreendeu um cerco total aos meios de comunicação, o Congresso

Nacional foi fechado e começou uma verdadeira “caça às bruxas”, cujo objetivo era

prender, torturar, matar e arrebentar como todos os opositores.

Sem democracia a saída foi pegar em armas. E o PCdoB que já, há anos,

vinha trabalhando abertamente essa possibilidade, entendeu que era chegada a

hora de colocar em prática suas concepções revolucionárias. Foi assim que este

partido começou a organizar para depois deflagrar o episódio que passou para a

história como a guerrilha do Araguaia.

Com o golpe militar de 1964 e a consequente decretação do Ato Institucional

nº 5 (AI -5) em 1969, as liberdades democráticas e direitos civis foram violentamente

suspensos, com o país mergulhando na mais profunda e cruel ditadura de sua

história. Os militares fecharam o Congresso Nacional, acabaram com as eleições

diretas, cassaram parlamentares de oposição, instalaram a censura total em todos

os meios de comunicação, interviram nos sindicatos, expulsaram estudantes de

universidades e proibiram qualquer tipo de reunião que tratasse de política. Criaram

o Serviço Nacional de informações (SNI) que colocava em sua lista todas as

pessoas sobre as quais pairasse qualquer suspeita, mesmo que sem fundamento,

de “subversão”, além de incentivar a delação de qualquer suposto opositor,

instalando um verdadeiro clima de terror entre a população. Empreenderam uma

65

implacável perseguição, na qual os opositores do regime, como se fossem animais,

eram caçados nas ruas, presos, torturados e mortos.

Com todas as liberdades sufocadas e a infinidade de proibições do AI-5 a

população não podia nem respirar políticamente. Diante dessas condições objetivas

daquele contexto histórico, as organizações de esquerda tinham duas alternativas:

ou capitulavam renunciando a sua própria existência, o que seria um suicídio

político, ou apelava para a luta armada como única forma de enfrentar a situação. O

PCdoB foi uma dessas organizações que, sentindo-se encurralada como uma “fera

ferida” optou pela via armada. Na verdade, a vocação revolucionária do PCdoB, está

em todos os documentos produzidos pelo Partido desde sua refundação, no inicio da

década de 1960. De acordo com Pomar (1980, p. 92):

Desde fevereiro de 1962, em seu Manifesto-Programa, o Partido Comunista do Brasil afirmava que as classes dominantes tornavam inviável o caminho pacífico da revolução. Os comunistas estão convencidos de que o povo, mais dia, menos dia, terá que recorrer à luta armada. Não por amor à violência ou pelo desejo absurdo de derramar sangue. Mais sim como resposta à política terrorista da reação interna e do imperialismo norte-americano. Onde há opressão, torna-se inevitável a luta revolucionária.

Logo após os militares tomarem o poder, o PCdoB lançou o documento “O

golpe de 1964 e seus ensinamentos”, no qual se dirige ao povo para desmascar o

caráter ditatorial do regime político instalado, ao mesmo em tempo faz um acerto de

contas com outras correntes de esquerda que teriam alimentado a possibilidade de

fazer a revolução pela via pacífica. No que diz respeito ao aspecto ditatorial do

regime, o documento aponta sua real natureza e descarta qualquer ilusão

democrática acerca do golpe quando coloca que, “Em consequência da deposição

do Presidente da República, instaurou-se uma ditadura militar a serviço das forças

reacionárias internas e do imperialismo norte-americano” (POMAR, 1980, p. 66). No

que tange ao recado que manda às demais forças de esquerda diz que

Os acontecimentos de março-abril de 1964 vieram demonstrar o quanto era ilusória a orientação do caminho pacífico. É inegável que o movimento democrático e anti-imperialista dispunha de bastante força. Contava com os sindicatos, com as organizações estudantis, possuía apoio no campo e regular influência nas corporações militares. Contudo, não foi capaz de organizar a luta para enfrentar os golpistas. Imbuídos de uma concepção pacífica, revelou completa falta de iniciativa para defender os interesses do povo. Hoje, quando as liberdades foram anuladas e sucedem-se as mais

66

odiosas perseguições, não é difícil compreender o quanto foi criminosa a linha da transição pacífica (POMAR, 1980, p. 66).

No documento Guerra Popular – caminho da luta armada no Brasil publicado

em janeiro de 1969 pelo PCdoB, fica evidente a firme determinação deste partido de

pegar em armas. Logo no início, o documento faz uma análise da conjuntura política

mostrando o agravamento da situação e a atitude terrorista dos novos mandatários

do país:

Nestes últimos anos, milhares de pessoas passaram pelos cárceres e inúmeros presos políticos foram torturados barbaramente. Muitos brasileiros tombaram assassinados nas praças públicas. Supervisionados pela CIA

19,

bandos terroristas atacam universidades, teatros e manifestações populares. Igrejas e conventos são invadidos. Padres são detidos e seviciados pelo fato de expressarem sentimentos de seus paroquianos. Com suas organizações na clandestinidade, os estudantes são tratados como criminosos. (POMAR, 1981, p. 91).

A opção revolucionária é defendida, conforme mostra o documento, com a

convicção de que o povo pegará em armas, tendo em vista a tradição de lutas do

povo brasileiro. É que se constata em Pomar (1980, p. 92), quando este afirma que

Aos brasileiros não resta outra alternativa: erguer-se de armas nas mãos contra os militares retrógrados e os imperialistas ianques ou viver submissos aos reacionários do país e aos espoliadores estrangeiros. Não há dúvida que a grande maioria da nação optará pelo recurso às armas e não pela submissão. A história das massas populares no Brasil é marcada por rebeliões contra as tiranias e assinala movimentosamados contra o despotismo.

Com a ditadura abafando todas as iniciativas da vida cultural e política do país

e com a perseguição aos opositores se institucionalizando e se tornando política de

Estado, o recurso à violência revolucionária é justificado, pelo PCdoB, o partido que

planejou e executou a guerrilha do Araguaia, tendo em vista a impossibilidade de se

trilhar outro caminho no rumo da normalidade democrática no Brasil daquela época.

E não cabe aqui o discurso de que “guerra é guerra” e de que “toda violência

se equivale”, com o qual a ditadura e as forças conservadoras do país tentaram (e

19

Sigla em inglês para designar a “Central Intelligence Agency” (Agência Central de Inteligência), serviço de inteligência e espionagem dos Estados Unidos, acusada de ter planejado e dado apoio logístico ao golpe militar de 64 no Brasil (MOURÃO, 2005).

67

ainda tentam) desqualificar a iniciativa guerrilheira do PCdoB, bem como de outras

organizações de esquerda no Brasil, naquele momento vigência de um estado ilegal.

Discutindo a questão da legitimidade do emprego da violência contra o estado ilegal,

Safatle (2010, p.245) alega a tradição liberal, e não apenas de esquerda, existente

desde John Locke, lembrando que “todo cidadão tem o direito de se contrapor ao

tirano e às estruturas de poder, de lutar de todas as formas contra aquele que

usurpa o governo e impõe um estado de terror, de censura, de suspensão das

garantias de integridade social”. E foi exatamente isso que aconteceu com o golpe

militar de 1964. Mais adiante o citado autor fundamenta sua assertiva citando o

artigo 27 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, documento

fundador da modernidade política, no qual consta “que todo indivíduo que usurpe a

soberania seja imediatamente assassinado pelos homens livres” (SAFATLE, 2010,

p. 247).

A luta armada, portanto, em certo momento da ditadura no Brasil,

principalmente levando-se em conta a “caça aos comunistas” posta em prática pelo

regime militar, se constituía na única forma possível de militância política por parte

dos segmentos mais decididos da oposição. É neste aspecto que a Guerrilha do

Araguaia se torna uma forma legitima de enfrentamento daquele regime de

usurpação das liberdades e da legalidade democrática.

O primeiro passo na organização da guerrilha foi a escolha de uma área

prioritária. E a área escolhida pelo partido foi a região do rio Araguaia, no sul do

Pará. O teatro de operações do conflito se deu numa área de 7.000 Km², entre os

municípios de São Domingos e São Geraldo, no estado do Pará, sempre à margem

esquerda do rio que deu nome à guerrilha.

Uma conjunção de fatores de ordem militar e política contribuíram para essa

escolha; no plano militar, o fato de ser a região coberta de densas florestas, era uma

característica que em tese, possibilitaria a fuga em segurança dos guerrilheiros em

caso de uma grande ação repressiva por parte das Forças Armadas; no plano

político, as precárias condições de vida da população e ação de grileiros que

tomavam suas terras, esboçava uma conjuntura que favoreceria um trabalho político

de adesão das massas a causa revolucionária.

Em meados da década de 1960, começaram a chegar os primeiros

guerrilheiros à região do Araguaia. O relatório Direito à Memória e à Verdade da

Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Especial

68

dos Direitos Humanos da Presidência da República, falando da chegada dos

combatentes do PCdoB à região do Araguaia, registra que

Osvaldo Orlando da Costa, o “Osvaldão”, foi o primeiro integrante do PCdoB a se instalar na região, em 1966. Em 1968, já se compunha um grupo de 15 militantes. No início de 1972, às vésperas da primeira expedição do exército, eram quase 70. Muitos deles ocultaram suas identidades com o uso de nomes falsos e todos assumiram ocupações comuns na região (BRASIL, 2007, p. 195).

Os homens e mulheres que chegavam para integrar as forças guerrilheiras

eram, na sua maioria, lideranças estudantis que havia participado de grandes

manifestações contra a Ditadura Militar nas grandes cidades do país entre 1967 e

1969, vários deles já tendo sido presos por se envolverem em lutas de oposição ao

regime. Muitos já tinham inquéritos policiais, processos judiciais e mandados de

prisão, vários deles por participação do 30º Congresso da UNE em Ibiúna20. Ao

chegar, antes de se embrenharem na mata fechada, eram recebidos festivamente

pelos que lá já estavam, recebiam novas identidades e nomes falsos e eram

orientados a prestarem algum tipo de serviço à população sempre que houvesse

necessidade.

O comando político da guerrilha estava a cargo de dois conhecidos líderes

comunistas: João Amazonas e Maurício Grabois. O relatório Direito à Memória e à

Verdade descrevendo acerca da estratégia dos guerrilheiros afirma que

O contingente do PCdoB no Araguaia foi dividido em três destacamentos que deveriam completar 21 combatentes cada, subordinados a uma Comissão Militar. Os preparativos para a organização da guerrilha na área rural correspondiam à estratégia de guerra popular prolongada – inspirada

20

Meados de outubro de 1968. Apesar de proibida de funcionar pela Ditadura Militar, que mandara incendiar sua sede no Rio de Janeiro, logo após o golpe de 1º de abril de 1964, a União Nacional dos Estudantes (UNE) realiza o XXX Congresso num sítio do Bairro dos Alves, a uns vinte quilômetros do centro de Ibiúna pela estrada de São Sebastião. As instalações eram extremamente precárias: um acampamento de lona para as assembleias, um galpão onde uns poucos podiam dormir em sistema de revezamento – a maioria dormia no local das assembleias onde não se podia entrar sem tirar os calçados, já que chovia muito, o barro era abundante e o chão também havia sido revestido com lona – um chiqueirão desativado que servia de cozinha. No sábado, finalmente, após um difícil e prolongado processo de credenciamento, o Congresso teria início. Mas, no domingo, quando acordaram, por volta das sete horas, os estudantes foram cercados por mais de 250 policiais fortemente armados, dando tiros para o alto. Todos foram presos, colocados em fila indiana, marcharam até os ônibus e caminhões da polícia na estrada de São Sebastião, formando um comboio que levaria todos ao presídio Tiradentes no centro de São Paulo. Após uma semana de interrogatórios, a maioria dos estudantes foram levados presos para seus Estados, algumas delegações foram liberadas em São Paulo mesmo e cerca de 70, considerados os líderes, permaneceram presos. A Ditadura comemorou esse fato como se fosse uma grande vitória. (http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=1872&id_coluna=11). Acesso em 03 de dezembro de 2012).

69

na Revolução Chinesa e nos escritos de Mao Tse Tung, adotada até então pelo partido. Sustentava que a tomada de poder pelas armas deveria começar em áreas rurais e, daí, irradiar-se para os centros urbanos, realizando o chamado “cerco das cidades pelo campo” (BRASIL, 2007, p.196).

A guerrilha do Araguaia começou efetivamente, quando as Forças Armadas

descobriram as atividades do PCdoB na região. A rigor não se sabe como essa

descoberta se deu, porém, existem algumas versões aceitas neste sentido. A

primeira diz que a guerrilheira “Regina”21, depois de contrair uma doença tropical em

fins de 1971, foi enviada a São Paulo para tratamento, tendo revelado o segredo à

família que se encarregou de avisar ao Exército. A segunda conta que o guerrilheiro

Pedro Albuquerque teria saído da região com a mulher grávida, tendo sido preso e

revelado, sob tortura cruel, a existência do movimento guerrilheiro. A terceira versão

diz que, no início de 1972, o Exército havia sido avisado pela Polícia de Marabá e

Xambioá acerca de elementos estranhos e subversivos que estavam na região.

MAPA 2. O mapa da Guerrilha do Araguaia22

21

Lúcia Regina Martins (Regina) - ex-estudante de obstetrícia da USP, chegou ao Araguaia acompanhando o marido Lúcio Petit. Desiludida com a guerrilha e o casamento, deixou a região grávida, em lombo de burro, para tratar de uma curetagem mal feita num hospital de Anápolis. Fugiu do hospital em dezembro de 1971, ainda antes da primeira ofensiva militar, voltando a São Paulo para viver com a família e recusando-se a voltar ao Araguaia. Só foi presa em 1974, quando a guerrilha já estava aniquilada. Foi acusada por Elza Monnerat de ter contado aos militares sobre a guerrilha, permitindo que ela fosse descoberta (MORAIS & SILVA, 2011). 22

Fonte: Site do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois.

70

Entre fins de março e inicio de abril de 1972, depois da Operação Peixe,

desencadeada pelas Forças Armadas para checar as informações que davam conta

da presença de “subversivos” na região do Araguaia, tem início a primeira campanha

de repressão aos guerrilheiros. Cerca de dois mil homens pertencentes ao Batalhão

de Infantaria na Selva, lanchas da marinha, helicópteros e aviões invadem a região,

criam dez postos de patrulhamento na Transamazônica em construção e

transformam as cidades de Marabá e Xambioá em cidades-quartel.

Percebendo a movimentação os guerrilheiros embrenham-se na mata e

preparam-se para enfrentar o inimigo. No dia 12 de abril de 1972 o primeiro dos

guerrilheiros é preso. Trata-se de José Genuíno, conhecido na guerrilha como

Geraldo. Em Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha, Morais e Silva

(2005), depois de mostrar que o guerrilheiro foi preso quando tentava avisar a outros

destacamentos sobre a presença dos militares, narra desse modo o momento da

prisão de Geraldo:

A pé e puxado por um cavaleiro, Geraldo pensa em como agir. Tem de resistir calado pelo menos um dia para não entregar o local no qual se juntaria ao destacamento comandado por Osvaldão. Disposto a morrer como aprendeu nos treinamentos, decide fugir. Com um gesto rápido puxa a corda com força, se desprende do cavaleiro e corre. “Pode atirar”, grita o guerrilheiro, enquanto faz zigue-zague no meio do mato. Uma bala pega o braço direito de raspão. Geraldo segue correndo, mas enrosca-se em uma moita e cai. Fatigado, não consegue se levantar. Recapturado, ouve a conclusão do Sargento Marra: “Agricultor daqui não manda atirar desse jeito” (MORAIS & SILVA, 2005, p.126).

O primeiro combate direto entre guerrilheiros e o exército aconteceu em 08 de

maio de 1972 e pareceu amplamente favorável aos revolucionários. De acordo com

Morais & Silva (2005, p.158) “os agentes tinham armas automáticas, os comunistas

portavam espingarda e revólver calibre 38”. No conflito os militares perderam o cabo

Odílio Cruz, morto por Osvaldão, enquanto um tenente e um sargento saíram

gravemente feridos. Na sequência houve outro enfrentamento quando o exército

perdeu outro soldado e mais um sargento saiu ferido.

Depois de ser derrotado nessas duas primeiras refregas o exército começa a

praticar terrorismo contra a população local que dava apoio aos guerrilheiros. De

http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/galerias.php?id_sessao=36. Acesso em 28/10/2012.

71

acordo com Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (BRASIL,

2007, p. 197):

Nos depoimentos tomados pelo Ministério Público Federal, os moradores da região contam que os militares agiram com brutalidade nos povoados e cidades, aterrorizando os camponeses. Muitos foram presos e espancados. Pelo menos dois camponeses foram mortos nessa primeira campanha. Em 18 de maio, o barqueiro Lourival Paulino, como mais de 50 anos, foi preso pelos militares, acusado de colaborar com a guerrilha. Levado para a delegacia de Xambioá, foi torturado e morto no terceiro dia no cárcere. Outro camponês, Juarez Rodrigues Coelho, não chegou a ser levado para a delegacia, mas também teria cometido suicídio, em 14 de agosto, segundo o Relatório da Operação Papagaio.

A primeira grande perda dos guerrilheiros foi a morte do estudante cearense

Bérgson Gurjão23. Ainda no mês de maio do primeiro ano da guerrilha, um morador

da região, certamente motivado pela recompensa em dinheiro, informou ao exército

que tinha combinado levar para os guerrilheiros uma certa encomenda que eles

haviam mandado comprar: tratava-se de fumo de corda. Na hora e local marcado,

Jorge, nome pelo qual era conhecido Bérgson Gurjão, chegou acompanhado de

mais quatro companheiros, ocasião em que foram surpreendidos com rajadas de

metralhadoras. Jorge caiu morto, sendo o primeiro guerrilheiro a tombar em

combate. Apesar dessa morte, os militares, começaram a bater em retirada e, no

mês de julho, estava encerrada a primeira campanha com nítida vantagem para os

guerrilheiros.

A segunda campanha de repressão à guerrilha começou logo após a quadra

chuvosa na região, em setembro de 1972. Conforme dados do Relatório Direito à

Verdade e à Memória (BRASIL, 2007, p. 197) “Um efetivo estimado entre 3 mil e 5

mil soldados teriam sido mobilizados para uma operação de ampla envergadura,

batizada com o nome-código Papagaio”. Eram dois batalhões de infantaria, uma

companhia aero-transportada, um comando de paraquedistas, uma companhia de

fuzileiros navais e uma esquadra de aviões da Força Aérea Brasileira. Tendo

montado acampamentos em Xambioá, São Geraldo, Araguanã e Araguatins, o

23

Bergson Gurjão Farias, era cearense e seu nome de guerrilheiro era Jorge. Entrou para o movimento estudantil quando cursava Química na Universidade Federal do Ceará. Falante e brincalhão, ficou muito conhecido entre os moradores de Caianos, na região do Araguaia. Os companheiros gostavam muito de ouvi-lo cantar músicas de Noel Rosa, na hora de dormir. Tornou-se o primeiro militante do PCdoB morto pelas forças repressivas. Teve seu corpo varado de balas no dia 02 de junho de 1972, depois de ser traído por um camponês com quem marcara encontro. (MORAIS & SILVA, 2005, p. 566).

72

exército sinaliza nessa nova investida, com uma mudança de tática no trato aos

camponeses: ofereciam médicos, remédios e dentistas à população.

Nessa segunda campanha, destaque para a tática dos deslocamentos na

selva, o apoio da população aos guerrilheiros e os dramas de Glênio Sá24 e Helenira

Resende25. No tocante aos deslocamentos, de acordo com Morais e Silva (2005, p.

295):

Os agentes da repressão descobriram que os guerrilheiros evitavam usar as trilhas. Abriam caminhos a facão, para confundir os perseguidores. Cortavam trechos de 15 metros, interrompiam e retomavam adiante, à direita e à esquerda. Sem conhecer a técnica ficava quase impossível segui-los. Osvaldão calçava chinelo ao contrário para fingir que andava em outra direção, imitando o personagem protetor das matas, o Curupira, de nosso folclore.

Os dramas mais sentidos pelos guerrilheiros nesta segunda campanha foi o

sumiço de Glênio Sá e a morte de Helenira Resende. Glênio, depois de se afastar

do seu destacamento desaparece na floresta, passa meses vagando sem direção

pela mata e perde até a noção do tempo, até que encontra uma casa, na qual é

traído pelos moradores, sendo preso e torturado pelos militares. A morte em

combate da guerrilheira Helenira Resende, respeitada líder estudantil, abala o seu

destacamento que em sua honra e glória recebe o seu nome.

O caso de traição que levou Glênio Sá a prisão foi uma exceção entre os

camponeses da região. Na verdade, era grande o apoio e a simpatia que os

guerrilheiros inspiravam na população. Na maioria das vezes os moradores

desafiavam a repressão e traziam informações preciosas aos guerrilheiros.

Documentos apreendidos pelos agentes da repressão mostraram, de acordo com

24

Glênio Fernandes de Sá foi preso em junho de 1973 e permaneceu na prisão por dois anos. Entrou para a vida política e participou da campanha eleitoral para senador no Rio Grande do Norte pelo PCdoB quando ocorreu o desastre automobilístico que o vitimou fatalmente, em 1990 (MORAIS &SILVA, 2005, p. 598). 25

Helenira Resende de Sousa Nazareth (Preta ou Fátima) era líder estudantil e integrou a diretoria da UNE em 1968. Cursou Letras na Faculdade de Filosofia da USP. Apelidada Preta, por ser mulata. Passou duas vezes pela prisão antes de ir para o Araguaia. Uma delas, durante o Congresso de Ibiúna. Valente e carismática, encarnou o espírito guerrilheiro da geração. Abatida em combate no dia 28 de setembro de 1972. Moradores viram Fátima viva nas mãos do Exército. Outros ajudaram a transportam o corpo, em lombo de burro. Em homenagem à companheira, o Destacamento a passou a chamar-se “Helenira Resende” (MORAIS &SILVA, 2005, p. 570).

73

Morais e Silva (2005, p. 304) que “os guerrilheiros sabiam os nomes dos

comandantes, tinham informações sobre a movimentação das tropas, quando

chegavam e de onde haviam saído”.

A segunda campanha chega ao seu final em outubro de 1972 quando as

tropas começam a se retirar da área em conflito. Os guerrilheiros, aproveitando esse

fato cantam vitória. Um comunicado das Forças Guerrilheiras do Araguaia,

produzido em mimeógrafo e distribuído à população afirma que “Sem o apoio dos

moradores, o inimigo teve que fugir espavorido ante o ataque das forças rebeldes”.

Nessa mesma direção, o Relatório Direito à Verdade e à Memória (BRASIL, 2007, p.

197) registra que “Encerrada dois meses depois, com a chegada das chuvas, essa

segunda campanha deixou um saldo de importantes baixas entre os guerrilheiros,

mas assumiu alguns aspectos de derrota para o regime, pelo fracasso no que tange

ao objetivo central da operação”.

Depois da segunda campanha não havia mais segredo acerca das intenções

dos revolucionários. Estes aproveitaram, portanto, o período de calmaria para sair

da floresta e fazer contatos com a população, fazer propaganda de sua causa e

arregimentar novos combatentes para a guerrilha. Foi aí que anunciaram a criação

da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP), cujo programa previa

distribuição de terras, assistência médica, construção de escolas, fim das

arbitrariedades policiais, eleições livres para prefeitos, respeito aos índios e aos

direitos da mulher.

Entre a segunda campanha e a terceira, houve exatamente um ano sem

combates. Mas o que o Comandante guerrilheiro Ângelo Arroio chama, em seu

Relatório sobre a guerrilha, de “trégua” foi, na verdade, de acordo com Studart

(2006, p. 163) “uma guerra invisível, uma das maiores operações de espionagem e

inteligência da história do país, a Operação Sucuri, que mapeou o terreno para o

combate seguinte”. Nesse período, os militares mudaram radicalmente suas táticas.

Disfarçados, andando à paisana, como se fossem empregados de uma empresa

fantasma que criaram, bem como falsos técnicos do Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (INCRA), os militares tinham acesso ao interior das

residências e recebiam, gratuita e involuntariamente, informações privilegiadas

sobre os guerrilheiros.

Depois de um ano, já em outubro de 1973, foi desencadeada a Operação

Marajoara, a terceira e última campanha contra os guerrilheiros. Para se ter uma

74

ideia da importância dada a essa operação militar, de acordo com Comissão

Especial sobre Mortos e Desaparecidos Político (BRASIL, 2007, p.198) “A

Presidência da República, encabeçada pelo General Médici, assumiu diretamente o

controle das operações sobre as operações repressivas”. Nesse momento da

guerra, a ordem era não fazer prisioneiros, em outras palavras, a ordem era matar

todos.

De acordo com o Relatório do Comandante guerrilheiro Ângelo Arroio, alto

dirigente da guerrilha e do PCdoB, havia 56 guerrilheiros na região no inicio da

Operação Marajoara e os três destacamentos rebeldes se juntaram num só. Nessa

terceira campanha, os moradores voltaram a serem agredidos com prisões,

espancamentos e humilhações.

Noutro trecho, o Relatório Direito à Verdade e à Memória apresenta

fragmento de uma das matérias escritas pelo jornalista Fernando Portela para o

Jornal da Tarde, em 1979, sobre o terror que os militares desencadearam sobre a

população:

Em Xambioá, cavaram-se buracos próximos aos acampamentos com cordas em estacas afiadas à beira dos buracos. Levavam empurrões, socos e choques elétricos. E havia um médico entre os “especializados”. Quando um homem desmaiava, recebia uma injeção para reanimar e sofrer consciente. Vários morreram em função dos maus tratos recebidos e alguns enlouqueceram. A quase totalidade não havia participado da guerrilha, mas teve o azar de ter vendido mantimento, transportado, cortado o cabelo ou conversado, em algum momento, com um dos componentes da guerrilha. Naquela época, e naquele lugar, qualquer sinal de simpatia pelos guerrilheiros era visto como um perigoso ato de contestação, tão perigoso quanto pegar em armas (BRASIL, 2007, p. 198).

A terceira e última campanha foi amplamente favorável aos militares e

conferiu pesadas baixas aos guerrilheiros, cada vez mais cansados, sem armas e

sem munição para um enfretamento de maior envergadura. As mortes da

guerrilheira Sonia26, de Maurício Grabois27, o comandante maior da guerrilha, e de

26

Era o nome falso de Lúcia Maria de Souza. Abandonou a Escola de Cirurgia e Medicina no Rio de Janeiro para viver na região de Brejo Grande. Na Universidade distribuía o jornal Classe Operária. De origem pobre, envolveu-se com a população do Araguaia e ficou conhecida como parteira. Dona de temperamento doce e enérgico, atuou no Destacamento A. Teve participação decisiva na decisão de retirar Lúcia Regina Martins para tratar de saúde fora da área de preparação da guerrilha. Uma patrulha do Exército matou Sônia no dia 24 de outubro de 1973. A guerrilheira morreu metralhada depois de levar tiros nas pernas, sacar a arma, atirar e ferir os oficiais Lício Augusto Ribeiro Maciel, o Doutor Asdrúbal, no rosto, e Sebastião Rodrigues de Moura, o Doutor Luchini, mais tarde, Major Curió, no braço (MORAIS & SILVA, 2011, p. 575).

75

Osvaldão28, “o mito do Araguaia”, além da morte de vários outros combatentes

atingiram mortalmente as forças guerrilheiras. No natal de 1973 veio o golpe final: o

comando da guerrilha foi surpreendido pelas Forças Armadas e totalmente dizimado,

sendo o principal Comandante da guerrilha, Maurício Grabois, abatido naquele

momento. A partir daí, os sobreviventes perderam toda a orientação militar e

passaram a vagar na floresta, sendo abatidos um a um até outubro de 1974, quando

Walquíria29, a última guerrilheira foi assassinada.

FIGURA 1. Corpos de guerrilheiros do Araguaia mortos em combate30

27

Comandante-geral da guerrilha. Filho de imigrantes judeus, elegeu-se deputado federal pelo PCB do Rio de Janeiro. Liderou o partido na Constituinte de 1946. No racha dos comunistas em 1962, foi um dos líderes da facção agrupada na sigla PCdoB, contrária ao comando de Luiz Carlos Prestes. Com o golpe de 1964, entrou para a clandestinidade. Mudou-se para o Araguaia em 25 de dezembro de 1967 e caiu nas mãos do Exército seis anos depois, no Natal de 1973. Integrou o Birô Político, a Comissão Militar e o Comitê Central do Partido. (MORAIS & SILVA, 2011, p. 577). 28

Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão), Comandante do Destacamento B no Araguaia, tinha quase dois metros de altura, negro, muito forte e bom de papo, chamou a atenção nos povoados e garimpos da região nos últimos anos da década de 1960. Destacou-se em tudo que realizou desde a adolescência. Lutou boxe no Botafogo do Rio de Janeiro, serviu no Curso Preparatório de Oficiais da Reserva (CPOR) e passou para a reserva como oficial do Exército. Generoso e prestativo fez muitos amigos. Tornou-se uma lenda na guerrilha. No imaginário da população, Osvaldão adquiriu fama de imortal. Os soldados inexperientes tremiam de pavor quando ouviam histórias sobre o gigante invencível. A marinha registra a morte de Osvaldão em 07/02/1974. O corpo foi içado em helicóptero e mostrado em toda a região antes de ser levado para a base de Xambioá (MORAIS & SILVA, 2011, p. 578). 29

Walquíria Afonso Costa (Walk) estudou na Faculdade de Artes e Educação da Universidade Federal de Minas Gerais em Belo Horizonte e participou do Diretório Acadêmico. As atividades políticas tornaram Walk visada pela repressão. Largou o Curso e mudou-se com o marido Idalísio Soares Aranha Filho, o Aparício, para a região do Araguaia em janeiro de 1971. O casal fez parte do Destacamento B. Walk perdeu contato com o comando guerrilheiro em dezembro de 1973. Morreu no dia 25 de outubro de 1974, segundo a Marinha, e tornou-se a última guerrilheira abatida pelas Forças Armadas no Araguaia (MORAIS & SILVA, 2011, p. 582). 30

Fonte: Site do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois: http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/galerias.php?id_sessao=36. Acesso em 28/10/2012.

76

No final de 1974 não havia mais guerrilheiros no Araguaia. Conforme se vê no

relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (BRASIL,

2007, p.199) “o governo militar impôs silêncio absoluto sobre os acontecimentos do

Araguaia. Proibiu a imprensa de dar notícias sobre o tema, enquanto o Exército

negava a existência do movimento”.

Dois guerrilheiros, porém, conseguiram furar o cerco do Exército e fugiram da

região. Eram Ângelo Arroio, um dos comandantes da guerrilha e Zezinho31, um

combatente que havia feito treinamento militar na China e era especializado em sair

e entrar em áreas conflitadas. Atravessaram o rio Araguaia a nado e entram no

cerrado, já no estado de Goiás. Arroio seguiu para o Rio de Janeiro onde fez contato

com o partido, apresentando seu famoso documento conhecido como “Relatório

Arroio” no qual faz um relato detalhado da experiência no Araguaia. No aspecto

geral, o comandante se mostra otimista e diz que o Araguaia foi um “grande

acontecimento na vida do país e do Partido”, fala de uma derrota apenas temporária

e da possibilidade de repetir o Araguaia em outras partes do país. De acordo com

Morais & Silva (2005, p. 501) Arroyo “Atribuía a derrota ao fato de as Forças

Armadas terem atacado as bases de treinamento antes da estruturação completa

dos destacamentos”.

Quase três anos depois, Ângelo Arroyo consegue contato com o partido e

organiza-se uma reunião na qual seria feita a primeira grande avaliação dos

comunistas sobre a guerrilha. A reunião seria na casa de nº 767, localizada na Rua

Pio XI, no bairro da Lapa em São Paulo. Avisadas por um delator, as Força Armadas

invadem o local na madrugada do dia 16 de dezembro de 1976 e assassinam

Ângelo e Pedro Pomar. João Batista Drummond, que fora preso ao sair de casa no

dia anterior, foi morto sob tortura na cadeia.

31

Michéas Gomes de Almeida, conhecido como Zezinho, nas hostes do PCdoB, estudou a tática de guerrilhas na China, combateu no Araguaia e saiu de lá, junto com Arroyo, no início de 1974. Depois disso, Zezinho ficou perdido, sem contato com o Partido ou com a família. Passados alguns meses, conseguiu emprego como auxiliar de pedreiro. Vive atualmente em Goiânia e luta pela construção, em Xambioá/PA, de um monumento que ajude a eternizar a saga dos guerrilheiros (MORAIS & SILVA, 2005, p. 599).

77

FIGURA 2. Casa onde aconteceu a chacina da Lapa.32

FIGURA 3. Corpos de Ângelo Arroyo e Pedro Pomar assassinados na Chacina da Lapa33

FIGURA 4. Foto de Pedro Pomar, João Batista Drummond e Ângelo Arroio mortos na Chacina da Lapa

34

32

Fonte: Site do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois: http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/galerias.php?id_sessao=36. Acesso em 28/10/2012. 33

Fonte: Site do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois: http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/galerias.php?id_sessao=36. Acesso em: 28/10/2012. 34

Fonte: Site do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois. http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/galerias.php?id_sessao=36. Acesso em: 28/10/2012.

78

Muitos afirmam que o verdadeiro fim da guerrilha do Araguaia foi neste

episódio que passou à história como a Chacina da Lapa, pois além de ter sido a

última das ações armadas da Ditadura contra os guerrilheiros, conta também o fato

de que, uma corrente liderada por Ângelo Arroyo, entendia que a derrota no sul do

Pará teria sido apenas temporária e, em função dessa compreensão, defendia que o

partido recomeçasse a preparação de uma nova guerrilha em regiões próximas ao

Araguaia. Essa proposta foi extinta, evidentemente, com a completa extinção física

de seus defensores.

2.1.4 A memória mítica da guerrilha

O arquivo discursivo que envolve o relato dos guerrilheiros do Araguaia

registra lendas que circulavam entre a população daquela região acerca de alguns

combatentes, a ponto de transformá-los em verdadeiros mitos. Dada a sua coragem

e ousadia, alguns guerrilheiros viraram figuras lendárias e passaram a habitar o

imaginário coletivo das populações do sul do Pará, mesmo depois de mortos.

A memória mítica está no imaginário coletivo de uma sociedade ou de uma

época e sobre essa questão Da Costa (apud STUDAT, 2006, p. 64) coloca que “O

conhecimento do real é sempre perpassado pela imaginação; enquanto criação, é

uma expressão dos sonhos, das utopias dos sujeitos sociais, pois são suas paixões,

seus desejos que os movem a agir, a transformar a natureza”; enquanto isso,

estabelecendo uma relação metafórica entre o real e o imaginário, Barbier (apud

STUDART, 2006, p. 62) afirma que “O imaginário é o perfume do real. Por causa do

odor da rosa eu digo que a rosa existe”.

Hugo Studart em A lei da selva (2006) registra que cerca de 15 guerrilheiros

se transformaram em lendas que circulavam entre os povos da floresta na região do

Araguaia, destacando-se, dentre eles, Dina35, Sônia e Osvaldão. Com relação à

Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, a subcomandante Dina, diziam, as lendas que

35

Dinalva Oliveira Teixeira (Dina) era formada em geologia pela Universidade Federal da Bahia. De origem humilde, adaptou-se bem à vida no Araguaia, ganhou respeito e gratidão pela ajuda prestada à população. Virou exemplo de coragem e preparo físico para os companheiros. Durante os combates chegou ao posto de subcomandante do Destacamento C. De temperamento forte exercia liderança entre os companheiros e a população. Sobreviveu a confrontos com o Exército e provocou medo nos soldados. Morreu em combate, mas tornou-se símbolo da resistência esquerdista na selva paraense (MORAIS & SILVA, 2011, p. 568).

79

ela tinha o corpo fechado, que virava borboleta36 e que se transformava em folha

que o vento levava e se perdia na imensidão da mata fechada.

De acordo com Studart (2006, p. 55):

Corre a lenda que, certa feita, em combate, mesmo com uma bala alojada no pescoço, teria virado borboleta antes de desaparecer na mata diante dos olhos em estupor dos inimigos.

37 Por sua determinação, guerrilheiros a

obedeciam. Pela coragem testada nas armas, soldados a temiam. Para os militares que entraram na mata, rondava o temor de sua aparição. Nada pior, acreditavam, do que encará-la de frente.

Quando foi presa, mesmo sabendo que ia morrer, Dina não expressou temor

diante da morte, pelo contrário, pediu para morrer de frente. “Ela virou e encarou o

executor nos olhos. Transmitia mais orgulho que medo”, relatou depois aos colegas

de farda, o sargento do Exército que a executou. Tratava-se de Joaquim Arthur

Lopes de Souza, conhecido pelo codinome de Ivan. Depois de matar a guerrilheira

nunca mais o Sargento Ivan teve paz. Studart (2006, p. 68) conta que

Dina ocupou por 13 anos o imaginário de Ivan – da hora em que a matou até o instante em que ele próprio morreu. Era sua heroína, a pessoa mais valente que já conhecera. Diante dos amigos de armas, gostava de cantar loas e boas sobre a imensa coragem demonstrada pela subcomandante na hora em que encarou a morte. Orgulhava-se de tê-la executado, relatam hoje seus amigos. Neste sentido o encontro de Dina e Ivan nos remete ao mito do encontro entre Pentesiléia e Aquiles durante os combates de Tróia. Ela, a rainha das amazonas, terrível em seu grito de guerra, matou muito bravos guerreiros até sucumbir pela espada de Aquiles. Reza o mito que o guerreiro de Homero se apaixonou por Pentesiléia no átimo em que seus olhares se cruzaram antes da morte dela.

A morte de guerrilheiro que mais repercutiu entre a população, entre os

combatentes e até mesmo entre os militares, foi a da guerrilheira Sônia. Isso porque

antes de morrer, mesmo cravejada de balas, reagiu à prisão, sacou da arma e atirou

deixando dois oficiais do Exército gravemente feridos e, além disso tudo, ainda fez

propaganda de sua causa. “Como é seu nome? Teria perguntado um militar”.

Guerrilheiro não tem nome, tem causa”, teria respondido Sônia antes de ser

36

A lenda deve ter surgido em referência ao episódio ocorrido em 20 de dezembro de 1972, quando houve um combate entre os guerrilheiros e uma patrulha de oito paraquedistas do Exército. Os soldados metralharam toda a área onde estavam os guerrilheiros matando todos, exceto Dina que fugiu com um arranhão de bala no pescoço (ARROYO apud STUDART, 2006, p. 55).

80

fuzilada”. (STUDART, 2006, p. 70). Na região, contudo, corre a lenda de que o

último discurso de Sônia; além do trecho já citado ela teria dito mais: “Guerrilheiro

está em busca da liberdade e de um mundo melhor” (STUDART, 2006, p. 70), o que

transforma suas últimas palavras num autêntico discurso em favor da revolução.

Porém, em matéria de lenda, ninguém supera o guerrilheiro Osvaldão. Era um

negro de 1m e 98 cm, calçava 48, tinha sido campeão de boxe pelo Botafogo do Rio

de Janeiro e tenente do Exército. De acordo com Studart (2006, p. 72) “Corria a

lenda na região de que Osvaldão virava lobisomem e outros tipos de assombração.

Teria a capacidade de se camuflar em fumaça”. Quando Osvaldão foi morto, um dos

últimos a tombar na guerrilha, os militares desfilaram em um helicóptero com o corpo

dele pendurado por uma corda. Ao mostrar o corpo sem vida do maior mito da

guerrilha, o Exército tentava atingir a memória mítica e o imaginário coletivo

abalando a moral dos guerrilheiros e camponeses simpatizantes.

A inexperiência dos recrutas, soldados novos do Exército que foram

deslocados para combater no Araguaia, aliada a algumas crendices regionais,

ajudavam a mistificar a figura dos guerrilheiros. De acordo com Portela (1987, p. 58)

um certo Oficial do Exército teria dito assim numa certa conversa:

- Você pensa que o problema dos recrutas era somente o da inexperiência, de não conhecer a mata, essas coisas? Ou do medo dos guerrilheiros? Que nada: além de ter medo dos guerrilheiros, eles, coitados, que vinham de famílias humildes ali do Norte mesmo, tinham medo de Saci, Mãe do fogo, lobisomem... No Araguaia, esses espíritos da mata baixavam no candomblé local, o terecô, e todos diziam que Osvaldão era imortal.

Deduz-se do fragmento acima que, muito provavelmente, essa conspiração

das crenças e das manifestações religiosas locais em favor dos guerrilheiros, era um

sinal da popularidade de que desfrutavam os comunistas junto às populações do sul

do Pará, era a memória mítica e coletiva operando em prol da guerrilha. Afinal de

contas, o comportamento, o estilo de vida e a solidariedade dos guerrilheiros tinham

inserido os “paulistas”, como eram chamados os guerrilheiros, no imaginário das

massas populares da região e despertado sua simpatia.

Diante de fatos como esses, é compreensível que as lendas que circularam, e

ainda circulam no sul do Pará, sobre aqueles destemidos combatentes da floresta,

certamente fazem parte do arquivo discursivo que relata os acontecimentos do

81

Araguaia naquele período histórico e certamente darão subsídio à análise do corpus

desta pesquisa.

2.2 MEMÓRIA E HISTÓRIA

2.2.1 A relação memória e história

A relação memória e história atravessa milênios e remonta os tempos

clássicos da mitologia grega. Vê-se, por exemplo, em Le Goff (1994) que os gregos

antigos atribuíam à memória uma condição sobrenatural e a transformaram numa

deusa cujo nome era Mnemosine. Essa deusa era a mãe das nove musas geradas

nas nove noites em que Mnemosine dormiu com Zeus, sendo que uma dessas era

Clio, a musa da história. Levando em conta essa elaboração mítica se deduzirá que

a história é filha da memória. No entanto, apesar desse parentesco, observando-se

o relacionamento entre essas duas ao longo dos últimos vinte e cinco séculos se

constará que, comportando-se como uma espécie de ovelha negra da família divina,

Clio, quer dizer, a história, tem tido sempre, e invariavelmente, uma relação

conflituosa com sua mãe, Mnemosine, ou melhor, Memória.

A construção mitológica nos ajuda a entender que, decididamente, Memória e

História não são a mesma coisa; as duas tratam do passado, porém, enquanto a

Memória, apesar de seletiva, permite uma ligação direta com este passado, a

História, igualmente seletiva, se liga ao passado por intermédio da narração. Melhor

explicando: quando alguém se lembra de algum lugar ou acontecimento é

transportado diretamente para esse lugar ou acontecimento. Tem-se aí um

movimento de memória: uma viagem ao passado sem intermediários. Porém se

alguém vai descrever esse lugar ou acontecimento para outras pessoas, certamente,

terá que se utilizar de uma narrativa, ou seja, de mecanismos discursivos que vão

intermediar o acesso de quem ouve a esse lugar ou acontecimento. Tem-se aí a

história, uma viagem ao passado intermediada pelo discurso.

Nas primeiras décadas do século passado, o sociólogo francês Maurice

Halbwachs, colocando mais “lenha na fogueira” desse conflito, afirmou que toda

memória era coletiva e que, portanto, não haveria memória individual. Esse

estudioso justificava sua assertiva argumentando que embora seja o indivíduo que

se lembre das coisas é o contexto social quem vai determinar o que é mesmo digno

82

de ser memorizado. Em outras palavras, segundo a formulação de Halbwachs, toda

memória é coletiva, pois, mesmo partindo de uma lembrança individual só vai se

afirmar aquela lembrança que for referendada pelo meio social.

A partir da segunda metade do século XX assistiu-se a um verdadeiro

movimento de reavaliação das ligações entre memória e história; a concepção

tradicional na qual a história era tida como guardiã da memória entrou em declínio. A

antiga ideia de que os historiadores escreviam para manter viva a memória dos

grandes acontecimentos e dos grandes heróis foi sendo substituída por um

entendimento mais subjetivo do processo de historicização. Aos poucos os

historiadores foram abandonando a ideia de objetividade na história e começaram a

levar em conta fatores como a seleção dos fatos que escolhe para serem

investigados, a interpretação que proporciona versões diferentes para um mesmo

fato e a distorção que pode, de modo consciente ou não, mudar o rumo dos

acontecimentos.

A questão da subjetividade na relação memória/história suscita a ideia de que

exista um processo de seleção que escolhe o tipo de memória que será

historicizada. Neste caso, faz-se necessário identificar os critérios desta seleção,

como variam em função do lugar ou do grupo social e como se transformam em

função do tempo. Clareando essas colocações, Burke (2000, p. 73) vai mostrar que

“As memórias são maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas,

e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade”.

A memória de que trata a AD não é aquela do senso comum e de orientação

psicologizante. Não é a lembrança da infância ou dos antepassados, do culto aos

mitos, dos fatos marcantes ou dos heróis da pátria, por exemplo. Convém, destarte,

levar em conta a confusão que geralmente se forma entre memória e imaginação;

Ricoeur (2008) coloca que essa problemática é tão antiga quanto à filosofia ocidental

e justifica sua afirmação colocando a polêmica entre Platão e Aristóteles a esse

respeito, da seguinte forma:

Sobre esse tema, a filosofia socrática nos legou dois topoi rivais e complementares, um platônico, e outro aristotélico. O primeiro, centrado no tema da eikon, fala da representação presente de uma coisa ausente; ele advoga implicitamente o envolvimento da problemática da memória pela imaginação. O segundo, centrado na representação de uma coisa anteriormente percebida, adquirida ou apreendida, preconiza a inclusão da problemática da imagem na da lembrança. É com essas versões da aporia

83

da imaginação e da memória que nos confrontamos sem cessar (RICOEUR, 2008, p. 10).

Não obstante a sua cumplicidade, as relações entre memória e história

também tem suas desavenças, uma vez que as duas disputam o mesmo espaço, o

território do passado. A história, às vezes, não acredita nos registros da memória e

esta, por sua vez, desconfia de determinadas versões da história. Sarlo (2007, p.10)

ilustra bem essa relação mostrando que

Além de toda decisão pública ou privada, além da justiça e da responsabilidade, há algo inabordável no passado. Só a patologia psicológica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar. Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é convocado por um simples ato de vontade.

Essas questões são importantes até porque nenhuma força é capaz de

impedir que o passado se manifeste no presente. De uma forma ou de outra a

memória vai se manifestar no discurso. Foi contra esse historicismo da memória que

Nietzsche se levantou bradando que a história tradicional reprimia os impulsos do

presente.

Do alto de seu inconformismo com a história tradicional, no fundo, Nietzsche

tinha razão. É fácil deduzir, nos dias de hoje, que uma pequena e fechada elite

política e intelectual foi quem escreveu a história no século XIX, colocando,

naturalmente a sua versão dos fatos. Aliando à reconstituição da memória uma

interpretação que, naquele contexto histórico, era conveniente, tudo ficou

politicamente correto e convenientemente encaixado, foram feitas as sínteses que

interessavam ao poder e foram fechados os grandes acordos que se passou para as

gerações futuras com o nome de história.

As implicações da história tradicional se revelam ainda mais nocivas à medida

que, com a afirmação do capitalismo em escala mundial, a dimensão simbólica das

sociedades em que vivemos passa a ser organizada pelos mercados. A História

estaria a serviço do capital, do status quo e do estabelishman. Diante dessa

constatação ganha maior importância a opção por uma história genealógica, “que

problematiza o passado a fim de desvelar suas camadas arqueológicas, se volta

para uma crítica do presente” (GREGOLIN, 2004). Isto sugere a adoção de uma

84

história-problema que surja da crítica aos fundamentos positivistas da história

tradicional.

Nem a pós-modernidade, com sua pregação momentânea ou extemporânea e

com as operações de apagamento que parecem querer a dissolução do passado,

consegue frear a força geradora de sentidos da memória. Com um detalhe: o

ressurgimento do romance histórico, a proliferação dos parques temáticos, o

lançamento de filmes de época, além de ser uma espécie de espetacularização do

passado, é também sinal da entrada do capitalismo no campo da memória. Toda

essa onda de neo-historicismo, e porque não dizer, de neoliberalismo, como muito

bem afirma Sarlo (2007, p.11) “indica, porém, que as operações com a história

entraram no mercado simbólico do capitalismo tardio com tanta eficiência como

quando foram objeto privilegiado das instituições escolares do século XIX”.

Afinada com essa proposta, Sarlo (2007) comemora chamando de “guinada

subjetiva” dos anos 1970 e 1980 do século passado, o movimento de valorização

das pessoas do povo e de credibilidade nas suas respectivas narrativas. A razão das

pessoas que, por décadas, teria sido colocada em segundo plano ou simplesmente

desconsiderada, estaria resgatada. Esse movimento, portanto, estaria coincidindo

“com uma renovação análoga na sociologia da cultura e nos estudos culturais, em

que a identidade dos sujeitos voltou a tomar o lugar ocupado, nos anos 60, pelas

estruturas” (SARLO, 2007, p. 19).

A investigação acerca das confusas relações entre memória e histórica, se

por um lado apresenta toda uma complexidade de fatores que está longe de ser

equacionada, por outro lado, serve, no mínimo e de modo colateral, para o

clareamento de questões que perpassam o âmbito desse debate. Abrindo caminhos

nesse sentido, Le Goff (1994, p. 477) afirma que “A memória, onde cresce a história,

que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o

futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e

não para a servidão dos homens”.

Nesse sentido, trabalhar em nível de análise do discurso para identificar os

movimentos de memória que geram sentidos para recontar a própria história, como

propõe esta dissertação, é uma tarefa que segue a reflexão de Le Goff. Necessário

será, porém, partir do princípio de que a memória, por si só, não obstante seus

conflitos com a história, é um campo de batalha.

85

2.2.2 A memória como campo de batalha

A memória, na concepção de Pêcheux, é um campo de batalhas. E esses

conflitos se tornam cada vez mais acirrados quando a memória se prepara para

trazer ao discurso, e, portanto à lembrança, fatos relacionados à história dos povos e

das nações. Veja-se, por exemplo, as dificuldades que a Comissão da Verdade38

teve para se implantar, mesmo depois do Estado brasileiro ter reconhecido

oficialmente a sua responsabilidade nos crimes cometidos pela Ditadura Militar39. A

disputa entre os querem desvelar os fatos daquele período e os que preferem o

esquecimento, seja por uma questão de fazer justiça às vítimas da Ditadura, seja por

um ato de perdão ou de conciliação nacional, na prática, está inviabilizando os

trabalhos desta Comissão que sequer definiu qual sua verdadeira natureza e aonde

pretende chegar com seus trabalhos.

No caso do Brasil, em se tratando da época do Regime Militar de 1964, o par

memória/esquecimento corresponde à fórmula correta para se pensar o passado. Se

não se examinar os processos de memória que remontam a Ditadura se estará

fortalecendo a possibilidade de um esquecimento indesejável. Sontag (apud SARLO,

2007, p. 21) fala que “Talvez se atribua valor demais à memória e valor insuficiente

ao pensamento”. Nesta linha de raciocínio, a convicção de que é mais importante

entender do que lembrar traduz uma preocupação com o excesso de memória que,

em se tratando dos objetivos desta dissertação, não se faz pertinente ao caso

brasileiro: o presente trabalho procura exatamente recorrer à memória para não

esquecer e reposicionar a história dos que morreram lutando contra a Ditadura.

Para Silva (2008) a memória que interessa ao analista do discurso é aquela

de que nos fala Pêcheux em seus trabalhos quando estes “concebem o interdiscurso

como memória discursiva”. Por falar nisso, Pêcheux (1999, p. 52) mostra que

a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os implícitos (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos

38

A Comissão foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em maio de 2012. Ela tem por finalidade apurar graves violaçãoes de Direitos Humanos, praticados por agentes públicos, ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. (http://www.cnv.gov.br. Acesso on-line em 22 de outubro de 2012). 39

A Lei nº 9.140/95 marcou o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de sua responsabilidade no assassinato de opositores políticos no período abrangido. Reconheceu automaticamente 136 casos de desaparecidos constantes num “Dossiê” organizado por familiares e militantes dos Direitos Humanos ao longo de 25 anos de buscas (BRASIL/CEMDP, 2007, p. 17).

86

transversos e etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.

Em termos foucaultianos, o enunciado é um domínio de memória,

acontecimento que, pelo fato de já ter sido dito, pertence à história. Silva (2008)

tratando da relação memória e história por meio do acontecimento discursivo coloca

que “Para a história, a memória trabalha como um conceito operatório por meio do

qual a narrativa inscreve sua relação com o passado, presentificando-o; a memória

é, por assim dizer, o que fornece ao historiador conteúdo para a narrativa”. A

historicidade da memória estaria garantida, neste caso, haja vista que ela (a

memória) pode ser vista como a história social das práticas discursivas, ou seja, a

história social da produção e circulação dos acontecimentos discursivos em função

enunciativa.

Observa-se que a relação entre memória e história é tão próxima que, por

muito tempo, se trabalhou com a possibilidade de que a história fosse um espelho

da memória, uma cópia fiel do que estava guardado e que se revelava por meio da

lembrança. Desse ponto de vista, qualquer documento gerado a partir da

memorização de um monumento seria portador de uma verdade inquestionável.

Mas, a nova história, assumida por Foucault e inspirada nas preocupações de

Nietzsche inverteu esse entendimento. Pode-se constatar isso em Gregolin (2004)

quando ela afirma que existem duas formas de fazer história: na primeira, a história

tradicional, os monumentos são memorizados para se transformar em documentos,

ao passo que, na segunda, a Nova História, se faz o movimento contrário: os

documentos é que são transformados em monumentos a serem interpretados à luz

dos sentidos que a memória mobiliza. Fica visível que, a forma como o historiador

trabalha com os documentos em suas investigações “deixa entrever como ele

mobiliza uma memória para produzir a ‘verdade’ da história” (SILVA, 2010, p. 69).

Ao serem assimiladas por Courtine em seus estudos, as contribuições de

Foucault para o discurso colocadas em Arqueologia do Saber, tiveram no mínimo

duas repercussões imediatas: mudaram as formas do historiador interpretar os

documentos e promoveram uma revisão dos procedimentos da análise do discurso

com a introdução da leitura do corpus a partir do arquivo, bem como a ampliação

das investigações analíticas para os mais variados gêneros discursivos.

87

Tratando dessas mudanças na concepção do que seja documento e de suas

inevitáveis consequências, Silva (2010) também fala das duas formas de fazer

história, mostrando que uma, de inspiração positivista, procura aquela verdade que

interessa encontrar, e a outra, de inspiração nietzschiana, admite múltiplos sentidos

e múltiplas verdades. Observe-se no fragmento abaixo:

Essas operações em torno do documento, esses exercícios de interpretação irão distinguir dois modos de se produzir a escrita histórica: uma (a história tradicional) que seleciona e organiza os documentos para conservar o que interessa à “vontade de verdade” de uma época; outra que evidencia essa operação para descortinar os efeitos de sentido que ela produz (história genealógica) (SILVA, 2010, p. 69).

A história que procura desvendar os efeitos de sentido da própria história, que

não aceita as continuidades bem planejadas, os períodos bem delimitados e os

percursos retilíneos e que substitui os grandes heróis pelas pessoas simples da

massa, é a história genealógica. Uma satisfação, cem anos depois, de Foucault à

Nietzsche, quando este último irritado com a cultura ocidental afirmava que “a

história é uma interpretação violentamente imposta”.

A relação memória e história retoma a antiguidade grega com Platão e

Aristóteles, passa por Santo Agostinho na Idade Média e bate às portas de nosso

tempo dando origem a toda uma tradição racionalista. Porém, de acordo com Seixas

(2001, p. 39) “Recentemente, a partir do início da década de 1980, a historiografia

vem afirmando noção diversa: ela toma consciência de que a relação memória-

história é mais uma relação de conflito e oposição, do que de complementaridade –

aqui se inscreve a novidade crítica – em que se coloca a história como senhora da

memória, produtora de memórias”.

Halbwachs e Nora citados por Seixas (2001) vão dar sua contribuição para a

compreensão das relações entre memória e história, um procurando afastar os dois

conceitos e o outro procurando aproximar. Enquanto Halbwachs fala da diferença

entre memória coletiva e história, afirmando que a primeira é desinteressada

enquanto a segunda é processo político e manipulador, Nora, por seu turno, afirma

que apesar de opostas “é impossível fazer-se uma distinção clara entre memória

coletiva e memória histórica, pois a memória seria filtrada pela história”. Certamente

esta última compreensão se aproxima mais da perspectiva com que essa

88

dissertação trabalha no propósito de identificar sentidos gerados no confronto

memória e história na narrativa dos guerrilheiros do Araguaia.

Não se acredita, entretanto, tendo por base a perspectiva teórica

empreendida nesta dissertação que, como acredita Nora (apud SEIXAS, 2001) toda

memória seja historicizada, simples objeto da trama histórica e que haja uma

apropriação integral da memória por parte da história. Não é factível que “toda

memória hoje em dia é uma memória exilada, que busca refúgio na história” (NORA,

apud SEIXAS, 2001, p. 41). Se assim o fosse se estaria negando a existência dos

ressentimentos que, como se sabe, só em situações especiais se manifestam à

história, mas, contudo, são elementos que pertencem ao domínio da memória.

Vive-se hoje um momento de sacralização da memória em que tudo é motivo

de comemoração. É como se esse “frenesi de memória” de que nos fala Seixas

(2001) estivesse mesmo a pleno vapor, substituindo as utopias racionalistas que

perderam força nas últimas décadas do século passado. Ou em outras palavras, a

moda agora seria colocar as memórias no lugar das utopias, das grandes narrativas.

Essa possibilidade também não parece ser tão provável. E é nesse ponto que as

posições de Habermas e Todorov (apud SEIXAS, 2001) são mais plausíveis, quando

eles falam sobre a necessidade de manter-se viva a memória do holocausto, por

exemplo, menos por uma questão reparatória e muito mais para evitar que fatos

semelhantes se repitam.

Seixas (2001) dando outro viés a esse debate sobre memória e deslocando

esse tema do citado “frenesi” comemorativo, procura vislumbrar a memória pelo seu

correlato, o esquecimento. A autora cita o seguinte fato:

O recente debate europeu desencadeado pelas polêmicas declarações do escritor Martin Walser sobre a inoportunidade de construção, no centro da “nova” Berlim, de um monumento às vítimas do holocausto, porque as novas gerações reivindicam o direito de esquecer, sem dúvidas extrapola a discussão sobre memória comemorativa, inserindo-a numa complexa teia de significações que engaja o campo de possibilidades das ações futuras (SEIXAS, 2001, p. 54).

Dar para perceber que a memória está, na atualidade, mais voltada para as

questões éticas do que para satisfação lógica tradicional dos comportamentos.

Quando Seixas (2001, p. 53) diz “Lembramos menos para conhecer do que para

agir” quer dizer que a memória não é simples lembrança do passado, muito pelo

89

contrário, na atual conjuntura mundial a memória está, em grande parte, a serviço de

ações práticas. Sem dúvidas, os sentidos produzidos pelo confronto memória e

história podem gerar outros Araguaias, ou talvez, neste caso infelizmente, o

esquecimento dele.

90

III RELATOS DE GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA: MOVIMENTOS DA MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO

A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. (Pierre Nora).

ste capítulo, bloco final de nossa pesquisa, reúne e sintetiza as

abordagens feitas nos dois capítulos anteriores e tem como finalidade

atingir os objetivos almejados, bem como dar conta da questão de pesquisa que

inspirou toda a investigação. Aqui se verá como se trabalhou a relação memória e

história, a partir da experiência guerrilheira dos comunistas no Araguaia. Em outras

palavras, é neste capítulo final que se verá como os movimentos de memória inscrita

no relato de guerrilheiros do Araguaia serão descritos/interpretados para recompôr a

história e esclarecer aspectos ainda hoje obscuros do período da Ditadura Militar de

1964, uma vez que, de acordo com Cezarin (2010, p.5) “O discurso, na

incompletude que lhe é própria, vai permitir não só um novo vir a ser, mas também a

(re)significação de outros já-ditos, “esquecidos” no interdiscurso. Este Capítulo

mostra também a heterogeneidade discursiva no interior da FD comunista e analisa,

na narrativa histórica sobre a Guerrilha, os efeitos de sentido em torno da memória,

observadas no confronto das diferentes posições-sujeito.

O arcabouço teórico serve de instrumento para operar as análises dos dados

a partir de um trajeto temático que, inscrevendo-se no arquivo histórico da Ditadura

Militar de 1964, efetua um percurso que vai da repressão à resistência, se expressa

pela luta política entre os militares no poder e a oposição revolucionária e será

analisado em dois eixos: um que se apresenta no confronto da Ditadura contra a

Guerrilha e outro que aparece no conflito que se trava no interior do próprio partido

comunista.

Para atingir maior eficácia, o capítulo que segue foi divido em dois itens; no

primeiro, o corpus de análise é enquadrado numa noção de gênero textual; no

segundo, os relatos dos guerrilheiros do Araguaia são analisados para identificar a

heterogeneidade no interior da FD comunista e para descrever e interpretar os

movimentos de memória que podem recompôr a história. Nesse aspecto, são

E

91

tratados, de modo particular, os movimentos de repetição, de refutação e de

denegação.

A ideia é não simplesmente revisar a teoria, mas, acima de tudo, ver como a

Análise do Discurso e o método arqueológico podem dispor de dispositivos teórico-

metodológicos capazes de se transformar em conceitos operatórios para as análises

dessa investigação.

3.1 O CORPUS DE ANÁLISE: APRESENTAÇÃO E GÊNERO

3.1.1 O gênero dos relatos

O corpus utilizado nesta dissertação para analisar a memória inscrita no relato

dos guerrilheiros do Araguaia, interpretar os efeitos de sentido dela decorrentes e

reposicionar parte da história da Ditadura Militar no Brasil, é composto de três

documentos produzidos por guerrilheiros e militantes comunistas que viveram a

experiência daquela luta armada contra o regime de então.

Entende-se como oportuno, antes de se iniciar a análise do corpus, procurar

situá-lo dentro de uma perspectiva de gênero, haja vista que, conforme Marcuschi

(2008, p. 161) “Toda e qualquer atividade discursiva se dá em algum gênero”. Já

que o corpus a ser analisado nesta pesquisa é constituído de discursos que se

materializaram em textos, convém ainda levar em conta que “os textos situam-se em

domínios discursivos que produzem contextos e situações para as práticas

sociodiscursivas” (MARCUSCHI, 2008, p. 194). A assimilação dessas práticas é que

facilitarão as estratégias de interpretação e permitirão uma melhor análise do

corpus.

Buscando situar o relato dos guerrilheiros do Araguaia dentro de uma

classificação de gêneros, em princípio se verá que há não uma homogeneidade

nesse sentido, o que de fato não parece estranho, haja vista que é o próprio Bakhtin

(apud MARCUSCHI, 2008, p. 163) quem diz que “os gêneros se imbricam e se

interpenetram”. Contudo, teóricos que tratam daquilo que Marcuschi (2008) chama

de “intergenerecidade” parecem que, diante da dúvida acerca de que nome dá um

gênero, preferem nomeá-lo pelo seu propósito comunicativo.

92

Buscando conciliar os quadros classificatórios de Marcuschi (2008, p. 194-

196) e de Dolz et al. (apud MARCUSCHI, 2008, p. 219-220) pode-se dizer que os

relatos de guerrilheiros do Araguaia se enquadram numa classificação de gênero

que se faria do seguinte modo: os três documentos se enquadram no domínio

discursivo da esfera política; Além disso, o primeiro documento – O Relatório Arroyo

– , seria uma “Relato de experiência vivida”, pertenceria ao domínio social da

“Documentação e memorização das ações humanas” e estaria na ordem do

“Relatar”, ou seja, da representação pelo discurso de experiências vividas, situadas

no tempo. Os outros dois documentos – A “Carta de Pomar” e o texto “Um grande

acontecimento na vida do país e do partido”, segundo texto de Arroyo, são textos de

opinião, pertencem ao domínio social da “Discussão de problemas sociais

controversos” e estão na ordem do “Argumentar”, uma vez que tratam de

“Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição”.

3.1.2 O relato dos guerrilheiros

O primeiro documento é o “Relatório sobre a luta no Araguaia”, também

conhecido com Relatório Arroyo, escrito pelo comandante guerrilheiro Ângelo

Arroyo, logo após sua fuga do teatro de operações da guerrilha, entre 1974 e 1975;

O segundo documento é um artigo de opinião intitulado Um grande acontecimento

na vida do país e do Partido, também produzido por Ângelo Arroyo para discussões

no âmbito do Partido Comunista do Brasil (PCdoB); E o terceiro é uma avaliação da

guerrilha sob o título Intervenção no debate sobre o Araguaia, conhecido como a

Carta de Pomar, elaborado pelo veterano dirigente comunista Pedro Pomar e que

seria debatido na reunião do PCdoB interrompida pela ação militar conhecida como

a chacina da Lapa40, em dezembro de 1976;

O primeiro dos documentos, o Relatório Arroyo, é o mais completo e

pormenorizado relato escrito do que ocorreu no Araguaia de abril de 1972 a janeiro

40

Nome pela qual ficou conhecida a última e grande operação sangrenta do regime militar contra os guerrilheiros e dirigentes nacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). No dia 16 de dezembro de 1976, o Exército invadiu uma casa no bairro da Lapa em São Paulo, local onde estava reunido o Comitê Central do PCdoB, quando foram assassinados os líderes comunistas Ângelo Arroyo, Pedro Pomar e João Baptista Drummond, sendo os demais presos e torturados. Nessa reunião, dentre outros assuntos, estavam sendo discutidos o “Relatório Arroyo” e a “Carta de Pomar”, peças que compõem o corpus desta dissertação e que tratam de relatos e avaliações sobre a guerrilha do Araguaia (http://www.fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/. Acesso em 03/dez/2012).

93

de 1974, quando o autor depois de fugir da operação de cerco e aniquilamento das

Forças Armadas, atravessou o rio Araguaia a nado para fazer contato com o Partido

e trazer as primeiras notícias do conflito. Sua importância é indiscutível haja vista ter

sido produzido por um comandante guerrilheiro que viveu na própria pele a

experiência da guerrilha.

O Relatório Arroyo conta que as ações de guerrilha foram deflagradas em 12

de abril de 1972 quando os militares atacaram de surpresa um dos destacamentos

da guerrilha, depois da suposta delação de um dos guerrilheiros que havia fugido da

área e denunciado os companheiros. Mostra que foram três campanhas militares em

dois anos, sendo que nas duas primeiras as Forças Armadas foram derrotadas e

que só na terceira, depois de mobilizar o maior contingente militar desde a Segunda

Guerra Mundial é que a Ditadura Militar conseguiu finalmente debelar o movimento

guerrilheiro do Araguaia. Segundo Arroyo, foram cerca de vinte mil homens da

marinha, exército e aeronáutica que, utilizando-se de aviões, brigadas de

paraquedistas, armas pesadas, cães farejadores e até carros anfíbios, apoiados na

maior operação de espionagem e inteligência já realizada pelas Forças Armadas

Brasileiras, foram mobilizados para derrotar 69 guerrilheiros que se embrenhavam

nas matas do sul do Pará e que portavam apenas algumas “espingardas de matar

passarinho”.

O comandante Arroyo em seu relato registra a prisão de José Genuíno, cujo

nome clandestino era Geraldo, o primeiro guerrilheiro a cair nas mãos das forças

repressoras, bem como relata a primeira morte de um combatente, o cearense

Jorge, cujo nome verdadeiro era Bérgson Gurjão, destacado líder estudantil da

Universidade Federal do Ceará. Arroyo destaca o papel da ligação que a guerrilha

mantinha com as massas camponesas da região, afirmando que o movimento

revolucionário contava com o “apoio de mais de 90% da população”. Fala da criação

de treze núcleos da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP),

movimento popular idealizado para enfrentar as medidas impopulares do Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Registra também que o povo

cantava hinos e cordéis que eram produzidos pelos combatentes.

Um grande acontecimento na vida do País e do Partido, segundo documento

deste corpus, também produzido pelo guerrilheiro Ângelo Arroyo, como o próprio

título permite prevê, é uma avaliação que, mesmo reconhecendo o insucesso

preliminar da empreitada guerrilheira, saúda efusivamente o partido e os

94

guerrilheiros, afirmando que a experiência armada do Araguaia foi altamente

positiva, que a derrota foi apenas temporária e que é possível criar “um Araguaia em

cada canto do Brasil”, como soava, inclusive, um dos gritos de guerra dos

estudantes e jovens comunistas que haviam ficado nas cidades naquela época.

Nesse documento, o autor fala dos resultados políticos da guerrilha, faz um

balanço das ações militares enfatizando acertos e erros nesse aspecto, ressalta as

experiências adquiridas e sugere tarefas que julga imprescindíveis ao Partido no seu

empreendimento revolucionário. Afirma o documento que “O balanço político, do

ponto de vista do nosso povo e do papel do Partido, no que respeita aos sucessos

do Araguaia, é altamente positivo” (POMAR, 1980, p. 278).

No aspecto militar destaca como êxitos a organização da força combatente, a

elaboração de Curso de Preparação Militar, a preparação física e moral dos

combates, conhecimento militar do terreno, a sobrevivência na mata, a combinação

do trabalho militar com o trabalho produtivo e de massas, as ações militares e a

resistência, com êxito, a duas grandes campanhas. Também aponta os erros e os

classifica como “os de certa importância, os graves e os muito graves” (POMAR,

1980, p. 281). Como erros de certa importância ele destaca “Não se ter justiçado

determinados inimigos”, “Não se ter utilizado melhor os elementos de massa”, “Não

preparar refúgio seguro para graves emergências”, “o tipo de direção militar” e “a

falta de um plano mais amplo da Comissão Militar”. Como erros graves relaciona

“não armar a guerrilha a custa do inimigo”, “a excessiva concentração de comando

na Comissão Militar” e o “pequeno número de ações militares”. Como erros muito

graves apresenta a orientação tática da Comissão Militar para o enfrentamento da

terceira campanha do inimigo, quando esta concentrou toda a força numa área

pequena e já conhecida como de domínio guerrilheiro, medida que facilitava o cerco

por parte dos militares e deixava os rebeldes sem alternativas de fuga em situações

de ataque maciço das Forças Armadas.

No plano das experiências adquiridas, o Relatório Arroyo mostrou que é

preciso criar canais de comunicação e apoio externo junto com a criação da força

guerrilheira, que é necessário expandir constantemente a área de influência do

movimento guerrilheiro, que não é recomendável manter por muito tempo a força

guerrilheira concentrada numa área pequena e conhecida, que é vital dispersar as

forças em ampla área quando se é atacado, que é preciso se armar à custa do

95

inimigo, que é necessário incorporar elementos de massa às forças guerrilheiras,

que é preciso construir bons refúgios e que é fundamental o princípio de preservar

as forças guerrilheiras para sua sobrevivência.

No que diz respeito ao que chama de tarefas imprescindíveis, o documento

do comandante Arroyo finaliza dizendo que, dentre estas, se destacam:

Política de concentração do esforço partidário com o objetivo de fazer crescer o Partido e ligá-lo às massas pobres e exploradas; construção e fortalecimento do Partido em estados estrategicamente importantes; reestruturação do Partido e de seus órgãos dirigentes; Fortalecimento do trabalho especial; estudo e maior aprendizado da arte militar (POMAR, 1980, p. 290).

A Intervenção no debate sobre o Araguaia, artigo de opinião redigido pelo

veterano dirigente comunista Pedro Pomar para discussão sobre o movimento

guerrilheiro nas hostes partidárias, representa um contraponto ao pensamento de

Ângelo Arroyo expresso nos dois primeiros documentos deste corpus. Mesmo

reconhecendo a importância da luta armada do sul do Pará e enaltecendo o

heroísmo dos que tombaram na selva lutando por democracia e pela emancipação

social do país, o líder comunista aponta em direção oposta em matéria de avaliação

dos resultados da guerrilha e, ao contrário do comandante Arroyo, que fala de uma

derrota apenas temporária e da possibilidade de se retomar a luta armada a partir da

mesma orientação que norteou o Araguaia, Pomar afirma que a derrota foi definitiva

e que não há mais qualquer possibilidade de se dar prosseguimento à luta seguindo

aquelas mesmas concepções. “Infelizmente, o Comitê Central (órgão superior de

direção do PCdoB) tem de aceitar a dura verdade de que o resultado fundamental e

mais geral da batalha heroica travada por nossos camaradas foi o revés” (POMAR,

1980, p. 293).

Em sua análise, Pedro Pomar critica duramente a concepção que, na sua

avaliação norteou as ações guerrilheiras do Araguaia. De acordo com sua

exposição, o problema não foi somente de ordem tática conforme diz Arroyo, mas, o

grande erro foi a aplicação de uma concepção equivocada de luta que, na prática,

contrariava a orientação partidária expressa em todos os documentos anteriores que

tratavam da preparação da guerra popular.

Pomar afirma, por exemplo, que o Relatório Arroyo chega a ser contraditório,

aponta falhas no trabalho de massas, critica a não criação do partido nas

96

proximidades da área conflitada e coloca em dúvida o trabalho dos núcleos da União

pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP)41. No fundo, o dirigente comunista

afirma que a guerrilha colocou na prática em primeiro lugar as ações militares para,

só depois, fazer o trabalho político junto às massas quando o correto seria fazer

exatamente o contrário.

Sem esquecer-se de louvar a coragem e heroísmo dos que derramaram seu

sangue no Araguaia, o dirigente comunista afirma que “para determinar a validade

de uma experiência isso apenas não basta (POMAR, 1980, p. 298). Na sua

apreciação, o melhor critério a ser observado nesses casos é a incorporação das

massas à guerrilha e no caso do Araguaia “o número de elementos de massas

ganho para a guerrilha foi insignificante”. A guerra popular não seria, portanto, coisa

de especialistas e sim de todo o partido e de todo o povo.

3.2 RELATOS, MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO

3.2.1 O sujeito heterogêneo na formação discursiva comunista

Os enunciados que compõem os relatos e avaliações dos guerrilheiros do

Araguaia, presentes no corpus deste trabalho, serão descritos e interpretados à luz

da Análise do Discurso de linha francesa. Tem como ferramenta o método

arqueológico de inspiração foucaultiana e seu objetivo é tratar da relação entre

memória e história, e seus respectivos efeitos de sentido, a partir da experiência

guerrilheira de militantes do PCdoB no Araguaia, a fim de recompor e (re)significar

aspectos ainda sombrios da história da luta armada durante a Ditadura Militar no

Brasil.

A primeira observação que pode ser feita do corpus em análise diz respeito às

posições diferenciadas ocupadas por sujeitos que pertencem a uma mesma FD, na

conjuntura histórica em que esses relatos foram produzidos. Isso mostra, conforme

diz Silva (2010, p. 73), “como uma formação discursiva (FD) é constantemente

invadida pelo o outro”. Neste sentido, é importante mostrar que, mesmo dirigido por

41

Organização popular que apresentava um programa de 27 pontos contendo as principais reinvindicações dos moradores do sul do Pará e que foi criada pelas forças guerrilheiras do Araguaia. (PORTELA, 1987, p.191)

97

um princípio que visa unificar as ações partidárias, o centralismo democrático42, é

possível perceber claramente a heterogeneidade discursiva que se efetivou nos

debates partidários acerca da experiência guerrilheira do Araguaia.

Grosso modo, o que se percebe no corpus, são duas posições distintas

dentro da mesma formação discursiva comunista: por um lado, os documentos de

Ângelo Arroyo afirmando a concepção político-militar posta em prática no Araguaia e

atribuindo um saldo “altamente positivo” à guerrilha, enquanto, por outro lado, a

Carta de Pomar criticando duramente a concepção empregada e afirmando

taxativamente que o resultado de tudo foi uma derrota sem volta. No final das

contas, a presença de posições diferenciadas no interior desta FD termina revelando

o amplo debate que se travava nas fileiras comunistas e é sintomática da

democracia que se pratica no interior do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

Analisando o relato dos guerrilheiros do Araguaia, fica evidente a

heterogeneidade no interior da mesma formação discursiva. Detectam-se flagrantes

divergências das posições-sujeito ocupadas no bojo desses relatos, tais como:

diferenças de concepção acerca da luta armada, acerca da natureza da guerrilha,

sobre a necessidade ou não de criação do partido nas áreas conflitadas, acerca da

aplicação da doutrina partidária no tocante à guerra popular, sobre o papel

estratégico do campo, no que diz respeito aos resultados políticos e militares da

guerrilha, na avaliação dos erros cometidos, sobre a validade ou não da experiência

do Araguaia e sobre até se seria possível ou não repetir a experiência e “criar um

Araguaia em cada canto do Brasil”.

De início é visível uma profunda divergência no que concerne à concepção de

luta que foi posta em prática na Araguaia. No Relatório Arroyo vê-se que “Ainda que

durante a preparação, por motivos de segurança, não se pudesse abrir o jogo, todos

se preparavam para desenvolver, começada a luta ou pouco antes, intensa

propaganda revolucionária” (POMAR, 1980, p. 276); Já a Carta de Pomar coloca

que “Aí reside, a meu ver, o maior erro, o mais negativo da experiência do Araguaia.

42

Centralismo Democrático é o princípio que norteia a direção dos partidos comunistas de linha marxista-leninista, como é o caso do PCdoB. De acordo com este princípio, depois de um amplo debate sobre qualquer questão polêmica, uma proposta é colocada em votação, sendo que, depois de aprovada, a minoria sempre se submeterá à maioria, até que uma autocrítica, realizada posteriormente, possa reafirmar ou reavaliar o que foi aprovado. Esse princípio garante, via disciplina partidária, a unidade de ação a partir da diversidade de opiniões. (PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL: ESTATUTO, 2010).

98

Pois a conquista das massas não pode ser efetuada só depois da formação do

grupo guerrilheiro” (POMAR, 1980. p. 298).

No tocante à natureza da própria guerrilha, são salientes as diferenças de

posição. Enquanto Arroyo, em seus relatos, coloca que na época já se “considerava

errado colocar o movimento guerrilheiro como braço armado do partido” (POMAR,

1980, p. 276), Pomar em sua “Carta” alega que os guerrilheiros não falavam por

nada desse mundo em política ou coisa que o valha, atitude que, na prática, fez das

forças guerrilheiras o braço armado do Partido em desafio à ditadura militar-fascista”

(POMAR, 1980, p. 296).

Na análise que faz dos erros que levaram a guerrilha a não triunfar, novas

posições divergentes aparecem no relato dos guerrilheiros do Araguaia. O Relatório

Arroyo, dando ênfase aos aspectos militares, vai dizer que “Quanto aos erros

graves, em resumo, pode-se afirmar que são constituídos pela orientação tática para

a 3ª grande campanha do inimigo” (POMAR, 1980, p. 283); por sua vez, a Carta de

Pomar tratando dessa avaliação afirma que “por mais heroicamente que se

comportem os combatentes comunistas, se estiverem isolados das massas, sem seu

apoio ativo, serão abatidos; e por mais eficiente que seja a direção militar, com tal

concepção será derrotada. Por isso a orientação seguida no Araguaia tem de ser

modificada em suas linhas essenciais” (POMAR, 1980, p. 299). A análise dos

enunciados citados apresenta uma profunda diferença de avaliação com relação à

natureza dos erros cometidos pela guerrilha, uma vez que, enquanto o primeiro fala

de questões táticas e militares, portanto, específicas, o segundo atribui os supostos

erros a uma questão de concepção política e, portanto, de aspectos generalizantes.

No período logo após a guerrilha, uma das questões que afligia os

revolucionários era saber se a experiência guerrilheira do Araguaia teria mesmo

valido a pena. Afinal, todo aquele esforço de sangue, teria validade no sentido de

apontar um caminho a ser trilhado por todos que queriam o fim da Ditadura e a

construção do socialismo no Brasil? Acerca da validade da experiência guerrilheira

também surgem diferentes pontos de vista nos relatos e análises dos guerrilheiros.

Arroyo coloca em seu relatório que a resistência encetada representa um grande

capital político. Configura-se em uma ação concreta em favor da libertação do povo

e uma mensagem em prol da emancipação nacional. Para o autor, “Araguaia

mostrou ser viável [...] demonstrou que a luta armada responde a uma necessidade

99

objetiva. Seu aparecimento indica que a revolução no Brasil vai-se transformando

em questão prática, concreta” (POMAR, 1980, p. 277-278). Pedro Pomar, em

apreciação diferente, relata que “Nosso partido sempre se orgulhará dessa luta, do

sacrifício dos camaradas que lá tombaram. [...] Mas para determinar a validade de

uma experiência isso apenas não basta” (POMAR, 1980, p. 297-298).

Em janeiro de 1969, quando a preparação da guerrilha já estava a pleno

vapor na região do Araguaia, o PCdoB aprovou um documento que defendia

abertamente a luta armada como única alternativa capaz de livrar o país da Ditadura

Militar e construir o caminho revolucionário do socialismo; tratava-se de Guerra

Popular – caminho da luta armada no Brasil. A tradição comunista sempre foi de

muito respeito aos documentos do partido, porém, mesmo neste caso houve

diferenças de posicionamento nos relatos dos guerrilheiros do Araguaia. No relato

de Arroyo, vê-se uma tentativa da parte dele de mostrar que o movimento

guerrilheiro seguiu a orientação contida nos documentos partidários, quando este

afirma que “A luta do Araguaia se constituiu num verdadeiro teste sobre a justeza do

Partido” (POMAR, 1980, p. 277), enquanto na intervenção de Pomar, observa-se

que ele vai mostrar que a prática não seguiu as orientações partidárias quando

coloca que “A experiência contrariou toda essa orientação partidária [...] e não se

diga que a orientação contida nos documentos e resoluções do partido não seja

cristalina a esse respeito” (POMAR, 1980, p. 298).

A própria criação do Partido que dirigiu a guerrilha nas proximidades da

região conflitada foi motivo de controvérsia no relato dos combatentes. Justificando

que o PCdoB, no começo da guerrilha não deveria ser criado na região para não

chamar a atenção das autoridades e delatar os camaradas, colocando a guerrilha

em risco, Arroyo afirma que “durante a preparação, por motivos de segurança, não

se pudesse abrir o jogo” (POMAR, 1980, p. 276), Pedro Pomar vai na direção oposta

e reitera que:

A ausência de organização do Partido, tanto dentro da área como em sua periferia, no sul do Pará foi mais que deficiência – constituiu-se num erro grave, de princípio. Não deve ser repetido. O partido não atrapalha, antes facilita, promove, impulsiona, organiza, sustenta, dirige todo o processo (POMAR, 1980, p. 300).

Os resultados políticos e militares da guerrilha foram motivo de amplos e

demorados debates no seio dos comunistas. Acerca dos resultados militares,

100

Arroyo, sempre afinado com uma posição mais ortodoxa, relativizou a derrota da

guerrilha e chegou a ver nela até mesmo resultados positivos quando afirma que

apesar dos equívocos “Isto não nega o lado grandemente positivo do trabalho da

Comissão Militar, o valor e a contribuição que deu na realização de tão importante

tarefa. Aprende-se a nadar, nadando. Aprende-se a lutar, lutando. Os acertos e os

erros formam um todo. Uns e outros aumentam nosso conhecimento” (POMAR,

1980, p. 286); Por seu turno, Pedro Pomar se referindo ao fato de Arroyo considerar

que a derrota no Araguaia foi apenas temporária e que a luta poderia ser a qualquer

momento retomada, afirma: “Julgo que o camarada J43. não tem razão. [...]

Infelizmente, o CC44 tem de aceitar a dura verdade de que o resultado fundamental e

mais geral da batalha heroica travada por nossos camaradas foi o revés” (POMAR,

1980, p. 293).

No campo dos resultados políticos da guerrilha, a heterogeneidade discursiva

no interior da FD comunista é percebida quando Arroyo fala de um grande feito ao

afirmar que o balanço político, do ponto de vista da luta do nosso povo e do papel do

Partido, no que respeita aos sucessos do Araguaia, é altamente positivo. Em

posição antagônica, Pedro Pomar alegando que os resultados políticos de uma

guerrilha podem ser aferidos pelo nível de incorporação das massas à luta

guerrilheira, sugere que no plano político também houve uma derrota ao afirmar que

“o número de elementos de massa ganhos para a guerrilha foi insignificante [...]

Mesmo assim não se soube trabalhar com esses elementos” (POMAR, 1980, p.

298).

Seria possível repetir o Araguaia? Será mesmo que depois da derrota sofrida

no sul do Pará seria possível “criar uma Araguaia em cada canto do Brasil” conforme

grito de guerra dos jovens da época? Era outra questão que inquietava os

comunistas de então. Trata-se de outro assunto que foi motivo de controvérsias nos

relatos dos guerrilheiros do Araguaia. Arroyo, pensando sempre na repetição da

experiência, diz que

Sem dúvida alguma, a experiência fundamental destes dois anos é que o caminho indicado pelo Partido para libertar o povo brasileiro da opressão é

43

“J” é a letra inicial de Joaquim, um dos codinomes com os quais era conhecido o Comandante guerrilheiro Ângelo Arroyo (POMAR. 1980). 44

CC é a sigla utilizada para designar o termo Comitê Central. O CC é órgão superior de direção do Partido Comunista, responsável pelas mais elevadas resoluções e avaliações deste Partido (POMAR, 1980).

101

correta. A vida mostrou que a luta armada pode-se desenvolver com sucesso no interior. Vencendo inúmeras dificuldades e num processo longo, transformar-se-á em guerra popular que, envolvendo a maioria da nação, acabará conquistando a vitória (cf. POMAR, 1980, p. 286).

Pedro Pomar (1980), discordando dessa opinião, afirma que apesar dessas

constatações e da derrota sofrida, o cam. J. dá como aceita a concepção que

prevaleceu na luta do Araguaia. Pondera que devemos continuar trilhando-a”.

Sinceramente, discordo dessa opinião” (POMAR, 1980, p. 297).

3.2.2 Movimentos de memória para recompor a história

Neste ponto, será observada a relação memória, história e discurso, em

conformidade com o que diz Silva (2010, p. 68) quando afirma que “Para a História,

a memória funciona como conceito operatório por meio do qual a narrativa inscreve

sua relação com o passado, presentificando-a”. A forma como os movimentos de

memória constroem a história e produzem efeitos de sentido fica patente em

Courtine (2009, p. 104) quando ele afirma que “toda produção discursiva que se

efetua nas condições determinadas de uma conjuntura movimenta – faz circular –

formulações anteriores, já enunciadas”. E procurando introduzir a noção de memória

discursiva no âmbito do discurso político diz que “Essa noção aparece subjacente à

análise das FD que a Arqueologia do saber efetua: toda formulação apresenta em

seu “domínio associado” outras formulações que ela repete, refuta, transforma,

denega...45 isto é, em relação às quais ela produz efeitos de memória específicos.”

(COURTINE, 2009, p. 104).

Parte-se do princípio de que os relatos de guerrilheiros do Araguaia que

compõem este corpus constituem lugares de memória46 naquilo que Silva (2010, p.

45

Ver Foucault (1969, p.130) 46

Lugares de memória, de acordo com Nora (1993, p. 21-22), “são lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o extremo de uma significação simbólica, é, ao mesmo tempo, um corte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, a um lembrete concentrado de lembrar. Os três aspectos coexistem sempre (...). É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante ao mesmo tempo a cristalização da lembrança e sua transmissão; mas simbólica por definição visto que caracteriza por um

102

71) chama de “tríplice acepção”, a partir da leitura que faz de Nora (1993). Esses

relatos são lugares materiais onde se ancora a memória da luta armada no Brasil,

são lugares funcionais porque movimentam a memória coletiva acerca do regime

militar e são lugares simbólicos porque neles, nos relatos, se se constroem os

significados dessas memórias.

A memória inscrita nas narrativas dos guerrilheiros vai mobilizar sentidos que

provocam efeitos e reposicionam partes da história da luta armada e do regime

militar. É neste aspecto que repetem47, refutam48 e denegam49, gerando sentidos

que transformam e ressignificam aspectos da história da época ditatorial, tais como

a censura, a tortura, a luta armada, a repressão política, o anticomunismo, a

influência afro na cultura brasileira, o folclore do Pará, “o milagre brasileiro” na

economia, os movimentos revolucionários da América Latina e remonta, inclusive, a

insurreição comunista de 1935.

3.2.2.1 Movimentos de repetição

Foucault (2010) e Courtine (2009), conforme já citado anteriormente, mostram

que a história efetua movimentos de repetição, dentre outros movimentos, quando,

ao se manifestar em uma formulação discursiva coloca em movimento formulações

discursivas anteriores. Esse tópico procura identificar, descrever e analisar alguns

movimentos de memória que, inscritos nos relatos dos guerrilheiros do Araguaia,

repetem aspectos conhecidos da história e ressignificam, reposicionam e recontam a

própria história do Araguaia, numa atitude genealógica em seu sentido foucaultiano.

Observem-se os quadros abaixo:

(1) “O Exército procurou apresentar os guerrilheiros como marginais,

acontecimento ou uma experiência vivida por pequeno número uma maioria que deles não participou”. 47

Repetem: repetir -v. tr.1. Tornar a dizer o que já se disse ou o que outrem disse.(http://www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em 01/dez/2012). 48

Refutar - v. tr.1. Destruir com razões de peso o que outrem estabeleceu; 2. Rebater, destruir.3. Não estar de acordo com; negar; contestar. Refutação | s. f. derivação fem. sing. De refutar; s.

f.1. Discurso com o qual se prova a não razão de outro (FONTE: http://www.priberam.pt/dlpo/)

49Denegam: denegar (latim denego, -are). v. tr.1. indeferir; 2- Não aceitar a existência de algo; negar

a própria possibilidade de negação pela não reconhecimento da existência desse algo. (http://www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em 01/dez/2012).

103

terroristas, assaltantes de banco, maconheiros, etc.” (POMAR, 1980, p. 251). (2) “Depois passou a dizer que éramos estrangeiros: russos, cubanos, alemães” (POMAR, 1980, p. 251). (3) “Em março, o destacamento B fez uma operação contra um antigo pistoleiro a serviço da Capingo50, chamado Pedro Mineiro. Sua casa foi invadida e ele foi preso. Em seguida foi julgado e executado” (POMAR, 1980, p. 262-263). (4) “Acentuou-se que outros povos também tinham passado por momentos muito difíceis e venceram porque persistiram na luta, não deixaram se abater. Mantendo-se unidos e decididos, poder-se-iam superar as dificuldades” (POMAR, 1980, p. 251). (5) “Segundo esta linha, a luta armada começará no interior, sob a forma de guerrilha e com ampla participação das massas, se transformará, pouco a pouco, em guerra popular, que será dura e prolongada” (POMAR, 1980, 272). (6) “oferece condições propícias. É zona de mata, e na mata o inimigo não pode usar tanques, artilharia, bombardeio aéreo de precisão, etc. Tem de estar a pé como o guerrilheiro” (POMAR, 1980, p. 278).

(7) “Desde que surgiu, em 1922, o PC aspira a levar nosso povo à revolução” (POMAR, 1980, p. 278).

(8) “a força combatente precisa de apoios externos. A guerrilha, ainda que se apoie basicamente em suas próprias forças, necessita de ajuda de fora, de diferentes tipos” (POMAR, 1980, p. 281).

(9) “os camaradas preocuparam-se em fazer propaganda das ideias da luta pela liberdade, pela independência nacional, propondo a união do povo brasileiro para a derrubada da ditadura militar-fascista” (POMAR, 1980, p. 292). (10) “Apareceu uma patrulha do Exército que atirou nela, ficando ferida. Os soldados, segundo relatou gente da massa, perguntaram-lhe o nome. E ela respondeu que era uma guerrilheira que lutava por liberdade. Então o que comandava a patrulha respondeu: “Tu queres liberdade”? Então toma... desfechou vários tiros e matou-a” (POMAR, 1980, p. 295).

QUADRO 01: Relatos de guerrilheiros do Araguaia: enunciados que repetem a história

Em (1), enunciado que emerge do Relatório Arroyo se evidencia a repetição

de uma história concebida (e distorcida) no âmbito da igreja católica tradicional,

50

Fazenda que se localizava na região da guerrilha e cujo dono era acusado de mandar matar camponeses para tomar suas terras. (http://www.averdadesufocada.com. Acesso on-line em 03 de dezembro de 2012)

104

assumida pelas Forças Armadas como uma doutrina e divulgada maciçamente no

século XX entre as massas, com o objetivo de colocar o povo contra aqueles que

tiveram a coragem de lutar até morte em favor de um mundo melhor: é repetição da

história do preconceito anticomunista e da demonização dos opositores. Trata-se de

um enunciado que, em seu domínio associado, repete, pelos fios da memória, toda

uma história de difamação aos comunistas praticada ao longo do século passado

nos quartéis, nas igrejas, nas escolas, dentre outros aparelhos do estado.

Na continuidade, em (2), o enunciado destacado, apresenta em seu “domínio

associado” um efeito de repetição da história em relação à xenofobia51 de cunho

nazifascista que inspirou a Segunda Guerra Mundial e que, neste caso, estariam

inspirando as práticas repressivas da Ditadura Militar no Brasil.

A violência no campo, especialmente contra os líderes camponeses, no caso

particular dos grileiros52, era e ainda é uma constante naquela região. A guerrilha se

colocando ao lado dos moradores da região, executou ações contra aqueles que

estavam a serviço dos latifundiários e que se constituíam em constante ameaça aos

camponeses, como se pode observar na narrativa de Arroyo em (3). Neste trecho da

narrativa, tem-se um enunciado que, em seu domínio associado, executa um

movimento que repete, pelos fios da memória, toda uma história de violência no

campo que caracteriza o panorama fundiário do Brasil, tais como o assassinato do

seringueiro Chico Mendes53 e as mortes de trabalhadores rurais em Rio Maria54,

dentre outros episódios.

51

Xenofobia: (xeno- + -fobia) s. f.Aversão aos estrangeiros ou ao que vem do estrangeiro, ao que é estranho ou menos comum. (http://www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em 03/dez/2012). 52

Fazendeiros que acompanhados de pistoleiros invadiam e tomava as terras dos posseiros (POMAR, 1980) 53

Chico Mendes, de Xapurí-AC, foi seringueiro, destacado sindicalista e ativista ambiental. Em 22 de dezembro de 1988, exatamente uma semana após completar 44 anos, foi assassinado com tiros de escopeta no peito na porta dos fundos de sua casa, quando saía de casa para tomar banho. Chico Mendes anunciou que seria morto em função de sua intensa luta pela preservação da Amazônia, e buscou proteção, mas as autoridades e a imprensa não deram atenção. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ligas_camponesas. Acesso em 01 de dezembro de 2012)

54 Entre as décadas de 1980/1990, pelo menos 200 mortes de trabalhadores rurais, quase metade

escravizada, foram assassinados ao fugir das fazendas onde eram explorados, no Município de Rio Maria – PA. Mas, segundo a Comissão Pastoral da Terra, o número de vítimas pode ser muito maior porque, pois, os escravizados não tinham vínculos com as comunidades locais e simplesmente desapareciam nas fazendas, em cemitérios clandestinos. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ligas_camponesas. Acesso em 01 de dezembro de 2012)

105

Depois de uma fulminante investida dos militares contra os guerrilheiros,

ocorrida no dia 24 de dezembro de 1972, o chamado “chafurdo de natal”,55 o

comandante Arroyo, relata, em (4), o que foi conversado na última reunião dos

guerrilheiros, no dia 29 daquele mês e ano. É a história de povos revolucionários

como os cubanos, vietnamitas e chineses, por exemplo, que esse movimento de

memória o relato de Arroyo repete. Povos estes que, mesmo sob o fogo cruzado dos

inimigos imperialistas ou nazifascistas, superaram dificuldades imensuráveis e

saíram vitoriosos.

No texto Um grande acontecimento na vida do país e do partido, Arroyo

começa expondo a linha revolucionária do Partido, conforme se vê em (5). Colocar o

campo como espaço prioritário para a deflagração da guerra popular é seguir ao pé

da letra a receita revolucionário do líder chinês Mao Tse Tung. É a história do “cerco

das cidades pelo campo” posta em prática na revolução chinesa que vem à tona e,

valendo-se de um movimento de memória, se repete no Araguaia.

Ao tratar dos critérios geográficos daquela que seria a área ideal para se

iniciar a guerrilha, Arroyo descreve o Araguaia como se percebe em (6). Nessa

forma de conceber o processo revolucionário é possível perceber a semelhança com

a história de Cuba nos episódios que levaram Fidel Castro ao poder; Um grupo de

guerrilheiros, alojados em princípio numa região de difícil acesso, a Sierra Maestra,

aonde tanques e artilharia não chegavam, iniciam a revolução e depois descem a

serra para tomar o poder político naquele país caribenho.

A própria história do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) se repete na

narrativa do guerrilheiro Ângelo Arroyo sobre o Araguaia. Numa tentativa de justificar

a guerrilha pela própria razão de ser do partido, razão que se associa à grande

causa da emancipação social, o comandante diz o que está em (7). Observa-se no

enunciado destacado uma referência feita a 1935, ano em que a história do Brasil

registra a insurreição Comunista, movimento armado liderado pelo PCdoB por meio

da Aliança Nacional Libertadora (ANL), o qual tomou o poder e governou por três

dias as cidades de Natal, Recife e Rio de Janeiro. É, portanto um enunciado que, em

seu domínio associado, repete por meio da memória a história do próprio partido

55

Nome dado ao episódio ocorrido em 25 de dezembro de 1973 quando e a Comissão Militar da guerrilha do Araguaia foi atacada pelas Forças Armadas, ocasião em que todos os integrantes desta Comissão foram mortos (STUDART, 2006).

106

para ter como efeito de sentido o referendo histórico que legitime a própria guerrilha

do Araguaia.

Um mito que circulava entre os militares e as forças reacionárias brasileiras é

o de que os movimentos guerrilheiros eram financiados por potências comunistas

estrangeiras; era o chamado “ouro de Moscou”56, em referência a um suposto apoio

por parte da hoje extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),

conforme observa-se em (8). Na relação de enunciados dessa conotação com o mito

que circulava nos quartéis acerca de um suposto “ouro de Moscou” (como era

chamado o dinheiro que viria de outros países para a guerrilha e que de fato nunca

veio) produziu-se um efeito de memória que proporciona a repetição da história do

propalado apoio estrangeiro aos guerrilheiros, muito comum, por sinal, durante a

Ditadura no Brasil.

O Regime Militar no Brasil sempre foi considerado, pela esquerda, como uma

ditadura fascista. Na Carta de Pomar, é isso que podemos ver, conforme está em

(9). Ao dar essa conotação à Ditadura Militar, o relato repete pelas redes de

memória os discursos da Segunda Guerra Mundial e reconta a história da Ditadura

Militar no Brasil pela ótica fascista, ou seja, tendo em vista sua perseguição

sistemática aos comunistas e sua disposição para esmagar o movimento

operário/sindical e demais lutas populares reivindicatórias, conforme as práticas de

Hitler e Mussolini.

Liberdade é um tema que sempre esteve presente no discurso dos

comunistas. No relato de combatentes do Araguaia não foi diferente. Momento que

serve para confirmar a cultura discursiva em torno da liberdade entre os guerrilheiros

do PCdoB é narrado na sequência destacada em (10) que trata do assassinato da

combatente Sônia. O discurso que trata da morte dessa guerrilheira que morreu

lutando por liberdade, percorre o tempo nas asas da memória e encontra eco em

outras produções discursivas que trataram de fatos similares, tais como Joana

D”arc57 e Rosa Luxemburgo58, dentre outros”. É a memória de ícones da liberdade

56

Ouro de Moscou era uma expressão pejorativa utilizada para designar o suposto dinheiro que viria da ex-União Soviética para financiar a revolução comunista. A existência de tal financiamento nunca ficou provada. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ouro_de_Moscou. Acesso em 03/dez/2012). 57

Heroína de guerra francesa morta na fogueira pela inquisição sob a acusação de ser bruxa e restaurada como santa pela Igreja católica em 1920, quinhentos anos depois de sua morte. (http://www.e-biografias.net/joana_darc/. Acesso em 03/dez/2012). 58

Líder comunista alemã que teve destacada militância política entre as duas guerras mundiais, barbaramente assassinada a mando do governo alemão.

107

se repetindo no discurso da guerrilheira do Araguaia e ajudando a recompor parte da

história da Ditadura no Brasil.

3.2.2.2 Movimentos de refutação

A memória, em sua movimentação que dá sentido ao discurso, também

efetua movimento de refutação em relação a determinados fatos da própria história.

Isto acontece quando certos enunciados, em seu domínio associado, irrompem do

interdiscurso nas formações discursivas. Esse movimento de recusa da história

também aparece inscrito no relato dos guerrilheiros do Araguaia e geram efeitos de

sentido que reposicionam a própria história desse episódio. Observe-se o quadro

abaixo:

(1) “fez uma reunião com a massa (mais de 50 moradores) para discutir medidas contra o INCRA. A massa achava que o INCRA era nova forma de cativeiro” (POMAR, 1980, p. 262).

(2) “Devo insistir em que a preparação da luta armada é tarefa de todo o Partido e não apenas de alguns especialistas” (POMAR, 1980, p.300) (3) “O Destacamento A, na segunda quinzena de setembro, realizou uma operação contra um posto da Polícia Militar do Pará, na Transamazônica” (POMAR, 1980, p.263). (4) “Não alcançou ainda vastas repercussões devido à censura e à feroz repressão” (POMAR, 1980, p. 277).

QUADRO 02: Relatos de guerrilheiros do Araguaia: enunciados que refutam a história

Tocando na explosiva questão da propriedade rural e relatando as relações

da guerrilha com as massas da região do Araguaia, o comandante Ângelo Arroyo,

dá pistas de como a população encarava o papel do Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (INCRA), conforme relata em (01). Num só

movimento de memória percebe-se a relação dessa formulação com o domínio

associado de outras formulações da história que tratam de movimentos sociais que

se manifestaram no futuro59, bem como de outros episódios da luta abolicionista60 no

(http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/index.htm. Acesso em 03/dez/2012). 59

É o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Este movimento se organiza em torno de três objetivos principais: Lutar pela terra; Lutar por Reforma Agrária; Lutar por uma sociedade mais justa e fraterna. (http://www.mst.org.br/taxonomy/term/324. Acesso em 30/out/2012).

108

passado. É um movimento de negação do modelo privado de propriedade rural

existente no Brasil que geraram revoltas como a de Canudos61 na Bahia, a criação

das Ligas Camponesas62 em todo o Nordeste, só para citar alguns exemplos, todos

eles precursores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na

atualidade, e tudo isso associado a um sentido de recusa que denuncia a escravidão

negra do século XIX.

Em se tratando de guerra popular, especialmente no modelo tático-estratégico

de Mao Tse Tung que inspirou a Guerrilha do Araguaia, a forma de preparação

guerrilheira exige engajamento partidário. Entretanto, o que se vê no enunciado em

(2) é uma reprovação à forma como o Araguaia foi concebido, haja vista não ter,

conforme está formulado, levado em conta o envolvimento do conjunto do Partido na

fase de preparação, fato que deixou esse movimento armado a cargo de um grupo

de supostos especialistas da arte militar. Tem-se ai um movimento de refutação da

concepção de luta empregada no Araguaia nos moldes do que sustenta Arroyo,

movimento este acionado pela posição-sujeito que emerge na Carta de Pomar.

No início dos anos 70, apogeu do regime militar, a economia do país, puxada

pelo endividamento externo, cresceu a níveis de primeiro mundo. Marcas desse fato

aparecem nos relatos deste corpus quando o narrador cita uma das supostas

grandes realizações do inicio dos anos 1970, como se vê no enunciado (3). Ao citar

uma das maiores obras que os militares prometiam realizar, rodovia que cortaria

toda a região amazônica, o relato faz esse discurso se relacionar com a memória de

uma obra que nunca terminou, a Transamazônica, e que por isso foi um dos maiores

60

A luta abolicionista foi o conjunto de iniciativas tomadas, notadamente a partir da segunda metade do século XIX, pelos defendiam o fim da escravidão negra no Brasil. A campanha abolicionista triunfou com a proclamação da Lei áurea em 13 de maio de 1888, quando todos os escravos foram declarados legalmente livres. Dentre os grandes abolicionistas destacaram Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Castro Alves, Dragão do Mar, dentre outros. (http://www.historiabrasileira.com/brasil-imperio/campanhas-abolicionistas/.Acesso em 30/ out/2012). 61

O sertão de Canudos, na Bahia, região historicamente caracterizada por latifúndios improdutivos, secas cíclicas e desemprego crônico, passava por uma grave crise econômica e social. Milhares de sertanejos e ex-escravos partiram para Canudos e pelo peregrino Antônio Conselheiro. Os grandes sertanejos da região sentiram-se ameaçados e, unindo-se à Igreja conseguiram o apoio do governo para atacar o arraial. Depois de forte resistência Canudos caiu seguindo-se o massacre de vinte mil sertanejos. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ligas_camponesas. Acesso em 01 de dezembro de 2012)

62 As ligas camponesas eram organizações dos camponeses do Sertão Pernambucano e de vários

estado do Nordeste. Seu principal objetivo era lutar pela reforma agrária. Foi o movimento mais importante pela reforma agrária no Brasil até o Golpe de 1964. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ligas_camponesas. Acesso em 01 de dezembro de 2012)

109

fiascos do regime. É, portanto um movimento de memória que refuta a veracidade

da propaganda feita pela ditadura acerca do falacioso “milagre” econômico

brasileiro, quando se iniciaram obras faraônicas como a Transamazônica, a Ferrovia

do aço, dentre outras, descaracterizando-se assim a falsa história do Brasil grande

potência63 dos militares.

Houve um período, logo posterior à guerrilha, em que a esquerda se debatia

acerca da pouca repercussão dos episódios do Araguaia perante a opinião pública

nacional. Arroyo que trata o Araguaia como um grande acontecimento na vida do

país e do Partido, relatou sua opinião acerca dessa pequena repercussão da

guerrilha em nível nacional, conforme se vê em (4). Ao avaliar o silêncio da imprensa

acerca dos episódios que se verificaram no sul do Pará no começo dos anos 1970, o

relato recupera pela memória uma série de enunciados que fazem parte da história

da censura64 naquele período e provoca um efeito de recusa a essa prática

antidemocrática do Regime Militar. Tem-se, neste caso, um enunciado que efetua

um movimento de memória cujo sentido refuta, rebate, a prática da censura

institucionalizada por decretos do regime militar, especialmente após o Ato

Institucional nº 05 (AI-5).

3.2.2.3 Movimentos de denegação

Denegar65 é muito mais do que negar66. A carga semântica desse termo

mostra que enquanto negar é não aceitar a validade de algo, denegar é não aceitar

63

No início da década de 1970, verificou-se um período áureo do desenvolvimento brasileiro em que, paradoxalmente, houve aumento da concentração de renda e da pobreza, instaurou-se um pensamento ufanista de "Brasil potência", que se evidencia com a conquista da terceira Copa do Mundo de Futebol no México, e a criação do mote: "Brasil, ame-o ou deixe-o". Foi nesse período que se iniciaram as chamadas obras “faraônicas” do regime militar: A Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói, a Hidrelétrica de Itaipu, dentre outras. Dentre estas, especialmente a Transamazônica, se converteu num verdadeiro fiasco. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Milagre_econ%C3%B4mico_brasileiro. Acesso on-line em 30 de outubro de 2012) 64

Após a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) pela Ditadura Militar de 1964, todo e qualquer veículo de comunicação deveria ter a sua pauta previamente aprovada e sujeita a inspeção local por agentes autorizados (http://pt.wikipedia.org/wiki/Censura_no_Brasil. Acesso em 03/dez/2012). 65

Denegar: 1. v. t. d. Recusar a veracidade de; negar (ex.: Denegar a acusação). 2. t. d. Dar despacho contrário a; indeferir (ex.: Denegar o requerimento). 3. t. d. bit. Abster-se de ofertar; não conceder (ex.: Denegaram-lhe ajuda). 4. pron. Não se submeter; não se sujeitar; recusar-se (ex.: Denegou-se a colaborar com os inimigos). 5. t. d. Não aceitar; rejeitar (ex.: Denegar uma oferta). 6. t. d. Renunciar a (uma convicção política, religiosa, etc.); renegar; abjurar (ex.: Denegar a fé). 7. bit. Servir de obstáculo a; obstar (ex.: A federação denegou a participação do atleta). 8. t. d. Desmentir a afirmação de; contradizer (ex.: O candidato denegou o adversário). (Fonte: DICIONÁRIO HOUAISS). 66

Negar: 1. v. t. d. bit. ind. Formular negativa sobre; afirmar que não (ex.: Negava peremptoriamente a sua culpa). 2. t. d. bit. Recusar-se a admitir; contestar (ex.: Negar a existência de Deus). 3. t. d.

110

a própria existência dessa coisa. Denegar é indeferir, é negar a própria possibilidade

de negação. No relato dos guerrilheiros do Araguaia, é possível descrever e analisar

movimentos de denegação da história e, desse modo, identificar efeitos de sentido

que ressignificam a própria história da luta armada no sul do Pará. É o que será

analisado a partir dos enunciados que aparecem no quadro abaixo:

(1) “a fuga de Paulo, do A67. Este elemento, desde o inicio da luta, se mostrara vacilante e criava toda a sorte de problemas [...] mostrou-se indigno para participar da guerrilha” (POMAR, 1980, p. 264).

(2) “foi alvejado no ombro e depois preso. Foi levado para um local chamado Abóbora, e lá foi bastante torturado. Chegou a ser amarrado num burro e por este arrastado” (POMAR, 1980, p.254)

(3) “Logo adiante, esses companheiros encontraram o corpo de Ari sem cabeças [...] [...] Raul voltou pela manhã ao acampamento e Jonas desapareceu. (Houve suspeitas de que o assassino de Ari fosse o próprio Jonas)” (POMAR, 1980, p. 271).

(4) “Confirma a orientação marxista-leninista e assesta golpes na concepção

de via pacífica pregada pelo revisionismo” (POMAR, 1980, p. 275).

(5) “O Exército soube da nossa presença no sul do Pará através da denúncia do traidor Pedro Albuquerque que, meses atrás, havia fugido com a mulher do Destacamento C” (POMAR, 1980, p. 249).

QUADRO 03: Relatos de guerrilheiros do Araguaia: enunciados que denegam a história

Relatando alguns acontecimentos negativos ocorridos em setembro de 1973,

o corpus em análise explicita que um deles foi o que aparece no enunciado (1) do

quadro acima. Nessa passagem da narrativa é possível verificar como a memória faz

um movimento circular a ponto de se relacionar com enunciados da própria cultura

Demonstrar rejeição por; repelir; repudiar (ex.: Negar uma antiga amizade). 4. t. d. bit. Não conceder ou permitir; denegar, recusar (ex.: O pai negou-lhe o direito de herança). 5. pron. Não se submeter, não se sujeitar; denegar-se, rejeitar-se (ex.: Negou-se a colaborar com o inimigo). 6. t. d. bit. Não reconhecer, não aceitar como legítimo (ex.: Negar um governo ditatorial). 7. bit. Opor-se a, não consentir; impedir, proibir (ex.: Negou ao empregado a saída na folga). 8. t. d. Deixar de lado; abandonar, esquecer (ex.: Negar os princípios). 9. t. d. int. Não confessar (erro, delito, crime, etc.) (ex.: Pressionado, negou tudo). 10. t. d. bit. Deixar de revelar, manter em segredo; esconder, ocultar (ex.: Negava a todos o seu berço humilde). 11. t. d. Afirmar que (algo) contraria a verdade; desmentir (ex.: Negar uma afirmativa anterior). 12. pron. Esquivar-se a; evitar (ex.: Negar-se aos prazeres da vida). 13. pron. Não se apresentar; ocultar-se (ex.: Instado a receber as visitas, negou-se). 14. int. Constr. Alcançar (a estaca) a nega (‘limite de cravação’). 15. pron. Lud. No bilhar, saltar (a bola) para fora da mesa. (Fonte: DICIONÁRIO HOUAISS). 67

Letra usada para designar um dos destacamentos guerrilheiros no Araguaia. Ao todo eram três destacamentos denominados de A, B e C. O destacamento do guerrilheiro Paulo era o “A” (POMAR, 1980).

111

militar, na qual os desertores, ou seja, aqueles que abandonam o campo de batalha

são sempre tratados como desdém. Tem-se neste exemplo, um enunciado que, em

seu domínio associado, realiza um movimento de memória cujo sentido denega,

repudia, a prática, considerada covarde, da deserção militar, ou seja, dos que fogem

da luta deixando os companheiros em apuros. No caso, é um efeito de denegação

em relação à atitude do guerrilheiro desertor que movimenta a memória e ajuda a

recompor a história da guerrilha.

Narrando o momento em que o guerrilheiro de nome Carlito fora preso pelas

forças da reação, o relato de Arroyo em (2), é um enunciado cuja análise, leva, sem

dúvidas, à conclusão de que se está diante de um movimento de memória que

repudia, e, portanto denega a história da tortura no Brasil; uma prática covarde,

repugnante e abominável que se manifestou fortemente em todos os períodos de

exceção da história do país, particularmente no regime militar de 1964, conforme

historicizam centenas de obras e documentos que tratam da época, dentre elas

“Brasil nunca mais” (2007) da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e

“Direito à Verdade e à Memória" (2007) da Comissão Especial Sobre Mortos e

Desaparecidos Políticos da Presidência da República. É outro enunciado que, em

seu domínio associado, efetua um movimento de memória cujo sentido denega,

abomina, a história da tortura, uma prática corrente em todos os períodos ditatoriais

e em todos os momentos de exceção da vida democrática nacional.

Uma ideia das atrocidades cometidas no Araguaia e do nível de selvageria

que acometeu a guerrilha é o que se tem quando se lê, no relato em tela, a narrativa

de alguns trechos da terceira campanha das Forças Armadas, conforme o que se vê

em (3). Ao insinuar que um guerrilheiro teria matado outro guerrilheiro, fogo amigo

proposital, percebe-se como essa produção discursiva recebe uma forte carga de

denegação no seu contato com outras produções discursivas anteriores. Levar seus

companheiros à morte é o que nos apresenta, por exemplo, a história do cabo

Anselmo68, conhecido traidor das esquerdas durante o Regime Militar. É um

movimento que execra, exorciza e denega a história dos traidores.

A luta armada empreendida pelo PCdoB no Araguaia é celebrada nas hostes

partidárias como a demonstração prática de que este Partido não acreditava em

68

Agente secreto do regime militar que se infiltrava nos movimentos de esquerda para entregar os companheiros para a prisão, tortura e morte. Entregou à própria esposa à repressão, a qual terminou morrendo na cadeia enquanto era torturada. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabo_Anselmo. Acesso em 03/dez/2012).

112

outra forma de atingir o socialismo. No enunciado (4), que emerge do relato em

análise, se observa esse entendimento quando é dito que tal postura significa uma

vitória da linha partidária sobre outras concepções de luta. Os revisionistas, no

entendimento do PCdoB, eram aqueles que defendiam formas pacíficas de se

chegar ao poder, os quais foram derrotados em âmbito partidário, em 1961, quando

a história mostra a refundação desse partido e a definição clara de sua opção pela

luta armada. O enunciado em análise realiza, em seu domínio associado, um

movimento de memória cujo sentido denega, invalida, a opção revisionista que

descarta a luta armada como única saída. Ao expressar, na forma do trecho acima,

sua opção tática de luta, o relato denega, por via da memória no trato com os

revisionistas, a opção pelo caminho pacífico ao socialismo, característica dos que

haviam sido derrotados no âmbito do partido.

A traição sempre foi tratada com muito rigor nos eventos revolucionários.

Vários casos de traição foram relatados na narrativa dos guerrilheiros do Araguaia.

Um dos mais emblemáticos é o que culminou, segundo Ângelo Arroyo, com a

descoberta da guerrilha por parte das Forças Armadas, como se observa no recorte

(5). Ao relatar essa suposta traição, a memória produz um efeito de denegação que

traz à tona outros repudiáveis episódios da história brasileira, tais como a

participação de Joaquim Silvério dos Reis 69na Inconfidência Mineira, Calabar70 na

invasão holandesa, dentre outros. A traição como atitude reprovada e denegada,

movimenta-se pela memória coletiva nacional, acerca de outros casos, do passado

para o momento da guerrilha, e, como efeito dessa denegação ajuda a recompor a

69

Joaquim Silvério dos Reis Montenegro Leiria Grutes foi um dos delatores da Inconfidência Mineira. Era Comandante do Regimento de Cavalaria Auxiliar de Borda do Campo, contratador de entradas, fazendeiro e proprietário de minas, mas, devido aos altos impostos cobrados pela Coroa Portuguesa, estava falido. Sua participação no movimento é recheada de controvérsias e mistérios. A princípio, aceitou, mas, diante da possibilidade de ter suas dívidas perdoadas pela Coroa, resolveu delatar os inconfidentes. Ganhou, por isso, 30 moedas de ouro; o cancelamento de seu débito; o cargo público de tesoureiro da bula de Minas Gerais, Goiás e Rio de Janeiro; uma mansão como morada; pensão vitalícia; título de fidalgo da Casa Real; fardão de gala e hábito da Ordem de Cristo; além de ter sido recebido pelo príncipe regente Dom João em Lisboa. Sua imagem de traidor o perseguiu a vida toda e entrou para a história (http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Silv%C3%A9rio_dos_Reis. Acesso em 03/dez/2012). 70

Domingos Fernandes Calabar, era comerciante e pelo fato de ser profundo conhecedor dos territórios que haviam sido invadidos pelos holandeses no século XVII, teve participação importante nas primeiras vitórias da insurreição contra aqueles invasores. Porém, em 1632, certamente esperando alguma recompensa ou por outras razões não bem explicadas, Calabar muda de lado e passa a atacar os brasileiros. Com a derrota dos holandeses o traidor é preso e executado (http://educacao.uol.com.br/biografias/domingos-fernandes-calabar.jhtm. Acesso em 03/dez/2012).

113

história dos episódios do Araguaia no conjunto maior da história do Regime Militar

no Brasil.

114

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As histórias nem sempre terminam no desfecho. Muitas vezes, é a partir dele que realmente começam (Aila Sampaio).

o propor o tema dessa dissertação estávamos dispostos a trabalhar a

relação memória e história a partir da produção discursiva daqueles que

estiveram diretamente envolvidos num dos mais controvertidos, trágicos e

silenciosos episódios da história recente de nosso país: a experiência guerrilheira de

militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), no Araguaia, sul do Pará, no

início da década de 1970. O silêncio oficial com que se tratou esse episódio e as

versões deturpadas acerca da guerrilha é algo intrigante; um flagrante desrespeito a

aqueles que derramaram o próprio sangue na luta contra a Ditadura Militar, fato que,

em nosso modo de ver, justificaria por si só, um trabalho de investigação que

objetivasse reposicionar a história desse acontecimento a partir do relato dos que

dele participaram.

Some-se a essa preocupação a coincidência histórica: 2012, ano em que

essa dissertação foi produzida, a Guerrilha completou 40 anos. É neste ano

também, que João Amazonas e Maurício Grabois, ideólogo e comandante geral do

Araguaia, respectivamente, chegam ao centenário de nascimento.

A guerrilha do Araguaia foi analisada como mais um capítulo da luta secular

que tem caracterizado o espírito libertário dos brasileiros, não sendo justo, portanto,

que a memória de seus protagonistas fosse enterrada juntamente com os corpos

dos únicos guerrilheiros que de lá conseguiram fugir e que terminaram fuzilados pela

Ditadura na chacina da Lapa, três anos após o fim da guerrilha. Ao se colocar a

Guerrilha no conjunto das grandes epopeias do povo brasileiro, pretendemos

investigar acerca da possível ligação, pelos fios da memória discursiva, entre a saga

dos comunistas no Araguaia e outros episódios da luta por liberdade registrados na

historiografia de nosso país e, desse modo, reposicionar a própria história do

Araguaia.

A questão que motivou a pesquisa envolveu o modo como os movimentos

da memória inscrita nos relatos dos guerrilheiros podem recompôr a história da luta

A

115

política entre os combatentes daquele movimento revolucionário e a Ditadura Militar,

sendo que a resposta a esse questionamento se constituiu no objetivo geral do

trabalho. No plano específico os objetivos foram mostrar a heterogeneidade

discursiva no interior da formação discursiva comunista, bem como analisar, na

narrativa histórica sobre a Guerrilha, efeitos de sentido em torno da memória,

observadas no confronto das posições-sujeito dos envolvidos.

O corpus da pesquisa montado a partir do arquivo daquela época foi

composto pelos relatos escritos de Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, guerrilheiros que

sobreviveram ao massacre do Araguaia. Tendo em vista as particularidades do

arsenal teórico disponibilizado e a composição do corpus a ser analisado, o trabalho

foi desenvolvido a partir do método arqueológico de inspiração foucaultiana, haja

vista a necessidade de se trabalhar com o arquivo da época da guerrilha, composto

pelo conjunto de enunciados efetivamente ditos em sua dispersão e regularidade,

bem como a preocupação em garantir a interdiscursividade e a historicidade dos

sentidos produzidos a partir dos relatos e avaliações dos próprios guerrilheiros.

Para executar o percurso de análise em conformidade com o trajeto temático

formulado e com o método estabelecido, elaboramos um dispositivo teórico-

operatório que teve como fundamento a Análise do Discurso (AD) de linha francesa.

Tratando o discurso como elemento fundante do homem moderno, fizemos uma

abordagem dos fundamentos epistemológicos da AD, sua especificidade, sua

evolução teórica e seu reordenamento teórico-metodológico, a partir das

contribuições de Foucault aproveitadas nos trabalhos de Pêcheux. Na sequência,

utilizando a AD numa perspectiva arquegenealógica, observamos as relações entre

saber e poder no plano da análise dos relatos do corpus, considerando esse

discurso dos guerrilheiros como objeto de luta política, cujos sentidos são

mobilizados pela memória na construção da história da época.

Numa tentativa de demarcar o arquivo histórico da guerrilha para analisar o

corpus a partir das relações memória/história, realizamos, a partir de materiais que

historicizam o período da Ditadura Militar, uma contextualização histórico-geográfica

do movimento para, na sequência, apresentar a memória como um verdadeiro

campo de batalha onde sentidos são construídos e reconstruídos e a própria história

pode ser recontada; algo parecido, grosso modo e guardadas as devidas

proporções, com o que pretendeu Pierre Nora (1978) em seu projeto Les lieux de la

mémoire quando tentou reescrever a história da França a partir de um estudo dos

116

lugares de memória social. Como base em Fonseca-Silva (2007, p. 19) para quem

“toda e qualquer materialidade simbólica dotada de significação funciona como lugar

de memória discursiva”, entendemos que o relato dos guerrilheiros do Araguaia

materializado no corpus desta pesquisa são lugares, sim, de memória discursiva e

podem ajudar a reposicionar a história.

Na análise do corpus da pesquisa, o arcabouço teórico serviu de instrumento

para operar as análises dos dados dentro do trajeto temático estabelecido. A ideia

foi não simplesmente revisar a teoria, mas, acima de tudo, ver como a Análise do

Discurso (AD) e o método arqueológico podem fornecer dispositivos teórico-

metodológicos capazes de se transformar em conceitos operatórios para as análises

dessa investigação. Inicialmente o corpus de análise foi enquadrado numa

concepção de gênero textual e, na sequência, com base na noção de domínio

associado de Foucault (2010) devidamente aplicada à noção de memória discursiva

de Courtine (2009), foram identificados, descritos e interpretados movimentos de

repetição, refutação e denegação, movimentos que, inscritos na memória dos relatos

ajudam a recompôr a história da guerrilha.

Foi possível identificar enunciados no relato dos guerrilheiros nos quais a

memória inscrita efetua movimentos de repetição da história recompondo e dando

novo significado à história da guerrilha. Neste aspecto entra na história o preconceito

anticomunista, a xenofobia, a prática da tortura e a repressão aos movimentos

populares pela Ditadura, ao passo que pelo lado das forças de oposição ao regime

vai se contar a história da luta pela liberdade que pode se inspirar nos exemplos de

Anita Garibaldi e Rosa Luxemburgo e se baseia na prática vitoriosa de movimentos

revolucionários ocorridos anteriormente na China, no Vietnam e em Cuba.

Em certos momentos a análise da memória inscrita nos enunciados do corpus

identificou um movimento em direção a um domínio associado que irrompe do

interdiscurso no sentido de se construir uma história de negações em relação a

outros enunciados já historicizados. É nesse ponto que o relato dos guerrilheiros

escreve sua história de recusa ao modelo de propriedade privada de então (e até

hoje) prevalecente na região do Araguaia, bem como sua consequente escalada de

violência contra os camponeses. A história de reprovações também se manifesta

quando os relatos registram e repudiam a censura que silenciou os meios de

117

comunicação e impediu que os brasileiros tomassem conhecimento do que

acontecia no Araguaia no momento daqueles acontecimentos.

A análise também permitiu identificar e explicar movimentos de denegação,

em nível de memória, que possibilitaram ressignificar a história do período. É o que

se vê no extremo desprezo com que são tratados os traidores que desertaram do

campo de batalha e entregaram os companheiros para a morte, atitude que só

encontra paralelo em Calabar no seu apoio aos holandeses contra o Brasil-colônia,

em Joaquim Silvério dos Reis que denunciou a Inconfidência Mineira ou em Cabo

Anselmo que entregou a própria esposa para ser morta pelos algozes da Ditadura

Militar.

Além disso, alguns enunciados da Carta de Pomar, por exemplo, permitem

vislumbrar a heterogeneidade discursiva no interior da FD comunista; é o caso de

sua patente discordância em relação à analise positiva que Arroyo fez do quadro

político e das próprias forças do Partido no momento da deflagração da Guerrilha.

Contrapondo-se a esse ponto de vista, Pomar mostra, em sua Carta, que a

conjuntura política em 1972 não era nada favorável para se começar um movimento

guerrilheiro e que o próprio partido ainda não estava suficientemente preparado para

enfrentar um embate daquela magnitude.

Em última análise, convém ressaltar que as investigações realizadas nesta

pesquisa, apesar de fornecerem boas indicações acerca das possibilidades de se

recompôr a história, conforme foi feito em relação a um dos períodos mais obscuros

e controvertidos por que passou este país, é prudente lembrar que as perspectivas

aqui apontadas desejam, num plano mais geral, abrir um espaço maior para o

estudo sempre mais aprofundado acerca das complexas relações entre a memória e

a história. A temática trabalhada e a proposta de ressignificar a história a partir dos

movimentos da memória inscrita em discursos, certamente, conforme se espera,

suscitará outras pesquisas nesta direção.

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ANEXOS: O “CORPUS”

ANEXO A – Relatório sobre a luta no Araguaia

Ângelo Arroyo

Primeira campanha

Dia 12 de abril de 1972 iniciou-se a luta guerrilheira no Araguaia. Cerca de 20 soldados atacaram o "peazão" (principal PA - Ponto de Apoio - do Destacamento A), entrando por São Domingos. Dia 14, uns 15 soldados atacaram o PA do Pau Preto (do Destacamento C), entrando por São Geraldo. Nos primeiros dias de abril, já alguns policiais andaram pelas áreas dos destacamentos A e C à procura de informações sobre os "paulistas". O exercito soube de nossa presença no sul do Pará através da denúncia do traidor Pedro Albuquerque que, meses antes, havia fugido com sua mulher, do Destacamento C. [NE: mais tarde, soube-se que não foi Pedro Albuquerque o denunciante dos guerrilheiros que se encontravam no Araguaia]. Esse casal tinha concordado plenamente com a tarefa que iria realizar e com as condições difíceis que iria enfrentar. No entanto, logo depois de sua chegada ao Destacamento C, a mulher de Pedro Alburqueque começou a dizer que não condições para permanecer na tarefa e acabou convencendo seu marido a fugir. Com a fuga desses elementos, foram tomadas medidas de segurança. Em março de 1972, soube-se que Pedro Albuquerque havia sido preso no Ceará e, em seguida, começou a pesquisa policial na zona. Devido a isso, reforçaram-se as medidas de segurança. Construíram-se alguns barracos na mata ou em capoeiras e nosso pessoal passou a dormir fora dos locais conhecidos. De dia, colocavam-se guardas para manter a vigilância. Os destacamentos ficaram de sobreaviso, prontos para informar, uns aos outros, quaisquer fatos que afetassem a segurança.

No dia 12 de abril foi atacado o Destacamento A. O comando enviou um companheiro para avisar o Destacamento B. Por sua vez, o Destacamento C, que havia sido atacado dia 14, avisou a Comissão Militar (CM), através de um dos seus membros que lá se encontrava. A CM tomou medidas para avisar o Destacamento B e também o Destacamento A (pois não sabia ainda do ataque àquele destacamento). O Destacamento B, ao tomar conhecimento do que havia ocorrido no A, tratou de enviar um elemento, Geraldo (José Genoíno Neto), para avisar o C. Acontece que o C já havia se retirado. Geraldo, não encontrando o pessoal no local combinado, nem qualquer sinal informando que o inimigo havia batido no C, retomou por estrada, quando devia vir pela mata, conforme recomendação. Em conseqüência, foi preso por alguns soldados, dois batepaus e com a ajuda do comerciante e fazendeiro Nemer. No A, foi liberado um elemento, Nilo (Danilo Carneiro), que, desde que chegara, disse não ter condições para a tarefa. Ficou, no entanto, trabalhando num PA e concordou em permanecer ai até o começo da luta, quando seria dispensado. No dia 12, o Comando entregou-lhe uma certa quantia para a viagem e mandou-o embora. Ao chegar à Transamazônica, Nilo foi preso.

Apesar de prevenidos, os destacamentos tiveram alguns prejuízos materiais na retirada. No "peazão" (A) ficaram roupas, calçados, remédios, livros, papel para impressão, o Manual do Curso Militar, armas que estavam em conserto e algumas em vias de fabricação. Caiu também em poder do inimigo grande parte da oficina de

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mecânica. No Destacamento C caíram dez sacos de arroz, dez hectolitros de castanha-do-pará, um rádio e algumas panelas.

A primeira ofensiva do Exército se verificou quando ainda não se tinha terminado a preparação dos três destacamentos para a luta. A situação dos destacamentos era a seguinte: no A havia 22 elementos, comandante: Zé Carlos (André Grabois), vice: Piauí (Antonio de Pádua Costa); no B, 21, comandante: Osvaldo (Osvaldo Orlando Costa); vice: Zeca (José Huberto Bronca); no C, 20, comandante: Paulo (Paulo Mendes Rodrigues); vice: Vitor (José Toledo de Oliveira). Na CM, além dos quatro membros, havia dois elementos de guarda. Ao todo havia 69 elementos. Para completar os efetivos faltavam 13 elementos. Todos os destacamentos tinham reservas de alimentos, roupas, remédios e munição. Faltavam, no entanto, coisas indispensáveis. No A e no C não havia reserva de farinha. As armas com que se contava eram precárias. O Destacamento A tinha quatro fuzis, quatro rifles 44, uma metralhadora fabricada lá mesmo, uma metralhadora INA, seis espingardas 20 e duas carabinas 22; o Destacamento B tinha um fuzil, uma submetralhadora Royal, seis rifles 44, uma metralhadora fabricada lá mesmo, 16 de dois canos, uma espingarda 16 de um só cano, seis espingardas 20, uma espingarda 36 e duas carabinas 22; no C havia quatro fuzis, alguns rifles 44, espingardas 20 e carabinas 22; na CM, havia duas espingardas 20. A maior parte dessas armas era antiga e apresentava defeitos. Todos os combatentes tinham revólveres 38, com mais de 40 balas cada. Embora todos os elementos tivessem feito progresso no conhecimento do terreno, as deficiências ainda eram grandes. Muitos companheiros tinham ainda dificuldades em se orientar na mata e caçavam mal. Não existia também uma rede de informações e de comunicações. Não existiam organizações do Partido nas áreas periféricas, nem mesmo nos Estados vizinhos. A CM e os destacamentos A e B dispunham de pouco dinheiro.

A área de atuação dos destacamentos ia desde São Domingos das Latas até o rio Caiano (pouco mais de 20 km de São Geraldo). Em extensão, essa área tinha cerca de 130 km de comprimento por uns 50 km de fundo. Um total de cerca de 6.500 km². A população da área onde atuavam os destacamentos era de mais ou menos 20 mil almas, sem incluir as zonas próximas, como Marabá (18 mil habitantes), São João (3.000 habitantes), Araguatins (5.000 habitantes), Xambioá (5.000 habitantes). (No Norte de Goiás e Oeste de Maranhão, durante uns três anos, realizou-se também amplo trabalho de ligação com as massas). Os produtos principais da área são: castanha-do-pará, babaçu, arroz, mandioca e milho. Quase toda a região é de mata e há muita caça.

Ao iniciar-se a luta, a CM perdeu contato com o Destacamento C. Somente em janeiro de 1973, esse contato foi restabelecido.

Início da luta

O Exército atacou simultaneamente os destacamentos A e C. Uns dez dias depois, atacou o Destacamento B e também o local da CM. As tropas ficaram na Transamazônica e nas cidades de Xambioá, Marabá, Araguatins, Araguanã e nos povoados de Palestina, Brejo Grande, São Geraldo, Santa Cruz e outros. Não foi muito grande o número de soldados que entrou na área onde se achavam os PAs. O Exército ocupou algumas fazendas e sedes dos castanhais (Mano Ferreira, Oito Barracas, Castanhal da Viúva, Castanhal do Alexandre, Fazenda do Nemer). Utilizou aviões, helicópteros e, nos rios e igarapés, barcos da Marinha. As tropas não

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chegaram a entrar mata, movimentaram-se pelas estradas. Ficavam emboscadas nas Proximidades de casas de moradores nas roças, capoeiras, grotas e algumas estradas. O Exército procurou apresentar os guerrilheiros com marginais, terroristas, assaltantes bancos, maconheiros etc. Depois passou a dizer que éramos estrangeiros, russos, cubanos, alemães. Prendeu muitos elementos de massa, que considerava mais amigos nossos, tanto nas roças como nas cidades vizinhas. Depois de alguns dias, esses elementos foram soltos. Começaram a se apoiar nos bate-paus da região e recrutar muitos deles para pô-los a seu serviço. Forçaram muitos moradores a servir de guias. Todos os nossos locais foram queimados pelo Exército, inclusive os paióis de milho e arroz e depósitos de castanha. Cortaram todas as árvores frutíferas. Também algumas roças e casas de massa foram queimadas. As perseguições estenderam-se aos padres. Alguns foram presos e depois soltos. O Exército não possuía informações completas sobre nós. Alguns PAs só foram queimados uns 15 dias depois do início da luta. O Exército, além da farda comum, usou também roupa azul, roupa camuflada e trajes civis. Suas patrulhas eram de dez elementos. Mas usava também grupos menores, seis, ou maiores, de 30. Recebia alimentação de campanha, em latas sacos plásticos. A primeira campanha se prolongou até julho.

Nossa Atuação

Ao serem atacados, todos os componentes dos destacamentos A e B retiraram-se, em ordem, para as áreas de refúgio. De imediato não e choques com o inimigo. Em de abril, dois elementos do B defrontaram-se com um grupo do exercito. Houve troca de tiros. Um sargento e um soldado foram mortos outros dispersaram. Os inimigos abandonaram no local uma que conduziam. No entanto, nesse encontro não foram apreendidas nem armas, nem essa carga. A CM reuniu-se em maio e tomou uma série de providências. Publicou também o Comunicado nº 1. Entre as providências, indicou como forma de luta a propaganda armada em vista explicar às massas o motivo da luta. Indicou medidas para melhorar o abastecimento, a preparação militar e o conhecimento do terreno. Ordenou que se estudassem as possibilidades de realizar ações de fustigamento e emboscadas. E iniciou a preparação de uma rede de informações. A tática então empregada resumia-se no seguinte: 1) recuar para as áreas de refúgio; 2) buscar contato com as massas; e 3) tentar realizar ações de fustigamento e emboscadas do inimigo.

O Destacamento A permaneceu no refúgio mais de um mês. Enfrentou dificuldades de abastecimento. Em julho voltou-se para a massa e foi bem recebido. No contato com as massas resolveu o problema de alimento e emboscada, mas não houve nenhuma ação militar. O inimigo se retirou da mata. Todos os componentes do A mantiveram-se firmes, com exceção do Paulo (João Carlos Campos Wisnesky), que fingiu doença.

O Destacamento B permaneceu mais tempo do que devia no refúgio. Somente em fins de junho começou a voltar-se para a massa, sendo também bem recebido. Houve o choque militar já mencionado. A atuação de massa foi principalmente na área da Palestina.

O Destacamento C apresentou alguns problemas mais sérios. Em abril, o destacamento já havia abandanado a área do rio Caiano, onde atuara, e se concentrara numa área de mais mata, mas onde o pessoal era recente, não conhecia bem a região. Além disso, entre os componentes do C havia dois elementos incorporados há apenas uns três meses, dois outros ingressaram no

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momento mesmo em que a luta se iniciava. Logo no início, alguns elementos mostraram vacilação. Miguel e Josias. Esse destacamento perdeu contato com a CM até janeiro de 73. Ao contrário do A e do B, que mantiveram os três grupos de sua composição sob controle direto do mando, no C o destacamento se dispersou em três grupos, indo um deles para a antiga região do Caiano. Todos procuraram contato com a massa. Houve vários choques militares. Em maio, um grupo dirigido por Jorge (Bergson Gurjao Farias) seguiu para um antigo PA (Água Bonita). Aí acampou. No dia seguinte, ouvindo um assobio perto de onde estava, Jorge mandou Domingos (Dower Morais Cavalcante) verificar o que era. Era o Exército. Domingos foi preso.

Em seguida, houve troca de tiros, tendo os nossos se dispersado. Um soldado foi ferido no braço. Dois elementos [Baianinha (Luzia Ribeiro) e Miguel], que não conheciam a área, se perderam. Logo depois foram presos em casas de moradores, em pontos diferentes. Domingos se comportou mal e levou o Exército a um depósito do destacamento, onde havia remédios e alimentos. Dias depois, Paulo (comandante do destacamento) procurou um morador de nome Cearense, seu conhecido, que já havia prestado alguma ajuda, encomendando-lhe um rolo de fumo, que seria apanhado dentro de uns três dias. Cearense sempre foi muito ajudado por Paulo. No entanto, diante da recompensa oferecida pelo Exército (mil cruzeiros) a cada guerrilheiro que entregasse, Cearense foi a São Geraldo e avisou o Exército do ponto marcado por Paulo. No dia de apanhar o fumo, dirigiu-se ao local um grupo constituído por cinco elementos: Paulo, Jorge, Áurea (Áurea Eliza Pereira Valadão), Ari (Arildo Valadão) e Josias. Ao se aproximarem do local, foram metralhados, tendo morrido Jorge. Os demais se dispersaram. No choque, perdeu-se, além da arma de Jorge, uma pistola 45 que Paulo conduzia. Em meados de junho, três companheiros, dirigidos por Mundico (Rosalindo Souza), procuraram um elemento de massa, João Coioió, que já tinha ajudado várias vezes os guerrilheiros com comida e informação. Ficou acertado o dia em que ele voltaria de São Geraldo para entregar as encomendas. À noitinha desse dia, aproximaram-se da casa Mundico, Cazuza (Miguel Pereira dos Santos) e Maria (Maria Lúcia Petit), mas perceberam que não havia ninguém.

Cazuza afirmou que ouvira alguém dizendo baixinho: "'pega, pega". Mas os outros dois nada tinham ouvido. Acamparam a uns 200 metros. Durante a noite, ouviram barulho que parecia de tropa de burro chegando na casa. De manhã cedo, ouviram barulho de pilão batendo. Aproximaram-se com cautela, protegendo-se nas árvores. Maria ia na frente. A uns 50 metros da casa, recebeu um tiro e caiu morta. Os outros dois retiraram-se rapidamente. Dez minutos depois, os helicópteros metralhavam as áreas próximas da casa. Alguns elementos de massa disseram, mais tarde, que Maria fora morta com um tiro de espingarda desfechado por Coioió. Este, logo depois, desapareceu com a família. Uns dias mais tarde, Lena (Regilena) entregou-se ao Exército. Deixou no acampamento a espingarda e a mochila. Em princípios de julho, Vitor e Carlito (Kleber Lemos da Silva) saíram para tentar um encontro com a CM. Mas Carlito não pôde prosseguir viagem, devido ao agravamento de uma ferida (Leishmaniose) na perna. Sem poder caminhar, ficou num castanhal, próxima à estrada, enquanto Vitor voltava para avisar os companheiros. Nesse meio tempo, passou pela estrada o bate-pau Pernambuco, que ouviu o barulho de alguém quebrando um ouriço de castanha. Levou, então, o Exército ao local. Ao procurar se defender, Carlito foi alvejado no ombro e, em seguida, preso. Foi levado para um local chamado Abóbora e lá foi bastante torturado. Chegou a ser amarrado num burro e por este arrastado. Elementos de

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massa disseram que o viram praticamente morto sobre o burro. Soube-se depois que Carlito levou os soldados até um velho depósito que nada continha. Pode ser que o tenham matado, mas também pode ser que ficou apenas preso. Um pequeno grupo, chefiado por Ari, trocou tiros com o inimigo, tendo matado um soldado da Polícia Militar.

O destacamento fez também uma ação contra um barracão, sede de castanhal, tendo conseguido regular quantidade de comestíveis, algumas pilhas e querosene. Mas pagaram as mercadorias ao preço corrente em São Geraldo. Também um grupo de três, num encontro casual, liquidou um bate-pau, filho de um tal José Pereira. O bate-pau foi intimado a levantar o braço. Mas apontou a arma contra os companheiros, sendo alvejado. A morte desse bate-pau causou pânico entre os demais da zona. Dois outros pequenos grupos caíram em emboscadas do Exército, mas não tiveram baixas. Conseguiram safar-se. A emboscada foi possível por falta de vigilância. Os companheiros iam caminhando por estradas e, apesar de notarem o rastro dos soldados, não se afastaram do caminho.

No curso da primeira campanha do inimigo, a CM manteve contato regular com os destacamentos A e B. A alimentação da CM foi mantida pelo B. Em julho, a CM resolveu enviar um grupo de companheiros, chefiados pelo Juca (João Carlos Haas Sobrinho), para conseguir relatar o contato com o C. Faziam parte do grupo: Flávio (Ciro Flávio de Oliveira Salazar), Gil (Manoel José Nurchis), Aparício (ldalisio Soares Aranha Filho) e Ferreira (Antonio Guilherme Ribeiro Ribas), do B. Esta medida se impunha, porque o C não atendeu aos pontos previamente estabelecidos. Este grupo caiu numa emboscada do Exército na Grota Vermelha, a uns 50 metros da estrada. Juca levou dois tiros, um na perna e outro na coxa, mas conseguiu, juntamente com os outros companheiros, embrenhar-se na mata. Ficaram parados alguns dias, para que Juca se restabelecesse. Durante esse período, Aparício saiu para caçar e se perdeu. Procurou a casa de um morador, chamado Peri, por onde sabia que os demais iam passar. Lá ficou à espera. O dono da casa onde se refugiou levou-o para um barraco no mato, próximo à casa. Aí lhe serviam a comida. Dias depois, apareceu o Exército e travou tiroteio com Aparício. Este descarregou todas as balas do revólver que tinha e, quando tentava enchê-lo de novo, recebeu um tiro e morreu. Não se sabe se o Exército chegou por acaso ou se foi denúncia. O Juca, com os outros, foi até a casa de morador conhecido que podia fazer o contato com o C. Deixou aí um ponto para o Paulo (todo dia 1° de cada mês, a partir de setembro). Mas o ponto era uma indicação que só Paulo poderia saber. Juca retornou à CM com os demais. A CM reforçou a sua guarda com a vinda de Ari (Marcos José), do A, e Zezinho, do B, e tentou fazer contato com o CC.

Assim termina o período da primeira campanha do inimigo.

Segunda campanha

A segunda campanha se inicia setembro de 1972. Nesta campanha, as Forças Armadas empregaram 8 mil a 10 mil soldados. As trapas eram, em geral, de recrutas e de vários Estados. Distribuíam-se por várias bases implantadas na área. Estas bases eram fazendas, sedes de castanhas ou mesmo roças. Ocuparam as estradas e abriram algumas picadas na mata. Chegaram a entrar na mata, guiados por um morador local (Osmar), na área do B. Havia pouca tropa especializada. A moral dos soldados era baixa. Todos estavam ansiosos para regressar. Armaram muitas emboscadas em beiras de grotas, estradas, casas de mora dores e em capoeiras. Fizeram algumas armadilhas. Utilizaram helicópteros e aviões. Soltaram

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três bombas na mata, nas proximidades de um acampamento do Destacamento B. Recrutaram bate-paus locais e pagavam 25 cruzeiros por dia aos moradores que quisessem servir de guias. Durante a campanha, o Exército distribuiu boletins na área, concitando os guerrilheiros a se entregar. Distribuiu também o fac-símile de uma carta do Geraldo, dirigida ao Glênio (Glênio Sá), do B, na qual afirmava que estava sendo bem tratado, e com dignidade, pelo Exército e pedindo a ele para se entregar. A carta trazia o retrato de Geraldo e também o de Miguel (que havia sido preso no C). Elementos de massa dizem que viram também uma carta da Baianinha e outra da Lena, mas não temos confirmação. O boletim, entre outras coisas, dizia que "o povo não apoiava os guerrilheiros", que “as fonte de suprimentos dos guerrilheiros estavam bloqueadas", que “as organizações do Partido nas cidades haviam caído e onde não caíram , estavam prestes a cair", que "a luta do Araguaia não teve a repercussão que os guerrilheiros esperavam", que "as rotas de fuga estavam bloqueadas", que "a guerrilha urbana tinha fracassado e que era inútil prosseguir no caminho que estávamos" e que "não restava outro caminho senão entregar-se". Ao mesmo tempo que realizavam a segunda grande operação, as Forças Armadas desenvolviam uma ação paralela junto às massas. Procederam à operação Aciso (Ação Cívico Social), distribuindo remédios, fazendo consultas médicas e dentárias, levando doentes de helicópteros e aviões para as cidades maiores. Montaram também uma operação com o lncra. Este anunciava que iria distribuir terras, legalizar as posses dos lavradores. A campanha militar manteve-se até fins de outubro.

Avanços e perdas

Ao iniciar-se a segunda campanha, os guerrilheiros já possuíam maior experiência. Tinham avançado no conhecimento da mata, na ligação com as massas, na preparação militar, e conseguido organizar um pouco melhor o abastecimento. As armas, no entanto, continuavam precárias. Não havíamos conseguido tomá-las do inimigo até esta data.

Antes de o inimigo entrar em ação, a CM tinha decidido enviar um dos seus membros para o Destacamento A e outro para o B, a fim de lá ficar um mês. O companheiro Juca foi enviado para o C, com o fim de reatar o contato.

No Destacamento A, o inimigo não conseguiu estabelecer contato com os guerrilheiros. Movimentou-se na área, sem resultado. O comando do destacamento tentou, também sem resultado, realizar operações de fustigamento. No dia 29 de setembro, houve um choque que resultou na morte de HeIenira Resende (Helenira Resende de Souza Nazareth). Ela, juntamente com outro companheiro, estava de guarda num ponto alto da mata, para permitir a passagem, sem surpresa, de grupos do destacamento. Nessa ocasião, pela estrada, vinham tropas. Como estas acharam a passagem perigosa, enviaram "batedores" para explorar a margem da estrada, precisamente onde se encontrava HeIenira e o outro companheiro. Este, quando viu os soldados, acionou a metralhadora, que não funcionou. Ele correu e Helenira não se deu conta do que estava sucedendo. Quando viu, os soldados já estavam diante dela. Helenira atirou com uma espingarda 16. Matou um. O outro soldado deu uma rajada de metralhadora que a atingiu. Ferida, sacou o revólver e atirou no soldado, que deve ter sido atingido. Foi presa e torturada até a morte. Elementos da massa dizem que seu corpo foi enterrado no local chamado Oito Barracas. A morte de Helenira causou grande indignação.

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Zé Carlos e Nunes (Divino Ferreira de Souza) saíram para pesquisar um local que permitisse fazer uma emboscada. Na estrada, perceberam a vinda de gente e trataram de se esconder. Eram muitos soldados. Já tinham passado os quatro primeiros. O quinto os viu e atirou. Houve forte tiroteio. Nunes e Zé Carlos escaparam com muita dificuldade. Ambos chegaram a sofrer arranhões das balas.

No Destacamento B, um pouco antes do início da segunda campanha, havia-se programado uma ação de propaganda armada no povoado de Santa Cruz. Quando os companheiros se deslocaram para fazer essa operação, o inimigo já estava penetrando na área. Amauri (Paulo Roberto Pereira Marques) e Mané (José Maurílio Patrício) chegaram a ir até Santa Cruz, enquanto os outros aguardavam num acampamento à margem do Gameleira. Quando Amauri chegou ao povoado, ainda não havia soldados. Ao regressar para avisar os demais, foi surpreendido por tropas que já tinham chegado. Ele foi atacado e respondeu ao fogo. Escondeu-se numa capoeira e conseguiu escapar. Os soldados vinham para atacar o acampamento. Na véspera, passara ali um bate-pau, Mãozinha de Paca, e viu o acampamento. Falou com o Comprido (Simão Cilon Cunha Bruno) e mostrou-se amigo. Em seguida, foi avisar O Exército. No dia 15, os helicópteros começaram a sobrevoar a área. Desta forma, a ação programada para Santa Cruz não poderia mais ser realizada. O comando resolveu retirar o grosso dos combatentes e mudar de área. Foi para a Palestina. Antes de se retirar, foi tentada uma emboscada que não se realizou. Ficaram dois grupos de três, com o objetivo de fazer fustigamento ao inimigo. Deviam permanecer na área por cinco dias e retomar depois para se juntar ao destacamento. Um grupo ficou à espera do inimigo na estrada que vai para Couro d'Anta e outro na estrada que vai para Duas Passagens. Passaram quatro soldados, vestidos à paisana, pela estrada onde estava o primeiro grupo.

Amauri ficou em dúvida se eram realmente soldados, e quando chegou a essa conclusão, já o último tinha passado. Não houve ação. Pelo segundo grupo também passaram vários soldados. Os companheiros atiraram e mataram um, retirando-se em seguida. Na marcha para a Palestina, o destacamento tentou fa¬zer uma ação contra os soldados que estavam acantonados no Castanha. Mas verificou que era grande o número dos inimigos - mais de 80. Desistiu-se da ação. Dividiu-se o destacamento em dois grupos e seguiu-se para a nova área. Aí resolveu-se fazer trabalho de massa, apesar de o inimigo estar desenvolvendo sua campanha. Visitaram-se umas dez famílias, que se mostraram solidárias, ainda que alguns demonstrassem medo do Exército. Obteve-se certa quantidade de farinha e batatas da terra. Logo que começamos as visitas, soubemos que o Exército estava se retirando. Pouco antes, era grande o número de soldados na área. Somente na roça do Osmar chegou a haver 170 soldados e lá pousaram quatro helicópteros. Surgiu um sério atrito entre o vice-comandante Zeca e os demais membros do destacamento. Zeca, irritado, insultou muitos companheiros e acabou dizendo que ia se demitir do cargo. Ele não tinha nenhuma razão e, com isso, perdeu a autoridade. Ocorreu também o desaparecimento do combatente Glênio. Este, em princípios de outubro, já na área da Palestina, perdeu-se e foi preso em dezembro, na casa de um pequeno comerciante, perto de Santa Cruz. Um bate-pau, Mãozinha-de-Paca, o viu lá e foi buscar outro bate-pau, Alfredo Fogoió, e o prenderam. Glênio havia sido procurado pelo destacamento, sem resultado. Chegamos a pensar que ele havia fugido, mas isto não era certo, embora Glênio tivesse mostrado passividade na ocasião da prisão. Parece que estava doente.

No Destacamento C, perto do dia 20 de setembro, dois companheiros, Vitor e Cazuza, deslocavam-se para fazer um encontro com três companheiros.

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Acamparam perto de onde devia ser o encontro. À tardinha, ouviram barulho de gente que ia passando perto. Cazuza achou que eram os companheiros e quis ir ao encontro deles, mas Vitor não permitiu. Disse que só devia ir ao ponto no dia seguinte. Pela manhã Cazuza convenceu Vitor a permitir que ele fosse ao local onde, na véspera, ouvira o barulho. Vitor ainda insistiu que não se devia ir ao ponto, mas acabou concordando. Ao se aproximar do local do barulho, Cazuza foi metralhado e morreu. Vitor encontrou os três - Dina (Dinalva Oliveira Teixeira). Antonio (Antonio Carlos Monteiro Teixeira) e Zé Francisco (Francisco Chaves).

Como estavam sem alimento, Vitor resolveu ir à roça de um tal de Rodrigues apanhar mandioca. Os companheiros disseram que lá não havia mais mandioca. Vitor, porém, insistiu. Quando se aproximaram da roça, viram rastros de soldados. Então, Vitor decidiu que os quatro deveriam esconder-se na capoeira, próxima à estrada, certamente para ver se os soldados passavam e depois então ir apanhar mandioca. Acontece que, no momento exato em que os soldados passavam pelo local onde eles estavam, um dos companheiros fez um ruído acidental. Os soldados imediatamente metralharam os quatro. Dois morreram logo: Vitor e Zé Francisco. Antônio foi gravemente ferido e levado para São Geraldo, onde foi torturado e assassinado. Escapou a companheira Dina, que sofreu um arranhão de bala no pescoço. Depois destes fatos, o comando do C decidiu recuar e procurar por todos os meios o contato com a CM. Na CM, foi decidido enviar o Juca, em companhia de mais quatro companheiros: Flávio, Gil, Raul (Antonio Teodoro de Castro) e Valk (Valquíria Afonso Costa), do B, para conseguir o contato com o C. Quando Juca saiu, o Exército não tinha ainda iniciado a segunda campanha. Ele estava a caminho quando isso ocorreu. No segundo dia de viagem, houve um choque na área do Franco. Os cinco estavam numa capoeira "'a quando receberam ordem de prisão um soldado que apontava a arma. Mas Flávio, que estava um pouco afastado, atirou e acertou, ferindo gravemente o soldado. Em seguida, se afastaram do local. No dia seguinte, ocorreu outro choque. Juca vira um cartaz do Exército pregado numa árvore ao longo de uma estrada. Mandou ver o que o cartaz dizia. Quando o companheiro se aproximava do mesmo, deparou com um soldado. Atirou e errou. O soldado correu. Ao chegar, a 30 de setembro, nas proximidades do local do encontro com o C (Paulo), Juca observou que havia muitos soldados nas redondezas. Em todas as casas de moradores havia soldados. Juca resolveu, porém, aproximar-se de uma das casas, para se orientar melhor. Viu que lá também havia tropa. Retrocedeu e se juntou ao grupo. No momento em que iam saindo, Gil perguntou, talvez um pouco alto, se poderia amarrar a botina. Imediatamente ouviu-se uma rajada. Juca e Flávio caíram mortos. Raul foi ferido no braço, escapando juntamente com Valk. Gil ainda se aproximou de Juca tentando reanimá-lo. Ocorreram novos disparos. Depois não se soube mais de Gil. Deve ter morrido. Raul e VaIk, que não conheciam bem a região, vagaram durante dois meses pela mata, até que se encontraram novamente com os companheiros do destacamento B. A CM decidiu também enviar uma companheira para o Sul. A CM discutiu a situação criada pelo vice-comandante do B e decidiu retirá-lo do cargo e incorporá-lo à guarda da CM (como vice-comandante). Indicou Simão para o lugar do Zeca no B.

Ao final da segunda campanha do Exército, as forças guerrilheiras haviam perdido os seguintes companheiros: no Destacamento A, Helenira; no B, Flávio e Gil; no C, Cazuza, Vitor, Antonio e Zé Francisco; na CM, Juca. Além destes, houve o desaparecimento de Glênio. Desde que começou a luta, em 12 de abril, até o final de outubro, as baixas foram 18 (entre mortos e aprisionados). O total de

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combatentes era então de 50 (com a saída da companheira para o Sul). O destacamento A estava com 19 elementos; o B, com 14; o C, com 9; a CM, com 8.

Período de Trégua

Em novembro de 1972, iniciou-se um período de trégua. O grosso das tropas se retirou da área. Ficaram algumas tropas na periferia e a PM manteve-se nos postos de fiscalização e controle. Multiplicaram-se também os agentes da Policia Federal (disfarçados). Não tendo conseguido esmagar os guerrilheiros na segunda campanha, o Exército se preparava para realizar uma nova operação. Começou a construir quartéis em Marabá, Imperatriz, Itaituba, Altamira e Humaitá. Procurava recrutar mateiros em vários lugares. Construiu estradas na área e alargou as existentes. Entre estas, a de São Domingos a São Geraldo; Transamazônica - Brejo Grande; da Fazenda do Mano Ferreira, passando pelo Garimpo e a Viúva e indo até o Araguaia; a estrada que ia da Viúva (próximo de Santa Isabel), passando pelo castanhal do Ferreira e indo até Santa Cruz; a estrada da Transamazônica - Tabocão. A serviço do Exército (ao que tudo indica), começaram a aparecer indivíduos estranhos na área, comprando terra, abrindo serviço de roça, instalando-se em fazendas. Eram pessoas de outros Estados, inclusive de São Paulo.

A CM orientou os destacamentos no sentido de melhor aproveitar a trégua para se preparar. Previa a nova ofensiva para o começo do verão, lá para maio. Entre as tarefas mais importantes, destacava: ligação maior com as massas, tanto em extensão como em profundidade; preparação de locais para ações de fustigamento e emboscada, preparação de bons locais de refúgio; conhecimento maior do terreno e melhoramento dos croquis; intensificação do preparo militar; procurar melhorar o armamento através das massas (compra, troca etc) e montar a oficina de consertos, organização de depósitos que garantissem a alimentação para seis meses (sobretudo farinha, milho, arroz). Os depósitos deviam ser pequenos, descentralizados, e a maior parte dos alimentos guardados devia ir para as zonas de refúgio. A CM orientou também para que os destacamentos limpassem a área, eliminando os bate-paus, para que mantivessem vigilância a respeito de todas as pessoas estranhas que aparecessem na área. O principio estratégico fundamental era a sobrevivência das forças guerrilheiras. De acordo com esse principio, era necessário preservar as forças, não fazer ações que redundassem em baixas. A CM insistiu também na necessidade de se criar núcleos da ULDP (União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo).

Em janeiro de 1973, o Destacamento C conseguiu estabelecer contato com a CM. Paulo, com outros companheiros, foi até a área da Palestina e lá encontrou os elementos do B e um membro da CM. Logo depois, a CM reuniu-se e tomou as seguintes decisões: colocar Paulo como membro da CM e fundir os destacamentos B e C. O destacamento B deslocou-se para fazer a fusão. A CM, porém, logo depois mudou de opinião e decidiu manter os dois destacamentos separados, procedendo à reorganização do C. Vieram para o C os companheiros Luis (Guilherme Gomes Lund) e Lauro (Custódio Saraiva Nela), do A; Raul e Valk, do B e Ivo (José Lima Piauí Dourado), do destacamento de guarda da CM. Foi designado para comandante do C o companheiro Pedro (Gilberto Maria Olimpio), da CM; ficando Dina como vice-comandante. A CM decidiu que o destacamento C concentrasse sua atividade na área próxima da estrada de São Geraldo, abandonando temporariamente as zonas da Grata Vermelha e do Caiano.

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Nesse período da trégua, a CM editou vários materiais de propaganda, uns mimeografados (em reco-reco) e outros escritos à mão. Foram os seguintes: I) Carta ao Povo de Porto Franco e Tocantinópolis, assinada pelo médico João Haas; 2) Carta de Osvaldão aos Seus Amigos; 3) Comunicado sobre a Morte de Helenira Resende; 4) Comunicado sobre a morte do Juca; 5) Manifesto do 1º Ano de Luta; 6) Manifesto ao Soldado. Foram mimeografados mais de cem exemplares do documento Em Defesa do Povo Pobre e pelo Progresso do Interior (programa da ULPD). Também foi mimeografado o Romance da Libertação (de autoria de Mundico, do C). Editou-se, igualmente, um manifesto contra o Incra.

A CM elaborou os seguintes materiais: I) Normas sobre Segurança no Trabalho de Massa; 2) Normas sobre Acampamento; 3) Normas sobre Recrutamento para a Guerrilha; 4) Adendo às Normas de Marcha; 5) Indicações para a Organização de Núcleos da ULDP.

As normas de segurança no trabalho de massa foram elaboradas tendo em conta a experiência e os ensinamentos decorrentes das condições em que morreram alguns combatentes, como Jorge, Maria e outros. Aí se dizia que qualquer visita às casas de moradores devia ser encarada como uma operação militar. Antes de entrar nas casas, era necessário observá-Ias de longe, para se certificar de que nelas não havia soldados ou pessoas estranhas. Durante a visita, devia-se manter guardas em todas as vias de acesso às casas. Não se devia permitir a saída de nenhuma pessoa da casa enquanto durasse a visita. Se alguém se aproximasse da casa, deixar passar se fosse amigo, ou deter se não fosse gente conhecida ou amiga. Não largar a arma e explicar o motivo aos moradores, pedindo inclusive desculpas. Nas visitas de massa, os guerrilheiros não deviam conduzir nenhum documento pessoal ou que comprometesse a guerrilha. Antes de ingressar nas casas, os companheiros deviam combinar uma referência para encontro, no caso de terem de se dispersar repentinamente (uma referência próxima e outra mais longe). Quando se tivesse que marcar encontros com elementos de massa, não se devia dizer à massa o dia exato em que se voltaria a sua casa. Ao sair da visita, os visitantes não deveriam dar a entender o rumo que iriam tomar. Também não se devia dormir nas casas de massa.

Quanto às normas de acampamento, dizia-se que, antes de acampar, era preciso pesquisar em torno, para ver se não havia estrada, pique etc. Ao acampar, devia-se fazer o plano de defesa e retirada. Evitar ruídos. O fogo só devia ser aceso quando escurecer. Não se devia dar tiros próximo ao acampamento. A mochila de cada combatente devia estar sempre arrumada, pronta para ser levada no caso de retirada. Reclamava-se o cumprimento das normas de higiene (quando o acampamento era por um prazo mais longo, devia-se abrir pequenas fossas). As armas deviam estar à mão ou bem próximas do combatente. Era necessário evitar cortes na vegetação que deixassem marcas à vista. Os acampamentos não deviam ser conhecidos pelas massas. Quando levantassem acampamento, exigia-se que o mesmo fosse camuflado.

Sobre as normas de recrutamento para a guerrilha, exigia-se que, antes de trazer qualquer elemento de massa para as fileiras dos combatentes, era preciso conhecer bem a pessoa, saber a opinião das massas sobre ela, se se tratava de morador antigo ou novo e se era estimada ou não. Antes do ingresso nas fileiras, se possível, era necessário, durante algum tempo, experimentar os elementos na realização de determinadas tarefas. Convinha ajudar o elemento novo a elevar seu nível político e ideológico e ensinar os analfabetos a ler e escrever. Os recrutados

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não deviam conhecer os depósitos, áreas de refúgio e locais de encontro com outros destacamentos.

No que se refere à marcha, recomendava-se que, quando se fosse atender a um encontro, era preciso seguir o caminho conhecido, evitando-se fazer pesquisa de novos roteiros, para evitar atrasos prejudiciais. Se ocorresse um engano no caminho, devia-se voltar ao ponto conhecido, para melhor reorientar-se. Os mantimentos para a viagem deviam ser para mais uns dois dias do tempo previsto.

A respeito da criação dos núcleos da ULDP, dizia-se que: a) deviam ter de três a cinco membros, com um responsável; b) os componentes de um núcleo não deviam conhecer a organização de outros núcleos; c) as tarefas dos núcleos deviam ser: colher informação, fazer propaganda da guerrilha entre os moradores, ajudar a guerrilha com alimentação, defender os interesses do povo da região.

A guerrilha e as massas

O êxito maior da nossa atuação, nesse período da trégua, foi a ligação com as massas. Estendeu-se nossa influência entre o povo. Ganhamos muitos amigos, e não era só apoio moral. A massa fornecia comida e mesmo redes, calçados, roupas etc. E informação. Contávamos com o apoio de mais de 90% da população. A fraca presença do inimigo na área e a nossa politica correta no trabalho de massa proporcionaram esses êxitos. Os guerrilheiros, todos eles, eram bastante estimados pela massa. Os de maior prestígio eram Osvaldo e Dina. Logo depois vinham: Sonia (Lúcia Maria da Silva), Piauí (Nelson Lima Piauí Dourado), Nelito, Zé Carlos (do A); Amauri, Mariadina (Dinaelza Santana Coqueiro) (do B); Mundico (do C); Joca (Giancarlo Castiglia) (do CM) e Paulo. Os guerrilheiros ajudavam as massas no trabalho de roça. O Romance da Libertação era recitado pela massa. Os hinos da guerrilha, elaborados lá mesmo, eram cantados pela massa. Nas sessões de terecô (candomblé) se faziam cantorias de elogio à guerrilha. O primeiro aniversário da luta guerrilheira foi comemorado com a participação de elementos de massa. Na área do Destacamento A, fez-se reunião com a massa (mais de 50 moradores) para discutir medidas contra o Incra. A massa achava que o Incra era nova forma de cativeiro. Criaram-se, em toda a região, 13 núcleos da ULDP. Antes da terceira ofensiva do inimigo, o trabalho junto a outras forças havia se estendido. Ampliaram-se os contatos com comerciantes, religiosos etc. Na propaganda, alcançou também êxito o folheto A vida de um lavrador, literatura de cordel da autoria de Beto (Lúcio Petit da Silva). Uma composição musical em ritmo de toada local (Iindô), da autoria de Osvaldo Peri (Pedro Alexandrino de Oliveira), alcançou êxito. A Rádio Tirana era ouvida por muitos elementos do povo e seus comentários eram bem recebidos. Aderiram à guerrilha, como combatentes, vários elementos da massa: em dezembro de 1972, entrou um; em abril de 1973, um; de junho em diante entraram mais cinco no A; dois no B; e dois no C. Uma boa parte da massa realizou tarefas ligadas à atividade guerrilheira.

Ação militar

No período da trégua, realizaram-se algumas ações militares. Em março, o Destacamento B fez uma operação contra um antigo pistoleiro a serviço da Capingo, chamado Pedro Mineiro. Sua casa foi cercada e ele foi preso. Em seguida, foi julgado e executado. No local, foram apreendidas duas espingardas calibre 16 de dois canos; uma espingarda 16; dois revólveres 38; um revólver 32; uma garrucha; e

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uma carabina calibre 32-20. Foram apreendidos também roupas, comestíveis e remédios. Em poder de Pedro Mineiro havia mapas aerofotogramétricos da área do Gameleira, vários títulos de posse ilegal de terra e cartas de militares recomendando-o a outros militares. O Destacamento B executou também um morador da área da Palestina, chamado Osmar. Este elemento era o melhor mateiro da zona e se dizia amigo de Osvaldo. Mas foi engajado pelo Exército e se dispunha a perseguir os guerrilheiros.

O Destacamento C, em agosto, realizou uma operação contra a fazenda e a casa de comércio de Nemer Kouri. Este fazendeiro ajudou o Exército a prender Geraldo, no início da luta, e tinha se apossado de um burro que pertencia aos guerrilheiros. A operação foi feita à noite. Sua fazenda foi cercada. Encontravam-se lá Nemer e sua mulher e mais 13 trabalhadores. Nemer foi preso. Aos 13 peões, os guerrilheiros explicaram o motivo da ação e os objetivos da luta. Nada se fez contra eles. Os guerrilheiros confiscaram 400 cruzeiros, um revólver 38, roupas, alimentos, remédios.

O Destacamento A, na segunda quinzena de setembro, realizou uma operação contra um posto da Polícia Militar do Pará, na Transamazônica (entroncamento com São Domingos). O posto foi cercado pelos guerrilheiros, que intimaram os soldados a se entregarem. Não cedendo à intimação, foi incendiado o telhado de palha. Os soldados se entregaram. Na ação foram apreendidos seis fuzis, um revólver 32, roupas e alguma munição. Os soldados foram interrogados e depois libertados, sendo advertidos de que seriam justiçados se voltassem a cometer violências contra as massas.

Todas estas ações contaram com a ampla simpatia da população. Foram emitidos comunicados militares, pelos destacamentos de cada uma dessas ações.

Novas tarefas e medidas da CM

Em agosto, a CM realizou uma reunião com os comandantes dos destacamentos A, B e C e os vice-comandantes do A e do C. Fez-se um balanço da atividade guerrilheira. Constatou-se que se havia obtido êxitos importantes, principalmente no trabalho de massa, que se avançou no conhecimento do terreno e no suprimento de alimentos. Constataram-se também deficiências, entre as quais, que as nossas armas eram ainda precárias e débil nosso serviço de informação, tornava-se necessário consolidar e estender o trabalho de massa e estar atento para o inimigo, que podia entrar a qualquer momento. Examinaram-se várias hipóteses quanto à tática que o inimigo poderia usar.

Na reunião, adotaram-se as seguintes recomendações. Ao começar a ofensiva do inimigo, os destacamentos deviam concentrar todos os seus componentes e, diante das informações concretas, ver como agir. Era preciso ter sempre presente o nosso objetivo estratégico principal nesta primeira fase da luta guerrilheira: conservar as forças, sobreviver. Por isso, evitar ações que redundassem baixas. Dependendo da envergadura da ação do inimigo, poderia se recuar para as áreas de refúgio ou continuar realizando pequeno trabalho de massas e ações militares de fustigamento ou mesmo de emboscadas. Predominava na CM a opinião de que, se o inimigo não entrasse até outubro, possivelmente não entraria no período seguinte, devido às chuvas. E que ele não poderia fazer uma campanha demorada, devido a problemas de logística. Acreditava-se que não entraria na mata, pois não tinha bastantes tropas especializadas para isso. Ficaria nas estradas e batendo as grotas. Achava-se improvável um cerco total da área.

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Considerava que o inimigo atacaria mais seriamente as massas e, por isso, se devia estudar a possibilidade de a massa proteger. Havia condições para recrutar muitos elementos de massa a guerrilha. Era grande já o número dos que se tinham comprometido ingressar na luta, caso O Exército ocupasse as roças.

A CM decidiu estender a área destacamento B até além da estrada de São Geraldo. O B passaria centrar sua atividade na nova área q lhe foi atribuída pela CM. A anti-área da Palestina seria percorrida dois ou três meses. O Destacamento C deveria deslocar-se para as áreas Grota Vermelha e do Caiano, entretanto, o C ainda continuaria uns dois ou três meses atuando o vinha fazendo, isto é, na área que seria atribuída ao B a fim de os contatos e ajudar o B a conhecer melhor essa zona.

Desde a segunda campanha do inimigo, os destacamentos já não conservaram a antiga estrutura grupos de sete permanentes. Mantiveram-se os chefes de grupos, estes grupos variavam, em sua composição e número, segundo as necessidades das tarefas. Terminada a tarefa, o grupo desaparecia. Os Destacamentos jogavam com o conjunto dos combatentes.

Em setembro, a companheira Tuca (Maria Luiza Garlipe) foi transferida do destacamento B para a CM, na função de responsável pelo setor de saúde. Dois acontecimentos negativos ocorreram também em setembro: a morte de Mundico, do C, por acidente com a arma que portava; e a fuga de Paulo, do A. Este elemento, desde o início da luta, se mostrara vacilante e criava toda sorte de problemas. Aproveitou a saída dos elementos do A que foram realizar o ato contra o posto policial e desapareceu. Mostrou-se indigno de participar da guerrilha.

Terceira campanha

A terceira campanha do inimigo iniciou-se a 7 de outubro. Neste momento, a situação das forças guerrilheiras era a seguinte: o destacamento A contava com 22 elementos;o B com 12; o C com 14; a CM com 8. Ao todo, 56 guerrilheiros. O destacamento A tinha oito fuzis e um no conserto, cinco rifles 44, uma metralhadora INA, oito espingardas, 22 revólveres 38 e um revólver 31. O destacamento B tinha um fuzil, uma submetralhadora Royal, três rifles 44, duas espingardas 16 de dois anos, uma espingarda 16, uma carabina 32-20 duas espingardas 20, una carabina 22, 12 revólveres 38. O Destacamento C tinha dois fuzis, sete rifles 44, cinco espingardas 20 e 14 revólveres 38. Em conserto, havia mais de dez armas longas. Havia,em média, 40 balas para cada revolver 38. Eram insuficientes os cartuchos para as espingardas 20 e não havia mais balas de calibre 22. As reservas de alimentos garantiam um abastecimento para cerca de quatro meses. Os remédios também existiam em quantidades suficientes. A maioria dos combatentes estava com pouca roupa e já não havia calçados. Uma parte usava lambreta de sola de pneu e alguns companheiros andavam mesmo descalços. Eram insuficientes as quantidades de bússolas, isqueiros, facas, querosene e pilhas. Muitos companheiros não possuíam plásticos para abrigar-se da chuva. Também faltavam sacos plásticos para guardar comidas e roupas. Todo o dinheiro existente eram 400 cruzeiros. A maioria dos companheiros, 80%, orientava-se bastante bem na mata. No fundamental, toda área era conhecida. O moral dos companheiros era muito bom. Todos se mostravam confiantes e entusiasmados.

As tropas inimigas entraram por diferentes pontos. Transamazônica, São Domingos, Metade, Brejo-Grande, São Geraldo e, possivelmente, pela Palestina e Santa Cruz. Iniciaram a operação desencadeando intensa re¬pressão contra as

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massas. Prenderam quase todos os homens válidos das áreas em que atuávamos. Deixaram nas roças só as mulheres e as crianças. Algumas mulheres também foram presas. O Exército procurou implantar o terror entre as massas. Espancou muita gente. Houve elementos que enlouqueceram de tanta pancada. Queimaram casas e paióis onde não encontravam os moradores. Dezenas de pequenos e médios comerciantes foram também presos. As tropas obrigavam elementos da massa a servir de guias. Gradualmente, foi aumentando o número de soldados na zona. Ocuparam fazendas, sedes de castanha, roças, estradas, grotas etc. Na periferia havia também grande número de soldados. Fizeram bases de operação no meio do mato, utilizando fazendas, roças e sedes de castanhas. Estavam apoiados por helicópteros e aviões. A maior parte da tropa era especializada em combate na selva. Traziam bons mateiros.

No dia 7 de outubro, quando as tropas entraram na área, o Destacamento A estava ainda disperso em três grupos. Um dirigido por Zé Carlos, que estava atuando nas proximidades do rio Fortaleza, outro, dirigido pelo Piauí, estava no Tabocão e o terceiro, comandado pelo Nunes, estava na roça do Alfredo, ajudando no trabalho de broca. Sabedores da presença do Exército, os três grupos se retiraram. No dia 7, o Exército bateu na roça do Alfredo, elemento de massa que integrava a guerrilha. No dia 12, o grupo do Zé Carlos comunicou que o destacamento ficaria na zona em que se encontrava até a data do encontro com a CM, que seria dia 20. Alfredo, na ocasião, insistiu com Zé Carlos para que fossem apanhar dois porcos deles, que se encontravam numa roça próxima. Os porcos ajudariam a alimentação dos guerrilheiros. Zé Carlos considerou temerário o projeto de Alfredo. Chegou a dizer: "Não vamos morrer pela boca", Sabia que o Exército provavelmente estaria emboscado na roça onde se encontravam os porcos. No dia seguinte, saíram cinco companheiros para apanhar farinha num depósito e, se nada de anormal notassem, poderiam ir apanhar os porcos. Mas, no caminho, decidiram ir, primeiramente, apanhar os porcos. Lá chegaram cerca de 9 horas. Mataram os porcos com quatro tiros e os levaram para um lugar limpo a fim de retalhá-los. Fizeram fogo de palha para pelar os porcos. Uma hora depois estava terminado o serviço. Mas quando foram carregar a carne, as alças das mochilas se quebraram. Alfredo resolveu, então, improvisar um cipó (vira mundo) para carregar nas costas. Quando terminou o último atado, eram já 12 horas. Estavam presentes os guerrilheiros Zé Carlos, Nunes, Alfredo, Zebão (João Gualberto) e João (Demerval da Silva Pereira). Preparavam-se para sair, quando Alfredo ouviu um barulho esquisito. Chamou a atenção de João. Este, porém, achou que era uma palha de coqueiro que tinha caído. Ato contínuo, apareceram os soldados, apontando suas armas. Atiraram sobre o grupo. João conseguiu escapar, os outros foram mortos. Não tiveram tempo nem de pegar as armas. Perderam-se, além da vida dos companheiros, quatro fuzis, um rifle 44 e cinco revólveres 38.

No dia 20, houve o contato com um companheiro da CM. Este decidiu nomear o companheiro Piauí para comandante do destacamento e Beta para vice. Como o local onde se encontravam era conhecido de elementos de massa, foi decidido mudar-se para outro ponto. Chegou a informação, dia 22, de que os elementos da massa que queriam entrar na guerrilha não haviam aparecido no ponto. Dia 22 foram enviados dois companheiros para o Tabocão, a fim de trazer o grupo chefiado por Nelito. E no dia 23, pela manhã, dois outros companheiros foram levar, até a estrada que vai para São Domingos, um rapazinho que, por acaso, se encontrava com os nossos. Nesse mesmo dia, os demais, em número de 11, inclusive o membro da CM, deslocaram-se para a margem esquerda do Fortaleza. Dois

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helicópteros e um avião começavam a sobrevoar a área. No dia 24, Sônia e Manuel (Rodolfo de Carvalho Troiano) foram ao encontro dos dois que haviam levado o rapazinho. Não encontraram. À tarde, novamente Sonia e Wilson (elemento de massa) voltaram ao local de encontro. Recomendou-se que não fossem por um piseiro antigo, pois ali poderia haver soldados emboscados. Acontece que Sônia acabou indo pelo piseiro e, como decidisse caminhar descalça, deixou a botina no caminho. Quando voltou, não encontrou a botina. Pensou que fosse brincadeira de gente de massa. Chamou por um nome conhecido. Apareceu uma patrulha do Exército que atirou nela, ficando ferida. Os soldados, - segundo relatou gente de massa -, perguntaram-lhe o nome. E ela respondeu que era guerrilheira que lutava pela liberdade. Então, o que comandava a patrulha, respondeu: "Tu queres liberdade. Então, toma..." - desfechou vários tiros e a matou. Wilson conseguiu escapar. No momento em que o Exército atirava vinham chegando os dois companheiros a quem Sônia ia buscar. Ouvindo os tiros, retiraram-se e, três dias depois, retornaram ao destacamento. O destacamento deslocou-se para nova área. No dia 27 chegavam Duda (Luiz René Silveira e Silva) e Rib., que informaram que o grupo do Nelito já havia se deslocado quando eles lá chegaram. Dois elementos de massa, bastante jovens, Ribamar e Wilson, mostrando medo, pediram para sair da guerrilha. Diziam que eles não iam agüentar as dificuldades. O comando os dispensou.

Dia 2 de novembro, chegaram Nelito e seu grupo. Assim, o destacamento ficou completo. Nelito informou que tentou realizar uma emboscada com nove elementos de massa, mas os soldados não passaram. Depois, com os mesmos elementos, tentou destruir uma ponte na Transamazônica. Também não conseguiram. Chegaram a tocar fogo na ponte, mas esta não queimou. Os elementos de massa voltaram para suas casas, pois tinham dito que ficariam fora apenas uns poucos dias. Com Nelito, além dos nossos, ficou apenas um jovem de massa, que pediu ingresso na guerrilha. O destacamento decidiu embrenhar-se na área de refúgio.

Passemos, agora, ao que sucedeu com a CM e os destacamentos B e C. Com o início da ofensiva do Exército, a CM decidiu juntar os dois destacamentos e colocá-los sob o comando do Pedro. Então se pensava em permanecer na mesma área em que se encontravam. A informação inicial era de que o número de soldados não passava de uns 50. Pedro designou um grupo de dez companheiros, sob a direção de Osvaldo, para fazer uma emboscada, em lugar apropriado, contra o inimigo. Outro grupo, de seis companheiros dirigidos por Ari, do C, foi mandado ao Franco para realizar uma operação de fustigamento. Depois de dez dias, Osvaldo retornou. Permaneceu emboscado, mas as tropas não apareceram. O grupo de Ari atacou alguns soldados, mas não liquidou nenhum. Foi recrutado um elemento de massa, Jonas, para a guerrilha. Este elemento já havia sido preso na segunda campanha e seu pai, atualmente, estava preso. No começo de novembro, uma patrulha do Exército passou a uns 30 metros do acampamento onde estavam os dois destacamentos. A patrulha caminhava pela mata, sem fazer ruído. Não foi observada pela guarda. Foi vista por dois companheiros que vinham chegando ao acampamento e se esconderam.

Em meados de novembro, reuniu-se a CM. Fez-se um balanço da situação à base dos informes e se afirmava que a ofensiva do inimigo não era tão grande, aparecia com pouca força. A CM resolveu juntar os três destacamentos, que ficariam sob o seu comando. Esta força não teria mais áreas fixas determinadas, poderia movimentar-se segundo as necessidades. A justificativa apresentada para a fusão

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dos três destacamentos era a de que, com isso, se teria uma força maior e com maior potência de fogo, podendo-se realizar ações de certa envergadura. Afirmou-se que, com os destacamentos separados, era difícil ter em mãos força suficiente para certos tipos de ação. Quando se discutiram as medidas práticas para levar a cabo essa decisão, chegou-se à conclusão de que o princípio da fusão era justo, mas que apresentava dificuldades quanto à execução, pois surgiam problemas, como o do abastecimento para um grande número de pessoas. Decidiu-se, assim, adiar as medidas práticas para uma próxima reunião da CM. A CM designou o companheiro J. (Ângelo Arroyo) para assumir o comando do destacamento A e manter este concentrado, em condições de poder se reunir aos outros dois logo que a CM tomasse decisão a esse respeito. Nova reunião da CM foi marcada para 20 de dezembro.

No dia 19 de novembro, o membro da CM que voltava para o A, em companhia de dois elementos de guarda da CM, encontrou grande quantidade de rastros de soldados dentro da mata, tanto na área da CM como do destacamento BC e também do A. Os soldados palmilhavam a mata, não só onde existiam moradores, mas também onde não os havia - portanto, em áreas de refúgio. Os soldados, apoiados por helicópteros e aviões, percorriam o Gameleira, o Ezequiel, o Cunha, o Caracol e o Saranzal - todos eles dentro da nossa área.

O destacamento A se mantinha na área de refúgio. Não foi atacado, nem via rastros de soldados nas proximidades. Os helicópteros continuavam voando na área onde foram mortos Zé Carlos e outros. Em fins novembro, Nelito e Carretel foram enviados à Metade para colher informações com a massa. Voltaram mais tarde e disseram que a massa formara que há 15 dias os soldados não passavam por lá. Mas, no momento em que saíam, chegavam soldados no lugar onde eles estivem. A massa informou ainda que os soldados estavam pensando que os guerrilheiros estavam no castanhal do Carlos Holanda e, por isso, faziam muitas batidas. Os helicópteros sobrevoavam aquele castanhal. Landin (Orlando Momente) e outro companheiro foram até Cruzeiro obter informações e ver se conseguiam sal. Voltaram dizendo que todas as casas estavam vazias e que os amigos tinham sido presos. Em dezembro, foi enviado um grupo, chefiado por João, à área do Tabocão, para colher informações e ver se conseguia comprar alguns objetos e se obtinha farinha e sal. Souberam que há 15 dias o Exército não passava lá. Elementos de massa compraram um pouco do que se precisava,inclusive quatro pilhas. Lá disseram que os elementos que atuaram junto com Nelito na tentativa de destruir o ponto da Transamazônica tinham sido presos. Dois desses elementos estariam sendo obrigados a servir de guia. Disseram ainda que o pai de um companheiro de lá, que estava na guerrilha, havia sido barbaramente espancado, tendo sido levado para o hospital. No Tabocão haviam prendido todos os ho¬mens, num total de 17.

No dia 20 de dezembro, J., Piauí e Antonio foram atender ao ponto com a CM. No caminho, encontraram rastros de soldado. No dia seguinte, encontraram-se com Ari e Mané, que tinham sido enviados pela CM para conduzir J. à reunião. No ponto apareceram também os companheiros Zezim, Raul e Lourival (Elmo Correia). Piauí e Antonio retornaram ao A. À tardinha, chegavam, também enviados pela CM, os companheiros Jaca e Chica (Sueli Yomiko Kanaiama). A presença de todos esses elementos no ponto foi explicada da seguinte maneira: depois que haviam saído Mané e Ari, ocorreu um ataque aos três outros (Zezim, Raul e Lourival) por tropas do Exército. Sabendo que Ari e Mané tinham ido buscar J. para levá-lo à CM, os três que sabiam o lugar do ponto decidiram ir avisar o que havia ocorrido, para evitar que J. fosse surpreendido pelo inimigo. Mas os companheiros da CM já tinham

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tomado as providências para esse aviso, enviando o Joca e a Chica. J. decidiu enviar Ari e Mané para apanhar farinha num depósito próximo. Mané ficou aguardando Ari a uma certa distância. Como Ari demorasse, Joca, que havia chegado, foi até o depósito e lá não encontrou o Ari. No local do depósito estava apenas o saco plástico que Ari havia levado para trazer a farinha. A impressão que se teve é de que ele fugiu, pois não apareceu nem no acampamento, nem nas referências.

Joca informou o que havia ocorrido com o BC e a CM a partir de 20 de novembro. Contou o seguinte: dias 21 e 22 de novembro, um grupo de três companheiros - Lauro, Jaime (Jaime Petit da Silva) e Mané - fustigou uma patrulha na estrada e matou um soldado. No dia 24, quando voltavam de um contato com a massa, os companheiros Ari, Raul e Jonas passaram próximo de uma grota. Ari e Raul se aproximaram da grota para melhor se orientar. Jonas ficou de guarda, perto das mochilas. Ouviu-se um tiro e Ari caiu. Em seguida, ouviram-se mais dois tiros. Raul correu. O Comando do destacamento BC, que também ouvira os tiros, enviou quatro companheiros para pesquisar o que teria havido. Logo adiante, esses companheiros encontraram o corpo de Ari sem a cabeça. Sua arma, um rifle 44, seu bornal e sua bússola tinham sido levados. As mochilas de Ari, Jonas e Raul estavam lá. Raul voltou pela manhã ao acampamento e Jonas desapareceu. (Houve suspeitas de que o assassino de Ari fosse o próprio Jonas). Depois disso, houve a junção dos dois destacamentos com a CM, formando uma única força. Devido a Jonas conhecer bem a área onde os companheiros se encontravam e inclusive alguns planos do comando, resolveu-se sair da área e transferir-se para a área da Palestina. Ai havia alguns depósitos e o destacamento B há alguns meses ali não estivera. Dividiram a força em / três grupos para se deslocar. Ao todo eram 32 elementos.

Dias 28 e 29 de novembro o grupo dirigido pelo Simão (oito companheiros) acampou nas cabeceiras da grota do Nascimento. Neste mesmo local, o destacamento B já havia acampado meses atrás. Ferreira ficou na guarda, Jaime foi catar babaçu. Chico (Adriano Fonseca) e Toninho foram procurar jabuti numa gameleira próxima. Chico recebeu um tiro, caindo morto. Eram 17 horas. Em seguida, ouviu-se mais seis tiros. O grupo levantou acampamento imediatamente, deixando, no entanto, as mochilas, as panelas, os bornais. O Doca (Daniel Calado) deixou o revólver, que estava consertando no momento da saída. Jaime e Ferreira ficaram desligados do grupo. O Simão não foi à referência procurá-los. Não se sabe o que ocorreu com eles. Durante cinco dias, os demais companheiros, em número de cinco, caminharam pela mata sem ter o que comer e sequer um isqueiro para acender fogo. Ao se encontrarem com o resto da força, apresentavam o corpo inchado de picadas de tatuquira e estavam famintos. Dia 13, fugiu Toninho (elemento de massa). Ele conhecia a área. Dia 14, toda a força se juntou novamente. Eram 28, caminharam mais dois dias e acamparam num local onde se pretendia fazer a reunião da CM. Os 28 companheiros tinham feito o deslocamento numa só coluna, tendo deixado fortes rastros. No dia seguinte saíram Mané e Ari para ir buscar o J. Os demais afastaram-se uns 200 metros de onde se encontravam e mandaram Zezim, Lourival e Raul apagar os rastros. Quando os três realizavam essa tarefa, foram surpreendidos pelo inimigo. Sem poder voltar de imediato ao acampamento, temerosos de que J. viesse ao ponto sem saber do ocorrido, os três se dirigiram para o local onde J. seria encontrado por Mané e Ari. O resto da força, então 23 pessoas, em face do que sucedera, decidiu abandonar a área em que estava e ir para a área do A. Seguiram em coluna, deixando rastro. Entre 17 e 18 de

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dezembro, Josias fugiu perto de uma base do inimigo. O comando enviou Joca e Chica para avisar o J. e marcar um novo local e dia para o encontro, que seria já na área de refúgio do A. Joca informou que o grosso da força chegaria depois do dia 24 e que estavam sem comida. Pediam para que J. arranjasse comida com o destacamento A. Os cinco companheiros - Jaca, Mané, Chica, Lourival e Raul - retornaram e foram esperar o grosso da força em área próxima. J. e Zezim também retornaram para o acampamento do destacamento A.

Dia 25 de dezembro, J. veio ao ponto acompanhado de Zezim, João e Antonio, trazendo umas quatro latas de farinha. No ponto encontraram Mané e Chica. Mané informou que o grosso da força estava acampado a umas duas ou três horas de caminhada. Disse que no caminho encontrou rastros de soldados (papel higiênico servido). Em seguida, os seis dirigiram-se com o máximo de cautela para o acampamento da força. Um helicóptero sobrevoava a área próxima ao acampamento da força. Quando já estavam a mais ou menos a um quilômetro do acampamento, às 11h25 da manhã, ouviram cerrado tiroteio. Encontraram-se logo depois com Áurea e Peri, que vinham apanhá-los para o acampamento.

Os dois afirmaram que o tiroteio tinha sido no rumo do acampamento. Cinco minutos depois do tiroteio, dois helicópteros e um avião começaram a sobrevoar a área onde houvera o tiroteio, e continuaram durante todo o dia nessa operação. Dois helicópteros grandes fizeram duas viagens - da base do Mano Ferreira, a uns cinco ou seis quilômetros, até o local do tiroteio. Tinha-se a impressão de que estavam levando mais tropas ou retirando mortos e feridos do local, e seus companheiros (eram oito) - afastaram-se do local mais ou menos um quilômetro. No dia seguinte, 26, foram a uma referência para encontro, num local próximo. Aí encontraram os companheiros Osvaldo, Lia (Teima Regina Cordeiro Correa), Batista e Lauro.

Osvaldo informou o seguinte: o grosso da força havia acampado dia 24, mas percebeu que estava perto da estrada. Dia 25, pela manhã, afastaram-se uns cem metros de onde se achavam, designando alguns companheiros para limpar (camuflar) o local em que estiveram. Os membros CM e sua guarda ficaram num ponto mais alto do terreno e os demais ficaram na parte de baixo. Na hora do tiroteio, havia 15 companheiros no acampamento: Mário (Mauricio Grabois), Paulo, Pedro, Joca, Tuca, Dina (com febre), Luis (com febre), na parte alta; embaixo: Zeca, Lourival, Doca e Raul (estava ralando coco babaçu para comer). Lia e Lauro faziam guarda. Osvaldo e Batista realizavam a camuflagem. Fora do acampamento estavam Áurea e Peri, que haviam se deslocado para trazer J., João (Wandick Reidner Pereira Coqueiro), Mariadina, que tinham ficado, proximidades do local onde houvera o tiroteio de 17 de novembro sobre Zezim, Raul e Lourival, a de apanhá-los; Amauri e Valk, tinham sido enviados pelo comando para trazer de volta João, Mariadina e possivelmente os outros três; Simão e Ivo, que tinham ido a uma referência ver se conseguiam pegar o Ferreira e o Jaime; Amauri, Valk, João e Mariadina deviam chegar num ponto a uns cem metros de onde houve o tiroteio, a partir do dia 28 de dezembro. Osvaldo achava que os tiros haviam sido sobre o pessoal da CM, e que ele se retirara quando os tiros já o alcançavam.

No dia 27, observava-se crescente pressão do inimigo. Na manhã do dia seguinte, decidiu-se enviar Mané e Chica para apanhar Simão e Ivo (talvez também Jaime e Ferreira) numa referência na área do B, dia 30. Eles não deviam retornar à área do A, mas permanecer com os demais numa área do B. Aí poderiam juntar-se a outros companheiros, os que procurassem na referência conhecida. Ficou combinado que Mané viria a 1º e 15 de fevereiro a um encontro na área do A (com J.), mas isso somente se a barra estivesse limpa. Foi dito que poderiam ficar

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desligados muitos meses. A partir de março, havia referência no B. Ainda dia 27, os dez companheiros, então juntos, decidiram se transferir para a área de refúgio do A. Caminharam em dois grupos. Chegaram dia 28 à tarde. O acampamento estava em estado de alerta. Tinham ouvido os tiros e a movimentação de helicópteros e aviões. Dia 29, dois companheiros tinham a informação de que, para os lados do Fortaleza, não havia movimento de tropas. Reuniu-se o comando que tomou as seguintes decisões: devia-se abandonar aquele local; os companheiros recentes - em número de 25 - deviam se dividir em pequenos grupos e ir atuar na área que mais conhecessem que a experiência das campanhas anteriores mostrara que os pequenos grupos têm mais mobilidade, mais facilidade de abastecer e deixam menos rastros, que os grupos não deviam dar sinal de presença nos locais onde estivessem e, se fossem notados pelo inimigo, deviam afastar-se da zona e ligar se apenas a uma pessoa da massa, de confiança, para obter informações; devia-se ter o máximo de cuidado com os rastros, pois fora pelos rastros que o inimigo nos atacara. Os grupos eram cinco. Um chefiado por Osvaldo (que retomou à sua área); outro por J.; outro pelo João; outro, pelo Nelito; e outro pelo Landim. Foi marcado um ponto para os dias 1º e 15 de fevereiro. À noite do dia 29, fez-se uma reunião com todos os presentes. Mostrou-se a gravidade da situação e destacou-se que este era o período mais critico que atravessava a guerrilha. Acentuou-se que outros povos também tinham passado por momentos muito difíceis e venceram porque persistiram na luta, não se deixaram abater. Mantendo-se uni dos e decididos, poder-se-iam superar as dificuldades. O comando indagou se algum dos combatentes queria abandonar a luta. Caso alguém se sentisse abalado e não mais quisesse continuar, poderia dizer. O comando autorizaria a saída. Mas ninguém manifestou desejo de sair. Afirmou-se também que não se conhecia a sorte dos demais membros da CM. Não se podia dizer que tivessem sido mortos, apesar do que ocorrera. Que se ia tentar um contato e procurar agrupar todos os elementos dispersos.

Dia 30, pela manhã, os cinco grupos tomaram seus destinos. As 15 horas ouviu-se ruído de metralhadora no rumo em que havia seguido Osvaldo ou Landim. Não se sabe o que houve. No dia 2 de janeiro, ouviu-se ruído de metralhadora para o rumo em que seguia Nelito. Dia 4, o grupo de J. aproximou-se da casa de um morador para obter informações e alimentos. As pessoas da casa estavam bastante atemorizadas. Não sabiam informar sobre os tiros e disseram que os soldados estavam por perto. Que se tomasse muito cuidado, porque com eles haviam um rastreador, Bigode, carioca, que era bom piseiro. Dia 14, acamparam próximo a uma capoeira. Foram ver se conseguiam alguma mandioca. Iam com a recomendação de ir pela estrada e voltar pela mata, mas voltaram pela estrada. Trouxeram um pouco de mandioca e não camuflaram o local de que arrancaram as mandiocas. Às 9h30, quando estavam preparando a refeição, ouviram um barulho estranho na mata. Ficaram de sobreaviso, com as armas na mão. Viram então os soldados que vinham seguindo o rastro e passavam a uns dez metros de onde os companheiros se encontravam. Os soldados atiraram, ouviu-se várias rajadas. J. Zezim e Edinho (Hélio Luiz Navarro) escaparam por um lado. Não se sabe se os outros três - Piauí, Beta e Edinho encontraram Duda, do grupo do Nelito. Ele contou que os tiros do dia 2 tinham sido sobre o grupo em que ele estava. Disse que, depois do almoço desse dia, Nelito e Duda estavam juntos e que Cristina (Jana Morone Barroso) e Rosa (Maria Célia Correa) haviam se afastado por um momento. Carretel estava na guarda. Na véspera, Duda e Carretel tinham ido à casa de um morador. A casa estava vazia. Quando se retiraram, viram que vinham chegando os soldados.

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Avisaram Nelito. Imediatamente, afastaram-se do local. Mas caminharam em trechos de estrada, deixando rastros. Dia 2, Nelito tinha ido a uma capoeira apanhar alguma coisa para comer. Trouxe pepino e abóbora numa lata grande que lá encontrara. A lata fez muito barulho na marcha de volta. Às 13h30, ouviu-se rajadas. Os tiros foram dados sobre Carretel, que saiu correndo. Nelito não quis sair logo. Entrincheirou-se, talvez pensando nas duas companheiras. Mas os soldados se aproximavam. Então, ele correu, junto com Duda, mas foi atingido. Assim mesmo, ainda se levantou e correu mais uns 20 metros. Foi novamente atingido e caiu morto. Duda conseguiu escapar. Não se sabe o que houve com as duas companheiras, nem com Carretel.

No dia 19 de janeiro, J. decidiu tentar aproximar-se do local de referência com a CM, na esperança de que algum companheiro aparecesse por lá. Foi junto com Zezim, deixando Edinho e Duda juntos. A estes recomendou que, se encontrassem Piauí, avisassem de um encontro para os dias 1° e 15, a partir de março. O local de referência com a CM distava uns quatro a cinco dias. Era na antiga área da CM, de cinco em cinco dias. Quando J. e Zezim se aproximavam do local onde houve os tiroteios de 25 de dezembro, notou-se fortes rastros do inimigo, não só antigos como recentes. E os helicópteros sobrevoavam o local. Decidiram voltar porque não havia condições para prosseguir. A mata estava esquadrinhada pelo inimigo.

Em poder do camarada Mário, responsável pela CM, havia uma espécie de diário, onde ele anotou os principais fatos e as medidas adotadas pela guerrilha, desde o seu inicio. Essas anotações são da maior importância, refletem as opiniões do comando em diferentes ocasiões. Com Mário encontravam-se também cópias de todos os materiais editados, assim como os hinos, poesias etc.

FONTE: http://grabois.org.br/portal/noticia.php?id_sessao=49&id_noticia=873. Acesso on line em 05 de dezembro de 2012

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ANEXO B – Um grande acontecimento na vida do país e do partido

Ângelo Arroyo

O que se pretendia ao ir para o Araguaia? Quais as perspectiva que se apresentavam?

Em síntese, no Araguaia, pretendia-se iniciar a luta armada no país, aplicar a linha de massa e revolucionária do Partido. Segundo esta linha, a luta armada começará no interior, sob a forma de guerrilha e com a ampla participação das massas, se transformará, pouco a pouco, em guerra popular, que será dura e prolongada. Nosso partido é de opinião que existem no Brasil condições objetivas favoráveis ao surgimento das ações armadas, que é ponderável o sentimento em favor da revolução e que, sem esse tipo de lutas, jamais o povo alcançará a vitória.

A efetivação da luta armada depende da situação concreta. Não há receita única. Conforme seja a situação, pode começar ou se desenvolver de tal ou qual maneira e em tal ou qual lugar. A correlação de forças existente no país em dado momento desempenha o papel decisivo. Na situação atual, a luta armada, para manter-se e ampliar-se, necessita localizar-se em regiões muito favoráveis, onde a reação encontre sérias dificuldades para enfrentá-la. Não em regiões de fácil acesso ao inimigo e onde ele possa empregar todos os recursos bélicos de que dispõe.

A região do Araguaia oferece condições propícias. É zona de mata, e na mata o inimigo não pode usar tanques, artilharia, bombardeio aéreo de precisão, etc. Tem de estar a pé como o guerrilheiro. É uma zona de massa pobre e explorada (frente pioneira de penetração da massa camponesa sem terra), circundada por povoados e cidades pequenas e médias também de grande pobreza. Dispõe de caça abundante, castanha-do-pará, babaçu e outros meios de alimentação. Possui vasta área, em extensão e profundidade, que serve de campo de manobra ás forças combatentes. Além disto, é fronteiriça de largas regiões pobres dos Estados do Mato Grosso, Goiás e Maranhão. As condições desfavoráveis que apresenta são a densidade da população, pequena, na área propriamente dita, embora na periferia seja bem maior, e doenças tropicais, sobretudo a malária e a leishmaniose.

Inicialmente, pensava-se em criar várias frentes de luta. Este, porém, é igualmente um problema concreto. O número depende da força do Partido, da quantidade de quadros, da ação policial, etc. Sempre se admitiu que, se houvesse gente disponível, deviam-se preparar três, cinco, dez frentes iguais ao Araguaia. No começo da execução da tarefa especial, contava-se com três frentes: uma em Goiás, outra no Maranhão e a do Araguaia. Acontece que a de Goiás desmantelou-se (o responsável, além de erros que cometera, desistiu de desenvolver otrabalho já avançado); a do Maranhão ficou ameaçada de ser denunciada por um elemento que fraquejou e conhecia pistas que poderiam afetá-la; ficou apenas a do Araguaia. Esta, na realidade, não era somente uma, mas três, operando em dois e possivelmente três dos maiores municípios do Pará. Aí localizaram-se três destacamentos numa extensão de 130 quilômetros. Já no fim da preparação, chegou-se a considerar que, depois de preenchidos os efetivos dos destacamentos, se poderia expandir mais a força organizada com a abertura de outras frentes, antes de começar a luta. Mas sobreveio o ataque do inimigo. O trabalho de massas, porém, não ficou restrito à área do Araguaia. Tinha-se feito regular trabalho em Goiás e Maranhão, em Porto Franco e Tocantinópolis, em outros municípios de Goiás e em Mato Grosso. Existiam também, nacionalmente, outras frentes. Nenhuma funcionou. E nem

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poderiam funcionar dada sua localização, desfavorável nas atuais condições do país.

Estimava-se que o Partido devia ser o núcleo fundamental da guerrilha, e que desde o início da luta era preciso ganhar e incorporar as massas. Estas sempre estiveram no centro da preocupação dos que se encontravam no Araguaia. Ainda que durante a preparação, por motivos de segurança, não se pudesse abrir o jogo, todos se preparavam para desenvolver, começada a luta ou pouco antes, intensa propaganda revolucionária. Por isso dedicou-se especial atenção às reivindicações das massas e a auscultar seus sentimentos e aspirações. Os companheiros adestravam-se não só para ser combatentes, como também comandantes de grupos revolucionários de massas. Sempre tiveram confiança em que se podia ganhar o povo pobre e a compreensão de que a guerra popular tem que ser feita pela massa sob a direção do Partido. O Partido devia ser a força dirigente. Mas sua direção seria exercida através de um movimento de frente única. Considerava-se errado colocar o movimento guerrilheiro como sendo o braço armado do Partido, ou colocar o Partido diretamente como a força dirigente (sem a frente única). Por isso cuidou-se de elaborar um programa amplo para lançar, oportunamente, a União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP).

Á perspectiva que se tinha era a seguinte: começada a luta e ganhando as massas, estendê-la aos poucos para Goiás, Maranhão, sul do Pará e Mato Grosso. Deviam-se abrir outras frentes, partindo da experiência e utilizando quadros já provados. Com o tempo, numa luta dura e prolongada, se poderia criar uma vasta zona conflagrada e, mais tarde, quem sabe?,uma zona libertada.

Tais os propósitos. No fundamental, a vida comprovou-os. Mostrou ser correta a nossa concepção sobre a luta armada, embora se revelassem insuficiências, lacunas, despreparos, erros que precisam ser examinados.

Os resultados políticos

A resistência do Araguaia representa um grande acontecimento na vida do país e na vida do Partido. Não alcançou ainda vastas repercussões devido à censura e à repressão feroz. Assinala, porém, o marco de um novo caminho, inicia uma nova etapa na luta do nosso povo, a luta armada, sob a direção do Partido do proletariado.

Quando a ditadura dizia ter esmagado todas as forças revolucionárias, buscava dissuadir qualquer tentativa de oposição e procurava se consolidar — surgiu a guerrilha no Araguaia. Foi um golpe sério na ditadura. Os generais pensaram que a liquidariam rapidamente. Não o conseguiram. Ao todo, mobilizaram uns 20 mil homens. Deslocaram forças de vários Estados para a região conflagrada. Criaram novos batalhões da selva. Tentaram mobilizar o povo da região contra os guerrilheiros e nada obtiveram. (...) Investiram contra a Igreja, comerciantes, pessoas influentes da região. Seus planos de “colonização” da Amazônia foram abandonados.

A luta do Araguaia se constituiu num verdadeiro teste sobre a justeza da linha do Partido. Sensibilizou importantes zonas do Norte do país. Obteve, na área conflagrada, o apoio de mais de 90% da população. Conquistou aliados como comerciantes, elementos de prestigio local. Toda uma ampla região foi afetada, direta ou indiretamente, pela resistência armada. Esta resistência ajudou as massas a ver quem são seus verdadeiros inimigos e como lutar contra eles. O Exército,

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antes bem visto ou sobre o qual havia muitas ilusões, passou a ser alvo do ódio popular. A luta repercutiu no campo brasileiro, sobretudo no Norte. Surgiram vários choques armados em Santa Terezinha, São Félix, Pau Ferrado, Pontes e Lacerda, São Domingos do Capim, Lagoa de Pedra. Do Araguaia brotou um embrião de frente revolucionária, a ULDP. Embora pequena, desempenha a longo prazo importante papel. É germe da aliança operário-camponesa.

A resistência encetada representa um grande capital político. É uma ação concreta em favor da libertação do povo do interior e uma mensagem em prol da emancipação nacional. (...) Araguaia mostrou ser viável a luta do povo pobre, demonstrou que a luta armada responde a uma necessidade objetiva. Seu aparecimento indica que a revolução no Brasil vai-se transformando em questão prática, concreta.

Do mesmo modo, Araguaia exerce importante papel político na arena internacional. É que faz parte da grande luta dos povos contra a reação e o imperialismo. Por isso alcança repercussão fora do país. Contribui para levantar o ânimo combativo dos oprimidos, serve de exemplo. Confirma a orientação marxista-leninista e assesta golpes na concepção da via pacífica pregada pelo revisionismo.

Mas, se a resistência do Araguaia é um grande acontecimento na vida política, o é igualmente na vida do Partido. Desde que surgiu, em 1922, o PC aspira a levar nosso povo à revolução. A luta armada, porém, foi sempre relegada, apesar da existência, em diferentes épocas, de condições propícias ao movimento revolucionário. Somente em 1935, houve certa preocupação nesse sentido, mas em termos de levante de quartel. Com sua reorganização em 1962, o Partido deu um salto qualitativo não só no que respeita ao rompimento com o oportunismo. Avançou na compreensão do emprego da violência revolucionária. Embora pequeno, nosso Partido foi capaz, sob uma ditadura fascista, de organizar e dirigir uma resistência armada, de formular na teoria e levar à prática o caminho da luta armada, ainda que tivesse tão pouca experiência. (...) Isto constitui um grande acontecimento.

Ainda que no momento não se reflita de maneira aberta e ampla, o prestígio do Partido cresceu e crescerá mais ainda. Sua autoridade aumentou entre os aliados. As massas oprimidas tendem a se voltar para a organização que encarna a luta revolucionária conseqüente. Nossos camaradas que morreram nessa arrancada são heróis e mártires do povo brasileiro. Seus nomes estão ligados às aspirações mais sentidas da imensa maioria do país. Engrandeceram a nossa causa e a causa da libertação nacional. No exterior, também cresceu o prestígio do Partido e intensificou-se a solidariedade aos revolucionários do Brasil.

Resumindo. O balanço político, do ponto de vista da luta do nosso povo e do papel do Partido, no que respeita aos sucessos do Araguaia, é altamente positivo. Balanço dos aspectos militares

Na questão militar, em que se deve concentrar boa parte de nossa atenção,

observam-se êxitos, deficiências e erros. Êxitos de certa importância e de grande valia; deficiências ainda sérias; e erros graves e, mesmo, muito graves.

Entre os êxitos podem-se destacar os seguintes: 1. A organização da força combatente. Conseguiram-se estruturar três

destacamentos e o comando geral. Isto não era tarefa fácil, devido, em parte, à vigilância do inimigo e, em parte, ao material humano de que se dispunha, gente despreparada militarmente, com hábitos completamente diferentes dos que vigoram

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no interior. Organizar esta força, enraizá-la no campo, treiná-la e prepará-la para a ação constitui um êxito militar apreciável.

2. A elaboração de Curso de Preparação Militar. Fazia-se necessário forjar uma orientação adaptada ao terreno e às condições locais. Mesmo sem dispor de suficiente experiência e conhecimento, elaboraram-se seis aulas teóricas, sete aulas práticas e várias outras de treinamento diário que respondiam às necessidades da luta. As aulas teóricas eram as seguintes: o que é a guerra; a guerra popular; a guerra popular na região; a guerra de guerrilha; o combatente e seu moral; a força inimiga. As aulas práticas: orientação na mata; vida na mata; emboscada; assalto; fustigamento; marcha; acampamento. De treinamento diário: tiro; conhecimento de armas; rastejamento; emprego da baioneta; reflexos; ginástica, etc. Este curso representou um verdadeiro salto na preparação dos combatentes. Infelizmente, só se conseguiu aprontá-lo quase no final do período anterior à luta. Assim mesmo, ajudou bastante.

3. A preparação física e moral do combatente. Realizou-se intenso trabalho com este objetivo. Tratava-se de criar condições para enfrentar sacrifícios, luta dura e resistir até o fim. A vida mostrou que se conseguiu sucesso nesse particular. Os camaradas revelaram, nos dois anos de luta, elevado moral e capacidade de resistência às inumeráveis dificuldades. Atuaram com fibra de heróis.

4. O conhecimento militar do terreno. Não é simples dominar a selva, orientar-se e deslocar-se com segurança. Isto, porém, foi alcançado. É preciso ter presente que todos os que foram para o Araguaia não tinham conhecimento de mata. Aprenderam com esforço próprio. Ao sobrevir a luta, e particularmente depois da primeira campanha, a grande maioria dos combatentes orientava-se corretamente e dominava relativamente bem a área conflagrada. Quase todos sabiam utilizar a bússola, caminhar na selva, levantar croquis, estabelecer referências, etc.

5. A sobrevivência na mata. Também constitui um êxito a aprendizagem neste aspecto. Sem saber sobreviver com os recursos da mata e na mata, não se conseguirá resistir longo tempo. Os guerrilheiros aprenderam a caçar, plantar, utilizar os frutos silvestres, o babaçu, a castanha-do-pará, a extrair água de diferentes tipos de cipós e outras plantas, a viver em acampamentos na selva. Organizaram um sistema clandestino de depósitos de recursos alimentares, medicamentos, etc., que permitiram assegurar sua manutenção por certo tempo.

6. A combinação da atividade militar com o trabalho produtivo e de massas. Os guerrilheiros obtiveram êxito nessa tarefa. Ao mesmo tempo que empunhavam armas e faziam ações contra o inimigo, empenhavam-se em ganhar as massas e realizar junto com elas o trabalho nas roças. Desta forma, não se tomavam “pesados” para os lavradores. Estes forneciam alimentação aos combatentes. Em compensação, contavam com a ajuda efetiva dos guerrilheiros na faina rural. Isto foi possível, em parte, porque os guerrilheiros eram já antigos moradores da região, sabiam trabalhar no campo. As massas participaram de diferentes maneiras e diretamente da luta. Tomaram parte em emboscadas e outras ações militares. Promoveram protestos contra o INCRA. Forneceram informações. Denunciaram a presença de bate-paus. Confraternizaram com os guerrilheiros. Vários elementos ingressaram nos destacamentos. As vésperas da 3Q campanha, cerca de 40 lavradores haviam-se comprometido a incorporar-se aos grupos de combate.

7. As ações militares. Embora fossem relativamente poucas, mostraram eficiência. Ocorreram três assaltos, três ações punitivas, cinco operações de fustigamento e quatro choques casuais com o inimigo. Destas ações resultaram

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vários mortos e feridos inimigos, a obtenção de algumas armas e recursos financeiros.

8. A resistência, com êxito, a duas grandes campanhas. Nestas duas operações, a ditadura empregou de 12 a 15 mil homens. Apesar dos recursos materiais e do poderio bélico, as tropas não conseguiram alcançar seus objetivos. Sua retirada da zona de luta, sem esmagar os guerrilheiros, significou uma séria derrota. Os generais estavam acostumados a liquidar prontamente as manifestações de protesto e as tentativas de resistência armada. No Araguaia, fracassaram seus intentos de esmagamento rápido da luta, Antes da 3ª campanha, em outubro de 1973, as forças guerrilheiras estavam mais fortes, contavam já com grande apoio de massas, embora, por falta de experiência, tivessem sofrido 18 baixas entre mortos, prisioneiros e fugas.

Vistos em conjunto, estes oito aspectos da resistência armada constituem um êxito importante no balanço militar. Indicam como uma pequena força, atacada por milhares de soldados bem apetrechados, foi capaz de defender-se, sobreviver e conquistar apoio de massas. A ditadura viu-se obrigada a fazer grandes operações de guerra, recorrer a tropas especializadas e construir às pressas quartéis na região. Apesar da demagogia do INCRA e das Operações Aciso, não conseguiu apoio popular.

A partir de 7 de outubro de 1973, na terceira grande campanha do inimigo, as forças guerrilheiras sofreram sérios reveses, como se deduz do relatório apresentado. Elevou-se o número de baixas, morreram alguns comandantes e elementos de grande prestígio. Desarticulou-se o comando. Os combatentes passaram por situação das mais difíceis. Como acentuou um membro da Comissão Militar, falando aos componentes do Destacamento A, em 29 de dezembro, este era “o período mais crítico que atravessava a guerrilha”. Não se conhece ainda em toda a sua extensão o dano sofrido.

Quais as causas dessa derrota temporária? Poderia ter sido evitada?Apesar de carecermos de dados completos a respeito da atual situação no Araguaia, já possuímos elementos suficientes para situar algumas debilidades e causas dos insucessos. Os dados que temos permitem fazer uma generalização, ainda que sujeita a retificações posteriores.

A luta no Araguaia ressentiu-se, desde o início, de sérias deficiências. No período da preparação, elas já eram conhecidas e procurava-se superá-las. O ataque do inimigo não deu tempo para isto. As principais eram: ausência de canais de comunicação e apoio na periferia; precariedade do armamento; débil rede de informações; e lentidão dos sistemas de comunicação internos. A falta de canais de comunicação criou muitas dificuldades no desenvolvimento da ação guerrilheira. Apesar de se terem conseguido 15 fuzis, duas metralhadoras, uns 20 rifles 44 e outras armas de menor calibre e eficiência, todas elas em geral eram antigas e não mereciam confiança. No curso da luta perderam-se várias. Faltavam minas, granadas e explosivos de maior potência. As informações provinham unicamente das massas. E os sistemas de comunicação interna baseavam-se quase exclusivamente no mensageiro a pé. Fizeram-se tentativas de empregar meios modernos, como walk-talk, mas não se avançou nesse terreno. Estas deficiências não foram eliminadas nos dois anos transcorridos desde que se iniciou o ataque da repressão. Algumas se agravaram, constituindo sérios problemas para os guerrilheiros.

Além destas deficiências, ocorreram erros. Estes podem ser divididos em três categorias: os de certa importância; os graves; e os muito graves.

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Os de certa importância podem ser assim classificados: a) Não se ter justiçado determinados inimigos. É o caso de bate-paus

como Pernambuco, Antônio e o irmão e talvez os elementos que haviam chegado de fora, suspeitos de pertencerem ao Exército. Estas pessoas estavam a serviço da reação, conheciam a região e seus habitantes, eram odiados pelas massas. Alguns deles haviam ajudado a prender revolucionários. Eram policiais da pior espécie e que acabaram contribuindo para a morte de guerrilheiros.

b) Não se ter utilizado melhor e com mais audácia os elementos de massa. É patente que os guerrilheiros souberam conquistar os moradores locais e estes realizaram eficiente trabalho. Mas não se devia ter “queimado” a todos. Muitos poderiam ser deslocados para outros lugares. Alguns poderiam aparecer como “neutros”, etc. Mesmo certos elementos que ingressaram nos destacamentos poderiam render mais noutras tarefas.

c) Não preparar refúgio seguro para graves emergências. O comando deu atenção ao problema dos refúgios, mas unicamente nas áreas em que atuava a guerrilha. E mesmo aí eram “abertos”, isto é, em locais de mata. Não se construíram refúgios camuflados nem se procuraram estabelecer pontos de apoio em zonas completamente fora de um provável cerco inimigo.

d) O tipo de direção militar. Este assemelhou-se ao modo de dirigir o Partido, o que não correspondia às necessidades da ação armada. Havia muitos “pontos” para encontros. Os membros da Comissão Militar e dos destacamentos ficavam demasiado presos aos “pontos” repetidos e em curtos prazos, restringindo-se seriamente o movimento e a atuação das forças guerrilheiras.

e) A falta de um plano mais amplo da Comissão Militar. Pelo relatório não se tem idéia do que pretendia conseguir a CM, num determinado tempo e lugar, quais os objetivos imediatos, mediatos e de mais longo alcance.

Os erros graves foram os seguintes: a) Não armar a guerrilha à custa do inimigo. As armas que se possuía

serviam para tomar outras, mas não para enfrentar com vantagem as forças da reação. Não se compreendeu em profundidade a importância desta tarefa. Programaram-se algumas emboscadas que não se realizaram. Esta questão devia ser encarada como fundamental e urgente. Era preciso planificar, buscar os meios e as formas de concretizá-la. O Exército, desde o início, tinha em conta essa possibilidade e por isso evitou certos tipos de ação que pudessem conduzir à perda de boas armas. Se se tivesse insistido nesta questão, ter-se-ia apetrechado melhor a guerrilha. O ataque a um posto da PM, em setembro de 1973, é prova de que se podia alcançar êxito nessa tarefa.

b) A excessiva centralização de comando na Comissão Militar. A idéia predominante de “ter a força à mão” levava à concentração exagerada. No começo da luta, quando os grupos não tinham experiência e o inimigo não entrava na mata, a concentração da força ajudou. Mas depois transformou-se num entrave. O centro de gravidade do comando devia ficar nos destacamentos. Estes deviam ter mais mobilidade e iniciativa dentro de um plano geral da CM.

c) O pequeno número de ações militares. Foram poucas as ações para dois anos de luta. Os guerrilheiros ficaram muito presos ao trabalho de massa numa área estreita, não tiveram maior atividade militar. Esta atividade era indispensável, além do mais, porque ajudaria a treinar e condicionar melhor os guerrilheiros. Não se soube dar o necessário equilíbrio entre propaganda armada, criação de uma base política de massas e ações militares. Podia-se ter mais audácia, inclusive realizando incursões a longas distâncias na Transamazônica, em Goiás, ao sul do Pará.

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Podiam-se também ter feito incursões em áreas distantes, somente para conhecer o terreno e observar a possibilidade de aí estabelecer alguns pontos de apoio. Por exemplo: na região do rio Tacaiuna, Vermelho, Sororó, etc. Nesta questão nota-se que ainda predominava no comando carência de espírito militar, de guerra, de luta encarniçada contra o inimigo. Talvez incompreensões sobre o problema da preservação de forças. Se se examinam as perdas que tiveram os guerrilheiros e a maneira como elas ocorreram, vê-se claramente o equívoco. A maior parte dos que morreram não o foram propriamente em combate direto ou devido a iniciativas militares de nossa parte. Em geral, foram surpreendidos pelo inimigo: Aparício (surpreendido numa casa de morador); Cazuza (surpreendido na mata quando se dirigia a um local onde pensava estarem os companheiros); Vitor, Antônio e Zé Francisco (surpreendidos numa capoeira); Juca, Gil e Flávio (surpreendidos na mata); Chico (surpreendido no acampamento); Ari (surpreendido junto a uma grota); Zé Carlos, Zebão, Alfredo e Nunes (surpreendidos próximo a uma roça e sabendo que o exército andava por perto); Sônia (surpreendida próximo do acampamento); Nelito (quando se retirava ante uma investida do inimigo); Maria e Bergson (por traição). Nas ações militares de iniciativa guerrilheira não se perdeu ninguém. As perdas foram, fundamentalmente, em conseqüência de surpresa, o que envolve problemas de ordem tática.

Quanto aos erros muito graves: Em resumo, pode-se afirmar que são constituídos pela orientação tática para

a 3ª grande campanha do inimigo. A Comissão Militar concentrou toda a força numa área pequena e já conhecida como de domínio guerrilheiro, tentou juntar os três destacamentos e a CM num só agrupamento. Não se preparou para a hipótese de ter que sair do cerco inimigo ou superar situação insustentável na área. A alternativa (continuar realizando pequeno trabalho de massa ou recuar para as áreas de refúgio dependendo da envergadura da ofensiva do inimigo) deixava, na realidade, o Comando sem alternativas para o caso de uma ação militar de completo envolvimento da área em que a guerrilha se encontrava. São erros gravíssimos de caráter tático, mas que comprometem seriamente o setor estratégico. Facilitaram o golpe do inimigo no sentido de tentar liquidar o movimento guerrilheiro. Ocasionaram graves perdas.

A Comissão Militar dirigiu com relativa justeza a força guerrilheira durante a primeira e a segunda campanhas de cerco e aniquilamento, embora já uma série de falhas se apresentassem. Soube orientar o emprego da força, no período da trégua, para o trabalho de massa. No entanto, em face da terceira campanha a CM não foi capaz de fazer correta avaliação do inimigo e do conjunto da situação militar.

Na reunião de agosto, a CM deu a seguinte orientação: no caso de ataque, cada destacamento devia concentrar suas forças e, diante de informações concretas, ver como agir; evitar ações que redundassem em baixas e preservar as forças; dependendo da envergadura da ofensiva, recuar para as áreas de refúgio ou continuar pequeno trabalho de massa e fazer algumas ações de fustigamento. É a mesma orientação das campanhas anteriores, sem pôr nem tirar. Entre seus membros predominavam as idéias de que o inimigo não entraria na mata pois não tinha tropas especializadas para isto; não poderia fazer campanha demorada devido a problemas de logística; não entraria na época de chuva; e, por fim, seria improvável um cerco total da área.

Como se vê, houve falsa apreciação do inimigo e errônea avaliação do conjunto da situação militar. Isto fica ainda mais evidente se se analisa a reunião de 15 de novembro de 73. Nessa ocasião, a ofensiva do inimigo já durava mais de um

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mês. A CM considerou-a de pequena envergadura, com pouca força. Decidiu juntar os três destacamentos, mas no fim da reunião concluiu que a fusão ficaria para mais tarde. Nenhuma medida de ordem tática foi tomada em face da ofensiva em curso. Enquanto isto, o inimigo estava em plena realização de seus planos. Dias antes dessa reunião, uma patrulha do Exército passara bem próximo do acampamento dos Destacamentos B e C. No Destacamento A, dia 13 de outubro, outra patrulha tinha liquidado quatro companheiros, os melhores; no dia 24 de outubro, foi morta a Sônia e por pouco boa parte do Destacamento A não foi destroçada. Ao sair da reunião da CM, o companheiro J. encontrou rastros de soldados na mata por toda parte.

Ao contrário do que pensava a CM, a ofensiva eram grande e não pequena; a tropa penetrava na mata e com pessoal especializado; vinha na época da chuva e se dispunha a permanecer vários meses; e fez o cerco geral da área. Esta falsa apreciação da CM levou a um beco sem saída. Quando o inimigo assestou sérios golpes, os companheiros ficaram sem saber o que fazer. A própria CM ficou sem perspectiva. O esquema defensivo ruiu. Os combatentes ficaram à mercê do inimigo. As forças guerrilheiras estavam taticamente despreparadas para enfrentar a nova tática do Exército.

Esta tática pode ser reconstituída. É evidente que o Exército aprendeu com a 1ª e 2ª campanhas. Ajudado pelos experts estrangeiros, compreendeu que os golpes isolados não adiantariam muito. Com estes, obteria êxitos parciais, mas a guerrilha iria se consolidando, ganhando raízes, tornando-se indestrutível. Por isso, preparou-se para uma operação global visando à liquidação da guerrilha em seu conjunto. Seu plano (estratégico e tático) compreendeu as seguintes medidas: bloqueio do apoio externo aos guerrilheiros (golpe no Partido e nas pessoas da periferia que os pudessem ajudar direta ou indiretamente); cerco estratégico da área para impedir a fuga ou desligamento da guerrilha; ocupação de pontos de apoio dentro da área guerrilheira; isolamento do apoio de massas, com prisões dos moradores, espancamentos, queima de casas e paióis, emprego do terror; corte das possibilidades de abastecimento dos guerrilheiros, impedindo a entrada de gêneros mesmo para comerciantes da área e ocupando locais onde se pudesse apanhar alimentos; envio de grande número de patrulhas, com mateiros à frente e apoio de helicópteros, para penetrar na mata e estabelecer contato com os guerrilheiros a fim de liquidá-los; matar e não fazer prisioneiros durante a campanha. Em linhas gerais, este o plano que o inimigo pôs em ação. A CM não soube captá-lo e adotar as contramedidas pertinentes. Não se apoiou no princípio de prever para prover, apesar de que havia claros indícios daquele plano (golpes no Partido e sua direção, compra de fazendas na área pelo Exército e seus testas-de-ferro, localização de gente estranha dentro da área em pontos estratégicos, abertura de estradas e picadas cortando ou cercando a área, recrutamento de mateiros, construção de quartéis, etc.). Além disto, questões como: “pode o inimigo ocupar toda a área?” e “pode retirar toda a massa da área?” tinham que ser respondidas afirmativamente pela CM, pois essa é a experiência internacional. Se a CM tivesse tido uma visão correta ou aproximada do plano do inimigo, teria usado outra tática e certamente obtido êxito, teria evitado, no fundamental, os golpes sérios que sofreram as forças guerrilheiras. Se, por exemplo, dispersasse essas forças em vasta área ou tentasse sair da área conhecida, o inimigo seria uma vez mais derrotado. Não poderia permanecer longo tempo numa ofensiva frustrada, sofreria desgastes e cairia na rotina.

Quais as causas dos erros? As causas mais profundas dos erros cometidos pela Comissão Militar, no que

se pôde deduzir do relatório apresentado, encontram-se na subestimação do inimigo

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e na inexperiência de luta armada. É patente que a Comissão Militar não considerou suficientemente o princípio de que se deve desprezar estrategicamente o inimigo e levá-lo muito em conta taticamente. Exagerou as fraquezas do Exército. Achou que ele não seria capaz de vencer certas dificuldades da luta na mata. Não compreendeu que faria tudo para liquidar os guerrilheiros, que dispunha de meios e contava com a experiência e ajuda internacionais. Sabia que ele voltaria para uma terceira campanha de cerco e aniquilamento, mas considerava essa campanha igual às anteriores, sem maiores conseqüências. Esta subestimação do inimigo era, ao mesmo tempo, uma subestimação da própria importância da guerrilha, cujo surgimento no sul do Pará constituía sério golpe na ditadura e nos imperialistas ianques, abria um novo e largo caminho de libertação para o povo. A reação, interna e externa, não ia permitir ou contemporizar com o movimento armado. Redobraria de esforços para esmagar, no mais breve prazo e antes que se pudesse consolidar, a luta guerrilheira. Ao que parece, a CM não compreendeu, em profundidade, as possibilidades do inimigo, nem a significação real da resistência iniciada.

Mas esta causa dos erros está relacionada também com a inexperiência militar. São ainda superficiais os conhecimentos que se possui da arte de fazer guerra. É a primeira vez que se recorre a esta forma de luta. Embora se tenha avançado nesse terreno, falta maior base técnica. Guerra é guerra e precisa ser encarada como assunto que exige capacidade e eficiência. A luta no Araguaia foi concebida, estruturada e realizada como guerra de guerrilha. No entanto, revelou insuficiente domínio do caráter e da forma de conduzir esta guerra, o que pode ser constatado em fatos como a exagerada concentração da força combatente, sua atuação por longo período numa área limitada e conhecida do inimigo, a centralização excessiva do comando, a falta de mais golpes de surpresa sobre o adversário, etc. Isto porém não nega o lado grandemente positivo do trabalho da CM, o valor e a contribuição que deu na realização de tão importante tarefa. Aprende-se a nadar, nadando. Aprende-se a lutar, lutando. Os acertos e os erros formam um todo. Uns e outros aumentam nosso conhecimento. Experiências adquiridas

A compreensão dos erros, seu exame e origens, assim como a análise dos

êxitos, podem contribuir para um grande avanço do movimento guerrilheiro no Araguaia e em outras regiões. Algumas lições devem ser extraídas, embora não se conte ainda com a opinião indispensável de outros companheiros que participam da luta.

Sem dúvida alguma, a experiência fundamental destes dois anos é que o caminho indicado pelo Partido para libertar o povo brasileiro da opressão é correto. A vida mostrou que a luta armada pode-se desenvolver com sucesso no interior. Vencendo inúmeras dificuldades e num processo longo, transformar-se-á em guerra popular que, envolvendo a maioria da nação, acabará conquistando a vitória.

Entre as lições proporcionadas pela resistência do Araguaia destacam-se as seguintes:

1 – A experiência demonstrou que, simultaneamente com a organização da força combatente, é preciso ir criando os canais de comunicação e apoio externos. A guerrilha, ainda que se apóie basicamente em suas próprias forças, necessita de ajuda de fora, de diferentes tipos. Além disso, deve atuar aberta e clandestinamente, contar com elementos armados e não-armados, conhecidos e desconhecidos,

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incluindo gente infiltrada nas hostes adversárias. Deve ter pontos de apoio clandestinos dentro e fora da área em que atua.

2 – A guerrilha deve se expandir constantemente. Quando já conquistou uma zona, precisa deslocar elementos para outras áreas a fim de ir ampliando seu campo de atividade e de influência. Se a guerrilha se mantém estática numa determinada área pode ser facilmente golpeada, cercada e aniquilada. O deslocamento de elementos de massa, já conquistados, facilita a realização desta tarefa.

3 – É incorreto manter por longo tempo a força guerrilheira concentrada numa área conhecida e relativamente pequena, mesmo em regiões pouco acessíveis. Isto facilita a ação concentrada do inimigo, muito mais forte e numeroso. Ainda que nas primeiras tentativas não consiga êxitos sobre a guerrilha, como ocorreu no Araguaia, ele dispõe de meios e recursos poderosos para voltar à carga e alcançar seus fins. Assim sucede sobretudo se o inimigo não está envolvido em graves e generalizados conflitos que obriguem à dispersão de suas forças. Então ele pode empenhar-se a fundo no combate ao movimento guerrilheiro, localizado e ainda pouco experiente, liquidando-o ou ocasionando-lhe graves danos. O êxito da guerrilha, nesses casos, está na sua mobilidade e capacidade de evitar o cerco do adversário ou seus golpes contundentes.

4 – Quando o inimigo desencadeia grandes campanhas é preciso ter como diretiva tática a dispersão das forças em ampla área para facilitar o despistamento e evitar o contato com o inimigo. Conforme a situação, pode ser preferível sair temporariamente da área. A guerrilha deve recuar para seus refúgios a fim de prevenir surpresas. A morte de muitos companheiros se deu nos períodos de grandes campanhas da ditadura, quando suas tropas estavam espalhadas por toda a área guerrilheira. Não se levou suficientemente em conta este fato e os guerrilheiros circulavam por lugares perigosos. Recuar não significa, porém, que não se possa realizar uma ou outra ação militar e desaparecer em seguida. Por certo tempo, os destacamentos podem atribuir maior autonomia aos grupos. Quando o inimigo abandona completamente a área deve-se voltar. Se ele mantém ainda alguma força, pode-se voltar em forma de incursão e apoiado na massa. No caso de ocupação permanente ou por longo período da área em que se atua, ou da retirada forçada da massa, é aconselhável passar a atuar em outras áreas. Também se pode passar certo tempo desaparecido, aparecer nos locais menos esperados e desaparecer depois.

5 – É preciso armar-se à custa do inimigo. Os guerrilheiros precisam dispor de boas armas e estas só se conseguirão em número suficiente tomando do inimigo. As ações com este objetivo têm caráter prioritário. Exigem planificação de golpes de surpresa, próximos ou distantes, que assegurem o botim indispensável. Mas é preciso também dar o máximo de atenção à fabricação caseira de minas e granadas e estudar as mais diferentes modalidades de armadilhas contra o inimigo.

6 – O princípio da preservação das forças é correto. Não se devem travar combates seguidos. E justo evitar confrontações desnecessárias. O centro principal de atuação dos guerrilheiros deve ser ganhar as massas. Mas a idéia da preservação não pode estar separada da ação contra o inimigo. Se o inimigo tem completa liberdade de ação, então a sobrevivência da guerrilha está ameaçada, torna-se difícil preservar as forças. O inimigo precisa temer os guerrilheiros e estes devem estar imbuídos da idéia de matar o adversário que os quer liquidar. A destruição do inimigo é princípio fundamental da guerrilha e de qualquer guerra, é o centro da preocupação de todos os comandos militares. Brigar faz parte da preservação. Na mata, é fundamental liquidar sobretudo os mateiros do Exército. As

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ações militares de iniciativa guerrilheira ajudam a preparar bem os combatentes e influem poderosamente no ânimo das massas.

7 – Na guerrilha é necessário considerar dois tipos principais de combatentes: os que se entrosam nos destacamentos armados, sujeitos à disciplina e aos regulamentos militares, e os que – permanecendo em suas atividades produtivas e junto à família – se mobilizam para ações armadas contra o inimigo. No Araguaia nem sempre se soube combinar e distinguir corretamente as tarefas de uns e de outros. Em geral se procurava ganhar os elementos apressadamente para fazê-los ingressar nos destacamentos. Já no curso da 3ª campanha se começou a dar mais atenção ao assunto, com resultados positivos. A participação de elementos de massa nas ações armadas, sem fazerem parte dos destacamentos, é um escalão necessário para incorporá-los adiante aos grupos organizados. Além do mais, facilita a extensão do movimento guerrilheiro e estimula a iniciativa das massas.

8 – Os destacamentos não devem ter mais do que 15 combatentes, com três grupos de cinco. Em certas condições, é melhor que tenham apenas 11, com dois grupos de cinco e um comandante. Devem atuar em áreas separadas umas das outras, podendo não ser contíguas. Concentram-se para ações de maior vulto e dispersam-se para evitar sua localização. Os destacamentos são subordinados a um comando geral. Mas o centro de gravidade do comando operacional deve estar no destacamento. O comando geral dá as diretivas gerais para um certo período de força regular. Este necessita ter a tropa à mão em qualquer momento. Aquela, não. Tropa à mão significa concentração ou meios rápidos de mobilização. Salvo casos especiais, a guerrilha não pode estar concentrada, suas ações não são constantes, mas irregulares. Não necessita de um comando geral operacional. O comando deve ser mais um órgão de Estado-Maior da guerrilha. O princípio pode ser resumido da seguinte forma: autonomia de ação dos destacamentos, dentro de uma centralização relativa de comando geral.

9 – É necessário desenvolver a perspicácia militar nos combatentes, estimular o exame das questões concretas, o equacionamento e a solução dos problemas da luta armada que se vão sucedendo. Impõe-se o estudo cuidadoso da situação militar em cada momento ou campanha, dos pontos fortes e débeis do inimigo, assim como dos guerrilheiros. Impõe-se igualmente a apreciação crítica da orientação seguida em cada fase da luta. A guerra não é uma repetição sempre igual de batalhas e campanhas. É um movimento constante de formas e fatores diversos. Os guerrilheiros devem estar atentos às mutações de tática do inimigo, que dispõe de Muitos recursos e grandes efetivos.

10 — É necessário construir bons refúgios, e não só na área em que se permanece mais tempo. Se o inimigo pode esquadrinhar a mata, é preciso ter locais apropriados para esconder-se durante certo período na própria área de atuação ou fora dela. É preciso examinar mais atentamente as possibilidades do uso de túneis, áreas de cipoal, abrigo em árvores, e desenvolver a arte da camuflagem de refúgio em larga escala. Os rastros devem ser evitados, mas, desde que se dominem melhor as táticas de luta na mata, eles podem ser maus para os guerrilheiros e pior ainda para os inimigos.

Ligado ao problema dos refúgios está o do abastecimento. No caso de grandes campanhas de cerco e aniquilamento não se pode contar com a massa e as roças. O abastecimento, em certos casos, pode depender exclusivamente do local em que nos encontramos. Por isso, é de generalizar o plantio de pequenas áreas dentro da mata (caída de paus), aperfeiçoar a caça e a pesca com arco e flexa, as armadilhas para animais sem o uso de bala, etc.

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11 - Impõe-se aperfeiçoar métodos de comunicação mais rápidos. Não se poderá prescindir totalmente do mensageiro a pé. Na guerrilha ele exerce importante papel nas comunicações. Mas precisa-se recorrer aos walk-talk, rádios, códigos e sinais, enfim, processos que facilitem e diminuam o tempo das comunicações interiores. É preciso igualmente aperfeiçoar o sistema de informações, ter olhos e ouvidos nas estradas, na mata, na periferia, etc.

Todas estas lições, aqui resumidas, devem ser consideradas em relação ao nível atual da luta guerrilheira no Brasil. A evolução desta luta e da situação do país determinam formas novas de atuação, outros serão os problemas.

Tarefas imprescindíveis

Nestes dois anos, o Partido adquiriu certa experiência da luta armada. Ergueu bem alto a bandeira da revolução. Travou o embate mais importante do período da ditadura e um dos mais significativos destes últimos cinqüenta anos. É preciso prosseguir nesse caminho. Isto requer que o Partido reavalie seu trabalho e indique diretrizes concretas encaminhadas a fortalecer e levar à prática sua orientação revolucionária.

O Partido desenvolve sua atividade sob uma ditadura fascista e sofreu sérios golpes da reação. Não se deixou esmagar. Vai adaptando seu trabalho à clandestinidade rigorosa, ao mesmo tempo que procura impulsionar o movimento de massas e tomar iniciativas políticas. A fim de colocar-se à altura da situação, o Partido precisa enfrentar uma série de tarefas imprescindíveis. Entre estas, destacam-se:

- Política de concentração do esforço partidário com o objetivo de fazer crescer o Partido e ligá-lo mais às massas pobres e exploradas

- Construção e fortalecimento do Partido em Estados estrategicamente importantes.

- Reestruturação do Partido e de seus órgãos dirigentes. - Fortalecimento do trabalho especial. - Estudo e maior aprendizagem da arte militar.

FONTE: http://grabois.org.br/portal/cdm/revista. Acesso on-line em 05 de dezembro

de 2012.

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ANEXO C – Intervenção sobre o debate no Araguaia

Pedro Pomar Camaradas:

O debate, ao nível do CC, da experiência da luta guerrilheira do Araguaia dará, segundo penso, os resultados que todos almejamos. Sem dúvida estamos tardando demasiado a tirar as lições fundamentais que dela dimanam. As condições políticas atuais, de desenfreada perseguição aos patriotas, bem como nossa inexperiência e outras debilidades, vêm dificultando e retardando o esforço nesse sentido. Mas, se quisermos ficar à altura de nossos deveres, temos de empreender, sem maiores dilações, a avaliação crítica e autocrítica dessa luta.

O informe do camarada J. serve de base para a discussão. Agora compete a cada um, conforme sua capacidade, apreciar a verdadeira significação, para o movimento popular e para o Partido, dos resultados dessafaçanha, do imenso sacrifício de um pugilo de companheiros. No Brasil, o problema do caminho revolucionário para livrar o povo da exploração e da opressão tem sido dificílimo. E a determinação de palmilhá-lo tornou-se a pedra detoque das diferentes forças revolucionárias, em especial das marxista-leninistas. Em torno do caminho, da concepção e do método da luta armada sempre surgiram grandes divergências. O caráter revolucionário de nosso Partido, sua linha política, seu comportamento, sempre foram aferidos pela posição assumida em face da luta armada e pela maneira de procurar concretizá-la. A fidelidade dos marxista-leninistas a essa ideia e o esforço para fazê-la triunfante os distinguem de todos os demais agrupamentos populares. Isso determinou a rutura com os revisionistas contemporâneos, principalmente com o bando de Prestes. Não por acaso, a bandeira da insurreição popular de novembro de 1935 serve atualmente de parâmetro para a atividade dos comunistas. É essa bandeira que hoje devemos erguer com maior força e audácia, se quisermos libertar definitivamente o povo brasileiro e nos tornar os verdadeiros dirigentes da revolução do país.

A experiência do Araguaia, pelo que entendi, apresenta aspectos bastante positivos. Ressalto, antes de tudo, a firme decisão do CC em realizar a tarefa que aprovou, de implantar, em algumas áreas do mais remoto interior brasileiro, dezenas de camaradas que demonstraram disposição de suportar todos os sacrifícios, a fim de preservarem e desencadearem a luta armada. O devotamento desses camaradas e o heroísmo de que efetivamente deram provas são motivos de legítimo orgulho para o nosso Partido, merecem justa e devida valorização. Destaco também a escolha da área, que nas condições atuais do país se revelou propícia à nossa estratégia. Apesar de sua baixíssima densidade demográfica e de não possuir nenhuma tradição política nem organizativa de massas, oferecia excelente posição para a defesa. Considero igualmente importante que, após o surgimento da luta armada, os camaradas da guerrilha se tivessem empenhado na conquista das massas e conseguido sensibilizá-las num grau elevado, ganhando sua simpatia e mesmo o apoio ativo de alguns camponeses pobres. Mais significativo ainda foi o fato de terem organizado alguns núcleos da ULDP na base de um programa que contém as reivindicações mais sentidas dos moradores da região. Tanto esse programa como a organização dos referidos núcleos refletem o esforço para vincular-se às massas e fazê-las jogar papel político, para mobilizá-las no sentido de

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sua emancipação. Além disso, os camaradas preocuparam-se em fazer propaganda das ideias da luta pela liberdade, pela independência nacional, propondo a união do povo brasileiro para a derrubada da ditadura militar-fascista. Dessa forma, procuram interpretar os anseios de amplas forças sociais e políticas no plano nacional, não se construindo, portanto, como mais um grupo sectário, isolado, ou regionalista. E ao se sustentarem em armas por um período tão, apesar da superioridade e da ferocidade do inimigo, provaram que sua capacidade combativa, seu nível de consciência e de organização e sua determinação estavam muito elevados. Deram, assim, a medida do que será possível realizar a fim de ampliar e levar adiante a resistência armada popular, de acordo com a orientação do Partido. E isto tudo feito com armas precárias, com recursos pequeníssimos. A experiência do Araguaia representou, inegavelmente, uma tentativa heroica para criar uma base política e dar continuidade ao processo revolucionário, sob a direção de nosso Partido. Tinha em vista formar uma sólida base de apoio no campo e desenvolver o núcleo de um futuro exército popular, poderoso, capaz de vencer forças armadas a serviço das classes dominantes e do imperialismo ianque.

Não obstante, continua sendo difícil para nós avaliarmos todo o significado da luta armada no Araguaia. Qual de fato seu alcance histórico? Deu os resultados que dela se esperava? Compensou o sacrifício dos camaradas que lá morreram, dos melhores que contávamos?

Onde quer que a notícia do notável feito tenha chegado, suscitou admiração, simpatias, apoios. Em nossas fileiras acendeu entusiasmos, esperanças. É que a luta armada do Araguaia testemunhava de modo eloquente que o PC do Brasil é o abandeirado da liberdade e da independência nacional, inimigo ferrenho da ditadura militar-fascista, consequente defensor da democracia para as massas populares. Entre as correntes patrióticas do país e os nossos amigos do estrangeiro, o acontecimento foi saudado com júbilo, com manifestações de expectativa favorável. Quanto às repercussões entre os inimigos, basta ver como se mobilizam para liquidar no nascedouro a luta armada, impedir qualquer divulgação sobre guerrilha e perseguir sem piedade todos os que a auxiliassem.

Esse, digamos, o sentido mais geral, político, do significado do Araguaia. Não há dúvida, teve o valor de uma iniciativa histórica. Representou um esforço abnegado, de sangue, para abrir caminho ao impasse em que vive o país, indicando ao povo os rumos de sua luta.

Entretanto, é preciso enfrentar a dura realidade. A luta iniciada a 12 de abril de 1972, com todo o heroísmo que conhecemos, e que se manteve organizadamente até os fins de 1973 ou princípios de 1974, deixou praticamente de existir como tal a partir desse período. A terceira campanha do inimigo, de princípios de outubro de 1973, conseguiu em menos de três meses dispensar os destacamentos guerrilheiros, dizimar a maior parte dos combatentes e até mesmo atingir e desmantelar a Comissão Militar. A direção do partido nas cidades perdeu o contato com os camaradas do sul do Pará e atualmente não sabe quantos deles sobreviveram, ou se sobreviveram.

Há dois anos, o CC e o Partido se acham em compasso de espera, confiando que alguma notícia ou informação venha desfazer as dúvidas sobre o destino dos camaradas que se encontravam no Araguaia, sobre o fim ou não da luta guerrilheira. Qual é, verdadeiramente, a situação da guerrilha atualmente?

O camarada J. reconheceu que a guerrilha sofreu uma derrota, mas temporária. Supõe, ao que parece, possível retomar a luta iniciada em abril de 1972, se bem que não esclareça se com os mesmos elementos e fatores, ou se com

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outros, novos. Julgo que o camarada J. não tem razão. Se examinarmos a derrota do ponto de vista dos objetivos estratégicos e táticos traçados pelo Partido e justificados pelo camarada J., a derrota do Araguaia não pode ser considerada temporária. Que objetivos eram esses? Primeiro, conflagrar a área; segundo, libertá-la; terceiro, convertê-la, com o tempo, numa sólida base de apoio. Portanto, não há como fugir da amarga constatação: ao cessar a resistência organizada, ao não ter alcançado nenhum dos objetivos a que se propôs, a guerrilha, apesar dos resultados positivos apresentados, sofreu uma derrota completa, e não temporária. Infelizmente, o CC tem de aceitar a dura verdade de que o resultado fundamental e mais geral da batalha heroica travada por nossos camaradas foi o revés. E mesmo que consigamos retomar o processo armado iniciado em 1972, o lapso se tornou tão grande, as condições se apresentam de tal modo distintas, etc., que essa retomada não será no mesmo nível nem se identificará com o processo anterior, embora os personagens possam ser os mesmos – mata, massas, Partido e tropas inimigas. É preciso, pois admitir praticamente o início de outro processo, conquanto beneficiado pela experiência anterior dolorosa e que queremos seja útil.

Que causas foram responsáveis por essa derrota? Como analisa outros aspectos da preparação da luta o camarada J.? A meu ver, o informe do camarada J. não responde cabal e satisfatoriamente a isso. Em certos pontos é, inclusive contraditório. Diz que o principal erro foi ocasionado pelo fato de a guerrilha haver concentrado suas forças, ao invés de dispersá-las. Ou, ainda, de não ter procurado expandir a base guerreira, e sim restringi-la. E isto depois de a guerrilha haver conseguido êxito da ordem de 100% até outubro de 1973. Acrescenta que os golpes sofridos durante a terceira campanha poderia ter sido evitados se a Comissão militar não cometesse as faltas mencionadas. Adiante também que manifestou-se subestimação do inimigo, pois a tática usada por este nos surpreendeu. Aliás, esclarece o camarada J., quando o inimigo mudou de tática, infringiu-nos a derrota. Que dizer, enquanto o inimigo aprendia e adaptava-se à situação criada, os destacamentos guerrilheiros não procederam da mesma forma. Ao referir-se ao trabalho de preparação inclusive em outras áreas subordinadas ao CC diretamente, explica que já houve um relato objetivo sobre o citado trabalho, deixando de formular qualquer crítica ou de esclarecer por que essas áreas não corresponderam ou não foram levadas em conta. Ao tratar do aspecto propriamente político, assegura apenas que o desencadeamento da luta armada se deu em condições favoráveis porque aparecemos como vítimas. Fica nisso. Não analisa, se quer sumariamente, a conjuntura nacional de princípios de 1972, que não era nada favorável, nem examina a situação do Partido, tanto naquela fase como posteriormente. Entre parênteses, conviria falar do que realizou do Partido, o que dez também cada um de seus militantes em apoio à preparação e à luta no Araguaia. Isto requereria talvez um informe especial, pois não será suficiente afirmar que o Partido não se encontrava à altura nem que o inimigo nos colheu de surpresa com seu ataque, ou que se fez o máximo que era possível em solidariedade aos camaradas em armas. O fato é que o inimigo desferiu pesadíssimos golpes sobre as organizações partidárias das cidades e blasonou ter, assim, isolado grandemente a guerrilha. Nossas iniciativas, embora justas e oportunas, foram muito limitadas, aquém mesmo das possibilidades e necessidades. Quem sabe, num balanço mais completo, com a contribuição do conjunto, o papel do Partido venha a ser ainda melhor avaliado? O camarada J. tampouco comenta a situação do movimento camponês, nem mesmo o do sul do Pará, o que parece significativo. Finalmente, entre os erros e deficiências que, após o início da luta, se tornaram mais evidentes, o camarada J. enumera o da

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não-construção de refúgios, o do não-correto aproveitamento dos elementos de massa na guerrilha, o falta de uma rede de informações, o da ausência de Partido na periferia, e outros.

Ao abordar de passagem os motivos desses erros e deficiência, o camarada J. diz que os mesmos “se devem a algumas concepções em nosso meio e à nossa falta de experiência militar”. Nessas concepções inclui também a subestimação do inimigo. Entretanto, nada esclarece sobre o tipo de tais concepções, sua natureza, sua origem. Simplesmente ignora o afã, manifestado por mais de um camarada, de saber por que foram cometidos esses erros, que não podem ser atribuídos à Comissão Militar nem que a questões de tática. Por isso, o camarada J. diz que a derrota foi temporária e que a mesma não desqualifica o caminho trilhado na preparação e no desencadeamento da luta armada no Araguaia. Ao contrário, a seu ver, a experiência do Araguaia, no fundamental, é valida; o Partido deve prosseguir trabalhando nessa base, dadas as atuais condições brasileiras. Nela admite somente ligeiras variações, embora concorde com a possibilidade de virem a aparecer novas experiências no esforço de efetivar a guerra popular.

Examinemos mais detidamente essas opiniões expendidas pelo camarada J. Segundo penso, a concepção, a ideia geral, que presidiu a preparação e, a seguir, a deflagração da luta, bem como a própria luta no Araguaia, foi a de, a partir de um dado momento, julgado o melhor pela Comissão Militar, converter o núcleo de camaradas implantados e organizados em destacamentos guerrilheiros, no estopim de um movimento armado que se expandiria paulatinamente e abarcaria, ao fim e ao cabo, todo o país. Baseados nessa concepção é que trabalhamos desde 1966-67. A coisa começou pela escolha de áreas adequadas onde seriam ficados os camaradas, que para lá se dirigiam voluntariamente, mas devidamente selecionados e advertidos. A princípio houve empenho para o trabalho de implantação em três áreas contíguas, mas por motivo de segurança, de falta de confiança, ou por outros motivos, a preparação acabou limitada a uma área, cujo fundo, no entanto, era imenso, praticamente assegurando tranquilidade quanto à retaguarda. Para essa área tudo convergiu, tudo se subordinou. Nela seriam colocados, cuidadosamente, os camaradas adredemente escolhidos, mas voluntários. A quantidade do contingente fixado sempre foi mantido em segredo, mediante o treinamento militar intensivo e prioritário, o conhecimento do terreno, a capacitação ideológica e política, o estudo dos problemas locais, etc., esses camaradas se transformariam, num prazo determinado (de acordo com o critério da Comissão Militar), num pequeno agrupamento guerrilheiro – célula-máter do exército popular, do fortalecimento do Partido, da libertação do país, etc. a configuração desse agrupamento já correspondia à de um exército em miniatura, dirigido pela Comissão Militar do CC, a qual se deslocara para a área, e nela concentrara sua atividade. Em relação às massas locais, o critério foi o de travar amizade com elas, conhecer seus problemas, prestar-lhes assistência. Cada camarada devia aparecer como pessoa amiga, séria, trabalhador, mas que não falava por nada do mundo em política ou coisa que o valha. O trabalho dito de massas consistia em servir ao povo meio de assistência médica e farmacêutica, da ajuda dos mutirões e em outras atividades desse tipo. Na medida em que a situação dos moradores era estudada e seus problemas conhecidos, tinha-se em vista formular um programa que, no entanto, só deveria ser dado ao conhecimento do povo e do país após a deflagração da luta, como aliás aconteceu. Nem sequer a Comissão Executiva dele soube de antemão, dado o estrito segredo em que era mantido o trabalho na área. Quanto ao Partido, como organização, aparecia formalmente através do trabalho da Comissão Militar. Nem na

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periferia foi estruturado, muito menos na área, por precaução. Os comunista que lá estavam ficaram enquadrados militarmente e deviam, antes de tudo, preocupar-se com sua preparação para se transformarem em guerrilheiros, combatentes. No âmbito nacional, cabia ao Partido principalmente selecionar militantes e quadros destinados à guerrilha na área prioritária. Não foi fácil enviar esses militantes, atender os insistentes pedidos da Comissão Militar e preencher o número de camaradas julgado ideal. Apesar disso, houve organizações regionais que fizeram o máximo para cumprir seu dever, já que o fundamento da argumentação era de que do cumprimento dessa tarefa dependia o futuro do Partido. Em princípios de 71, quando a Comissão Militar julgou estar bem próximo o momento da explosão da luta (propagou-se a imagem da mulher gestante que ao cabo de 9 meses deve parir a criança), o CC reuniu-se e adotou uma série de medidas relacionadas com o desencadeamento da luta armada para curto prazo. Entre as mais importantes dessas medidas, houve a que decidiu atribuir aos companheiros dirigentes que se encontravam na área do Araguaia (então só conhecida como “prioritária”) a tarefa de criar condições para lá instalar o resto da direção que permaneceria nas cidades enquanto não houvesse as referidas condições. A parte do CC nas cidades devia da o máximo de apoio ao trabalho desenvolvido pela direção da área prioritária. As comunicações entre as duas direções dependeriam, como dependeram, da iniciativa e da responsabilidade da Comissão Militar. Em suma, tudo se condicionou ao êxito da luta armada que se preparava no Araguaia. Do ponto de vista política, os motivos e a decisão para o desenvolvimento da luta também ficariam sob a responsabilidade da Comissão Militar. As Forças Guerrilheiras seriam o braço armado do Partido em desafio à ditadura militar-fascista. A bandeira política, embora de amplo sentido democrático e libertador, deveria ser arvorada assim que se iniciasse a luta, que se daria por meio de uma ação de repercussão nacional. As contradições sociais e políticas da área, as motivações locais, deveriam apenas respaldar a ação nacional; serviriam para atrair as massas da área e incorporá-las à luta, no processo.

Repito: essa, em síntese, me parece ter sido a concepção que presidiu a preparação e terminou sendo aplicada na luta armada do sul do Pará. Mas, a partir de abril de 1972, ou pouco antes, que aconteceu? Apesar de todo o sigilo da preparação, esta foi denunciada e descoberta. O inimigo resolveu imediatamente liquidar os núcleos guerrilheiros através de uma investida de surpresa. A eventualidade estava prevista. Como, porém, reagiu a Comissão Militar? O camarada J. colocada a questão em termos de opção, entre abandonar a área e resistir. A opção foi pela resistência. Isto foi bom, acrescenta o cam. J., porque aparecemos como vítimas. Mas não esclarece quais os objetivos imediatos e futuros perseguidos por essa resistência. E não o faz porque tais objetivos estavam de há muito fixados. Quero dizer que, na realidade, essa resistência já havia sido decidida com antecedência, decorreu de toda a concepção do trabalho realizado: do número de elementos dispostos na área, de sua organização, do plano geral de luta. A concentraçãodas forças e a centralização do comando eram parte integrante e fundamental dessa concepção. Em virtude de tal preparação e da ideia política predominante, dificilmente a Comissão Militar poderia recorrer, por exemplo, a outra opção, ou mesmo a uma forma de luta como a preconizada no documento da Guerra Popular para os propagandistas armados. No entanto, agora o cam. J. reconhece que o principal erro da guerrilha consistiu em não ter dispersado seus grupos. Mas isto importa num erro de princípio e não de tática, secundário. O cam. J. viu-se obrigado também a concordar que era grande a quantidade de elementos combatentes em relação ao terreno e à massa (70 combatentes para uma área de

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6.500 km2e de população rarefeita) e afirma que foi um erro tático (só tático?) manter forças concentradas numa área bem menor, ao invés de dispersá-las. Explica que isso ocorreu pela necessidade de consolidar o trabalho de massas em vista de o exército poder voltar a qualquer momento. Era “indispensável ter o pessoal à mão”. Tal concentração foi agravada pela decisão da CM de fundir os três destacamentos. Mesmo assim, não fica claro o verdadeiro sentido dessa premência em “consolidar o trabalho de massas”.

Apesar dessas constatações e da derrota sofrida, o cam. J. dá como aceita a concepção que prevaleceu na luta do Araguaia. Pondera que devemos continuar trilhando-a. sinceramente, discordo dessa opinião. Certamente, como já disse, a experiência do Araguaia tem aspectos de valor que devem ser sistematizados e aproveitados. O espírito de luta, heroísmo de luta, heroísmo mesmo, o esforço para adaptar-se às condições do meio, a capacidade de resistência, precisam ser salientados e devidamente estimados, servem como exemplo. Nosso partido sempre se orgulhará dessa luta, do sacrifício dos camaradas que lá tombaram, tentando abrir caminho para a vitória de nossa causa. Mas para determinar a validade de uma experiência isso apenas não basta. O fundamental, no caso concreto e como já ficou esclarecido em documentos relacionados com a guerra de guerrilhas, é a sobrevivência e o desenvolvimento da mesma. E isto depende antes de tudo da incorporação das massas à guerrilha, de estas fazerem sua a causa, a bandeira levantada pelos guerrilheiros. Nessa determinação devemos contar, naturalmente, com erros, com fracassos, com perdas terríveis. Em certa medida, as derrotas e os erros serão inevitáveis; mas poderemos sem dificuldades avaliar seu resultado político (e/ou sua sobrevivência) pelo nível de incorporação das massas, por seu apoio ativo à luta guerrilheira. Ora, exatamente é com essa dificuldade que nos deparamos ao tratar da experiência do Araguaia. O número de elementos de massas ganho para a guerrilha foi insignificante, principalmente se se considera como um êxito formidável o tempo de duração da luta armada. Mesmo assim, não se soube trabalhar com esses elementos. Também a atividade política dos núcleos da ULDP não é esclarecida. Tudo leva a crer que a guerrilha se iniciou como um corpo a corpo dos comunistas contra as tropas da ditadura militar. E assim continuou quase todo o tempo. Aí reside, a meu ver, o maior erro, o mais negativo da experiência do Araguaia. Pois a conquista política das massas não pode ser efetuada só depois da formação do grupo guerrilheiro. Tampouco este deve ser constituído única e exclusivamente, mesmo que seja apenas no princípio de comunistas. E não se diga que a orientação contida nos documentos e resoluções do Partido não seja cristalina a respeito. Tanto pela letra, como pelo espírito, os documentos partidários essencialmente dirigidos contra as teses pequeno-burguesas e foquistas, indicam, sem margem de dúvida, que: 1) a guerra popular é uma guerra de massas; 2) a guerrilha é uma forma de luta de massas; 3) para iniciá-la, “mesmo que a situação esteja madura, impõe-se que os combatentes tenham forjado sólidos vínculos com as massas”; 4) a preparação “pressupõe o trabalho político de massas”; 5) os três aspectos – trabalho político de massas, construção do Partido e luta armada – são inseparáveis na guerra popular; 6) o Partido, isto é, o político, é o predominante desses aspectos; 7) numa palavra, o trabalho militar é tarefa de todos os comunistas e não apenas de especialistas.

A experiência contrario frontalmente essa orientação sobre a guerra popular. Sob o fundamento de que nas atuais condições brasileiras é impossível criar a base política antes de se forjar e acionar o dispositivo militar, o braço armado do povo; alegando-se impossibilidade de ganhar elementos de massa para a guerrilha antes

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deflagrar a luta armada e que, portanto, o núcleo guerrilheiro deve ser organizado de início só com comunistas, enveredou-se pelo caminho que levou aos resultados que estamos discutindo. A vida, porém, encarregou-se de mostrar que esse tipo de preparação, assim como a organização de grupos guerrilheiros só de comunistas, não permitirão sua sobrevivência nem seu desenvolvimento. Por mais conspirativa que venha ser a preparação, o inimigo poderá descobri-la “antes da criança nascer”; por isso mais heroicamente que se comportem os combatentes comunistas, se estiverem das massas, sem seu apoio ativo, serão batidos; e por mais eficiente que seja a direção militar, com tal concepção será derrotada. Por isso, a orientação seguida no Araguaia tem de ser modificada em suas linhas essenciais.

Ao invés de se considerar que só será viável o trabalho de preparação à base dessa concepção, o certo é primeiro realizar o trabalho político, procurar, através de uma ação planificada, cuidadosa, paciente, clandestina, e tendo em conta o movimento camponês real, criar a base de massas necessária para desencadear a luta. Afirmar que esse trabalho, no momento atual, por causa do aumento de vigilância do inimigo, não é possível, me parece falso. Seria o mesmo que concluir ser o trabalho de massas em geral, bem como a construção do Partido, sob as condições da ditadura militar-fascista, também impraticável. Mas esta conclusão ninguém a aceita entre nós, por absurda.

Desse modo, considero que a preliminar a esclarecer, no sentido de se dar qualquer passo adiante e sério, na senda da preparação da luta armada, é a questão de se é ou não prioritária a formação da base política de massas.

Ainda não coloco o problema em si do movimento camponês, de efetivamente nos integrarmos nele, de partirmos da necessidade de seu desenvolvimento e ampliação na luta pela terra. Não, apenas dou ênfase à preliminar de que se impõe realizar com antecedência um certo trabalho político de massas, a organização de um mínimo de P. e a conquista de alguma influência de nossas palavras de ordem. Julgo esse ponto de vista, acusado de dogmático, o único capaz de corresponder à realidade atual e aos princípios da guerra popular, quer na concepção, quer no método. Aliás, qualquer grupo de elementos que tenha condições de primeiro constitui-se em destacamento armado, para depois ganhar as massas, com mais razão e facilidade poderá primeiro ganhar as massas e, no processo, organizar o destacamento armado. É o que ensina a sabedoria popular – quem pode o mais, pode o menos. Na verdade, essa é uma questão crucial: como ganhar as massas, convencê-las, a fim de que se armem e elevem no nível de suas ações revolucionárias? De qualquer forma, a missão dos comunistas é sempre, partindo dos interesses das massas e utilizando todas as formas de luta, leva-las a tomar seu destino nas próprias mãos. Ainda quando chegávamos a conflagrar e libertar algumas áreas, expandindo a luta armada, a tarefa dos agrupamentos guerrilheiros ou do Exército Popular por ventura enviados para áreas não-conflagradas é criar nelas base política através do trabalho entre as massas, de forma que elas decidam por si mesma a constituição de destacamentos de autodefesa, de milícias, de guerrilhas, etc.; e tomem o Poder. Se procedermos de modo inverso, corremos o risco de cair no militarismo.

Por conseguinte, se procurarmos tirar ensinamentos da luta do Araguaia que sejam válidos, que nos ajudem a acelerar a preparação e o desencadeamento da luta armada, não devemos voltar ao passado oportunista de direita, deachar que as massas por si mesmas, espontaneamente, devam, um dia, pegar em armas e se defender da violência reacionária; nem adotar o princípio “esquerdista”, blanquista, foquista, de que são os comunistas que devem pegar em armas em lugar das

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massas. Nosso dever principal e urgente é o de continuar no esforço, nas tentativas de preparar o trabalho armado e o levantamento das massas, até que a guerra popular se torne uma realidade, visto que não há outra alternativa para o povo brasileiro, que terá que pagar um preço alto para aprender a lutar e conquistar a liberdade. Os inimigos, bem como os oportunistas de todos os matizes, tratam de dissuadir as forças populares da busca desse caminho, tentando provar que o mesmo não terá sucesso. No entanto, os verdadeiros revolucionários, em particular os comunistas, estão cada vez mais convencidos de que esse caminho não é apenas viável, como também é o único capaz de tornar triunfante a causa democrática e anti-imperialista. O que nos falta é saber tirar lições dos erros, realizar uma autocrítica corajosa, sem o que jamais conseguiremos transformar a derrota que sofremos na vitória tão ansiada.

Simultaneamente com esse processo autocrítico, é necessário elaborar um plano estratégico de trabalho nas regiões mais propícias (estas encaradas do ponto de vista político, militar e topográfico) e dar prioridade ao trabalho de massas e à construção do Partido. O plano de ação, naturalmente, deve ser levado adiante dentro da mais rigorosa clandestinidade. Mas implantação de camaradas em determinadas áreas para formar dispositivos militares deve obedecer, em primeiro lugar, a critérios políticos; ou melhor, os mesmos precisam preocupar-se prioritariamente com os problemas políticos, possuir certa capacidade política. É evidente que se esses camaradas a isto combinarem aptidões militares será excelente. Assim, ao mesmo tempo que desenvolvemos o trabalho político, de massas, cuidaremos da organização da infra estrutura e do dispositivo militar.

Devo insistir em quea preparação da luta armada é tarefa de todo o Partido e não apenas de alguns especialistas. A ausência de organização do partido, tanto dentro da área como em sua periferia, no sul do Pará foi mais que deficiência – constituiu-se num erro grave, de princípio. Não deve ser repetido. O Partido não atrapalha, antes facilita, promove, impulsiona, organiza, sustenta, dirige todo o processo. Não nega, ao contrário, pressupõe a necessidade de formar e multiplicar os quadros de todos os tipos, principalmente os militares, os especialistas. A existência do Partido nas áreas facilitará também a divisão das funções e a compartimentação das atividades, a justa combinação do trabalho legal com o ilegal, do aberto com o secreto. Em todos os casos e aspectos, os comunistas devem ser capazes de efetuar o trabalho clandestino, de profundidade, tanto político como militar.

É muito importante o trabalho militar propriamente dito. Devemos tomar medidas urgentes para planificar e sistematizar o estudo da arte militar. Neste terreno, cabe à Comissão Militar papel primordial. Ela deve evitar o erro, cometido no Araguaia, de se converter em comando operacional ou em comissão de determinada área, mesmo sendo a prioritária.

Embora preocupada com a preparação concreta e concentrando seus esforços em alguns pontos-chave, precisa orientar todas as organizações partidárias para a tarefa de preparação e controlá-las.

Camaradas. Há toda uma série de questões relevantes a serem enfrentadas e resolvidas

em relação e a perspectiva de guerra popular. Não nego sua importância em estudá-los e debatê-los. Mas, enquanto não nos pusermos de acordo em alguns pontos básicos, dificilmente avançaremos. A experiência vem de provar o quanto nosso aprendizado custará em sacrifícios, o quanto nosso caminho será duro, prolongado.

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Mas, se quisermos ser fiéis ao povo e corresponder a seus anseios, não podemos desanimar.

Atualmente, a correlação entre os fatores favoráveis e os desfavoráveis continua a ser o fundamental no exame de nossa preparação para o desencadeamento da luta armada. O inimigo ainda está forte (relativamente), adquiriu experiência, encontra-se sobressaltado, temeroso de que surjam novos desafios à sua prepotência, de que os conflitos no campo se alastrem, de que nas cidades ocorram explosões. Por outro lado, o povo brasileiro está mais disposto do que nunca a livrar-se da ditadura militar-fascista, busca meios e formas de sacudir o jugo de seus exploradores e opressores. Nosso Partido, sem embargo de ter sido duramente golpeado e sofrido sérias perdas, já não é o mesmo de 1972. Também ganhou experiência. Portanto, para transformar as presentes condições desfavoráveis, cumpre-nos persistir em nossa política de frente única, concentrar mais esforços para ganhar as grandes massas operárias e camponesas, revolucionarizar mais nossas fileiras, defender com firmeza nossa organização e acelerar a preparação militar. Tudo indica que os horizontes vão clareando para o povo brasileiro. A bandeira da luta armada, que empunharam tão heroicamente e pela qual se sacrificaram os camaradas do Araguaia, deve ser erguida ainda mais alto. Se conseguirmos de fato nos ligar às grandes massas do campo e das cidades e ganhá-las para orientação do Partido, não importa qual seja a ferocidade do inimigo, com toda a certeza a vitória será nossa.

FONTE: http://grabois.org.br/portal/cdm/revista. Acesso on-line em 05 de dezembro

de 2012.